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Rodolfo Domenico Pizzinga

FILOSOFIA PORTUGUESA

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FEVEREIRO DE 2024
SUMÁRIO
DADOS SOBRE O AUTOR

FILOSOFIA PORTUGUESA (I): CONSIDERAÇÕES SUCINTAS SOBRE A FILOSOFIA


PORTUGUESA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
ASPECTOS GERAIS
POSITIVISMO
KRAUSISMO
A FILOSOFIA DA HISTÓRIA SEGUNDO KRAUSE
NOTAS
SITES CONSULTADOS

FILOSOFIA PORTUGUESA (II): A DOUTRINA MÍSTICA DE ANTÓNIO DE LISBOA


TRAÇOS BIOGRÁFICOS
A DOUTRINA MÍSTICA EM GERAL
SÍNTESE FILOSÓFICA DA HUMILDADE
A NOITE MÍSTICA
O Conticínio (Conticinium)
A Meia-Noite (Media Nox)
A Aurora (Aurora)
O TOQUE MÍSTICO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANEXO I
MISTÉRIOS DA NOITE NEGRA

FILOSOFIA PORTUGUESA (III): O PENSAMENTO PANTITEÍSTA DE JOSÉ MARIA DA


CUNHA SEIXAS
TRAÇOS BIOGRÁFICOS
SISTEMA PANTITEÍSTA
TEODICÉIA PANTITEÍSTA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SITES CONSULTADOS
ANEXO I
J. M. CUNHA SEIXAS
ANEXO II
RETRATO DE JOSÉ MARIA DA CUNHA SEIXAS
ANEXO III
FRONTISPÍCIO DA PRIMEIRA OBRA DE CUNHA SEIXAS.

FILOSOFIA PORTUGUESA (IV): O MESSIANISMO DE SAMPAIO BRUNO


TRAÇOS BIOGRÁFICOS
A IDÉIA DE DEUS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SITES CONSULTADOS

FILOSOFIA PORTUGUESA (V): O CRIACIONISMO DE LEONARDO COIMBRA


TRAÇOS BIOGRÁFICOS E CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O CRIACIONISMO E A IDÉIA DE DEUS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANEXO I
INSTITUTO CAMÕES
FIGURAS DAS CULTURAS LUSÓFONAS

FILOSOFIA PORTUGUESA (VI): CONCLUSÕES E ADITAMENTOS SOBRE OS ITENS I, II, III,


IV E V
CONCLUSÕES E ADITAMENTOS
NOTAS

LINK DE CADA CAPITULO RETIRADO DO SITE


DADOS SOBRE O AUTOR

Rodolfo Domenico Pizzinga

Mestre em Educação, UFRJ, 1980. Doutor em Filosofia, UGF, 1988. Professor Adjunto IV
(aposentado) do CEFET-RJ. Consultor em Administração Escolar. Presidente do Comitê
Editorial da Revista Tecnologia & Cultura do CEFET-RJ. Professor de Metodologia da
Ciência e da Pesquisa Científica e Coordenador Acadêmico do Instituto de
Desenvolvimento Humano - IDHGE.
FILOSOFIA PORTUGUESA (I): CONSIDERAÇÕES SUCINTAS SOBRE A FILOSOFIA
PORTUGUESA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX*

ASPECTOS GERAIS

A Doutrina Pantiteísta (Pantiteísmo) de José Maria da Cunha Seixas (1836-1895) foi


pensada, construída e nasceu, em Portugal, em um ambiente profundamente
heterogêneo e saturado pelo Positivismo. Entretanto, se a Doutrina Comtiana, sob o
controle de um dos seus mais ferrenhos defensores — Joaquim Teófilo Fernandes Braga
(1843-1924) — impôs-se em Lisboa, principalmente no Curso Superior de Letras, já em
Coimbra, com Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886) e com Joaquim Maria Rodrigues de
Brito (1822-1873), o Krausismo prevaleceu nomeadamente no âmbito da Filosofia do
Direito. Estas duas correntes filosóficas são inteiramente antagônicas, quer nas próprias
formulações, quer em suas aplicações. Pensa-se que o coerente e bem fundamentado
magistério filosófico de Rodrigues de Brito, viria a impressionar de forma consistente,
mas não definitiva, portanto, revisionisticamente em diversos aspectos, a trajetória
especulativa do Ilustre Pensador Beirão, que se afirmou como escritor e livre-pensador a
partir de 1864, ano do lançamento do livro Estréias, quando ainda era estudante do
quinto ano jurídico, entretanto, já sócio e freqüentador do Instituto de Coimbra. Cunha
Seixas — um dos maiores pensadores portugueses do século XIX — dedicou sua vida
basicamente à Filosofia e, particularmente, em demonstrar e tentar provar que Deus está
em tudo, mas é distinto.

Cunha Seixas

Mas, o Portugal dos oitocentos também sofreu outras importantes influências. O


que se pretende, neste primeiro documento é, muito rápida e sucintamente, historiar o
confronto das principais idéias filosóficas que se contendiavam nos primeiros cinqüenta
anos do século XIX, incluindo, mais extensamente, uma reflexão histórica sobre a
Doutrina Krausista e sobre o Sistema criado por Augusto Comte (1798-1857). A
convicção espiritual, as divergências e a resposta metafísica de Cunha Seixas às diversas
correntes filosóficas serão sinteticamente apresentadas no terceiro título desta série.
Uma primeira observação sobre a atividade filosófica portuguesa daquele tempo
era a pouca originalidade que encerrava, o que vale dizer que as idéias no campo da
Filosofia eram, em grande medida, importadas. Compêndios propagavam reflexões
originárias de pensadores estrangeiros, divergindo apenas na forma em como as
doutrinas eram apresentadas. Ressalva-se, minimamente, a figura ímpar de Silvestre
Pinheiro Ferreira (1769-1846), a quem será feita referência posteriormente. A afirmação é
dura, reconhece-se, mas quem a produziu foi um Doutor em Filosofia e Letras pela
Universidade de Lovaina e sócio da então Academia Real das Ciências de Lisboa. O
homem foi Manuel António Ferreira-Deusdado (1858-1918).[1] Sustentou Deusdado que,
com exceção da História da Filosofia em Portugal, da pena do jurista, professor
universitário e historiador da filosofia portuguesa José Joaquim Lopes Praça (1844-1920),
a bibliografia filosófica portuguesa estava ainda por ser feita. Cunha Seixas também, em
diversas obras, reclamou da falta de cultura e do desinteresse dos portugueses pelo
pensamento filosófico.
No final do século XVIII, a Europa era palco, no campo da Filosofia, de intensa
divergência de idéias, e Portugal não ficou alheio a esse movimento. A língua latina
passou a ser substituída pela portuguesa, e o Tomismo, que ecoou alguns séculos em
Portugal, começou a ser contestado, designadamente pela Congregação do Oratório e os
cônegos regrantes, ordens religiosas adversárias dos jesuítas.[2] Os novos ventos que
sopravam na terra lusa foram assim narrados por Ferreira-Deusdado:

A philosophia moderna entrou francamente em Portugal com o padre João


Baptista, do Oratório, o arcediago Luiz António Verney e o padre Theodoro de
Almeida. O cartesianismo e o sensualismo abriram brecha, como pode ver-se da
bibliographia do tempo.

O sistema de Descartes, como muito vasto, dera origem a quatro escolas: a


sensualista, representada por Locke e continuada pelo Barão de Holbach e La
Mettrie; a pantheista, representada por Spinoza; a racionalista adaptada por Regis
e Arnauld; a espiritualista, representada por Bossuet e Leibnitz.[3] (sic).

Mas, de todos os pensadores portugueses da primeira metade do século XIX,


Cabral de Moncada e Ferreira-Deusdado, entre tantos pensadores luso-brasileiros,
apontaram, como o mais ilustre, Silvestre Pinheiro Ferreira, que foi Ministro de D. João VI
e deputado, tendo acabado por se tornar, no campo do direito internacional, um dos mais
respeitados nomes do continente europeu.[4]

Pinheiro Ferreira, no entendimento de Cabral de Moncada, foi um sensualista


confesso e, nesse sentido, um adversário de toda a metafísica idealista e de todo o
transcendentalismo especulativo de origem sobretudo alemã. Mas, se por um lado
admitiu que todas as idéias do homem provêm das sensações, por outro, creu em um
Deus criador, em um direito natural e em um direito da razão, ao qual denominou Direito
Filosófico e Universal, o que, para Cabral de Moncada, posiciona-o, aliás, corretamente,
como metafísico deísta e jusnaturalista.[5] Essa aparente contradição é explicada pelo
pesquisador citado, que ensinou que Pinheiro Ferreira admitiu que nem o direito nem a
moral são alcançados pela especulação metafísica, mas pelo caminho da experiência e da
observação.
Já o grande pensador brasileiro Antonio Paim (1927- ), após analisar a obra
completa de Pinheiro Ferreira, inferiu que o Filósofo Português constituiu-se no
reformador do Empirismo Mitigado e no grande teórico do Liberalismo Político.[6] O
esforço de Pinheiro Ferreira, segundo Paim, teria consistido em:

... derivar todas as idéias das sensações. Para tanto, estas últimas são ordenadas
em classes, que correspondem às qualidades presentes aos objetos. As classes,
por sua vez, são divididas em ordens, de acordo com as sensações que entre elas
se podem estabelecer. Também, de sua doutrina da 'substância' desaparece a
conceituação tradicional de fundamento ou suporte subjacente a algo, que
aparece. Enquanto a essência (tradução que dá à 'ousia' aristotélica) compreende o
complexo de qualidades atuais e que se conclui serem essenciais, a substância
abrange não só as qualidades essenciais como as acidentais, comuns aos estados
presente e passado. Quanto à Natureza, abrange não apenas as notas presentes ao
conceito de substância, mas as qualidades futuras ou possíveis. Assim, as idéias de
essência, de substância e de Natureza passam a corresponder a formas peculiares
de agrupamentos das qualidades que nos são dadas pela observação e pela
experiência sensível.
A Cosmologia, para Silvestre Pinheiro Ferreira, não corresponde à
introdução normativa das ciências físicas e matemáticas, a exemplo da 'Física' de
Verney. Compete-lhe apenas interpretar certas descobertas da ciência
experimental em benefício de teses e de hipóteses filosóficas, que, do contrário,
não se manteriam. Assim, nas 'Preleções', a ciência experimental é que justifica a
interferência filosófica de que todas as partes do universo acham-se ligadas e são
solidárias entre si.
A vinculação do conhecimento à experimentação e à observação estende-se
à ação moral, porquanto as idéias de virtude e de vício se identificam com as de
gosto (agrado) e de dor. O 'bem' é definido como ‘aquela ação de que se costuma
seguir uma maior soma de gostos que de dores’, enquanto a virtude é ‘a ação moral
de que se costuma seguir uma maior sorna de gostos que de dores’ (Preleções §
297).[7]

Na Ontologia § 70, sobre a liberdade, Pinheiro Ferreira registrou:

Os espíritos que, na presença de muitos motivos, obram umas vezes por um, e
outras vezes por outro desses motivos, chamam-se 'livres'; a faculdade de assim
proceder chama-se 'liberdade'; e cada um desses atos chama-se 'escolha'. À
faculdade de escolha também se dá o nome de opção.[8]
Silvestre Pinheiro Ferreira
(Arquivo Histórico Militar)

Paim concluiu, portanto, que Silvestre Pinheiro Ferreira, além de ter oferecido uma
opção para a superação do Empirismo Mitigado, conduziu a jovem intelectualidade da
época a meditar sobre o tema fundamental da liberdade. Por isso, preparou os espíritos
para a aceitação das idéias de Maine de Biran (1766-1824) que se formularam na busca da
coerência do Empirismo...[9]

Reproduzirei abaixo um pequeno texto denominado O Esquecimento de Silvestre


Pinheiro Ferreira, que foi colhido no site com o qual encerro esta revisitação sobre eete
injustamente esquecido português:

Diremos, contudo, que a recepção deste modelo organicista estrangeirado


impediu que, entre nós, frutificasse a influência de um dos mais originais
publicistas do século XIX, o portuguesíssimo Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-
1846), exilado em Paris de 1826 a 1842, autor do célebre Précis d'un Cours de Droit
Public Interne et Externe, Paris, Imp. de Casimir, 1830, considerado como um dos
primeiros corpos completos de direito público da Europa, abrangendo tanto o
direito interno como o direito constitucional.
Segue-se, do mesmo autor, o Projecto de Ordenações para o Reino de
Portugal, Paris, 1831, em três tomos, no qual se propõe uma reforma das leis
fundamentais portuguesas, pela edição de leis orgânicas para a respectiva
execução.
Outras obras de alta densidade política foi editando, nomeadamente
Observações sobre a Constituição do Império do Brazil e sobre a Carta
Constitucional do Reino de Portugal, Paris, 1831; Manual do Cidadão em um
Governo Representativo, ou Princípios de Direito Constitucional, Administrativo e
das Gentes, Paris, Rey et Gravier - J. P. Aillaud, 1834, em 3 volumes (Tomo I -
Direito Constitucional; Tomo II - Direito Administrativo e das Gentes; Tomo III -
Projecto de Código Geral de Leis Fundamentaes e Constitutivas duma Monarquia
Representativa); Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão, Paris,
Rey et Gravier, 1836; Projecto de Código Político para a Nação Portuguesa, Paris,
Rey et Gravier, 1838; Projecto de Associação para o Melhoramento da Sorte das
Classes Industriosas, Paris, Rey et Gravier - J. P. Aillaud, 1840; Questões de Direito
Público e Administrativo, Filosofia e Literatura [1844], Lisboa, Typ. Lusitana, 1844;
Précis de Droit Politique, Lisboa, 1845.
A profundidade e a originalidade de Pinheiro Ferreira revelam-se também
em Noções Elementares de Philosophia Geral, e Applicada às Sciencias Moraes e
Politicas. Ontologia, Psychologia, Ideologia, Paris, Imp. de Casimir, 1839, em que
diz defender as ideias de Aristóteles, Bacon, Leibniz, Locke e Condillac contra o
tenebroso barbarismo dos Heraclitos da Alemanha (Kant, Fichte, Schelling, Hegel)
e a brilhante phantamasgoria dos ecléticos da França. Já antes editara umas
Noções Elementares de Ontologia, Paris, 1836, em que defendia que as sciencias
morais e políticas (...) constituem por si sós um corpo de sciencia.
O mais notável dos publicistas da cultura portuguesa, se deixa marca
indelével tanto no direito público francês (basta recordar a invenção estruturada
da ideia de poder de sufrágio, mais tarde desenvolvida por Hauriou) como nas
próprias concepções políticas (está demonstrada a influência do corporatismo de
Ferreira em Proudhon e Blanc), não foi profeta na sua própria terra, onde
preponderaram, primeiro, as vulgarizações simplificadoras do Krausismo, a partir
de Ahrens, e, depois, os delírios ideologistas do Positivismo comteano.

Não se pode, todavia, ao considerar, ainda que brevemente, o ensino da Filosofia


na primeira metade do século XIX, deixar de observar, como acuradamente pensou Anna
Maria Moog Rodrigues, que ele continuava a ser o estabelecido pela reforma pombalina.
A Faculdade de Filosofia, como afirmou a pensadora supradita, era, na verdade, uma
escola de ciências naturais dentro dos moldes prescritos por Luiz António Verney, em seu
Verdadeiro Método de Estudar.[10]
Só nos primeiros anos da década de cinqüenta é que o Espiritualismo Eclético
começaria a se impor. Ferreira-Deusdado citou como exemplo O Curso Elementar de
Filosofia, de A. Ribeiro da Costa e Almeida, professor do Liceu da Cidade do Porto, que
publicou quatro edições da dita obra, na qual divulgou o seu sistema, que foi também
fundamentado no já aludido Espiritualismo Eclético.
Em Coimbra, Vicente Ferrer Neto Paiva ...que exerceu uma quase hegemonia
intelectual na universidade... e a quem foi entregue a reformulação do ensino de Filosofia
Jurídica do Curso de Direito, onde praticou o magistério, de 1834 a 1865, trouxe à luz o
seu Curso de Direito Natural,[11] e, de sua cátedra, com a autoridade e o respeito que
conquistara, divulgava uma síntese pessoal do pensamento de Krause.
Já em Lisboa, Teófilo Braga, no último quartel do século, depois de confessar
publicamente suas simpatias pelo sistema de Comte, fez publicar, em 1877, os seus
Traços Gerais da Filosofia Positiva Comprovados pelas Descobertas Científicas Modernas.
Sobre Teófilo Braga, Ferreira-Deusdado noticiou:
Teófilo Braga - últimos tempos
Os Deputados Republicanos eleitos pelo
Círculo Occidental de Lisboa
Postal ilust., Archivo Republicano, ca 1910 BN PI. 2662 P.

Discípulo afervorado de Augusto Comte, abre uma referta em toda a linha,


crendo que este systema philosóphico é o remédio salvador da consciência
humana, tantos séculos illudida com as explicações tradicionaes, vergando sob a
influência de falsas noções. O talento rutilo e a actividade incansável do dr.
Theóphilo Braga tem se feito sentir, tendo como principal cyreneu o seu discípulo
sr. Teixeira Bastos, que em muitos escriptos conscienciosamente tem affirmado o
valor da sua esclarecida inteligência.
Em 1878 appareceu o 'Positivismo', revista de Philosophia, dirigida por
Theóphilo Braga e Júlio de Mattos. Viveu quatro anos. Era collaborada por
Alexandre da Conceição, dr. Augusto Rocha, Consiglieri Pedroso, dr. Emygdio
Garcia, Vasconcellos Abbreu, Gonçalves Vianna, etc.[12] (sic).

Em suma, Ferreira-Deusdado observou que os sistemas que encontraram eco na


vida filosófica portuguesa foram o Sensualismo, o Ecletismo, o Tomismo e o Positivismo.
Cunha Seixas, nascido e educado em uma família católica, esmagado entre essas
várias correntes de pensamento e sofridamente discordando de sua orientação religiosa
original, só pôde encontrar um caminho: estabelecer um sistema próprio. Acabou por
presentear o pensamento filosófico com o seu Pantiteísmo.
Antes, porém, de se meditar sobre sua vasta obra, o que será feito no terceiro
documento, abrir-se-ão dois itens para se estudar, no primeiro, rapidamente, alguns
aspectos da Doutrina de Comte e, no segundo, para se elaborar uma sucinta recordação
do Sistema Panenteísta, de Krause. Acredita-se justificada essa escolha, pois, se quanto
ao Krausismo, Cunha Seixas, ainda que dissidente, lhe mostrou afeição e simpatia e dele
sofreu reconhecida influência, no que tange ao Positivismo, foi seu mais cáustico e
veemente crítico, tendo-o combatido até a morte.
POSITIVISMO

O termo positivismo foi usado pela primeira vez por Claude Henri Saint-Simon
(1760-1825), que hospedou as idéias materialistas vigentes na França setecentista,
opondo-se ao Deísmo e ao Idealismo e defendendo o estudo da Natureza e o
Determinismo. O Positivismo, segundo Marcuse, designa:

a) a validação do pensamento cognitivo pela experiência dos fatos;


b) a orientação do pensamento cognitivo para as Ciências Físicas como um modelo
de certeza e de exatidão;
c) a crença de que o progresso do conhecimento depende dessa orientação.[13]

Saint-Simon, ao assistir a dissolução da unidade sócio-espiritual moderna, unidade


esta estabelecida pelo Cristianismo durante a Idade Média (exemplificada pela Revolução
Francesa, pelo fim do feudalismo, pela reforma protestante, pelas lutas entre a Igreja e as
monarquias vigentes etc.), propôs como solução para a crise o desenvolvimento
industrial e a pesquisa científica. Na nova sociedade proposta por Saint-Simon ...a
direção espiritual deve passar do clero para os cientistas, e o cuidado pelos interesses
materiais deve passar da nobreza para a indústria e os bancos.[14] Na sociedade saint-
simoniana, o papel preponderante e dominante estaria nas mãos dos representantes da
ciência e da indústria. Nessa sociedade, entre outras características, como condição de
desenvolvimento, seriam obrigatórias a eliminação dos ociosos e a supressão da
propriedade privada. Marx (1818-1883), meio século depois, destacaria o pioneirismo de
Saint-Simon bem como de Charles Fourier (1772-1837) e de Pierre Joseph Proudhon
(1809-1865) como críticos da sociedade burguesa, mas reprovou o 'utopismo' das suas
propostas de mudança social.
Entretanto, historicamente, o fundador e pai do Positivismo foi Auguste Comte
(1798-1856), que, entre 1818 e 1824, foi colaborador e secretário de Saint-Simon e de
quem recebeu a idéia de que ... os fenômenos sociais, assim como os físicos, podem ser
reduzidos a leis, e ainda que a ciência e toda a filosofia devem ter por alvo o
melhoramento moral e político da espécie humana.[15] Todavia, Comte acabou por
romper com Saint-Simon, não sem a ele se referir, deixando escrito para a posteridade
que, durante a fase negativa que precedeu seu desenvolvimento sistemático, tinha se
exposto... às seduções passageiras de um charlatão superficial e depravado.[16]
Saint-Simon | Auguste Comte

Para o Filósofo de Montpellier, o homem tem sua origem na matéria, a mesma


matéria que criou o Universo, tudo se passando sob o arrimo das leis da evolução. No
estágio humano, a evolução propiciou o começo da história. Ao estudar o
desenvolvimento total da inteligência humana, Comte creu ter descoberto uma grande lei
fundamental, lei que pensou explicar as concepções principais e cada ramo do
conhecimento, evoluindo e transitando por três estados históricos diferentes: estado
teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo.[17] No
primeiro estado, os fenômenos têm uma causa sobrenatural e são explicados
teologicamente, sob a interveniência e a vontade de alguma divindade – como quando os
corpos celestes eram tidos como deuses; no segundo estado, as forças abstratas
substituem o sobrenatural – os corpos celestes, agora, movem-se em círculos, porque o
círculo simboliza e representa a perfeição geométrica; no terceiro estado, o estado
positivo, todos os fenômenos constatados são explicados cientificamente com base na
observação, nas hipóteses e na experimentação. Procurando exemplificar e enfatizar suas
convicções, Comte perguntou:

Ora, cada um de nós, contemplando sua própria história, não se lembra de que foi
sucessivamente, no que concerne às noções mais importantes, ‘teólogo’ em sua infância,
‘metafísico’ em sua juventude e ‘físico’em sua virilidade?[18]

Contudo, admitiu ter dúvidas se um dia a Humanidade alcançaria integralmente o


estado positivo; mas foi convicto de que o homem, para passar do degrau fictício para o
degrau científico, necessita obrigatoriamente adotar uma filosofia transitória, que, para
ele, constituía-se nos métodos e nas doutrinas de cunho abstrato.
Jose Ferrater Mora ensina que o Sistema de Comte compreende basicamente três
fatores, a saber:

... em primeiro lugar, uma filosofia da história que há de mostrar por que a filosofia
positiva é a que deve imperar em um futuro próximo; em segundo lugar, uma
fundamentação e uma classificação das ciências assentadas na filosofia positiva;
por último, uma sociologia ou doutrina da sociedade que, ao determinar a
estrutura essencial da mesma, permita passar à reforma prática e, finalmente, à
reforma religiosa, a Religião da Humanidade.[19]
A Filosofia Comtista não se resume tão-somente na mera organização das
ciências. Estas foram classificadas de acordo com suas respectivas complexidades
crescentes. Tal organização requer, fundamentalmente, uma ordem hierárquica para
poder ser implementada. Partindo da Matemática e passando sucessivamente pela
Astronomia, pela Física, pela Química e pela Biologia, o Fundador do Positivismo
posicionou a Sociologia no ápice da pirâmide, por entender que os complexos fenômenos
que regulam a vida social eram os mais recalcitrantes em se subordinar à disciplina e ao
método científico.

SOCIOLOGIA
BIOLOGIA
QUÍMICA
FÍSICA
ASTRONOMIA
MATEMÁTICA

Ao apresentar um estudo sistemático da Humanidade, Comte demonstrou um


inequívoco dogmatismo intelectual, que, na opinião de Will Durant, talvez tenha sido
oriundo do isolamento em que vivia e das desilusões do Filósofo.[20] Alguns princípios
estabelecidos pelo Sistema Positivista são o de que a Humanidade é o Grande Ser, e o
único meio de redimir o mundo seria pelo estabelecimento de uma nova religião que
estimulasse o altruísmo da Natureza humana. A nova religião – a Religião da Humanidade
– estabelece o sacerdócio, os sacramentos, as orações e a disciplina, e é para o Grande
Ser – a Humanidade – que devem ser dirigidos os atos de adoração. Propôs, inclusive, um
calendário positivista, no qual os nomes das deidades pagãs e dos santos católicos eram
substituÍdos pelos maiores expoentes da ciência, da política, da filosofia, da religião e da
arte. O rito era o mesmo, mas, dessacralizado, descristianizado.
Junto com o Grande Ser, formando a trindade positivista, Comte propôs a terra e o
espaço, o Grande Fetiche e o Grande Meio, respectivamente, como objetos de adoração.
Para Comte, a Humanidade encontra-se em progresso contínuo, caminhando
decisivamente para o estado positivo, tendendo, inclusive, para uma unidade política sob
o governo dos filósofos positivistas, todos guiados pela máxima moral do Positivismo:
Viver para outrem. A crítica ao Positivismo de Comte esteve, em Portugal, a cargo,
principalmente, de José Maria da Cunha Seixas. Mas, não se poderia encerrar este
sintético estudo, sem transcrever o que disse Álvaro Ribeiro no seu livro Os Positivistas,
sobre a assimilação da Doutrina Positiva pelos pensadores portugueses:

Todo o positivismo português devém no plano da superficialidade cultural, exer-cendo, é


certo, os seus malefícios na zona própria dos medíocres que tudo aferem pela admiração
do estrangeiro. Não chegou, porém, tal doutrina a ser absorvida, apropriada, assimilada
pelos verdadeiros pensadores nacionalistas. A leitura dos textos, que é a prova real,
constituirá, para muitos estudiosos, surpreendente fonte de desenganos.
É indispensável, todavia, para chegar a tão certeira conclusão, partir da dúvida
sobre o valor das citações de filósofos estrangeiros, incluídas nos textos das obras dos
escritores nacionais. A citação é quase sempre motivada por pedantismo, moda ou
ortodoxia, e degenera, muitas vezes, em ornato de estilo que não pertence àquela natural
seqüência de frases em que o autor se dá ao tema, por assim dizer, de alma e coração.
Não passam tais citações de adereços postiços – emprestada vestimenta de erudição que
ilude o leitor ingênuo – mas não logram enganar o intérprete que no corpo do discurso
analise os elementos lógicos do raciocínio argumentante e os tropos ágeis da imaginação
persuasiva.[21]

KRAUSISMO

Karl Christian Friedrich Krause 1781-1832), apesar de não ter sido a mais
importante, foi, certamente, uma das mais singulares figuras do Idealismo Alemão.
Nascido em Eisenberg (Saxônia-Altenburg), estudou na Universidade de Iena, e sua
permanente dedicação à Filosofia acabou por recompensá-lo: discípulos fiéis difundiram
suas idéias, e o Krausismo esparramou-se pela Holanda, Bélgica e Portugal, florescendo
notadamente na Espanha com Julián Sanz del Río (El movimiento krausista conoce en
España su auge entre los años que van de la revolución de 1854 a los albores de la
Restauración (1875). Con él, la interferencia entre la religión y la ciencia empieza a
resquebrajar la ignorancia y la intolerancia circundantes). Suas idéias, que aspiravam a
continuar o pensamento de Kant, pretenderam atenuar os conceitos panteístas,
estabelecendo o que denominou Panenteísmo (Panentheismus), ... doutrina que sustenta
que tudo está em Deus, ou seja, em seu seio.[22]

Krause | Sanz del Río

Alrededor del año 1840, un grupo de juristas españoles, entre los cuales se
encuentra Julián Sanz del Río, buscan apasionadamente una doctrina política que
propicie un proceso regenerador del país, dentro del pensamiento liberal, por
supuesto, aunque éste aparece entonces bajo la forma del doctrinarismo y no
satisfaga las aspiraciones del grupo.
En 1833, un exiliado alemán, Heinrich Ahrens, ha dado en la Sorbona un Curso
de Derecho Natural, o Filosofía del Derecho, que ha sido publicado en París en
1837. Ruperto Navarro Zamorano, miembro del grupo de amigos de Sanz del Río,
lo traduce en 1841. El libro de Ahrens tiene una gran repercusión. En definitiva, la
Filosofía del Derecho se presenta como una reacción frente al iusnaturalismo
racionalista que, alzado como bandera por la burguesía revolucionaria en 1789, ha
perdido su capacidad renovadora al llegar al poder y, una vez positivizado, queda
reducido a la mera legalización del «status» que otorga el poder a esa burguesía.
Este hecho, unido a la pérdida de la noción del Derecho como norma absoluta que
propugna la escuela histórica de Savigny, produce un hueco valorativo que la nueva
Filosofía del Derecho trata de llenar. Ahrens, discípulo de Krause, sin prescindir de
la positivación y relativización de la Ciencia del Derecho, propone guiar ésta hacia
un ideal dado por una profunda base moral, previa al desarrollo de la Ciencia del
Derecho propiamente dicha, y capaz de conducirla por nuevos caminos. Krause -
nos dice- fue quien primero expuso el carácter del Derecho que consiste en la
condicionalidad: definir el principio del Derecho como el conjunto de las
condiciones exteriores de que depende el destino racional del hombre y la
humanidad. Y Giner, años más tarde, añade: Nadie se ha adelantado, no ya a
indicar, sino a desenvolver sistemáticamente este principio del Derecho como un
orden universal de piedad, abnegación y altruismo, tanto como Krause.
Este trasfondo moral hace posible el fortalecimiento de asociaciones nacidas
por la necesidad de cumplir los fines de la Humanidad; a cada finalidad: religiosa,
científica, artística, industrial, moral y jurídica, corresponde una asociación,
quedando al Estado un reducido papel en su propia órbita política, sin
entrometerse en el desenvolvimiento de las demás. Aunque, eso sí, reservándose
un papel mínimo de vigilancia para evitar que las demás asociaciones se interfieran
entre sí y obstaculicen el desarrollo de la finalidad para la que fueron creadas.
Este programa resulta atractivo para los gobernantes liberales, que con diez
años en el poder, constatan día a día la ineficacia de los decretos-leyes en una
sociedad estructurada de manera tradicional, sin cauces de comunicación entre las
diferentes clases sociales y sin una idea clara de comunidad social.

Fonte: http://www.almendron.com

Explicando o Panenteísmo, Krause ensinou:

...nada é Deus, excepto Deus, mas os seres são essencialmente distinctos de Deus,
que não consiste em cousa alguma finita e abraça todo o finito em si. Não dizemos
à maneira dos eleatas, que o uno e o todo são identicos, porque a idea de
totalidade importa ordinariamente a idea de uma multiplicidade de factos e de
uma certa união, entre eles, enquanto que Deus é a unidade pura e simples da
essencia: mas, como tudo o que é finito é contido na unidade divina, dizemos que o
uno é também tudo em si e por si. A sciencia do ser é, pois, o ‘panentheísmo’.[23]
(sic).

No Krausismo não é excluída a possibilidade de um Deus pessoal, ainda que


separado do mundo. Em Deus é realizada a unidade dos opostos manifestados no mundo,
sendo Deus, concomitantemente, indiferença e origem de toda a oposição. Nesse
sentido, no Panenteísmo de Krause, o pensar procede de duas maneiras: primeira,
analítica ou subjetiva; segunda, sintética ou objetiva. O ponto de partida analítico-
subjetivo consiste em examinar o primeiro elo na cadeia de verdades - o eu primário ou o
proto-eu — que, para Krause, é uma unidade constituída de corpo e de intelecto e se
admite a si mesmo como finito por duas razões: a) pela existência de outros eus que o
limitam; b) porque todas as suas funções corporais se lhe revelam como limitadas. O
corpo e o intelecto são, portanto, essências finitas que, respectivamente, integram a
Natureza e o espírito. Natureza e espírito continuam sendo essências finitas e postulam
uma essência superior, infinita, fonte de todo o real. Essa essência é um puro Wesen, um
Ser Essencial, Infinito, que abarca elementos contrários e diversos, e pode ser traduzida
por Ser Absoluto ou Deus.[24]
O pensar objetivo ou sintético da metafísica krausista percorre o mesmo caminho
que a via analítica ou subjetiva, porém em sentido inverso. Na via analítica, de forma
indutiva, a investigação percorre do eu primário, através da dualidade corpo-intelecto,
até Deus. Na via sintética, a pesquisa inicia no Ser Absoluto e de forma dedutiva, desce
através da dualidade Natureza-espírito, até o proto-eu. A base fundamental do Sistema
de Krause é:
O mundo é e existe por Deus e em Deus, não separado de Deus e a seu lado, mas
n'Ele e sob sua dependência, como a parte está no todo, o efeito na causa, a
criatura sob o Criador.[26]

O sistema pensado por Friedrich Krause, denominado por seus discípulos de


Filosofia Novíssima, professou a existência de um estreito liame entre Deus e o mundo e
vice-versa. Não admitia, porém, a absorção de um termo em outro. Por isso, o Filósofo de
Eisenberg rechaçou o vocábulo Panteísmo para sua doutrina, tendo, inclusive, rompido
com seu mestre Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) por ser este panteísta.
Schelling postulara que a Natureza e o espírito têm seu último fundamento no Absoluto
incondicionado, idêntico e único, constituindo-se em completa indiferença entre ambos.
Em última instância, o filósofo de Leonberg acreditou que sujeito e objeto, espírito e
Natureza encontram sua identidade no Absoluto e, em Sua Presença, não apresentam
outra oposição, qual seja, apenas, a de participarem de modo distinto do próprio
Absoluto.
Nesse sentido, o vocábulo Panenteísmo ao invés de identificar mundo e Deus,
afirma a realidade existente como Mundo-em-Deus. Em suma, a doutrina do
Panenteísmo ou do Tudo-em-Deus aspirou a superar as limitações das doutrinas da
transcendência e da imanência e, ao pretender determinar o nexo entre Deus e o mundo,
apontou em Deus duas formas de causalidade: Deus-princípio, causalidade eterna, que
reconhece a imanência do mundo em Deus; e Deus-causa, causalidade temporal, que
admite a transcendência de Deus, livre e Supremo Arquiteto do Universo.[27]

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA SEGUNDO KRAUSE

A essência da Filosofia Krausista da história inicia de uma simples unidade, passa


por uma fase intermediária de diferenciação e desemboca em uma unidade superior pela
harmonização dos contrários. Este movimento dialético corresponde a três idades:
infância, juventude e maturidade, ou, em outros termos, indiferenciação, oposição e
harmonia.[28]
Sobre essa lei geral, transcreve-se a seguir a explicação de López Morillas:

Esta é ... uma lei geral que vigora inexoravelmente em todo o tempo e lugar. Da
unidade de Deus, ... que transcende todas as essências finitas e todas as oposições
possíveis, se desce ao longo de uma contraposição, até a unidade finita que é o
homem. A volta gradual deste à unidade com Deus, aspiração suprema do
indivíduo humano, é propriamente o conteúdo da história. A adequada
interpretação deste retorno exige que o filósofo-historiador delimite, por cima da
confusão dos fatos históricos, os três estados em que se reparte o processo de
reintegração do homem com seu Criador.[29]

Nesses três estados, o homem forja uma noção particular de Deus, do mundo, de
si mesmo e de seus congêneres.
São características do estado de indiferenciação ou infantil: o homem é um ser
rudimentar e sua vida transcorre em uma inconsciência placentária. Sua noção de Deus é
simples e imediata. Sua mentalidade embrionária o incapacita para a particularização.
Vive uma existência pura e inocente que épocas posteriores poetizaram como o paraíso
terrenal.[30]
São características do estado de oposição ou juvenil: lentamente o homem se dá
conta das coisas que o cercam e se sente atraído por e para elas. Compassadamente,
afasta-se daquela unidade fundamental e passa a se preocupar com as experiências
sensíveis que tem no mundo. Depois de haver perdido Deus, busca-O novamente, agora
nos fetiches, no culto às forças naturais, dos heróis, dos homens-deuses etc. As
faculdades morais apenas começam a despontar.[31]
São características do estado de harmonia ou madureza: o homem, neste estado,
descobre, primariamente, a unidade da própria consciência. Vive, agora, na esfera do
entendimento. Há uma atividade interior criativa, uma dignidade e uma integridade
pessoais que o conduzem a uma nova avaliação de si mesmo. Refletindo sobre sua
própria unidade no meio da multiplicidade e dos seus iguais, começa a observar e a sentir
a presença de uma consciência superior, única e infinita no tempo e no espaço, que liga e
sustenta todos os seres finitos. Nesse estado, segundo Krause, o homem descobre e
alcança a unidade de e com Deus.[32]
Segundo o Krausismo, e conforme se antecipou mais acima, haverá uma época —
época que já começou — em que os homens viverão estreitamente ligados pelo amor,
reconhecendo em Deus a causa primeira e final da vida. Sobre esse estado, o formulador
do Panenteísmo assim vaticinou:

O homem e toda Humanidade serão elevados em Deus, viverão mais fiéis a seu
destino eterno, mais harmônicos com a vida do mundo em esferas superiores,
tanto na Natureza como no espírito. Todos os homens se conhecerão e se amarão
como uma família de filhos de Deus e destinados a reunir-se na plenitude da vida
divina, e nesta última esperança refarão outra vez sua história como uma
construção nova.[33]

Acrescenta-se, derradeiramente, que as meditações do Filósofo Alemão se estenderam,


conforme adverte Mora, aos domínios da Ética e da Filosofia do Direito.

Recusando decididamente a teoria absolutista do Estado, tal como é sustentada


pelo hegelianismo, Krause acentua a importância das associações denominadas de
finalidade-universal, como a família ou a nação, frente às associações limitadas,
como a Igreja e o Estado. Estas últimas realizam, em verdade, a moral e o direito,
porém não constituem mais do que seu instrumento; o verdadeiro fundamento do
moralismo encontra-se nas primeiras e por isso o ideal da Humanidade não é o
domínio de um Estado sobre os restantes, mas a federação das associações
universais sem sacrifício de sua peculiaridade. Deste modo se chega, por uma série
de gradações no processo federativo, a uma federação mundial,[34] ao ideal que
proporcione a cada um de seus membros a participação na razão suprema e no
Bem.[35]

Segundo Cabral de Moncada, o pensamento de Krause atuou em Portugal da


seguinte forma:

1) Foi o Krausismo que, em Portugal, contribuiu para dar maior dignidade doutrinal
e maior consistência teórica e filosófica a muitos dos princípios que o Liberalismo
tinha de comum com ele, reforçando, por assim dizer, a raiz jusnaturalista e
metafísica da idéia da personalidade na base do direito e da moral.
2) Foi também o Krausismo que, pela primeira vez, veio espalhar no ambiente
espiritual português do século XIX um conjunto de motivos doutrinários e de
princípios que, conquanto não tivessem atuado desde logo sobre as realidades
imediatas da vida social, ficaram todavia constituindo, dentro da Universidade,
uma atmosfera ou clima especial em suspensão, onde foram, posteriormente,
alimentar-se todos esforços e tendências para uma correção do Liberalismo
Político Português até o fim do século XIX.[36]

Portanto, em síntese, o influxo do ideário krausista, em Portugal, fez-se sentir,


principalmente, no âmbito da Filosofia do Direito, nomeadamente com Vicente Ferrer.
Deve-se, entretanto, referir que suas idéias foram contrapostas por vários discípulos
seus, como o próprio Cunha Seixas e Joaquim Maria Rodrigues de Brito, este último
tendo substituído o mestre coimbrão na regência da cadeira de Filosofia do Direito entre
1858 e 1861, e, depois, em 1866, sucedendo-o definitivamente, pois o titular se
aposentara.[37]
Informa-se, por último, que, substantivamente, Cunha Seixas bebeu o pensamento de
Krause de forma indireta, ou seja, nas obras de Heinrich Ahrens (1808-1874) e de
Guillaume Tiberghien (1819-1901).[38]

NOTAS

* Este trabalho-pensamento, com diversos acréscimos e algumas modificações,


constituiu o terceiro capítulo de minha tese de doutorado – A Doutrina Pantiteísta de
José Maria da Cunha Seixas.

1. Cs. Esboço Histórico da Philosophia em Portugal no Século XIX, In: Princípios Geraes
de Philosphia, por José Maria da CUNHA SEIXAS, p. V. No artigo: A Reação Espiritualista
em Portugal: Krausismo e Ecletismo, In: Ciências Humanas (17), p. 32, António BRAZ
TEIXEIRA escreveu: Após a morte de Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1846, a especulação
livre e responsável conhece um longo eclipse durante uma década e meia em que, à parte
o exemplo isolado de Vicente Ferrer Neto Paiva, na Faculdade de Direito de Coimbra,
praticamente manifestação alguma se registra no pensamento português.

2. Op. cit., p. VII.

3. Ibid.

4. Cs. Esboço Histórico..., p. IX e CABRAL DE MONCADA, Silvestre Pinheiro Ferreira, In:


Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 -1846): Bibliografia e Estudos Críticos, p. 28.

5. Op. cit., pp. 28 e 29.

6. In: Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 -1846):..., p. 54.

7. Op. cit., pp. 57 e 58.

8. Apud Antônio PAIM, op. cit., p. 58.

9. Op. cit., p. 59.


10. Cs. Antero de Quental: Símbolo da Cultura Portuguesa, p. 28.

11. Manuel António FERREIRA-DEUSDADO, op. cit., p. XVI. António BRAZ TEIXEIRA, op.
cit., p. 34, informa: Se, no que respeita ao conceito de razão, aos limites do conhecimento
e à idéia de Deus e suas relações com o mundo, o pensamento de Ferrer, no seu exigente
racionalismo de sinal iluminista, no seu idealismo gnosiológico e no seu Teísmo cristão se
distingue com nitidez do intuicionismo racional de Krause, da sua crença na coincidência
entre as categorias lógicas e ontológicas e da sua metafísica panenteísta, já quanto à
concepção orgânica, hierárquica e teleológica do Universo e à doutrina antropológica
vem coincidir em muito com as teses do especulativo alemão, decerto por se tratar de
domínios em que este se encontra mais próximo da linha escolástico-leibniziana-wolfiana
que orientou o primitivo magistério do nosso jurista-filosófico e à qual sempre continuará
ligado.

12. Op. cit., p. XXI.

13. Herbert MARCUSE, Ideologia da Sociedade Industrial, p.165.

14. Batista MONDIN, Curso de Filosofia, v. 3, p. 112. Uma síntese do pensamento de


Saint-Simon encontra-se em Oeuvres Choisies de C.-H. de Saint-Simon Précédées d'un
Essai sur sa Doctrine.

15. Will DURANT, História da Filosofia, Vida e Idéias dos Grandes Filósofos, pp. 341 e 342.

16. Augusto COMTE, Catecismo Pozitivista, ou Sumaria Expozição da Religião da


Humanidade, p. 23.

17. Id. Curso de Filosofia Positiva, p. 10.

18. Op. cit., p. 11.

19. Jose Ferrater MORA, Diccionário de Filosofia, p. 315.

20. Op. cit., p. 342. Acredita-se que tais desilusões, pinçadas em sua biografia, podem ser
procedentes de alguns fatos mercantes em sua vida, como a perda da fé no Catolicismo
quando jovem, a decepção com Saint-Simon, a infelicidade no casamento, que o
submergiu em uma profunda depressão mental, levando-o a tentar o suicídio no Sena, o
falecimento precoce de Clotilde de Vaux, que com sua mãe Rozalia e sua filha adotiva
Sofia constituíam-se nos seus três anjos inspiradores, a impossibilidade de obter uma
nomeação oficial para ensinar Matemática na Escola Politécnica de Paris e, por último, o
fato de ter de viver os últimos trinta e quatro anos sob a proteção pecuniária de seus
discípulos e seguidores.

21. pp. 8 e 9.

22. Luis Washington VITA, Pequena História de Filosofia, p. 115.

23. Apud José Maria da CUNHA SEIXAS, Ensaios de Crítica Philosophica..., p . 168.
24. Cs. o meu trabalho Introdução ao Rracionalismo Harmônico de Krause. In: Presença
Filosófica, Rio de janeiro, 13 (1 a 4): 87-98, jan./dez. 1988, p. 7.

25. Op. cit., pp. 8 e 9.

26. Apud Luis Washington VITA, op. cit., p. 115.

27. Juán LÓPEZ MORILLAS, El Krausismo Español, pp. 17 e 18.

28. Op. cit., p. 40.

29. Op. cit., p. 41.

30. Op. cit., p. 42.

31. Op. cit., pp. 42 e 43.

32. Op. cit., pp. 43 e 44.

33. Apud Juán LÓPEZ MORILLAS, op. cit., p. 47.

34. Encontra-se essa idéia em Kant onde o direito das gentes deveria fundar-se numa
Federação de Estados livres (Fædur Pacificum)

35. Jose FERRATER MORA, op. cit., p. 1066.

36. Apud Luis Washington VITA, op. cit., p. 119.

37. Uma síntese do pensamento de Joaquim Maria Rodrigues de Brito encontra-se na


obra O Pensamento Filosófo-Jurídico Português, de António BRAZ TEIXEIRA, pp. 85 a 90.
Cs. também a obra de RODRIGUES DE BRITO publicada sob o título: Resposta às Breves
Reflexões de Excellentíssimo Senhor Dr. Vicente Ferrer Sobre a Philosophia do Direito,
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1869, 70 p.

38. Sugere-se, para melhores esclarecimentos, a consulta ao trabalho: A CONSAGRAÇÃO


DO KRAUSISMO. Autor:José Adelino Maltez. Fonte:
http://www.iscsp.utl.pt/~cepp/procura_da_
ciencia_politica/35_a_consagracao_do_krausismo.htm

SITES CONSULTADOS

http://www.sgmf.pt/Cultures/pt/SGMF/Internet/Historia/Cronologia/

http://www.instituto-camoes.pt/cvc/filosofia/rep1.html

http://bnd.bn.pt/ed/eca_queiros/iconografia/imagens/pi2662p/
pi2662p_teofilo_braga.html

http://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/fr/st-simon.htm
http://passavarahp.vila.bol.com.br/trabalhos/FundadoresePioneiros.doc

http://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/fr/comte.htm

http://www.portalmundos.com/mundofilosofia/espanola/krausismo.htm

http://www.filosofiayderecho.com/biblioteca-e/krause.htm
FILOSOFIA PORTUGUESA (II): A DOUTRINA MÍSTICA DE ANTÓNIO DE LISBOA

TRAÇOS BIOGRÁFICOS

As crônicas e a tradição informam que Santo António, uma das mais importantes figuras
das culturas lusófonas, nasceu em Lisboa no final do século XII. A data exata de seu
nascimento é desconhecida e foi fixada em 15 de Agosto, tributo pela devoção nutrida
por ele, durante toda a vida, à Virgem Maria – Mãe de Jesus. O ano também é duvidoso.
Uns falam de 1191, outros de 1195.
Nessa época, seus pais, Martim de Bulhões e Teresa Taveira, moravam junto à
Catedral de Santa Maria no caminho que levava à porta de ferro, mais tarde Arco de
Nossa Senhora da Consolação, e, logo que o menino veio ao mundo, batizaram-no com o
nome de Fernando Martini Bulhões. Ainda criança, seus pais o puseram sob os cuidados
dos cônegos da Catedral, para que pudesse desde a mais tenra idade ser doutrinado e
educado na fé católica.
Apesar da preocupação de seus pais com sua formação religiosa, o menino era
adulado e mimado vivendo na regalia e no luxo. Mas isso não o satisfazia. A bajulação, a
mentira, a pompa e a politicagem que cercavam sua família, pelo fato de seu pai ser
Governador de Lisboa, o enfastiaram da vida aparatosa que levava. Iimpulsionado por
uma espiritualidade incipiente, mas férrea e definitiva, decidiu afastar-se daquele
ambiente em que residia, resolvendo-se pela vida religiosa.
Transcorria o ano de 1210 e, nessa época, havia em Lisboa um Mosteiro de
Agostinianos denominado São Vicente de Fora, construído por D. Afonso I. Ali foi bater
Fernando e, recebido pelo Cônego Gonçalo Mendes, começou vida nova, vestindo o
hábito branco dos Cônegos de Santo Agostinho. Nesse Convento residiu e estudou por
vinte e seis meses.

São Vicente de Fora, Lisboa. Hoje.


São Vicente de Fora, Lisboa. Hoje.

De Lisboa transferiu-se para Coimbra, completando assim a renúncia. Recolheu-se


ao Mosteiro de Santa Cruz, também da Ordem Agostiniana, que gozava fama de virtudes
e abrigava um grupo de homens escolhidos, em santidade e ciência, que lhe povoavam os
claustros. Foi nesse Mosteiro que se ordenou padre e celebrou sua primeira missa. Já
transcorria o ano de 1219, e, agora, era ele o Cônego Fernando Martini. Como membro da
Ordem Agostiniana, Fernando recebeu o título de Dom, abreviação de Dominus que
indica posição social conquistada e respeito.

Mosteiro de Santa Cruz, Coimbra. Hoje.


Mosteiro de Santa Cruz, Coimbra. Hoje.

Foi no Mosteiro de Santa Cruz que Dom Fernando Martini entrou em contato com
os mais famosos escritores latinos da Antigüidade, com os Santos Padres, com a teologia
e com a filosofia, debruçando-se sobre os escritos dos mais famosos pensadores de
todos os tempos. Sobre essa fase especial da vida de Dom Fernando, Baggio informa:

Nesse universo maravilhoso, Fernando trabalhou e labutou por nove anos, no fim
dos quais era doutor consumado nas ciências divinas e humanas. Por isso, torna-
se, ao lado de um grande Santo, um grande representante da cultura de seu século.
[1]

Nesse mesmo período, na Itália, ebulia um movimento religioso renovador — os


Irmãos Menores — liderados por um jovem filho de um rico mercador, tal como Dom
Fernando: Francisco Bernardone, mais conhecido como Francisco de Assis. Foi nessa
época também que Dom Fernando estabeleceu os primeiros contatos com um grupo de
franciscanos que visitavam Coimbra. Foi com eles que, tendo a oportunidade de
conversar longamente, conheceu a história de seu Fundador. Conheceu-lhes o modo de
ser, a Regra, a devoção ao Evangelho e o desejo de sacrificarem suas vidas pelos
princípios ensinados pelo Cristo. Este encontro deixaria uma marca indelével em sua
existência.
O ano de 1219 continuava e, certo dia, o Convento dos Agostinianos recebeu cinco
frades de Frei Francisco. Eram eles: Frei Bernardo, Frei Oto, Frei Adjuto, Frei Acúrsio e Frei
Pedro. Dom Fernando e os frades conversaram profunda e longamente sobre os mais
variados temas. Poucos dias depois os religiosos visitantes partiram para missionar no
Marrocos, onde foram presos, torturados e mortos em 16 de janeiro de 1220. Tornaram-
se, nesse sentido, os primeiros mártires da história da Ordem Franciscana.
Os restos mortais desses frades foram trasladados para o Mosteiro de Santa Cruz, em
Coimbra, o mesmo local que os abrigara antes de sua partida para o flagício e para o
martírio. Entre os assistentes das cerimônias fúnebres dos protomártires franciscanos
encontrava-se, entre perplexo, inconsolado e enlutado, Dom Fernando Martini.
O tempo passa. Em Dom Fernando se intensificava o desejo, que acabaria por se
consumar em ação: trocar o hábito branco dos agostinianos pelo hábito marrom dos
franciscanos. E assim se consumou a aspiração vocacional de Dom Fernando. Só que
impôs um condição, logo aceita por seus novos irmãos: ... queria partir para a terra dos
moiros [Marrocos], na esperança de poder verter seu sangue como haviam feito aqueles
bravos frades, cujas relíquias eram veneradas agora na capela do Mosteiro.[2] Assim, em
uma bela manhã de 1220, operou-se, no Mosteiro de Santa Cruz, a troca dos hábitos, e
Dom Fernando deixou-se cingir por rude corda. Trocou os sapatos por sandálias e
adaptou os cabelos ao corte dos franciscanos. Completando a transformação, trocou o
nome de Dom Fernando pelo de Frei António. E como, na época, era costume acrescentar
ao nome da Ordem o nome do local de nascimento, seu nome completo ficou sendo: Frei
António de Lisboa.[3]
E, dessa forma, ofereceu Frei António toda a sua vitalidade à causa dos franciscanos.
Esteve na África com Frei Filipino, pois a Regra de Francisco mandava que os frades
fossem pelo mundo dois a dois. Esteve também na reunião convocada por Francisco de
Assis, conhecida na história da Ordem com o nome de Capítulo das Esteiras, que se
realizou em Assis de 29 de maio a 8 de junho de 1221. Dali partiu em companhia do
Provincial da Romanha para a solidão de Montepaolo, nos Contrafortes dos Apeninos,
Cordilheira Central da Itália. Ali, acrescentou à oração a contemplação, o jejum e o
silêncio. Posteriormente, o Frade Luso recebeu do Provincial Frei Graciano o ofício de
pregador, e com sua eloqüência sábia e erudita veio professar a singeleza devota e a
encantadora poesia nos eremitérios da Ordem dos Irmãos Menores.

São Francisco da Assis

Esteve em Bolonha e na França e acabou por se tornar um orador tão famoso que,
um dia, foi convidado pelo Papa Gregório IX para pregar em Roma para o próprio Santo
Padre e para os cardeais. O Papa gostou tanto da pregação que quis que Frei António
ficasse hospedado no palácio papal. Quis fazê-lo também cardeal. Mas Frei António não
aceitou nem se instalar em Roma, nem o barrete cardinalício. Continuou missionário,
peregrinando de lugar em lugar, ensinando e divulgando a Sagrada Escritura,
consagrando integralmente sua vida à pregação e à catequese, quer pelo exemplo, quer
pela palavra.
Papa Gregório IX

A ele são atribuídos diversos milagres, mas a própria Ordem reconhece a


dificuldade em serem comprovados histórica e cientificamente. A Tradição Arcaica, por
outro lado, recusa veementemente a manifestação e a existência de milagres. A Lei é a
Lei, e não pode ser adulterada. Quando se desconhecem as Leis envolvidas em
determinados eventos, tem-se, geralmente, a tendência descomprometida e equivocada
de qualificá-los de milagres. Milagre, enfim, é a contribuição mental ilusória que pagam a
si mesmos, aqueles que ignoraram as Leis que regulam as manifestações do Universo e
da Divindade. Mas o que certamente marcou a vida de Frei António foi seu grande
destemor e sua incansável defesa da Igreja. Era chamado de Martelo dos Hereges em
virtude de sua clareza no falar e coragem ao expor suas idéias. Por sua capacidade,
cultura, discernimento e força interior, Frei Francisco solicitou a Frei António que
ensinasse a Sagrada Teologia aos irmãos da Ordem. Foi, assim, nomeado o primeiro
professor de Teologia da Ordem dos Franciscanos. Seus sermões públicos chegavam a
atrair tanta gente, que as crônicas da Ordem falam de até trinta mil pessoas. Certa feita
pregava Frei António em Bouges, França, e o Arcebispo do lugar, D. Simão de Sully, muito
amigo do Papa, estava presente na cerimônia. O Frade sabia que o Arcebispo não cumpria
integralmente suas obrigações, e sua vida não condizia com a posição que ocupava,
muito menos com os preceitos religiosos. Na prédica, o Frade Lisboeta censurou
duramente o Prelado. Esperou-se uma reação vigorosa do Arcebispo às acusações. Ao
invés disso, ajoelhou-se aos pés de Frei António e, consternado, pediu-lhe perdão. A
força do orador era tamanha que inimizades se acabavam, famílias desunidas se uniam,
alguns ricos ladrões devolviam os bens mal adquiridos e o vício desaparecia por onde
passava Frei António.[4]
Em 3 de outubro de 1228, morria Francisco, o extraordinário Fundador da Ordem.
Foram convocados a Assis os superiores regionais do mundo inteiro, entre eles Frei
António, que naquela oportunidade ocupava o cargo de Superior da Região de Limoges,
na França. Foi eleito Ministro Geral da Ordem o Superior da Espanha e Portugal, Frei João
Parente, que em Santa Cruz de Coimbra dera o hábito de frade a Frei António. Como
resultado dessa Assembléia, o Frei Lusitânico recebeu a investidura de Provincial da
Província Italiana da Emília.
Em Pádua, por volta de 1230, começou a atuar mais profundamente, tentando
divulgar o lema de Francisco: PAZ e BEM. Foi nesse ano também que começou a acusar
sinais de fraqueza física, proveniente de moléstias contínuas que iam se agravando.
Sentindo que o espaço histórico de sua vida ia-se esvaindo, pregava com todo o vigor que
seu corpo ainda possuía. Em seus sermões verberava contra toda a classe de injustiças,
contra toda sorte de vícios, contra o amor à riqueza, ao luxo e aos prazeres desenfreados,
e, principalmente, contra a usura que minava os princípios espirituais do Catolicismo. Os
historiadores consideram o ano de 1230 o ano-testamento do Frei, que não perdia
tempo: pregava de dia, estudava e orava de noite.
O conhecido episódio místico que aparece em todas as imagens de Frei António e
em toda a sua iconografia deu-se, segundo relatos históricos, em Campo Sampiero, perto
de Pádua, na casa do Conde Tiso. Passava o ano de 1231. Baggio narra:

[estava] orando o bom Frade, em seu quarto; encheu-se este de luz e um menino
veio pousar nos braços do Frei António, que sorria, enquanto este O contemplava e
acariciava.[5]

Frei António, depois de dedicar a maior parte de sua vida à divulgação da fé


católica, pregando nos últimos onze anos de vida sob os princípios da Ordem de
Francisco de Assis, veio a falecer em 13 de junho de 1231 no Eremitério de Arcela, com a
idade de 36 anos. Em 30 de maio de 1232, na festa de Pentecostes, o Papa Gregório IX,
em imponente e inesquecível cerimônia, proclamou Frei António, Santo António. E
porque vivera ultimamente em Pádua e lá se dizia que operava prodígios, apesar de
nascido em Lisboa, ficou conhecido no mundo como Santo António de Pádua. Em todo o
mundo, a sucessão de fatos extraordinários a ele atribuídos, coloca o Santo entre os mais
queridos e procurados, o que não deixa de, sob certo aspecto, deformá-lo, pois abandona
nas sombras o teólogo, o místico, o exegeta e intérprete da Bíblia, o moralista, o
psicólogo, e também, certamente, o Filósofo. Foi exatamente para arrancá-lo dessa
situação, até certo ponto vexatória e detrimental a ele e à própria Ordem dos
Franciscanos, que o Papa Pio XII, em 16 de Janeiro de 1946, pelo Breve Exulta Portugal,
proclamou Santo António Doutor da Igreja. Segundo Baggio, as palavras do Papa Pio XII
foram:
Quem percorre atentamente os Sermões do Paduano, logo descobre em Santo
António o exegeta peritíssimo, na interpretação das Sagradas Escrituras, o exímio
teólogo no perscrutar os dogmas, o doutor e mestre insigne no tratar os assuntos
da ascética e da mística... E porque Santo António usou, com tanta freqüência, os
textos e as sentenças do Evangelho, bem merece o nome de Doutor Evangélico.[6]

A DOUTRINA MÍSTICA EM GERAL

A primeira observação a ser anotada é a referente às três virtudes preparatórias,


purgativas e iluminadoras, que santificam o homem, enunciadas no sermão In Dominica
III in Quadragesima: a pobreza, a castidade e a abstinência. No que concerne à pobreza, a
verdadeira distorção não reside na posse, maior ou menor, de bens materiais. A raiz do
mal não é o dinheiro, mas o amor ao dinheiro. O mau uso dos bens materiais (cupidez e
avareza) é que provoca o aviltamento e macula a alma, colocando o homem em um
estado de entorpecimento espiritual, privando-o de um contato mais próximo com o
Deus de sua compreensão. Quanto à castidade, esta se faz necessária e se cumpre em
grande parte pelo isolamento e pela renúncia. A abstinência é a terceira ponta do
triângulo. Sua prática pretende evitar, por um lado, derrame ou desperdício de energia
que ocorre no ato sexual e, por outro, impedir a devassidão que alimenta energias
psíquicas de baixo teor vibratório, e que inexoravelmente conduzem à fraqueza física e
moral, à desagregação social, à doença, à morte prematura. Santo António,
propriamente, não desceu ao detalhe nem explicitou minuciosamente o porquê de se
observar as três virtudes acima. Esta é, portanto, uma interpretação pessoal do seu
pensamento. A perfeita compreensão da necessidade da prática equilibrada da
abstinência, que auxilia a conduzir gradualmente ao encontro do Cristo Interno, é de
difícil explicação por simples palavras, eis que se fundamenta em realização pessoal,
vivência pessoal, experiência pessoal e, em última análise, mérito pessoal. Santo António
soube porque, provavelmente, passou por esse processo inteiro. De qualquer maneira, há,
consabidamente, três formas ou tipos de relações sexuais: infra-sexo, sexo (normal) e
supersexo. O infra-sexo degrada; o sexo (normal) pode retardar; e o supersexo promove a
ascensão espiritual da consciência interior. Neste nível ocorre um certo tipo de fusão
espiritual... Não se recomenda a ninguém que vier a ler estas linhas, que, por mera
curiosidade, procure saber e experimentar irresponsavelmente o que vem a ser aquilo que
se conhece por supersexo. Ele só pode e só deve ser praticado por aqueles que
alcançaram um elevadíssimo nível de maturidade moral e de desenvolvimento espiritual.
Sua prática inconseqüente poderá levar a resultados desastrosos e irreversíveis.
Entretanto, estas últimas reflexões, s.m.j., não estão contempladas na obra antoniana. De
qualquer sorte, particularmente acredito que sejam desnecessárias determinadas
práticas adotadas por alguns místicos no que concerne ao supersexo. Tudo pode e deve
acontecer in corde.
A tríade acima descrita (pobreza, castidade e abstinência) tem uma finalidade:
preparar o homem para a contemplação e, nesse sentido, deve ser compreendida como
um período ascético, figurado pela luta da penitência. A contemplação, para Santo
António, tem várias conotações: via mística, oração mental e meditação, vida
contemplativa, visualização, compunção da alma, compunção da penitência, devoção,
conhecimento experimental, entre outras. Entretanto, para o Santo Lisboeta, a
possibilidade de se ver Deus ocorre pela exclusão da razão, sendo a alma conduzida
inteiramente pela graça. Este é o estado de contemplação infusa ou de alienatio mentis.
Pelo exposto, observa-se que o vocábulo contemplação foi usado pelo Santo nos mais
diversos sentidos, aproveitando-o com larga maleabilidade, como, aliás, outros mestres
da espiritualidade mística ... também o fizeram.[7] O sentido, todavia, é marcadamente
platônico.
Outro aspecto interessante dos sermões de Santo António é aquele concernente à
vida ativa e à vida contemplativa. A vida ativa caracteriza-se pela ação, pelo movimento,
pela obrigatoriedade de realizar. É aquela que se passa no mundo exterior em oposição à
vida contemplativa, que é interior. Apesar de terem funções experiencialmente opostas,
uma é a base da outra. Caeiro explica:

... ambas se entrelaçam de forma que, começando por constituir uma a parte inferior e a
outra a superior do mesmo todo, da vida ativa se sobe para a contemplativa, e desta se
desce depois para a ativa, trazendo-lhe forças ou energias preciosas para a sua eficiência
e aperfeiçoamento.[8]

Interdependência Entre a Vida Ativa e a Vida Contemplativa

Também distinguiu o Doutor Evangélico duas espécies de amor: o amor a Deus e o


amor ao próximo. A ação conjugada de ambos ilumina e induz o homem à prática das
boas ações. O Santo de Francisco exaltou também profundamente o poder da oração.
Todo místico de vertente teológica sabe que o ato de orar é um processo transcendental
de comunhão com Deus e obedece a uma lei espiritual, que impõe que se bata na porta
para que ela se abra. É, portanto — segundo esse entendimento — necessário pedir para
receber. Por outro lado, deve haver o mérito para que o peticionário seja atendido. Ao
lado da contemplação, cultivar as virtudes anteriormente referidas, segundo Santo
António, conduzirá à obtenção da graça suplicada. Verifica-se, imediatamente, que uma
das chaves do processo místico antoniano é a oração. O coração daquele que se deixa
inflamar pelo seu místico poder certamente alcançará e penetrará as nuvens e o Céu. É o
último estágio de perfeição. A alma despida da vaidade, em intenso amor, está perante
Deus. É o supremo gozo espiritual. A alma ascende ao mais alto grau da contemplação e
imerge ou mergulha nas coisas divinas. (Sobre o sentido esotérico da oração, que, sob
alguns aspectos cruciais diverge do conceito antoniano, sugere-se a consulta à Oração
das Sete Súplicas, trabalho que está incluído neste site).
Mas este alargamento espiritual para atingir, captar e tocar o Mais Alto — Deus —
pressupõe, outrossim, um esforço intelectual. Assim, além do amor e da humildade, é
necessário um intelecto ágil, forte, para impressionar Deus. O elemento discretio — que
significa discernimento, aptidão — consiste em se decidir pelo justo meio. Discretio
permite, dessa forma, ponderar, dosar e calcular o esforço que cada um tem de fazer no
processo ascensional, de modo a não exceder sua possibilidade pessoal, como também
não ficar aquém desta. Serve, também, como medida ou limite do que apreender das
coisas celestes. A cada um...
A doutrina antoniana, todavia, não exclui a intuição no processo de compreensão pelo
homem da graça alcançada pela iluminação interior. O último grau de contemplação é,
portanto, um fenômeno místico no qual são parceiros experienciais a intuição e o amor.
Em última análise, a essência da visão antoniana de Deus associa, no ápice da
contemplação, elementos da visão intuitiva, do gosto inefável [gustus mysticus] e do
amor.[9]
Santo António distinguiu no aperfeiçoamento três estágios: o dos principiantes, o
dos que alcançaram algum grau de proficiência e o dos que atingiram a perfeição. De um
modo geral o primeiro estágio — o dos neófitos na senda — coincide com a ascese
preconizada anteriormente; os outros dois identificam-se com a contemplação. Outro
ponto extremamente interessante da doutrina antoniana é o papel decisivo que
desempenham a humildade, o amor e a dor na ascensão espiritual. Para o Frade
Franciscano, antes de tudo, o ato contemplativo deve ser humilde — vir humilis. A
humildade para Santo António, assim como para São Bernardo, São Gregório e São
Bento, é o primeiro degrau da contemplação, ao mesmo tempo em que é o primeiro
degrau do conhecimento. Quanto ao amor, aquele que não ama não verá Deus, adverte
Santo António, porque sendo Deus amor e caridade (Deus caritas est), só atrai sua
semelhança. O homem para alcançá-Lo deverá amar o próximo, consolando-o,
auxiliando-o e o acompanhando na sua dor e nas suas necessidades. A dor se apresenta
sob duas formas: sofrimento pelas misérias do próximo e desespero pelos erros
cometidos. A dor, entretanto, não é um sofrimento inútil, vazio. O próprio derrame de
lágrimas catalisará o encontro do homem com Deus, realização última da solidariedade e
da compreensão. Enfim, o processo contemplativo antoniano constitui-se de uma
seqüência ordenada e progressiva de atos (estágios) espirituais com uma finalidade:
alcançar Deus. O objeto de tudo, portanto, na mística antoniana, é o encontro do
contemplativo com Deus. Conforme se teve a oportunidade de referir anteriormente,
para o iniciado, isto é uma impossibilidade, porque a reintegração só pode se dar
assintoticamente.
Da doutrina mística de Santo António, enfim, podem-se extrair nove pontos
principais: a) o homem para tentar alcançar Deus, para se elevar até Deus, deve se
recolher e se interiorizar; b) o ideal da doutrina antoniana é a união com Deus; c) é pela
contemplação que a alma se dilata até tocar, captar Deus; d) na contemplação o
contemplativo morre para o mundo; e) na contemplação a alma do homem é inundada
por uma satisfação espiritual que a consola e inebria; f) na contemplação há uma
sensação de paz, conforto, segurança e quietude celestiais; g) a contemplação reforça a
fé; h) a contemplação reanima e inspira o homem para prosseguir na vida ativa; e i) pela
contemplação o homem conhece o verdadeiro amor, a caridade absoluta, a compreensão
total, a tolerância irrestrita e a beleza inefável de seu Criador.

SÍNTESE FILOSÓFICA DA HUMILDADE

A primeira observação a ser feita ao se estudar a mística especulativa antoniana é


referente à humildade, virtude que absorveu e guiou o Santo, apoderando-se de sua alma
e de toda a sua vida espiritual. Para Santo António, a humildade é como que a mola
propulsora, o catalisador, a força impulsionadora, para se atingir a presença de Deus.
Entretanto, a opção da doutrina antoniana no que tange à humildade é especulativa. E a
busca mergulha na Escatologia, percorre os conceitos incipientes da Escolástica e
penetra os domínios da Metafísica e da Ética. O exame desta categoria no nível iniciático
é mais complexo. Para Santo António, a humildade é a raiz de toda a vida espiritual, e
essa idéia se lhe torna obsessiva. Acredita que todas as boas ações derivam da
humildade. E a causa maior, possivelmente, foi a admoestação de Jesus, o Cristo:
aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. O Sermão da Montanha é um
outro exemplo de chamamento à humildade, no qual o Santo provavelmente se inspirou.
Muitos outros exemplos são encontrados nas diversas literaturas religiosas e correntes
teológicas, mas, particularmente e de forma mais incisiva, o assunto é sobremodo
arejado na teologia católica.
O Santo acreditava que para alcançar Deus o homem deverá subir a Escada da
Humildade. Esse simbolismo ele o retirou do 4º Livro dos Reis, no qual é feita referência à
cura de Ezequias pelo Senhor, cujo sinal é estabelecido em relação ao retrocesso do
relógio solar de Acaz, em dez graus. Os dez graus do Relógio do Sol foram utilizados por
Santo António para simbolizar os dez degraus da humildade. São eles:

1º Vileza e fetidez da matéria que origina o homem;


2º geração (ou gestação) durante nove meses, nas trevas do útero materno e à
custa do sangue menstrual;
3º saída, a chorar, do útero materno, em estado de nudez e imundície;
4º peregrinação abominável e de miséria neste mundo, no qual há dor, gemidos,
angústia e pranto;
5º lembrança da própria iniqüidade, por tudo quanto o homem faz ou omite,
quando, apesar da sua liberdade, se vende ‘de graça’ ao Diabo, com manifesta
ingratidão para com Deus, devendo por isso arrepender-se dos pecados cometidos
para que Deus lhos perdoe e lhe restitua a graça perdida;
6º pensar na morte, ‘mais amarga do que toda a amargura’, na qual o homem
entrega a carne aos vermes, a alma aos Demónios (se não se penitenciar) e a
substância restante aos filhos e parentes, que a aguardam como se fossem raposas
astutas espreitando a pele do burro morto;
7º recordação de Cristo, apesar de encher o Céu e a Terra, ter andado nove meses
no ventre da Mãe, ter sido, ao nascer em um pobre curral de gado, envolto em
pobres paninhos e se haver sujeitado depois aos sofrimentos da Paixão;
8º benignidade e misericórdia de Jesus para com os pecadores, que atraía pela Sua
doçura, mansidão e compaixão;
9º tortura e sofrimentos da crucificação de Cristo; e
10º meditação sutil sobre a ressurreição dos mortos no Juízo Final e sobre o
destino de felicidade ou de castigo eterno que os espera.[10] (sic)

Por esses processos sucessivos de aperfeiçoamento, o homem percebe sua


vilanagem, reconhece sua insignificância perante a magnificência da criação e se torna
humilde, pois é pelo exercício diuturno da humildade, segundo a mística antoniana, que
ele se compreende melhor e se credencia a conhecer Deus.
Para o Santo, é a soberba o mais grave pecado (ante omnia Deus superbiam
detestatur), e todo aquele que é soberbo e avarento terá grande dificuldade em entrar no
Reino de Deus. Os bens materiais serão sempre fator impeditivo (quando possuídos com
mesquinhez, egoísmo, cupidez e avareza) para se realizar a plena espiritualidade e
alcançar Deus. Uma das sínteses importantes da doutrina antoniana é a que conduz à
liberdade, pois quando o coração é humilde, nasce a obediência. Pela obediência os cinco
sentidos servirão exclusivamente à razão. E, assim, o homem liberta-se dos desejos e das
paixões inferiores, e não fica limitado por qualquer tipo de desejo de posse, oriundo de
deformações morais pelo mau exercício da vontade. Pode-se, em conseqüência,
concordar com o seguinte silogismo verdadeiro: Da humildade nasce a obediência; mas
da obediência nasce a liberdade; logo, da humildade nasce a liberdade.[11] Com a
liberdade, vem o entendimento prístino.
Finalmente, Santo António dá ênfase ao papel da humildade exercida como a
honestidade e a retidão de proceder como conduta moral de vida. A própria castidade é
lembrada no papel confiado à humildade como Torre da Castidade, com função de
defendê-la dos inimigos (interiores e exteriores) que a rondam para subjugá-la.

A NOITE MÍSTICA

A Noite Mística (Noite Negra ou Noite Obscura) da alma é o vestibular da ascensão


mística. Em diversas predicações Santo António referiu-se à Noite Mística como processo
necessário à purificação e preparação da alma para atuar em um plano mais elevado de
consciência. Nesse sentido, o Santo referiu-se à Noite como a obscuridade dos místicos
— mysticorum obscuritas.[12] A Noite não tem, ordinariamente, a duração da noite
física. A Noite tem começo (Conticínio), meio (Meia-Noite) e fim (Aurora), e o tempo de
duração é individual. Durante sua manifestação, a Noite tem e traz conseqüências
terríveis, dentre as quais o Santo aponta: privação da luz da razão; o ser torna-se frágil e
o conhecimento adequado de nada adianta; o eu interior fica em trevas e o homem é
tentado a tudo abandonar (trevas da consciência); a claridade tentadora da prosperidade
mundana entenebrece a alma e se transmuda em caligem da morte; a noite é um amplo
campo de adversidade em que a alma anda às apalpadelas sem consciência de si mesma.
[13] A Noite é, pois, uma etapa da reintegração (regeneração) do homem à sua
imaculada, cósmica e divina origem. E, nesse aprendizado, terá que eliminar,
minimamente, a soberba do coração, a lascívia da carne, a avareza do mundo, a ira, a
vanglória, a inveja e a gula, que compõem as sete violações capitais enunciadas na
teologia católica.

O Conticínio (Conticinium)

É a primeira fase da Noite em que tudo está silente. É o tempo em que são satisfeitas
as seduções blandiciosas da carne — carnis suavia blandimenta. O Santo ensinou que,
para vencer as tentações próprias do Conticínio, é preciso meditar sobre as iniqüidades
praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente a reintegração) e contemplar o
Criador. Auxiliado pela razão e pela discrição, o principiante vai subindo, degrau por
degrau, a escada da crucifixão: a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o
bom caminho. Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado e cabisbaixo vai o
postulante trilhando a senda que levará à iluminação. Lentamente, os sentidos físicos e
os apetites do corpo vão sendo dominados, e os incipientes passam para o estádio de
aproveitantes (fase da Meia-Noite).[14] Porém, no que concerne ao sofrimento moral,
este se vai intensificando. É o reconhecimento tácito da queda, do afastamento da Luz,
do exílio de Deus, da consciência plena da ainda permanência nas trevas. É a angústia por
desejar alcançar a Luz Maior, por desejar ardentemente realizar o Cristo Interno e, em
graça total, contemplar o Criador. É o desespero por ter, tenuemente, vislumbrado a
possibilidade de se tornar uno com o Pai — o Deus de seu coração — e de não ter podido
ainda realizar o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero sufocante. Um
horror atemorizante. É a noite negra. É a crucificação individual. É o inferno interior. É a
compreensão do exílio da Vida. A Noite Negra traz à lembrança a fase negra da Crisopéia.

A Meia-Noite (Media Nox)


A segunda fase da Noite Obscura equivale para Santo António, ao período de luta
espiritual em que a alma, vendo-se no exílio deste mundo, dele procura libertar-se... para,
depois... poder chegar à contemplação de Deus e unir-se com Ele por amor.[15] O
aproveitante (aproveitado) já convencido do erro da vaidade, suplica cheio de fé, de amor
e de esperança, força para suportar o exílio. À medida que acorda, recorda-se da vida
antiga e, envergonhado, humilhado, sentindo-se desprezível, chora amargamente. É o
pleno reconhecimento do erro. Nu, perante si mesmo e perante o Criador, confessa-se ao
Deus de seu coração e clama por perdão. E perdoa aos que o perseguem e caluniam, aos
que o aviltam e ofendem, aos que escarnecem, pois sabe que esses não o compreendem,
mas que, inexoravelmente, um dia subirão também o primeiro degrau da Noite Negra. E
se compromete a, nessa hora, estar presente para ajudar no que for possível e permitido,
para amparar em cada queda, para consolar quando a dor e a vergonha forem mais
intensas. Esse é o verdadeiro sentido do perdão, da humildade, da fraternidade e do amor
universal em um sentido teológico. É a tomada de consciência pelo aproveitante de que
todos, em última instância são unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A Meia-
Noite faz recordar o branco da Grande Obra. É também uma possibilidade para explicar o
Mito da Caverna, de Platão. Voltar para ajudar e servir é um supremo ato de sacrifício e
de amor. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto, não há essa referência consignada na
obra antoniana.

A Aurora (Aurora)

A Aurora - bendita Aurora - é o último estágio da Noite Mística, e se assemelha


ao vermelho da Alquimia Operativa. Santo António assim a delineia:

É a infusão da graça divina.


A alma pôde... justificar-se ou tornar-se justa.
A alma se torna reta e ereta...
A Aurora é o fim da Noite e o princípio do Dia.
Ela é o fim da miséria e a entrada na beatitude...
É o último estádio da ascensão espiritual — o estado perfeito...
... a alma sente-se agora invadida por indizível alegria.
É a contemplação do Criador.[16]

Do exposto, pode-se simbolicamente deduzir e afirmar, que a Noite Obscura é um


processo de purgação (uma verdadeira Alquimia Iniciática Interior) que o homem tem
indubitavelmente que passar para alcançar o Deus de sua compreensão e realizar o Cristo
interno. Iniciaticamente é desta forma que acontece. O Sol, que pretende simbolizar o Sol
da Graça a ser alcançada, com sua claridade, brancura e calor, ilumina a alma em
contrição. É com a luz do Sol das primeiras horas da manhã — símbolo do Sol interior —
que são dissipadas as trevas da noite. É com o nascer do Sol místico que são esvaecidas a
superstição e a ignorância. E o ser purificado, limpo e perfeito, entra na posse do
conhecimento de seu Criador. Esse Sol, depois de nascido, jamais se põe. Essa foi uma
afirmação feita por Santo António e por todos aqueles que alcançaram a 'perfeição', e
passaram pelo processo místico purgativo da Noite Negra da Alma (consultar Anexo I). O
ato derradeiro de humildade ao conquistar a Aurora é, assevera-se mais uma vez, o
retorno à Caverna, para consolar e auxiliar os que ainda desconhecem a LLUZ. Repete-se:
por evidente, esta reflexão não está presente em Frei António. (Para maiores
esclarecimentos consultar o Anexo I).
O TOQUE MÍSTICO

A ascensão espiritual, no conceito concebido por Santo António, oriunda de atos


próprios de aperfeiçoamento voluntário e que conduzem à união com Deus, impõe a
participação ativa (e passiva quando conveniente) do homem, ao mesmo tempo em que
necessita da colaboração divina..., ou seja, o Toque (místico) constituído pela infusão da
graça. Nesse sentido, o homem necessita, e num dado momento de sua vida, quer se
salvar; mas é incapaz de o conseguir por si próprio e, assim, precisa do concurso divino,
afirma o Santo. O Toque, segundo a doutrina antoniana, ... parece ser a expressão
metafórica, como que materializada, da insuflação da graça divina para o efeito do
aperfeiçoamento da alma, e mais concretamente, ou de um modo mais restrito, para o de
sua união final com Deus e gozo que esta proporciona no cume da ascensão espiritual.
[17]

O Toque traz ao beneficiário vantagens muito amplas: aqui, a visão possível e o gozo
inefável de Deus; mais tarde, a glória celeste. Mas, para alcançar o estado vibratório
especial para que tal êxtase místico seja viável, o Santo Português ensinou que esta
graça... deve ser pedida em oração acompanhada de lágrimas, fonte de devoção e de
amor. A ORAÇÃO...

Outro aspecto extremamente interessante e relevante da doutrina mística antoniana


é aquele que concerne ao recolhimento espiritual. Pelo recolhimento espiritual ou
recolhimento interior (um dos pilares da ascensão mística), todas as reações objetivas e
racionais tendem progressivamente a desaparecer, e a elevação da alma (mentis
elevatione) passa a ser comandada pela graça de Deus. Este o Toque Místico divino da
alma no cume da contemplação. [18] O testemunho da própria experiência de Santo
António ensina que a alma que alcança este especial estado vibratório e é tocada por
Deus, desprezará toda e qualquer honraria, toda e qualquer glória e pompa deste mundo.
E as delícias e o prazer místico que tal estado proporciona, provocam uma ânsia espiritual
progressiva, aumentando o desejo de as desfrutar. Enfim, o Santo Luso entendeu que
qualquer esforço pessoal do homem como aspirante à ascensão de sua alma será frustro,
se não tiver o concurso de Deus. Entretanto, para merecer tal bênção, é imperativo, e
mesmo fundamental, que o homem se dispa da vaidade e do rancor, lave seu corpo com
as lágrimas do arrependimento confesso na dor, na vergonha e na aflição, perdoe antes
para merecer só então o rogado perdão, e ame a todos incondicionalmente para alcançar
a possibilidade de penetrar no raio da esfera mais próxima da contemplação e
compreensão de Deus. Aí, então, em estado de recolhimento interior, despido das vestes
materiais, puro e belo, perante o Deus de seu coração, o homem será tocado, consagrado
e elevado. É a sua mais alta graduação, onde o grau lhe será conferido pelo Toque Místico
do amor de Deus. É o TaV cabalístico da vida e o objeto final da humana existência,
segundo a mística antoniana.

Assim, pode-se entender que Santo António foi um exemplo vivo de que a vida
contemplativa não é incompatível com a vida ativa. A análise de sua obra permite que
seja considerado o pensador mais importante da pré-escolástica Franciscana. O sentido
fundamental da antropologia antoniana, segundo Maria Cândida Pacheco, é claramente
otimista, abarcando toda Criação, e sua obra, cujo fundamento é a Teoria Criacionista
(entretanto não no sentido leonardino, e muito menos esotérico), abrange, no seu
desdobramento, Deus, o Mundo, a Alma e o Homem. Mas, realmente, não importa se
Santo António foi ou não foi um esoterista ou mesmo um iniciado. Foi, verdadeiramente,
um Homem Santo, cuja santidade esteve a serviço da Ordem de Francisco e da Igreja
Católica. Se a confraria católica de hoje se debruçasse um pouco sobre seus sermões e
sobre sua Filosofia... muito teria a aprender. Talvez até se (des)preocupasse com as lendas
e paspalhices disseminadas irresponsavelmente sobre ele.

A manifestação do homem na Terra (contrariamente ao pensamento de Sampaio


Bruno que será examinado na fase IV desta seqüência de estudos sobre a Filosofia
Portuguesa) não é originária de uma diminuição da onipotência divina, muito menos
oriunda é de um pecado original; antes tem cariz estritamente ascensional, na qual,
exclusivamente por esforço individual, elevar-se-á, assintoticamente (este conceito não
foi utilizado por Santo António), de sua condição inferior à 'plenitude divina'. A obra
filosófico-teológica de Santo António, sua atividade de pregador apostólico e as funções
docentes que exerceu demonstram, cabalmente, que seu pensamento integra-se no
pensamento místico ocidental. Enfim, observa-se de suas meditações e de seus sermões,
que só quando a liberdade interior é alcançada, a verdadeira fraternidade se manifesta.
Há, neste particular, aproximação com o pensamento de Leonardo Coimbra.

A obtenção, pela graça, segundo a Doutrina Mística Antoniana, da possibilidade da


visão de Deus, ou até da sensação interior de tê-Lo alcançado, obriga o místico que
consegue essa especial e elevada harmonização cósmica, ao retornar à vida ativa, a
participar diligentemente, com todas as suas forças, na evolução e progresso da
humanidade. Na Doutrina elaborada pelo Santo Lisboeta não há lugar para o egoísmo,
como, obviamente, não há em nenhuma doutrina espiritual autêntica. O egoísmo é uma
das mais sinistras deformações do ente ainda subjugado pelo corpo astral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Doutrina espiritual de Santo António de Lisboa baseia-se na humildade, no amor, na


compaixão, na tolerância, na fraternidade, na caridade e na abstinência, entre outras
tantas virtudes que o místico tem que permanentemente cultivar, para estar e se manter
em perfeito equilíbrio e em plena harmonia com os padrões universais, que representam
e correspondem a essas idéias-força. Ensinou como alcançar o estado vibratório próprio
para ver Deus, ou seja, entrar na posse do Deus de cada coração, do Deus do coração do
aspirante. Ensinou, também, realisticamente, que o ápice da senda mística só será
atingido pela renúncia, pela compreensão absoluta dos erros cometidos, pela purgação
de cada falha, pela eliminação consciente e desejada de toda imperfeição. A ignorância
tem que ser removida para que a LLUZ possa brilhar. E, nessa luta do neófito contra seus
desejos inferiores, para merecer o privilégio de um dia poder estar na presença do Deus
do seu entendimento, ele desce aos infernos em vida e penetra na Noite Negra da Alma.
É aí que se trava a mais dramática luta do homem. Por um lado, o desejo sincero de
vencer o lobo interior; por outro, a fera interna acossando todos os seus sentidos
tentando derrotá-lo e arrastá-lo de novo à luxúria, à soberba, à hipocrisia da vida
dissoluta de outrora. Mas ele sabe que, ou vence a tentação que lhe atormenta, e
vencendo merece o privilégio de ser misticamente tocado e se torna um ser realizado, um
ser perfeito, ou vacila, e... se afasta do Deus interior de sua compreensão. É uma luta
dura, tormentosa e aparentemente desigual e sem perspectiva de vitória. O homem se vê,
por inteiro desnudo, com todas as suas fraquezas, com todas as suas mazelas. Chora de
dor, de vergonha, prefere até desistir a ter que admitir tanta desgraça sob sua
responsabilidade. Desiste mesmo temporariamente. Cai. Levanta. Recomeça. Se desistir,
terá de recomeçar. E recomeçará quantas vezes forem necessárias... Compulsoriamente
tem que recomeçar.

Todavia, se vencer (e um dia vencerá) haverá de se tornar uno com o Pai. Ah! Bendita
Unidade! Pois é aceito com todas as fraquezas do passado. O esforço sincero
empreendido para alcançar a Luz Perfeita e a Harmonia Imaculada é recompensado pela
compreensão, pela bondade e pelo amor do Deus do seu coração, que sempre o aguardou
no santuário interno do seu ser (Sanctum Sanctorum) e que sempre o desejou de volta.
Nesse instante o exílio termina. O filho retorna à casa paterna. A reintegração é operada.
A Alquimia Interior está concluída. Deus e seu filho tornam-se UM, amalgamados, para
toda a eternidade, pois o filho se realiza no PAI, e o PAI, no filho. Nesse momento, e só
nesse momento, o homem será capaz de compreender o verdadeiro sentido da
fraternidade. Nada, absolutamente, nada mais o separará de seus irmãos de jornada.
Todavia, e isto o Santo não comentou, outros níveis de elevação espiritual deverão ser
alcançados. Se o Teclado Cósmico é ilimitado... ilimitadas são as possibilidades em
direção ao Centro de Idéia. Mas, onde está o centro?

Mas enquanto a Aurora não chega, cada peregrino, reconhecendo os limites de seu
próximo, e principalmente os próprios, deve envidar todos os seus esforços e empenhar
todo seu conhecimento para que haja, perto de si e onde for possível, paz, harmonia,
beleza, tolerância, solidariedade, compreensão, justiça, temperança, fortaleza e amor —
condições essenciais e preliminares para a realização de uma verdadeira e autêntica
FRATERNIDADE ENTRE OS HOMENS.

NOTAS

1. Santo António, Frei Hugo Baggio, p. 12.


2. Ibid., pp. 18 a 20.
3. Ibid., p. 21.
4. Almanaque Popular Santo António, Frei Almir Ribeiro Guimarães, p. 104.
5. Op. cit., p. 67. Não cabe nesta oportunidade fazer qualquer análise desde episódio.
Apenas considera-se, no mínimo, extravagante que o Logos e o AMeN da Era de Peixes se
manifestasse à Frei António da forma como historicamente é relatado. Todavia, o
merecimento de Frei António está fora de questão.
6. Op. cit., pp. 75 e 76.
7. Santo António de Lisboa, Francisco da Gama Caeiro, p. 9.
8. Ibid., p. 10.
9. Ibid., p. 36.
10. Ibid., p. 110. Evidentemente que, sendo Santo António um religioso católico,
interpretou teologicamente esta passagem bíblica. Entretanto, não se pode deixar de
discordar do Pensador quando afirmou, por exemplo, que o nascimento de Jesus ocorreu
em um curral de gado. Hoje, já se sabe perfeitamente que o HUMILDE PEIXE encarnou
em uma gruta-hospital essênia. Não pode ser esquecido de que José e Maria eram
ESSÊNIOS.
11. Ibid., p. 120.
12. Ibid., p. 129.
13. Ibid., passim.
14. Op. cit., p. 166.
15. Op. cit., pp. 167 a 169.
16. Op. cit., pp. 174 a 177.
17. Op. cit., p. 194.
18. Op. cit., pp. 222 a 224.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTÓNIO de LISBOA, Santo. Obras completas. Vol. I. Sermões dominicais. Da


septuagésima ao Pentecostes. Introdução, tradução e notas de Henrique Pinto Rema.
Porto/ Lisboa: Restauração, 1970, 304 p.

______. Obras completas. Vol. II. Sermões dominicais. Depois de pentecostes. Tradução de
Henrique Pinto Rema. Porto/ Lisboa: Restauração, 1970, 472 p.

______. Obras completas. Vol. III. Sermões dominicais. Domingos do Advento ao 4º depois
da epifania. Marianos e festivos. Tradução de Henrique Pinto Rema. Porto/ Lisboa:
Restauração, 1970, 460 p.

BAGGIO, Hugo D. Frei. Santo António. São Paulo: Edições Loyola, 1982, 99 p.

CAEIRO, F. da Gama. Santo António de Lisboa (A espiritualidade antoniana). Lisboa:


Ramos, Afonso & Moita, Ltda, 1969, v. II, t 1, 272 p.

GUIMARÃES, Almir Ribeiro Frei. Almanaque popular Santo António. Petrópolis: Vozes,
1984, 127 p.

PIZZINGA, Rodofo Domenico et alii. A noite mística: senda da verdadeira fraternidade. In:
Convergência Lusíada. Revista do Real Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro 12:
171-6, 1995 e In: Anais do II Simpósio Internacional de Ética, 1a. parte, Rio de Janeiro,
50-5, 1994.
ANEXO I
MISTÉRIOS DA NOITE NEGRA
marcorelho.tripod.com.br/misteriosmarcorelianos/id43.html
Acesso em 25/12/2003

Ensaio Rosacruz sobre o momento trágico que todos nós, humanos mortais — místicos
ou não — atravessamos, invariavelmente, durante nossa vida neste Planeta Terra.

A Noite Negra é um dos períodos que todo místico é compelido a vivenciar na Senda
da Luz. Não houve um só um Avatar, Messias ou Profeta que, de uma forma ou de outra,
não tenha evocado esse período de grande confusão, que todo buscador, num dado
momento de sua busca, deve enfrentar e, se possível, superar.

A Noite Negra é o símbolo de um ciclo, no plano individual, que corresponde a um


questionamento do ideal seguido até então. Conforme o caso, esse questionamento
pode ter origem em uma série de provações que atravessamos, ou em uma crise interior
sem qualquer ligação com o mundo objetivo. Uma doença, um acidente, a perda de um
ente querido, problemas familiares, problemas profissionais, são alguns elementos que
podem abalar a vida mística de um indivíduo e mergulhá-lo nas trevas da dúvida.

Esteja sua origem nas tribulações terrenas ou em um grande sofrimento interior, a


Noite Negra costuma se traduzir de uma mesma forma: a chama de nossa fé mística
vacila e se apaga pelo período que dura nossa persistência em não reacendê-la.

Passamos a não acreditar mais em nada, nem em Deus, nem em Satanás, nem no
homem, nem no amigo, nem em nós próprios. Deixamo-nos aprisionar pela fatalidade e
tornamo-nos o espectador entediado de nós mesmos.

Entre nós, muitos já conheceram esses períodos particularmente sombrios da


existência, que são o quinhão que a todos nós cabe, mas que, no caso do místico, assume
uma dimensão interior muito mais ampla, pois ele sabe que corresponde a escolhas cujo
resultado concerne diretamente à sua evolução mística.

Tomemos um dos exemplos mais dolorosos para ilustrar o que dizemos: a morte.
Muitos místicos já vivenciaram um período de total entrega após a perda de um ente
querido. Nessas penosas circunstâncias, eles se sentiram assaltados por um sentimento
de injustiça, que inevitavelmente os levou a duvidar de suas próprias crenças. Por que seu
marido ou sua mulher, seu pai ou sua mãe, seu filho ou sua filha, seu irmão ou sua irmã,
morreram tão jovens? Por que com tanto sofrimento? Por que naquele momento? Deus
verdadeiramente existe? Será que o misticismo só serve para dar falsas esperanças,
tornar a existência menos amarga, dissimular um Não-Ser, escusar um acaso cego e
arbitrário? É claro que quando se deixa a mente se enredar nesse tipo de engrenagens de
perguntas-respostas surgem tantos 'por ques' quanto motivos para duvidar.

Com efeito, quanto mais duvidamos da dimensão espiritual da existência, mais damos
importância ao mundo material. Em outras palavras, quanto mais questionamos o Deus
de nosso coração, mais o Diabo de nossa compreensão se rejubila. Pode acontecer que
coloquemos em dúvida nosso ideal místico, porque a morte, é bem verdade, priva-nos de
uma presença à qual nosso Eu objetivo foi apegado por muitos anos.
Mas, se a existência da alma sempre foi para nós uma evidência, se consagramos toda
uma vida terrena à evolução de nossa alma, como não a reconhecer no momento
derradeiro em que ela deixa o corpo de alguém que amamos tanto quanto amamos a nós
mesmos?

A experiência mostra que não somos invulneráveis e que a adversidade pode


obscurecer nossa vida espiritual. Por que? Porque o fato de sermos adeptos do
misticismo não faz de nós necessariamente místicos com uma fé inabalável. Por outro
lado, nossa análise das provações que sofremos pode ser imperfeita. Penso em particular
naqueles que, sistematicamente, tentam compreender as razões cármicas dos
sofrimentos físicos ou morais de que são vítimas em certos momentos da vida.

Alguns se sentem invadidos pela dúvida quando sofrem provações que atribuem a um
carma negativo, ao seu ver injustificado, em vista do bem que tinham a certeza de ter
espalhado ao seu redor. Assim, nunca se deve estabelecer uma relação sistemática entre
a provação e o carma negativo. Em outras palavras, parece-me fundamental compreender
que nem todas as provações, sejam quais forem, são necessariamente cármicas. Muitas
delas têm caráter puramente evolutivo, e sua única finalidade é testar nossa força
interior, pressionando, ao mesmo tempo, nossa aptidão física e mental para sobrepujá-
las. As provações existem porque são uma condição sine qua non de evolução, e porque é
impossível, como seres encarnados que somos, evoluirmos sem termos problemas a
resolver e dificuldades a superar. Assim, parece-me muito importante não sermos vítimas
de um misticismo mal compreendido, que tenda a associar toda tribulação a um carma
negativo. Se assim fosse, deveríamos admitir que Jesus foi crucificado — para usar
apenas um exemplo — para compensar uma sucessão de más ações! Esse tipo de
conclusão, devemos admitir, é absurdo e se opõe ao mais simples bom-senso.

Portanto, quando surgirem provações em sua vida, em vez de procurar determinar se


são ou não são cármicas, enfrente-as de um modo responsável, o que quer dizer, de uma
maneira mística, com a certeza de que é capaz de superá-las e de que elas contribuirão
para uma aceleração de sua evolução.

Se, em lugar de se fecharem os recônditos sombrios de suas idéias negras, elas se


abrissem à luz de tudo o que é belo, claro e límpido, compreenderiam a que ponto tinham
sido vitimadas pela própria falta de confiança em seu ideal. Esta observação me leva
agora a abordar os motivos místicos que estão na origem da Noite Negra. Seja ela
consecutiva à morte de um ente querido, a uma multiplicidade de provações ou a um
abandono muito fácil às nossas próprias angústias, só pode ensombrecer a existência de
um místico, em virtude do apego que ele devota ao seu ideal ser muito frágil, superficial
ou ilusório. Do ponto de vista esotérico, a Noite Negra é o reflexo de uma vitória obtida
por nosso dragão interior. Por isso a vida de todo místico é marcada tanto por Noites
Negras quanto por derrotas sofridas pelo anjo que nele existe.

Enquanto o ser não tiver atingido o ponto de evolução que propicia a experiência
íntima do Divino, permanece vulnerável em sua busca, e sua vulnerabilidade é
proporcional à sua fé mística. Isso pressupõe que bem poucos de nós podem afirmar que
nunca conheceram períodos sombrios em sua vida espiritual ou que não os conhecerão
mais. O próprio Mestre Jesus, em um momento supremo de sua missão, clamou: Pai, por
que me abandonastes? Por uma fração de segundo, esse Iniciado do mais alto grau
duvidou. [Sobre este tema, convido para a leitura de um texto de minha autoria, que se
encontra neste site, cujo título é: Aspectos Esotéricos da Vida de Jesus.].

Mas, a questão essencial é saber do que ele duvidou e do que nós duvidamos quando a
Noite Negra mergulha nossa alma nas trevas do ateísmo. Quando examinamos
atentamente esse acontecimento da vida mística de Jesus, tudo leva a pensar que ele não
duvidou de Deus, mas de si mesmo e de sua capacidade de permanecer fiel em seu
sofrimento. Em nosso nível, é exatamente o contrário que acontece quando duvidamos,
porque na maior parte do tempo duvidamos de tudo, menos de nós próprios. Nossa única
preocupação deve ser a de pedir o auxílio do Cósmico para termos força interior para
vencer nossa própria fraqueza, pois é nessa vitória que está a solução de todos os
problemas, por mais dramáticos que eles sejam no plano humano. Isto pressupõe que a
prece e a meditação constituem nossos dois maiores aliados para fazer brilhar
novamente a LUZ quando as circunstâncias tiverem mergulhado nosso Sanctum interior
na mais total obscuridade. O que devemos fazer pelo bem de nosso corpo, também
devemos fazer pelo bem de nossa alma. Em vez de esperarmos até que as circunstâncias
alterem nossa vida espiritual e destruam nossa fé mística, devemos cultivar nosso jardim
interior, semeando ali as sementes de um amor incondicional à CAUSA SUPREMA.

Desejo dizer, com tudo isto, que é mais fácil preservarmos nosso corpo dos perigos
que o ameaçam, do que protegermos nossa alma dos ataques do abandono espiritual. No
primeiro caso, a ameaça é perceptível; no segundo, ela não o é. Isso explica por que um
Rosacruz que começa a atrasar o estudo semanal de suas monografias acaba não as
abrindo mais. Finalmente, chega o momento em que ele não é mais Rosacruz a não ser no
nome, quando então reúne as melhores condições para passar pela experiência de uma
Noite Negra decisiva para seu futuro místico.

O dever de todos os místicos, e não falo só dos Rosacruzes, é induzir


progressivamente uma mudança nas mentalidades, de modo a estabelecer o equilíbrio
entre as preocupações materiais e as exigências espirituais. Toda Noite Negra, seja ela
individual ou coletiva, é uma INICIAÇÃO. Ao final de cada INICIAÇÃO há uma pequena
chama e, quando todas as pequenas luzes se fundirem em uma só, a consciência
individual ou coletiva, vivencia a Iluminação Cósmica. O acesso à Luz Maior então é
definitivo e as trevas são banidas para sempre. Assim seja.

Excerto do livro Assim Seja, por Christian Bernard, Imperator da Antiga e Mística Ordem
Rosacruz – AMORC. Publicado na Revista O Rosacruz, nº 239, 1º Trimestre/2002.
FILOSOFIA PORTUGUESA (III): O PENSAMENTO PANTITEÍSTA DE JOSÉ MARIA DA
CUNHA SEIXAS

TRAÇOS BIOGRÁFICOS [1]

José Maria da Cunha Seixas nasceu na Vila de Trevões, ao norte da Beira-Alta,


Portugal, pertencente, hoje, ao Conselho de São João da Pesqueira, em 26 de março de
1836 e faleceu em Lisboa em 27 de maio de 1895, com a idade de 59 anos. Seu pai, que
lhe emprestou o mesmo nome, e sua mãe D. Maria Antónia d’Azevedo e Cunha (natural da
Cidade do Rio de Janeiro – Brasil) muito se esmeraram na educação dos filhos e, por
haver na localidade em que moravam apenas um professor primário de limitados
conhecimentos, mandavam vir às suas expensas professores de diversos locais de
Portugal, tendo sido o primeiro deles o padre Caetano Esteves de Mattos.[2]

Por serem muito religiosos, principalmente D. Maria Antónia, que era considerada
proficiente em história sacra, a maioria dos mestres dos nove filhos do casal foi de padres
ou de noviças de convento. Corria o segundo quartel do século XIX e assim eram os
costumes da época e os hábitos locais. É de se presumir que a família dos Cunha Seixas
propendesse para o conservantismo, já que - como pensa Eduardo Soveral - não há
notícia de discórdias na estirpe do Filósofo. (No Anexo II apresenta-se o retrato de
Seixas).

Em 1850, com a idade de 14 anos, Cunha Seixas tomou ordens menores e,


posteriormente, seus primeiros estudos superiores foram em teologia. Manuel António
Ferreira-Deusdado – 1858-1918 – (Grande pedagogista e Filósofo do século XIX, antigo
professor do Curso Superior de Letras e professor liceal, grande talento e nobilíssimo
caráter), fiel amigo do Filósofo Trevoense e um de seus mais fidedignos biógrafos,
atribuiu as tendências teístas do autor às circunstâncias anteriormente relatadas.
Eduardo Abranches de Soveral, (1927-2003), meu amigo pessoal, fez, há poucos anos,
uma análise profunda e competente da personalidade deste solitário Trevoense.[3]

A severidade com que eram educados os filhos dos Cunha Seixas agravou-se com a
morte do pai. A mãe, viúva aos 35 anos, tomou a si a educação dos filhos e, temendo
perder o controle sobre eles, acabou por isolá-los das outras crianças. Isso trouxe óbvias
conseqüências para a personalidade em formação do jovem Cunha Seixas. Ferreira-
Deusdado, que o conheceu intimamente, assim o retratou: O José Maria da Cunha Seixas
não foi nem poderia ser um político, porque lhe faltavam qualidades de adaptação; não
poderia ser um dramaturgo, um romancista, porque na sua abstracção não tinha o geito
da observação social. Era excentrico, ingenuo de mais; muitas cousas não as via, a sua
boa-fé quasi infantil prejudicou-o muitas vezes e gravemente.[4] (sic).

Cunha Seixas, que foi o terceiro dos irmãos, apesar de desde pequeno
insinuar que seria eclesiástico, acabou formando-se em Direito, em 27 de junho de
1864, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (não sem antes se ter
matriculado, em 1858, em teologia e filosofia), tendo sido aprovado Nemine
Discrepante e condecorado com as Honras de Accessit, distinção já obtida nos 2º,
3º e 4º anos do aludido Curso. Tanto durante a época de estudante quanto depois
de formado, colaborou na parte literária e política de diversos jornais, como o
Viriato, de Viseu, o Comércio de Portugal, o Jornal de Lisboa, o Acadêmico de
Coimbra, o Comércio de Lisboa, o Jornal do Comércio, a Gazeta de Portugal, o
Diário Ilustrado, o Diário do Comércio, o Progresso, o Economista, o Distrito de
Beja e tantos outros periódicos, notadamente de Lisboa, onde foi grande a
variedade dos assuntos abordados pelo Filósofo.

Foi professor de filosofia no Instituto de Ensino Livre de Lisboa, advogado em


Lisboa e era sócio de diversas agremiações, destacando-se: Associação dos
Jornalistas e Escritores Portugueses, Instituto de Coimbra, Sociedade de Geografia
de Lisboa, Academia Montreal de Toulouse, Retiro Literário Português e Sociedade
Econômica Matritense.

Em 1878 decidiu concorrer ao provimento da cadeira História Universal e


Pátria do Curso Superior de Letras, com uma Tese elaborada em bases
espiritualistas. Na verdade este ensaio constituiu-se no gérmen do Sistema
Pantiteísta. A narrativa do concurso está resumida no livro O Curso Superior de
Letras (1858-1911) de Manuel Busquets de Aguilar.[5] Inscreveram-se no
concurso, Alberto Augusto de Almeida Pimentel, Manuel de Arriaga Brun da
Silveira, Zophimo José Consiglieri Pedroso Gomes da Silva e José Maria da Cunha
Seixas. Alberto Pimentel desistiu e os outros três concorrentes foram aprovados,
mas o escolhido foi Consiglieri Pedroso, positivista e ex-aluno da Escola.[6]
Fatalmente, Joaquim Teófilo Fernandes Braga, presidente da banca examinadora e
positivista confesso, não haveria de permitir que um espiritualista entrasse para o
magistério superior do Curso Superior de Letras, para contraditar as idéias de
Comte. A decisão, provavelmente, já havia sido tomada, antes mesmo de o
concurso ser efetuado, e o espírito de corpo prevaleceu favorecendo Consiglieri
Pedroso. Era a primeira vez que um diplomado pelo Curso Superior de Letras
alcançava o magistério superior na própria Casa. Antes, Teófilo Braga tinha sido o
primeiro doutor que, por concurso, entretanto sem ter conseguido unanimidade na
votação em mérito relativo, havia entrado para o corpo docente do referido Curso.
[7]

Como observou meu saudoso mestre e amigo Eduardo Soveral, apresentar


uma Tese a uma Escola e a uma Banca militantemente positivistas, cujo conteúdo
frontalmente se opunha ao seu ideário, foi, ao mesmo tempo e paralelamente, um
ato de coragem e de falta de sagacidade. Frontalidade e desassombro têm seu
preço. E Cunha Seixas pagou caro essa ousadia filosófica. Na verdade pagou até a
morte. A epidemia positivista que assolava Portugal não se restringiu apenas ao
Filósofo Pantiteísta. Promoveu outras degolas senso lato e senso estrito. Qualquer
representação metafísica estava destinada ao calabouço. E o que eram os
Princípios Gerais de Filosofia da História? Nada menos do que uma filosofia
espiritualista da história distribuída e bem estruturada por oito capítulos
consecutivos muito bem escritos. O fato saliente é que Cunha Seixas percorreu o
calvário de todo filósofo duro e puro (Vianna e Tarrozo inserem-se nessa linha):
preconceito, esquecimento, exclusão, malquerença e incompreensão!

Todavia, ao se comparar hoje a bibliografia e a contribuição filosófica de Cunha


Seixas com a do candidato vencedor, constata-se, inegavelmente, o quanto
perderam os estudantes portugueses e o próprio Curso Superior de Letras, com o
afastamento do filósofo pantiteísta do convívio universitário. Se porventura Cunha
Seixas tivesse sido aprovado, quiçá tivesse tido mais estímulo para escrever, e sua
obra filosófica provavelmente seria mais rica, mais numerosa, mais divulgada e
mais aceita. Certamente seria mais conhecida e mais estudada, porque haveria de
ser discutida e aperfeiçoada no âmbito das academias. Derrotado no concurso,
Cunha Seixas fez publicar a Galeria de Ciências Contemporâneas, onde criticou a
estrutura do Curso Superior de Letras e apresentou uma nova proposta de ensino.
É um livro excepcional que ainda hoje - como enfatizou Álvaro Ribeiro - merece ser
lido com muito proveito.[8]

Outro livro que merece e impõe particular referência é o intitulado Princípios


Gerais de Filosofia, obra de 1072 páginas e publicado postumamente por Ferreira-
Deusdado e por seu irmão Eduardo Augusto da Cunha Seixas. Ferreira-Deusdado
fez publicar apenas a primeira parte do livro, enquanto o irmão de Cunha Seixas
publicou-o integralmente. A publicação integral precedeu à parcial e, ao que
parece, não sofreu mutilações nem modificações. Deusdado, na Notícia Biográfica
do Autor, relata o que se segue:

O presente livro que hoje vem a publico não é senão a primeira parte d’uma obra
maior em que o auctor esgotou toda a sua vida.
Tendo publicado volumes diversos, só a esta obra elle chamava o ‘seu livro’.
Chegou a fazer imprimir essa obra inteira, faltando só o rosto e o indice; d’essa
impressão fez brochar alguns pouquissimos exemplares que deu para serem lidos a
especialistas intimos.
Estando as folhas assim impressas na typographia, deu se ahi um desastre
casual, que as inutilisou absolutamente a todas. Um d’esses exemplares brochados
serviu de original e começou a reimprimir a obra em typo e formatos diversos.
Achavam-se as folhas impressas d’esta primeira parte, não ainda feita a
impressão do titulo, do prologo, nem do indice, quando o auctor foi colhido pela
morte. Essas folhas incompletas, algumas truncadas, foram no seu espolio de
inventario judicial vendidas como papel a peso para embrulhos e adquiridas já em
segunda mão pelo Sr. Eduardo Augusto da Cunha Seixas, que zelosamente as fez
juntar e completar para editar este livro.[9] (sic).

Exemplares deste livro, de capa azul e sem rosto, foram oferecidos pelo Sr.
Eduardo Augusto da Cunha Seixas à Biblioteca Nacional de Lisboa, à Biblioteca da atual
Academia das Ciências de Lisboa, à Biblioteca da Universidade de Coimbra, à Biblioteca
Pública Municipal do Porto e provavelmente às bibliotecas de Viseu e do Funchal.
Princípios Gerais de Filosofia apresentam, em mil e poucas páginas, uma síntese do
pensamento de Cunha Seixas, que subordinou seus mais expressivos trabalhos a uma
intenção sistemática por ele denominada Pantiteísmo, que pretendeu plasmar a idéia ( já
amplamente divulgada em obras anteriores como, por exemplo, O Pantiteísmo na Arte,
Cânticos e Poesias) de que Deus em tudo está, mas é distincto, formulação que se opôs
tanto ao Panenteísmo de Krause (tudo está em Deus)[10], quanto ao Panteísmo.

Farei aqui um breve interrupção para citar um excerto do pensamento de Ferreira-


Deusdado. Assim, talvez se possa entender a afinidade que tinha pelo Filósofo Pantiteista
que hoje me propus a recordar:

O devasso como o trabalhador, o criminoso como o filantropo, obedecem a certas


regras constantes que não são no fundo senão a fórmula teórica das suas práticas.
Este fato, singular na aparência, vem, segundo Herbart, de que a própria ação
precede necessariamente a análise, a crítica da ação. A própria consciência moral
não existe feita e pronta na alma da criança; mas desenvolve-se à medida que esta
é chamada a obrar. Se pois quisermos exercer sobre as crianças uma influência
moral, é preciso dirigir as suas ações antes de lhes ensinar máximas: é necessário,
segundo Herbart, deixar-lhes o cuidado de formularem por si regras de proceder
conforme aos hábitos virtuosos que lhes tivermos inculcado desde cedo (...) Mas
para isso é preciso nós próprios querermos e obrarmos como verdadeiros
legisladores, quer dizer, com uma perfeita uniformidade e uma perpétua
constância. Assim a influência da educação juntar-se-á à da hereditariedade. Esta
pode bastar para produzir o gênio; nunca porém bastará para produzir a verdadeira
moralidade. (Apud BOTO, Carlota. Crianças à prova da escola: impasses da
hereditariedade e a nova pedagogia em Portugal da fronteira entre os séculos XIX
e XX. Rev. bras. Hist. [online]. 2001, vol.21, no.40 [citado 31 Agosto 2004], p.237-
262. Disponível na World Wide Web:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01882001000100012&lng=pt&nrm=iso. ISSN 0102-0188.

Com o ascendimento de Cunha Seixas vedado ao magistério universitário, seu


Sistema acabou por não ter o indispensável apoio da Academia e, por isso, nem sequer
alcançou o século XX. Nesse sentido, Pinharanda Gomes acuradamente escreveu: Sistema
construído sem o apoio colegial, está condenado a uma história inactiva, porque não terá
a possibilidade de sujeitar-se a um exercício de controvérsia, com um rigoroso
apuramento das teses e da estrutura do sistema, no tempo e no movimento.[11] (sic)

Entretanto, estudioso permanente e sem se deixar abater, sempre procurou mostrar


aos portugueses o caminho da espiritualidade, do bem, da justiça e do que julgava ser a
verdade. Realmente Cunha Seixas nunca almejou ser mais do que um filósofo coerente e
amante de Deus. Terá havido em Portugal alguém que tenha amado Deus como (ou até
mais do que) o Pensador Beirão? E por haver formulado que a Filosofia, de algum modo,
deve estar relacionada com a Teologia, seu nome - como disse Álvaro Ribeiro - merece
evidenciar-se e ficar gravado na história da filosofia portuguesa. Afirmou Ribeiro, ainda:
No ‘pantiteísmo’ de Cunha Seixas, no ‘messianismo’ de Sampaio Bruno e no ‘criacionismo’
de Leonardo Coimbra encontram-se os elementos que permitem habilitar a filosofia
portuguesa a exercer a missão que porventura lhe esteja destinada.[12]

Finalizando esta sintética biografia do Autor Trevoense, acrescentam-se algumas


características que, acredita-se, auxiliarão a compreender melhor seu perfil moral:
considerou a abolição da pena de morte em Portugal uma alta conquista[13]; como
teórico antiiberista defendeu de maneira altiva a independência de Portugal[14];
defendeu os direitos do homem por estarem estabelecidos na inviolabilidade de
consciência[15]; festejou, em diversas oportunidades, a liberdade de imprensa[16]; sobre
a liberdade concluiu: ...é ordem, é harmonia, é ventura, belleza, justiça e moralidade[17];
louvou a expulsão dos jesuítas e a anteposição às demasias da Igreja e da Cúria Romana
determinadas pelo Marquês de Pombal[18]; aprovou todas as medidas tomadas pelo
Marquês de Pombal no que tangeu à limitação dos poderes e prerrogativas dos tribunais
inquisitoriais[19]; considerou a reforma do ensino na Universidade de Coimbra
como ...um dos factos mais agigantados... da celebre administração pombalina[20];
aplaudiu o instituto do Beneplácito Régio, ou seja, ...o direito de [os estados] revisarem a
legislação e as ordens pontificias e ecclesiásticas para só se dar execução e caracter de
obrigatorio áquelle que, com quanto dentro da esphera espiritual, não estivesse em
desaccordo com as prorogativas nacionaes, com os costumes da nação e com os direitos
dos povos[21]; condenou com Paschoal José de Mello Freire o direito romano ...por
contrario á razão e aos usos da nação..., como também o direito canônico ... por
improprio, illegitimo e incompetente... [22] ambos vigentes no século XVIII; e pugnou
pela paz perpétua requestando que acabe em santo amor toda a contenda.[23] (sic).

Não se referindo a Cunha Seixas, mas certamente fazendo uma apreciação da


situação intelectual que reinava em seu País, Ferreira-Deusdado diria certa feita: Um povo
perde tristemente o seu valor quando esquece as suas tradições históricas, poéticas e
religiosas e, pior do que perder o seu valor é perder a sua identidade. Cunha Seixas,
acredito piamente, não perdeu jamais seu valor, e não esqueceu as tradições histórica,
poética e religiosa de seu País. Por ter formulado um Sistema próprio, original, aí sim,
queiramos ou não, marcou o Pensamento Português de forma indelével. O seu
Pantiteísmo ainda será examinado com olhos menos preconceituosos. Nem que demore
um milênio. Podemos discordar de suas idéias. Mas, sem lermos seus livros, poderemos
discordar de quê? Eu li. Todos. Menos um que não encontrei em lugar nenhum: Elementos
de Direito Público Constitucional Português para uso das Escolas Normais e dos Liceus.

SISTEMA PANTITEÍSTA

José Maria da Cunha Seixas, contemporâneo de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-


1846), Pedro Amorim Vianna (1822-1901), Antero de Quental (1842-1891), Oliveira
Martins (1845-1894) e Domingos Tarrozo (1860-1933), ainda que educado adentro da
Religião Católica, como se viu, insurgiu-se contra sua rígida ortodoxia, e estabeleceu um
sistema filosófico (sintonizado em particular com o espiritualismo francês e com o
Krausismo) ao qual denominou PANTITEÍSMO, que significa, etimologicamente, Deus em
tudo. Segundo a Filosofia Pantiteísta, Deus em tudo está, mas não se confunde ou se
identifica com o criado. A idéia seixina de Deus pode ser resumida da forma seguinte:
Deus é a fonte de toda a verdade, de todo o bem, de toda a beleza, de toda a ordem e
harmonia. Entretanto, para Cunha Seixas, a Trindade Cristã é um excêntrico dogma. No
todo, Deus é um e sua manifestação trinitária revela-se como Ser (fonte de vida), Verbo
(amor) e Lei (conciliação).

Assim, eliminar a idéia de Deus equivale a eliminar a verdade, equivalendo, outrossim,


a destruir a causa do mundo e o princípio ativo do Universo. Deus é o começo e o fim de
tudo. Nas lucubrações de Cunha Seixas pode-se sentir uma idéia permanente: antes de
Deus, Deus; depois de Deus, Deus. Deus sempre, incriado. Transcendência. Dessa forma -
e o próprio Cunha Seixas assim o confessa no Prólogo dos Princípios Gerais de Filosofia -
seu intuito primacial foi reformular o espiritualismo decadente que vigia no século XIX,
tentativa magistral de conjugação do método experimental com uma especulação
teórico-ontológica, bem como propor uma nova síntese filosófica para as ciências (entre
outras, matemática, física, química e mecânica). Assim, estimulado por um
incomensurável amor a Deus, duas metas se impôs: ascensionar (pelo bem) a si e à
humanidade, e extirpar o materialismo e outras formas de espiritualismo que se
contrapunham ao Pantiteísmo. Esta tarefa, evidentemente, haveria de falhar. Falhou.

Para dar consistência ao seu sistema, o Trevoense estabeleceu três leis (universais)
psicológicas do conhecimento. A vida do pensamento, explicou, tem seu ponto de
partida na intuição, que a reflexão, pelo processo de abstração, termina por aperfeiçoar.
A intuição, entretanto, constitui-se em mera afirmação espontânea, e a reflexão, por
outro lado, não consiste na ciência. Na elaboração psicológica há um terceiro termo - a
síntese. O primeiro termo, segundo Cunha Seixas, é objetivo e indica a totalidade
existente; é simples e espontâneo. Corresponde ao processo de intuição de um ser
qualquer. O segundo termo é múltiplo, subjetivo, lento, e na maioria das vezes,
imperfeito. Compreende o número de relações desse ser. O terceiro termo é a síntese ou
reunião de todos os elementos. Nesse estágio, o mesmo ser aparece ordenado e pode ser
perfeito, se no segundo estágio a intuição for bem elaborada pelo entendimento. É a
ordem ou harmonia na pluralidade. Cunha Seixas resumiu seu pensamento da seguinte
forma: O primeiro [termo] é a totalidade ... e que podemos designar pela palavra - ser; o
segundo é a maneira de ser, abrangendo as relações dessa natureza, podendo estas ser
designadas pela palavra - manifestação; o terceiro é a ordem na multiplicidade, e esta
ordem é portanto - harmonia.[24]

Considerando estas três leis universais, seu formulador propôs que, ao se estudar um
objeto, a trajetória seja seqüencial. O quadro abaixo, resumidamente, demonstra o
pensamento seixino[25]:

1ª LEI 2ª LEI 3ª LEI


SER MANIFESTAÇÃO HARMONIA
Nada existe que não seja O ser manifesta-se o mesmo Uma unidade universal
possível. e evolutivamente, isto é, sob domina todo o criado.
os princípios da
permanência e da evolução.
O que é inteiramente O mundo realiza a harmonia
indeterminado é o mais condicional.
genérico.
Existe uma lei de O mundo aspira à harmonia
indeterminação incondicional.
/determinação.
O possível deve passar ao Tudo tende para o Asoluto
ato.
A substância deve passar às Acima de todas leis está o
maneiras de ser e não se Absoluto
concebe sem elas, isto é,
sem relações.

Quadro 1: Lei Pantiteísta

Sinteticamente, Cunha Seixas propôs:

1ª Lei: os elementos primordiais, vale dizer, a unidade do ser, indicando a virtualidade


das coisas;

2ª Lei: as suas maneiras de ser, isto é, as suas relações e manifestação, apontando sua
atividade e suas antinomias; e

3ª Lei: a classe a que pertence na ordem universal, ou seja, a síntese. Acima destas
leis está o Absoluto.
O ponto de partida da ontognosiologia seixina é a idéia de ser - o Sinal de Verdade - e
seu Sistema, como acuradamente percebeu António Braz Teixeira na obra O Pensamento
Filosófico-Jurídico Português, traduz-se num pluralismo monadológico, num dinamismo
triádico, que tem como momentos essenciais, o ‘ser’, a ‘manifestação’ e a ‘harmonia’, e
numa teleologia do bem, que se projeta no plano antropológico e se garante e
fundamenta num pensamento de Absoluto.[26]

Em última análise o pensamento de Cunha Seixas pode ser sumariado da forma


abaixo[27]:

LEIS ELEMENTOS
O Ser Possibilidade
Unidade
Identidade
Substância
Relações ou Manifestações Causa
Relação
Tempo
Espaço
Grandeza
Harmonia Finalidade
Ordem

Quadro 2: Síntese do Pensamento Seixino

TEODICÉIA PANTITEÍSTA

Teodicéia é a parte da Filosofia que estuda a existência e a natureza de Deus,


procurando, inclusive, apresentar provas da Sua existência. Segundo Cunha Seixas, as
meditações sobre o Absoluto (como idéia a priori ou como manifestação) ainda
costumam ser classificadas em físicas, morais ou metafísicas. Um estudo mais acurado
redu-las a reflexões de ordem exclusivamente metafísica. Entretanto, o Especulativo
Trevoense entendeu que as ditas provas da existência de Deus são apenas exercícios de
meditação filosófica, já que a existência de Deus - como princípio - é de evidência
indemonstrável. A evidência impõe-se; não se demonstra. Assim: Deus é o ser uno, sem
dúvida, o ser puro, acima de todo o múltiplo, distinto de tudo o mais, independente e
absoluto... é o ser perfeitíssimo, infinito, fonte de todo o bem, pai de todos os seres,
criador e ordenador dos mundos, providente e sábio. Deus é, pois, o ser
determinadíssimo como ser infinitamente perfeito.[28]

Admitindo, contudo, que a teologia católica estabeleceu diversos elementos


filosófico-teológicos para a explicação do dogma trinitário (qualificando de perfeitas as
teorias de Santo Agostinho e de Santo Tomás), contrapôs que a filosofia não pode atingir
três pessoas em Deus, porque a alçada da filosofia é simplesmente a razão. Mas,
utilizando as leis ontológicas anteriormente referidas, Cunha Seixas, entre outros,
reconhece os seguintes atributos de Deus[29], apresentados no Quadro 3, abaixo:
LEIS SER MANIFESTAÇÃO HARMONIA
A
T
R Necessidade Liberdade Conservação
I Absoluto Infinito Ordem
B
U Ser Perfeito Verbo Amor
T
Verdade Leis Espírito
O
S

Quadro 3: Atributos de Deus

No quadro acima cada atributo de cada ordem combina-se com mais dois. Por
exemplo: necessidade, liberdade (e criação) e conservação (do Universo). E Cunha Seixas
justificou: Como Deus é o princípio de toda a ciência, é de toda a razão que, sendo fonte
das leis universais, saídas da sua própria essência, as reflita triplamente. As leis
ontológicas são pois como vindas de Deus o seu próprio reflexo.[30]

Paralelamente, Cunha Seixas ensinou que a teodicéia inclui uma parte prática, da qual
surgem as instituições religiosas. Para ilustrar esta idéia, apresenta-se um parágrafo da
lavra do autor com um esquema geral explicativo:

A nossa teoria das idéias é uma verdadeira filosofia da religião: se as idéias nascem
dos sentidos, não há possibilidade de religião; se nascem da razão humana, e nada
há em nós senão humano, teremos a mesma conclusão. Se as idéias estão em
Deus, e se nós nada vemos senão pelo divino, suprime-se a nossa atividade e só
fica o infinito, surgindo logicamente o panteísmo. Se as idéias ‘são’ em Deus e
‘estão’ em nós, o homem tem realidade e avista outra realidade suprema. Este
último sistema, que é o que seguimos, é pois essencialmente religioso e
harmônico.
A filosofia da religião não se funda somente na teodicéia, mas também nos
fatos históricos e tem íntimas relações com a filosofia das religiões.[31]

Resumo esquemático de uma Filosofia da Religião de base Pantiteísta proposta por


José Maria da Cunha Seixas, na qual se observa a presença do ternário:

PRIMEIRA LEI: SER

SUJEITO: O Homem
OBJETO: Deus

SEGUNDA LEI: MANIFESTAÇÃO

Permanência das bases da religião no espírito do homem, do sentimento religioso


e das necessidades espirituais para o elevarem a Deus em uma vida superior moral.
Concepções da humanidade acerca de Deus contemplado já como Deus-todo, já como
espírito e amor. Evolução segundo as séries do viver humanitário.
TERCEIRA LEI: HARMONIA

União de todos os elementos pela verdade.

Depois de se estudar a obra (quase) completa de José Maria da Cunha Seixas, pode-se
sem receio de cometer qualquer equívoco, mas, ao contrário, subscrever as reflexões de
Aquiles Côrtes Guimarães, que percebeu o sentido de originalidade no pensamento do
Trevoense. O próprio Pantiteísmo foi um superlativo esforço do Filósofo no sentido de
tentar salvar, ou até mesmo resgatar, o espiritualismo católico, já que, desde jovem,
demonstrou uma preocupação especulativa permanente no que concerne ao tema do
Absoluto, ainda que negando a existência da Santíssima Trindade e outras categorias da
teologia católica.[32] Absolutamente consciente e convicto de suas reflexões, o
Trevoense não se afastou, ao longo da vida, um único milímetro de sua metafísica
especulativa, permanecendo fiel ao Sistema Pantiteísta por ele engendrado até o dia de
sua morte. Já Antero de Quental, aos trinta e três anos, resignadamente, ultimou sua
conversão ao Catolicismo e, palavras suas, tornou-se completamente católico. Leonardo
repetiu o gesto. A ninguém é permitido censurá-los ou criticá-los.

Assim, no Pantiteísmo, o Absoluto paira sempre acima das idéias racionais,


vitalizando-as e animando-as com uma Luz que nelas irradia. Nada há acima de Deus,
contendo exclusivamente em Si a própria razão de ser. Nesse sentido, contrapõe-se ao
condicional e ao relativo, não sofre nem exceções nem limitações no seu conjunto, que é
sempre unitário e o mesmo. Para Cunha Seixas, o Ser Perfeito é incondicional, porque
toda a condição envolve o contingente... não [sendo] sujeito a perder a existência.[33]
Por isso, Infinito e Absoluto são condições equivalentes sem nenhuma contradição.
Então, para Cunha Seixas, pode-se estabelecer a seguinte dupla igualdade:

ABSOLUTO = INFINITO = DEUS

Essas elucubrações levaram a que o Trevoense deixasse escrito em Princípios


Gerais de Filosofia que o Ser Infinito é sempre afirmado no pensamento, pois não se pode
pensar senão sob

... as unidades do ser, da substância, da causa, da relação, da grandeza, do espaço


em coisas corporais, do fim das coisas e da ordem. Ora, nós pensando assim, no
múltiplo e no contingente, sob essas unidades, estamos, portanto, a afirmar a
razão de todas as Unidades, isto é, o ser pleno, a substância infinita, a causa
suprema, o incondicional, a grandeza ilimitada e sem medida possível, a sabedoria
universal e a harmonia absoluta. Assim todo o homem que pensa, é em Deus que
pensa.[34]

Portanto, ainda que as idéias racionais exibam-se como fundamentos de verdade,


e sejam independentes, soberanas e se mostrem a priori, há que se procurar sua fonte em
um Ser Supremo e Ordenador Comum. As idéias racionais (ou categorias) são unidades
geradoras de todas as coisas criadas e se apresentam como elementos das coisas e dos
modelos de todos os seres; é necessário, contudo, reconhecer-se o Gerador Comum.
Ainda que tornem possível todo o conhecimento e dêem fundamento à toda ciência, cada
uma delas recebe Luz de grau superior - a Ordem Suprema - porque no Sistema
Pantiteísta, apesar de estarem impressas na razão do homem, há permanentemente
correspondência com o Infinito. No Sistema de Seixas, todas as categorias fundem-se em
uma idéia geral, em uma causa única, em um princípio comum, que é o Ser Pleno,
Perfeito, Onipotente, Necessário, Imutável, Uno, Eterno, Onipresente, Infinito e Incriado.
No Sistema Seixino a Idéia de Deus é a fonte de todas as realidades, não sendo, portanto,
mera criação do espírito. Por tudo isso, o Absoluto é o que é. Nega momentos, limites,
restrições, mudanças, exterioridades e interioridades. Em Deus tudo é uno, sendo trino o
modo como é dado ao homem conhecê-Lo. Nesse sentido, para José Maria da Cunha
Seixas, a única forma legítima de se pensar em Deus é como um SER UNO que se
MANIFESTA como fonte de toda a HARMONIA. A Quadro 4 resume definitivamente o
pensamento do ilustre Trevoense[35]:

IDÉIAS ONTOLÓGICAS
ORDEM RACIONAL MÉDIA ORDEM RACIONAL SUPREMA
SER O Ser por Excelência
O Ser Infinito
SUBSTÂNCIA A Substância Infinita

CAUSA A Causa Última


O Poder Absoluto
RELAÇÃO O Absoluto ou Incondicional
A Perfeição Suprema

TEMPO A Eternidade
ESPAÇO A Imensidade

GRANDEZA A Grandeza de Deus


A Ubiqüidade de Deus
FINALIDADE A Sabedoria Infinita
A Lei Eterna

ORDEM A Harmonia Suprema


Verdade, Bem, e Belo
Todas as Perfeições

Quadro 4: Correspondência Entre as Idéias Ontológicas


(Ordem Racional Média e Ordem Racional Suprema)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclusivamente, aplaude-se o pensamento de José Marinho ao reconhecer o


esforço meritório de José Maria da Cunha Seixas - inclusivamente se consagrando como
o primeiro filósofo português - em intentar conciliar imanência e transcendência, não
conferindo ao homem predicados que ultrapassassem sua condição de ser criado por
Deus, não atribuindo ao Absoluto o que Ele em Sua Exclusiva, Perpétua e Suma Perfeição
não necessita.

É consenso geral, hoje, no Brasil e em Portugal, que Cunha Seixas, representou um


instante especial da especulação filosófica espiritualista portuguesa do século XIX, como
também concordam todos que o Sistema Pantiteísa resultou de um esforço incansável,
no sentido de libertar o homem de todos os grilhões que o vinham torturando em
decorrência da laicização do movimento católico.

NOTAS

1. Conforme minha Tese de Doutorado A Doutrina Pantiteísta Segundo José Maria da


Cunha Seixas, defendida e aprovada em 12 de julho de 1988, na Univesidade Gama Filho,
RJ.
2. Cf. Noticia Biographica do Auctor por Manuel António Ferreira-Deusdado, In: Principios
Geraes de Philosophia, por José Maria da Cunha Seixas, p. XXXI.
3. Op. cit., p. XXXIII.
4. Op. cit., p. XXXIII. Na nota q, p. 73, da obra A Filosofia Tomista em Portugal, Ferreira-
Deusdado referiu-se a Cunha Seixas como ... pensador profundo e original... e também
como... homem brilhantemente dotado...
5. pp. 182 a 194.
6. Manuel Busquets de Aguilar na sua dissertação para doutoramento, na seção de
ciências históricas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, O Curso Superior
de Letras (1858-1911), p. 192, escreveu: Na votação em mérito literário foram todos os
candidatos aprovados por unanimidade; na votação de preferência, foi aprovado por
unanimidade Consiglieri Pedroso. Na obra Pensamento Português, p. 32, Pinharanda
Gomes curiosamente informa: Quanto ao propósito de entrar no quadro de professores
do Curso Superior de Letras, é sabido como [Cunha Seixas] foi preterido, a favor do
positivista Consiglieri Pedroso, discípulo e protegido de Teófilo Braga. Análogo fenômeno
se repetiu com Manuel António Ferreira-Deusdado que, tendo concorrido ao lugar de
professor do Colégio Militar, se viu preterido a favor de Teixeira Bastos, igualmente
discípulo e amigo de Teófilo Braga. Não obstante, Deusdado obtivera superior
classificação. O Positivismo não admitia opositores.
7. As dissertações foram defendidas em 16 de janeiro de 1879 e em 17 de janeiro do
mesmo ano, portanto vinte e quatro horas após ter sido divulgado o resultado, Cunha
Seixas redigiu um enérgico protesto contra a decisão da Banca Examinadora, da qual era
Presidente Teófilo Braga, que foi acusado de parcialidade, por tratar com facciosismo o
candidato, por este ...defender os principios mais elevados do espiritualismo em
contrario aos systemas positivistas e materialistas adoptados pelo dito Professor
[referia-se a Teófilo Braga] em suas obras e prelecções. Cf. Manuel Busquets de Aguilar,
op. cit., pp. 192-94. Perderam Portugal e o Mundo com esta falcatrua.
8. Cf. Cunha Seixas e a Filosofia Portuguesa, p. 237.
9. In: Principios Geraes de Philosophia, p. XXXIV. Este autor, para elaborar sua Tese de
Doutorado, teve que ir a Portugal (Universidade de Coimbra) para garimpar documentos
e obras de Cunha Seixas não existentes no Brasil. Surpresa! Ao receber para consulta o
monumental Princípios Gerais de Filosofia, percebeu, estupefato, que o livro jamais fora
examinado. A obra havia sido editada à moda antiga (ou seja, com as páginas dobradas
quatro a quatro) e permanecia intocada um século depois de haver sido impressa!!! Fui,
nesse sentido, o primeiro a consultar (com todo cuidado) a Obra de Cunha Seixas, pelo
menos em Coimbra.
10. O Pantitheismo na Arte, Canticos e Poesias, José Maria da Cunha Seixas , p. 257.
11. Cunha Seixas, p. 12.
12. Cf. Cunha Seixas e a Filosofia Portuguesa, p. 240.
13. Estudos de Litteratura e de Philosphia Segundo o Systema Pantitheista, pp. 12 e 125.
14. Estreias, pp. 85 a 103. No Anexo III apresenta-se o frontispício desta obra.
15. Estudos de Litteratura..., p. 13; Lucubrações Historicas, p. 167 e O Pantitheismo na
Arte..., p. 181.
16. Op. cit., p. 127.
17. Estreias, p. 67.
18. Lucubrações Históricas, p. 148.
19. Op. cit., cap. IV.
20. Op. cit., p. 171.
21. Op. cit., pp. 187 a 188.
22. Op. cit., pp. 179 a 180.
23. O Pantitheismo na Arte..., p. 179.
24. Princípios Gerais de Filosofia da História, p. 74.
25. Princípios Gerais de Filosofia, pp. 217-18.
26. O Pensamento Filosófico-Jurídico Português, António Braz Teixeira, p. 83. Consultar o
Anexo I deste trabalho.
27. Princípios Gerais de Filosofia, p. 219.
28. Galeria de Ciências Contemporâneas, José Maria Cunha Seixas, p. 224.
29. Ibid., p. 226.
30. Ibid., p. 227.
31. Ibid., pp. 227e 228.
32. Cs. minha Tese de Doutorado referida na nota 108 e o trabalho A Filosofia Portuguesa
na Fase Áurea do Ecletismo Brasileiro de Aquiles Côrtes Guimarães, In: Ciências Humanas,
Rio de janeiro, 5 (16): 9-14, jan./mar. 1981.
33. Ibid., p. 106.
34. Ibid., p. 110.
35. Ibid., p. 139.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUILAR, Manuel Busquets. O Curso Superior de Letras (1858-1911): (dissertação para


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254 p.
______. O pantitheismo na arte, canticos e poesias. Lisboa: Typographia da Bibliotheca
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______. Phantasias d’amor. Lisboa: Empreza Litteraria Luso-Brasileira Editora, 1880, 196 p.
______. Principios elementares de direito civil portuguez para uso dos Lyceus. Lisboa:
Typographia Mattos Moreira, 1885, 143 p.
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______. Principios geraes de philosophia da historia (Dissertação para o Curso Superior de
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______. Principios geraes de philosophia. Lisboa: Imprensa Lucas, 1897, 1072 p.
______. Princípios gerais de filosofia e outras obras filosóficas. (Introdução de Eduardo
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______. Tratado de philosophia elementar para uso dos Lyceus. Lisboa: A. Ferreira
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______. Uma digressão pela litteratura ou exposição das obras do Exmo. José Elias Soares
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GUIMARÃES, Aquiles Côrtes. A filosofia portuguesa na fase áurea do ecletismo brasileiro
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______. A reação espiritualista em Portugal: krausismo e ecletismo. In: Ciências Humanas.
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SITES CONSULTADOS

http://www.geocities.com/Athens/Troy/4285/ensino23.html

http://home.utad.pt/investigacao/origins/bacal.html

http://www.ensayistas.org/

ANEXO I

J. M. CUNHA SEIXAS

Autor: António Braz Teixeira


Fonte: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/filosofia/rep4.html
Acesso em 20/12/2003

Filósofo português (Trevões, 1836 - Lisboa, 1895), criador de um sistema filosófico


que denominou Pantiteísmo e que se apresenta como uma pessoal e original dissidência
do Krausismo, tal como este era entendido por J. M. Rodrigues de Brito, cujo magistério
filosófico viria a marcar, de forma decisiva, o percurso especulativo dos dois mais
importantes pensadores da geração portuguesa que se afirmou a partir de 1865.
Ao designar por pantiteísmo o sistema filosófico que desenvolveu e expôs ao
longo da sua obra especulativa (A Fénix ou a Imortalidade da Alma Humana, 1870;
Princípios Gerais de Filosofia da História, 1878; Galeria das Ciências Contemporâneas,
1879; Ensaios de Crítica Filosófica, 1883; Estudos de Filosofia e Literatura, 1884;
Lucubrações Históricas, 1885; Elementos de Moral, 1886; Princípios Gerais de Filosofia,
1898), Cunha Seixas procurou tornar claro que a respectiva matriz era a intuição
primordial de que Deus está em tudo, como centro de todas as coisas e nelas
manifestado.
Para o pensamento pantiteísta, o ponto de partida do conhecimento era duplo:
subjectivamente, seria o pensamento, enquanto, objectivamente, se encontraria na idéia
de ser. Na verdade, sendo sempre o conhecimento um acto do espírito que pensa, o
respectivo ponto de partida não poderia ser o sentimento nem a vontade, que são
apenas excitantes ou motores do conhecimento, mas o pensamento. Por outro lado,
porque o conhecimento não pode deixar de partir de algo que seja imediato, possível,
certo e intuitivamente evidente que lhe dê um mínimo de garantia, e porque tais
atributos só se encontram nas idéias e leis da razão e nos axiomas que decorrem delas,
todo o conhecimento se funda, necessariamente, na crença no próprio espírito.
Como todo o pensamento e todo o juízo se reportam ou envolvem sempre a idéia
de ser, ela será o ponto de partida objectivo do conhecimento.
De acordo com a filosofia pantiteísta, o conhecimento exprime-se num juízo, na
afirmação, ainda que implícita, de uma relação, a qual obedece a três leis, a da substância,
a da manifestação e a da harmonia, e em cujo processo cabe distinguir três momentos.
No primeiro, imperam as idéias experimentais, particulares e contingentes, referidas a um
objecto da natureza, enquanto, no segundo, dominam as idéias reflexivas, de carácter
geral e abstracto, e, no terceiro, tudo se processa já no plano das idéias racionais ou
ontológicas, inatas ao próprio espírito, universais, absolutas, necessárias e invariáveis.
É a circunstância de as idéias desta terceira espécie serem tanto leis do espírito
como elementos dos seres, havendo, por isso, correspondência ou equivalência entre as
categorias da razão e as categorias do ser, que torna possível o conhecimento e faz que a
ontologia seja, a um tempo, ciência do ser nas suas determinações mais gerais e ciência
das idéias-elementos na sua maior extensão e profundidade, com abstracção de qualquer
ente individual.

Esta dupla natureza das idéias racionais explica que seja também por meio de um
processo trágico de ser, manifestação e harmonia, que a ordem ontológica se desenvolve
e se concretiza e a finalidade de cada ser se coordena, dinamicamente, com a dos demais
seres, contribuindo todos e cada um deles para a realização dos mais altos destinos do
universo. Cada ente é, assim, algo individualizado, dotado de finalidade própria,
constituindo um infinito relativo que, no seu movimento próprio, se manifesta,
relacionando-se com todos os outros do mesmo género e, através deles, com a ordem
mais global do ser.
A idéia de ordem, associada à idéia dos seres como infinitos relativos, conduz o
nosso espírito à noção de um Ser Perfeito e Absoluto, que tenha em si o seu próprio fim e
que, na sua unidade e simplicidade, seja causa e ordenador dos restantes seres. Dado
que, no entanto, o finito não pode existir sem a sua causa geradora e como o infinito é
também a eternidade e a imensidade, Deus está em tudo, conferindo a todos os infinitos
relativos a sua realidade e subsistência, sendo, porém, deles perfeitamente distinto, pois
o eterno e imenso não pode confundir-se com o transitório e o limitado. Daí que, apesar
de nos movermos, sermos e vivermos em Deus, participando da sua realidade, com Ele
não nos confundamos nunca.
Sendo, embora, abscôndito na sua natureza e, como tal, inacessível a toda a
explicação ou demonstração, Deus manifesta-se no universo e patenteia-se
intuitivamente à razão, como inteligência suprema, lugar e fonte de verdade e de vida e
sede do infinito e do absoluto. Deste modo, Deus não é inteiramente incognoscível,
sabendo nós Dele, através da Sua manifestação, que é absoluto, omnipotente e perfeito,
imutável e uno, infinito, eterno, omnisciente e omnipresente, sendo seus atributos
supernos a verdade, a bondade e a beleza. (sic).

ANEXO II

RETRATO DE JOSÉ MARIA DA CUNHA SEIXAS

Fonte: Diario Illustrado, n° 4128, Lisboa, Portugal, 27/10/1884

ANEXO III

FRONTISPÍCIO DA PRIMEIRA OBRA DE CUNHA SEIXAS.

Fonte: Sala Dr. Joaquim de Carvalho, Faculdade de Letras,


Coimbra, Portugal, 1987
FILOSOFIA PORTUGUESA (IV): O MESSIANISMO DE SAMPAIO BRUNO

TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Sampaio Bruno

José Pereira de Sampaio, que se deu a conhecer pelo apelido Bruno (Sampaio Bruno) em
homenagem ao Filósofo Italiano renascentista Giordano Bruno (1546 -1600), nasceu em
30 de novembro de 1857, na cidade do Porto, Portugal, na qual também viria a morrer em
11 de novembro de 1915.

Formou-se em Medicina em 1876, mas, aos quinze anos, já havia sido levado à barra
dos tribunais por ter redigido nos folhetins O Vampiro e o Laço Branco, dois romances de
ficção intitulados Os Três Enforcados e Os Três Frades, tendo sido, todavia, liberado pelo
Tribunal em virtude de sua pouca idade. Aos dezessete anos publicou seu primeiro livro
Análise da Crença Cristã, no qual afirmou que um único momento de ociosidade de Deus
denotaria imperfeição. Em decorrência disso, entendeu Bruno, Deus é permanentemente
ativo e, portanto, perpetuamente criador. Nessa obra considerou o Catolicismo uma
religião obsoleta, anacrônica e moribunda, e, em virtude dessa crença, determinou-se a
demolir a estrutura teológica católica estabelecida. Esses conceitos, e outros de teor
semelhante expostos na obra brunina, levantaram muita polêmica, importando em
inflamados debates em torno de seu pensamento. Esses debates perduram até a
contemporaneidade.

Tendo saboreado o prazer que a liberdade de expressão oferece, e cônscio e alerta da


ruidosa dissensão que sua primeira obra causou, não parou mais de publicar suas
reflexões, quer sob a forma de artigos em jornais, quer sob a configuração de títulos de
livros, exercendo substantiva influência sobre a geração da Renascença Portuguesa.
Entretanto, é preciso ressaltar um traço marcante de sua personalidade: Sampaio Bruno
era um homem extremamente tímido. Devido a isso, provavelmente, tornou-se um dos
mais difíceis autores do pensamento lusíada, recorrendo exaustivamente à oração
intercalar e à inversão, utilizando um estilo irregular, prolixo e gongórico. Não desejando,
no seu íntimo, escandalizar a opinião pública, ainda que isso tenha acontecido com sua
primeira obra de tomo, não expunha seu pensamento com clareza, e na fixação gráfica de
suas idéias, argumentava em dimensão inferior à importância dos temas em si. Por tudo
isso, alguns de seus livros, como observa Pedro Calafate, são propositadamente
incompletos, deliberadamente abstrusos. Meu saudoso amigo Eduardo Soveral discorda
dessa avaliação. Eu, com a devida vênia, acompanho Calafate. Sei que Soveral, se vivo
estivesse, não se ofenderia com minha opinião contrária. Além de ser um homem muito
culto e liberal, gostava de mim. Foi uma honra e um prazer tê-lo conhecido.
Meu Amigo Eduardo Abranches de Soveral

Em sua obra, entre outros, três pontos são marcantes: a exaltação do amor, as
relações interpessoais e a noção de liberdade. Talvez, para Bruno, o primeiro degrau da
escada redentora do homem radique na autolibertação e na mesma libertação de todos
os seres, de tal sorte que essa redenção deverá se dar paralelamente e no seio de um
envolvimento universal progressivo. Entretanto, deve-se assinalar que a própria categoria
da liberdade nas lucubrações do Autor de A Idéia de Deus, para não resvalar para o puro
egoísmo - o que fica evidente quando proclama e prevê uma redenção do próprio
Universo - deve conjugar-se ternariamente à igualdade e à fraternidade. Nesse sentido,
do homem se exige que ajude e se esforce para a eliminação do mal. Para Bruno, enfim, a
liberdade é a natureza, o próprio destino do homem.
Admitindo uma cisão herética(!?) entre Deus e o Universo criado, Sampaio Bruno
rejeitou a onipotência atual de Deus, mas subscreveu, contraditoriamente, o
providencialismo, o profetismo e a escatologia. Esses temas estão explicitados em A Idéia
de Deus (obra basicamente estruturada para se opor ao Deísmo Racionalista de Amorim
Vianna) e em O Encoberto. Nesta última, ao discutir alegoricamente o Mito do
Sebastianismo Português, expôs sua compreensão da filosofia da história portuguesa.
Exilou-se em Paris por dois anos (1891-1893) em decorrência de sua participação
como um dos mentores da fracassada Revolução Republicana de 1891. Ao retornar à
Pátria, acabou por discordar do caráter positivista que passou a preponderar no Partido
Republicano do qual era membro. Afastou-se, por isso, da política nacional após o 5 de
outubro de 1910, para terminar seus dias como Diretor da Biblioteca Municipal do Porto,
meditando sobre seus temas preferidos: religião e filosofia. Por seu espírito missionário,
sua vasta cultura, sua excepcional atividade e sua invulgar originalidade, tornou-se um
ponto de referência insubstituível para compreensão da história do pensamento
português.
Como afirmou José Marinho no livro Verdade Condição e Destino no Pensamento
Português Contemporâneo, com Sampaio Bruno, a filosofia portuguesa antecipa-se em
pontos essenciais à poesia, à razão intuitiva, à imaginação simbólica. Ou como escreveu
Aquiles Côrtes Guimarães no trabalho Em Torno da Questão do Absoluto no Pensamento
de Sampaio Bruno: Singular em Sampaio Bruno é o fato de que, em momento algum, ele
se desvincula do solo da cultura portuguesa para enfrentar [qualquer questão]. Por isto
mesmo, não se trata de um filósofo que pensou em Portugal, mas de um pensador
português comprometido essencialmente com os horizontes da cultura lusitana.[1]

Em vista disso, pensa-se que Sampaio Bruno seja um dos mais respeitados e
admirados filósofos portugueses, e seus escritos inserem-se diuturnamente nas reflexões
do pensamento luso-brasileiro contemporâneo. Este trabalho, evidentemente, não
poderia examinar todo o seu pensamento; por isso, ficou adstrito, basicamente, à sua
Cosmogonia, que se estruturou, como se verá, em três momentos principais.

A IDÉIA DE DEUS

Em A Idéia de Deus, obra que o Ilustre Pensador Portuense teria preferido que se
intitulasse Amorim Vianna, seu interlocutor privilegiado, particular e
preponderantemente no último capítulo denominado Mal e Bem, está
minudenciosamente delineado seu pensamento metafísico. A primeira observação a
fazer é sobre a estrutura da obra, que é composta de sete capítulos, formados de duas
díades cada um, a saber: Filosofia e Metafísica; Matemática e Poesia; Superstição e
Religião; Teologia e Moral; Contingente e Necessário; Infinito e Perfeito; e Mal e Bem.
Da obra global brunina, conforme já se teve oportunidade de referir, ressalta a
preocupação do pensador com o tema da liberdade, e foi exatamente por isso - por
defender a liberdade - que foi obrigado a se exilar em Paris. José Esteves Pereira discutiu
em profundidade essa categoria, e como já foi assinalado, a idéia do progresso em Bruno,
particularmente no que tange ao homem, é triádica, pinçando-a e a amalgamando a duas
outras: igualdade e fraternidade.[2] Esta postulação constitui-se em um dos pilares
primordiais do pensamento filosófico do Especulativo Portuense. Por suas posições
precisas e corajosas, Leonardo Coimbra viria a cognominá-lo Apóstolo da Liberdade.[3]
Nesse particular, não há exagero de Leonardo.
É ainda Esteves Pereira que chama atenção para a reflexão brunina no que concerne
ao binômio LIBERDADE versus AUTORIDADE, e as possíveis articulações de princípios e
regimes. O Esquema que será apresentado a seguir resumirá esse tema .[4]
Das diversas categorias observadas no Esquema 1, conclui-se que é evidente que
jamais poderia ter sido monárquico, comunista ou anarquista. Para se arrematar esse
tema (entretanto sem se ter a pretensão de esgotá-lo), fica-se com a idéia de Bruno
sobre o futuro, cuja glória, pontuou o Filósofo, será alcançar Unidade na Liberdade.[5]

CATEGORIAS
Autoridade Liberdade
Monarquia ou Patriarcado Democracia
(governo de todos por um só) (governo de todos por cada um)
Panarquia ou Comunismo Anarquia
(governo de todos por todos) (governo de cada um
por cada um)

Esquema 1: Autoridade x Liberdade


Mas o ponto mais polêmico, mais discutido e mais pensado da obra brunina
aparece exatamente no livro A Idéia de Deus, no qual o Filósofo propôs uma via
especulativa para a existência do Universo, que só aconteceu e se mantém, devido à
primitiva existência de um Ser Homogêneo a ele superior, e, portanto, que o excedia e
excede. Do que se revisitará a seguir, percebe-se que não poderia concordar com Amorim
Vianna quando este afirmou: Deus é permanente e não muda: ‘est, non fit’. Se alguma
concordância há com o Racionalismo Deísta do autor da Defesa do Racionalismo ou
Análise da Fé, é o retorno do Absoluto à Sua homogeneidade inicial. Assim, se Vianna
entendeu que Deus é, Bruno viria a admitir que Deus seria novamente. A percepção de
Bruno para este acontecimento é, a juízo deste leitor apaixonado das reflexões bruninas,
surrealisticamente triádica, e, portanto, ancora-se em três momentos distintos e
peculiares. Assim deixou gravado seu esquema cosmogônico:

No princípio era a Perfeição, o espírito homogêneo e puro. No segundo momento,


mercê do efeito dum mistério, temos o espírito diminuído e a seu par a diferença
que se tornou heterogênea, isto é o mundo. No terceiro momento, reintegrar-se-á
o espírito puro, pela absorção final de todo o heterogêneo. Assim, três são os
instantes supremos do crescimento. Um: é o espírito homogêneo e puro, que foi e
há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o
espírito puro, mas diminuído atualmente pelo destaque separativo do Universo.
Enfim, o outro ainda: é esse Universo, que aspira a regressar ao homogêneo inicial.
[6]

HOMOGÊNEO —› HETEROGÊNEO —› HOMOGÊNEO

PERFEIÇÃO —› IMPERFEIÇÃO —› PERFEIÇÃO

Exagero ou não, pode-se pensar em admitir que A Idéia de Deus foi articulada para
alcançar esse clímax, ou seja: a proposta brunina para a existência de Deus e,
conseqüentemente, para a própria criação do Universo e dos seres brotou antes, tendo se
constituído, possivelmente, no mote para a elaboração da obra como um todo.
Realmente, sem se pensar em minimizar o esforço e o mérito desse insurreto Quixote
Português, o livro ora referenciado, smj, poderia resumir-se tão-só ao último capítulo -
Mal e Bem. Este é o ápice da metafísica brunina, o ponto nuclear de sua meditação.
Conjeturando, talvez o Autor tenha pensado que não seria dada a devida importância a
uma mensagem tão extravagantemente heterodoxa e sobrenaturalista em um livreto de
poucas páginas. E assim preferiu elaborar uma obra mais densa e de tomo, na qual
destilou toda sua insurgência contra a tradição teológica, metafísica e científica vigentes.
Fez muito bem. Presentemente, o autor deste modesto rascunho, quase um século e
meio depois do nascimento de Bruno, especula sobre suas especulações. Assim é a
trajetória da Filosofia.
Voltando à coluna vertebral da cosmogonia brunina, algumas considerações devem
ser feitas relativas a cada um dos três momentos por ele anunciados. Primeiro Momento:
Deus existe. No início Ele era a Plena Consciência. Era Onipotente; era Invariável,
Homogêneo, Infinito e Puro. Francisco da Gama Caeiro, percucientemente, entendeu que
a única noção acessível deste Momento é a de tempo, e como não poderia ser diferente,
com os mesmos atributos.
Segundo Momento: ocorre a instabilidade, e acontece uma preliminar mudança de
atributos. Deus, lentamente, vai deixando de ser Onipotente para se ir tornando
Onisciente. Inicia-se uma diferenciação de parte do Espírito Puro. No segundo momento,
do Espírito Puro diminuído fluem para o Espírito Alterado (tempo alterado ou
heterogêneo, matéria, mundo e movimento) permanentes emanações que o penetram, o
depuram e o incitam a retornar e a perseguir a reintegração. Segundo Bruno, as
emanações oriundas do Espírito Puro diminuído não prevaricam à medida que penetram
no Espírito Alterado e se afastam de sua origem. O movimento é o início e o fundamento
para o regresso ao Espírito Homogêneo. E assim, em conseqüência de sua diminuição,
Deus - segundo Bruno - sofre da diminuição do espírito puro e do mal da criatura. Por
isso, o homem deve libertar-se a si, libertando os outros homens. Em decorrência dessa
linha de raciocínio oriunda de uma compreensão à qual Bruno denominou de verdade
acima da razão(?), foi possível ao Filósofo compatibilizar providência, milagre e oração,
tendo, por isso, ou também por isso, colocado o Pensador Portuense em franca oposição
e em rota de colisão com o Deísmo Racionalista de Amorim Vianna. Assim deixou Bruno
gravado em A Idéia de Deus: A oração é a aspiração do espírito alterado para o espírito
puro; subordina-se a uma lei transcendente de atração. O milagre é a emanação que
impulsiona o espírito alterado a avançar na libertação. A Providência é o concurso do
espírito puro diminuído com o espírito alterado para, pela libertação deste, se completar,
reintegrando-se o Absoluto.[7]
Do exposto, nota-se que, em Bruno, fé e razão são harmônicas, porque Deus e
homem haverão de se encontrar, e a Verdade, observa Caeiro, brotará dessa síntese, e,
assim, ambas são termos analíticos de uma mesma Razão. Objeta-se, todavia,
terminantemente, à essa linha de justificativa, porque, ressalvada compreensão mais
avançada da qual não se possui elementos para concordar, entende-se, que a fé é um ato
unilateral e solitário de exclusão da razão — é a própria deserção consentida da razão —
e só pelo conjunto de dogmas e de doutrinas de uma dada religião, pelas diversas
variantes de argumentos autoritários, pelo infundado medo do desconhecido e pela
infantilidade abstrusa de desejar agradar a Deus ou a seus presumidos e autonomeados
representantes, alguém pode abrir mão de sua LIBERDADE (o que se configura em uma
incoerência no pensamento de Bruno), e se deixar cercear por essa virtude teologal, que
só pode interessar aos detentores do poder teológico, qualquer que seja a origem, a
natureza ou a confissão. A fé só é cabível se ancorada em e derivada de uma
EXPERIÊNCIA PESSOAL que a justifique. Ainda assim, nada é definitivo na humana
caminhada. O ser humano obriga-se a estar alerta para novas descobertas, e o que hoje
pode ter aparência de coisa absoluta, amanhã poderá se modificar. Só o tolo tem
compromisso inamovível com as idéias que engendrou ou engendra. Leonardo Coimbra
refletiu magistralmente sobre esse tema e que será examinado em Filosofia Portuguesa V.
A ciência, por outro ângulo, mostra isso a cada instante. Enfim, na visão brunina, a meta
universal do estado de coisas que representa o Segundo Momento é o retorno ao
Primeiro Momento. O Heterogêneo deseja, precisa e há-de se reintegrar no Homogêneo
inicial. A ansiedade pela volta à origem é permanente; a aspiração dessa essencial
espiritualidade, segundo Bruno, ainda que rebelde, constitui-se em um fato irrecorrível; a
reabsorção no Puro Bem associa nessa trajetória Homem e Universo. Ora, não se pode,
terminativamente, concordar com essa especulação, pois, o mal é uma ilusão fabricada
própria da humana ignorância. Disto se serve a senda esquerda ou negra. A Divindade e o
próprio Universo estão ancorados em Leis Eternas, Imutáveis, Neguentrópicas e
Irredutíveis, que, em última instância, independem inteiramente da limitada razão
humana. São o que são, sempre foram e sempre serão. Deus e o Universo não se
amoldam à compreensão do ser; é o ser que, por um supremo esforço e pelo mérito, vai,
paulatinamente, compreendendo a consistência da Criação e realizando sua reintegração
na Consciência Cósmica, da Qual, em realidade, nunca esteve desvinculado, afastado ou
excluído. A famosa formulação de Protágoras o homem é a medida de todas as coisas
precisa ser melhor examinada e comparada com os pensamentos de Santo Agostinho (Si
fallor sum: se erro, existo) e de Descartes (Cogito, ergo sum: Penso, logo existo). Se,
porventura, alguém se engana ao somar 1 + 1, ao perceber que se enganou, tem a
possibilidade de corrigir o erro cometido, mas, enquanto ser pensante (res cogitans), isto
lhe garante que existe. Fica, entretanto, uma questão em aberto: por pensar, o ser sabe
que existe ou por existir pode pensar? O que se sabe realmente a respeito dos minérios e
minerais, vegetais e animais? Pensarão todos? De qualquer sorte, parafraseando um belo
pensamento de Nadime L'Apiccirella, estudante de Psicologia da Universidade Federal de
São Carlos - UFSCar, a crueldade e a fraternidade estão em lados opostos, entretanto
ligadas por uma ponte: a responsabilidade e a consciência de que somos todos irmãos.
Precisamos, assim, estar alertas com nossos pensamentos, pois podem gerar palavras,
atos e escolhas que não são, em si, harmônicos com a HARMONIA CÓSMICA. A única
limitada possibilidade de compreensão parcial do funcionamento do Teclado Universal é
pela Via Transnoética. Limitadíssima, pois o ente, nesta Ronda, ainda não completou
sequer a integralidade consciente de seus sete membros constitutivos. Por último, é
preciso ser compreendido que o ser decodifica as impressões transnoéticas acessadas de
acordo com sua capacidade de apreensão. Logo, ainda que a LEI seja uma e única, cada
ente a realiza de forma pessoal, sendo, ipso facto, intransferível em sua totalidade (talvez,
nem em parte) para outro ente. Esta argumentação não se esgota aqui. É o começo de
uma grande peregrinação.
Terceiro Momento: tendo em vista a aspiração do heterogêneo de se reintegrar no
Homogêneo, a reintegração, segundo Bruno, far-se-á. O espírito retomará sua
homogeneidade inicial e primordial. Assim, pode-se inferir que a trajetória metafísica
Homogêneo-Heterogêneo-Homogêneo é equivalente, mercê do efeito de um mistério, ao
retorno circular Onipotência-Onisciência-Onipotência. Resumindo:

ONIPOTÊNCIA —› ONISCIÊNCIA —› ONIPOTÊNCIA

Sem se pretender de forma alguma esgotar a análise, melhor, a revisitação do


pensamento metafísico brunino, até porque a finalidade desta pesquisa tangencia outro
enfoque ainda que adentro da Ciência Primeira, encerrar-se-á este item com um exame
sintético da díade mal e bem. Segundo Sampaio Bruno o homem não poderia ter a idéia
de bem se não tivesse a idéia de mal. E o próprio triunfo episódico do mal, segundo seu
entendimento, levou-o a concluir que a Onipotência de Deus, como se viu, havia se
comprometido, tendo toda ela diminuído, talvez, melhor, se modificado, decaindo tal
atributo para um plano inferior por assim dizer, ou seja, para a classe tão-só de
Onisciência. Para o Especulativo Portuense os conceitos ou noções de várias categorias
têm sido sistematicamente invertidos, isto porque, segundo ele, os idealismos otimistas
laboram todos no equívoco derivado da concepção unitariamente absolutista do seu,
reciprocamente refratário, dualismo irredutível. Contrariando o Ecletismo de Cousin (e
nisso se aproximou de Cunha Seixas, ainda que este último também tenha sido um
eclético superlativo), entendeu que fealdade, erro e mal são noções positivas; e, por outro
lado, negativos são os conceitos de verdade, beleza e bem. A saúde é, portanto, uma
idealidade, sendo a doença o estado normal do homem.[8] Talvez se possa debitar essa
linha não-reciclada e angustiosa de raciocínio ao próprio estado de saúde de Sampaio
Bruno, que, ao longo da vida, nem sempre foi dos melhores, e, também, ao fato de, no
final de sua existência, padecer de mal tormentoso, mas que, por timidez própria de sua
personalidade, não foi sanado, nem em tempo, nem por um especialista que se impunha.
Recorda-se que A Idéia de Deus foi publicada em 1902, treze anos antes de seu
prematuro falecimento. Outra possibilidade que, ou anula ou se soma à primeira, foi o
lance de, ainda muito jovem, ter sofrido a sua possível primeira grande agressão — o
exílio. Outros aspectos de sua vida pessoal podem ser apontados como prováveis
propiciadores e estimuladores dessa linha não-ortodoxa de tratar a Metafísica como, por
exemplo, as injustiças cometidas contra seu pai, a brutalidade pedagógica imposta por
seus professores nos tempos de escola e a clariaudiência de que era portador. Sabe-se,
hoje, que a paranormalidade (mal administrada) pode acarretar, em alguns casos, sérios
distúrbios de personalidade. Se esse foi o caso de Bruno, adjetiva ou substantivamente,
pode-se apenas presumir.
E é por isso, conforme se apontou anteriormente, que Bruno entendeu que a idéia de
bem só pode ser sentida comparativamente à de mal. O mal existe para que o ser possa
formar juízos e, nessa direção, Bruno entendeu que resulta um paradoxo sarcástico negar
a existência do mal neste nosso Universo.[9] A grande questão é examinar se o mal existe
em si e por si, ou se é produto de desarmonias e de insanidades. Acho que,
anteriormente, deixei 'no ar' essa matéria.
Ao término desta sucinta análise, deseja-se cotejar os entendimentos de Aquiles
Côrtes Guimarães e de Eduardo Silvério Abranches de Soveral. O primeiro classifica o
autor d’A Idéia de Deus como um filósofo de ruptura. Já o segundo, como de
aprofundamento. O ponto de partida das reflexões de Soveral é a análise do que
entendeu Sampaio Bruno do Catolicismo. Recorda que a Análise da Crença Cristã
constitui-se em violenta diatribe contra o Catolicismo. Em A Geração Nova, alguns
pontos, segundo Soveral, mantiveram-se intocados; outros sofreram alterações
conceituais. No que concerne à Gnosiologia não há grandes alterações; relativamente à
Cultura, permanece uma subordinação ao ideal iluminista; e quanto ao Progresso, esta
obra veio confirmar e desenvolver algumas teses subscritas na ‘Análise da Crença Cristã’,
e negar outras.[10]
Depois da publicação dessas duas obras, relata Soveral baseado nas próprias
declarações do Autor Portuense, Sampaio Bruno passou por experiências insólitas de
natureza paranormal, mediúnica ou sobrenatural. Não importa como se as interprete ou
classifique, mas o fato marcante foi a convicção adquirida por Bruno da existência de
seres supraterrestres. Dessa forma, observa Soveral:

... se abriu à sua razão experimental, ao seu deísmo ético e à sua metafísica
meramente cultural, a nova visão de um monismo teológico, que permitiu uma
‘segunda navegação’ gnosiológica e impôs uma missionação de cariz religioso
cujos procedimentos deveriam ser simultaneamente herméticos e racionais.
É certo que superou uma posição materialista-culturalista, que só aceitava uma
metafísica de raiz experimental, e considerava Deus com a mais alta e fecunda
idéia do Homem, como o ideal onde as mais belas virtudes eram elevadas ao
infinito. A indecisão ontológica das idéias e da cultura foi ultrapassada. Ao
materialismo inicial sucedeu um panteísmo espiritualista. Mas, ainda neste, a
condição humana ficou indecisa e frustrada, sem atingir o ápice de sua
dramaticidade existencial que consiste precisamente na tomada de consciência de
que é na salvação de cada homem ‘concreto’, na decifração ‘pessoal’ do destino
Humano, que está o cerne da religiosidade, ou, se preferirmos, da relação essencial
que liga a Humanidade ao Absoluto.
E essa limitação foi-lhe imposta pela fidelidade às posições mestras de que
expôs logo na 'Análise da Crença Cristã': o repúdio, por absurda, da tese da criação
a partir do nada, da noção de pessoa etc. Foi vítima enfim, da forma
preconceituosa e hostil como analisou o Cristianismo, negando antecipadamente
às suas doutrinas a possibilidade de terem valor filosófico.[11]

Ainda que se concorde com Soveral de que a indecisão ontológica das idéias e da
cultura tenha sido ultrapassada, e de que do materialismo tenha n’A Idéia de Deus
brotado um Panteísmo Espiritual, não se pode concordar que seja na salvação de cada
homem concreto que esteja o cerne da religiosidade, nem a relação essencial que liga a
humanidade ao Absoluto. Se foi hostil ou não a forma como Bruno analisou o
Catolicismo, certamente que preconceituosa não foi. Foi possivelmente, inusitada,
infirme, inverossímil e até, substantivamente contraditória e insustentável, pois o que é
onipotente é tudo, inclusive onisciente. E o que é onipotente não pôde, não pode e não
poderá ser menos do que onipotente. E se se chega ao limite de admitir o Absoluto como
Onipotente, na onipotência estão inclusas a onissapiência, a oniparência, a onipresença e
a onividência. De passagem, não se pode, jamais, deixar de ter em mente, que ao
conjeturar sobre a Divindade e seus modos de expressão, o homem utiliza categorias e
avaliações humanas, que são apenas reflexos ilusórios e/ou distorcidos dessa mesma
Divindade, da qual o próprio homem ainda se encontra em um estágio placentário de
compreensão, de realização, de ascensão e de reintegração. Assim, especulativamente, se
se valorar com o número 1 (um) cada um dos atributos mencionados, a soma, só por
equívoco ou desatenção, pode ser interpretada como igual a 5 (cinco). Onipotência +
onissapiência + oniparência + onipresença + onividência são iguais a UM, ou seja,
ONIPOTÊNCIA (1 + 1 + 1 + 1 + 1 = 1). Pode-se usar a própria Trindade para,
comparativamente, reforçar e melhor esclarecer a asserção anterior, ou seja: Pai + Filho +
Espírito Santo = ABSOLUTO. Não que o Absoluto dependa de cada parte em si, ou de
cada uma das Pessoas que constituem a própria Trindade, para ser e permanecer
absoluto. Em realidade, o Absoluto é Uno porque é Trino e é Trino porque é Uno. Esta
última afirmação pode, aparentemente, estar em contradição com a anterior, mas se se
trocar o vocábulo dependência por interdependência, então, neste caso, talvez se possa
compreender melhor a Lei do Triângulo. Nesse lineamento especulativo entende-se que
Pai + Filho + Espírito Santo = UM, ou seja, 1 + 1 + 1 = 1, ou que, Pai = Filho = Espírito
Santo = ABSOLUTO.[12] Em última instância: o Pai é, o Filho é, o Espírito Santo é, e o
Absoluto, conseqüentemente, é. E se o Absoluto é, o próprio tempo é também. Não
houve o antes, não haverá o depois. Passado e futuro são dimensões afeitas
exclusivamente ao gênero humano, como também o é o próprio espaço. Espaço e tempo
são apenas construções da mente humana (nesse particular, acolhe-se o pensamento de
Amorim Vianna). Com o advento da Teoria da Relatividade, o entendimento sobre o
espaço e sobre o tempo passou, na verdade, a ser representado por um contínuo espaço-
tempo quadridimensional. Agora, a admissibilidade de que a Onipotência de Deus mercê
do efeito dum mistério(!?) tenha se alterado, se apoucado ou se subtraído a si própria, e
se reduzido tão-somente à onisciência, pode, smj, ser admitida como uma ponderação
ilógica, artificial, insustentável e inaudita, jamais como preconceituosa. Sacar do nada
uma afirmação como essa, tendo por base, exclusivamente, o apoiamento da expressão
mercê do efeito dum mistério, é arremessar ao vazio os cânones do pensar filosófico e
desconhecer o mais elementar (mas de veracidade insubstituível) princípio esotérico:
Assim como em cima, é embaixo. Na verdade, é e não é. Por isso, o raciocínio noético
utilizado algumas linhas atrás, para contraditar o absurdo brunino, é, ao mesmo tempo,
também, talvez absurdo, e, provavelmente, inverossímil. O exercício filosófico que se
propôs, pode entusiasmar o aprendiz despreparado, mas não convencerá o místico
evoluído, nem o iniciado ou o ocultista autênticos. Onipotência, onissapiência,
oniparência, onipresença e onividência são, tão-somente, entre outros, meros vocábulos
dialeticamente derivados das especulações teoontognosiológicas da mente objetiva (ou
subjetiva, que nada mais é do que um degrau acima da objetiva), que expressam o estágio
psicológico e espiritual-religioso da consciência do ser singular, no sentido de tentar
compreender a ilimitabilidade cósmica (in)criada, relativamente à Divindade (abstrata ou
concreta), que presumidamente a criou. Se a criou! Mas, ainda que Bruno,
presumidamente, nada tenha conhecido da Tradição Primordial, reconhece-se e se
aplaude seu arrojo propugnador, já que a própria Tradição, também, paradoxalmente,
desvela-se sutilmente no âmbito do contraditório. Por tudo isso, agasalha-se o
pensamento de Aquiles Guimarães. Sampaio Bruno, compreende-se, foi um pensador de
ruptura, que independente de qualquer juízo ou análise – por mais duros e veementes que
sejam – que se faça de sua obra, revelou-se sim, e aí se concorda com Soveral, um
verdadeiro Missionário e Herói Português, que dedicou sua vida ao progresso moral e
material da humanidade, e, em particular, do seu País. Contemporaneamente, o próprio
Soveral, insere-se nesta categoria de pensadores. Este autor declara-se saudoso da
convivência amiga e fraterna de que desfrutou com o Insigne Portuense Eduardo Soveral.
Foi em um modesto restaurante na Cidade do Porto, bebericando Água Mineral Luso, por
mais de quatro horas, que recebeu sua primeira magna aula sobre Filosofia Portuguesa.
Inesquecível momento de reflexão, de aprendizado e de bondade. Irrefragavelmente,
Soveral encontrou o Céu de sua compreensão. Estará filosofando com Sampaio Bruno?
Prosseguindo: Até porque, manter posições irreduzíveis, encastelar-se em princípios
irredutíveis, constitui-se em um cousismo, como, em seqüência, já se afirmou, diria
Leonardo Coimbra. E, em Bruno, percebe-se, há mudança, há aprofundamento em muitas
de suas teses juvenis. O que não significa que não tenha havido ruptura. Aliás, o que mais
se observa em A Idéia de Deus é um fabuloso rompimento que jamais sofreu
reconciliação com a dogmática católica. Cunha Seixas representou outro exemplo de
filósofo de ruptura, pois tendo também se insurgido contra a divina religião, dela se
afastou e formulou, como se reviu, um sistema espiritualista original, cuja
ontognosiologia contrasta vertical e horizontalmente com sua formação religiosa iniciada
no seio da família, em Trevões, e que haveria de se esgotar, mais tarde, em Coimbra,
quando, inclusive, decidiu abandonar o Curso de Teologia que havia iniciado. Domingos
Tarrozo é outro filósofo que se insere nessa categoria, e sua Filosofia da Existência
precisa ser melhor examinada pelas elites pensantes, portuguesa e brasileira. Ousa-se
afirmar que há mais coerência na cosmogênese tarrozina, do que na metafísica
heterodoxa de Bruno, ainda que teleologicamente otimista, ainda que a teleologia seja
uma contradição da noesis. Outra ilusão da razão(?!), portanto, é a admissão de que o
Universo progride para um télos. O Universo é; não virá-a-ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclusivamente: ainda que em Bruno tenham ocorrido modificações e


abrandamentos em alguns temas elaborados nos anos verdes, nenhum filósofo
português rompeu tanto quanto ele no tocante à idéia de Absoluto. Foi,
inquestionavelmente, um dos mais heréticos representantes do moderno pensamento
português. Concordar ou não com suas idéias é privilégio de quem o lê, como privilégio
foi ter o Especulativo Portuense ousado refletir em instâncias tão particulares e de tão
difíceis compreensão e interpretação. Ele meditou e teve ousadia e coragem de divulgar o
conteúdo de suas pesquisas. Por isso, deve ser respeitado e amado como uma luz a mais
na caminhada de todos quantos buscam uma compreensão, que acalme, dê segurança,
ofereça liberdade, e proporcione independência, enquanto seres neste plano de
existência. E, por último, deve-se ter sempre presente que qualquer monografia ou ensaio
antes de serem analisados, devem ser compreendidos, ou seja, todo texto é contextual
por natureza. A advertência, com a qual integralmente concordo, é de Soveral. Assim,
autor e época estão inapelavelmente associados. Problemas que o inquietem,
experiências pessoais, políticas e sociais, influências literárias etc., devem ser
cuidadosamente considerados no exame seqüencial do pensamento filosófico,
sociológico, político ou qualquer outro da obra completa de um pesquisador. O que não
se pode e não se deve é contemporizar com especulações que contrariem um outro modo
de perceber e de sentir uma dada questão específica. O contrário seria hipocrisia. No
mínimo. Mas, embaralhar Teologia com Filosofia só produz anarquia, e, como ensinou
Pitágoras, este é o pior dos males. Pior é especular em matérias que se conhece pouco ou
que se desconhece inteiramente. Isto poderá comprometer o próprio e o outro. Sob outra
visada, divulgar o que não pode ou não deve ser propagado, é uma irresponsabilidade.
Acredita-se que nem o próprio Bruno compreendeu exatamente a especulação metafísica
que planeou articular.

NOTAS

1. In: Colóquio Antero de Quental dedicado a Sampaio Bruno, p. 165.


2. A Liberdade em Sampaio Bruno, Colóquio Antero de Quental Dedicado a Sampaio
Bruno, passim.
3. Apud José Esteves Pereira, ibid., p. 70.
4. Ibid., p. 76.
5. O Encoberto, Sampaio Bruno, p. 378.
6. Op. cit., p. 343.
7. Ibid., pp. 347-8.
8. Ibid., p. 299.
9. Ibid., p. 321.
10. As Primeiras Posições Filosóficas de Sampaio Bruno, Eduardo Abranches de Soveral;
In: Colóquio Antero de Quental Dedicado a Sampaio Bruno, passim.
11. Ibid., p. 193.
12. Ao se discordar do pensamento de Sampaio Bruno e tomar como exemplo a própria
Trindade, não se dá a interpretação usual para a Pessoa do Filho a Jesus, o Cristo. Há que
se ponderar ainda, que a argumentação utilizada para contraditar o grande catequista do
amor que foi Bruno, apesar de se utilizarem números, a controvérsia está longe de se
constituir ou de se reduzir a expressões matemáticas. Ao contrário: o argumento brunino
é que pode, salvo melhor opinião, ser assim interpretado, ou seja: Espírito Puro Diminuído
= Espírito Puro Onisciente + Universo, ou, Onisciência = Onipotência – Universo. Por
outro lado, afirmar que Deus é providente, bom, amoroso, paciente, justo, misericordioso,
verdadeiro, doador de graças, tolerante, sábio etc. não representa nada de definido ou de
positivo acerca da Divindade em si. Tais conceitos representam, ao contrário, tão-só
categorias das quais o homem pode e deve emular Seus Atributos. Enfim, como ensina
um famoso rabino: estas afirmações não são feitas a respeito de Deus e sim para o
homem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAIS DO COLÓQUIO ANTERO DE QUENTAL DEDICADO A SAMPAIO BRUNO. Rio de


Janeiro, 1993.
SAMPAIO BRUNO, José Pereira de. A dictadura. Porto: Lello & Irmão Editores, 1909, 293
p.
______. A idéia de Deus. Porto: Lello & Irmão, Editores, 1902, 483 p.
______. A questão religiosa. Col. Obras de José Sampaio Bruno: Porto: Lello & Irmão
Editores, s.d., 449 p.
______. Geração nova. Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, 334 p.
______. Notas do exílio. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986, 397 p.
______. O Brazil mental. Porto: Lello & Irmão Editores, 1898, 470 p.
______. O encoberto. Porto: Lello & Irmão Editores, 1983, 335 p.
______. Os cavaleiros do amor (Plano de um livro a fazer). Porto: Guimarães Editores,
1960, 216 p.
______. Os modernos publicistas portugueses. Porto: Lello & Irmão Editores, 1987, 368 p.
______. Porto culto. Porto: Magalhães & Moniz Editores, 1912, 518 p.
______. Portuenses illustres. Vol. I e II. Livraria Magalhães & Moniz Editora, 1907, 818 p.

SITES CONSULTADOS

http://www.instituto-camoes.pt
/cvc/filosofia/rep6.html

http://www.supphoto.net
/galerie/photos/portugal/index.php

http://www.geocities.com
/nowarski99/pt/1.htm

http://www.ensayistas.org
/filosofos/portugal/soveral/

http://www.ehu.es
/~uppbacol/4.html

http://www.bn.pt/
FILOSOFIA PORTUGUESA (V): O CRIACIONISMO DE LEONARDO COIMBRA

TRAÇOS BIOGRÁFICOS E CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

José Leonardo Coimbra nasceu em Borba de Godim, atual Vila da Lixa, em 30 de


Dezembro de 1883, e faleceu no Porto em 2 de Janeiro de 1936. Como Pedro Amorim
Vianna (o Newton Português), graduou-se em matemática. Mas, seu amor era a Filosofia.

Leonardo Coimbra

Amorim Vianna licenciou-se na Universidade de Coimbra, em 1848, e Leonardo, na


Escola Politécnica do Porto, sessenta e dois anos depois. Deixou uma obra tão complexa,
que alguns críticos, maldosamente, chegaram a considerá-la dispersiva. Pondo em causa
a tradição teodiceica de vertente católica que, desde seus primórdios, inspirou a
espiritualidade portuguesa, mas sem, no seu âmago, ter dela ficado completamente
liberto (fato que não ocorreu com Cunha Seixas e, provavelmente, também, com
Domingos Tarrozo), em 1912 concorreu com a Tese O Criacionismo, para o provimento da
vaga de Professor Assistente de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Esse trabalho, extremamente denso e inacessível em sua integralidade àqueles
não afeitos à matemática superior, inscreve-se, no que concerne à Filosofia, em uma
dimensão espiritual, que se opõe, fundamentadamente, a todos as formas de Empirismo
e de Idealismo. Foi, inquestionavelmente, um trabalho alentado e original. (Para mais
informações consultar o Anexo I).
O tempo voa. Por ocasião do centenário da morte de Francisco de Assis, Leonardo
Coimbra, que desde 1923 vinha contemporizando suas convicções espiritualistas com o
Catolicismo, em um retorno de certa forma previsível, proferiu diversos discursos em
homenagem ao Santo de Assis. Sua conversão (melhor seria aplicar o vocábulo retorno)
definitiva à Religião Católica consumou-se às vésperas do Natal de 1935, em outra
dimensão repetindo os passos de Antero de Quental. Faleceu tragicamente alguns dias
depois vítima de um terrível acidente automobilístico. Portugal perdia, assim, um de seus
filósofos maiores.
Ao longo de suas diversas obras, caracterizadas por uma sistemática densidade,
ainda que, algumas vezes coloridas também de um preciosismo desnecessário, refletiu
itinerantemente sobre temas como liberdade e determinismo, imanência e
transcendência, razão experimental e razão cósmica, esquecimento e memória, visão
ginástica e visão aginástca, morte e continuidade moral, como também discorreu
aprofundadamente sobre outros temas, tendo sempre por sustentáculo um permanente
pensamento criacionista, cuja idéia-força é também a liberdade. Mas, para alcançar a
síntese filosófica de seu pensamento - Criacionismo e Deus e as Mônadas - o Pensador
esboçou seu sistema através de sete passos sucessivos:
a) Método; b) Número; c) Espaço; d) Matéria; e) Vida; f) Espírito; e g) Sociedade.

Para Coimbra, a ciência é real e racional, e o ser constitui-se de um conjunto de


noções reais e não de coisas. O mundo está sempre por fazer, e o homem deve atuar
(neste mundo) como infatigável obreiro, mais do que coordenando sensações, criando e
construindo livremente, subordinando o pensamento, a palavra e a ação a fins ideais que
possam dignificar a vida. Confiante na continuidade da vida moral (semelhantemente a
Cunha Seixas), ensinou Leonardo, o ser não pode por em dúvida de que O Caminho para
Deus é a VIRTUDE. Sempre a VIRTUDE. Apesar de estar absolutamente ciente de que,
neste plano de atuação do ser, a virtude geralmente não premia os virtuosos, Leonardo
viveu sempre em busca de uma compreensão progressiva do Deus de seu entendimento,
não almejando com suas ações, reconhecimento, gratidão, aplauso, honrarias ou glória.
Na verdade, mais foi contestado do que turibulado. Uma boa parcela dos filósofos de
então não compreenderam seus ideais e muito menos entenderam suas meditações. O
tempo não lhe favoreceu e foram poucos aqueles que o acompanharam. Até,
injustamente, o consideraram dispersivo.
A aritmética é, segundo o Portuense Ilustre, uma ciência de noções e é real, e o
número, nesse sentido, é uma noção ideal e também real. Ideal, porque é um momento
do pensamento; real, precisamente por ser uma noção do pensamento construtivo. Um
exemplo elementar, oferecido por Leonardo, aparece ao se definir a operação x + (a - 1). A
operação x + a pode ser definida pela igualdade: x + a = [ x + (a - 1)] + 1. Quando se
encontrar o valor para x + (a - 1), saber-se-á o que é x + a, e, por recorrência, poder-se-ão
definir sucessivamente as operações x + 2, x + 3 etc.

Dialogando com Kant, compreendeu que todos os espaços são partes de um único e
mesmo espaço. Ainda que estas noções tenham o defeito de ser realistas, Leonardo
reconheceu que são perfeitamente justas e rigorosas.

Consultando Comte, Helmholtz, Taine, Arquimedes, Newton, Poincaré, Lorentz,


Carnot, Maxwell, Hertz, Faraday, Vant’Hoff, Langevin, Minkowski, entre outros, Leonardo
Coimbra entendeu que a matéria só pôde, até então, ser compreendida e definida através
de um sistema de condicionalismos.

Leonardo jamais pensou em retribuir o milagre da vida com indiferença. Não importa
que 1 g de gordura produza 1,61 g de glicose e seja equivalente a 1,52 g de sacarose.
Também falar em energia vital sem a ter definido - advertiu o Filósofo - é esquecer o
trabalho psíquico... A evolução biológica - sintetizou Leonardo Coimbra - é a construção
progressiva que a direção e a herança tenham feito num tempo determinado pelo
conjunto das noções geológicas, físicas e químicas. Para Leonardo, não há justificativa
para se especular sobre quando apareceu a vida. O que interessa é como são compatíveis
os tempos geológico e biológico. E quanto à vida, sob o prisma da espiritualidade, seu
pensamento seguiu a tradição católica. Nunca aceitou que o ser fosse apenas um
aglomerado de átomos e de moléculas, mas um complexo dual corpo-alma. Toda a ética
leonardina baseia-se no bem, na beleza, na justiça e na virtude, que, um dia, desembocará
na GRAÇA. O ser humano não está só e muito menos perdido no Cósmico. O ponto de
convergência é a Divindade, estado ou condição aonde as humanas aspirações haverão
de ser realizadas. As únicas indiferenças que devem ser realmente desprezadas são as
paixões desarmonizadoras, os desejos inconfessáveis e imoderados, as concupiscências,
as ambições deletérias, as degradações morais etc. Indiferença no sentido de vergonha e
de profundo arrependimento por ter permitido que, por fraqueza ou por inconsciência,
tais mazelas tenham, um dia, enfermado a personalidade-alma, sim. Isto, então, na
verdade, não é propriamente indiferença, mas desejada e festejada consciência
consciente do delito praticado. Este é o início da (re)conciliação do ser consigo, com o
outro e com a Divindade que nele (imanente) sempre esteve. Quanto ao fato de a vida ser
confiada aparentemente sem consulta prévia a cada ser, este pensamento só pode ser
produto do desconhecimento do próprio propósito da existência e da encarnação. Ou, de
se presumir ter chegado a conclusões satisfatórias com base em premissas ilusórias,
insuficientes e fraudulentas. Quando o ente compreender que a vida é um presente
merecido, então, estará apto para cumprir a missão com a qual se comprometeu antes de
nascer. Perpetuamente, há possibilidade de (re)nascimento, de (re)integração e de
(re)encontro.

Aprofundando sua tese criacionista, Leonardo observou que a sensação é uma noção
psicológica - momento dialético - e não um dado. Perseverou nessa tese e elaborou,
nessa base, um sistema metafísico que garantisse o valor das sensações e as sucessivas
noções psicológicas. O biologismo, segundo seu entendimento, é pensamento
decorrente de um direcionismo próprio - o Espírito.

E, por último, propugnou que não há pessoa sem pessoas. Não há ser humano sem
sociedade. Consciência, noções, pessoa, síntese, ações, pessoas: Sociedade. Uma
consciência isolada acabaria por esgotar sua capacidade de síntese. As consciências
individuais condicionam-se e vivem em reciprocidade de pensamentos, sentimentos e
ações, ponderou Leonardo.

Dessas considerações preliminares aqui sintetizadas e que, em volume de reflexões,


são superlativamente mais extensas do que seu próprio Sistema, Leonardo manifestou
sua afiliação junto àqueles que, teologicamente, admitem a existência de Deus -
apreendido pelo pensamento e na própria vida do pensamento - e, especulou sobre as
mônadas. Mônada, para Leonardo, é todo o direcionismo da matéria.

Após sua morte, Leonardo tornou-se o ponto de referência mais importante do


pensamento português. Só pode ser comparado, ainda que em campo diferente, salvo
melhor entendimento, a Fernando Pessoa, que além da obra poética, refletiu sobre um
sem-número de temas dos quais, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) ainda
permanecem inéditos. No Brasil, em 1997, Ricardo João Inchausti produziu uma Tese de
Doutorado que examinou A Criação e a Liberdade em Leonardo Coimbra. E um dos
melhores resumos sobre o esforço do pensador-tribuno veio da pena de Sant’Anna
Dionísio, sob a forma de Introdução às Obras Completas de Leonardo Coimbra.

Como ponderou Inchausti, a sensibilidade de Leonardo aparece em todos os seus


escritos. Ao evocar as primícias de sua infância, recordou seus medos, angústias, alegrias
e amores, mostrando um sentimento saudoso que desembocou em um sistema
metafísico original, que deita por terra toda a discussão sobre a existência de uma
filosofia portuguesa. Aliás, de passagem, se há, consensualmente, uma filosofia de
expressão grega, uma filosofia de expressão alemã e uma filosofia de expressão francesa,
por exemplo, nada opõe que haja, também, uma filosofia de expressão portuguesa ou
qualquer outra. E assim, as filosofias nacionais, com características próprias, inserem-se,
como pensamento autônomo, no pensamento filosófico universal. Em Portugal, por
exemplo, Saudosismo, Pantiteísmo, Messianismo e Criacionismo; no Brasil, entre outras,
Positivismo, Liberalismo e Culturalismo. Ainda que algumas dessas vertentes não tenham
tido projeção internacional, representam (ou representaram) um momento de reflexão
individual, e, em certos casos, até nacional. Por isso, semelhantemente à Alquimia,
desconsiderar fragmentos do pensamento (de qualquer pensamento) é, por um lado, uma
atitude preconceituosa, menor e incabível no filosofar, e, por outro, esquecimento,
outrossim, das ponderações aristotélicas. Tal mediocridade só encontra guarida nos
ranços teológico e/ou ideológico, que se multiplicam em comportamentos de desdém no
tocante às várias modalidades de filosofias nacionais. Como já se teve oportunidade de
afirmar em outro ensaio, enfatiza-se novamente: a filosofia, por dever de ofício e por
definição (aceita no âmbito das academias), obriga-se a examinar tudo. Quando decide
não examinar alguma coisa, está manifestando preconceito. Quando eu tabalhava como
professor na Universidade Gama Filho vi, horrorizado, um projeto de tese de doutorado
ser sumariamente recusado porque o tema tratava do pensamento marxista. Pior. Quem
recusou o projeto, na juventude, havia sido comunista. Dá para entender um treco
desses? Acho que a compreensão mística ajuda muito a decifrar e a resolver muitos
entraves de nossa personalidade, mas, se não se deseja essa via, então, terapia.

Da mesma forma que o Taoísmo nasceu e floresceu na China e não na Grécia ou na


Alemanha, o Maniqueísmo, o Maltusianismo e o Positivismo tiveram seus berços,
respectivamente, na Babilônia, na Inglaterra e na França, e são, nesse sentido e
incontestemente, filosofias nacionais. A filosofia portuguesa e a filosofia brasileira
tiveram, por sua vez, seus nascedouros, respectivamente, em Portugal e na Ilha de Vera
Cruz. Sofreram influências? Sofreram. Diversas. Mas quem ou o quê não sofreu influência
de alguém ou de alguma coisa? O que importa é que Leonardo Coimbra pensou em
português para os portugueses e para o mundo, comprometido ferreamente com os
postulados do seu Sistema Criacionista. Da mesma forma que a Alquimia Operativa só
começou a ser levada a sério (pelos profanos) durante a Segunda Guerra Mundial, Van
Gogh só foi valorizado depois de morto e Fernando Pessoa há apenas alguns anos foi
(re)descoberto. Leonardo Coimbra está inserido entre aqueles filósofos que só serão
inteiramente compreendidos e apreciados, quando a maturidade da consciência tiver
alcançado o ponto de convergência necessário e suficiente, para que suas idéias sejam
mais anabolizadas e menos catabolizadas. A própria Teoria da Relatividade, ainda hoje, é
entendida por muito poucos. Assim, o grau de dificuldade do Criacionsimo, mudado o
que deve ser mudado, é semelhante ao da Alquimia e ao da Relatividade. E se um dia o
sistema leonardino tornar-se mais ou menos ultrapassado, que importa? Isso já
aconteceu tantas vezes no passado. A mecânica clássica, em alguns aspectos, é apenas
um exemplo. As diversas teorias atômicas, outro. Que dizer da Medicina? E da Genética
Molecular? A insanidade humana, recentemente, chegou ao limite de clonar um ser vivo.
Primeiro foi uma ovelha. Agora se anunciam clonagens humanas. Se o homem tocou o
maior dos pecados ao construir e explodir a bomba nuclear, agora acabou de perder a
própria noção de pecado! Imitar a Divindade tem conotação bem diferente.

Após a defesa, certamente desnecessária, das várias modalidades de filosofias


nacionais e de uma pequena mas necessária digressão, continua-se. Buscando no
sentimento uma base para estruturar seu Sistema, Leonardo Coimbra colocou o
Criacionismo no escaninho do Romantismo, ao lado de movimentos que tiveram suas
mais consagradas expressões na Inglaterra, na França e na Alemanha do final do século
XIX. E assim, o Criacionismo de Leonardo e o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes (que
tem em Afonso Botelho e em Braz Teixeira seus filósofos contemporâneos mais
expressivos), representam as mais notáveis manifestações do Romantismo Português do
século passado.

Encerrando este exame incompleto e preliminar da existência daquele que foi,


certamente, um dos mais desassombrados defensores da LIBERDADE em Portugal,
concorda-se com Ricardo Inchausti quando afirma que a obstinação de Leonardo pela
CRIAÇÃO e pela LIBERDADE, impulsionou-o a formular um Sistema Romântico-gnóstico,
que, ao fim e ao cabo, na verdade, mobilizou-o a encontrar uma solução no sentido de
conciliar a ciência com a metafísica. Talvez, por isso, tenha sido excomungado por parte
da academia portuguesa e de alguns dos pensadores(?) de seu tempo.

Acredita-se, fundadamente, que no transcurso do terceiro milênio uma nova geração


de pesquisadores - os TEOCIENTISTAS - substituirá as classes estanques de teólogos, de
metafísicos e de cientistas que ainda hoje prevalecem, contendiando-se por coisas e
sobre coisas que são cosmicamente convergentes. Apreender-se-á em um futuro não tão
remoto, definitivamente, que a única diferença entre uma pedra, uma planta, um animal e
o ser humano está no maior ou menor grau de autoconsciência que cada qual
eventualmente possa abrigar, ou seja: no teor vibratório que cada coisa encerra e/ou
possui. Enfim, TUDO É UM. Revisitar preliminarmente o pensamento pitagórico é um
imperativo, para que haja adequada compreensão das múltiplas manifestações da
Consciência Cósmica. A humanidade separa e isola porque ainda não compreende. E por
não compreender, é geralmente mesquinha e preconceituosa. PREFERE MORRER A TER
QUE CRUZAR A FRONTEIRA. Entretanto, o que não sabe é que assim permanecendo,
morta está. Morta no sentido da inconsciência de si, do outro e do Universo.

Sobre a obra de Leonardo, Sant’Anna Dionísio concluiu: obra singularíssima, sem


dúvida, que não se deixa classificar nem definir à luz da crítica bibliográfica usual. Dionísio
a considerou, ainda, talvez exageradamente, como obra irredutível, que só o tempo - e é o
que vem acontecendo - haverá de torná-la clássica e clara, mas cuja compreensão
depende de exaustivo exame e longa preparação. O filósofo do cousismo, como foi
apodado maliciosamente Leonardo por seus contemporâneos menores, hoje recebe, em
Portugal e no Brasil, as mais justas homenagens, e seu sistema tem sido objeto de
sistemática análise e aprofundadas discussões. Antônio Braz Teixeira, José Esteves
Pereira, Eduardo Abranches de Soveral, Manoel Cândido, Pedro Calafate, Paulo Borges,
Antonio Paim, Anna Maria Moog Rodrigues e Ricardo João Inchausti, entre muitos outros
pensadores luso-brasileiros, têm empenhado parte de seus esforços intelectuais para
compreenderem as densas e inauditas reflexões de Leonardo Coimbra. Este rascunho,
sabidamente não fazendo justiça total à reflexão leonardina, pretende, cumulativamente,
contribuir para a divulgação do seu pensamento. Reexaminar Leonardo é uma tarefa,
ainda que difícil, prazerosa e educativa, jamais um estorvo ou uma inutilidade. Não se
pode, todavia, ficar apenas limitado a um exame parcelar de seu pensamento. O conjunto
é harmônico e precisa ser v-a-s-c-u-l-h-a-d-o no todo. Quem sabe Leonardo não deu
início à Teociência Lusitana?

O CRIACIONISMO E A IDÉIA DE DEUS

O Criacionismo (gnosiológico) defluído de Leonardo Coimbra - como seu próprio


formulador se expressou - é uma Filosofia da Liberdade. Entretanto, preliminarmente,
deve ficar estabelecido que no Criacionismo Leonardino, o conhecimento é produto de
uma atividade racional que organiza e ordena intuições, estando todo o sistema
estruturado e apoiado em um lineamento ontológico-espiritual. Em A Luta Pela
Imortalidade, Coimbra escreveu: O mundo não é acrescentado naquelas relações que
constituem a sua primitiva existência social, essas são na consciência divina e em cada
consciência que as apropria revivendo; o indefinido acréscimo do mundo vem do fundo
inesgotável de beleza e bondade, que é a sua realidade dramática de consciências, que,
sempre melhor, se buscam e exprimem.[1]

Para o Pensador Português, a primordialidade da existência ancora-se no fato de o


Universo ser uma sociedade de consciências e a consciência feita pessoa é a actividade
livre e criadora (sic). Nesse sentido, só quando o ser realiza um ato verdadeiramente
LIVRE, tem a clara consciência de ser absoluto. Mas, para se alcançar e desfrutar a
VERDADEIRA LIBERDADE precisa-se corajosamente rasgar o primeiro véu, e isso, como
ensinou Leonardo, implica em uma libertação consciente dos VÍCIOS COUSISTAS.
Sant’Ana Dionísio na Introdução às Obras de Leonardo Coimbra assim resumiu o VÍCIO
OU PECADO COUSISTA:

... tendência funesta e irreprimível do homem ... para considerar como estático e
definitivo, como realidade concluída e firme de uma vez para sempre, para não
dizer como coisa feita, as próprias realidades espirituais, as idéias, os símbolos, as
estratificações jurídicas, os transitórios preconceitos políticos ou sociais, as
convenções históricas tidas como sagradas ou invioláveis, os princípios ou dogmas
de ordem religiosa, múltiplas idéias-crenças, tidas como inalteráveis, de ordem
científica.[2]

Ou como ainda escreveu o próprio Leonardo em A Luta Pela Imortalidade (Obras


Completas de Leonardo Coimbra, vol. II): Tudo o que se pretende encontrar isoladamente
do lado do sujeito ou do lado do objeto é esquecimento da unidade fundamental sujeito-
objeto.[3]
Derribados os cousismos, o alcançamento e o desfrute da liberdade acontecem. Não
só a liberdade de ir, vir e fazer. Essa não era, certamente, a preocupação radical de
Leonardo. Mas a LIBERDADE INTERIOR. Miguel Torga também pensou assim: - Liberdade
que estais em mim, /Santificado seja o vosso Nome. Esta sim. Livre das fantasias
científicas, jurídicas, sociais, teológicas, ideológicas e outras que vulgarizam a existência,
estará a mônada apta a dar o primeiro passo em direção à sua UNIVERSALIZAÇÃO. E
como propugnou Leonardo, e com o qual é impossível prevalecer discordância, esse
processo regenerativo e mesmo Alquímico de pensar, de agir e de reagir, é superlativa,
inequívoca, primacial e insubstituivelmente FRATERNAL. O encontro eventual,
imprevisível e até impossível com o Absoluto passa, assim, a ser plausível e acontecível.
Leonardo delineou esse processo nos seguintes termos:

A fraternidade - que nenhuma dialéctica construiu ainda - só será para a


consciência religiosa, que encontre Deus; e, em Deus, o foco de todas as almas, o
Amor, que pela sua inevitável sedução ampare, erga e exalte todos os corações. A
verdadeira fraternidade, irmanação no Absoluto, começa neste primeiro momento
do Criacionismo em que a reflexão filosófica demonstra, como máxima realidade, a
sociedade universal das consciências; para acabar, perfeita e integral no segundo
momento (Deus e as mônadas), quando do próprio coração do Universo, do mar
subtil, inesgotável e infinito da Moral saírem, como mônadas, as consciências
religiosas.[4] (sic).
Não, todavia, uma religião qualquer ou mesmo uma Religião da Humanidade no
sentido positivista, mas francamente UNIVERSALISTA. Ainda que no final de sua vida
tenha retornado ao Catolicismo, Leonardo, em fulgurante inspiração anterior, preconizou
que a associação religiosa só será garantida pelo pensamento, e uma igreja, no seu
primevo entender, só se configuraria criacionisticamente como associação livre de
pessoas livremente religiosas, que erguem as almas no mesmo pensamento. Ou seja:

Ser religioso é viver no Todo, é dar-se em ações de ilimitada generosidade.


A associação religiosa é dialecticamente demonstrada como o momento de
imediata afirmação do absoluto bem querer. Momento realizado pela comunicação
dramática das pessoas religiosas, unidas no mesmo religioso pensamento.[5] (sic).

O ser, portanto, conjugados estes princípios criacionistas, atuará na esfera da vida


infinita, sendo o Infinito Criacionista a continuidade da vida moral, que, em última
instância, fará convergir a pessoa eterna para a humana vida social e para Deus. Apenas e
tão-só pela atividade moral a mônada alcançará o Absoluto. Em conseqüência desses
princípios, admitir o mundo como sendo estritamente mecânico é uma impossibilidade.
Assim, para Leonardo, dispensando as noções superiores... ficaríamos num irremediável
acosmismo.
Mas qual, afinal, o propósito das lucubrações leonardinas? No seio e consciente
das mais altas realidades ou noções o conseguimento de Deus - o vértice da pirâmide.
Mas, o homem, segundo Leonardo, só se acenderá nessa LUZ INCRIADA E INCESSANTE
pela progressão dialética do pensamento. E Deus, para o Pai do Criacionismo Português,
é o infinito excesso, a única actividade a que o mundo não faz obstáculo (sic). Como
também não obstaculiza Seu próprio conhecer. A dificuldade está, conforme já se aludiu,
em cada mônada ultrapassar sua cultura global cousista. E o próprio medo em
experimentar, em se libertar, em querer e em ousar, retroalimentam cousificações
sucessivas. Cada mônada deverá, então, lutar o bom combate, despindo-se e se
desvencilhando da roupa suja mental, parte imposta, parte tolerada, no transcurso da
vida.[6] A mônada, admitiu premonitoriamente Leonardo, em estágio superior de sua
existência, é livremente consciente de si, dos homens e do mundo. Essa mônada, ao
apreender em si a fonte interminável de beleza moral, terá ipso facto, consciência
consciente de Deus (esotericamente, tema que Leonardo não tratou, o Deus de cada
coração). E, nesse estágio, compreenderá que nada poderá aniquilá-la, sabendo-se, pois,
imortal. Portanto, nem com a chamada morte a mônada perde atividade. Na verdade,
nem o corpo material morre por assim dizer. Seus componentes materiais desagregam-
se, para, depois, reorganizarem-se sob outras combinações, outros arranjos. Por outro
ângulo, também, Leonardo concluiu que a mônada será tanto mais real quanto maior for
a sua actividade de síntese, isto é, quanto maior for a unificação das oposições (sic). E
novamente, com Leonardo, afirma-se que a VERDADEIRA LIBERDADE, inclusive e
principalmente, para unificar as oposições de forma sistemática, coerente e ascensional,
só poderá acontecer, quando todos os resquícios de cousismo forem vencidos e quando
todos os limites materiais e solicitações inferiores ultrapassados. Desejos, cobiças e
paixões devem ser eliminados. Leonardo não problematizou essa matéria, mas este autor
afirma que todas as mazelas e doenças do ente têm sua origem no corpo astral ainda em
desenvolvimento. Sugere-se a consulta ao trabalho apresentado neste site que discute a
Oração das Sete Súplicas.
Outro ponto do Criacionismo de Leonardo é a admissibilidade do mal. O mal
existe, diz o Filósofo, mas é ilimitado o oceano do bem. O Bem frutifica, espalha-se e
avassala. E assim não há limites para a alma, pois é em Deus. O mal, ao cabo de contas, é
o cousismo do pensamento, das ações, das palavras e do sentimento, ou como lembra
Pinharanda Gomes, o mal é a necessidade, a carência, a deficiência. O bem é a presença, a
mantença e a defensa da mônada na ordem e harmonia universais, o que equivale, sob
outro entendimento, segundo Pinharanda, à liberdade, à plenitude e à eficiência[7].
Assim, para as finalidades desta pesquisa, pode-se ficar com a tríade principal, salvo
melhor escolha, do Criacionismo leonardino, que é: a) existência de Deus (a perfeita e
universal memória); b) incontestável realidade da pessoa; c) continuidade da vida e da
consciência (mônadas). E recordar, prazerosamente, talvez, a mais singela passagem de
sua obra-maior:

Então a actividade das mônadas traduz-se em amor. O tempo será o


caminho da sociedade ideal de consciências angélicas, e, em cada mônada, a
colheita das suas virtudes e a intensidade do seu sonho. O espaço será, em cada
mônada, o limite da sua clara visão e do seu leal amor; será, em si, a solicitação do
amor infinito, pois é a imensidade fria da exalação de sonho e carinho, para que os
luares de tempestade sejam um dia luares de fraternidade e ternura. [8] (sic).

Do sintético recorte acima apresentado das reflexões leonardinas e do estudo de sua


obra, pode-se imediatamente perceber que suas especulações sempre orbitaram na
esfera do espiritual, contrapondo-se, como se afirmou, a todas as formas de Empirismo e
de Idealismo. Várias díades, em contextos e dimensões diferentes, permearam o
pensamento de Leonardo Coimbra. As mais significativas são: liberdade e determinismo,
razão experimental e razão cósmica e imanência e transcendência.

No pensamento de Leonardo, não de forma explícita mas presente em toda a sua


obra, há uma tríade superlativa e permanente, a qual, na verdade, é aquela que rege e
norteia o próprio pensamento português em sua totalidade, ou quase totalidade, e é a
que contempla os três momentos fundamentais da existência, quais sejam: DEUS,
MUNDO, HOMEM.
Entretanto, a TRÍADE METAFÍSICA mais flagrante e significativa aparece na obra A
Alegria, a Dor e a Graça, na qual o trinitarismo leonardino, neste particular, apresenta-se
como equivalente à infância, à hominalidade e à eternidade, que é a que, por ter sido
explicitada de forma tão marcante por Leonardo, será a seguir sinteticamente revisitada
como exemplo da presença do ternário no pensamento lusíada.
A ALEGRIA, neste contexto, é o primeiro termo da tríade e Leonardo qualificou-a
de infinita, e toda a alegria do Universo é a posse plena da sua harmonia, a integral
memória do seu ser e da triunfal ascensão do sol levante ao meditativo sorriso do
pensamento, espraia-se em constantes e onduladas vitórias. A ALEGRIA foi
simbolicamente utilizada na reflexão leonardina como representativa da criação e da
ordenação do caos.[9]
A DOR, segundo termo, corresponde a uma incessante pergunta que conduz a um
conhecimento mais elevado, e, por isso, é o caminho da redenção. É o sentimento de
separação, de insubsistência e de fragilidade. A DOR tem seu equivalente na idade adulta.
É o tempo dos equívocos, das dúvidas e dos conseqüentes sofrimentos.[10]
A GRAÇA, último termo, é o sorriso do Universo. É a vitória do UNO sobre o
múltiplo, da liberdade sobre a necessidade. É a apreensão do Universal no particular. A
GRAÇA é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela -
átomo, mundo ou criatura. É o tempo da ressurreição e da fome do bem e do próprio
Deus.[11] Poeticamente, Leonardo combinou os três momentos em duas frases que
sintetizam todas as suas lucubrações e especulações metafísicas em A Alegria, a Dor e a
Graça. Citam-se:

A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é depois da Dor, a unidade


reconquistada...

A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.[12]

Enxugando e sintetizando a leitura da obra do Pai do Criacionismo Português em


pontos que não foram reexaminados tem-se: o pensamento é criacionista porque sua
adaptação à vida social é uma obra de sua liberdade efetiva.[13] A razão é de ordem
social... A razão eterna, prefixa, imóvel, seria a razão de um absoluto conformismo social...
A razão deve ser obrigatoriamente de natureza científica. Insistir em uma razão
puramente filosófica é permanecer em um estado atrasado que não acompanha a
evolução. A filosofia, hoje, faz o papel secundário de correr atrás da ciência.[14] Apenas
quando acontecer a espiritualização da matéria, poderá ocorrer seu regresso a uma
perfeita e pronta obediência às ordens do espírito. Jesus é o exemplo, a vida, o caminho,
o foco, o coração, o centro, a beleza, a bondade e a harmonia.[15] A força social é a
cultura.[16] A luta é sempre a do homem com o Mistério, de trevas ou de luz... A
inocência reconquistada é uma via purgativa.[17] Toda existência é social.[18] Por tudo
que escreveu Leonardo, pode-se sem receio de cometer qualquer equívoco, afirmar que
sua filosofia caracteriza-se por um ANTICOUSISMO, e suas reflexões sempre priorizaram
e alertaram para o poder criador do pensamento, para a realidade metafísica do ser e
para a evolução e a conservação do homem na memória do Absoluto. Afinal, pergunta
este pesquisador: Como poderia o Absoluto criar e depois esquecer a coisa criada? Como
poderia abandoná-la? Como poderia impedi-la de buscá-Lo? Como poderia puni-la por
suas fragilidades? Ultrapassando Leonardo e os outros filósofos portugueses revisitados,
data venia, agasalha-se a convicção de que o SER e o ser são UM. Dois ou muitos são as
ilusões que produzem todos os conflitos da existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando este último item e consultando a Tese de Doutorado de Ricardo João


Inchausti, concorda-se que a contingência de Leonardo ancora-se na pressuposição e na
adesão de que tudo está suspenso na vontade de Deus, e o Criacionismo Leonardino é
ipso verbis uma busca permanente do Absoluto. No domínio religioso - assevera
Inchausti - a transcendência, esse excesso que está presente no homem, só pode ser
sabedoria, porque representa a memória de tudo. E, assim, o homem quando busca
conhecer-se, aproxima-se de Deus; quando conhece, conhece a Deus. O amor no homem
- como escreveu Leonardo e concluiu Ricardo Inchausti - é a saudade de Deus[19]. Essa é
a verdadeira saudade em longitude e latitude que baliza o pensamento português. É, em
última instância, uma forma de saudade especial, uma saudade mais elevada, por assim
dizer, uma SAUDADE METAFÍSICA, que, por não poder se apoiar nem nos sentidos nem
na razão, jamais poderá ser resolvida ou aplacada neste plano de existência. Só pelo e no
retorno assintótico ao PRIMEIRO UM – o Grande Encontro para cada uma e para todas as
mônadas – a Paz Profunda e a Serenidade Irretocável serão conseguidas. Qual será a
Verdade oculta nos Capítulos VII e XIV, Versículos 4, 9 e 10 e 1, 3 e 6, respectivamente, do
Apocalipse de João? O Conhecimento reside em cabeças com pensamentos alheios; a
Sabedoria, em mentes que refletem por si mesmas... O número dos que foram
assinalados é profundamente revelador. Entretanto, foram todos assinalados. MAS, O
SINAL DEVE SER CONQUISTADO. Cabalisticamente, e isto já extrapola o pensamento
leonardino, 359 haverá de ser transmutado em 360. Isto não significa que o Universo
peregrine para um télos. O Universo é. O homem ainda não é porque se esqueceu de que
é. A reintegração é, concomitantemente, um processo de recordar. Primeiro, no nível do
subconsciente pessoal (individual); depois, no plano subconsciencial coletivo ou
universal. A verdadeira luta pela imortalidade é o esforço diligente e diuturno para
alcançar o CENTRO DA IDÉIA. Como o Universo é relativisticamente ilimitado, o
contentamento do ser em processo de reintegração deve estar em peregrinar
assintoticamente para e em direção ao OLHO QUE TUDO VÊ. Nessa peregrinação,
perceberá que este OLHO sempre esteve, está e estará nele mesmo. (Um estudo
complementar sobre o pensamento de Leonardo Coimbra, de autoria de Pedro Calafate,
está reproduzido no Anexo).

NOTAS

1. Obras Completas de Leonardo Coimbra, vol. II, Luta pela Imortalidade, p. 363.
2. Op. cit., p. XIII.
3. Op. cit., p. 260.
4. Obras Completas de Leonardo Coimbra, vol. I, Criacionismo (Esboço de um Sistema
Filosófico), p. 328.
5. Ibid., passim.
6. Mônada - para Leonardo Coimbra - é todo o direcionismo de matéria, seja qual for a
sua categoria, desde o mais ligeiro afloramento de vida até a mais ampla e profunda
consciência. Ibid., p. 368. Comparar com o conceito leibniziano, e, se for o caso, com
conceitos anteriores.
7. Discorda-se do vocábulo eficiência utilizado. Eficiência sem eficácia resulta, no mínimo,
apenas na metade da questão. E, na maioria das vezes, converte-se em retrocesso. Mais
concertado seria empregar a palavra efetividade ou excelência, que congloba os dois
conceitos. Assim:
EFICIÊNCIA + EFICÁCIA = EFETIVIDADE (ou EXCELÊNCIA)
8. Ibid., pp. 378 e 379.
9. Obras Completas de Leonardo Coimbra, vol. I, A Alegria, a Dor e a Graça, passim.
10. Ibid., passim.
11. Ibid., passim.
12. Op. cit., p. 501.
13. Obras Completas..., Luta pela Imortalidade, p. 232.
14. Obras Completas..., A Razão Experimental, p. 543.
15. Obras Completas..., Jesus, passim.
16. Obras Completas..., Problema da Educação Nacional, p. 923.
17. Obras Completas..., O Homem às Mãos com o Destino, passim.
18. Obras Completas..., Do Amor e da Morte, p. 579.
19. A Criação e a Liberdade em Leonardo Coimbra (Tese de Doutorado), Ricardo João
Inchausti, pp. 209 a 213.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COIMBRA, Leonardo. A alegria, a dôr e a graça. 2ª ed. Rio de Janeiro: Typographia do


Annuario do Brasil, 1920, 264 p.
COSTA, Dalila L. Pereira e PINHARANDA GOMES, J. Introdução à saudade (antologia
teórica e aproximação crítica). Porto: Lello & Irmãos - Editores, 1976, 226 p.

INCHAUSTI, Ricardo João. A Criação e a Liberdade em Leonardo Coimbra. Tese


(Doutotado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Universidade Gama Filho, Rio de
Janeiro, 1996.

PINHARANDA GOMES, Jesué. História da filosofia portuguesa: a filosofia hebraico-


portuguesa. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1981, 524 p.

SANT’ANNA DIONÍSIO (seleção, coordenação e revisão). Obras completas de Leonardo


Coimbra. Porto: Lello & Irmão Editores, 1983, 1955 p.

SOVERAL, Eduardo Abranches de. Análise de “O Criacionismo” de Leonardo Coimbra


(1883-1936). In: Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, 37 (150): 169-81, abr./ jun.,
1988.

ANEXO I
INSTITUTO CAMÕES
FIGURAS DAS CULTURAS LUSÓFONAS

Leonardo Coimbra
Autor do texto: Pedro Calafate
Fonte: http://www.instituto-camoes.pt
/encarte/figlcoimbra.htm
Acesso em 16/12/2003

Natural da vila da Lixa, próximo de Amarante, foi uma das figuras mais proeminentes
do movimento da Renascença Portuguesa, que fundou, juntamente com Teixeira de
Pascoaes, António Sérgio e Raul Proença, entre outros. Entre 1919 e 1931 foi professor
de Filosofia na Faculdade de Letras do Porto, por ele criada quando, pela primeira vez,
ocupou o cargo de Ministro da Instrução Pública.

Os conteúdos doutrinários da sua obra remetem-nos para o conceito de


Criacionismo, que deu título à sua obra mais importante. O Criacionismo afirma-se como
uma filosofia da liberdade, radicando nas infinitas capacidades criadoras do pensamento,
que, dinamicamente, se liberta dos determinismos naturais e sociais. Na sua base,
encontra-se a actividade científica que abordou em duas vertentes complementares.

Por um lado, a ciência representava o «espírito da cultura moderna», constituída na


base do «livre acordo», tendo a razão por autoridade única, liberta do autoritarismo de
princípios impostos exteriormente à actividade do pensamento. Representava um tipo de
acordo que, por ser livre e responsável, considerava como a base de realização do acordo
social que pela ascensão do indivíduo psico-social à pessoa, numa dialéctica criadora,
geraria a comunidade solidária e livre por que sempre se bateu.
Leonardo Coimbra
Desenho do pintor Eduardo Malta

Por outro lado, o modelo de ciência a que se referia nada tinha a ver com o do
positivismo. Tratava-se de uma ciência constituída na base da dialéctica nocional do
pensamento, ou seja, não incide sobre coisas mas sobre noções ou representações
mentais, considerando que a sensação é uma noção psicológica e não um dado e que,
como noção que é, não é uma realidade completa mas um momento dialéctico de um
processo, numa constante marcha para mais realidade e acréscimo de sentido. É na base
deste Criacionismo, que começa por afirmar-se inicialmente num plano gnosiológico, que
se virá a afirmar a liberdade do homem, pois a realidade não poderá nunca ser deduzida
de uma noção sintética superior, se essa mesma noção não tiver sido por nós elaborada.
Em última análise, a realidade não poderá nunca separar-se da dinâmica do pensamento;
não é um conjunto de coisas de que o pensamento de aproprie, mas um conjunto de
noções, sempre e já elaborado pela acção criadora do pensamento, num processo em si
mesmo ilimitado. Se o espírito se move num conjunto de noções por si elaboradas, então
ele é acto criador, não se limitando a assimilar e a receber o já feito e o já pensado.
A matéria não é assim o fundamento do pensamento, mas um seu produto, pelo que
importa superar a divisão entre matéria e forma no âmbito do processo gnosiológico,
para afirmar que toda a matéria e toda a realidade é já uma nocionalidade e uma ordem.
O espírito é a actividade funcional do conhecimento; a matéria é todo o conhecido
considerado independentemente da actividade que conhece, e a experiência é a
interacção do espírito e da matéria no acto de conhecer.
L. C. afirma, assim, uma dialéctica ascensional, que partindo do processo de
elaboração das noções científicas nelas se não detém, petrificando ou estagnando,
procurando, antes, elevar-se à constituição da última realidade irredutível, por si definida
como a «pessoa moral». Enquadram-se neste processo dialéctico afirmações célebres de
L.C., nomeadamente quando proclama que o homem é livre porque «a vida social lhe
permitiu interpor entre a sensação e o acto a demora e a riqueza do pensamento», ou
que, «o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas obreiro de um mundo a
fazer».
Leonardo Coimbra
(Desenho do pintor Eduardo Malta)

Nesta conformidade, o seu Criacionismo gnosiológico projecta-se e amplifica-se no


domínio da realidade espiritual da pessoa, mediante novas coordenações e novas
sínteses que, num processo coerente, fazem brotar a arte, a filosofia e a religião. A
primeira alarga os domínios do sentimento elevando a liberdade da imaginação. A
segundo alarga os domínios da liberdade que se torna plena porque a pessoa toma posse
dos determinismos externos, empenhando-se numa elevação ao Absoluto e Eterno, sem
que tal represente uma renúncia à vida quotidiana e à realidade concreta dos sentimentos
ou à abertura solidária e amorosa ao outro, numa comunicação que institui a verdadeira
comunidade.

Leonardo Coimbra ao lado do Maestro Lacerda

Quanto à religião, é de ver que o Criacionismo, como filosofia da liberdade que se


instaura pelo pensamento e acção da pessoa, nos faz ascender a uma religião que não se
esgota na questão da fé. No Criacionismo, a arte, a filosofia e a religião são postas e não
opostas ao pensamento científico, no exacto sentido em que têm de ser momentos do
pensamento e não imposições dogmáticas. Se o pensamento científico, pelo livre acordo
das consciências, e portanto pela fraternização e pela aproximação do homem ao mundo,
levou à pessoa, esta exige, para a sua vida essencial de acção moral a arte, a filosofia e a
religião. No caso presente, o sentimento religioso é o cume de um processo de
«socialização absoluta» efectuada pelo pensamento, representando uma passagem da
humanidade ao Cosmo, num alargamento de perspectivas em comunhão amorosa e
solidária, porque não dependente já de convenções ou de pactos, mas do império de cada
um sobre a sua alma nobre e livre em dádiva generosa, como emanava, aliás, do espírito
do Cristianismo, sobretudo, na sua vertente Franciscana. Para o Filósofo, o homem não é
já então uma parcela de um todo ou o elemento de uma harmonia, mas a consciência
representativa do Todo.

Perfil de Leonardo Coimbra (Apontamento de S. D.)

Neste ponto, L.C. recorre à Monadologia, inspirado em Leibniz, mas criticando a idéia
de uma harmonia pré-estabelecida, porque contrária à liberdade inerente ao seu
Criacionismo, bem como à dinâmica comunicacional entre as mónadas. O Universo é
criado pelo homem num processo dialéctico que o faz chegar a um Deus não menos
transcendente, pelo fraterno amor de tudo, e não algo criado de uma vez por todas pela
vontade divina. Em última análise Deus é a Luz que ilumina a actividade criadora do
homem, Luz pela qual ele ascende na infinita possibilidade da acção moral. Deus é o
Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move atraído
pela «Grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e compreender é Amar.

L.C. também se afirma aqui como o Filósofo da Saudade, termo que lhe permite
entender a vida como tendência para a superação e o excesso de si própria, superando,
pelo desejo da Unidade, a dimensão separatista que degrada e corrompe. A Saudade será
a expressão do grande «abraço unitário» que nos atrai ao Centro do Grande Circulo do
Ser, porque o que existe de mais material são «as almas afastadas». Assim, a Saudade
será sempre a companheira do homem, enquanto se interpuser uma distância entre ele e
a Luz do Espírito, porque só Esta conseguiria vencer as resistências que criam a sombra
da Saudade.

Finalmente, no plano da educação, à qual dedicou a sua actividade política de


Ministro, compreende-se que mais importante do que a «liberdade de ensino», condição
sem dúvida necessária, seja a defesa da «liberdade pelo ensino», o que o fez também
proclamar que mais importante que a vulgarização do saber era a elevação do vulgo à
altura do homem.
Imagens provenientes de Obras de Leonardo Coimbra - I e II vols., Sant'Anna Dionísio
(org.), Lello & Irmão Editores, Porto 1983.
FILOSOFIA PORTUGUESA (VI): CONCLUSÕES E ADITAMENTOS SOBRE OS ITENS I, II, III,
IV E V

CONCLUSÕES E ADITAMENTOS

Na estruturação do pensamento português moderno, parece evidente que, salvo


melhor juízo, no que se examinou dos pensadores escolhidos (António de Lisboa, Cunha
Seixas, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra), o TERNÁRIO, irrefragavelmente, esteve
presente em suas reflexões teológicas, históricas, filosóficas e teodiceicas. Tabulando
essa influência numérica e exemplificando com três arquétipos e três tipos para cada
pensador escolhido, pode-se estabelecer a Tabela 1 apresentada um pouco mais a frente.
O conceito de arquétipo e de tipo é uma forma simbólica de representar a Unidade,
que se expressa em uma unidade menor, ou seja, o padrão cósmico que se manifesta no
mundo.
E, assim, quanto aos pensadores portugueses investigados, pode-se,
preliminarmente, aduzir que a antropologia antoniana apresenta um sentido otimista que
envolve toda a criação. Como ressaltou Caeiro, o âmago da doutrina de António de
Lisboa situa-se na convergência de dois planos: o humanismo religioso e o moralismo
místico. Há, portanto, uma unidade permanente nos vários temas que o Santo Português
feriu, como é o caso, por exemplo, da síntese especulativa da humildade, o significado da
hierarquização dos conhecimentos sensitivo, racional e místico e a conjugação dos atos
humanos com as exigências da Graça. Irrefutavelmente, a tríade que bussola a Noite
Mística Antoniana apresenta semelhanças inquestionáveis com a Noite Negra da alma,
ensinada nas FRATERNIDADES INICIÁTICAS de todas as confissões esotéricas.
O Mito da Caverna, de Platão, que filosoficamente pode sugerir quatro
interpretações, possui uma quinta, certamente de cariz esotérico-iniciático, que se
coaduna com a reflexão de Santo António e com a Noite Negra das antigas (e
contemporâneas) Escolas de Mistério, nas quais a Tradição sempre esteve preservada.
Não se pode esquecer de que Platão foi Iniciado nos Mistérios do Egito Antigo, e teve
acesso aos mais Sagrados Arcanos. De qualquer forma, o conseguir sair da Caverna, e
sair, e conhecer, e voltar para auxiliar os que ainda não saíram e não conheceram, na justa
medida em que possam compreender, aproveitar e desdobrar dialética e eticamente o
conhecimento ofertado e recebido, é, acima de tudo, um ato, concomitantemente, de
responsabilidade e de solidariedade ou de AMOR e de FRATERNIDADE, por parte do
doador e de mérito do receptor. Ninguém pode dar o que não tem a alguém que não
queira ou seja incapaz de receber. Que fariam os porcos se recebessem pérolas? Que
fariam os homens-sem-alma, se tivessem acesso à Sabedoria Arcana? Por isso, a regra de
ouro da Iniciação é o SILÊNCIO. Afora esta especificidade, CONFRATERNAR É
IMPRETERÍVEL. E ORAR. SEMPRE ORAR MUITO!
Que os iniciados se calem e protejam e selem seus conhecimentos, para que as pérolas
não caiam em mãos profanas. Mas tudo aquilo que puder ser transmitido, não pode mais
ficar trancado ou escondido. Aquarius. 5 de Fevereiro de 1962. A LUZ, obrigatoriamente,
deve ser espargida.
Uma possível correlação dos três estágios da Noite talvez possa ser feita com o
caminho a ser trilhado pela consciência - dor, amor, compreensão - antagônico,
entretanto, aos dois primeiros momentos (Alegria e Dor) da tríade leonardina. Sendo
Santo António um prócer do Catolicismo e Doutor da Igreja, as fontes de referência para
suas reflexões permitem hipotetizar, ou melhor, admitir, que tenham sido a teologia
católica e a gnose cristã, ainda que na altura de seu nascimento, esta última já estivesse
profundamente comprometida e adulterada. Especular em outra direção seria equívoco
ou proselitismo.

TRÍADES
PENSADOR SISTEMA ARQUÉTIPOS TIPOS
(PRINCIPAIS)

DEUS HOMEM
CONTICÍNIO
ANTÓNIO CATOLICISMO INVISÍVEL VISÍVEL
DE LISBOA (EMPRESTADO) MEIA-NOITE
INCORPÓREO CORPÓREO
AURORA

O SER
SER SUPREMO O SER
SINGULAR
CUNHA SEIXAS PANTITEÍSMO MANIFESTAÇÃO IMENSIDADE
ESPAÇO
HARMONIA ETERNIDADE
TEMPO

HETEROGÊNEO
HOMOGÊNEO
HOMOGÊNEO
PERFEIÇÃO
PANTEÍSMO PERFEIÇÃO
HETEROGÊNEO RELATIVA
SAMPAIO BRUNO (HETERODOXO)
(EMPRESTADO) TEMPO
HOMOGÊNEO TEMPO ALTERADO
INFINITO
(ESPAÇO)

MÔNADA
ALEGRIA DEUS
HARMONIA
DOR HARMONIA PLENA
LEONARDO COIMBRA CRIACIONISMO PROGRESSIVA
GRAÇA INFINITO MORAL
CONSCIÊNCIA
RELIGIOSA

Quadro 1: Relação Entre os Pensadores Inventariados,


Sistemas, Tríades, Arquétipos e Tipos (Principais)

José Maria da Cunha Seixas foi considerado pelo meu amigo e saudoso Filósofo
António Quadros como o pensador português que assumiu o verdadeiro significado da
filosofia da história. Foi o primeiro filósofo lusitano que intentou conciliar imanência e
transcendência. Não aceitando a existência verdadeira do mal, acreditou na harmonia
infinita, via pela qual o ser (imortal), em sua vida ilimitada, em um progresso ascensional
infindável, busca o Absoluto. Nesse evolver, o homem irá com a memória do seu passado
percorrer outros planos de existência e de consciência, mantendo nessa trajetória sua
integral personalidade em direção a um perpétuo ideal. Seu sistema é, ao mesmo tempo,
teleológico e contingente. Entretanto, não se percebeu no exame integral da obra de
Cunha Seixas a explicitação detalhada de como acontece essa peregrinação.
E, nesse caminhar dialético, tudo se passa em conformidade com as Leis do Ser
(Unidade), da Manifestação (Relação) e da Harmonia (Ordem). Com isto em mente, Cunha
Seixas ensinou que a vida do pensamento tem seu ponto de partida na intuição, que a
reflexão, pelo processo de abstração, termina por aperfeiçoar. A intuição, contudo,
constitui-se em mera afirmação espontânea, e a reflexão, por outro ângulo, não consiste
na ciência. Na elaboração psicológica há um terceiro termo, que é a síntese. Com base
nessas postulações, o Trevoense entendeu que o sentir da humanidade oferece boa lição.
A idade primitiva - muitas vezes chamada paraíso terrestre - era uma época em que não
havia desequilíbrios marcantes nem desarmonia sensível. A segunda idade foi um tempo
de lutas e de contradições. A terceira idade deverá conciliar a humildade do viver primevo
com as dificuldades e as inconsistências da segunda idade. Nota-se, aqui, a profunda
influência exercida por Krause no que concerne à filosofia da história por este concebida.
O movimento dialético seixino tem um desenho muito semelhante aos períodos de
indiferenciação, de oposição e de harmonia do Panenteísmo Krauseano (Filosofia
Novíssima).
Um último exemplo do pensamento tríadico de Cunha Seixas é avultado na Teoria do
Amor. Nela o ser é duplo, representado pelo homem e pela mulher. A manifestação
opera-se pela união dos dois seres no casamento. A harmonia aparece no último termo,
que é a família, que em relação à sociedade é um ser...
Não se pode, todavia, deixar de registrar que Cunha Seixas, nos Princípios Gerais de
Filosofia, sua última (e magna) obra, chegou a propor para algumas ciências específicas,
uma vinculação e uma absoluta dependência à sua Lei Pantiteísta, como foi o caso, por
exemplo, da matemática e da química. Como se viu, Cunha Seixas regeu todas as suas
introspecções pela LEI DO SER, DA MANIFESTAÇÃO E DA HARMONIA. Física, Direito,
Estética, Mecânica etc. não poderiam ficar (como não ficaram) excluídas das meditações
do Pensador Beirão.
Já Sampaio Bruno posicionou o problema do mal (contrariamente a Cunha Seixas) no
centro de uma teurgia e de uma teleologia próprias. Para Bruno, o mal existe. Sim. Por ter
havido uma cisão entre Deus e o Universo, o mal, a opressão, o sofrimento, a dor, a
injustiça, a discórdia e toda e qualquer forma de desarmonia, são oriundos da perda
(parcial) da Onipotência Divina. A Onipotência dando lugar à Onisciência produziu o mal,
fautor do erro e da angústia. Em Bruno, o ser age para um télos e, novamente, três
instantes aparecem em suas reflexões: auto-libertação, libertação de seus irmãos e
libertação universal. E por isso, justamente por isso, o fim supremo e único do ser, a juízo
de Bruno, é eliminar o mal em qualquer instância que se apresente. Eliminado o mal, a
reabsorção ou reintegração do heterogêneo no Homogêneo acontecerá. Refletindo sobre
a questão do mal, que no transcurso da história da filosofia tem subsistido sobre duas
vertentes singulares (vale dizer, metafísica e subjetivista, tem-se: no primeiro caso, ou é o
próprio não-ser ou uma dualidade do ser, e, no segundo, um juízo ou um desejo negativo),
teve, na Filosofia Portuguesa em geral — e em particular em Bruno, como se viu — curso
e interpretação particulares. Ao se considerar o mal sob a ótica metafísica, acaba-se por
cair na velha discussão estóico-epicurista, qual seja: Deus ou quer tirar os males e não
pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é
impotente: o que não pode ser em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que é
igualmente contrário a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto,
não é Deus. Se quer e pode — o que só convém a Deus — de onde provêm a existência
dos males e por que não os elimina? Por outro lado, o mal pode ser entendido como
desvalor, ou seja, objeto de um juízo negativo de valor, contrariando regras ou normas de
ordem natural ou comportamental. A noção de Bruno sobre esta categoria é metafísica,
mas, smj, subjetivamente canhestra, e, tanto quanto as outras as quais rapidamente se
aludiu (e que mais à frente serão novamente reapreciadas), não se compatibiliza com o
entendimento esotérico tradicional, que, no limite, admite ser o mal tão-só ausência da
LUZ, e, de permeio, interpretação ou admissibilidade equivocada do funcionamento da
LEI. O mal é a REALIDADE; o bem, a ATUALIDADE. Como, ordinariamente, o ser singular e
a humanidade coletivamente não têm acesso direto e imediato à totalidade da
ATUALIDADE CÓSMICA, percebem, entendem ou decodificam certas manifestações
como mal. Este equívoco é produto da ignorância ainda prevalecente no atual estágio da
consciência dos seres. Será ultrapassado. Enquanto não é morte, assassinatos, guerras,
invasões, estupros, roubos, degolas, penas capitais e desarmonias em geral.
A tríade brunina expressa em A Idéia de Deus é notadamente circular, não-teológica,
mas teúrgica, absolutamente incompatível com a Tradição Arcaica, com a Cabala, com a
Doutrina Teosófica, com a Antroposofia e com os princípios esotéricos veiculados pelas
fraternidades iniciáticas autênticas. Constitui-se, salvo melhor argumentação, de uma
metafísica panteísta heterodoxa, que recebeu de Leonardo Coimbra as mais pesadas e
fundadas objeções. Acompanha-se Leonardo, e até com mais veemência, em tais
objeções (que já foram antecipadas no exame parcial do pensamento brunino).
Entretanto, na altura deste trabalho-pensamento, acredita-se ser conveniente,
tangenciar superficialmente o entendimento dos ocultistas – particularmente os
associados ao pensamento de Helena Petrovna Blavatsky – no que se refere aos DOIS
UNS. Há teosoficamente o UM do Plano Impenetrável, do Incognoscível e do Absoluto,
sobre o qual nenhuma explicação é pertinente, pois é inacessível à Inteligência. O que
caracteriza este UM são as TREVAS – REALIDADE ÚNICA E VERDADEIRA – base e fonte
da LUZ. Segundo esta concepção, as TREVAS são PURO ESPÍRITO e a LUZ é tão-só
matéria derivada. As TREVAS são o ABSOLUTO VERDADEIRO. Demon est Deus inversus.
O SEGUNDO UM está associado ao plano das Emanações; é o reflexo luminoso do
PRIMEIRO UM – é o LOGOS DO UNIVERSO DA ILUSÃO, e é andrógino por natureza. Emite
de si mesmo 7 (sete) raios, semelhantemente aos Três Sephiroth Superiores que
produzem os Sete Inferiores. Nesse sentido, e somente nesse sentido, o Homogêneo
converte-se no Heterogêneo, que, realmente, sempre foi, é e será parte integrante do
próprio HOMOGÊNEO. Tropologicamente argumentando, Homogêneo e Heterogêneo
formaram, formam e formarão perpetuamente uma UNIDADE INDIVISÍVEL. No Gênese I,
6 está escrito: E Deus disse: Faça-se o firmamento... e Deus – o Segundo cumprindo o
Decreto emanado do Primeiro – fez o firmamento (Gênese I, 7). Mas é preciso alcançar o
claro entendimento místico, teosófico e iniciático de que este Poder (o Segundo Deus ou
Aiôn) e todos os Poderes do Universo, não evoluem uns dos outros, mas são,
inapelavelmente, apenas aspectos variados da mesma e única manifestação de AIN-SOPh
– o TODO ABSOLUTO ou PRIMEIRO UM, ou seja, a CAUSA SEM CAUSA. Assim
considerando, a Humanidade não é o produto completo do ABSOLUTO (PRIMEIRO UM); é
em realidade filha dos ELOHIM (ALHIM). Em outros termos: a Humanidade,
originariamente, proveio de um GRUPO SETENÁRIO DE ELOHIM (Homem Celeste). A
própria interpretação teológica do versículo de João, o Evangelista (E a LUZ brilhou nas
TREVAS, e as TREVAS não a compreenderam) vem dando azo a especulações
contraditórias sobre a Criação (Sístole-Diástole) e à produção de mitos e figuras mal
compreendidas, cujas distorções, paralelamente à ilusão da mediunidade visionária (como
advertiu Rudolf Steiner) vêm arrastando o livre-arbítrio para o âmbito da •••••• ••••••.E,
assim, o novo dogma transformou-o no maligno. Este conhecimento Bruno não acessou,
daí a incongruência de seu pensamento. Nesta oportunidade, deseja-se clarificar que o
ABSOLUTO citado (e por citar) em várias passagens das reflexões anteriores, é o que se
refere ao PRIMEIRO UM, e a possibilidade de unificação consciente com este plano
vibratório é uma hipótese-certeza que depende exclusivamente de cada ser singular,
ainda que, contraditoriamente (mas apenas na exterioridade), esse tempo assintótico só
possa acontecer quando tudo e todos voltarem a repousar no seio desse mesmo
Absoluto. Esta afirmação feita desta forma parece um paradoxo. Então, cada um terá que
realizar esta compreensão, s o l i t a r i a m e n t e, no Santuário Sagrado do seu Coração.
Eu estou no outro, e o outro está em mim. Este é realmente o entendimento elevado –
atual – do sentido esotérico, místico e iniciático embutido na famosa frase Eu e o Pai
somos Um. Verdadeiramente é mais do que isto! Deste entendimento, Deus manifesta-se
de dois modos: a) mânvâantâra – DEUS EXPLICITUS: atividade ou existência (Diástole); e
b) prâlâya – DEUS IMPLICITUS: passividade ou involução (Sístole). No homem, esta Lei
Cósmica assemelha-se aos estados de vigília e de sono. Portanto, em última instância, o
Ser (Sein) – como compreendeu hermeticamente Fichte – é Uno, e o ser só O compreende
como Múltiplo (Dasein), vale dizer, por intermédio da existência manifesta. PRIMEIRO UM
—› Idéias Arquetípicas —› Vir-a-Ser(!?) —› Criação(!?) —› Retorno(!?). Enfim, tudo se
resume a uma perpétua transferência numênico-fenomenal, e vice-versa. Tudo que é, foi
e será, e as incontáveis formas de manifestação do Ser, ao desaparecerem, continuarão a
existir como reflexos. Mais uma vez impõe-se a leitura da obra platônica. Esta é, smj, a
melhor aproximação que é dada a um mortal fazer, pois, como disse Hermes Trismegistus,
falar de Deus é impossível pois O que não possui corpo, nem aparência, nem forma, nem
matéria, não pode ser percebido pelos sentidos. Mas a hipótese–certeza de unificação
com o PRIMEIRO UM é assintótica, é meritocrática e é plenamente acontecível!
Estagnação, em qualquer sentido, é uma inviabilidade. E, certamente, a •••••• •••••• não
prevalecerá.
É conveniente, portanto, sobre outro aspecto, que se repita (ampliadamente) nestas
Conclusões e Aditamentos, uma parte das conclusões deste pesquisador (em
colaboração) incluídas no trabalho Influência do Pensamento Martinista na Obra de
Sampaio Bruno, apresentado no Colóquio Antero de Quental Dedicado a Sampaio Bruno,
tendo em vista que, credita-se equivocadamente em Portugal parte da metafísica
heterodoxa brunina, à inverídica possibilidade de ter Sampaio Bruno sofrido, de alguma
maneira, influência esotérica de Saint-Martin ou do Martinismo. Salvo melhor
informação, mas este autor curva-se à esta possibilidade, essa influência não ocorreu
pelos seguintes e principais motivos: a) a primeira pista aparece na Introdução da obra
brunina Os Cavaleiros do Amor (Plano de Um Livro a Fazer), da lavra de Joel Serrão.
Apesar de as primeiras leituras do Especulativo Portuense terem sido de inspiração
maçônica, ele próprio nunca foi iniciado nesta Fraternidade, como parece nunca ter sido
vinculado a qualquer fraternidade esotérica. Textualmente afirmou em 26 de janeiro de
1902: Não simpatizo com associações secretas porque é força de sua essência que elas
fazem prevalecer sobre a idéia de justiça para todos a idéia de proteção para alguns; e,
assim, sacrificam o direito do profano à iniqüidade do iniciado, com cuja causa o laço da
misteriosa solidariedade se aperta. Não cabe neste momento discutir o posicionamento
ou o conceito que Sampaio Bruno derivava das sociedades esotéricas (que
presumidamente não conhecia, e que, se conhecia, conhecia o que podia ser conhecido),
melhor, das fraternidades iniciáticas (sempre se pensando naquelas vinculadas à Tradição
Primordial). Fica-se, por isso, tão-só no registro, e se propõe uma questão: que faria a
humanidade, hoje, se desvendasse os mistérios do Arqueômetro de Saint-Yves
d’Alveydre, e tivesse acesso aos conhecimentos que os atlantes possuíram (e possuem)?
Mal-aventurado aquele passar a PALAVRA; b) em segundo lugar, sobre os conceitos
expressos pelo Ilustre Filósofo Luso no que concerne à criação a partir do nada, à noção
de pessoa, à questão do mal ( já anteriormente examinada), ao milagre, à providência, ao
estado normal do homem, à idéia de Deus e de sua Onipotência, e, finalmente, à própria
diminuição do espírito puro, nenhum deles se compatibiliza, sob qualquer ângulo, com a
tradição esotérica em geral, muito menos com os princípios martinistas em particular; c)
terceiro, o próprio conceito que Sampaio Bruno admitia para o trabalho desenvolvido nas
sociedades ou fraternidades esotéricas, conforme declaração textual apresentada no
item a; d) o fato de à época da expansão da Tradicional Ordem Martinista (final do século
XIX e início do século XX), Portugal (ao que se presume) não ter instalado nenhuma
heptada martinista, é outro indicativo a ser substantivamente considerado (mas, o
Martinismo tem tantas correntes!); e) o quinto ponto é a não confissão ou declaração do
pensador dessa influência. Não há, inclusive, nenhuma referência que justifique
concretamente a absorção ou exposição em suas obras de qualquer princípio, lei ou
postulado martinista; e f) por último, o Martinismo, como foi anteriormente
sinteticamente apresentado em uma página deste site, é, em última instância, uma
SENDA CARDÍACA que se baseia duplamente na razão e na emoção (ou mais
esotericamente no LIVRO DO HOMEM e no LIVRO DA NATUREZA) para reintegração
assintótica do homem no seio do Absoluto. Sampaio Bruno pensou de maneira diversa o
processo de emancipação do homem e de sua redenção (reintegração).

Por tudo isto, pode-se, indubitavelmente, concluir que Sampaio Bruno, no que pese (e
pesa muito) o caráter religioso de sua Filosofia, a universalidade de seu pensamento, o
conteúdo metafísico de sua obra e a própria razão da finalidade e da existência do
Universo e remissão do homem, não demonstrou em sua obra qualquer influência, ainda
que adjetiva, dos princípios definidos pelo Martinismo autêntico, como também de
nenhuma outra ordem esotérica tradicional. E assim, princípios martinistas, uma coisa;
panteísmo heterodoxo brunino, outra completamente diferente.

Insistir em invocar Joséphin Péladan (citado em trabalho publicado recentemente) ou


outros iniciados para tentar justificar uma presumida (ainda que possível) história secreta
ou sagrada de Portugal desvelada por Sampaio Bruno, hipotetizando que tenha sido um
iniciado ou recebido informações de caráter esotérico que chegassem a ponto de influir
em seu pensamento derradeiro, é, no mínimo, desconhecer o significado e o valor
autêntico do vocábulo. Que os treze capítulos do livro Os Cavaleiros do Amor (Plano de
um Livro a Fazer), último trabalho (incompleto) de Sampaio Bruno, promovam, sob certos
aspectos uma autêntica aventura à descoberta do significado oculto, como entendeu
Joaquim Domingues e deixou escrito no trabalho Os Cavaleiros do Amor ou o Romance
da Razão, publicado no Colóquio já referido, possam, por extensão, apontar no sentido
de uma velada influência esotérica para o conjunto da obra do Portuense Eminente, é, no
mínimo, uma licença literária. Só o pleno desconhecimento das vias pelas quais se
manifesta a Tradição pode induzir a semelhante equívoco (ainda que bem-intencionado).

Negar, por outro lado, a influência de Bruno no pensamento português (e brasileiro),


sobremodo ao tempo da Renascença Portuguesa, é, negar o próprio pensamento de
expressão portuguesa, o que é contraditório e absurdo. E que importa, enfim, se Sampaio
Bruno sofreu influência rosacruz, martinista, maçônica, cabalística etc.? Não importa
realmente nada. Ainda que, a juízo deste pesquisador, nada disso tenha adjetiva ou
substantivamente acontecido, o que interessa é o que e o como pensou. E por ter
pensado em português para os portugueses, brasileiros e para o mundo, merece ter seu
nome inscrito na História da Filosofia Portuguesa, e ainda que dele se discorde, no todo
ou em parte (o que é absolutamente lícito a todo e qualquer pensador), merece do
pensamento contemporâneo o mais profundo respeito, e melhores e maiores esforços
para compreender o lineamento especulativo de suas reflexões.
Por último, deve-se esclarecer que todos os países, em todos os tempos, tiveram suas
histórias secretas. O poder político estabelecido e as religiões de todos os credos sempre
procuraram por todos os meios (lícitos e ilícitos) manter os territórios conquistados e o
poder temporal. E a última coisa que o poder jamais permitiu, passivamente e de bom
grado, foi sua diluição e/ou fragmentação. Daí as histórias secretas... Daí as elucubrações
fantasiosas... Daí os apotegmas falazes... Daí as especulações equivocadas... Daí as
conclusões inverossímeis... Daí, até e compreensivelmente, as licenças literárias...

Nada indica que, no passado, Portugal tenha sido um pólo especial irradiador da
Tradição. O fato de ter acolhido muitos templários depois de sua perseguição na França
por Felipe - o Belo (com apoio de Clemente V) é tão-somente parte da coisa, não a coisa
completa. A calcinação do último – o vigésimo segundo – Grande Mestre dos Templários,
iniciou um período longo de dormência da Tradição, que só veio a acordar no século (XX)
que recentemente se encerrou. A Tradição, por aquela época, salvo melhor informação,
centrava-se em outros pontos da Terra. Hoje, entretanto, mais do que sabe a maioria dos
portugueses, Lisboa oculta em uma de suas ruas uma Mansão Secreta da ... e
eventualmente o ALTO CONSELHO DO A ... ali se reúne. MAHA. Para informações mais
detalhadas e mais concertadas sobre este tema, recomenda-se a consulta às obras
singulares de Raymond Bernard[1].

As objeções de Leonardo Coimbra ao pensamento de Sampaio Bruno (Se houve


diminuição de Deus, Nele nunca houve perfeição. Este foi o argumento forte e
incontestável de Leonardo para contraditar as especulações bruninas em A Idéia de Deus)
são absolutamente consentâneas, em virtude de ter concebido em seu sistema -
Criacionismo - um Universo de mônadas. O mal, para Leonardo, é um cousismo moral, e,
portanto, redimível. Ainda que o drama humano seja lutar o bom combate com o
destino(?), ainda assim, pensou Leonardo, Cristo é a redenção, redimindo as almas e o
mundo. Entretanto, se bem se entendeu o pensamento do Filósofo Criacionista, ainda
que haja possibilidade de redenção pela Graça e em Cristo, tal aspiração e tal
possibilidade não poderão surgir do nada, ou, por outro entendimento, não poderá
ocorrer uma simples redenção salvífica que se acumplicie com e contemple o hedonismo,
a irresponsabilidade, a intolerância, o egoísmo, a criminalidade, a omissão ou comissão,
enfim, a distorção consciente e malévola do propósito criacionista da existência. O
homem é um ser social, e, como tal, deve aspirar a uma vida social justa e fraterna. Há
uma frase lapidar de Leonardo, que é sempre festejada e lembrada pela clareza com a
qual resumiu suas reflexões nessa matéria:

O homem não é
uma inutilidade
num mundo feito,
mas obreiro
de um mundo a fazer.

Uma breve referência e alguns acréscimos serão agora propostos relativamente ao


ternário leonardino exposto n’A Alegria, a Dor e a Graça. A avaliação e a discussão sobre
esta tríade já foram encaminhadas ao se resumir apocopadamente e insuficientemente —
reconhece-se — o pensamento do Filósofo. Mas, com uma parcela bastante ponderável
de dúvida e de incerteza quanto ao teor das equivalências indicadas a seguir, reproduz-se,
para efeito de reflexão adicional, as conclusões de Pinharanda Gomes sobre esse ternário
metafísico, apresentadas em seu livro A Teologia de Leonardo Coimbra: Quem estiver
habituado à liturgia do rosário mariano facilmente verá, nesses três instantes, os
mistérios gozosos (alegria), os mistérios dolo-rosos (dor) e os mistérios gloriosos (graça).
[2]

A questão que se impõe refletir é atinente ao aspecto de que Leonardo Coimbra ao


escrever a obra supradita, fê-lo por volta de 1915, ou antes, já que sua primeira edição
data de 1916, estando, a essa altura, salvo incorreção histórica, rompido(?) ou afastado
do Catolicismo. Por esse motivo, acredita-se, não utilizaria conceitos e categorias da
religião que temporariamente abandonara, para sustentar suas reflexões metafísicas. Se
isso ocorreu — curva-se aqui à possibilidade da dúvida — incoerência de Leonardo. Se
não, o que se prefere e se assina, a postulada influência da liturgia do rosário mariano
sugerida por Pinharanda só pode ter acontecido — se realmente aconteceu! — em
Leonardo Coimbra, inadvertidamente e/ou inconscientemente. Recorda-se que a
conciliação introspectiva entre razão e religião irrompeu em Leonardo no apagar das
luzes de 1935 e de sua própria existência terrena, ou seja, aproximadamente vinte anos
depois de A Alegria, a Dor e a Graça ter sido publicada pela primeira vez. De qualquer
maneira, conjeturas à parte, servindo-se da categoria máxima que sempre defendeu – a
LIBERDADE – manifestou livremente seu desejo de retornar à sua origem religiosa
apreendida em Borba de Godim, e de poder falecer – ainda que prematura e
inesperadamente – em paz com sua consciência e no seio do Catolicismo. A ninguém é
dado o direito de o censurar. Bem-aventurado aquele que se reconcilia consigo e com o
Deus de sua Compreensão. Bem-aventurado Leonardo Coimbra.

E assim, chega-se prazerosamente ao final desta pesquisa que começou, no âmbito


da portugalidade, com o primeiro representante oficial da cultura (teológica) lusíada que
se projetou para além de suas plagas natais, para terminar com o mais respeitado e
discutido filósofo da contemporaneidade portuguesa. Apesar de ambos radicarem suas
especulações sobre Deus, o Mundo e o Homem em uma metafísica criacionista, Santo
António atrelou suas lucubrações a uma hermenêutica bíblica (que só aparentemente
privilegia o horizontalismo). Entretanto, como se deixou entrever no exame da Noite
Mística, os três estágios do processo assemelham-se às três fases da GRANDE OBRA:
NIGREDO, ALBEDO e RUBREDO. Acredita-se, porém, que, apesar de ter aplicado o
ternário em sua mística, não pensou deliberadamente sobre Alquimia ao construir sua
Doutrina.

Segundo a Bíblia, Deus operou a criação a partir do nada (lembra-se de que, em


oposição a esse juízo, Demócrito acreditava que o nada tem existência tanto quanto o
alguma coisa). Desde o tempo em que a concepção criacionista católica se impôs, muitas
aporias que haviam afligido a ontologia grega foram(?) superadas. Assim, ainda que o
criado tenha sido fabricado do nada, segundo o Criacionismo Católico, ele é positivo,
porque toda a criação é um dom de Deus, por causa do bem. Entretanto, a criação a partir
do nada privilegiou obviamente a fé em detrimento da razão, e a questão continuou em
aberto para os que não se afiliaram ao Catolicismo e para outras confissões religiosas que
não adotaram (nem adotam) o mesmo dogma.

Já o Criacionismo Leonardino é, fundamentalmente, uma teoria do conhecimento,


que recusou os postulados do Empirismo e do Idealismo, acolhendo e respeitando,
contudo, os dados experienciais. Na Filosofia Criacionista proposta por Leonardo, o
conhecimento é o resultado de uma atividade racional que organiza intuições. E por isso,
o pensamento é a realidade mais indubitável e profunda.
Cunha Seixas, como se viu, ao romper com o Catolicismo absorvido em Trevões, de
raiz flagrantemente Mariana e sentimental, criou um sistema original ao qual denominou
Pantiteísmo (tendo como característica lateral, o desvalor de todos os estados de efusão
mística), cuja estrutura tem como viga-mestra a convicção de que DEUS EM TUDO ESTÁ,
MAS É DISTINTO.

E Sampaio Bruno, ainda que optando por uma vereda heterodoxa de coloração
panteísta, ofereceu uma metafísica redentora, não apenas do ser humano, mas universal
e fraterna de todos os seres, rumo a um Homogêneo misteriosamente alterado. Ainda
que se lhe possa fazer oposição, é inegável sua preocupação teleológica, na qual
sobressai uma permanente catequese do bem. Bebeu em Plotino, presume-se. Só que
superficialmente. Plotino era um Iniciado.

Conclusivamente, o que fica saliente no pensamento português é a ininterrompida


inquietação de seus filósofos em despertar a alma lusitana para a livre reflexão das
questões magnas da Filosofia, cujo tema por excelência circunscreve-se à idéia do
Absoluto.

NOTAS

1. BERNARD, Raymond. (Grande Mestre da Ordem Rosacruz – AMORC, da França e


Países de língua Francesa. Legado Supremo do Imperator na Europa). Encontros com o
insólito/Rencontres avec l’insolite. Tradução da Equipe Renes. Rio de Janeiro: Renes,
1970, 245 p.
______. Mensagens do Sanctum Celestial/Messages du Sanctum Céleste. Traduzido da 4ª
ed. francesa. Tradução de Vânia M. Gelineaud. Rio de Janeiro: Renes, 1973, 328 p.

______. Fragmentos da sabedoria rosacruz/Fragments de sagesse rosicrucienne. 2ª ed.


Tradução de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Renes, 1974, 226 p.

______. Novas mensagens do Sanctum Celestial/Nuveaux messages du Sanctum Céleste.


Traduzido da 2ª ed. francesa. Tradução de Aurora P. de Carvalho. Rio de Janeiro: Renes,
1974, 348 p.

______. Mansões Secretas da Rosacruz/Les maisons secrètes de la Rose-Croix. Tradução


de Rosa F. Paris. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1974, 288 p.

2. PINHARANDA GOMES, Jesué A teologia de Leonardo Coimbra. Lisboa: Guimarães


Editores, 1985, 198 p., p.97.

OBSERVAÇÃO: A bibliografia e as referências bibliográficas sobre os pensadores


portugueses inventariados encontram-se, neste site, nas páginas referentes a cada um.
LINK DE CADA CAPITULO RETIRADO DO SITE:

http://paxprofundis.org/iframelivros1.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (I): CONSIDERAÇÕES SUCINTAS SOBRE A FILOSOFIA


PORTUGUESA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa1/filosofiaportuguesa.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (II): A DOUTRINA MÍSTICA DE ANTÓNIO DE LISBOA


http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa2/filosofiaportuguesa2.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (III): O PENSAMENTO PANTITEÍSTA DE JOSÉ MARIA DA


CUNHA SEIXAS
http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa3/filosofiaportuguesa3.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (IV): O MESSIANISMO DE SAMPAIO BRUNO


http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa4/filosofiaportuguesa4.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (V): O CRIACIONISMO DE LEONARDO COIMBRA


http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa5/filosofiaportuguesa5.html

• FILOSOFIA PORTUGUESA (VI): CONCLUSÕES E ADITAMENTOS SOBRE OS ITENS I,


II, III, IV, E V
http://paxprofundis.org/livros/filosofiaportuguesa6/filosofiaportuguesa6.html

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