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Editorial

Conceito é uma revista de Filosofia e Ciências do Homem.


Ela resulta da colaboração entre dois centros, o Centro de Filo-
sofia das Ciências da Universidade de Lisboa e o Centro de
História e Filosofia da Ciência e Tecnologia da Universidade
Nova de Lisboa.
Aqui a Filosofia toma para si a tarefa de criar e esclarecer
um espaço onde as realidades do humano - e do inumano – se
tornem ao mesmo tempo um problema, programa e facto de
conhecimento.
Há movimentos de interdisciplinaridade que resultam ape-
nas do encontro e cruzamento de saberes. Fundados na boa
vontade e na curiosidade, nunca chegam a efectivar-se na cons-
tituição de um domínio de estudo preciso. Carecem de uma
ontologia própria, de um plano de entendimento comum, e de
um mesmo critério de inteligibilidade dos seus objectos. É mui-
tas vezes o trabalho do conceito que permite passar dessa aspi-
ração à coisa mesma. Mais do que um termo no interior de um
léxico, e menos do que uma tese numa teoria, o conceito recor-
ta territórios da experiência segundo pregnâncias descritivas e
explicativas que podem ser partilhadas por modelos diferentes
de conhecimento. Por isso, a criação de conceitos é sempre um
exercício a várias vozes. Se define o trabalho por excelência da
filosofia, na procura da boa definição e da iluminação exacta, a
criação de conceitos só cumpre essa tradição inventada por
Platão e Aristóteles se nela se vierem cristalizar as grandes per-
cepções das ciências do nosso tempo. Compreende-se que as
grandes revoluções científicas tenham sido quase sempre acon-
tecimentos interdisciplinares em torno de novos conceitos.
Desde o conceito de infinito da revolução copernicana, ao con-
ceito de inteligência artificial das ciências cognitivas, o nosso
conhecimento cresce ao ritmo do conceito. E esses conceitos
têm sempre a forma de uma polifonia.
Talvez o vazio teórico que nos últimos 20 anos se vem insta-
lando no interior das ciências do homem seja também a conse-
quência de uma demissão da filosofia da sua vocação para
recortar com rigor territórios desse pensável que habita os cam-
pos inevitavelmente interdisciplinares da sociologia, da antro-
pologia, da psiquiatria, da linguística, da teoria da literatura, da
história, do direito ou da economia.
O programa da revista é assim o do anfitrião cortês: o que
abre as portas da sua casa e solicita os convidados a dialogar
entre si; e se participa no diálogo, fá-lo sempre como se também
de outro convidado se tratasse.
Esta casa chama-se Conceito.

José Luís Câmara Leme


Nuno Nabais
Loucura e Desrazão

O primeiro número da revista CONCEITO implicou a cola-


boração entre filósofos, psiquiatras, historiadores e estudiosos
da literatura. Procuramos fazer uma história das representações
da loucura em Portugal, acompanhando dois domínios: aquele
que pertence à história propriamente dita, e que se dirige aos
arquivos dos asilos e à bibliografia médica, e aquele outro que
procura reconstituir genericamente as representações do louco,
quer positivamente enquanto um modo da condição humana,
quer negativamente, como o outro da razão. Por isso escolhe-
mos para este primeiro conjunto de trabalhos o título de “Lou-
cura e Desrazão”.
No plano institucional este número da revista apresenta par-
te do material que se tem produzido no interior do projecto de
investigação Psiquiatria e Fenomenologia na primeira metade
do Século XX em Portugal, do Centro de Filosofia das Ciências
da Universidade de Lisboa, criado em 2003. Mas é o prolonga-
mento de um outro, com o título História da Loucura em Por-
tugal, igualmente financiado pela FCT, e que se desenrolou
entre 1999 e 2001 no Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa.
Desde o início que os colaboradores deste projecto se con-
frontaram com uma questão prévia: será que, em Portugal, se
verifica essa mesma correlação entre a história da psiquiatria e a
história das representações da razão e da verdade que Michel
Foucault descobriu estar na origem da consciência moderna?
Haverá algum paralelo entre as metamorfoses da figura do lou-
co, tal como se constituem nos tratados médicos portugueses, e
as diferentes aproximações à ideia de humano que atravessam o
ensaísmo disperso dos nossos pensadores? A resposta só pode
ser negativa. No plano da análise da intersecção directa dos
domínios, o ensaísmo e a psiquiatria portuguesas foram quase
indiferentes entre si. A psiquiatria em Portugal, respondeu
genericamente a um princípio de actualização de conhecimen-
tos e de eficácia terapêutica, colocando algumas vezes os nossos
investigadores na condição de pioneiros. Apesar de estar per-
manentemente marcada pelas questões antropológicas da cons-
ciência e da racionalidade, e atenta sempre à transformação dos
modelos de explicação e de verdade produzidos pela filosofia do
seu tempo, a psiquiatria portuguesa nunca se reclamou dos
trabalhos de ensaio ou de história da filosofia escritos em Portu-
gal. Os pensadores que em Portugal se reclamavam da ideia de
filosofia, pelo seu lado, sempre se alimentaram de uma soberana
indiferença, não só pelo trabalho das ciências positivas, como
pelos adquiridos dos programas teóricos que foram surgindo no
centro da Europa.
Assim se explica que alguns dos textos que hoje reconhece-
mos como parte da história do que seria o “pensamento portu-
guês” tenham sido escritos por médicos alienistas. Júlio de
Matos continua a ser paradigmático, mas também Miguel Bom-
barda, Egas Moniz, Barahona Fernandes, Sobral Cid ou, mais
recentemente, Coimbra de Matos. Também é reveladora a
ausência nas obras do ensaismo português de ressonâncias
antropológicas, estéticas, políticas ou culturais de algumas
mutações decisivas do campo clínico que se verificaram em
Portugal nos últimos 100 anos. A chamada “filosofia portugue-
sa” foi totalmente indiferente às questões da loucura, mesmo
quando a loucura aparecia como explicação para alguns casos
marcantes da cultura contemporânea - Nietzsche, Strindberg,
Van Gogh, ou, na literatura portuguesa, Antero de Quental,
Manuel Laranjeira, Mário de Sá Carneiro. A superficialidade
com que alguns autores trataram o tema da loucura – como
Leonardo Coimbra ou Teixeira de Pascoaes - deixa perceber
alguns dos factores da pobreza da tradição do ensaísmo em Por-
tugal. Pode mesmo dizer-se que a exclusão do tema da loucura
no pensamento filosófico de Portugal teve um efeito devasta-
dor. Apagando da sua agenda a loucura, o pensamento portu-
guês exclui-se de alguns dos problemas centrais da cultura con-
temporânea.
Isso significa que o que se foi escrevendo entre nós sobre a
loucura do ponto de vista especulativo só tem uma utilidade em
negativo. Nenhum texto que reclame da ideia de filosofia escri-
to por autores portugueses faz parte de algum capítulo de uma
história da loucura em Portugal. As derivas poéticas sobre a
vida interior do louco que se encontram nas obras de Teixeira
de Pascoaes e de Leonardo Coimbra não excedem o regime de
uma consciência irónica da razão que se encontrava já em O
Elogio da Loucura de Erasmo. Nenhum dos nomes que hoje se
pretendem elevar a património do pensamento português se
demorou com rigor nas questões da loucura, como doença men-
tal, ou da desrazão como uma outra forma da experiência. Por
isso, tudo o que existe sobre a loucura em Portugal pertence ao
campo médico, e tenuemente ao campo literário. Torna-se
quase impossível fazer em Portugal uma história da loucura que
não se limite aos arquivos dos asilos, à evolução da doutrina
psiquiátrica, ou à ficção de uma racionalidade excêntrica ou
extravagante.
O projecto que orienta este número da CONCEITO
parte de duas convicções: a) a urgência de reconstituição dos
principais paradigmas que orientaram a psiquiatria e a prática
dos asilos em Portugal e, b) da necessidade de recorrer a mode-
los filosóficos exteriores ao espaço do ensaísmo português para
compreender a instauração clínica e antropológica da loucura
em Portugal. Isso faz com que o nosso projecto se oriente por
três linhas nem sempre convergentes. Uma, que se inscreve
integralmente num trabalho de arquivo, outra que acompanha
alguns textos paradigmáticos da literatura portuguesa contem-
porânea, e uma terceira que arranca de Foucault e procura
utilizá-lo como ferramenta para a leitura desse arquivo médico
e dessa tradição literária.
No primeiro domínio, os campos de trabalho têm sido os
seguintes: 1. descrições pessoais de formas de sofrimento men-
tal, 2. legislação sobre o encarceramento da loucura a partir do
sec. XVII. 3. análise do regime de práticas perante a loucura e a
progressiva constituição da ciência médica da loucura. Aqui se
situam os trabalhos de José Subtil e Rita Garnel, aqui publica-
dos.
No plano do que seria uma teoria da cultura portuguesa
temos procurado construir a história das representações literá-
rias da loucura (Antero de Quental, Teixeira de Pascoais,
Manuel Laranjeira, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro,
Raul Brandão, Raul Proença). Neste número publicamos os
estudos de Patrícia San Payo e de Jerónimo Pizarro - dedicados
a Raul Brandão, o primeiro, e a Antero de Quental e Fernando
Pessoa, o segundo.
No domínio filosófico procura-se determinar a função e o
lugar da loucura no pensamento de Michel Foucault e, desse
modo, precisar o papel que o pensamento da loucura aí desem-
penhou de crítica e de inversão da tradição filosófica. Atraves-
samos aqui domínios tão vastos e nucleares como a constituição
do saber e da verdade, a elaboração do campo transcendental,
os limites (e o alargamento) da razão. Os trabalhos de José Luís
Câmara Leme e de Nuno Melim pertencem a este domínio.
Cada vez se torna mais clara a necessidade, para a com-
preensão do “caso” português, dos muitos trabalhos já feitos
sobre a história da psiquiatria no Brasil. Ali, a problematização
dos textos dos médicos alienistas, das práticas terapêuticas, dos
regimes jurídicos sobre internamento compulsivo, ou sobre
inimputabilidades, tem já uma imensa tradição. As visitas que
Foucault fez ao Brasil, e os vínculos que aí estabeleceu com
alguns dos pensadores mais significativos da comunidade filosó-
fica e psiquiátrica, permitiu que se fosse escrevendo, não apenas
o que pode ser considerado uma versão tropical da História da
Loucura na Idade Clássica, mas sobretudo uma visão política e
epistemológica das grandes instituições e dos grandes textos
sobre a loucura escritos em língua portuguesa. Nesses estudos é
possível detectar dispositivos comuns em Portugal e no Brasil
de explicação das patologias mentais tal como eles surgem na
literatura, nas doutrinas jurídicas, nos tratados escolares de
psicologia, nas obras de filosofia. É neste sentido que incluímos
neste conjunto de trabalhos sobre “Loucura e Desrazão” contri-
butos de investigadores brasileiros como Roberto Machado,
Peter Pál Pelbart e Vera Portocarrero.
Dois outros textos ajudam a compreender a arqueologia do
tema da loucura no pensamento contemporâneo. Trata-se de
um estudo sobre o conceito de “inconsciente” em Schelling,
escrito por Teresa Pedro, e da entrada “Loucura” que Voltaire
escreveu para o seu Dicionário Filosófico, traduzida por Nuno
Melim.
Em números posteriores da revista esperamos publicar
outros estudos sobre o tema da loucura e desrazão. Queremos
alargar este trabalho interdisciplinar para além do que se vem
fazendo no interior do projecto Fenomenologia e Psiquiatria.
Contamos que a comunidade dos que se dedicam à filosofia, ao
direito, à história, à teoria da literatura, à psiquiatria, à sociolo-
gia, ou à antropologia, se venha a reconhecer no(a)
CONCEITO.

Nuno Nabais
A Desrazão, O Cristianismo e o Homem Europeu
Um programa esquecido na filosofia
de Michel Foucault

José Luís Câmara Leme

Introdução à Vida Devota, de S. Francisco de Sales, é uma


obra do século XVII, que Foucault estudou atentamente. É uma
obra de charneira, pós-tridentina, que inaugura a nova devoção
secular na espiritualidade católica.
Num dos seus capítulos mais famosos, que tem por tema a
inquietação, encontramos a seguinte passagem: “A inquietação
é o maior mal da alma, com excepção do pecado; assim, pois,
como as sedições e as revoluções civis dum Estado o desolam
inteiramente e o impedem de resistir aos inimigos exteriores,
também o espírito inquieto e perturbado não tem força bastante
nem para conservar as virtudes adquiridas nem para resistir às
tentações do inimigo, que faz então todo tipo de esforços para
pescar, como se diz, em águas turvas”1.
Neste trecho extraordinário podemos identificar um hori-
zonte de problematização que atravessou a cultura Ocidental
nos dois últimos milénios: em primeiro lugar, a economia da
inquietação, o que ela representa como ameaça e como princí-
pio de análise. Depois, a sua geografia e acção: como ela se
introduz na alma e a desagrega. Finalmente, a imagem política e
bélica que identifica a unidade da alma com um Estado bem
governado, que deixa de o ser no dia em que a sua unidade é
questionada.
É claro que podemos reconhecer neste texto toda uma tra-
dição clássica. O eco da espiritualidade antiga2 é de tal forma
óbvio que podemos perguntar se não estamos perante uma pas-
tiche. Porém, se atentarmos um pouco mais no texto, encon-
tramos um elemento que é estranho à tradição clássica: subja-
cente à imagem política de um estado fragilizado pelas sedições
e atacado pelos inimigos exteriores, encontramos o inimigo por
excelência, o Adversário: o demónio que nos tenta.
Se este elemento cristão não nos é estranho, ele não deixa,
contudo, de levantar problemas. Por outras palavras, vale a
pena perguntar como é que as águas se tornam turvas e nesse
desassossego nos perdemos. Como se constituiu a inquietação
como princípio de queda, de fractura de si?
De que forma pensou Michel Foucault essa experiência e
como é que ela ainda hoje nos diz respeito: é sobre isso que
vamos falar.

* * *

A história do conceito de desrazão consente duas versões,


uma triste, a outra misteriosa. A triste diz que, de todos os con-
ceitos que Michel Foucault inventou, a desrazão teve a vida
mais curta3. Não obstante o seu nascimento lhe auspiciar um
lugar central na obra do filósofo, ela finda circunscrita a uma
temática precisa e a um só livro. A versão misteriosa diz que a
versão triste aliena num termo uma problemática: apesar de o
termo desrazão desaparecer praticamente dos escritos do filóso-
fo, a sua problematização não só os atravessa, como se torna
central na fase final. Talvez se possa assim acrescentar uma
terceira versão: o seu retorno glorioso, porque muito daquilo
que o conceito permite pensar ainda está por fazer4.
Recordemo-nos que são três as versões da História da Loucu-
ra: a edição original de 19615, a versão resumida de 19646, e a
versão definitiva de 1972 7. O principal interesse da versão
resumida prende-se com a recepção que a obra de Foucault teve
mundo anglo-saxónico. Como esta versão foi a primeira a ser
traduzida, Foucault foi lido como um historiador dos costumes e
mentalidades 8. A comparação entre a edição original e a de
1972 traz a lume diferenças que são, a nosso ver, suficientemen-
te grandes para autorizar duas leituras distintas.
A primeira diferença prende-se de imediato com o título:
originalmente o título era Razão e Desrazão, e tinha como subtí-
tulo História da Loucura na Idade Clássica. Na versão de 1972, o
título original foi suprimido e o subtítulo passou a título. A
importância desta alteração deixa-se compreender facilmente se
se tiverem em conta as outras diferenças, nomeadamente a
substituição do “Prefácio” original, e a presença de dois novos
ensaios em adenda: “Loucura, ausência de obra” (de 1964) e a
resposta a Derrida, “Meu corpo, esse papel, esse fogo” (de
1972)9. A consequência mais imediata da supressão do título e
do prefácio original consiste na deslocação da tónica da obra: na
primeira versão, a desrazão é uma noção crucial que o título e o
prefácio bem atestam; na segunda, é a loucura que se destaca.
Estas duas modificações têm assim como efeito delimitar o
escopo da obra: na primeira versão, a experiência da loucura na
Idade Clássica é entendida como um capítulo de uma história
maior, a da relação entre razão e desrazão; na segunda, é a des-
razão que parece ser um fenómeno circunscrito à Idade Clássica.
A história misteriosa do conceito de desrazão exige assim
que se esclareçam duas coisas: por um lado, aquilo que Foucault
sustentou no “Prefácio” original e que o levou posteriormente a
suprimi-lo, de tal forma que autoriza que se estabeleça uma cli-
vagem no seu percurso; por outro, o modo como uma outra
problemática aí formulada não foi totalmente repudiada, antes
explanada e aprofundada nos seus últimos trabalhos.
Como qualquer prefácio, também este tem um teor progra-
mático; e quiçá não seja despropositado conjecturar que foi
escrito depois da obra terminada, já que não se limita a apresen-
tar o seu programa restrito, mas subsume-o num programa mais
amplo de que ela é apenas uma primícia.
O programa maior que Foucault enuncia consiste numa “his-
tória dos limites”. Esta decorre do pressuposto de que uma cul-
tura pode ser pensada a partir ou da sua identidade ou dos seus
limites. Porém, como esta última forma é mais radical, o estudo
deverá começar por ela. Os limites de uma cultura são a região
onde ela exerce as suas divisões originárias, isto é, “rejeita algu-
ma coisa que será para ela o Exterior”10 . Por conseguinte, antes
de se pensar a identidade de uma cultura, é preciso saber o que
é que ela afasta; pois o gesto que exclui é o mesmo que isola o
espaço onde se celebra a identidade.
Como o programa de pensar as escolhas essenciais de uma
cultura, mormente a Ocidental, é de filiação nietszchiana, Fou-
cault não poderia deixar de reconhecer na recusa da tragédia “a
estrutura trágica a partir da qual se faz a história do ocidente”11 .
Atente-se, no entanto, que esta recusa não deve ser pensada
apenas como a rejeição de uma forma dramática; trata-se, antes,
de algo de mais profundo, já que o que está em causa é a prima-
zia de um horizonte de reconciliação em detrimento de uma
experiência dilacerada do mundo. Assim, esta divisão originária
não é tanto uma escolha substancial, mas é sobretudo a adopção
de um ethos que denega a estrutura trágica que está subjacente a
toda a divisão. Ao rejeitar a estrutura trágica, o Ocidente esco-
lheu a história e as suas mediações. Mas há que compreender
ainda, nesta oposição entre a história e o trágico, o confronto
entre o sentido e o sem sentido, na medida em que a tragédia
acaba precisamente por consubstanciar a forma extrema de um
sem sentido, a separação irreconciliável, e a história, pelo con-
trário, a de um tempo de mediação cujo sentido derradeiro é a
reconciliação. É nesta medida que a história dos limites no Oci-
dente é essencialmente o confronto entre “as dialécticas da
história e as estruturas imóveis do trágico” 12.
A história da loucura inscreve-se então num programa
maior: estudar a história dos limites. Por conseguinte, outras
“experiências-limite” (experiências em que uma cultura faz as
suas escolhas essenciais) que gravitam em torno da cisão origi-
nária devem ser igualmente investigadas: depois da recusa da
tragédia e da história da loucura, Foucault propõe que se estude
a divisão em relação ao Oriente, em relação ao mundo onírico e
em relação à sexualidade.
A divisão originária a partir da qual se constitui a história da
loucura é a “cesura que se estabelece entre razão e não-razão”13.
Deste modo, antes dessa cesura temos uma condição e uma
linguagem originárias em que “loucura e não-loucura, razão e
não-razão estão confusamente implicadas: inseparáveis, já que
não existem ainda” 14. É este horizonte de indiferenciação que
compromete o “Prefácio” original, pois fá-lo pender para um
pathos metafísico15 . É certo que Foucault sublinha que a loucura
em estado selvagem é inacessível e que só o estudo estrutural
do conjunto histórico (noções, instituições, medidas jurídicas e
policiais, conceitos científicos)16 pode fazer remontar à raiz
dessa separação originária, sem contudo a percepcionar, pois ela
já pertence ao mundo que a capturou. Porém, a loucura selva-
gem, a sua pureza primitiva, não deixa de ser postulada 17: subja-
cente às dialécticas da história há uma cisão trágica que é fun-
dadora da história mas que escapa a esta.
Uma vez postulada essa condição originária e matinal, a his-
tória da loucura pode ser compreendida como uma “arqueologia
do silêncio”. Dado que a razão e a não-razão se separaram, o
diálogo entre a razão e a loucura terminou com o emudecimen-
to desta. Agora, mesmo quando a loucura comunica, fá-lo com
a linguagem da razão: seja sob a forma da “universalidade abs-
tracta da doença”, seja sob a forma da “coacção física e moral
do grupo ou da instituição”18 . É assim legítimo pensar que,
como um ápeiron, também essa condição originária reclamará
um custo daqueles que dela se separam, a saber: o silêncio da
loucura, e o monólogo da razão quando esta fala daquela.
Não obstante o conceito de escolha essencial reverberar
algum pathos metafísico, a verdade é que Foucault nunca o
renegou totalmente. Por exemplo, mais tarde sustentou que o
vínculo com a verdade e a sua problematização são para o Oci-
dente também uma escolha19 . Deste modo, se a recusa da tragé-
dia é uma divisão originária, a escolha da verdade não é menos
crucial.
Temos assim um programa maior que não foi totalmente
esquecido, mas que sofreu uma inflexão decisiva: com As Pala-
vras e as Coisas, vemos uma deslocação do interesse; agora já
não se trata de sublinhar o que é rejeitado, mas sim de analisar a
positividade de um saber. Em suma, temos uma deslocação do
outro para o mesmo20. Isto não significa obviamente que o Exte-
rior tenha desaparecido, significa tão-somente que ao privile-
giar-se a divisão originária se corre o risco de solicitar, não só
uma raiz reactiva para toda a cultura, como também um hori-
zonte de indiferenciação que alojaria a memória de uma felici-
dade originária.
Como é evidente a hipótese (mesmo operacional) de uma
condição originária ou primeva comporta uma fragilidade que
não escapou a Derrida e que repugnava ao nominalismo poste-
rior de Foucault 21. Assim, apesar de este não concordar subs-
tancialmente com a análise de Derrida, pois ela incide funda-
mentalmente sobre a leitura de uma passagem de Descartes
citada na obra, a crítica teve os seus efeitos. Tenha-se em con-
ta, no entanto, que um dos textos em adenda à edição definiti-
va de 1972, “Loucura, ausência de obra”22, prova que, já no
início dos anos sessenta, Foucault se tinha dado conta de que a
postulação de uma condição indiferenciada é insustentável.
Com efeito, assistimos nesse texto a uma inflexão na forma de
pensar a loucura: agora já não se trata de a procurar a partir de
uma condição originária, mas sim de perceber por que é que o
Ocidente a inventou e a elegeu como o horizonte a partir do
qual os homens se interrogam a si mesmos. Claro está que isso
não significa que a doença mental é uma ficção, o que seria um
supremo disparate, mas sim que ela não esgota a verdade da
loucura.
A pertinência e a imprecisão de algumas teses sustentadas
(com um primor literário, sublinhe-se) explicam assim que o
autor tenha substituído o “Prefácio” original por um outro, em
que precisamente questiona o estatuto irrisório da “monarquia
do autor” que todo o prefácio procura celebrar 23. Com efeito,
passada uma década da sua publicação, tornou-se óbvio que a
obra tinha ganho vida própria. Mais do que censurar uma leitu-
ra e aplaudir outra, importava agora pensar o curso histórico em
que a obra desempenhou um papel influente24 .
O elemento decisivo (e esquecido) do “Prefácio” original
que é então preciso destacar é a experiência da desrazão. Ela
aparece aí de duas formas: por um lado, ela confunde-se com a
não-razão, na medida em que Foucault como que sintetiza uma
das teses da obra na afirmação de que a razão procurou arrancar
à não-razão a “sua” verdade da loucura25 - neste sentido, não-
razão e desrazão confundem-se, ou melhor, a primeira define a
segunda; por outro, a desrazão é pensada em correlação com o
homem europeu e com a profundidade da razão ocidental.
Vejamos a célebre passagem: “Os gregos relacionavam-se
com alguma coisa que chamavam de hybris. Essa relação não
era apenas de condenação; a existência de Trasímaco, ou a de
Calicles, basta para mostrá-lo, ainda que o seu discurso nos seja
transmitido já envolto na dialéctica tranquilizadora de Sócrates.
Mas o Logos grego não tinha contrário. O homem europeu,
desde o fundo da Idade Média, relaciona-se com alguma coisa
que ele chama confusamente de: Loucura, Demência, Desra-
zão. É talvez a essa presença obscura que a Razão ocidental
deve alguma coisa de sua profundidade…”26 .
Se suspendermos a tese referente à relação entre logos e
hybris, pois ela exige um estudo próprio, e se tivermos em conta
que ao longo da História da Loucura a distinção entre desrazão,
loucura e demência é clara, pode-se concluir que o elemento
novo em relação à Antiguidade Clássica, e que surgiu no fundo
da Idade Média, é a desrazão. Quer isto dizer que a experiência
da desrazão é constitutiva do homem europeu: é a relação deste
com a desrazão que explica a profundidade da Razão ocidental,
mas também a sua própria profundidade.
Estamos assim perante uma tese de grande alcance: um tra-
ço distintivo do homem europeu é a relação que ele tem com a
desrazão. A experiência limite do confronto com a desrazão é
constitutiva do homem europeu. É partir desta relação que é
possível pensar a história da loucura.
As consequências da substituição do “Prefácio” original são
deste modo evidentes. Inicialmente temos a desrazão como o
horizonte a partir do qual a história da loucura foi pensada
como uma história dos limites. Com a supressão do “Prefácio”
original, esse confronto originário deixa de ser evidente; mas,
sobretudo, desaparece o momento histórico a partir do qual o
homem europeu se constituiu e se relacionou com a desrazão.
A versão definitiva da História da Loucura aborda a relação
do homem europeu com a desrazão em três momentos: primei-
ro, durante a Renascença, como confronto cósmico; depois, na
idade clássica, em que “o negativo vazio da razão” se substancia
na inumanidade; e finalmente na idade contemporânea, em que
ela começa por ser uma “dialéctica sem mediação do coração”27.
Estes três momentos descrevem o percurso de uma interioriza-
ção, ou seja: a passagem de uma relação que o homem trava
consigo mesmo, mediatizada pelos “poderes surdos do Mundo”
durante a Renascença, à relação consigo mesmo mediatizada
por uma razão soberana e pelos Outros na Idade Clássica, e,
finalmente, à relação consigo mesmo informada pelos valores e
imagens que se sedimentaram na cultura Ocidental, mormente
as sínteses morais que a Idade Clássica realizou durante o
Grande Internamento, na Idade Contemporânea.
Cabe assim perguntar se a tese enunciada sobre a desrazão e
o homem europeu apresentada no “Prefácio” original foi poste-
riormente retomada por Foucault.

***

A hipótese que exploramos e que queremos expor é a


seguinte: a experiência da desrazão é uma experiência cristã.
Foi no quadro da cultura cristã que a desrazão se constituiu
como uma modalidade da experiência que o homem europeu
tem consigo mesmo. Se esta ideia parece ser óbvia, por que é
que Foucault não a examinou inicialmente?
A resposta é evidente: porque era preciso saber o que é que
faz a especificidade do Cristianismo, pois o Homem Europeu é
fundamentalmente um produto do Cristianismo. Mas como
pensar a especificidade do Cristianismo em função do Homem
Europeu?
Foi na década de setenta que Foucault desenvolveu os ins-
trumentos e definiu o horizonte a partir dos quais essa especifi-
cidade pode ser pensada, a saber: primeiro, a partir das relações
de poder. Neste sentido era preciso perguntar: que modalidade
de poder é própria ao Cristianismo? Segundo, a partir de que
formação do saber. Neste sentido era preciso perguntar: que
domínio novo do saber foi criado e explorado pelo Cristianis-
mo? Terceiro, a partir das formas de subjectivação. Neste senti-
do era preciso perguntar: que relação de si a si se constituiu
com o Cristianismo? Ou, de uma forma mais nobre: qual é o
ethos do Cristianismo?
Como é inevitável, reconhecemos aqui a presença de três
eixos, do poder, do saber, do ethos, cuja correlação constitui,
para Foucault, uma experiência28 . Neste sentido, se a desrazão é
uma experiência específica do Cristianismo, é-o na medida em
que estes três eixos concorrem para que um sujeito se constitua
e se reconheça como sujeito da desrazão. Ou, dito de uma for-
ma mais apelativa: como é que um sujeito encontra em si o
apelo que o faz soçobrar nas águas turvas de que fala S. Francis-
co de Sales? Por que é que esse princípio de queda é correlativo
ao Homem Europeu? Por que é que não podemos pensar o
Homem Europeu sem essa inquietação que o atormenta?
Vejamos o que é que Foucault sustentou nos seus últimos
cursos, e que nos autoriza a dizer que a desrazão é uma expe-
riência correlativa ao Cristianismo. Resumidamente, a resposta
às questões levantadas é a seguinte: primeiro, com o Cristia-
nismo temos uma nova mecânica de poder: o poder pastoral;
segundo, com o Cristianismo temos um novo domínio de saber:
a exegese de si; terceiro, com o Cristianismo temos um novo
horizonte de subjectivação: a mortificação de si. Em suma, a
desrazão é correlativa a estes três eixos: a um novo governo das
almas, a um sondar indefinido de si mesmo, e a uma nova eco-
nomia de salvação, que se realiza sob o signo da apatheia.
Do curso no Colégio de França de 1978, intitulado Seguran-
ça, Território e População, e dos vários ensaios que Foucault
escreveu a partir dos meados da década de setenta sobre o poder
pastoral – no contexto de uma história da governabilidade29 – é
possível destacar três dimensões decisivas: em primeiro lugar, o
aparecimento desta nova mecânica de poder com o Cristianis-
mo; depois, a crise geral do pastorado nos séculos XV e XVI,
decorrente da recusa das formas tradicionais de direcção espiri-
tual, e a conversão desta mecânica a outros domínios, sob a
forma ampla de governo; e, finalmente, as novas formas de
exercer o poder no Ocidente a partir do século XVIII, que têm
por objecto tanto o indivíduo (a alma) e a população (o reba-
nho) 30, como a própria segurança, crescimento e bem-estar do
Estado e dos seus cidadãos.
Quer dizer, o poder disciplinar, a Biopolítica e, finalmente, o
Estado-providência, são compreendidos por Foucault como
ramos de uma forma secular do poder pastoral.
Isto significa que o aparecimento de uma mecânica do poder
individualizante na era moderna é entendido como o resultado
de um processo de secularização 31 – atente-se à apropriação da
disciplina monástica pelo poder disciplinar descrita em Vigiar e
Punir –, uma vez que o poder pastoral passa a ser exercido em
esferas exteriores à instituição religiosa, e sofre mudanças de
objectivo muito precisas32. Por exemplo, a salvação, que no con-
texto religioso se encontra noutro mundo, é agora assegurada na
Terra. Donde, não só a noção de salvação adquire novos senti-
dos, por exemplo, saúde, bem-estar, segurança e protecção,
como a própria matriz destas novas formas de “cura” deixa de
ser a religião, para passar a ser a medicina33.
Estamos deste modo perante uma tese extremamente impor-
tante na obra de Foucault: é no quadro de um poder pastoral
que o sujeito moderno se constituiu. O poder pastoral indivi-
dualiza, quer dizer, vela pelos indivíduos em particular, toma-os
um a um. Ao contrário do poder jurídico, que se cumpre através
da lei, o poder pastoral exerce-se através do conhecimento dos
“casos” (no sentido original de “queda”, aquele que cai para
fora)34.
A questão que decorre desta hipótese é então a seguinte: o
que significa, para o Homem Europeu, viver numa sociedade
onde se exerce um poder pastoral?35 Para Foucault, são três as
consequências: a salvação obrigatória, a confissão, e a mortifica-
ção.
A primeira consequência do poder pastoral é a obrigação de
todo o indivíduo procurar a sua salvação. Mas a salvação, no
Ocidente, comporta um estranho paradoxo: por um lado, é um
assunto individual, no sentido em que cada um tem que cuidar
da sua salvação; e, por outro, as formas que ela toma não são
livres, na medida em que são previamente definidas, e passam
pela relação com o pastor36. É neste sentido que a salvação –
mesmo nas suas formas seculares – é uma obrigação que está
indexada à presença de um outro37 .
A segunda consequência do poder pastoral é, portanto, a
função que o pastor desempenha na salvação. Esta não é uma
actividade solitária, porque ela só é possível na condição de se
aceitar a autoridade do outro. As acções e os pensamentos
devem ser do conhecimento do pastor, e este tem o poder de
ajuizar sobre esses assuntos. Deste modo, com o aparecimento
do poder pastoral no Ocidente, estamos perante uma nova for-
ma de culpabilização, que era até então desconhecida 38 . A par
das leis cuja infracção é punida, temos a vigilância permanente,
fina e cerrada, sobre dimensões da vida que eram anteriormente
descuradas pelo poder, e que agora o pastor controla em nome
da salvação.
A terceira consequência é a mortificação como obediência
interiorizada. Ao contrário da sociedade greco-romana, em que
o sentido da submissão se encontra no fim para que tende, por
exemplo, na aptidão que se adquire pelo ensino, agora a obe-
diência é uma virtude, tem um mérito próprio. A relação com o
pastor deve ser de obediência, e tem na confissão a sua prova, já
que esta esvazia o coração de uma vontade própria, a vontade
que a vergonha esconde e o orgulho alimenta, para dar lugar à
humildade: a modéstia de ser o último39.
Esta humildade cristã como obediência absoluta e interiori-
zada – a mansidão dos bem-aventurados celebrada no “Sermão da
Montanha”40 – exige uma técnica específica, que passa por uma
inversão decisiva nas relações entre mestre e discípulo41. Com
efeito, o pastor pode ser tomado como um mestre: ele ensina a
verdade da escritura, da moral e dos mandamentos da Igreja.
Mas, para exercer o seu papel de pastor, ele tem que conhecer
também outra verdade, a das suas ovelhas: o que elas fazem e
pensam. Tem que conhecer a interioridade delas, porque é aí
que reside aquilo que verdadeiramente as pode extraviar. Temos
assim a confissão como a produção de uma verdade requerida
pelo exercício do pastorado; esta permite não só ao pastor o
governo das almas a partir da verdade que elas mesmas produ-
zem, como também, aos próprios confessados, conhecerem-se de
uma nova forma. O elo que fortalece a relação de obediência do
confessado para com o pastor, e a solicitude deste para com o
primeiro, é a verdade que ambos partilham, e que é decisiva
para a economia da salvação de ambos.
Em suma, o poder pastoral exerce-se através de um vínculo
de verdade. Esse vínculo é tão mais forte quanto mais a ovelha
se examine a ela própria e dê a conhecer ao pastor a sua verda-
de42.
Temos então, a par da nova mecânica de poder específica do
Cristianismo, o poder pastoral, uma segunda especificidade do
Cristianismo, que é a injunção da verdade.
Para Foucault o Cristianismo tem, como traço distintivo, o
impor aos seus seguidores uma obrigação de verdade43 . Esta
obrigação, que se efectiva como efeito do poder pastoral tem,
duas dimensões: a verdade da autoridade, e a verdade de si
mesmo.
A verdade da autoridade significa que todo o crente está
obrigado a tomar um conjunto de dogmas e de textos como
fonte de verdade; está obrigado a aceitar as decisões da Igreja
como matéria de verdade; e, finalmente, está não apenas obri-
gado a crer nessas verdades, como tem também o dever de as
manifestar.
A verdade de si consiste no dever de todo o cristão se
conhecer a si mesmo – o seu interior e as suas faltas, as tenta-
ções, os pecados cometidos –, e de dar a conhecer essa verdade
a outrem. Por sua vez, esta dupla obrigação de verdade, a obri-
gação de conhecer a verdade de si e de a confessar, e a verdade
da autoridade, a começar pela verdade do texto, concorrem
articuladamente para a salvação. Logo, estas duas obrigações
complementam-se: por um lado, o conhecimento de si é susten-
tado pela luz da fé (a verdade da autoridade), e, por outro, a
verdade da fé só é acessível àquele que previamente se purificou
através de um conhecimento de si.
Para Foucault, estas duas formas de veridicção cristã que
concorrem para a salvação jogam-se em torno de duas noções-
chave que datam dos primórdios do Cristianismo, a exomologese
e a exagoreusis. Estas duas formas correspondem a práticas dis-
tintas, e têm também um índice histórico diferente44. A primeira
é mais ampla e significa ”acto de fé”. Como “acto de fé”, a exo-
molegese é um acto que visa manifestar simultaneamente a ver-
dade e a adesão do sujeito a essa mesma verdade. Neste sentido,
ela releva de uma verdade da autoridade, que é preciso anunciar
aceitando as consequências desse acto: proclamar a verdade da
Fé, do Dogma, do Livro e da Igreja.
A verdade revelada não é, pois, uma simples questão de
crença, é um comprometimento, que tem consequências na
forma de viver, a começar pela obrigação de proclamar essa
mesma verdade. Em suma, temos a profissão de fé como uma
forma de parrésia45 : uma forma de veridicção em que a verdade
confessada comporta um risco vital. O modelo desta veridicção
é assim, inevitavelmente, o mártir, aquele que dá a vida pela fé,
por oposição àquele que por falta de coragem abjura a verdade.
A exagoreusis, por sua vez, é uma forma de veridicção corre-
lativa a uma direcção de consciência, que comporta para Fou-
cault três dimensões fundamentais: uma relação de dependên-
cia, uma forma de praticar o exame de consciência, e a obriga-
ção de expor a totalidade dos movimentos do pensamento. É
nos séculos IV e V que esta forma de veridicção aparece no
mundo monástico, sob a forma da confissão. Temos aqui um
regime de verdade que era desconhecido na Antiguidade Clássi-
ca, e que ainda hoje se repercute em nós.
Vejamos então estas três dimensões da nova direcção espiri-
tual que Foucault intitula “hermenêutica do eu”. Comecemos
por ver como é que Foucault define a direcção antiga, tal como
era praticada na Grécia e em Roma, para depois vermos a direc-
ção cristã.
A direcção antiga tem, para Foucault, quatro característi-
cas : primeiro, é provisória, ou seja, é uma relação que dura o
46

tempo de uma aprendizagem; segundo, obedece a um princípio


de competência, aquele que guia sabe mais do que o guiado;
terceiro, ela consiste na aprendizagem de um código, isto é, de
um conjunto de regras que definem um modo de vida; e quarto,
ela pressupõe a substituição da mestria, quer dizer, uma vez
aprendido o código, e senhor de si mesmo, o discípulo pode
tornar-se por sua vez mestre.
Ora, esta forma de direcção, que tem por modelo a pedago-
gia e por objectivo o domínio de si, foi destruída pelo mona-
quismo. A relação pedagógica antiga foi revolvida a partir da
instauração de um novo princípio fundamental: a relação de
obediência deve ser contínua e permanente. Seja quem for,
noviço ou ancião, tem necessidade de alguém que o dirija. Se ao
longo da existência deve sempre haver uma relação de submis-
são a alguém, ninguém pode ser considerado definitivamente
mestre47.
A formalidade é outra característica da relação de obediência
cristã. Se, na Antiguidade Clássica, a relação com o mestre
estava fundada na autoridade deste último (na sua sabedoria e
competência 48), no monaquismo a obediência tem um valor em
si. Por outras palavras, o valor da obediência não releva da qua-
lidade da ordem, mas do facto de se obedecer. Isto não significa,
no entanto, que não haja diferença entre os mestres; mas se na
Antiguidade Clássica era a sapiência que definia o bom mestre,
agora aquele que é o bom guia, aquele que faz progredir na san-
tidade e conduz à verdade pode ser aquele que é um “mau” mes-
tre, ou seja, que é injusto, desabrido e dá ordens absurdas. Isto é,
o “bom” mestre é aquele que não deixa nenhuma liberdade ao
discípulo. É neste contexto que aparecem as célebres histórias
que narram as ordens “absurdas” cujo cumprimento conduz à
santidade 49. Foucault cita o célebre apotegma do monge João,
cujo mestre o obrigou a plantar um pau seco no deserto e a regá-
lo duas vezes por dia. Durante dois anos ele cumpriu a ordem 50.
Donde, o exercício não está isento de ensinamento, uma vez
que é em termos de “provas de obediência” que essas ordens
aparentemente absurdas são dadas.
São assim três as características da relação de obediência no
monaquismo, que a distinguem da relação mestre-discípulo na
Antiguidade Clássica: primeiro, é uma obediência contínua e
indefinida; segundo, é formal; e terceiro, é auto-referente.
O estado de obediência, por sua vez, manifesta-se, segundo
Foucault, através da prática de três virtudes: a humildade, a
paciência e a submissão. A humildade, porque ela consiste em
um sujeito se considerar sempre o último no meio dos outros, o
que faz com que a obediência seja possível, já que nunca se deve
questionar o outro 51. A paciência, porque nunca se deve resistir
a uma ordem dada, deve-se antes abolir a vontade própria,
deve-se ter por modelo o cadáver. E a submissão, porque para
todas as dimensões da vida deve haver uma regra, um comando.
Deste conjunto de virtudes que manifesta e indica o sujeito
obediente do monaquismo, a submissão tem um estatuto parti-
cular.
Esta nova virtude é absolutamente crucial, porque se opõe ao
modo como a Antiguidade Clássica conhecia a obediência.
Com efeito, com o monaquismo, a submissão penetra em
todo o comportamento – para todas as dimensões da vida deve
haver um outro que comanda, uma regra que diz o que se deve
fazer –, ao contrário do que acontecia na Antiguidade, que pen-
sava a submissão em função de uma condição provisória e de um
telos.
Na submissão monástica temos portanto o inverso do ideal
da pedagogia antiga, a renúncia a si mesmo. É contra a soberba
de quem quer ser senhor de si mesmo que as novas virtudes são
praticadas52 . A regra ou ordem que deve ser solicitada e cumpri-
da submissamente para todas as dimensões da vida; a paciência
de nunca contestar a voz do comando; e, enfim, a humildade de
se saber sempre o último: eis a notória mansidão da ovelha que
nunca se aparta do seu pastor. E, no entanto, esse mesmo pastor
é capaz de abandonar o rebanho para seguir a ovelha desgarrada
e, jubiloso, levá-la aos ombros para o aprisco53.
A adaptação das técnicas de si pagãs no exercício do poder
pastoral é, para Foucault, outra característica decisiva da espiri-
tualidade cristã. Neste sentido, embora o auto-exame pareça ter
a mesma forma que tem no estoicismo, ele obedece a dois novos
princípios: o da obediência e o da contemplação54 . Como vimos,
a relação com o mestre na filosofia antiga é instrumental, ou
seja, provisória, porque o objectivo é o discípulo aceder a uma
vida autónoma; ao invés, a obediência na vida monástica é
completa, permanente e auto-referente.
O outro princípio da disciplina monástica é, para Foucault, a
contemplação, ou seja, o monge deve concentrar os seus pen-
samentos em Deus. Se o seu coração for firme e a sua alma pura,
pode receber de Deus a luz divina. O auto-exame que os monges
devem praticar consiste, então, numa inspecção do curso dos
pensamentos que, por um lado, reforça a firmeza de conduta em
relação à concentração necessária à contemplação, e, por outro,
identifica os pensamentos que interferem com essa mesma con-
templação. Assim, a matéria-prima para a auto-inspecção con-
siste nos movimentos imperceptíveis do pensamento – “cogita-
ções” no seu sentido original – que arrastam a alma em todas as
direcções, e assim a afastam de Deus55 .
Por conseguinte, com o Cristianismo surge um novo domínio
sobre o qual se faz o exame de consciência: agora já não são as
acções praticadas e a sua adequação ou inadequação aos princí-
pios, mas é o próprio pensamento que é examinado. Por outras
palavras, temos, segundo Foucault, um deslocamento do acto
para a cogitação.
Na espiritualidade orientada para a unificação, concentração
e imobilização do pensamento em Deus, o obstáculo maior é a
agitação interior do pensamento56 .
São duas as consequências desta mobilidade: o pensamento
divergente impede a contemplação, e o pensamento engana-se a
si mesmo57 . Com a primeira temos, para Foucault, uma desloca-
ção essencial no modo de pensar o próprio pensamento. Com
efeito, para os antigos, essa actividade permanente não era algo
de necessariamente negativo, embora a curiosidade fosse clara-
mente temida 58. Agora ela é claramente repudiada, porque
representa um obstáculo à contemplação. Mas esta agitação do
pensamento, que impede a sua imobilidade em Deus, resulta
igualmente num pensamento que se ilude a si mesmo. Ela atesta
bem a diferença entre a atenção a si estóica e a interioridade
cristã: para os primeiros, tratava-se de evitar as opiniões falsas
que representam, antes de mais, um engano sobre a ordem do
mundo; na espiritualidade cristã não é a ilusão sobre as coisas do
mundo que está em causa, mas sim a ilusão sobre si mesmo.
Esta interrogação do pensamento que se engana a si mesmo
representa pois uma deslocação crucial, na medida em que já
não está de todo em causa a qualidade do juízo, mas sim a ori-
gem do próprio pensamento. Por outras palavras, temos uma
nova problematização: trata-se agora de saber de onde vêm as
ideias. Qual é a sua proveniência? O pensamento vem de Deus
ou do Demónio? É por esta razão, sublinha Foucault, que é pre-
ciso vigiar sem cessar os próprios pensamentos: descortinar, no
fundo de si mesmo, a origem do pensamento59 . Isto é absoluta-
mente fundamental na história das relações entre verdade e
sujeito, porque transfere o problema da ilusão para dentro do
próprio pensamento. Com este novo objecto de inquietação, a
qualidade e origem do pensamento, temos uma nova relação de
si a si, já que a principal ameaça que o sujeito enfrenta se
encontra dentro dele mesmo. Em suma: é esta estranha relação
de si a si que enuncia o Homem Europeu.
A partir de uma análise dos textos de João Cassiano, Fou-
cault mostra como é que a hermenêutica de si representa, na
história do pensamento, um momento absolutamente crucial:
“Penso que é esta a primeira vez na história que os pensamentos
são considerados como possíveis objectos de análise.” 60 Nesta
prática de auto-exame, coloca-se então o problema da verdade
dos pensamentos. Mas, como o problema da verdade não se põe
em termos da correlação entre a ideia e o seu referente, põe-se
sim a propósito da qualidade e substância do próprio pensamen-
to, é preciso uma nova forma de as destrinçar, em suma, uma
nova técnica.
O modo de procedimento desse exame de si que visa discri-
minar os pensamentos deixa-se compreender, segundo Foucault,
através de algumas imagens propostas por João Cassiano: tal
como o moleiro, que selecciona os grãos, também devemos afas-
tar os maus pensamentos; tal como o oficial, que põe os soldados
em linha e distribui as tarefas de acordo com as capacidades,
também devemos inspeccionar os nossos pensamentos; tal como
o cambista, que examina, sopesa e verifica as moedas, também
devemos ser os cambistas dos nossos pensamentos: devemos
verificar a sua qualidade, ou seja, saber se eles vêem de Deus ou
do Demónio.
Em suma, o exame de consciência aparece agora como uma
triagem dos pensamentos. São quatro as características funda-
mentais deste processo de diacrisis dos pensamentos: em primei-
ro lugar, na espiritualidade cristã (que João Cassiano descreve e
introduz no Ocidente), temos, pela primeira vez, segundo Fou-
cault, a atenção aos pensamentos enquanto pensamentos – eles
são agora um campo de dados subjectivos que é analisado como
um objecto; em segundo lugar, os pensamentos devem ser anali-
sados com suspeição – não se trata de considerar o pensamento
em função do seu referente ou das regras lógicas, mas sim de
como ele pode ser alterado na sua substância; em terceiro lugar,
é preciso evitar ser vítima dos próprios pensamentos, o que exige
um trabalho hermenêutico constante, de modo a decifrar a rea-
lidade que se oculta no seu interior; e, finalmente, essa realidade
oculta é da natureza do próprio pensamento e da alma, um
poder que se dissimula nos pensamentos: o Demónio, ou “a
presença de outrem em mim”61 .
É agora compreensível a diferença para o exame de cons-
ciência na Antiguidade Clássica: enquanto para a moral antiga
se tratava de controlar a agitação do corpo, das paixões e dos
acontecimentos externos, para a vida monástica, onde as solici-
tações externas eram comparativamente diminutas e a disciplina
monástica tinha na contemplação de Deus o eixo central, o
problema capital era a agitação dos movimentos interiores do
pensamento, em suma, a cogitação. Segundo Foucault, o pro-
blema central na nova forma de exercer o exame de consciência
– que tem agora na relação de si a si a possibilidade da ilusão de
si – é encontrar um instrumento que garanta que a discrimina-
ção não seja ela própria ilusória.
O instrumento de decifração dos pensamentos que a assegu-
ra é a confissão62 . Quer isto dizer que esta aparece na espiritua-
lidade cristã como um instrumento de discriminação dos pen-
samentos que completa o trabalho do exame de consciência. É
preciso, em suma, assegurar que não há em nós um espírito
maligno que nos engana, que nos leva a crer que uma coisa é
verdadeira quando é, na realidade, falsa63. Donde, para Fou-
cault, a espiritualidade cristã não abandona o sujeito a si mesmo
– ao contrário do desafio do ascetismo anacorético –, antes
estabelece uma relação com o outro. Esta é, como vimos atrás,
uma relação exaustiva e contínua, que garante, através da sub-
missão, que o sujeito não se apegue a si mesmo. Essa adesão a si
tem a sua a forma mais chã na resistência a confessar, e a mais
vertiginosa na visão induzida pelo demónio. É portanto através
da confissão que esta hermenêutica de si é realizada. O modo de
assegurar que não se é vítima dos próprios pensamentos, ou seja,
o modo de verificar a sua substância – a imagem que Foucault
destaca da obra de João Cassiano é a do cambista64 – é contar a
um outro os seus pensamentos.
São duas as razões que fazem com que a confissão tenha uma
função hermenêutica, e assim permita escapar ao engano de si
mesmo. Temos, primeiro, uma razão acessória: de acordo com
João Cassiano, ao expor os pensamentos ao mestre, este, pela
experiência adquirida, consegue distinguir, na alma do seu diri-
gido, a verdade da ilusão. Depois, a razão fundamental é que a
verbalização comporta uma virtude específica. Este último pon-
to é decisivo, porque mostra como a confissão é uma prova da
verdade. A dificuldade em verbalizar os pensamentos tem dois
significados precisos: primeiro, ela é já, por si, uma forma de
destrinçar os pensamentos, uma vez que os maus resistem a sair;
segundo, o enrubescimento que se experimenta quando se con-
fessam os maus pensamentos prova que o demónio que habita as
negras cavernas da consciência resiste a enfrentar a luz. Ora, o
que a confissão faz é, por um lado, forçá-lo a sair do seu escon-
derijo, e, por outro, retirar-lhe a força, porque ele é impotente
perante a luz, que é o seu meio hostil65 .
Foucault sublinha ainda que esta verbalização, que exerce
uma função interpretativa, que comporta um poder de discrimi-
nação, não é uma retrospecção dos pensamentos, mas sim do
seu fluxo. Deste modo, como actividade permanente, exaustiva
e profunda, a verbalização dos pensamentos é uma via de con-
versão 66, porque, por um lado, arranca o sujeito a si mesmo – é
precisamente isso que significa o domínio do Adversário (Sata-
nás), o apego a si mesmo, o orgulho – e, por outro, pela renún-
cia a si próprio, aproxima-o de Deus67.
Em suma, a exagoreusis é, para Foucault, a confissão perma-
nente de si mesmo que faz com que o sujeito possa, através deste
dizer verdadeiro, “libertar-se” da raiz da ilusão, o orgulho, para
se concentrar em Deus. Deste modo, o Homem Europeu não é
apenas um campo de batalha onde se confrontam Deus e o Dia-
bo, o bem e o mal, a verdade e a ilusão, é também aquele que
não pode ser abandonado a si mesmo e que precisa de um outro,
já que sem ele não acederá a Deus, ao bem e à verdade. Embora
o papel necessário de um outro esteja bem presente na espiritua-
lidade pagã, nomeadamente a estóica68 , Foucault sublinha a
diferença com a cristã, porque esta necessidade é, agora, consti-
tutiva do homem.
Concluindo, de acordo com a perspectiva de Foucault temos,
nos primeiros séculos do Cristianismo, duas formas de manifes-
tar a verdade acerca de si próprio: a exomologese, que é a forma
espectacular do penitente revelar o seu estado de pecador, e a
exagoreusis, que é uma verbalização analítica dos pensamentos
numa relação de obediência a um outro. Estas duas formas de
veridicção obedecem a um mesmo princípio: a renúncia ao eu
(por oposição ao “retorno a si”, que caracteriza a cultura de si69 ).
As mortificações somáticas e a verbalização têm o mesmo objec-
tivo e efeito: a verdade do eu só pode ser descoberta na condi-
ção de se sacrificar o eu70.
Assim, a hermenêutica de si é, para Foucault, o resultado de
uma prática ascética que parece contradizer esse sondar de si, na
medida em que tem por objectivo a destruição de si mesmo.
Com efeito, a exagoreusis não visa restabelecer um domínio de si,
como na sabedoria antiga, ou descobrir a sua própria identidade,
como nas técnicas modernas do eu, trata-se antes de renunciar a
si mesmo, já que na raiz da ilusão se encontra a presença insidio-
sa do outro em nós, esse outro que se manifesta nesse apego a si
mesmo e que nos alimenta o orgulho. Ora, a hermenêutica do
eu como exegese de si não é a descoberta de uma incógnita –
aquilo que o sujeito é, e que ele não sabia anteriormente –, mas
sim do que está escondido e dissimulado. É, esse, aliás, o sentido
da própria hermenêutica: revelar o dissimulado. Temos então,
no âmago das técnicas do eu cristãs, uma tensão que resulta
numa espiral de duas práticas: desvendar o outro e destruí-lo.
Mas, como esse outro está dissimulado e se encontra enraizado
no Homem desde a Queda, esse trabalho de destruição e de
exegese é indefinido.
Por conseguinte, quando pensamos esta estranha relação de
si a si que define a constituição do Homem Europeu, e que
representa para ele uma ameaça, mas também o ónus que ele
paga pela sua profundidade – a célebre profundidade do
Homem Europeu – percebemos que ela tem a sua proveniência
na espiritualidade cristã e nas suas formas de veridicção.

***

Este princípio de renúncia a si que, segundo Foucault, está


no âmago da tecnologia sacrificial cristã do eu – essa espiral
indefinida de um dizer a verdade sobre si e de uma renúncia a si
–, opõe-se e complementa-se a uma outra tecnologia do eu que
foi decisiva a partir do século XVIII, a da identidade do eu 71.
Com efeito, esta última pode ser tomada como um ramo secular
do poder pastoral, mas, ao contrário das técnicas do eu monásti-
cas, a dimensão ascética, ou seja, a renúncia a si, deixou de estar
presente; agora o que está em causa é, por um lado, a produção
de um corpo dócil por incorporação das virtudes monásticas – o
corpo politicamente obediente72 – e, por outro, o aprisionamen-
to do homem a si mesmo, nessa identidade que lhe é objectiva-
da não só pelos novos saberes, grosso modo, as Ciências do
Homem, como por essa sujeição à sua própria intimidade – esse
sondar infindo em que o homem se deslumbra consigo mesmo 73.
Por conseguinte, o programa de Foucault consiste em pensar
essa relação complexa entre duas formas de subjectivação que
são correlativas a técnicas do eu diferentes: por um lado, as
várias práticas que concorrem em direcção a uma antropologia
que pensa e institui a identidade do eu, práticas discursivas tri-
butárias de uma “analítica da finitude” que procura a figura
positiva do homem74 ; e, por outro, um conjunto de terapias do
eu em que o dizer verdadeiro sobre si mesmo salva (quer dizer,
“limpa a chaminé” segundo a célebre expressão de Ana O.75 ).
Desta forma, quando pensamos o modo como o sujeito moderno
se constitui, temos que estar atentos a duas técnicas do eu fun-
damentais, de proveniência cristã, em que a individuação é cor-
relativa a um dizer verdadeiro: uma institui o indivíduo discipli-
nar; a outra, o indivíduo que se abisma em si mesmo. Na primei-
ra, temos a verdade que resulta da sua objectivação, na segunda,
a verdade que ele lê em si mesmo. O jogo de apelo desta dupla
verdade reproduz assim a espiral da verdade das técnicas de si
cristãs, mas com a diferença de que, agora, não é a renúncia a si
que move esta prática, mas a identidade de si, pois o saber disci-
plinar resulta do conjunto de experiências negativas que a
observância (no duplo sentido de cumprimento e exame) da
disciplina produz. Por conseguinte, o que é preciso ler em si é o
significado desse fundo negativo, porque qualquer ínfimo desvio
encerra um mundo de verdades.

***

Depois deste percurso inevitavelmente descritivo e um pou-


co tortuoso sobre a especificidade do Cristianismo, o que é que
podemos concluir a propósito da desrazão?
Aparentemente ela esteve ausente. Mas só aparentemente,
pois a desrazão é a um só tempo uma experiência induzida pelo
poder pastoral, a começar pela figura do Demónio que a exege-
se de si defronta, e também um efeito de resistência a essa
mesma mecânica de poder.
Neste sentido, poderia parecer mais evidente começar por
mostrar como Foucault estudou a resistência ao poder pastoral
nos seus cursos da década de setenta. Com efeito, quer no curso
de 1975, Os Anormais, quer no curso de 1978, Segurança, Terri-
tório e População, ele dedica algum tempo a esses fenómenos de
resistência. No curso de 1975 temos a convulsão, a possessão e
o misticismo como práticas induzidas e de resistência à nova
pastoral pós-tridentina76 ; e no curso de 1978 temos as contra-
condutas pastorais, o ascetismo, as comunidades, a mística, a
escritura e a crença escatológica 77. A razão para não termos
abordado a desrazão a partir destes dois cursos prende-se com o
facto de ela ser aí analisada em termos modernos, ou seja, a
partir dos séculos XV e XVI, e não em função dos primórdios
do Cristianismo.
No entanto, se nos reportarmos às determinações clássicas,
tal como Foucault as descreve a propósito do Grande Interna-
mento, então podemos dizer o seguinte: se a desrazão for mais
do que um efeito negativo de um jogo de exclusão, se ela for
também um destino que os indivíduos abraçam, então com o
Cristianismo temos: primeiro, a invenção de uma força interior
que arrasta os homens para a queda, a saber, o Demónio. No
âmago da desrazão encontramos a sua voz. Era isso que a Idade
Clássica pressentia quando afirmava que os hóspedes do Hospi-
tal Geral eram cúmplices do mal. Depois, temos a vertigem da
ovelha ranhosa: o grande signo clássico da desrazão, a fúria, é
exactamente o arrepio dos três valores matriciais do estado de
obediência que define a bem-aventurança: a humildade, a
paciência e a submissão. Finalmente, o homem da desrazão é o
homem da errância, no duplo sentido de errar, de não estar na
verdade, e de não ter residência própria, isto é, identidade.
Se a desrazão é uma experiência correlativa ao Cristianismo,
então o homem da desrazão tem um outro mestre, a voz interior
que o inquieta, tem um outro ethos, o da desobediência, e tem
um outro saber, o da errância.
Um saber errante que se funda numa voz interior e que se
efectiva na desobediência, o que é a desrazão senão isso?

Notas
1
“L’inquiétude est le plus grand mal qui arrive en l’âme, excepté le
péché; car, comme les séditions et troubles intérieurs d’une république
la ruinent entièrement, et l’empêchent qu’elle ne puisse résister à
l’étranger, ainsi notre coeur étant troublé et inquiété en soi-même,
perd la force de maintenir les vertus qu’il avait acquises, et quant le
moyen de résister aux tentations de l’ennemi, lequel fait alors toutes
sortes d’efforts pour pêcher, comme l’on dit, en eau trouble” François
de Sales, Introduction à la vie dévote, IV, 11.
2
Sobre Marco Aurélio, e a ideia de uma “fortaleza interior”, ver Pierre
Hadot, La Citadelle Intérieure, Paris, Fayard, 1997.
3
Siglas usadas para as obras de Michel Foucault: AN- Les Anormaux ;
DE – Dits et écrits, 4 vols; HF – Histoire de la Folie à l’âge classique ; HS
- L’Herméneutique du sujet ; MC – Les mots et les choses ; MF - Mal
Faire, Dire Vrai. Fonctions de l’aveu ; OD – L’ordre du discours ; UP -
L’usage des plaisirs ; STP – Sécurité, territoire, population ; SP –
Surveiller et punir ; VS – La volonté de savoir.
4
Para uma leitura contemporânea da experiência da desrazão, ver o
estudo pioneiro de Peter Pal Pelbart, Da Clausura do Fora ao Fora da
Clausura, Loucura e Desrazão, São Paulo, Brasiliense, 1989.
5
Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique, Plon, Paris, 1961.
6
Histoire de la folie, 10/18, Union générale d’édition, 1964.
7
Histoire de la folie à l’âge classique, Gallimard, 1972. A última versão
(de certa maneira, a quarta), aquela que utilizamos, data de 1978, e é
a versão da colecção TEL (Gallimard, 1978) que corresponde à de
1972, mas sem os ensaios em adenda.
8
Ver o ensaio de Colin Gordon, Histoire de la folie: an unknown book
by Michel Foucault, e o conjunto de artigos que se seguiram, publica-
dos pela revista “History of Human Sciences”, Vol. 3, No.1 e 3,
Outubro de 1990.
9
DE1: “La folie, l’absence d’oeuvre”, pp. 412-420. DE2: “Mon corps,
ce papier, ce feu”, pp. 245-268.
10
DE1: “Préface”, p. 161.
11
Ibid., p. 162.
12
Ibid., p. 161.
13
Ibid., p. 160.
14
Ibid.
15
F. Gros vai mais longe, pois considera que estamos perante um
“drama metafísico”,cf. Foucault et la Folie, Paris, PUF, 1997, p. 29.
16
DE1: Préface; p. 164.
17
O primeiro a sublinhar as dificuldades que a ideia de uma “loucura
selvagem” coloca foi Jacques Derrida, L’écriture et la différence, Paris,
Éditions du Seuil, 1967, p.57. Mais tarde Paul Rabinow e Hubert
Dreyfus, (Michel Foucault, un parcours philosophique, Gallimard, Paris,
1987, p. 18) insistiram que Foucault abandonou essa tese. A diferença
entre Derrida e Rabinow e Dreyfus é que estes consideram, com razão,
a tese insustentável, enquanto que Derrida mostra um claro fascínio
por ela, e só lamenta que ela se deixe prender nas malhas da razão.
18
DE1: “Préface”, p. 160.
19
“…je voudrais essayer de repérer comment s'est fait, mais comment
aussi fut répété, reconduit, déplacé ce choix de la vérité à l'intérieur
duquel nous sommes pris mais que nous renouvelons sans cesse” in
OD: p. 64.
20
“L’histoire de la folie serait l’histoire de l’Autre - de ce qui, pour une
culture, est à la fois intérieur et étranger, donc à exclure (pour en
conjurer le péril intérieur) mais en l’enfermant (pour en réduire
l’altérité); l’histoire de l’ordre des choses serait l’histoire du Même - de
ce qui pour une culture est à la fois dispersé et apparenté, donc à
distinguer par des marques et à recueillir dans des identités.” in MC,
p. 15.
21
VS : 123 ; ver também a aula de 5 de Janeiro do curso no Colégio
de França de 1982 – 1983, “Le gouvernement de soi et des autres”.
22
DE1: “La folie, l’absence d’ouvre”, pp. 412-420.
23
HF, p. 10.
24
DE2 : “Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir”, p. 522.
25
DE1 : “Préface”, p. 159.
26
“Les Grecs avaient rapport à quelque chose qu'ils appelaient ubris.
Ce rapport n'était pas seulement de condamnation; l'existence de
Thrasymaque, ou celle de Calliclès, suffit à le montrer, même si leur
discours nous est transmis, enveloppé déjà dans la dialectique
rassurante de Socrate. Mais le Logos grec n'avait pas de contraire.
L'homme européen depuis le fond du Moyen Âge a rapport à quelque
chose qu'il appelle confusément: Folie, Démence, Déraison. C'est
peut-être à cette présence obscure que la Raison occidentale doit
quelque chose de sa profondeur, …” in DE1 : “Préface”, p. 160.
27
HF, p. 381.
28
UP, p. 10.
29
DE4 : “«Omnes et singulatim» : vers une critique de la raison politique”,
pp. 291-161.
30
“…la multiplication des objectifs et des agents du pouvoir pastoral a
permis de centrer le développement du savoir sur l’homme autour de
deux pôles: l’un, globalisant et quantitatif, concernait la population;
l’autre, analytique, concernait l’individu.” in DE4: “Le sujet et le
pouvoir”, p. 231.
31
“...il y a eu implantation, multiplication même et diffusion des
techniques pastorales dans le cadre laïc de l’appareil d’État.” in DE3:
“La philosophie analytique de la politique”, p. 550.
32
“Le pastorat, s’il a perdu dans sa forme strictement religieuse
l’essentiel de ses pouvoirs, a trouvé dans l’État un nouveau support et
un principe de transformation.”, ibid., p. 551.
33
“je vous citerai simplement une phrase d’un historien qui s’appelle
Garcia: « De nos jours – dit-il en 1860 – la santé a remplacé le salut.
»” in DE1: “Nietzsche, Freud, Marx”, p. 579.
34
Há todo um percurso que vai do problema dos lapsi nos primórdios
do cristianismo à economia do exame na idade contemporânea. Sobre
os lapsi ver STP, p. 177. “L’examen, entouré de toutes ses techniques
documentaires, fait de chaque individu un « cas » : un cas qui tout à
fois constitue un objet pour une connaissance et une prise pour le
pouvoir.”, in SP , p.193.
35
DE3: “Sexualité et pouvoir”, p. 562.
36
“L’homme occidental a appris pendant des millénaires, ce que
jamais aucun Grec sans doute n’aurait accepté d’admettre, il a appris
pendant des millénaires à se considérer comme une brebis parmi les
brebis. Il a, pendant des millénaires, appris à demander son salut à un
pasteur qui se sacrifie pour lui.”, in STP, p. 134.
37
É digna de nota a aversão que a Psicanálise tem para com a auto-
análise, pois ela representa uma forma de resistência à análise que se
alimenta do narcisismo. Como é evidente temos aqui não só o tema
cristão do apego a si mesmo como obstáculo à salvação, como também
o da “voz” que nos ilude e nos afasta da verdadeira cura.
38
DE3: “Sexualité et pouvoir”, p. 563.
39
MF, 4ª conferência.
40
Novo Testamento, Mateus 5:5.
41
“Le christianisme grec nommait apatheia cet état d'obédience. Et
l'évolution du sens de ce mot est significative. Dans la philosophie
grecque, apatheia désigne l'empire que l'individu exerce sur ses
passions grâce à l'exercice de la raison. Dans la pensée chrétienne, le
pathos est la volonté exercée sur soi, et pour soi. L'apatheia nous
délivre d'une telle opiniâtreté.”, “«Omnes et singulatim» : vers une
critique de la raison politique in DE4: 143. Sobre o tema da apatheia
ver ainda STP, p. 182.
42
“Les techniques de la pastorale chrétienne concernant la direction
de conscience, le soin des âmes, la cure des âmes, toutes ces pratiques
qui vont de l’exame à la confession, en passant par l’aveu, ce rapport
obligé de soi-même à soi-même en terme de vérité et de discours
obligé, c’est cela, me semble-t-il, qui est l’un des points fondamentaux
du pouvoir pastoral et qui en fait un pouvoir individualisant.”, DE3:
“La philosophie analytique de la politique”, p. 549.
43
“Le christianisme, comme chacun sait, est une confession. Cela
signifie que le christianisme appartient à un type bien particulier de
religions: celles qui imposent, à ceux qui les pratiquent, des
obligations de vérité.” DE4: “Sexualité et solitude”, p. 171.
44
DE4: “Du gouvernement des vivants”, p.126.
45
Este é aliás um dos temas do seu último curso no Colégio de França
(A coragem da verdade), a passagem da parrésia cínica (o escândalo da
verdade) para a parrésia cristã (o martírio) e como ambas formaram
finalmente a matriz das formas modernas de militância. Ver aula de
28 de Março de 1984.
46
MF, 4ª conferência.
47
Sobre “a instância da obediência pura”, ver STP, p. 177.
48
Sobre a mestria na Antiguidade Clássica (mestria do exemplo, da
competência, e socrática), ver HS, pp. 123-124.
49
STP, p. 180. Ver também MF 4ª conferência. Andrei Tarkovski,
recorre a este apotegma dos padres do deserto no seu último filme O
Sacrifício. Cf. A. Tarkovski, Esculpir o Tempo, S. Paulo, Martins Fon-
tes, 1990, p. 275.
50
Como é inevitável, este célebre apotegma tem várias versões, o
próprio Foucault nem sempre narra a mesma. Na versão mais simpáti-
ca à piedade frouxa, o pau acaba por florir.
51
“Je suis humble, ça veut dire que j’accepterai des ordres de
quiconque, du moment qu’il me les donnera et que je pourrai
reconnaître dans cette volonté de l’autre – moi je suis le dernier – la
volonté de Dieu.”, DE3: “Sexualité et pouvoir”, p. 564.
52
“L’obéissance, loin d’être un état autonome final, implique le
contrôle intégrale de la conduite par le maître. C’est un sacrifice de
soi, un sacrifice de la volonté du sujet. C’est la nouvelle technique de
soi.”, DE4: “Les Techniques de soi”, p. 809.
53
Novo Testamento, Lucas, 15,3-7.
54
DE4: “Les Techniques de soi”, p. 808.
55
DE4: “Le gouvernement des vivants”,p. 128.
56
Se a “profundidade” é uma imagem que pode gerar muitos equívo-
cos na caracterização do Homem Europeu, ela deixa-se, contudo,
sancionar nesta inflexão do acto para o pensamento. Atente-se ainda
que esta inflexão não é pensada por Foucault como o resultado de
uma filosofia que descobre um mundo interior, mas sim como o efeito
de uma técnica. Foi no quadro de um exercício espiritual que visa a
concentração do pensamento em Deus, e em que o sujeito suspeita de
si mesmo, se sonda a si mesmo indefinidamente e se acusa a si mesmo,
que a inflexão para a interioridade se incorporou no Homem Europeu.
Sobre uma abordagem mais convencional, mas notável, do tema da
interioridade Cf. Taylor, Charles, Sources of Self – The Making of the
Modern Identity, Harvard University Press, 1994.
57
A fonte de Foucault para esta análise da espiritualidade monástica
são as obras de João Cassiano, Institutions cénobitiques, Éd. Du Cerf,
Paris, 1965; Conférences, Éd. Du Cerf, Paris, 1966.
58
Sobre a conversão a si e as formas de disciplinar a curiosidade, ver
HS, pp.197-214..
59
Em MF, 4ª conferência, Foucault dá como exemplo o monge a
quem ocorreu a ideia de fazer jejum. Esta ideia, aparentemente boa,
porque contribui para a convergência em Deus, ao ser analisada, pode
revelar outras coisas, por exemplo: o desejo de ele se valer sobre os
outros monges. Além do mais, ao praticar o jejum, ele corre o risco de
enfraquecer o corpo de tal forma que acabe por ceder à gula. Donde,
uma ideia boa pode ocultar outra. Resumidamente, trata-se de saber
se um pensamento não dissimula outro, se as “ideias boas” não são um
disfarce para as ideias induzidas pelo demónio. Desnecessário será
recordar como esta suspeição de si a si se incorporou no Homem
Europeu, e o conduziu a esse indefinido exame de si em que a verdade
que lhe escapa acaba por o fazer perder.
60
“Verdade e Subjectividade” (Howison Lectures), p. 219.
61
Idem, p.219. Sobre a « pureza » e a proveniência das ideias ver
ainda HS, p. 287.
62
MF, 4ª conferência.
63
Em MF. (4ª conferência) Foucault estabelece a proveniência directa
do Génio Maligno de Descartes com o Demónio cristão que, na espiri-
tualidade monástica, desvia o monge da verdade. Dito de outra
maneira: a formulação filosófica, no século XVII, da hipótese de um
Génio Maligno tem por detrás a história milenar da espiritualidade
cristã. Certamente que as fontes medievais da filosofia cartesiana
foram sobejamente estudadas, mas para o nosso argumento esta rela-
ção entre o Demónio e o Génio Maligno deve ser sublinhada, porque
para Foucault este último representa na filosofia cartesiana todos os
perigos da desrazão.
64
“Verdade e Subjectividade” (Howison Lectures), p. 219
65
“The verbal act of confession is the proof, is the manifestation of
truth. Why? Well, I think it is because what marks the difference
between good and evil thoughts, following Cassian, is that the evil
ones cannot be referred to without difficulty. If one blushes in
recounting them, if one seeks to hide his own thoughts, if even quite
simply one hesitates to tell his thoughts, that is the proof that those
thoughts are not good as they may appear. Evil inhabits them.”
Christianity and Confession (About the beginning of the
hermeneutics o the self - Two Lectures at Dartmouth, 1980), pp. 219-
220.
66
Sobre a diferença entre a epistrophé platónica e a metánoia cristã, ver
HS, pp. 197-214.
67
DE4: “Le combat de la chasteté”, p. 307.
68
HS, pp. 121-139.
69
DE4: “L’herméneutique du sujet”, p. 356. HS, pp. 197-214.
70
“A revelação da verdade acerca de si próprio não pode ser dissocia-
da da obrigação de renunciar ao eu. Temos de sacrificar o eu de modo
a descobrir a verdade acerca do nosso eu. E temos de compreender
este sacrifício não apenas como uma mudança radical no modo de
vida mas como a consequência de uma fórmula. Renunciamos a ser o
sujeito da nossa vontade, vergados à obediência ao outro pela encena-
ção simbólica da nossa própria morte na publicacio sui. Facere veritatem
– fazer a verdade acerca de si próprio – é impossível sem este sacrifí-
cio.”, “Verdade e Subjectividade” (Howison Lectures), p. 221.
71
“Verdade e Subjectividade” (Howison Lectures), pp.222-223.
72
SP, pp. 137-171.
73
R. Sennett, O Declínio do Homem Público, As Tiranias da Intimidade,
trad. br. S. Paulo, Companhia das Letras, 1988.
74
MC, pp. 323–329.
75
S. Freud, “Casos Clínicos” in Obras Completas, Edição Standard,
vol. II, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1988, p.65.
76
AN, pp. 187-212.
77
STP, pp. 195-219.

Bibliografia sumária
Folie et déraison, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961.
Histoire de la folie, 10/18, Paris, Union générale d’édition, 1964.
Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971.
Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Gallimard, 1972.
Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975.
La volonté de savoir, Paris, Gallimard,1976.
L’usage de plaisirs, Paris, Gallimard, 1984.
Le souci de soi, Paris, Gallimard,1984.
Dits et écrits, 4 volumes, Paris, Gallimard, 1994.

Cursos no Colégio de França :


Les anormaux, Paris, Gallimard, 1999.
L’herméneutique du sujet, Paris, Gallimard, 2001.
Sécurité, Territoire, Population, Paris, Gallimard, 2004

Conferências e textos inéditos :


Mal faire, dire vrai. Fonctions de l’aveu. Seis Conferências proferidas na
Universidade Católica de Lovaina em 1981.
Verdade e Subjectividade (Howison Lectures), (1980) in “Revista de
Comunicação e Linguagens”, Nº 19, 1993, pp. 203-223.
Subjectivity and Truth & Christianity and Confession (About the
beginning of the hermeneutics of the self - Two Lectures at
Dartmouth, 1980, in “Political Theory”, Vol. 21 nº2, May 1993, pp.
198-227.

Observação: os cursos e textos inéditos de Michel Foucault podem ser


consultados no IMEC, 9 rue Bleue, 75009, Paris.
Abstract
Dans la Préface originale de L'histoire de la folie à l'âge classique,
Michel Foucault énonce un programme d'étude : la relation de
l'homme européen à la déraison. Comment cette déraison a-t-elle
surgi au fond du Moyen-Âge et comment cette expérience
différencie-t-elle l'homme européen de l'homme de l'Antiquité
classique ? L'hypothèse de départ fut de comprendre la déraison en
tant qu'une expérience chrétienne. C'est dans les années 1970 que
Foucault développa les instruments et définit l'horizon à partir
desquels cette spécificité chrétienne peut être pensée. Premièrement à
partir d'une nouvelle modalité du pouvoir, le pouvoir pastoral ;
ensuite à partir d'un nouvel horizon de subjectivation, tout d'abord la
mortification de soi, puis l'identité de soi ; et, finalement, à partir d'un
nouveau domaine du savoir, l'exégèse de soi. En somme, la déraison
est corrélative à ces trois axes d'une expérience chrétienne.
A constituição da psiquiatria no Brasil

Roberto Machado

Sabemos, pelo menos desde Michel Foucault, que a psiquia-


tria é um saber situado historicamente. Um discurso de tipo
médico sobre a loucura que a considera doença mental e uma
prática que tem a finalidade de curá-la por um tratamento físi-
co-moral só se constituem em determinado momento da histó-
ria. Momento em que a loucura se torna doença, fenómeno
patológico, mas doença diferente, exigindo, por conseguinte,
um tipo específico de medicina para a tratar, justamente a psi-
quiatria.
Em meados do século XIX, mais precisamente em 1852, é
criado, no Rio de Janeiro, um hospício destinado ao tratamento
de alienados. Primeiro hospital de doentes mentais do Brasil, o
Hospício de Pedro II inaugura uma nova etapa da história da
loucura e do louco neste país: assinala, como marco institucio-
nal, o nascimento da psiquiatria.
Início de um processo, a criação do hospício tem, porém,
como condição de possibilidade a transformação mais ampla
que atinge a medicina no século XIX. A hipótese que orientou
a nossa pesquisa foi que só é possível compreender o nascimen-
to da psiquiatria brasileira a partir de um tipo de medicina que
incorpora a sociedade como seu novo objecto e se impõe como
instância de controle social dos indivíduos e das populações.
Procuramos, portanto, mostrar que é no seio da medicina social
que se constitui a psiquiatria brasileira; que é do processo de
medicalização da sociedade, para usar uma expressão de Fou-

44
cault, que surge o projecto – característico da psiquiatria – de
patologizar o comportamento do louco, só a partir de então
considerado efectivamente curável.
É possível definir o conceito dessa medicina social – dessa
medicina que penetra na sociedade, incorporando o meio urba-
no como alvo da reflexão e da prática médicas – pelo desloca-
mento de seu objecto da doença para a saúde.
O que é uma grande mudança em relação ao que acontecia
com os chamados “encargos de saúde” tal como eram exercidos
pela administração colonial, tanto pela Fisicatura-Mor do Rei-
no, quanto pelas Câmaras Municipais.
A Fisicatura, instância médica suprema durante o período
colonial, implantada no Brasil em 1521 e extinta em 1828,
justamente quando se inicia a grande ofensiva da medicina
social brasileira, tem como objectivo não a fiscalização do espa-
ço social, mas da própria medicina, cujo exercício procura mais
legalizar do que normalizar, através de medidas de tipo jurídico-
punitivo, burocrático-administrativo. É uma espécie de tribunal
da medicina que julgava e punia quem transgredisse os seus
regulamentos no exercício da “arte de curar” – os chamados
charlatães –, não tendo, portanto, nenhuma ingerência em
assuntos de saúde pública.
As Câmaras Municipais têm no âmbito de suas atribuições a
fiscalização dos objectos e elementos tidos como sujos ou
podres, e que, por isso, aparecem como perigo para a vida
social. Fiscalizam, por exemplo, a limpeza das ruas, a conserva-
ção dos alimentos e os navios em momento de epidemia. Não
elaboram, entretanto, nenhum conhecimento sobre a cidade
como causa de doença. O controle que realizam através de um
vereador, o almotacé, a partir de denúncia da população ou por

45
sua própria descoberta, punindo o infractor com multa, é des-
contínuo e repressivo.
Em suma, além da heterogeneidade de suas atribuições, a
acção dessas instituições durante o Brasil colónia é sempre a
posteriori; dá-se depois do aparecimento de alguma irregulari-
dade, de uma infracção às leis. Elas se inscrevem no âmbito
jurídico-burocrático, desempenhando a função negativa de
restringir os direitos, impedir os excessos, coibir os abusos, fisca-
lizar e punir, em uma palavra: legalizar. Daí por que a medicina
social brasileira do século XIX – que defende uma acção de tipo
positiva, transformadora, recuperadora, acção que, instituindo
normas, imponha exigências a uma realidade que aparece como
hostil e diferente – considera tanto a Fisicatura quanto as
Câmaras incapazes de realizar a “polícia médica” da sociedade.
O “médico político” deve dificultar ou impedir o apareci-
mento da doença, lutando, no nível de suas causas, contra tudo
o que na sociedade pode interferir no bem-estar físico e moral.
Se a sociedade ou, como no caso brasileiro, que copiou o mode-
lo francês, a cidade, por sua desorganização e mau funciona-
mento, é causa de doença, a medicina deve reflectir e actuar
sobre os seus principais componentes visando neutralizar todo o
perigo possível. Em seu raio de acção estão componentes natu-
rais, como a água e o ar, componentes propriamente urbanísti-
cos, como as casas, as ruas, as praças, a rede de esgotos, os
canos, as valas, componentes institucionais, como o hospital, o
cemitério, a escola, a prisão, o quartel, o hospício. Nasce o con-
trole das virtualidades; nasce a periculosidade e com ela a pre-
venção, no sentido de uma acção contra a doença antes mesmo
que ela ecloda.
No Brasil, isso foi sobretudo o resultado de uma luta incen-
tivada e coordenada pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do

46
Rio de Janeiro que, desde sua fundação, em 1829, define como
um de seus objectivos a luta por regulamentos sanitários e o seu
controle por médicos, por mudanças de costumes, pelo controle
da venda de medicamentos, pelo estudo de epidemias e doenças
contagiosas, pela criação de lugares de consulta gratuita aos
pobres, pela intervenção em hospitais, prisões e outras institui-
ções.
Um bom exemplo dessa nova atitude é a posição dos médi-
cos em relação aos hospitais. Em 1831, um dos criadores da
Sociedade de Medicina e Cirurgia, Luiz Vicente de Simoni,
descreve o perigo que representa um hospital: “As exalações e
os miasmas que nele se geram ... infectam não só o próprio inte-
rior, como toda a cidade, constituindo-se em foco de epidemia e
contágio. Chamo atenção sobre os hospitais porque de todos os
grandes estabelecimentos eles são os que podem ser mais dano-
sos à saúde pública e porque de todas as emanações prejudiciais
nenhuma há que mais o sejam do que as que saem de corpos
que já existem em estado morboso.”
Esta constatação, cada vez mais repetida a partir de então,
evidencia que o hospital começa a ser percebido pelos médicos
como factor patogénico, causa de doença e de morte e, portan-
to, incompatível com a medicina moderna. Até então o hospi-
tal não é uma instituição médica; é uma entidade religiosa assis-
tencial destinada aos doentes pobres, forasteiros, soldados,
marinheiros. Não tem por objectivo a saúde, mas a salvação: o
plantão, por exemplo, é do “capelão da agonia”. A sua arquitec-
tura não obedece a um plano médico. Não tem médico na sua
administração. A assistência hospitalar é, portanto, menos uma
assistência à doença do que à miséria na hora da morte, parte
de uma acção caritativa da Irmandade da Santa Casa da Mise-

47
ricórdia que inclui crianças abandonadas, indigentes, prisionei-
ros.
É nesse espaço, inclusive, que se encontram os loucos,
quando não vagam pelas ruas ou – no caso dos ricos – são con-
tidos pelas famílias. E no hospital ele está como em uma prisão:
trancado e até mesmo preso a um tronco de escravos. Pode ser
louco, mas ainda não é doente mental.
No século XIX, a medicina coloniza o hospital. Ruptura com
o passado que pode ser compreendida não só a partir de trans-
formações médicas como também económicas, políticas e
sociais. Não é um acontecimento que se esgota nele mesmo,
mas uma peça das mudanças económicas – advindas da abertu-
ra dos portos, intensificação do comércio, implantação de
manufacturas – mas também das transformações políticas e
sociais que modificarão o Rio de Janeiro depois da chegada da
família real portuguesa em 1808, que se torna a metrópole polí-
tica de todo o Império português. É nesse momento, por exem-
plo, que a cidade sofre um grande aumento de sua população, a
partir de imigrações internas e externas, como também, assiste
à criação, por D. João VI, de novas instituições, como a Biblio-
teca Real, a Imprensa Régia, o Museu Real, o Jardim Botânico,
a Academia Real Militar, o Curso de Agronomia, a Cadeira de
Economia, além da Escola de Cirurgia do Rio e de Salvador,
acabando com a proibição de ensino superior, ponto básico da
política de Portugal em relação ao Brasil colonial.
Se a nova racionalidade dessa medicina que os médicos da
época já chamavam de política vai pouco a pouco – não sem
lutas e obstáculos – impregnar o aparelho de Estado e se inte-
ressar pelas instituições, a sua política em relação ao hospital
para torná-lo um operador terapêutico, é clara: dominar o peri-
go que grassa no seu interior. E para isso, além de expulsar o

48
hospital do centro da cidade, por causa das exalações e dos
miasmas gerados no seu interior e que afectam toda a cidade, é
necessário ordenar o seu espaço e funcionamento, destruindo a
falta de higiene, o aglomerado humano, a promiscuidade, o
vício, o ócio que estão inscritos em seu próprio espaço.
O que Michel Foucault chamou de medicalização da socie-
dade – processo que cada vez mais se intensifica – é o reconhe-
cimento de que a partir do século XIX a medicina em tudo
intervém e começa a não mais ter fronteiras; é a compreensão
de que o perigo urbano não pode ser destruído unicamente pela
promulgação de leis ou por uma acção lacunar, fragmentária, de
repressão aos abusos, mas exige a criação de uma nova tecnolo-
gia de poder capaz de controlar os indivíduos e as populações,
tornando-os economicamente produtivos ao mesmo tempo que
politicamente inofensivos; é a descoberta de que, com o objec-
tivo de realizar uma sociedade sadia, a medicina social esteve,
desde a sua constituição, ligada ao projecto de transformação
do desviante – sejam quais forem as especificidades que ele
apresente – em um ser normalizado; é a certeza de que a medi-
cina não pode desempenhar a sua função política sem instituir a
figura normalizada do médico, através sobretudo da criação de
faculdades, e produzir a personagem desviante do charlatão,
para a qual exigirá a repressão do Estado. A produção de um
novo tipo de indivíduo e de população necessário à existência
da sociedade capitalista, antes mesmo do aparecimento de
grandes transformações industriais, está, portanto, intrinseca-
mente ligada ao novo tipo de medicina que pela primeira vez
equaciona uma relação de causalidade entre os termos saúde e
sociedade.

***

49
A questão da loucura depende desse contexto. A considera-
ção dos principais documentos que, pela primeira vez no Brasil,
investigam a situação do louco explicitando sua periculosidade,
criticando as péssimas condições e a ineficácia de seu enclausu-
ramento e propondo, a partir do modelo francês elaborado por
Pinel e Esquirol, a criação de um estabelecimento próprio para
eles, mostra claramente que um mesmo grupo de médicos – os
fundadores da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de
Janeiro – promoveu a medicina social e empunhou a bandeira
da psiquiatria. Neste sentido, o Relatório da Comissão de Salu-
bridade dessa Sociedade, de 1830, é o primeiro documento
brasileiro a tratar o louco como doente mental. Inserção da
questão da loucura no âmbito de uma medicina do espaço
social que não é acidental mas, ao contrário, essencial: a razão é
que o hospício, principal instrumento terapêutico da psiquiatria
da época, nasce como exigência de uma crítica higiénica e dis-
ciplinar às instituições de enclausuramento e ao perigo presente
em uma população que se começa a perceber como desviante, a
partir de critérios que a própria medicina social institui.
A ofensiva da medicina em relação ao louco configura-se
assim basicamente na criação de uma instituição capaz de o
medicalizar. Por um lado, a proposta de organização e funcio-
namento da cidade deve excluir o louco da livre circulação no
seu interior, visto que ele representa um foco de perigo; por
outro, quando analisa as instituições, a medicina institui o
espaço próprio do louco, capaz não só de dominá-lo – destruir
os seus efeitos, subjugar sua ameaça – como também de atingir
sua loucura e integrá-lo à vida urbana por um processo de recu-
peração.

50
Data desse momento a formulação, no Brasil, da primeira
teoria psiquiátrica da loucura. O que não significa que esta seja
a primeira teoria médica de loucura formulada entre nós. A
loucura foi doença antes de se tornar, com a psiquiatria, doença
mental. Uma prova é a obra de Simão Pinheiro Morão “Quei-
xas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco contra os
abusos médicos...” escrita em 1677.
Para Morão, e a estrutura taxonómica do seu pensamento
médico, a loucura é uma doença do género delírio. É uma des-
temperança do cérebro, uma doença física do órgão da inteli-
gência e, como tal, inscreve-se sem problemas na continuidade
de um saber propriamente médico sobre as doenças em geral.
Inscrição esta possibilitada pela teoria dos humores, doutrina
médica que dá coerência à reflexão sobre a sede da enfermida-
de, suas causas, suas espécies e sua terapia. O delírio, no caso
da loucura, manifesta a corrupção de vapores emanados de
diferentes partes do corpo, corrupção que acaba por induzir a
erros do entendimento. E a variedade das manifestações deli-
rantes decorre da variedade dos humores que dão conta do
funcionamento do organismo humano e exigem um tratamento
exclusivamente físico.
Com a psiquiatria do século XIX produz-se um importante
deslocamento. Um dos conflitos básicos que estão ligados à
constituição da loucura como doença mental gira em torno da
seguinte questão: estará a alienação mental situada na inteli-
gência ou, mais fundamentalmente, diz respeito aos fenómenos
ligados à vontade? Deve ser caracterizada como erro, ilusão,
alucinação, delírio ou como perversão da vontade, desregra-
mento das paixões, força do instinto, comportamento desviado?
Na resposta a essa questão os alienistas brasileiros seguiram
basicamente os franceses, principalmente Esquirol, o grande

51
marco teórico do aparecimento do conceito psiquiátrico de
loucura.
Esquirol é o criador do conceito de monomania, doença
mental em que “o delírio se limita a um único objecto ou a um
pequeno número de objectos, com excitação e predominância
de uma paixão...”. E se encontramos nesta definição de mono-
mania a noção de delírio parcial da inteligência e a predomi-
nância de uma paixão, toda a teoria de Esquirol deixa claro que
o nível das paixões é muito mais fundamental, como caracterís-
tica da alienação mental, do que o da inteligência. Mesmo con-
siderada como delírio parcial, este aspecto é secundário, deriva-
do, subordinado a um nível mais elementar, que está em rela-
ção com a vontade, onde se situam as paixões e o comporta-
mento moral. “Esta alienação moral, diz Esquirol, é tão cons-
tante que me parece uma característica essencial da alienação
mental. Existem alienados cujo delírio é quase imperceptível:
nenhum há cujas paixões, as afecções morais, não estejam
desordenadas, pervertidas, destruídas”. O que leva inclusive
Esquirol a formular o conceito de uma doença mental em que
as ideias e os discursos dos alienados são normais, enquanto que
a desordem se situa no âmbito do comportamento, diz respeito
aos hábitos, ao carácter, às acções, às paixões do alienado: o
doente que era bom torna-se mau; afectuoso, agressivo; eco-
nómico, pródigo.
É nesta linha de argumentação que se inserem os primeiros
textos psiquiátricos escritos no Brasil, desde a tese de doutorado
em medicina de Silva Peixoto, em 1837: esses textos confir-
mam, retomando o conceito de monomania de Esquirol, o des-
prestígio das faculdades intelectuais para caracterizar a loucura,
que concerne agora fundamentalmente à conduta, aos hábitos,
aos afectos, à paixão.

52
É verdade que a teoria psiquiátrica brasileira, reinante até o
final do século XIX, é basicamente um exercício de cunho uni-
versitário, escolar e burocrático. Caracterizada pela repetição
do saber estrangeiro, sem grande cuidado com as distinções
estabelecidas por um mesmo teórico ou com as diferenças entre
um pensador e outro, estão cheias de incoerências conceptuais
que a prática ausente de seus formuladores não pode revestir
nem de aparente objectividade.
Mas o que é importante na produção brasileira sobre a teoria
da alienação mental é, antes de tudo, seu papel de instrumento
auxiliar de validação da ofensiva médica, tanto no que concer-
ne à consolidação e prestígio do ensino e da profissão, quanto
em relação ao movimento da medicina social que, ao intervir
na sociedade, percebe no louco um elemento de desordem e
periculosidade urbanas e prevê um lugar para sua correcção. Ao
abrir espaço em suas teorias para reivindicar ou louvar o isola-
mento da loucura no asilo, seguindo o exemplo de Pinel e
Esquirol, os médicos brasileiros formulam coerentemente o
fundamental do seu saber e das suas pretensões.
No fundo, tudo converge para a grande realização da psi-
quiatria na época de sua constituição: o hospício como poder
disciplinar. Realidade que se pretende opor à situação perigosa
dos loucos vagando pelas ruas da cidade e injustiçados quando
enclausurados em “cárceres que no Hospital da Santa Casa da
Misericórdia lhes são dados para asilo”. A prisão hospitalar
pode segregar o louco, retirá-lo do convívio social quando se
mostra perigoso, mas é incapaz de atingir sua loucura. No velho
hospital o louco não é considerado doente, muito menos doen-
te específico: não recebe tratamento físico e moral condizente
com a natureza da sua doença; não há repartição espacial dos
doentes em espécies; não existe médico especialista dedicado a

53
esse tipo de doente, nem enfermeiros qualificados; as condições
higiénicas são completamente inadequadas.
Tendo como objectivo fazer desaparecer a loucura, caracte-
rizando-se por uma acção que não se dá como negativa, dedica-
da a excluir, mas como positiva, recuperadora, a psiquiatria
precisa ser instrumentalizada com dispositivos que possibilitem
a eficácia de sua intervenção. Daí a importância da organização
de um espaço terapêutico e a necessidade de o doente mental
ser colocado em um ambiente criado especialmente para ele,
que não seja exterior ou acidental com relação ao núcleo básico
da prática psiquiátrica.
Entre hospício e psiquiatria não há, portanto, relação de
exterioridade: ele é uma instituição concebida medicamente.
Tanto a sua estrutura quanto o seu funcionamento realizam o
projecto psiquiátrico nascente: isola o louco da sociedade;
organiza o espaço interno e a distribuição dos indivíduos pre-
servando uma convivência regular e ordenada; vigia o alienado
em todos os momentos e em todos os lugares, através de uma
“pirâmide de olhares” composta de médicos, enfermeiros, fun-
cionários e serventes; distribui o tempo dos internos submeten-
do-os à realidade do trabalho como principal norma terapêuti-
ca.
Assim, contando com dispositivos específicos, pessoal espe-
cializado, população seleccionada, arcabouço jurídico, passa a
existir, em meados do século XIX, uma nova forma de poder,
resultado de uma luta médica que impõe, cada vez com mais
peso, a presença normalizadora da medicina como uma das
características essenciais das sociedade em que vivemos.
A partir de então, loucura e prevenção estarão para sempre
ligadas. Ainda não, é verdade, no sentido de uma intervenção
sobre a loucura antes mesmo que ela ecloda, que é a grande

54
pretensão da actualidade. Mas no sentido em que a loucura é
caracterizada medicamente como alienação mental, e portanto
conduta anormal, no momento em que, formulando uma etio-
logia social da doença, a medicina urbana detecta e combate os
diversos perigos que podem ameaçar a existência de uma socie-
dade em vias de normalização. Coube à psiquiatria, como ins-
tância específica de controle nascida com a medicina social, a
tarefa de isolar preventivamente o louco com o objectivo de
reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivo que ela viu
caracterizada na sua doença. Se ainda não é “psiquiatria pre-
ventiva” é claramente um instrumento da prevenção.
A psiquiatria, portanto, não se constitui no Brasil como uma
ideia, uma idealidade discursiva, um simples efeito ideológico:
uma justificação ou legitimação que tem como objectivo ofus-
car, mistificar, obscurecer os mecanismos de dominação de uma
classe sobre a outra. A sua acção é muito mais penetrante e
eficaz. Ela atinge directamente o corpo das pessoas; é uma rea-
lidade que desempenha um papel de transformação dos indiví-
duos, assumindo o encargo de sua vida, gerindo sua existência,
impondo uma norma de conduta a um comportamento desre-
grado. Denota, assim, a presença da medicina em um aspecto
da realidade que até então lhe era estranho, desconhecido,
exterior. Através da psiquiatria o médico penetra ainda mais
profundamente na vida social, dá as cartas em um jogo que
passa a existir segundo regras por ele mesmo criadas.
O seu instrumento básico nesta época: o hospício. Na acção
da medicina com relação à loucura tudo converge para a
implantação desse espaço específico de reclusão que, abrigando
as pessoas consideradas doentes mentais, pretende recuperá-las
pela própria força terapêutica de sua organização. É toda a
estrutura asilar que, em seus diversos aspectos, se concentra

55
nesse objectivo de transformação da vida de um tipo específico
de desviante. A eficácia do hospício reside – e isso é parte
essencial da teoria psiquiátrica do século XIX – na sua presença
na sociedade como operador de cura: cura de uma doença que
tem características especiais e justifica um tipo de intervenção
original com relação à medicina orgânica – a anátomo-clínica –
que se constitui na mesma época que a medicina mental.
A existência da doença mental pede um tratamento moral.
Daí a intervenção terapêutica da psiquiatria ser menos uma
medicação do que uma educação. A organização arquitectónica
deve ser marcada intrinsecamente por uma característica médi-
ca: no hospício, o que cura é o próprio hospício; o bom emprego
do tempo é condição indispensável do processo de transforma-
ção do alienado em um ser útil e dócil: ele deve introjetar a lei
moral do trabalho; a direcção centralizada, conjugando saber e
autoridade, encarna a norma de comportamento e estabelece as
etapas do percurso terapêutico: o médico deve ocupar o topo da
estrutura de poder característico do hospício; a internamento
do alienado deve possuir um fundamento legal que evite o peri-
go das sequestrações arbitrárias: a medicina deve impregnar a
legislação e a justiça.

***

Desde o início do hospício, os alienistas brasileiros não se


cansam de cantar o seu louvor: a cientificidade de sua organiza-
ção espacial e funcional; a dedicação e competência do seu
pessoal dirigente; a aplicação do tratamento moral. O hospício
realiza assim uma verdadeira pedagogia da ordem.
Pouco a pouco, porém, surgem críticas. Não, curiosamente,
críticas externas: protestos, desconfianças, denúncias de quem

56
foi prejudicado, conheceu um caso de injustiça ou não aceita a
existência do hospício. As críticas são internas: partem dos
médicos e mesmo dos directores, como, por exemplo, no final
do século XIX, as de Nuno de Andrade e Teixeira Brandão, os
dois mais importantes psiquiatras brasileiros da época. Essas
críticas têm como veículo jornais, livros, mas sobretudo os pró-
prios relatórios do hospício, e como alvo a instituição onde
trabalham ou que dirigem: a organização arquitectónica não é
tão perfeita como se supunha quando se consideram as novas
concepções de loucura; o exame do pessoal clínico e adminis-
trativo evidencia que o médico não detém todo o poder sobre a
loucura, mas está subordinado ao pessoal religioso ou é tolhido
pela incompetência, ignorância ou maldade dos enfermeiros; o
processo de internamento, não dependendo inteiramente do
médico, ainda permite a presença de não-loucos no hospício e
de loucos em prisões ou outros lugares não especificamente
criados para eles; não há, finalmente, uma lei nacional de alie-
nados e um serviço de assistência organizado pelo Estado que
faça com que o Hospício de Pedro II deixe de ser uma excep-
ção, o que só será aprovado pelo Congresso em 1903.
Essas críticas – hoje ainda mais virulentas – são importantís-
simas para fazer pensar a natureza não só do hospício, mas da
própria psiquiatria. Por um lado, explicitam a exigência medica
de um espaço criado para a medicalização do louco. Evidenciam
a dificuldade que teve a psiquiatria para impor os seus objecti-
vos, tornam claro que resistências dentro de seu próprio espaço
sempre estiveram presente, impedindo que o modelo teórico do
hospício se impusesse; são parte de uma estratégia por maior
poder da medicina, que neste momento tem que se defrontar
com outras instituições, como a Irmandade da Santa Casa da
Misericórdia, para disseminar o seu projecto normalizador da

57
sociedade e, mais particularmente, ver possibilitado o funcio-
namento do hospício. Por isso, longe de pôr em questão a pró-
pria psiquiatria, serve fundamentalmente de apoio a uma exi-
gência de maior medicalização. Faz a teoria psiquiátrica refinar,
cada vez mais, os seus conceitos para atingir novas faixas da
população – numa evolução que vai do doente mental ao
anormal e do anormal ao próprio normal –, tornando a socie-
dade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado.
Por outro lado, o processo de crítica, de insatisfação, de pro-
posta de reforma, que é uma constante da história da loucura
como doença mental, explicita realmente o fracasso da psiquia-
tria como uma instância terapêutica. É principalmente através
do hospício, instrumento terapêutico básico da psiquiatria do
século XIX, que se dá a medicalização do louco. Mas todos nós
sabemos que, se a medicina mental oferece a cura asilar como
sua principal aquisição científica, até hoje nunca deixou de
reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não
mais sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar.

Recorrer à história não significa abandonar a realidade do


presente e a perspectiva do futuro. Sobretudo no caso de uma
história das ciências que se quer filosófica, isto é, que, seguindo
o exemplo da Michel Foucault, não se contenta em ser uma
simples descrição factual de biografias, descobertas ou teorias,
mas pretende interrogar o discurso e a prática das ciências
visando estabelecer as suas condições conceptuais e políticas de
existência. Daí por que uma das principais motivações de nossa
pesquisa foi pôr à psiquiatria a seguinte questão: será que as
transformações contemporâneas propostas à prática e à teoria
psiquiátricas – mesmo as que vestem de psicanálise os seus con-
ceitos básicos e se intitulam, sem perceber a tautologia que isso

58
implica, psiquiatria social – são capazes de romper radicalmente
com a realidade da psiquiatria como uma instância político-
científica de controle normalizador da vida social, característica
que a acompanha desde a sua constituição? 1

1
O texto desta palestra, proferida no dia 29 de Novembro de 2000 na
Faculdade de Letras de Lisboa para os membros do Projecto História
da Loucura em Portugal, apresenta algumas conclusões da pesquisa que
realizei, entre 1973 e 1978, com um grupo de amigos – Angela Lourei-
ro, Rogerio Luz, Katia Muricy –, publicada com o título Danação da
norma. A medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil (Rio de
Janeiro, Graal, 1978, esgotado).

59
Juliano Moreira e a metamorfose
da psiquiatria brasileira

Vera Portocarrero

Problematização. A psiquiatria teve, no Brasil, a sua consti-


tuição directamente ligada ao projecto da medicina social. Esta
medicina surge como um saber e como uma prática social no
século XIX, ao incorporar a sociedade como objecto e ao
impor-se como instância de controle social dos indivíduos e da
população. Por esse facto, no decorrer de todo esse século a
psiquiatria lutou para se impor como ciência médica e como um
saber necessário à sociedade1.
O objectivo deste estudo é analisar o discurso da psiquia-
tria, assinalando as suas principais rupturas, a fim de com-
preender a sua nova configuração no início do século XX.
Procuramos reconstituir essa nova configuração através da
articulação do novo discurso teórico com as novas práticas
sociais, políticas e económicas. Mas a questão que nos guia
agora consiste na extensão das mudanças que se constituiram
com o modelo psiquiátrico, introduzido, no Brasil, por Juliano
Moreira2. Tal aconteceu no final do século XIX, com as suas
novas formulações no campo científico e as suas novas formas
assistenciais. Elas marcaram uma ruptura com o momento ante-
rior, produzindo uma verdadeira metamorfose na psiquiatria.
É na perspectiva de um pensamento a ser utilizado, de um
modo particular, para pensar historicamente a nossa actualida-
de, que retomo algumas noções cunhadas por Foucault na sua
analítica do poder e na arqueologia do saber. São sobretudo

60
aquelas noções formuladas a respeito das formas de problemati-
zação da loucura, da delinquência, da criminalidade e da anor-
malidade, eventuais ou actuais, futuras ou presentes, e com os
processos de normalização da sociedade na modernidade.
Foucault mostra, nos seus livros, entrevistas e cursos, aquilo
que fomos determinados a pensar, a ver e até a ser, questionan-
do aquilo em que nos estamos ou poderíamos estar tornando,
ao nos dirigirmos a zonas limítrofes das regularidades por ele
delimitadas com o objetivo de as ultrapassar. Foucault conduz à
importante concepção de que a interpretação nunca é suficie n-
te para atingir esta zona que só pode ser alcançada na prática
do pensamento e na experiência.
Esta análise de forças, já determinadas do ponto de vista do
arquivo, dos tipos de articulação entre discursos e práticas diri-
gidos aos loucos e aos anormais, improdutivos ou criminosos,
tem como ponto de partida a pesquisa dos enunciados. O que
nos interessa é ver aquilo em que se tornou a psiquiatria brasi-
leira a partir das críticas a ela dirigidas na passagem do século
XIX para o XX.
Tal preocupação diz respeito à problematização de nossa
actualidade: onde encontramos, hoje, zonas de disponibilidade
para novas apreensões, nas quais a resistência se combina com a
invenção, a experimentação? de que modo ainda é possível
colocar a questão de como contornar formas políticas, nas quais
somos inseridos, em termos de bordas ou margens às quais nos
podemos dirigir, traçando alternativas, mesmo num momento
de crise das instituições brasileiras de reclusão, que se arrasta,
com diferentes modalidades, desde o século XIX? Em crise,
todos os critérios de verdade, enfraquecidos, perdem a hegemo-
nia, abrindo-se a novos modos de ver e gerir a loucura e a
anormalidade, disponibilizando espaços para novas apreensões e
novas experiências, onde a ficção, o artifício, a invenção3
podem ser colocados de uma nova forma.
Sem dúvida, tal questão pode ser direccionada para os espa-
ços onde se insere o binómio normal e anormal imanente às
relações de forças actuantes na nossa sociedade. Esse tipo de
espaço foi analisado por Foucault na segunda parte de seu tra-
balho, onde estudou a objectivação do sujeito - como ele mes-
mo afirma nos anos 80 ao fazer uma retrospectiva da sua pes-
quisa - através do estudo daquilo que ele denomina de práticas
de divisão: “O sujeito é dividido no seu interior e em relação
aos outros. Este processo o objectiva. Exemplos: o louco e o são,
o doente e o sadio, os criminosos e os «bons meninos» (...)
Pareceu-me que, enquanto o sujeito humano é colocado em
relações de produção e de significação, é igualmente colocado
em relações de poder muito complexas (...) era, portanto,
necessário estender as dimensões de uma definição de poder se
quiséssemos usá-la ao estudar a objectivação do sujeito”4.
Tal binómio é encontrado em arquivos que recobrem o
campo da psiquiatria brasileira a partir do final do século XIX.
Norma, anormal e normalização5 são conceitos operatórios que
permitem circunscrever acontecimentos singulares e relações
de poder específicas, ajudando a tornar visíveis as suas condi-
ções históricas de possibilidade.
A minha proposta é utilizar livremente o pensamento de
Foucault para dar conta da exterioridade da filosofia, articulan-
do-a à conjuntura política e teórica, como faço em Arquivos da
Loucura. Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psi-
quiatria6, estudo crítico dos efeitos de poder que a normalização
e a medicalização da sociedade podem produzir, ao se desenvol-
verem saberes e práticas psiquiátricas mais abrangentes para dar
conta dos indivíduos ditos anormais.

62
Trata-se de retomar o pensamento de Foucault a respeito do
problema do homem, do sujeito, do poder e das ciências do
homem. Procuramos seguir o ponto de vista da mudança aliada
à história, para pesquisar a metamorfose que se estabelece no
âmbito tanto do saber como da prática, sobretudo a partir do
surgimento do conceito de anormal como uma forma de psico-
patologia, no final do século XIX. O conceito de “anormal” fará
a psiquiatria abranger não somente a doença mental propria-
mente dita, como ocorreu até então, mas todo e qualquer des-
vio do comportamento normal, como o dos degenerados, epi-
lépticos 7, criminosos 8, sifilíticos9 e alcoólatras10 .
No que respeita à teoria, esta ruptura caracteriza-se pelo
estabelecimento de uma nova nosografia como a de Kraepelin 11.
Esta classifica ‘cientificamente’ casos de anormalidade – todo
desvio mental – e, de um modo geral, fornece um corpo con-
ceitual que justifica, com base na medicina ‘científica’, não só o
seqüestro do louco, mas a intervenção psiquiátrica sobre os
indivíduos anormais. No concernente à prática, a ruptura
manifesta-se na criação de um sistema de assistência abrangen-
te 12, que já não se restringe mais ao doente mental, nem se limi-
ta ao espaço do asilo fechado, como no século XIX. No século
XX, a prática psiquiátrica incidirá sobre aqueles que apresen-
tam desvios mentais, actuais ou potenciais, loucos ou virtual-
mente loucos, e penetrará em instituições, como a família, a
escola, as Forças Armadas 13, com o objetivo terapêutico e pre-
ventivo de lutar contra a criminalidade e a baixa produtividade,
combatendo a doença mental propriamente dita e a anormali-
dade.
O novo modelo psiquiátrico introduzido no Brasil por Julia-
no Moreira e os seus contemporâneos é, aqui, pesquisado do
ponto de vista dos enunciados que, mesmo não legitimados pela
cientificidade, possuem a positividade do reconhecimento do
saber como efectivo. Desta forma, os enunciados só podem ser
submetidos ao critério da história e não ao da racionalidade, da
verdade ou do erro, específico das histórias das ciências. Assim,
o saber é analisado no seu valor estratégico, para apontar uma
articulação da psiquiatria com a gestão política do espaço
social. Neste nível, o saber está investido também nas ficções,
nas reflexões, nas narrativas, nos regulamentos institucionais e
nas decisões políticas.
A matéria desta pesquisa são as fontes documentais – teses,
artigos publicados em revistas médicas e psiquiátricas, actas de
reuniões das sociedades psiquiátricas, regulamentos dos asilos
psiquiátricos encontradas nos arquivos14 –, a partir das quais se
determinaram as formas de problematizações analisadas e as
séries agrupadas em torno de dois eixos, o da teoria psiquiátrica
e o da assistência ao doente mental, dois aspectos diferentes de
um mesmo saber, que assim podemos considerar, na medida em
que constituem dois tipos de discurso com características pró-
prias, às vezes até contraditórias entre si: o discurso teórico de
um lado, e o discurso social da psiquiatria do outro; ora a doen-
ça mental aparecendo caracterizada como um problema psicos-
somático, individual, ora a doença mental relativa a um mal
social, resultante de desvios como alcoolismo e outros, então
causas de decadência da humanidade.
No início do século XX, portanto, o discurso teórico remete-
nos tanto à composição de um quadro classificatório dos tipos
de doença mental15, que constitui a racionalidade supostamente
médica, à qual a elaboração teórica procura se integrar cada vez
mais, quanto ao discurso social da psiquiatria, ao tema da assis-
tência que, perpassada pela exigência de uma legitimação
legal16 e de novas modalidades de assistência asilar e não asilar,

64
nos permite compreender as suas condições históricas de possi-
bilidade.
Entre os dois, há uma nova forma de articulação que carac-
teriza a psiquiatria brasileira do início do século XX. Esta novi-
dade esclarece-se quando a psiquiatria se dirige ao problema da
assistência ao alienado mental substituindo a classificação
baseada em Esquirol 17 pelo modelo de Kraepelin. Daí termos,
nesta pesquisa, de um lado, a análise da teoria, baseada no novo
modelo introduzido no Brasil por Juliano Moreira e, de outro, a
da assistência psiquiátrica do início do século XX, considerando
a reforma do hospício, a criação de colónias agrícolas e a pro-
posta de reformatórios, relacionando-as com um Programa de
Higiene Mental 18.
Com Juliano Moreira, a problematização da psiquiatria na
nossa sociedade apresenta-se, sobretudo, nos termos do que
está em desenvolvimento na Europa quanto às concepções
psiquiátricas que devem ser instituídas na prática asilar. A
argumentação fundamental não é mais um trabalho de imposi-
ção da idéia de criação de um espaço especial, arquitetonica-
mente terapêutico, para o alienado, como aconteceu anterior-
mente; pois o louco já havia sido retirado, tanto quanto possí-
vel, das prisões e das enfermarias das Santas Casas da Miseri-
córdia 19, e não perambulava mais pela cidade desde o início do
funcionamento, em 1852, do primeiro hospício brasileiro para
loucos, o Hospício de Pedro II20 .
Foi de acordo com a nova concepção de alienação como
anormalidade que se argumentou, no Brasil, em favor de um
projecto de criação de asilos com características arquitecturais
especiais para tipos diferentes de alienados, mais do que de
acordo com as condições económicas. Tentava-se sempre obe-
decer aos preceitos científicos da época e às propostas das novas
modalidades de assistência. Embora pudessem, eventualmente,
oferecer meios para auxiliar nas dificuldades financeiras,
nenhuma delas se apresentava como uma solução efectiva para
o problema económico da assistência aos chamados psicopa-
tas21.
A articulação do saber com um contexto mais amplo do que
a própria medicina mental, que é o projeto de medicalização da
sociedade, iniciado no Brasil no século XIX, foi acirrado pelos
psiquiatras no momento de implantação da República Velha.
Estes disputam um lugar entre as instâncias de controle da vida
social, sob alegação de possuírem o saber sobre a doença e a
saúde, para manutenção da saúde entendida como equilíbrio
da estrutura social instaurada; penetram nos vários sectores do
espaço social, através do seu corpo conceptual e de práticas
assistenciais menos restritas ao internamento no hospício, pro-
curando encontrar a alienação mental em todos os lugares,
gestos, palavras e acções.
A ruptura com as práticas «negativas» de isolamento no
hospício, na prisão ou nas enfermarias da Santa Casa da Miseri-
córdia22, onde não havia tratamento médico especializado, e
com as teorias psiquiátricas mais conhecidas no Brasil no século
XIX, a de Pinel23 pela via de Esquirol e as organicistas como a
de Charcot24 , permitiu a interação da psiquiatria com a medici-
na e o reforço político procurado. Juliano Moreira é fundamen-
tal para o estudo desse momento. Com ele, são introduzidas
novas práticas, por meio da adesão ao modelo alemão, abrindo
o discurso da psiquiatria brasileira a uma atitude ‘científica’,
consideradas pelos próprios alienistas uma verdadeira revolu-
ção.
A psiquiatria constitui-se, então, como um novo tipo de
conhecimento médico, em contraposição ao discurso psiquiátri-

66
co do século XIX dirigido à doença mental, que se pretendia
científico, mas se constituía de princípios morais dificilmente
adequados ao elemento fisiológico, que lhe conferiria o carácter
de cientificidade. Acentuava-se cada vez mais a preocupação
com um saber psiquiátrico ligado ao projecto da medicina social
que se impunha desde o momento da sua constituição no Bra-
sil, no século XIX.
No âmbito da prática, faz-se necessário compreender uma
mudança radical. Com Juliano Moreira e outros, implanta-se
um sistema de assistência que não se restringe mais a assistir ao
louco no espaço asilar determinado do hospício, mas, que, ao
contrário, procura ser o mais abrangente possível, tentando
criar novas modalidades de assistência para contemplar todos
os indivíduos, propriamente ou virtualmente loucos, ou sim-
plesmente anormais.
Tal mudança evidencia uma metamorfose na prática psi-
quiátrica, uma ruptura entre uma prática baseada no princípio
do isolamento no hospício e um novo modelo que comporta
uma diversidade de formas não mais asilares, como as colônias
agrícolas, o manicómio judiciário, o ambulatório, a assistência
familiar, além do próprio hospício. A nova concepção de hospí-
cio reflete o afastamento do princípio de isolamento e a rejeição
de certas medidas de repressão física, como as grades e os cole-
tes de força.
Trata-se, no novo modelo, de uma prática terapêutica e pre-
ventiva ampliada. A partir da última década do século XIX, a
psiquiatria dirige-se ao indivíduo em todas as suas manifesta-
ções psíquicas patológicas, procurando saná-las nas suas causas
mais remotas. Estabelece-se o princípio de causalidade, incluin-
do-se, entre as causas, diversos estados mentais considerados
sãos, patológicos em potencial, que passam a ser medicamente
concebidos como anormalidades.
A minha hipótese é que a concepção de anormalidade
determina a delimitação de um novo modelo psiquiátrico, com
nova classificação e um sistema ‘completo’ de assistência ao
alienado, configurando uma metamorfose, tanto no nível da
teoria como no da prática da psiquiatria brasileira a partir de
Juliano Moreira. Refiro-me à anormalidade como um objecto
histórico, um dispositivo no sentido de uma manipulação de
forças por meio de uma intervenção racional e organizada, ins-
crita num jogo de poder sempre ligado a uma ou a configura-
ções de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicio-
nam.
É claro que para esta análise não se pode abandonar as con-
siderações sobre as questões de carácter económico. No entan-
to, o que constitui o principal foco de problema nesta pesquisa
são dois pontos: os pressupostos teóricos que foram reconheci-
dos, na época, como constitutivos de uma verdade necessária às
práticas psiquiátricas, e as formas de assistência assumidas como
constitutivas do embasamento empírico-experimental para o
desenvolvimento de novas teorias e novas práticas, bem como
para a instauração de um Estado melhor.
A noção de anormalidade aponta mudanças no discurso psi-
quiátrico. O objetivo desta pesquisa das relações entre os dis-
cursos e as práticas é fazer com que, de tais relações, apareçam,
numa mesma época ou em épocas diferentes, compatibilidades
e incompatibilidades que permitam traçar as diversas configura-
ções históricas do saber psiquiátrico no Brasil. Os discursos não
são, aqui, investigados como enunciados gerais, livres, neutros,
mas sempre fazendo parte de um conjunto. Por meio dessa aná-
lise, explicitam-se as condições, no Brasil, de existência, de
surgimento e de transformação dos saberes. Privilegia-se tam-

68
bém a sua articulação com as práticas institucionais – família,
igreja, Justiça, hospital etc. – com os discursos internos das
instituições, analisados como uma série de segmentos descontí-
nuos, cuja função tática não é uniforme nem estável.
Tal análise não privilegia o discurso dos psiquiatras, deixan-
do em suspenso a sua versão, que deve ser colocada sob suspei-
ta, por constituir a racionalidade dominante. Pois a problemati-
zação aqui pesquisada – a metamorfose na psiquiatria brasileira
no início do século XX – não diz respeito à racionalidade nem à
verdade, mas à articulação do saber com as práticas e seu carác-
ter estratégico.

Novo Saber Psiquiátrico, Cura da Anormalidade e Siste-


ma Completo de Assistência aos Insanos. A ruptura com o
modelo psiquiátrico fundado no pensamento de Esquirol, aqui
predominante até o final do século XIX, corresponde ao ideal
de maior objectividade científica atribuída à etiologia orgânica
dos distúrbios mentais que o modelo de Kraepelin parece ofere-
cer.
A teoria da degenerescência desenvolvida por Morel25 for-
nece a base para que este estatuto de cientificidade pareça
alcançado, ao assinalar a passagem do método semiológico da
doença ao da causalidade objetiva. Aí, as degenerescências
definem-se como desvios patológicos do tipo normal da huma-
nidade, originadas por intoxicações diversas, por moléstias
adquiridas ou congénitas, ou por influência do meio social ou
da hereditariedade, que se transmitem até a extinção da linha-
gem. Morel transfere a inteligibilidade da doença mental, antes
dada pelo sintoma e pelo signo fixo e abstrato segundo um
modelo botânico, para uma causalidade oculta caracterizada
pelo movimento do processo de evolução da doença.
Ao atribuir a causa dos desvios a lesões orgânicas, a raciona-
lidade da loucura desloca-se para o tronco comum da medicina.
O seu saber essencialmente classificatório passa a ser determi-
nado, em primeiro plano, por entidades nosológicas de nature-
za física. No Brasil, tal teoria encontra reforço no conceito de
atavismo – evolução da humanidade em direção a uma subjec-
tividade decrescente – tornando-se um fundamento para a con-
cepção de indivíduos degenerados, responsáveis pela alta taxa
de criminalidade e baixa produtividade económica. São estes:
os epiléticos, alcoólatras e sifilíticos, não doentes mentais pro-
priamente, mas risco para a ordem social, pois, durante as cri-
ses, tornam-se improdutivos, atentam contra a disciplina e con-
correm para a transmissão do seu mal aos seus descendentes.
Com o conceito de predisposição da teoria de Morel, o meio
social será causa de doença. Trata-se da pré-disposição pessoal
ao processo de hereditariedade de adoecimento mental26 , dada
tanto pelas tendências do egocentrismo originário da subjecti-
vidade de cada indivíduo, quanto pelas condições de vida. A
idéia de pré-disposição do indivíduo, contudo, é criticada por
Juliano Moreira que rejeita o carácter absoluto da função da
hereditariedade e, sobretudo, do atavismo, cuja radicalização
justificaria o preconceito moral contra a mestiçagem considera-
da, por nossos psiquiatras do início do século XX, uma das prin-
cipais causas de degeneração. Portanto, um elemento negativo
para o propugnado progresso social, uma vez que o ameaça com
a geração de indivíduos suscetíveis à degeneração física e moral,
conseqüência da união de raças diferentes, que ao se cruzarem
a transmitem à descendência, formando raças mais fracas –
idéias sustentadas pela Liga Brasileira de Higiene Mental27 , cujo

70
modelo conceitual organicista fundamenta a prevenção em
psiquiatria no século XX.
Paradoxalmente, à proporção que o discurso psiquiátrico se
aproxima da clínica médica através do substrato físico oferecido
pela teoria de degenerescência, cresce seu envolvimento com a
origem moral, conduzindo à preocupação com a educação que,
com as teorias organicistas, longe de ser deixada para trás,
ganha espaço entre os alienistas. Esta inquietação objetiva tan-
to a criança e o cuidado com a prevenção contra as influências
negativas da civilização, quanto o degenerado e o cuidado com
medidas terapêuticas de reeducação através do tratamento
moral.
Com a teoria da hereditariedade alarga-se a toda a popula-
ção a noção de indivíduo anormal, pois todo indivíduo pode ser
moral e organicamente despreparado para resistir à contradição
da subjectividade originária na sua relação com o meio social.
O indivíduo, mesmo não alienado, é objetivado por uma psi-
quiatria voltada para todos aqueles que podem escapar da nor-
ma social, estabelecendo-se, assim, uma diferença entre a doen-
ça mental e a degenerescência moral.
Desta forma, a noção médica de doença mental como desvio
da normalidade, enquanto exceção biológica, introduz-se no
saber, fazendo corresponder à anormalidade moral e psicológica
um déficit na formação do psiquismo do indivíduo. A anorma-
lidade se constituirá, então, como objecto da psiquiatria por ser
compreendida como doença mental, como uma deficiência,
uma regressão do desenvolvimento do homem, sendo os anor-
mais, por esta razão, denominados deficientes mentais.
A normalidade biológica se estabelece pelo tipo comum da
espécie humana. A espécie é o padrão inexoravelmente impos-
to ao indivíduo, do qual não pode se escapar, pois suas leis são
tão fortes que se houver degeneração, esta será corrigida, seja
pela integração do indivíduo ao tipo comum, seja pela sua
supressão. Nesse sentido, o discurso da degenerescência apre-
senta também um carácter positivo.
Juliano Moreira classifica tanto a anormalidade como defi-
ciência mental quanto a alienação propriamente na categoria
de estados psicopáticos. Introduz-se, desta forma, a concepção
de anormalidade como psicopatia, que justifica medicamente
diversas medidas de ordem prática, representativas da formação
do novo sistema de assistência psiquiátrico brasileiro, vigente a
partir de 190028 . Esta concepção estabelece uma metamorfose
na psiquiatria brasileira, tanto no nível do saber como da práti-
ca, evidenciada pela categoria de personalidades psicopáticas,
que explicita a noção médica de anormalidade.
A abordagem organicista a que a psiquiatria tende a ser
conduzida, no início do século XX, é logo vista como insuficien-
te para a compreensão da loucura, do mesmo modo como foram
as definições morais. Surge, em todos os estudos sobre a etiolo-
gia e terapêutica, a exigência de integração da lesão fisiológica
com a psicológica, cuja pretensão é eliminar a antiga ambigüi-
dade da natureza orgânica ou moral da loucura. Ela se manifes-
ta num corpo teórico em que é imprescindível a complementa-
ção recíproca de conceitos da anatomia patológica, da clínica
médica e da psicologia experimental. Ademais, a dificuldade de
definir o critério que se impõe à formulação da nosografia é
flagrante. Os critérios sintomatológico, etiológico e psicológico
são sempre rediscutidos, apesar da afirmação do carácter de
cientificidade do modelo alemão que estabelece causas objeti-
vas através do exame da patologia clínica.
Juliano Moreira evidencia a função de observação nesta ela-
boração das classificações. A classificação pode parecer secun-

72
dária no discurso psiquiátrico brasileiro, pois quase não aparece
entre nossos psiquiatras, mas é determinante na formulação do
saber. Porém, seu valor não é mais absoluto, como acontecia
com Pinel. Tenta-se não apenas estabelecer um quadro classifi-
catório com base na causalidade, que não encerre a doença
numa classe abstrata e fixa, mas inclua a evolução dos distúr-
bios. Com este fim, apesar da predominância do critério etioló-
gico, Juliano Moreira avalia as modalidades de classificação
apresentadas pelos diversos psiquiatras de todo o mundo, tor-
nando-as complementares.
A conexão, que antes parecia estranha, torna-se o ponto de
validação do discurso psiquiátrico. Resulta de uma mudança do
critério de cientificidade: reunião de conceitos de origem diver-
sificada que Kraepelin realiza numa síntese em que o elemento
psicológico, conforme analisado pela psicologia experimental,
até então negado pelos cientistas para a formação do quadro
nosológico, torna-se basilar na definição das doenças do cére-
bro. A influência dos factores psicológicos sobre os físicos não
pode mais ser ignorada. A análise psicogenética deverá ter o
mesmo peso que a sociogenética e a organicista na elaboração
brasileira da teoria dos distúrbios psíquicos no início do século
XX.
A loucura será então analisada como desordens de toda
natureza: dos nervos e do cérebro ou intelectuais e afetivas:
abordadas como doenças orgânicas a partir de dados da medici-
na clínica ou remetidas a antigos conceitos formulados desde o
século XIX. A consciência moral e as perturbações do orga-
nismo serão o lugar da doença mental.
Juliano Moreira traça uma diferenciação entre a doença
mental e outras formas de distúrbios psicológicos, circunscre-
vendo-os no discurso psiquiátrico através da noção medicaliza-
da de anormalidade cunhada como forma de psicopatologia.
Ao ser percebido como um problema que diz respeito ao
indivíduo e à população, o movimento de medicalização da
loucura e da anormalidade, iniciado no final do século XIX,
liga-se à questão da multiplicação de instituições articuladas
com a finalidade de assegurar ao médico o direito de seqüestro
do louco, de estabilizar a relação entre o louco e a família, a
Justiça e o Estado.
O deslocamento do campo de ação da psiquiatria para diver-
sas formas asilares, como a colônia agrícola e o manicômio judi-
ciário, e não asilares, como a assistência heterofamiliar e o
ambulatório, decorre da concepção deste novo objecto da psi-
quiatria: a população dos desviantes, alcoólatras, sifilíticos,
epilépticos, delinquentes. O novo sistema assistencial é propos-
to com o objetivo de debelar todas as anomalias mentais, por
maiores que sejam os limites dessa tarefa, tornando-se cada vez
mais abrangente ao tomar a si o encargo de penetrar cada vez
mais na vida de todos os indivíduos que de alguma forma este-
jam inseridos no contexto da psiquiatria. O alargamento dos
limites da prática psiquiátrica tem como condição de possibili-
dade a concepção médica da anormalidade.
No modelo de Kraepelin, em que se baseia o novo sistema
brasileiro de assistência ao alienado, a psiquiatria dirige a sua
ação em dois sentidos. Primeiramente, na direção dos indiví-
duos a quem os psiquiatras devem assistir por meio de novas
técnicas terapêuticas e preventivas, abrangendo todo louco em
potencial, dirigindo-se ao desviante moral de todo tipo, aos
criminosos, e ao indivíduo normal, ainda criança, que, por uma
educação defeituosa, acrescida à predisposição hereditária,
pode-se tornar, em um dado momento, doente mental. Em

74
segundo lugar, na direção das instituições sociais como a escola,
a família, o Estado, os dispositivos legais, psiquiatrizando-os
para transformá-los em auxiliares nessa ação de terapia e pre-
venção contra a loucura, que caracteriza a prática psiquiátrica
no século XX.
Com a criação de novas formas de instituitição de assistên-
cia, a ação da psiquiatria torna-se difusa 29, perpassando todo um
novo campo social através de: colônias agrícolas para epilépti-
cos e alcoólatras, manicômio judiciário para o criminoso louco,
assistência familiar 30 para os alienados que já estão em fase de
reintegração na sociedade; reforma do hospício para que se
pareça com um hospital comum, onde se desenvolvem a pe s-
quisa e a tecnologia, com laboratórios, serviço cirúrgico etc.;
através da interferência na escola e na família ditando normas
medicalizadas de educação; da colaboração na seleção dos imi-
grantes31 , na seleção dos soldados, para melhor assegurar a dis-
ciplina das Forças Armadas; da critica à legislação, exigindo
que o termo da lei seja suficientemente bem elaborado não só
para proteger a sociedade do perigo que o louco representa, mas
também para assegurar o direito de liberdade individual do
louco contra o qual o enclausuramento se impõe32 .
Daí a ênfase dada, nessa fase, aos problemas relativos à tera-
pêutica e à organização e funcionamento das diversas formas
asilares e não asilares, dentro dos limites de cientificidade da
psiquiatria. A cura científica passa a ser um objetivo fundamen-
tal da assistência ao alienado no Brasil. A concepção da cura
como recuperação da anormalidade vai assinalar a ruptura
entre a prática psiquiátrica do século XX e a do século XIX.
Juliano Moreira considera essa mudança como uma passagem
da assistência ao alienado no Brasil de uma fase de cuidados
detentores para a fase dos cuidados curativos, esta última rad i-
calmente diferente do período precedente que durou, em sua
opinião até 1900, quando o louco deixa de ser apenas isolado,
sem a menor possibilidade de recuperação, para receber um
tratamento racional.
Por “tratamento racional” entende-se uma prática médica
que utiliza, além de medicamentos e técnicas do tipo da clino-
terapia33 e da punção lombar, dados estatísticos, registros e uma
nova tecnologia disciplinar. Tais recursos devem-se à interação
da medicina mental com o projeto da medicina social desenvol-
vido desde o século XIX, cuja base é a percepção de que o peri-
go urbano exige a criação de tecnologias de poder capazes de
controlar os indivíduos, tornando-os produtivos e inofensivos.
A distinção entre duas fases bem delimitadas de assistência,
na realidade, corresponde mais a uma mudança no conceito de
cura. Ao abordar os cuidados curativos, Juliano Moreira refere-
se à sua determinação pela medicina, que lança mão de medi-
camentos especiais, repousos etc.; a estes, podemos opor a fase
anterior, em que o tratamento médico-psiquiátrico era prescin-
dido.
É certo que os documentos médicos atestam uma maioria
esmagadora de incuráveis e uma tímida presença do médico no
hospício. A idéia de cura, porém, já está presente na criação
mesma do hospital psiquiátrico no século XIX, que por princí-
pio só deveria receber os loucos curáveis. As críticas ao mau
funcionamento da instituição administrada pela Santa Casa da
Misericórdia dirigem-se, entre outros, ao problema da popula-
ção mista de loucos curáveis e incuráveis. A criação do hospício
obedece à exigência de não receber os idiotas, imbecis, epilépti-
cos ou paralíticos dementes, que são incuráveis e podem convi-
ver com a família. Retirando-se o carácter de lugar específico
para loucos curáveis, o hospício transforma-se, no século XIX,

76
numa instituição de caridade útil à sociedade.
O fato de o asilo ter sido criado para prover a sociedade de
um espaço terapêutico para alienados e ter sido entregue não
aos médicos, mas às freiras da Santa Casa, que já estavam acos-
tumadas a recebê-los na suas enfermarias, pode ser compreen-
dido como decorrência de uma concepção não médica de cura,
mais ligada à educação do que à medicina, baseada numa per-
cepção do louco como doente na medida em que não se subme-
te aos padrões morais que indicam a normalidade social. Por-
tanto, as freiras, com seus princípios religiosos e filantrópicos,
louváveis pela moral da época, foram consideradas capazes de
cumprir a função de assistir aos doentes mentais, não na opi-
nião dos psiquiatras, é claro, mas pelo Estado e pela opinião
pública, relutantes em reconhecer o poder terapêutico da medi-
cina mental.
É do ponto de vista da medicalização da cura que a fase ini-
ciada em 1900 foi considerada pelos psiquiatras como positiva,
diferente daquela considerada ‘detentora’, de ação puramente
negativa, que priva o indivíduo da sua liberdade sem respaldo
terapêutico. A idéia que cauciona essa distinção é a noção de
que somente são positivos os cuidados médicos. A descoberta
da organização do hospício como inadequada, no final do sécu-
lo XIX, além de atestar a sua degradação, seu mau funciona-
mento, relaciona fundamentalmente uma nova concepção de
doença mental, novas categorias nosográficas e, sobretudo,
novos métodos terapêuticos.
A assistência ao alienado em São Paulo é dada como um
exemplo do que, à época, se considera, com base no modelo
alemão, um sistema de assistência completo: asilo fechado de
tratamento; colônias-agrícolas anexas ao asilo, onde o open-
door 34 é parcial para os que merecem; dependências agrícolas ou
fazendas onde este é completo e para todos os enfermos; assis-
tência familiar dentro do perímetro do estabelecimento; assis-
tência hetero-familiar fora dos terrenos do asilo, realizada por
empregados da colônia ou pela família, em pequenas casas
construídas pelo Estado na periferia do hospital-colônia. Enfim,
cria-se uma série de modalidades de assistência que variam de
acordo com o grau de liberdade que o doente pode ter, o qual
será determinado pelo grau de disciplina e de capacidade de
cada um para o trabalho.
O sistema de assistência psiquiátrica é, portanto, reformado,
a exemplo de Kraepelin, transformando o hospital, conferindo-
lhe a aparência de um hospital comum, sem grades, nem muros
altos, nem coletes de força. São criadas as colônias agrícolas,
com trabalho, visitas aos pacientes e passeios ao ar livre, para
manter uma ilusão de liberdade, que se completará com pas-
seios aos domingos nos arredores das colônias, conforme propõe
Juliano Moreira e seus colegas ao preconizar a criação de colô-
nias para os epilépticos. A idéia de produzir uma ilusão de
liberdade, suscitada nos pacientes por meio do princípio do
open-door, demonstra o carácter sutil do exercício do poder da
instituição psiquiátrica.
O saber científico, fundamento da ação psiquiátrica nesse
novo momento da psiquiatria, pode ser considerado mais uma
forma de legitimação do novo sistema assistencial, do que pro-
priamente sua condição de possibilidade. Na realidade, as novas
formas de instituição asilar não representam a importação dire-
ta da nosografia sobre a prática. Afinal, as medidas preventivas
e os espaços terapêuticos novos localizam e distribuem os indi-
víduos a partir de categorias muito pouco médicas como
dementes, tranquilos, agitados, imundos, crianças, homens,
mulheres, do mesmo modo que no século XIX havia sido esta-

78
belecida a separação dos loucos no hospício, sem qualquer cor-
respondência com a classificação das doenças mentais de Esqui-
rol.
As novas modalidades de assistência resultam da divisão dos
indivíduos da sociedade entre normais e anormais, e da subdivi-
são dos tipos de anormais, exatamente na época em que se
incrementa no Brasil a concepção de população como força de
trabalho, força produtiva. Tal força deve ser normalizada, assis-
tida, através de tratamentos específicos com capacidade forma-
dora e transformadora das individualidades e da população. As
chamadas ‘doenças sociais’ – alcoolismo, epilepsia, sífilis –,
grande risco para a manutenção e o progresso da ordem social
devido ao grande contingente de criminalidade que representa
são, então, tão freqüentes, que passam a ser consideradas
‘endemias sociais’.
Este tipo de assistência se impõe como medida profilática
altamente eficaz e, por isso mesmo, digna se ser efetuada com a
energia que a sociedade costuma dispensar à própria conserva-
ção e debelar os perigos sociais. São as ‘doenças sociais’ que vão
definir o novo modelo de assistência ao alienado; para elas será
necessário encontrar ‘remédios sociais’. A psiquiatria evidencia
o perigo que essas doenças podem representar no processo de
degradação da subjectividade e da coletividade.
Ao procurar instituir um ‘sistema completo de assistência ao
alienado’, amplo o suficiente para oferecer tratamento especial
a todos os tipos de anormalidade psicológica, de acordo com
cada tipo de distúrbio psíquico, iniciam-se, no Brasil, práticas
psiquiátricas que ocupam todos os espaços sociais de onde possa
emergir a alienação mental.
Para garantir que esse sistema espacialmente descentralizado
não desestabilize o poder do psiquiatra, que associa terapêutica
e prevenção, propõem-se medidas legais, com a criação de uma
lei federal que regule essa assistência35 . Uma das medidas toma-
das pelos psiquiatras com esse objetivo é a campanha pela profi-
laxia mental. Atribui-se às instâncias governamentais a respon-
sabilidade da gestão de todos estes problemas sociais considera-
dos da alçada da ação psiquiátrica, cujas tecnologias se apresen-
tarão como eficazes na transformação dos indivíduos perigosos
em inofensivos.

Uma digressão demasiado evidente. A proposta de implan-


tação de um sistema completo de assistência aos ‘anormais’,
incluindo projetos de criação de reformatórios, de assistência
familiar, etc. – que se insere no projeto de normalização, medi-
calização e psiquiatrização da sociedade – corresponde, sem
dúvida, àquilo que Foucault chama de uma “anatomia política”
do corpo e de uma “biopolítica da população”36 .
A primeira é exercida por meio de tecnologias de controle e
sujeição dos indivíduos. Trata-se do estabelecimento de técni-
cas que implicam em coerção ininterrupta e constante das ope-
rações do corpo, garantindo a sujeição permanente da suas
forças – as disciplinas. A partir do século XVII e XVIII, as dis-
ciplinas tornaram-se fórmulas gerais de dominação. O momento
histórico do surgimento das disciplinas, ressalta Foucault, é o
momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa
não apenas ao crescimento da suas habilidades, ou ao peso da
sua sujeição, mas à formação de uma relação que, no mesmo
mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto útil.
Ao lado da anatomopolítica do corpo humano, explica Fou-
cault, a partir de meados do século XVIII, desenvolveu-se uma
forma de poder sobre a vida centrada no corpo compreendido

80
como espécie – atravessado pela vida, suporte dos processos
biológicos, como nascimento, proliferação, mortalidade, nível
de saúde, duração da vida, com todas as condições que pode
fazê-los variar – que remeteu a uma “biopolítica da população”
constituída de intervenções e controles reguladores.
Foucault analisa de que modo os procedimentos da reparti-
ção disciplinar correspondem a saberes e técnicas contemporâ-
neos de classificação e de ordenação em quadros, como também
de que modo introduzem o problema específico dos indivíduos e
da multiplicidade. Da mesma forma, os controles disciplinares
da atividade correspondem a todas as pesquisas teóricas e práti-
cas sobre a maquinaria natural do corpo. Ao mesmo tempo,
descobrem-se processos específicos ao corpo com vida, compor-
tamentos e exigências orgânicas que vão substituir a simples
física do movimento. O corpo aparece como provido de condi-
ções de funcionamento próprias a um organismo, que fazem
com que o poder disciplinar se dirija a uma individualidade
analítica, celular, natural e orgânica, a partir dos corpos que
controla.
Por meio das disciplinas, surge o poder da norma. Na socie-
dade moderna, o normal se estabelece como princípio de coer-
ção não só no ensino, na regularização dos procedimentos e dos
produtos industriais, mas na organização de um corpo médico e
um enquadramento hospitalar da nação, suscetíveis de fazer
funcionarem normas gerais de saúde. Do mesmo modo que a
vigilância, a normalização torna-se um dos grandes instrumen-
tos de poder a partir do final da época clássica. Ela substitui ou
acrescenta graus de normalidade, que são signos de pertença a
um corpo social homogêneo, mas que se divide por meio de
uma distribuição das classes.
Num certo sentido, explica Foucault, o poder de normaliza-
ção constrange, com o objetivo de homogeneizar as multiplici-
dades, ao mesmo tempo que individualiza, por permitir as dis-
tâncias entre os indivíduos, determinar níveis, fixar especialida-
des e tornar úteis as diferenças.
A partir do século XVIII, quando o poder sobre a vida cen-
trou-se no corpo como espécie, todos esses processos operam
para garantir, sustentar, multiplicar a vida e ordená-la. É quan-
do surgem os problemas de natalidade, longevidade, saúde
pública, habitação, migração, que exigem técnicas diversas para
obtenção da sujeição dos corpos e o controle das populações.
A noção de população como algo que representa um pro-
blema económico e político e, ao mesmo tempo, riqueza, mão-
de-obra ou capacidade de trabalho, em equilíbrio, aparece
quando os governos percebem que não têm que lidar apenas
com sujeitos ou povos, mas com um conjunto de variáveis espe-
cíficas da população – saúde, doença, habitação, trabalho etc.
Essas variáveis situam-se, de acordo com Foucault, no ponto de
interseção entre os movimentos próprios à vida e os efeitos de
poder particulares das instituições.
As disciplinas do corpo e as regulações da população consti-
tuem dois pólos em torno dos quais se organizou o poder sobre a
vida, que é considerado por Foucault como uma grande tecno-
logia de poder de duas faces – a anatômica e a biológica. Trata-
se da administração dos corpos, gestão calculista da vida, por
meio de técnicas e de diversas disciplinas, de práticas políticas e
observações económicas dos problemas da população.
Os rudimentos da anátomo e biopolítica, inventados no
século XVIII, utilizados por instituições bem diversas (a família,
a escola, o exército, a polícia, a medicina individual ou a admi-
nistração das coletividades), agiram no nível das forças da vida,
com métodos de poder capazes de majorar a vida em geral, e de

82
técnicas presentes em todos os níveis do corpo social, utilizadas
pelas instituições.
A possibilidade de encarregar-se da vida e de seus mecanis-
mos, fazendo com que a espécie entre em jogo em suas próprias
estratégias políticas, no domínio dos cálculos e da transforma-
ção da vida humana, é o que Foucault considera o “limiar de
modernidade biológica” de uma sociedade. Esse limiar é coetâ-
neo do aparecimento, na modernidade, do homem na sua espe-
cificidade de ser vivo, com um corpo concreto, sujeito e objecto
de si mesmo, com uma historicidade própria. Foucault ressalta,
nesse limiar, a importância da proliferação das tecnologias polí-
ticas investindo sobre todo o espaço da existência.
O que caracteriza o bio-poder é a crescente importância da
norma que distribui os vivos num campo de valor e utilidade.
Tal poder tem a função de qualificar, medir, avaliar, hierarqui-
zar, operando distribuições em torno da norma. A própria lei
funciona como norma, com funções reguladoras. Uma socieda-
de normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de
poder centrada na vida.
A principal característica das tecnologias de normalização
consiste no fato de integrarem a criação, a classificação e o
controle sistemático das anormalidades no corpo social. Dreyfus
e Rabinow 37 assinalam que Foucault chamou a atenção para o
fato de que o bio-poder é contemporâneo do aparecimento e da
proliferação das categorias de anormalidade – o delinquente, o
perverso etc. – que as tecnologias de poder e os saberes investi-
dos nessas tecnologias supostamente eliminariam. A expansão
da normalização funciona através de anormalidades que deve
tratar. Ao tentar identificar cientificamente as anormalidades,
as tecnologias do bio-poder estão numa posição perfeita para
supervisioná-las e administrá-las.
O modelo psiquiátrico inaugurado com Juliano Moreira cor-
responde a uma abertura no discurso da psiquiatria do século
XIX, através da qual tal discurso foi contornado, constituindo
as condições de possibilidade de uma metamorfose na psiquia-
tria brasileira, quando a nova categoria dos anormais foi sobre-
posta ao par normal/doente mental do século XIX, tornando a
ação da psiquiatria e seu discurso teórico mais específicos e
dirigidos a cada tipo particular de anormalidade.
As diferentes formas de assistência na sua relação com o
saber psiquiátrico, resultantes da ampliação do objecto da psi-
quiatria à anormalidade, não representam apenas variantes da
assistência aos alienados do século XIX. Elas estabelecem uma
metamorfose na psiquiatria brasileira que as faz diferir de uma
prática baseada no princípio fechado do isolamento de Esquirol,
um sistema aberto de múltiplas formas de assistência, fundado
em novos princípios ‘médico-científicos’.

Metamorfoses. Enquanto, no século XIX, a terapia deve-se


impor por meio de medidas fortes de repressão, no século XX, o
doente deve ter a ilusão de liberdade, que o tranquiliza, dei-
xando-o menos rebelde e mais suscetível à ordem disciplinar, a
que a terapia visa fundamentalmente, reforçando a relação da
psiquiatria com a idéia de homem normal, trabalhador tranqui-
lo, força produtiva.
Actualmente, o projeto de medicalização é sistematicamente
problematizado no interior mesmo do discurso psiquiátrico bra-
sileiro, na medida em que esta passa a ser percebida como um
risco de reproduzir, em novos moldes, os esquemas de sujeição
dos indivíduos, através de um corpo conceitual mais científico e
de práticas assistenciais menos restritas ao internamento.

84
Nas últimas décadas, no Brasil, desenvolve-se um importan-
te debate a respeito da psiquiatria, principalmente em seu
carácter de objetivação da vida dos indivíduos e da população,
pelas ciências do homem e suas estratégias de intervenção.
Fundado em críticas que registram o fracasso da psiquiatria
como instância terapêutica, desdobra-se desde o início do sécu-
lo XX até nossos dias, apresentando-se através de diferentes
modalidades, específicas a cada momento da história. Hoje, este
debate é aprofundado não mais apenas por médicos, psiquiatras
e o Estado, mas por filósofos, psicólogos, psicanalistas, cientistas
sociais, técnicos, trabalhadores da saúde mental em geral, bem
como por pacientes psiquiátricos que nele têm uma certa parce-
la de participação. Ele evidencia o questionamento da relação
entre as formas de dominação psiquiátrica e a sociedade, em
contrapartida ao aperfeiçoamento dos psicotrópicos e das técni-
cas de psicoterapia que incidem diretamente sobre o corpo ou
sobre os factores psicológicos da doença mental.
Trata-se, por um lado, de críticas contundentes à ineficácia
do sistema psiquiátrico, cuja base ainda é o isolamento intra e
extra-muros, apesar da sua intenção declarada de constituir um
novo modelo teórico e assistencial. Por outro lado, do apare-
cimento de uma multiplicidade de novos saberes e de novas
práticas, que se produzem tentando solucionar problemas da
própria prática assistencial, sobretudo a iatrogenia e a cronifica-
ção próprias do aparato institucional, comprometido em função
da má gestão da vida da população estigmatizada como men-
talmente doente.
São saberes e práticas que pretendem constituir novas estra-
tégias e tecnologias com o objetivo de mudar o tipo de atenção
aos indivíduos absorvidos pelo sistema previdenciário, sejam
doentes mentais ou simplesmente desviantes financeiramente
carentes. A partir de meados do século XX, analisam-se e
implantam-se novas modalidades de cuidado que tentam esca-
par aos dilemas surgidos do antigo sistema asilar e de custódia,
ainda vigente, constituindo-se como um novo momento da
psiquiatria brasileira.
Estas propostas apresentam-se, hoje, fazendo coexistirem, no
Brasil, diferentes tipos de psiquiatria: aquela que remonta ao
final do século XIX e início do XX, aqui introduzida por Juliano
Moreira e outros, que podemos chamar de tradicional; e aque-
las que reúnem-se num conjunto heterogéneo de saberes e prá-
ticas, autodenominando-se “antipsiquiatrias” e propondo-se
alternativas ao modelo tradicional vigente. Estas aqui irrompem
a partir dos anos de 1960, esforçando-se por integrar às propos-
tas da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saú-
de as críticas e os princípios importados da nova psiquiatria
preventiva, como a comunitária, a democrática, a de sector, a
das comunidades terapêuticas – dos EUA, com Bateson e
Weakland, da Inglaterra com Laing e Cooper, da França com
Bastide, Foucault, Castel e Guattari, da Itália com Basaglia.
Qualquer que seja a estratégia para uma descontinuidade
radical na psiquiatria brasileira, não se trata apenas de uma
questão de metas de política de saúde mental, nem de uma
questão científica, tampouco do problema de uma organização
mais racional das instituições. Trata-se, antes, do estabeleci-
mento novas relações de forças relativas aos processos de exclu-
são e normalização dos indivíduos na nossa sociedade, em que a
invenção e experimentação ofereçam resistências na articula-
ção dos saberes com as práticas.
A antipsiquiatria deve a sua importância à radicalização da
possibilidade de medidas de anti-institucionalização da loucura
e da desospitalização da doença mental, que se articula com

86
práticas ainda muito tímidas. Contudo, a idéia de tais medidas
consiste, em grande parte, na extensão do asilo a todo o espaço
social de forma cada vez mais sutil, mais do que aquela da ps i-
quiatria tradicional – este é seu perigo.
Seu conjunto heterogéneo de saberes e práticas acaba por
constituir um corpo teórico com um perfil epistemológico pou-
co definido e práticas voltadas para a desospitalização, enfati-
zando seu carácter político e estreitando ainda mais a sua anti-
ga relação com a Medicina Social e os projetos sanitaristas,
implantados no Brasil desde o século XIX.
Estabelece-se uma nova metamorfose na psiquiatria brasi-
leira 38.

Notas
1
Esta pesquisa, de inspiração foucaultiana, tem como ponto de parti-
da Machado, R. et alii, Danação da Norma, Rio de Janeiro, ed. Graal,
1978, em que se afirma que “Só é possível portanto compreender o
nascimento da psiquiatria brasileira a partir da medicina que incorpo-
ra a sociedade como novo objecto e se impõe como instância de con-
trole social dos indivíduos e das populações. É no seio da medicina
social que se constitui a psiquiatria. Do processo de medicalização da
sociedade, elaborado e desenvolvido pela medicina que explicitamen-
te se denominou política, surge o comportamento do louco, só a partir
de então considerado anormal e, portanto, medicalizável” (Machado,
Danação da Norma, p. 376).
2
Juliano Moreira foi um dos mais importantes psiquiatras brasileiros
no início do século XX. De 1903 a 1930, ocupou o cargo de diretor
geral da Assistência a Psicopatas do Distrito Federal. Conseguiu a
promulgação de uma lei de reforma da assistência a alienados. Remo-
delou o antigo Hospício de Pedro II (retirada das grades, abolição dos
coletes e das camisas de força), onde instalou um laboratório. Criou,
em 1911, a Colônia de Engenho de Dentro. Instaurou a admissão
voluntária de insanos e a assistência heterofamiliar. Em 1919, inaugu-
rou o primeiro Manicômio Judiciário do Brasil.
3
Foucault, M., A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro, NAU,
1999.
4
Foucault, M., O Sujeito e o poder, in Dreyfus, H. & Rabinow, P.,
Michel Foucault, uma Trajetória Filosófica, (Para além do estruturalismo
e da hermenêutica), trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1995, pp. 231-2.
5
Canguilhem, G., Le Normal et le pathologique, Paris, PUF, 1966.
6
Portocarrero, V., Arquivos da Loucura. Juliano Moreira e a desconti-
nuidade histórica da psiquiatria, Rio de Janeiro, ed. FIOCRUZ, 2002
7
Moreira, J., “Assistência aos epiléticos. Colônias para eles”, in Arqui-
vos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, ano 1(2),
1905.
8
Camillo, H, “Considerações sobre a medicina legal, a repressão e a
profilaxia dos anômalos morais perigosos”, in Arquivos Brasileiros de
Neuriatria e Psiquiatria, 1920.
9
Moreira, J., “A sífilis como fator de degeneração”, in Gazeta Médica
da Bahia, 3, 1899-1900.
10
Moreira, J., “Reformatórios para alcoólatras”, in Arquivos Brasileiros
de Higiene Mental, nov. 1929.
11
Kraepelin, E., Trattato di Psichiatria, Traduzione della VII edizione
originale per il dottor Cuido Guido, Milano, F. Vallardi, 1856-1926
[4vv.].
12
Moreira, J., “Assistência a alienados na Alemanha, Clínica de
Munich”, in Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências
Afins, ano IV, 1908,
13
Moreira, J., A psiquiatria e a guerra, conferência realizada no Clube
Militar em 4/2/1918, sob os auspícios da Sociedade Médico-Cirúrgica
Militar, Capital Federal, 1918.
14
O material foi pesquisado nos arquivos da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, da Bibliotecas da Academia de Medicina, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto de Psiquiatria da Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, dentre outras. São
arquivos de psicotécnica, medicina, neuriatria, psiquiatria e ciências
afins, neurologia, medicina legal, higiene militar, higiene mental,
arquivos do Manicômio Judiciário. O conteúdo temático desses arqui-
vos é muito variado: conceitos psiquiátricos, técnicas terapêuticas,
notícias sobre a assistência a alienados no Brasil e em outros países,
teorias, palestras ‘científicas’, histórico das formas de assistência, dis-
cursos de aniversário ou de inauguração de instituições psiquiátricas,
atas de reuniões, legislação sobre a assistência a alienados etc.

88
15
Moreira, J., “O Novo agrupamento nosográfico das doenças mentais
do Prof. Kraepelin”, in Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria,
1921 e Moreira, J., “Classificações em medicina mental”, in Arquivos
Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, 1919.
16
Carrilho, H., “A colaboração dos psiquiatras nas questões penais”,
in Arquivos do Manicômio Judiciário, 1930.
17
Esquirol, J. E., Des Maladies mentales considérées sous le rapport
médical, hygiénique et médico-legal, Paris, 1838 [tomos I e II].
18
Lopes, I. C., “Aspectos da Higiene Mental no Brasil”, in Arquivos
Brasileiros de Neuritaria e Psiquiatria, 1940-1942 e Moreira, J., “As
diretrizes da higiene mental entre nós”, in Revista de Medicina e Higie-
ne Militar, 1922.
19
Santa Casa da Misericórdia, Regulamento do Hospital Geral, Rio de
Janeiro, 1827 e Santa Casa da Misericórdia, Regimento do Hospital
Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, 1858, Fundação
da Santa Casa da Misericórdia, 1880.
20
“Hospício de Pedro II. Decreto fundando um hospital destinado
privativamente para tratamento de alienados”, in Revista Médica Bra-
sileira, vol. 1, n. 3 e Estatutos do Hospício de Pedro II aprovados pelo
decreto nº 1077 de 04 de dezembro de 1852.
21
Moreira, J., “As diretrizes da higiene mental entre nós”, in Revista de
Medicina e Higiene Militar, 1922.
22
Em “Neuro-psiquiatria. Jubileu do Prof. Juliano Moreira” (in Arqui-
vos Brasileiros de Medicina, 1931) , Afrânio Peixoto descreve a situação
do Rio na época em que surgiram as grandes transformações do corpo
teórico: “As boas irmãs de caridade tinham sido varridas pelo jacobi-
nismo positivista, mas em vez de casas-forte, contra demoníacos,
havia o colete de força, contra as agitações. (...) era uma cidade forti-
ficada em que o prestígio do comando vinha de um estado-maior
leigo, nas secretarias de Estado, Política e Administração”.
23
Pinel, P., Traité Médico-philosophique, Paris, ano IX.
24
Charcot, J. M., L’Hystérie, Textes choisis et présentés par E. Trillat,
Rhadamante, Privat Ed., 1971.
25
Morel, B. A., Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et
morales de l´espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés
maladives, Paris, J. B. Baillierre, 1857 e Morel, B. A., Le no-restreint,
Paris, J. R. Baillère, 1860.
26
Moreira, J., “Fatores hereditários em psiquiatria”, in Arquivos Brasi-
leiros de Higiene Mental, out.1929a.
27
Fundada em 1926, começa a elaborar projetos de prevenção, euge-
nia e educação dos indivíduos normais, inclusive através de uma ação
terapêutica que deveria exercer-se preventivamente ao aparecimento
dos sinais clínicos da doença mental. Cf. Lopes, I. C., “Aspectos da
Higiene Mental no Brasil”, in Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psi-
quiatria, 1940-1942.
28
Lopes, I. C., “Notícia história da assistência a psicopatas no Distrito
Federal”, in Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, 22, 1939.
29
Moreira, J., “Quais os melhores meios de assistência aos alienados”,
in Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, 1910.
30
Moreira, J., “Ligeiras notas a propósito da assistência familiar”, in
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, ano
2(1), 1906b.
31
Moreira, J., “A seleção individual de imigrantes no programa de
higiene mental”, in Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, 1925.
32
Moreira, J., “A questão da incapacidade civil”, in Arquivos Brasilei-
ros de Neuriatria e Psiquiatria, 1920b.
33
Moreira, J., “Clinoterapia, Difusão e Resultados no Tratamento das
Psicoses”, Rio de Janeiro, Record, 1901.
34
O regime do open-door baseia-se no princípio da máxima liberdade
possível, que se opõe ao isolamento considerado ineficaz na recupera-
ção do alienado porque irrita os pacientes, ao passo que a ‘ilusão de
liberdade’ os tranqüiliza, tornando-os mais suscetíveis de serem disci-
plinados para o trabalho, para a vida em sociedade.
35
Rodrigues, N., “Legislação sobre assistência a alienados”, in Arqui-
vos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, 1906.
36
Foucault, M., Surveiller et Punir. Naissance de la Prison, Paris, ed.
Gallimard, 1975 e Foucault, M., Histoire de la sexualité I. La volonté de
Savoir, Paris, ed. Gallimard, 1976.
37
Dreyfus, H. & Rabinow, P., Michel Foucault. Beyond Structuralism
and Hermenutics, Chicago, The University of Chicago Press, 1983
38
Portocarrero, Vera, O Dispositivo da Saúde Mental: uma metamorfose
na psiquiatria brasileira, Tese de Doutorado em Filosofia, Rio de Janei-
ro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1990.

90
Vozes da desrazão no teatro da loucura

Peter Pál Pelbart

Faltam poucos minutos para a trupe entrar em cena. O


público se apinha nas arquibancadas laterais do teatro, um
assombroso galpão envolto em brumas e mergulhado na atmos-
fera da música estrepitosa. Cada ator se prepara para proferir
em grego o embate agonístico que dá início a esse espetáculo
“sem pé nem cabeça”, conforme o comentário elogioso de um
crítico da imprensa. Eu aguardo tenso, repasso na cabeça as
palavras que devemos lançar uns contra os outros, em tom
intimidatório e desenfreada correria. Passeio os olhos em meio
ao público e percebo nosso narrador recuado do microfone
alguns metros – ele parece desorientado. Aproximo-me, ele me
conta que perdeu seu texto. Enfio a mão no bolso de sua calça,
onde encontro o maço de folhas por inteiro. O paciente-ator
olha os papéis que estendo à sua frente, parece não reconhecê-
los, põe e tira os óculos, e murmura que desta vez não participa
da apresentação – esta é a noite de sua morte. Trocamos algu-
mas palavras e minutos depois, aliviado, vejo-o de volta ao
microfone. Mas sua voz, em geral tão trêmula e vibrante, soa
agora pastosa e desmanchada, como a dramatizar o texto que
reza: “Minha memória anda fraca... Mnemosyne, mãe das
musas...”. Sinto as palavras viscosas, deslizando umas sobre as
outras, diluindo-se progressivamente, e aquilo que deveria ser-
vir de fio narrativo para nossa labiríntica montagem teatral
deságua lentamente num pântano escorregadio. Na cena
seguinte, eu sou Hades, rei do Inferno, e ele é o barqueiro
Caronte, que levará Orfeu até Eurídice. Mas entre uma remada
e outra, bruscamente ele interrompe a cena, faz uso de suas
últimas reservas, atravessa o palco na diagonal e dirige-se à
saída do teatro. Já na rua, eu o encontro sentado na mais cada-
vérica imobilidade, balbuciando sua exigência de uma ambu-
lância – chegou a sua hora. Como no filme Blade Runner o
herói sente esgotar-se o seu tempo, mas ao contrário dele, nosso
narrador não parece querer prolongar nada, não pede um
suplemento de tempo, antes sua abolição final.
Desde o início, é esse o seu “tema”. Na primeira peça ence-
nada, ao responder às palavras de Leminski lidas uma narradora
(“Caos/massa rude e indigesta/apenas peso iner-
te/desconjuntada semente da discórdia das coisas/terra, mar e
ar/ciciam/confundidos”), ele responde com Hesíodo: “Sim pri-
meiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de
todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça
do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de
amplas vias, e Eros o mais belo entre deuses e mortais... Nove
noites e dias uma bigorna de bronze cai do céu e só no décimo
atinge a terra e, caindo da terra o Tártaro nevoento. E nove
noites e dias uma bigorna de bronze cai da terra e só no décimo
atinge o Tártaro.” O narrador dá especial ênfase à palavra Tár-
taro, e é preciso imaginar como ressoa para ele, que recente-
mente perdeu todos os dentes, o tártaro dos dentes e o Tártaro
de Hesíodo, a odontologia e a ontologia, o Caos da boca e o
Caos do mundo, neste ator que toda manhã chega dizendo que
está morto e para quem cada dia é uma longa travessia, uma
saída do Tártaro e do Caos rumo a uma Torre luminosa, antes
que a noite volte a derramar sobre o mundo seu manto de hor-
ror e escuridão.

92
Como não lembrar das palavras de Blanchot? “O que é pri-
meiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o
esgarçamento, a intermitência e a privação mordente: o ser não
é o ser, é a falta de ser, a falta vivente que torna a vida desfale-
cente, inapreensível e inexprimível”.1 A obra, segundo Blan-
chot, deveria ser concebida como essa experiência que arruina
toda experiência, que se coloca aquém da obra, “o aquém onde,
do ser, nada é feito, onde nada se realiza, a profundidade da
inoperância (desoeuvrement) do ser”2. Experiência insólita, que
desapossa o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença, da
consciência e da verdade, da unidade e da totalidade – expe-
riência dos limites, experiência-limite, dirá Bataille. Blanchot
redescobre na literatura (mas não valeria também para o tea-
tro?) um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do
sujeito. O que fala no escritor (no ator?) é que “ele não é mais
ele mesmo, ele já não é ninguém”: não o universal, mas o anô-
nimo, o neutro, o fora. Em ensaios sobre Hölderlin, Sade, Lau-
tréamont, Nietzsche, Artaud – mas isso não poderia ajudar-nos
a pensar a experiência-limite à qual nos referimos acima? –,
Blanchot ressalta uma dimensão à qual toda uma geração de
filósofos, de Foucault a Deleuze, não ficará indiferente: a vizi-
nhança necessária entre palavra e silêncio, escritura e morte,
obra e erosão, literatura e desmoronamento, experiência de
desamparo e colapso do autor.

Ueinzz. Tomemos o primeiríssimo ensaio da Cia Teatral


Ueinzz, realizado ainda nas dependências do Hospital-Dia “A
Casa”, em São Paulo. Um dos diretores artísticos mostra como
se pode, com pouquíssimos elementos, criar um personagem.
Traz na mão um chapéu preto de borracha, longuíssimo, acha-
tado, modelado pelos cubofuturistas russos, e o põe na cabeça.
Subitamente seu corpo se avoluma e ele parece envolto numa
aura incomum, como se fora um mago ou um gigante. Pega um
bastão de madeira e cruza o ar zunindo, em seguida traça com
um giz um círculo no chão. Convida alguém para uma luta e
anuncia que aquele espaço do círculo é imantado, quem estiver
dentro estará protegido, quem ficar de fora perderá força. Com
esse pequeno gesto se inaugura para todos o espaço sagrado do
teatro. Ali cada um pode virar ator, cabe qualquer gesto, som
ou postura, por esquisito que seja, a fragilidade ganha esplen-
dor, mesmo a brutalidade adquire graça e ritmo. Um dos
pacientes se dispõe a vestir o chapéu do mago e recita um texto
religioso, com o bastão em mãos, que agora já virou um cajado,
e em poucos segundos assistimos à sua transfiguração incorpo-
ral: o corpo largado ganha a desenvoltura do profeta andarilho,
a voz discursiva sustenta o anúncio dos tempos vindouros, a
recitação místico-político ganha legitimidade cênica. O delírio
deserta o campo psiquiátrico para reencontrar sua função mais
ancestral, divina ou divinatória. Bem ou mal, é com este Profe-
ta que saimos do primevo Caos do Universo.
Semanas depois, num exercício teatral sobre os diferentes
modos de comunicação entre seres vivos, pergunta-se a cada
pessoa do grupo que outras línguas fala, além do português. Um
paciente que nunca fala, apenas emite um som anasalado seme-
lhante a um mantra disforme, responde imediatamente e com
grande clareza e segurança, de todo incomuns nele: alemão!.
Surpresa geral, ninguém sabia que ele falava alemão. E que
palavra você sabe em alemão? Ueinzz. E o que significa Ueinzz
em alemão? Ueinzz.. Todos riem – eis a língua que significa a si
mesma, que se enrola sobre si, língua esotérica, misteriosa, glos-
solálica. Às vezes ela é acompanhada de um dedo em riste,

94
outras de uma excitação que desemboca num jorro de urina
calça abaixo. A matéria sonora é ainda indissociável do corpo, é
uma experiência plenamente libidinal. Processo originário da
linguagem que o despotismo da gramática e da significação
ainda não recalcaram.
Inspirados no material coletado nos laboratórios, os diretores
trazem ao grupo sua proposta de roteiro: uma trupe nomade,
perdida no deserto, sai em busca de uma torre luminosa, e no
caminho cruza obstáculos, entidades, tempestades. Em meio à
andança da trupe, a ser conduzida pelo Profeta com seu cajado,
a trupe se depara com um oráculo, que em sua língua sibilina
indica o rumo que convém aos andarilhos. O ator para a perso-
nagem do oráculo é prontamente designado: é este que fala
alemão. Ao lhe perguntarem onde fica a torre Babelina, ele
deve responder: Ueinzz. O paciente entra com rapidez no papel,
tudo combina, o cabelo e bigode bem pretos, o corpo maciço e
pequeno de um Buda turco, seu jeito esquivo e esquizo, o olhar
vago e perscrutador, de quem está em constante conversação
com o invisível. É verdade que ele é caprichoso, quando lhe
perguntam: Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre Babeli-
na?, às vezes ele responde com um silêncio, outras com um
grunhido, outras ele diz Alemanha, ou Baurú, até que lhe per-
guntam mais especificamente, Grande oráculo, qual é a palavra
mágica em alemão? e aí vem, infalível, o Ueinzz que todos espe-
ram. De qualquer modo, o mais inaudível dos pacientes, o que
faz xixi na calça e vomita no prato da diretora, aquele cujo
andar imprevisível desenha a curva que nenhuma geometria do
espírito acompanha – caberá a ele a incumbência crucial de
indicar ao povo nômade a saída das Trevas e do Caos. Depois
de proferida, sua palavra mágica deve proliferar pelos alto-
falantes espalhados pelo teatro, girando em círculos concêntri-
cos e amplificando-se em ecos vertiginosos, Ueinzz, Ueinzz,
Ueinzz. A voz que nós em geral desprezávamos porque não
ouvíamos encontra aí, no espaço cênico e ritual, uma eficácia
mágico-poética. Quando a peça é batizada com esse som, temos
dificuldade em imaginar como se escreve isto: Wainz, ou
weeinzz, ou ueinz? O convite vai com weeinz, o folder com
ueinzz, o cartaz brinca com as possibilidades de transcrição,
numa grande variação babélica.

Blanchot e Foucault. Voltemos ao prefácio original da His-


tória da Loucura, posteriormente abandonado, onde Foucault
faz referência a uma linguagem originária, “muito frustra”, em
que razão e não-razão se falam ainda, através dessas “palavras
imperfeitas, sem sintaxe fixa, um pouco balbuciantes”. Através
delas, diz o autor, os limites de uma cultura são questionados,
para aquém de sua dialética triunfante. Aquém da história, a
ausência de história, um murmúrio de fundo, o vazio, o vão, o
nada, resíduo, rugas. Aquém da obra, a ausência de obra,
aquém do sentido, o não-sentido, aquém da razão, a desrazão.
Uma fala que só depois será denunciada como “não sendo lin-
guagem”, um gesto que mais tarde será tido como “não sendo
obra”, uma figura como “não tendo direito de tomar lugar na
história”. Poderia fazer-se, lembra Foucault, uma história desses
gestos de partilha e recusa que permitiram à razão reconhecer-
se em sua plenitude. “A plenitude da história só é possível no
espaço, a um só tempo vazio e povoado, de todas essas palavras
sem linguagem que fazem ouvir, a quem afinar a orelha, um
barulho surdo sob a história, o murmúrio obstinado de uma
linguagem que falaria sozinha – sem sujeito falante e sem inter-
locutor, comprimida sobre si mesmo, atada à garganta, desmo-

96
ronando antes de ter atingido qualquer formulação e retornan-
do sem brilho ao silêncio do qual jamais se desfez.” Foucault
confessa que seu estudo dirige-se para uma região em que lou-
cura e não loucura, razão e não razão estão ainda confusamente
implicadas. Experiência trágica encoberta ulteriormente pela
emergência da loucura enquanto fato social, objeto de exclusão,
de internamento. Como fazer para que a desrazão, na sua alte-
ridade irredutível, na sua “estrutura trágica”, interrogue o nas-
cimento da própria racionalidade (psiquiátrica) que a reduziu
ao silêncio ao convertê-la em loucura? Como dar a voz a isso
que sequer atingiu o limiar da linguagem articulada, a esse
“menos” da razão, esquecido e atropelado pela linguagem da
história?
Deixemos de lado os mal-entendidos líricos que tais pergun-
tas suscitaram3 – o fato é que o murmúrio da Desrazão continua
a nos intrigar. Num ensaio sobre a História da Loucura, Blan-
chot se pergunta se no espaço que se abre entre loucura e des-
razão a literatura e a arte poderiam acolher essas experiências-
limite e, assim, “preparar, para além da cultura, uma relação
com aquilo que a cultura rejeita: fala dos confins, fora da escri-
ta”. Ao que Foucault responde, nesse diálogo que eu reconstruo
a meu modo, com o exemplo Blanchot. Nele prima o esqueci-
mento não-dialético, a proliferação em direção a uma exteriori-
dade nua, a linguagem como murmúrio incessante destituindo a
fonte subjetiva de enunciação bem como a verdade do enun-
ciado. “Ali onde «isso fala», o homem não existe mais.” Contra
a dialética humanista, que através da alienação e da reconcilia-
ção promete o homem ao homem, Blanchot teria exprimido o
esboço de uma outra “escolha original” que emerge em nossa
cultura. E sugere que a escritura moderna não é parte do mun-
do, mas sua “antimatéria” 4. Desse ponto de vista, a escritura e a
locura-desrazão estariam no mesmo plano, tendo em vista seu
caráter não-circulatório, a inutilidade de sua função, o caráter
de autoreferência que lhes é próprio5 . Mas, também, seu poder
transgressivo – “a fala absolutamente anárquica, a fala sem
instituição, a fala profundamente marginal que cruza e mina
todos os outros discursos”6. A literatura e a loucura pertence-
riam ao que Blanchot chamou de A parte do fogo, aquilo que
uma cultura reduz à destruição e às cinzas, aquilo com o que ela
não pode conviver, aquilo de que ela faz um incêndio eterno7 .

Obra e inoperância. A partir daí, a própria idéia de obra


sofre uma inflexão. Escreve Blanchot: a obra “diz o ser, a esco-
lha, o domínio, a forma”, e nesse sentido corresponde ao traba-
lho diurno de construção, mas ao mesmo tempo diz a “fatalida-
de do ser, passividade, prolixidade do informe”. Entre a obra e a
inoperância8 (desoeuvrement) não há conciliação: “Infatiga-
velmente, nós edificamos o mundo, a fim de que a secreta disso-
lução, a universal corrupção que rege o que «é», seja esquecida
em favor desta coerência de noções e objetos, de relações e de
formas, clara, definida, obra do homem tranquilo, em que o
nada não poderia infiltrar-se e em que belos nomes – todos os
nomes são belos – bastam para nos tornar felizes” 9. Em vão. No
seio do dia (e da obra), numa atmosfera de luz e de limpidez,
surge o “arrepio de terror” diante daquilo que se combateu e se
quis evitar. A obra é erigida sobre sua própria dissolução. O ser
da obra é a ruína do ser. Desoeuvrement em francês significa,
literalmente, ociosidade, preguiça, inação, inoperância, e evoca
passividade, uma lassidão e talvez até o tédio. Para definir a
loucura, Foucault dirá, numa direção todavia mais enigmática:
a loucura é ausência de obra. Como não perceber na experiên-

98
cia de teatro relatada acima uma tal dimensão de erosão, de
desmoronamento, de ruína, de passividade, o neutro, o murmú-
rio.. a ausência de obra? Tudo nos remete a uma linguagem
esquecediça, anônima, livre de qualquer centro ou pátria 10,
capaz de ecoar a morte de Deus e do homem.
É o que Blanchot chamou, da maneira mais extrema, de
Desastre. Pois no Desastre lê-se dis-astro, privação do astro,
perda da fonte de luz, distanciamento de qualquer centro de
gravidade, metafísico, ontológico, subjetivo... O Desastre con-
siste em que já não se gravita em torno de um centro, é o reino
da pura queda, da exterioridade, do extravio. Similar a alguns
fragmentos de Nietzsche sobre a morte de Deus, Blanchot o diz
explicitamente: o desastre não é maiúsculo 11, não consiste num
evento ruidoso, não pode ser localizado num tempo preciso,
nem num espaço delimitado... Ele é o contratempo 12 , o entre-
tempo, o vai e vem, a desordem nômade 13, a afirmação intensa
do fora 14. O desastre é o fundo sem fundo de nosso pensamen-
to, é o que desliga aquilo que está ligado, subtraindo-se ao
poder que tudo liga, totaliza, unifica. O que seria, indaga Blan-
chot, se num certo momento, cessassem de ter sobre nós algum
poder as categorias que até agora sustentaram nossa linguagem:
unidade, identidade, primazia do Mesmo, exigência do Eu -
sujeito? Não porque com eles continuássemos a brigar, mas ao
contrário, porque elas se teriam realizado tão perfeitamente (no
mundo que nos rodeia) que seríamos lançados num outro regi-
me de manifestação, num espaçamento fora do espaço, num
tempo fora tempo, fora da consciência e da inconsciência, na
vacilação deportada... 15 Nesse êxodo, nesse exílio, não teríamos
por fim nos livrado da sideração e de sua servidão?... O desastre
evacua o sim e o não, o sentido e o não-senso, a vida e a morte,
o silêncio e a palavra, deportando-nos da intencionalidade para
a intensidade pura, para além ou aquém do ser e da ontologia –
o neutro, pura diferença. O desastre passa-se “aqui, um aqui em
excesso sobre toda presença”16. Não se trata, pois, apenas de
uma experiência negativa de desmoronamento, cuja coerência
cósmica o pensamento se deleita em evocar, mas o escoamento
eterno do fora.. Lembremos a definição blanchotiana, no seu
comentário ao livro seminal de Foucault: a loucura responderia
à exigência histórica de enclausurar o Fora.
Fora, Neutro, Desastre, “pedras de abismo petrificadas pelo
infinito de sua queda”17 . Talvez essas noções de Blanchot este-
jam o mais próximo daquilo a que Foucault deu o nome de
Desrazão, no contexto do pensamento contemporâneo. É pos-
sível que algo disso ainda balbucie remotamente por trás das
figuras da Loucura que conhecemos, ou de seus avatares. Ao
desertar o dispositivo psiquiátrico e seus saberes seguros, algu-
mas experiências-limite, como a que descrevemos acima, talvez
estejam em condições de dar eco ao que Foucault deixou
entrever em sua bela ficção histórica – as vozes da desrazão18 .

* * *

A Cia Teatral Ueinzz é composta por pacientes e usuários de servi-


ços de saúde mental, terapeutas, estagiários de teatro ou performan-
ce, compositores e filósofos. Fundada em 1997 no interior do Hospi-
tal-Dia “A Casa” em São Paulo, em 2002 se desvinculou por inteiro
do contexto hospitalar. Com três peças dirigidas por Sérgio Penna e
Renato Cohen, e música de Wilson Sukorski, a Cia tem um total de
mais de 100 apresentações pelo Brasil, e recentemente foi convidada
para uma convivência artística pelo Théâtre du Radeau, na Fran-
ça19.

100
Notas
1
Blanchot, M., Le Livre à Venir, Paris, Gallimard, 1959, cit., p. 59.
2
Ibid., p. 45.
3
Para uma problematização desse prefácio à luz do trajeto ulterior de
Foucault, permito-me remeter a estudo anterior: Pelbart P.P., Da
Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão, São Paulo,
Brasiliense, 1989.
4
M. Foucault, “C´était un nageur entre deux mots”, in Dits et Écrits
I, Paris, Gallimard, 1994, p. 556.
5
Foucault, M., “Folie, littérature, societé”, in Dits et Écrits II, Paris,
Gallimard, 1994, p. 104-128.
6
Foucault, M., “La Folie et la Société”, in Dits et Écrits III, Paris,
Gallimard, 1994, p. 490.
7
Deixaremos de la do, no presente contexto, os desdobramentos ulte-
riores da obra de Foucault, sobretudo a partir de seu período genealó-
gico, em que tanto a loucura como a literatura perdem inteiramente
tal estatuto de exterioridade.
8
Tradução para desoeuvrement proposta por Roberto Machado e
Jean-Robert Weisshaupt, em Foucault, a filosofia e a literatura, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
9
Blanchot, M., L´Entretien Infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 46.
10
Foucault, M., “La pensée du dehors”, in Dits et Écrits I, cit., p. 525.
11
Blanchot, M., L´Ecriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980, p. 9.
12
Ibid., p. 27.
13
Ibid., p. 12
14
Ibid., p.13
15
Blanchot, M., L´Entretien Infini, cit., p. 406.
16
Blanchot, M., L´Écriture du Désastre, cit., p. 121.
17
Ibid., p. 95.
18
Seria preciso, para ampliar o espectro filosófico e estético em que se
inscreve a experiência da Cia Teatral Ueinzz, lançar mão de alguns
dos conceitos que Deleuze e Guattari, anos mais tarde, desdobraram
em sua obra conjunta, tais como multiplicidade, intensidade, desterri-
torialização, devir, rizoma, corpo-sem-órgãos, fluxos, nomadismo,
acontecimento, diferença, sem falar no personagem conceitual que
incorpora boa parte dessas noções, o Esquizo e seus processos. Embora
não seja aqui o lugar para esmiuçar tal leque conceitual, talvez possa-
mos ao menos dizer o seguinte, sobre os que ousaram pensar mais
radicalmente o lugar da loucura no contexto contemporâneo. Embora
vizinhos, Foucault e Deleuze desdobraram perspectivas contrastantes.
É provável que em Deleuze o estatuto da loucura esteja muito menos
ligado a uma topografia da alteridade do que a uma potência de des-
territorialização. Assim, com uma concepção menos referida ao jogo
entre o Mesmo e o Outro, Deleuze pôde desatrelar a "esquizofrenia"
da temática do Limite e da Fronteira. Que nos baste pensar no pro g-
nóstico visionário de Foucault, depois de ter identificado a loucura
com o Exterior de uma cultura: chegará um momento, dizia ele, em
que teremos abocanhado nosso Exterior, eliminando de nosso hori-
zonte a face estranha da Loucura (em favor da Doença Mental e sua
administração pacificada). Deleuze e Guattari viraram do avesso tal
observação: uma vez abolida a fronteira entre loucura e não loucura, o
Exterior poderia, por fim, ser liberado de sua clausura em espaços
confinados para disseminar-se por toda parte...
19
Para mais informações sobre a Cia, ou para contatos e apoios sem-
pre bem-vindos, consultar o site:
http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm. Carmen Opipari e Sylvie
Timbert realizaram um documentário de hora e meia a partir da expe-
riência da trupe, intitulado “Eu sou Curinga! O Enigma!”. O vídeo
pode ser encomendado no endereço: opiparitimbert@hotmail.com

102
Fulgurações do teatro em Histoire de la folie

Nuno Melim

Life’s but a walking shadow, a poor player,


That struts and frets his hour upon a stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury
Signifying nothing.

Shakespeare, Macbeth, V, 5

Uma trepidante, rápida, sucessão de pancadas no tabuado,


seguida de três pancadas mais espaçadas, serenas – espécie de
ritual prévio que desabriga à peça teatral o seu espaço de defla-
gração e consagração – e o espectáculo pode libertar o seu volu-
me em palco…
Analogamente, poderíamos dizer que, no “mui provisório
teatro”1 do pensamento de Foucault, a presença do teatro nos
surge, a um tempo, trepidante, e, a outro, serena: soberana e
discreta.
Soberana ao olhar encantadamente trágico do primeiro, dos
primeiros, Foucault. Em Histoire de la folie, a marginal «tragé-
dia» estremece a história, o sereno devir da Razão. Irrupção de
uma certa desrazão, o teatro manifesta, certamente, “um des-
pedaçamento sem reconciliação no qual o mundo é forçado a
interrogar-se”. É obra. E a obra pensa, incomoda, contesta, co-
memora, dá a pensar.2

104
Discreta ao olhar desencantado do arqueólogo felizmente
positivista que, ao perscrutar o teatro, o insere nos territórios
arqueológicos do saber. Em L’archéologie du savoir, o teatro não
é mais força trágica como que à deriva na história: está ancora-
do na história, no saber, tal como a filosofia ou a ciência.3 Aí,
no gigantesco palco da experiência, no vastíssimo “teatro da
verdade”4, a arte do palco perde o trono, o protagonismo da
margem: é personagem, entre outras, nas ficções do arqueólogo.
No que se segue, consideramos apenas e sucintamente o tea-
tro na sua soberania. No conjunto da obra de Foucault, Histoire
de la folie parece-nos ser o lugar da sua mais trepidante e fulgu-
rante presença, o texto em que o teatro é mais chamado à cena,
ao terreiro de luta, do pensamento.

Arqueologia do saber e palavra trágica. Comecemos por


notar a relevância arqueológica do teatro em Histoire de la folie.5
O teatro é elemento de “uma superfície cultural lata”, de um
“conjunto estrutural histórico”6 , conjunto no qual se constitui a
experiência da loucura. Todavia, nesse conjunto, nessa superfí-
cie, o teatro não é um elemento como os outros: não é à manei-
ra de uma medida jurídica ou policial, de um conceito científi-
co. Não está exactamente tomado nos territórios arqueológicos
do saber tal como são tematizados em L’archéologie du savoir. Na
economia interna, autónoma, de Histoire de la folie, o teatro
funciona mais como complemento arqueológico, na medida em
que é uma experiência um tanto ou quanto marginal face ao
saber produzido pela Razão. Marginalidade explícita quando
Foucault afirma:
Mas, isso que aprendemos, pedaço a pedaço, pela arqueologia
do saber, fora já dito numa simples fulguração trágica, nas
últimas palavras de Andrómaca. (…) O movimento próprio à
desrazão, que o saber clássico seguiu e perseguiu, tinha já reali-
zado a totalidade da sua trajectória na concisão da palavra trá-
gica.7

A marginalidade face ao saber tem os seus encantos e os


seus privilégios. No caso, o privilégio da aproximação ao Outro.
Dado o «romantismo» mal resolvido do Foucault de Histoire de
la folie, o teatro é uma experiência privilegiada, autêntica, de
recepção, apreensão e doação da loucura/desrazão. Experiência
situada na perigosa vizinhança da loucura, porquanto “potência
imaginária”8, experiência de desrazão.
Em certo sentido, é heterotopia: espaço outro, espaço em
que o outro se acolhe e revela.

A verdade irresponsável e a verdade trágica. Ao longo da


história da loucura, mais em certas épocas que em outras, o
teatro surge, pois, como lugar de acolhimento e reflexão da
loucura.
Entre o final da Idade Média e Renascimento nos seus
começos, a loucura representada no centro do teatro espelha
uma loucura presente no mundo, uma loucura não excluída da
cena social. É que a experiência geral da loucura é ainda um
tanto ou quanto indeterminada, indecisa. Até 1650, dirá Fou-
cault num outro texto, a cultura ocidental manifestou uma
certa hospitalidade, hospitalidade sem hospital ou asilo, face à
loucura: a loucura circulava, integrava-se na paisagem cultural,
a sua palavra era «escutada».9

106
Exemplo de tal integração ou escuta é essa personagem real,
um pouco tonta e estranha, saltitando nos paços e ousando
dizer a verdade que outros não ousavam: o bobo, como que
espelho social e ministro de mui sorridente verdade. 10
Personagem que também saltita nos palcos:

Nas Farsas (…) a personagem do Louco, do Parvo, do Tolo,


adquire uma importância crescente. Já não é apenas (…) a
silhueta ridícula e familiar: tem lugar no centro do teatro,
como o detentor da verdade (…) Se a loucura conduz cada um
a uma cegueira em que se perde, o louco, pelo contrário,
relembra a cada um a sua verdade. Na comédia, em que cada
um engana os outros e se ilude a si próprio, ele é a comédia em
segundo grau, a ilusão da ilusão; na sua tola linguagem, que
não tem figura de razão, diz palavras de razão que desenlaçam,
no cómico, a comédia; diz o amor aos amantes, a verdade da
vida aos jovens, a medíocre realidade das coisas aos orgulhosos,
aos insolentes e aos mentirosos. 11

Contudo, não nos iludamos com tal detenção da verdade. A


verdade não desliza inteiramente para o palco. E essa verdade
em palco, não sendo produzida “no verdadeiro”, não é, eviden-
temente, uma verdade na loucura. É verdade “desarmada e
reconciliada”, secretamente investida por uma razão astuciosa.
Afinal, sempre se trata de teatro, de farsa… 12
No teatro medieval e renascentista, a personagem do louco
sabe mais que os que não são loucos, vê a verdade melhor que
os que não são loucos: está dotada com a visão de uma outra
dimensão. Assemelha-se ao santo, ao profeta. Porém, o profeta
narra a verdade e sabe que narra a verdade; o louco, pelo
contrário, é um profeta ingénuo, narra a verdade não sabendo
que narra a verdade: “o louco é a verdade irresponsável”.
Verdade diferida, verdade ferida talvez, verdade que não se
percebe no momento em que é proferida. O louco diz,
antecipadamente, a verdade. Todavia, nunca é escutado, e só
verdade. Todavia, nunca é escutado, e só acabada a peça é que
se percebe, em retrospectiva, que dizia a verdade: inevitavel-
mente, a verdade que profere está contida num discurso que lhe
é exterior. O não ser escutado denota a sua posição ambígua –
“palavra rejeitada como não tendo valor e jamais completamen-
te aniquilada” –, posição ligeiramente afastada da das outras
personagens. De um lado, temos as que dominam a vontade e
não sabem a verdade. Do outro, o louco que narra a verdade,
mas que não domina a sua vontade, nem mesmo o facto de
narrar a verdade. Esse afastamento entre a vontade e a verdade,
entre verdade desapossada da vontade e vontade que não
conhece ainda a verdade, é o afastamento entre os loucos e os
que não são loucos. O discurso do louco é um discurso de ver-
dade que, realmente, não tem vontade de verdade, não a possui
em si próprio. Vontade de verdade: tema maior do pensamento
ocidental.13
Tema maior da «tradição crítica do Ocidente» – tradição
preocupada com a questão da importância de dizer a verdade,
de saber quem é capaz de dizer a verdade, de saber porque é
que se deve dizer a verdade – que o último Foucault retomará
na sua análise do «dizer verdade», da parrésia. Eis uma das suas
características. Aquele que pratica a parrésia – o «parrésico» –
diz a verdade porque sabe que é verdade e sabe que é verdade
porque é realmente verdade. No acto enunciativo parrésico, há
uma relação entre aquele que diz a verdade e isso que diz. O
sujeito que enuncia a verdade está comprometido no que diz,
acredita no que diz. Por outras palavras, o parrésico é a verdade
responsável. Clara e distintamente, nos antípodas do louco.14

***

108
Todavia, teatro e loucura não se encontram apenas no uni-
verso moral – no qual a loucura está ligada ao homem, espelha
as suas fraquezas, sonhos, ilusões, e em que uma consciência
crítica justifica o seu discurso – que as Farsas, as sátiras morais,
indiciam.15
Encontram-se na fulguração de um cosmos trágico. Nomea-
damente, na obra de Shakespeare, na qual a loucura não é, ou
ainda não é, despojada da sua seriedade dramática ou tomada
apenas na ironia das suas ilusões. 16
Nas suas peças, a loucura aparenta-se à morte, ao homicídio,
ao castigo, ao desespero. Por exemplo, Foucault destaca um
tipo de loucura presente em Macbeth: “a loucura do justo casti-
go” – são as palavras insensatas de Lady Macbeth que revelam a
verdade secreta, o crime de Macbeth, e motivam o consequente
castigo.
A loucura não conduz à verdade ou ao retorno apaziguado
da razão. Ocupa um lugar extremo: é sem auxílio, sem salvação.
É considerada na sua realidade trágica: só abre para o despeda-
çamento e, daí, para a morte. Desvela «as significações funda-
mentais da existência».
Shakespeare é mais testemunha de uma experiência trágica
da loucura/desrazão originárias, nascida no século XV, do que
da experiência crítica e moral da loucura do seu próprio tempo.
Experiência trágica, cosmológica, segundo a qual a loucura é
uma figura do mundo, ligada a temas como: o fim do mundo, a
queda infernal, o apocalipse, a noite que engolirá a velha razão
do mundo. A loucura desvela a animalidade, a desordem, o
furor, a raiva, no coração dos homens. Revela o nada da exis-
tência, diz-nos que “a vida é uma sombra, um actor, passeando
sobre um palco, uma história contada por um idiota, cheia de
som e de fúria, significando nada…”
A concisão da palavra trágica. Com a Idade Clássica, a
experiência face à loucura deixa de ser indeterminada, indecisa.
De facto, segundo Foucault, é uma época de decisão. A loucura
é excluída, erradicada, da cena social. E, cousa curiosa, como
que a compasso, a loucura é erradicada da tragédia, ausenta-se
na última cena da primeira grande tragédia clássica: Andróma-
ca de Racine. A de-cisão deixa-se retratar, como referimos já,
na “con-cisão da palavra trágica”. Vejamos.
A experiência clássica constitui-se a partir dos seguintes
valores:

O ciclo do dia e da noite é a lei do mundo clássico (…) Lei que


exclui qualquer dialéctica e qualquer reconciliação (…) tudo
deve ser vigília ou sonho, verdade ou noite, luz do ser ou nada
da sombra. Ela prescreve uma ordem inevitável, uma separação
serena, que torna possível a verdade e a consolida definitiva-
mente. 17

No entanto, há duas figuras simétricas e inversas que mani-


festam e transgridem esta lei, que conjugam os elementos destas
disjunções.
Uma delas é, claro, a loucura, “o murmúrio confuso da lou-
cura”. A época clássica percebe a loucura enquanto desrazão,
negatividade vazia da razão, nada, razão ausente, delirante,
desencaminhada, deslumbrada. A razão clássica é constituída
pela verdade e pela clareza; a loucura pelo delírio e pelo des-
lumbramento. O delírio e o deslumbramento escapam à “lei do
mundo clássico”: o deslumbramento é a noite em pleno dia, luz
do ser e nada da sombra; “o delírio é o sonho de pessoas vigilan-
tes”, é vigília e sonho. A loucura está no ponto de contacto

110
entre o onírico e o erróneo. Com o erro comunga a não-
verdade, com o sonho a irrupção das imagens e a presença de
fantasmas. Mas, enquanto o erro é apenas não-verdade e o
sonho não afirma nem julga, a loucura “preenche de imagens o
vazio do erro e liga os fantasmas pela afirmação do falso”, enla-
ça conteúdos obscuros com formas de clareza.
A outra é a tragédia. Os temas do erro, do sonho, do delírio,
do deslumbramento, tão caros ao saber da época clássica,
irrompem claramente no teatro. Por exemplo, na tragédia clás-
sica, dia e noite espelham-se indefinidamente: a jornada, no
teatro de Racine, pende para uma noite que traz ao dia, exibe
pedaços de sombra que assombram o dia; por sua vez, as noites
são assombradas por uma luz que é como que o reflexo infernal
do dia.
Figuras que diferem. A personagem trágica encontra, na noi-
te, a sombria verdade do dia; paradoxalmente, a noite desvela:
é o dia mais profundo do ser. Inversamente, o louco só encon-
tra, no dia, a inconsistência das figuras da noite, deixa a luz
obscurecer-se com as ilusões do sonho: o seu dia é a noite mais
superficial da aparência. Na época clássica, não há linguagem
comum entre personagem trágica e louco: um pronuncia as
palavras decisivas do ser, em que se reúnem a verdade da luz e a
profundidade da noite; o outro repete o murmúrio indiferente
em que se vêm anular as tagarelices do dia e a sombra mentiro-
sa. 18

O teatro terapêutico e o «teatro da crueldade». O teatro


tem ainda uma outra fulguração na história da loucura. Surge
na prática médica. A Idade Clássica empregou uma técnica que
Foucault designa «realização teatral».19 Essencialmente, repre-
sentava-se ao doente a comédia da sua própria loucura, ence-
nava-se a loucura, conferia-se-lhe momentaneamente uma
realidade fictícia, por meio de cenários e disfarces, de maneira a
que, tomado nessa artimanha, o erro, a ilusão, desaparecessem
aos olhos do doente.
Filosoficamente, punha-se em obra o princípio esse est per-
cipi. A partir do momento em que o delírio entrava no campo
do percipi, relevava do ser, quer dizer, entrava em contradição
com o seu próprio ser que é o non-esse. Esperava-se que o delí-
rio se suprimisse enquanto não-ser uma vez percebido enquanto
tal. O jogo teatral e terapêutico, num primeiro momento, esta-
belecia uma continuidade entre as exigências do ser do delírio e
as leis do ser; num segundo momento, promovia, entre umas e
outras, a tensão e a contradição; finalmente, ao trazê-las à luz
do dia, fazia descobrir a verdade de que as leis do ser do delírio
eram apenas ilusões, exigências do não-ser. Efectuava um
desenlace no sentido em que o ser e o não-ser eram libertos da
sua confusão na quase-realidade do delírio e entregues à pobre-
za do que são.
Foucault dirá ironicamente:

Podemos perceber porque é que a loucura enquanto tal desa-


pareceu do teatro no fim do século XVII, reaparecendo apenas
nos últimos anos do século seguinte: o teatro da loucura reali-
zava-se efectivamente na prática médica. A sua redução cómi-
ca era da ordem da cura quotidiana. 20

***

De certo modo, o teatro jogava-se também nos locais de


internamento. O internamento clássico, “prodigiosa reserva de
fantástico”21, bestiário para o qual se chegou a organizar visitas

112
e cobrar entrada, era teatro do inumano, da atrocidade, da bes-
tialidade: «teatro da crueldade».
A analogia com Artaud não é inteiramente descabida. À sua
maneira, Foucault realçará também algo como uma «poesia no
espaço», uma «poesia concreta» do internamento, palco onde
se representava mais uma «linguagem de coisas» que uma «lin-
guagem de palavras» ou de diálogo:

Comparado ao diálogo incessante da razão e da loucura duran-


te o Renascimento, o internamento clássico foi um silencia-
mento. Mas este não foi total: a linguagem encontrava-se mais
empenhada nas coisas que realmente suprimida. O interna-
mento, as prisões, as celas, inclusive os suplícios, enlaçavam
entre a razão e a desrazão um diálogo mudo que era luta.22

Isso que Artaud atribui ao «teatro da crueldade» – teatro


que deve “manifestar e ancorar, inesquecivelmente, em nós a
ideia de um conflito perpétuo e de um espasmo em que a vida é
talhada a cada minuto” 23 –, decorria nos locais de internamen-
to:

(…) no internamento clássico, ela [a loucura] dava o espectá-


culo da sua animalidade. Mas o olhar que sobre ela se lançava
era um olhar fascinado, no sentido em que o homem contem-
plava nessa figura tão estranha uma bestialidade que lhe era
própria e em que reconhecia, de uma maneira confusa, indefi-
nidamente próxima e indefinidamente afastada, que essa exis-
tência, cuja monstruosidade em delírio a tornava inumana e a
colocava no mais longínquo do mundo, era secretamente
aquela que ele próprio experimentava.24

O internamento era heterotopia, arquivo de uma desrazão


imemorial, espaço encarcerando e manifestando o Outro. O seu
palco funcionava como um espelho – outra heterotopia25 –, em
que se reconhecia algo indefinidamente próximo e indefinida-
mente afastado. Nesse palco espelho, o homem vê-se onde não
está, reconhece-se no espaço irreal, estranho, indefinidamente
afastado, de uma bestialidade que se abre no contacto entre o
espectáculo doado pela loucura e o seu olhar fascinado. Como
se uma espécie de sombra lhe desse a sua própria visibilidade, lá
onde está ausente. E, no entanto, tal espectáculo tem um efeito
retroactivo sobre o lugar do homem espectador: a partir do
palco, o homem descobre-se ausente do seu lugar, porque se vê,
indefinidamente próximo, no palco. Oscila, vacila, entre um e
outro. Quando se observa nesse palco-espelho, mostrando-lhe o
estranho alojado no coração da familiaridade, o lugar que o
homem ocupa torna-se simultaneamente próximo, ligado a
todo o espaço que o rodeia, e distante, porque, para se perceber,
o homem é obrigado a passar pelo que se dá em espectáculo.
Oscilação em que o homem, o mundo, é forçado a interrogar-
se…

Notas
1
Quanto a esta expressão, vide Foucault, L’ordre du discours, Paris,
Gallimard, 1971, p. 10.
2
“(…) par la folie qui l’interrompt, une œuvre ouvre un vide, un
temps de silence, une question sans réponse, elle provoque un
déchirement sans réconciliation où le monde est bien contraint de
s’interroger.” (Foucault, Histoire de la Folie, Paris, Gallimard, 1972, p.
663.) E, de algum modo, o teatro conservará essa característica: a de
acolher e contestar, interrogar, o mundo. Um outro Foucault dirá que
o teatro é heterotopia, espaço outro, contra-instalação na qual as
instalações reais são simultaneamente representadas e contestadas.
(Vide Foucault, “Des espaces autres” in Dits et écrits II, Paris,
Gallimard/Quarto, 2001, nº 360, p. 1574 ss.)
3
“Les territoires archéologiques peuvent traverser des textes
«littéraires», ou «philosophiques» aussi bien que des textes
scientifiques. Le savoir n’est pas investi seulement dans des

114
démonstrations, il peut l’être aussi dans des fictions, dans des
réflexions, dans des récits, dans des règlements institutionnels, dans
des décisions politiques.” (Foucault, L’archéologie du savoir, Paris,
Gallimard, 1969, p. 239.)
4
“C’est bien le théâtre de la vérité que je voudrais décrire. Comment
l’Occident s’est bâti un théâtre de la vérité, une scène de la vérité
[…] un certain théâtre du vrai et du faux. ” (Foucault, “La scène de
la philosophie” in Dits et écrits-II, cit., nº 234, p. 572.)
5
Tão relevante que Foucault chega a projectar um estudo que, no
entanto, não realizou: “Il faudrait faire une étude structurale des
rapports entre le songe et la folie dans le théâtre du XVII e siècle.”
(Foucault, Histoire de la folie, cit., p. 62.)
6
No primeiro prefácio a Histoire de la folie, adianta-se: “Faire l’Histoire
de la folie voudra donc dire: faire une étude structurale de l’ensemble
historique – notions, institutions, mesures juridiques et policières,
concepts scientifiques – qui tient captive une folie dont l’état sauvage
ne peut jamais être restitué en lui-même […]”(Foucault, “Préface” in
Dits et écrits I, Paris, Gallimard/Quarto, 2001, nº 4, p.192.)
7
“Et cela, qu’a pu nous apprendre, morceau par morceau,
l’archéologie du savoir, nous était dit déjà dans une simple fulguration
tragique, dans les derniers mots d’Andromaque. […] Le mouvement
propre à la déraison, que le savoir classique a suivi et poursuivi, avait
déjà accompli la totalité de sa trajectoire dans la concision de la
parole tragique.” (Foucault, Histoire de la folie, cit., pp. 314-317.)
8
Quanto a este sentido de desrazão, cf. Foucault, Foucault, Histoire de
la folie, cit., p. 452.
9
Cf. Foucault, Maladie mentale et psychologie, Paris, Quadrige/PUF,
1997, pp. 78-80.
10
“O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média. Hoje a sua
significação social é desprezível e impalpável; mas então era um espe-
lho que reflectia, cruelmente sincero, as feições hediondas da socieda-
de desordenada e i ncompleta. O bobo, que habitou nos paços dos reis
e barões, desempenhava um temível ministério. Era ao mesmo tempo
juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregan-
do, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro imaterial do
vilipêndio.” (Alexandre Herculano, O Bobo, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1978, p. 27.) Foucault nota também a existência de tal per-
sonagem: “[…] le statut du fou par rapport au langage était curieux
en Europe. D’un côté, la parole des fous était rejetée comme étant
sans valeur et, de l’autre, elle n’était jamais complètement annihilée.
On lui prêtait toujours une attention particulière. Pour prendre un
exemple, en premier lieu, du Moyen Âge à la fin de la Renaissance,
dans la petite société des aristocrates, existaient des bouffons. On
peut dire que le bouffon était, en quelque sorte, l’institutionnalisation
de la parole de la folie. Sans rapport avec la morale et la politique, et,
de plus, sous le couvert de l’irresponsabilité, il racontait sous forme
symbolique la vérité que les hommes ordinaires ne pouvaient pas
énoncer.” (Foucault, “La folie et la société”, in Dits et écrits I, cit., nº
83, p. 999. Cf. também “La folie et la société” in Dits et écrits II, cit.,
nº 222 p. 488.)
11
“Dans les Farces et les soties, le personnage du Fou, du Niais, ou du
Sot prend de plus en plus d’importance. Il n’est plus simplement, dans
les marges, la silhouette ridicule et familière: il prend place au centre
du théâtre, comme le détenteur de la vérité […] Si la folie entraîne
chacun dans un aveuglement où il se perd, le fou, au contraire,
rappelle à chacun sa vérité ; dans la comédie où chacun trompe les
autres et se dupe lui-même, il est la comédie au second degré, la
tromperie de la tromperie ; il dit dans son langage de niais, qui n’a pas
figure de raison, les paroles de raison qui dénouent, dans le comique,
la comédie : il dit l’amour aux amoureux, la vérité de la vie aux jeunes
gens, la médiocre réalité des choses aux orgueilleux, aux insolents et
aux menteurs.” (Foucault, Histoire de la folie, cit., pp. 28-29.)
12
“Il est curieux de constater que pendant des siècles en Europe la
parole du fou ou bien n’était pas entendue, ou bien, si elle l’était, était
écoutée comme une parole de vérité. Ou bien elle tombait dans le
néant – rejetée aussitôt que proférée ; ou bien on y déchiffrait une
raison naïve ou rusée, une raison plus raisonnable que celle des gens
raisonnables. De toute façon, exclue ou secrètement investie par la
raison, au sens strict, elle n’existait pas. C’était à travers ses paroles
qu’on reconnaissait la folie du fou ; elles étaient bien le lieu où
s’exerçait le partage ; mais elles n’étaient jamais recueillies ni
écoutées. […] Tout cet immense discours du fou retournait au bruit ;
et on ne lui donnait la parole que symboliquement, sur le théâtre où il
s’avançait, désarmé et réconcilié, puisqu’il y jouait le rôle de la vérité
au masque.” (Foucault, L’ordre du discours, cit., pp. 13-14.)
13
Quanto a estes esclarecimentos, cf. Foucault, “Folie, littérature,
société”, in Dits et écrits I, cit., nº 82, p. 978 ss. “La folie et la société”,
cit., nº 222, p. 489.
14
A este propósito, cf. Foucault, Fearless Speech [six lectures delivered
at the University of California at Berkeley as part of a seminar entitled

116
“Discourse and Truth”], ed. Joseph Pearson, Los Angeles, Semio-
text(e), 2001, pp. 12-14 e 170.
15
Cf. Foucault, Histoire de la folie, cit., p. 41 ss., p. 46.
16
Quanto a esta nossa breve evocação da obra de Shakespeare, cf.
Foucault, Histoire de la folie, cit., p. 58 ss.
17
“Le cercle du jour et de la nuit, c’est la loi du monde classique; […]
Loi qui exclut toute dialectique et toute réconciliation; […] tout doit
être veille ou songe, vérité ou nuit, lumière de l'être ou néant de
l'ombre. Elle prescrit un ordre inévitable, un partage serein, qui rend
possible la vérité et la scelle définitivement.” (Foucault, Histoire de la
folie, cit., p. 312.)
18
Quanto a estes temas, cf. Foucault, Histoire de la folie, cit., pp. 307-
317.
19
Cf. Foucault, Histoire de la folie, cit., pp. 417-421.
20
“On peut comprendre pourquoi la folie comme telle a disparu du
théâtre à la fin du XVIIe siècle pour ne reparaître guère avant les
dernières années du siècle suivant: le théâtre de la folie était
effectivement réalisé dans la pratique médicale; sa réduction comique
était de l'ordre de la guérison quotidienne.” (Foucault, Histoire de la
folie, cit., p. 421.)
21
Cf. Foucault, Histoire de la folie, cit., p. 452.
22
“Comparé au dialogue incessant de la raison et de la folie, pendant
la Renaissance, l’internement classique avait été une mise au silence.
Mais celle-ci n’était pas totale: le langage s’y trouvait plutôt engagé
dans les choses que réellement supprimé. L’internement, les prisons,
les cachots, jusqu’aux supplices mêmes nouaient entre la raison et la
déraison un dialogue muet, qui était lutte.” (Foucault, Histoire de la
folie, cit., p. 616.)
23
“Si le théâtre comme les rêves est sanguinaire et inhumain, c’est,
beaucoup plus loin que cela, pour manifester et ancrer
inoubliablement en nous l’idée d’un conflit perpétuel et d’un spasme
où la vie est tranchée à chaque minute, où tout dans la création
s’élève et s’exerce contre notre état d’êtres constitués, c’est pour
perpétuer d’une manière concrète et actuelle les idées métaphysiques
de quelques Fables dont l’atrocité même et l’énergie suffisent à
démontrer l’origine et la teneur en principes essentiels.” (Artaud, Le
théâtre et son double, Paris, Gallimard, 1964, pp. 142-143.)
24
“Elle l’était déjà dans l’internement classique, lorsqu’elle donnait le
spectacle de son animalité; mais le regard qu’on portait sur elle était
alors un regard fasciné, en ce sens que l’homme contemplait dans
cette figure si étrangère une bestialité qui était la sienne propre, et
qu’il reconnaissait d’une manière confuse comme indéfiniment proche
et indéfiniment éloignée, cette existence qu’une monstruosité en
délire rendait inhumaine et plaçait au plus lointain du monde, c’était
secrètement celle qu’il éprouvait en lui-même.” (Foucault, Histoire de
la folie, cit., p. 552.)
25
Cf. Foucault, “Des espaces autres”, cit., p. 1575.

118
A Loucura feminina nos inícios do século XX:
dois estudos de caso

Maria Rita Lino Garnel

Introdução. Os novos conceitos de loucura e de crime, que


tomam forma a partir dos finais de Setecentos, se, em muitos
aspectos, dão conta do novo racionalismo humanitário, para-
doxalmente, também podem ser entendidos como uma forma
de revolta contra o totalitarismo da razão das Luzes. A patologi-
zação do louco e do criminoso – tornados objecto de estudo
médico – é, de certa forma, a inclusão da irracionalidade “in
the positivist systems of thought and explanation” 1. A constru-
ção da loucura como doença mental, objecto de estudo e de
tratamento, só podia surgir no momento em que, na cultura
europeia, se tornava quase obsessiva a invocação e a exigência
de racionalidade. É que a loucura definir-se-á como privação da
razão. E esta ausência será entendida como uma desordem,
fruto da hereditariedade, para uns, ou consequência das condi-
ções adversas do meio, para outros. Em qualquer dos casos, só o
médico especialista saberia diagnosticá-la.
Nos finais do século XIX, em O Alienista, Machado Assis
ironizava acerca deste imenso poder médico e fazia o seu Simão
Bacamarte, ilustre psiquiatra e director da Casa Verde, dizer:
“A loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha
perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um con-
tinente. (…) Demarquemos definitivamente os limites da razão
e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as facul-
dades; fora daí só insânia, insânia e só insânia”2.

120
A fragilidade dos critérios que permitiam ao médico pro-
nunciar este veredicto só muito raramente foi assumida pelos
especialistas. Nos exames que, a pedido da família ou do tribu-
nal, determinavam a imputabilidade ou inimputabilidade de um
indivíduo, as opiniões podiam dividir-se. Como, exemplarmen-
te, Miguel Bombarda sublinhava, a distinção era uma ténue
linha, em grande parte dependente do arbítrio do perito, que
valorava diferenciadamente os elementos oferecidos à análise 3.
E, com insistência crescente, este poder de decidir foi reivindi-
cado pelo e para o grupo dos clínicos, que além do diploma
médico, possuíam os conhecimentos especializados que lhes
permitiam assumir uma posição de autoridade pericial.
Que os médicos, de formação generalista e não especializa-
da, se podiam enganar e ser enganados, di-lo o seguinte caso
narrado nas páginas de A Medicina Contemporânea, m 1912:
“Foi há cerca de um ano publicado na imprensa periódica um
testamento contendo disposições ofensivas para a reputação de
um dos clínicos que havia prestado assistência ao testador”.
Mas que dizia o testamento? “Lego a propriedade de determi-
nados bens (…) ao Hospital de Rilhafoles para o fim especial
(…) de construir um pavilhão onde sejam recolhidos tempora-
riamente os indivíduos que qualquer médico considere atacados
ou suspeitos de doença mental. (…) Por cima da porta, ou nas
ombreiras do portão da entrada será colocada uma lápide com
um letreiro bem visível dizendo: «Mandado erigir por F. que
esteve cinco meses enclausurado, à ordem do médico F. e do
seu sócio F., sendo dado como doido, mostrando, porém, estar
em perfeito juízo no próprio dia em que, sendo entregue ao
psiquiatra F., este lhe deu logo a liberdade»” 4. Ora, a publicação
desta notícia, no momento em que o foi, servia bem a demons-
tração de que só um perito em doenças mentais podia abaliza-
damente diagnosticar tais doenças. E perito não era qualquer
diplomado em Medicina.
Os fundamentos do diagnóstico médico de loucura, se, em
alguns casos se apoiavam em evidências fisiológicas, noutros,
tinham bases bem mais questionáveis. Na verdade, a ideia de
que a natureza, espontaneamente, tendia para o equilíbrio, a
crença no “carácter naturalmente organizado do universo natu-
ral e humano”5 conduziram a considerar como patológicos os
comportamentos que se afastavam da moderação, verdadeira
medida da racionalidade.
A condenação do excesso e, por vezes, apenas da diferença,
típica da sociedade burguesa de Oitocentos e alicerce da distin-
ção normal/patológico, evidencia uma obsessão ordenadora e
uniformizadora das condutas. As elites médicas emprestavam,
aqui, o seu valioso contributo, invocando o saber científico, e,
não raro, estendiam o diagnóstico de loucura aos mais ínfimos
detalhes da maneira de ser individual. Loucos já não eram só os
que manifestavam imbecilidade, demência e mania. Como Júlio
de Matos reivindicava, era necessário estender o diagnóstico de
loucura a todos aqueles que evidenciassem “uma completa
ausência de sentido ético, uma perversão profunda dos afectos
ou instintos, que apresentem um embaraço da palavra coexis-
tindo com um desvio de conduta habitual, que seja assimétrico
ou um prognata, que derive de uma família condenada pela
germinação constante de psicopatias multiformes”6. Como dizia
o alienista do conto de Machado de Assis, a ilha da loucura era,
afinal, um continente.

Dois casos de loucura: Rosa Calmon e Adelaide Coelho


da Cunha. Se se quiser comprovar o imenso poder do

122
médico alienista nas décadas iniciais de Novecentos, os casos
de Rosa Calmon (1900-1901) e o de Adelaide Coelho da
Cunha (1918-1921) são exemplares. Tanto um como o outro
ganharam notoriedade porque foram entendidos como trans-
gressores dos valores e das normas sociais e, em ambos os casos,
os médicos psiquiatras não hesitaram em pronunciar-se pela
desrazão das duas mulheres.
O caso de Rosa Calmon conta-se em poucas palavras: Rosa
Maria Calmon da Gama era filha de José Calmon Nogueira
Valle da Gama, cônsul brasileiro no Porto desde 1892. A partir
de 1898, segundo o testemunho de Júlio de Matos, Rosa, de 32
anos de idade, começa a dar indícios de uma grande religiosida-
de, “frequentando as igrejas, prosternando-se a rezar no quarto
durante horas, a ponto de calejar os joelhos, fazendo reiteradas
abluções de água benta que tinha sempre junto ao leito, confes-
sando-se e recebendo muitas vezes a comunhão, e lendo exclu-
sivamente obras místicas, das quais transcrevia pensamentos
para um livrinho de bolso” 7. Estas manifestações, tão contrárias
aos hábitos pessoais e familiares, foram atribuídas à influência
da família Pestana, conhecida pelo seu reaccionarismo político
e conservadorismo religioso. Simultaneamente, Rosa Calmon
recusa a vida social, deixando passeios e teatros, abandonando
o estudo do piano e descurando a toilette. Interrogada pelo pai
sobre estas mudanças, acabará por confessar ser seu desejo
tomar ordens, projecto a que José Calmon se opôs.
Em Março de 1900, Rosa, em segredo, abandona a casa
paterna para ingressar nas Doroteias, deixando uma carta em
que pedia que não a procurassem. O pai, no entanto, avisa a
polícia que a detém na estação de Alfarelos: Rosa viajava na
companhia de duas senhoras, ao que parece uma delas religiosa
em trajes seculares.
Regressada ao Porto, e diante a sua persistência em seguir a
vida religiosa, o dr. José Calmon dá início a uma acção de inter-
dição. O tribunal da 4ª vara cível do Porto ordena um exame
mental à arguida, sendo nomeados como peritos os médicos,
Júlio de Matos (que já a tinha examinado, particularmente, a
pedido do pai, antes da sua tentativa de fuga), director do Hos-
pital de Alienados do Conde de Ferreira, e Joaquim Urbano da
Costa Ribeiro, subdelegado de saúde no Porto8 . O primeiro
pronunciar-se-á pela degenerescência psíquica de Rosa
Calmon, votando pela sua interdição; o segundo, reconhecendo
a predisposição hereditária para afecções nervosas, concluiu,
todavia, que não havia perturbação das funções intelectuais. O
tribunal acabou por nomear novos peritos: Magalhães Lemos,
subdirector do Hospital de Alienados de que Júlio de Matos era
director, e os clínicos Azevedo Maia e Lemos Peixoto. Uma vez
mais os peritos não chegaram a acordo: só o primeiro entendeu
que Rosa Calmon não estava na posse das suas faculdades9.
O tribunal não foi obrigado a pronunciar-se porque José
Calmon, por motivos familiares, desistiu da acção. Na verdade,
se o objectivo do pai era impedir o ingresso de sua filha numa
ordem religiosa, a acção de interdição não era necessária: o
estado e a capacidade civil de Rosa, porque cidadã brasileira,
eram regulados (como expressamente se reconhecia no art. 27º
do Código Civil português) pela legislação brasileira. Assim
sendo, estes seriam aqueles que as antigas Ordenações do Reino
lhe reconheciam (o Brasil só teria um Código Civil em 1917):
apesar de ter 32 anos de idade, sendo solteira, Rosa Calmon
continuava subordinada ao poder paternal. Se houve intenção
de mover um processo a José Calmon por cárcere privado – que
teria sido difícil sustentar, já que a filha continuou a frequentar
a igreja, embora vigiada, e a confessar-se semanalmente ao

124
padre Luís do Serro –, como alguma imprensa católica exigia
(particularmente o periódico A Palavra, e o Conde de Bertian-
dos, na Câmara dos Pares, sugeria em Abril de 190010 ), juridi-
camente não haveria qualquer fundamento.
No domingo, 17 de Fevereiro de 1901, à saída da missa das
11 horas da Igreja da Trindade, no Porto, Rosa Calmon tenta
fugir com a ajuda de várias pessoas que a aguardavam e entrar
num trem que a esperava. José Calmon e a sua mulher, porém,
gritaram por socorro e conseguiram, com a ajuda de vários
populares, impedir o intento da filha 11. No mesmo dia, o cônsul
brasileiro depositou queixa na polícia e no governo civil pela
tentativa de rapto da filha. A polícia ouviu vários testemunhos
e, entre eles, o de Frutuoso da Fonseca, redactor da Palavra,
que teria estado no grupo que pretendia auxiliar Rosa Calmon a
escapar da vigilância familiar 12 .
No mesmo dia iniciaram-se manifestações de apoio ao côn-
sul brasileiro e a imprensa, sobretudo a liberal progressista e a
radical, acentuou as denúncias do que entendia ser o resultado
do avanço da reacção ultramontana. As alterações à ordem
pública foram aumentando nos dias seguintes, para o que terá
contribuído, decisivamente, o envolvimento dos que mais mili-
tantemente lutavam pela resolução da questão religiosa e pelo
livre-pensamento – entre os quais se contavam republicanos,
socialistas e anarquistas – e, também, da academia, em particu-
lar da Escola Médico-Cirúrgica do Porto13 . A intervenção das
forças policiais, que procurara disciplinar alguns excessos,
designadamente os ataques à residência da família Pestana e ao
edifício da Associação Católica, ou reprimir as injúrias aos reli-
giosos nas ruas, foi imediatamente entendida como prova da
aliança do trono com o altar. A violência, porém, continuou
nas ruas do Porto, e as manifestações anticlericais alargaram-se
à capital e a outros pontos do país14.
O caso Calmon ultrapassava de tal forma a dimensão indivi-
dual e familiar que não surpreende que o governo brasileiro
tivesse instruído o seu cônsul no Porto para que regressasse ao
Brasil. José Calmon, acompanhado pela sua família, abandonou
Portugal em Março de 1901.
Não querendo analisar aqui o caso numa perspectiva de
género, ou sublinhar a sua importância na questão religiosa (em
especial no que aos jesuítas dizia respeito) – de que é difícil
abstrair –, detenhamo-nos, apenas, no diagnóstico médico15.
Recorde-se que, Júlio de Matos, então director do Hospital de
Alienados do Conde de Ferreira, após ter examinado Rosa Cal-
mon em 1900, tornara públicos o relatório e as reflexões sugeri-
das pelo caso, ainda que o resultado desse primeiro exame orde-
nado pelo tribunal tivesse sido inconclusivo. A apoiar a cientifi-
cidade das suas conclusões, Matos incluíra na publicação os
comentários feitos ao seu relatório pelos mais eminentes e pres-
tigiados peritos de medicina-legal da Europa: Dallemagne (Bru-
xelas), Maudsley (Londres), Lombroso (Turim), Régis
(Bordéus), Schüle (Illenau), Magnan (Santa Ana de Paris),
Morselli (Génova), Séglas (Bicêtre) e Miguel Bombarda (Lis-
boa), todos unânimes em concordar com o diagnóstico de
degenerescência psíquica hereditária de que seriam síndromas a
histeria constitucional e a loucura lúcida (variedade afectiva).
Esta última, tipificada por Maudsley na década de 1880, e que
rapidamente colheu a aprovação dos psiquiatras europeus, per-
mitia classificar como alienação as perversões da vontade, dos
afectos, das inclinações, do temperamento, dos hábitos ou da
conduta16. Isto é, os desvios ao comportamento normal, tal
como este vinha sendo definido pela Medicina ao longo do

126
século XIX, mesmo sem alteração do raciocínio, podiam ser
lidos como sintomas de loucura, o que, naturalmente, colocava
nas mãos dos peritos um poderosíssimo instrumento de controlo
(que o poder jurídico contestava ou só, relutantemente, aceita-
va).
Não pode deixar de ser questionada a facilidade com que
estes grandes nomes da medicina europeia – estrénuos defenso-
res da observação directa, que elegiam o olhar como meio fu n-
damental à produção da ciência médico-legal e do qual faziam
depender enunciados ou juízos que diziam verdadeiros –, se
prontificaram a diagnosticar, à distância, bastando-lhes como
prova de loucura, afinal, a mera linguagem de um relatório.
Recordem-se os fundamentos Oitocentistas da distinção
médica entre normal e patológico: a diferença seria meramente
quantitativa e o estado patológico implicava, necessariamente,
alterações fisiológicas. São estes dois princípios conjugados que
permitiriam ao médico distinguir entre a saúde e a doença. Mas
à questão de saber por que é que um determinado indivíduo,
num dado momento, alterava o seu comportamento, a medici-
na respondia, invariavelmente, com o peso do atavismo e/ou da
hereditariedade anormal que, evidentemente, deixava marcas
anátomo-fisiológicas – os estigmas – que só um olhar científico
poderia detectar.
Assim, Júlio de Matos, seguindo o método consagrado, exa-
minara os antecedentes hereditários de Rosa Calmon e apurara
a existência de variados casos de demência e histeria em bisa-
vós, avós, tios e primos; a história clínica da arguida também
confirmara uma constituição neuropata, em que os episódios de
síncopes e paralisia temporária pareciam bem estabelecidos. A
observação da doente revelara, ainda, estigmas físicos (o estra-
bismo), sinal indiscutível de um estado mórbido. E, finalmente,
encontrara como estigmas psíquicos, os excessos de religiosida-
de – logo, alteração quantitativa do comportamento – que se
manifestavam fisicamente nos joelhos calejados pelas horas de
oração, no desejo de abandonar a família para entrar num con-
vento, nos apontamentos íntimos de Rosa Calmon em que esta
afirmava, apaixonadamente, nada querer sentir a não ser o
amor de Deus, e nas afirmações de que este desejo correspondia
à vontade divina. Tudo isto não deixava margem para que o
ilustre alienista português duvidasse de que se tratava de uma
doente que padecia de um estreitamento do campo de cons-
ciência, incompatível com o exercício autónomo da razão.
À luz dos preconceitos médicos da época, o diagnóstico não
poderia ser diferente. Estabelecida a normalidade feminina
segundo um padrão que recusava quaisquer excessos ou pai-
xões, a presença de uma vontade apaixonada de seguir qual-
quer caminho que não fosse o de ser mãe e de constituir uma
família – a normalidade do desempenho feminino por excelên-
cia –, só poderia ser sintoma de loucura. Confrontavam-se,
também, dois modelos disciplinares do corpo: o da religião cató-
lica, exemplarmente expresso na vida conventual, que exigia
um domínio corporal que desvalorizava a natureza; e o modelo
médico que, invocando a secularização libertadora da ciência,
constrangia de outro modo os corpos e classificava como anor-
mal qualquer desvio.
Vinte anos depois, não se encontram grandes diferenças no
modo como a loucura, em particular a loucura das mulheres
que escolhiam desafiar a ordem estabelecida, era diagnosticada.
Se não veja-se o caso seguinte, passado nos “loucos Anos Vin-
te”.
Maria Adelaide Coelho da Cunha era filha de José Eduardo
Coelho, fundador do Diário de Notícias e uma das herdeiras do

128
Conde de S. Marçal, o accionista maioritário do periódico.
Casada com Alfredo da Cunha, o casal teve um filho em 1892.
Aos 49 anos de idade, Adelaide Coelho da Cunha apaixonou-se
e fugiu, a 13 de Novembro de 1918, com o mot orista da casa,
Manuel de Jesus Cardoso Claro, sem levar nada de seu: nem
roupas, nem jóias, nem dinheiro. Acompanhada de Manuel
Claro, vive modestamente como sua mulher, em Santa Comba
Dão, adoptando o nome de Maria Romana Claro. Em resposta
aos anúncios colocados no Diário de Notícias, informa estar de
boa saúde, mas pede que a esqueçam e a considerem morta. A
carta permitirá a sua localização pelo marido e polícia. É levada
para o Porto e internada no Hospital do Conde de Ferreira, a
28 de Novembro de 1918, sem ter sido examinada por um
médico alienista. Consegue fugir a 3 de Fevereiro de 1919, com
a ajuda de Manuel, com quem conseguira manter correspon-
dência secreta e, com ele, refugia-se no lugar de Roção, conce-
lho de Castro Daire, onde vivem em casa de um familiar de
Manuel Cardoso Claro. Em 25 de Fevereiro de 1919, a polícia
descobre-os e leva-os para o Porto. Maria Adelaide é novamen-
te internada no Hospital de Alienados do Conde de Ferreira, e
Manuel Cardoso Claro, é preso, acusado de rapto, violação e
cárcere privado. Em meados de Março de 1919, Manuel Cardo-
so Claro, preso na cadeia da Relação, contrata o Dr. Bernardo
Lucas, conhecido advogado do Porto, como seu defensor,
encarregando-se este causídico também da defesa de Maria
Adelaide Coelho da Cunha sobre quem pesava, agora, um pro-
cesso de interdição, movido por seu marido. Imediatamente, o
advogado de defesa dá início a um processo de divórcio, muito
complexo, já que a fortuna era grande e Alfredo da Cunha
ultimava a venda do Diário de Notícias e dos imóveis que este
ocupava em Lisboa.
A 16 de Maio de 1919, Maria Adelaide Coelho da Cunha é
examinada pelo Conselho Médico-Legal do Porto, que integra-
va o juiz de Investigação Criminal, o delegado do Ministério
Público e os médicos Manuel Lourenço Gomes, Luís de Freitas
Viegas, António de Magalhães Lemos e José de Magalhães,
estes dois últimos, respectivamente, Director e Subdirector do
Hospital de Conde de Ferreira. A 6 de Junho é realizado um
novo exame directo, conduzido pelos peritos alienistas, Júlio de
Matos, Sobral Cid e Egas Moniz. Aos professores e especialistas
Bettencourt Rodrigues e Azevedo Neves será posteriormente
pedido reexame das provas e dos relatórios produzidos. As con-
clusões do Conselho Médico-Legal indicam que Maria Adelaide
Coelho da Cunha sofria de degenerescência psíquica com debi-
lidade mental agravada pela menopausa e por vários outros
estados mórbidos debilitantes. Os professores Júlio de Matos,
Sobral Cid e Egas Moniz, em parecer complementar, confirmam
o diagnóstico de degenerescência hereditária com manifesta-
ções dominantes no campo da afectividade, mas sem perturba-
ção dos domínios intelectuais, o que permitia caracterizar a
patologia como sendo de loucura lúcida. Quer o professor Bet-
tencourt Rodrigues, quer o professor Azevedo Neves confirma-
rão o diagnóstico. A 18 de Junho de 1919 o tribunal decreta a
interdição por demência de Maria Adelaide Coelho da Cunha,
colocando-a na tutela de seu marido Alfredo da Cunha.
Em Agosto de 1919, por despacho do Ministro do Interior e
à ordem do Governador Civil do Porto, Maria Adelaide Coelho
da Cunha é retirada do Hospital do Conde de Ferreira e entre-
gue ao seu advogado, o dr. Bernardo Lucas. A partir daí vive
incógnita, publicando em vários jornais, artigos e cartas em sua
defesa e na defesa de Manuel Lopes Claro que continuava pre-
so. Destacam-se os publicados em A Capital, em 1920, e o con-

130
junto intitulado “Lágrimas de mãe”, que veio a lume na Tribu-
na, periódico do Porto, entre Abril e Agosto de 1921.
A defesa de Manuel Cardoso Claro tentará demonstrar ao
tribunal, sem sucesso, que a acusação de rapto, violação e cár-
cere privado não tinha qualquer fundamento. Não haveria rap-
to, porque Maria Adelaide Coelho da Cunha, como o vinha
dizendo nos artigos e cartas publicados nos periódicos, e ape n-
sos ao processo, saíra de sua casa por sua livre e espontânea
vontade; também o cárcere privado não teria fundamento,
como a própria Maria Adelaide insistia e várias testemunhas
comprovavam; e, para que tivesse havido violação (art.393º do
Código Penal), teria de ser provada não só a cópula ilícita, mas
também que esta ocorrera contra a vontade ou sem o consen-
timento da mulher. Ora, a cópula, ilícita ou não, se ocorrera,
não tinha testemunhas directas e não poderia, pois, ser prova-
da. Assim, o elemento complementar do consentimento femi-
nino seria determinante no processo. Previa o Código Penal,
entre outras circunstâncias, que se considerasse não haver con-
sentimento da mulher quando esta estivesse privada do uso da
razão. Deste modo, tudo parecia depender da interpretação a
dar ao diagnóstico médico que conduzira à interdição de Maria
Adelaide Coelho da Cunha.
Argumentava a defesa, em primeiro lugar, que o juiz não
tinha obrigação de aceitar passivamente as conclusões dos peri-
tos médicos, mas, tão-só, o dever de conjugar esse elemento
com outros. O Dr. Bernardo Lucas reabria um dos pontos de
maior fricção entre o Direito e a Medicina, insurgindo-se contra
o poder crescente e quase divinizado da Ciência, ou, dito de
outra forma, contra o poder dos que arrogavam o direito de
falar em nome dela e, assim, quereriam sobrepor-se ao poder
judicial; em segundo lugar, continuava a defesa, os psiquiatras
portugueses, quando chamados a tribunal, tendiam a confundir
o ponto de vista clínico com o ponto de vista jurídico e, abu-
sando do seu poder, permitiam ou recomendavam a interdição
e/ou o encerramento em manicómios de examinados que ape-
nas padeciam de ligeiras nevroses, em processos muitas vezes
motivados por interesses financeiros; e concluía o advogado
defensor que, mesmo que se aceitasse as conclusões do relatório
médico-legal e as produzidas pelos peritos alienistas, e segundo
os quais a sua cliente de sofria de degenerescência hereditária,
padecendo de uma forma de loucura lúcida, tal não significava
estar ela privada do uso da razão, já que esta patologia se carac-
terizava, justamente, por não provocar perturbação das funções
intelectuais.
Ora, para compreender as conclusões dos professores Júlio
de Matos, Sobral Cid e Egas Moniz é necessário ter em conta o
que o pensamento médico da época vinha dizendo sobre as
perturbações mentais e sobre a mulher. O diagnóstico de per-
turbação mental produzido pelos ilustres alienistas era funda-
mentado pelo conceito de degenerescência, agravado pelo peso
da hereditariedade, considerado elemento fundamental; isto é,
o diagnóstico de loucura assentava na crença de que a contes-
tação das normas aceites e dominantes na sociedade era indi-
ciadora de desvio ou de anormalidade psíquica, contestação
essa que ocorria mais frequentemente quando se possuía uma
natureza atávica ou hereditariamente predisposta para o desvio.
No caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha, os peritos
encontraram uma pesada hereditariedade mórbida, particular-
mente do lado paterno, chamando à colação todos os casos,
diagnosticados ou suspeitos, de neurastenia, suicídio, melanco-
lia, tristeza, insónia ou até de memória prodigiosa havidos na
família, desde bisavós, avós, tios e primos. Sublinhavam, ainda,

132
a presença de diabetes e cardiopatias como elementos que com-
provavam uma nosografia familiar complexa e debilitante.
Deste modo, não surpreendia o comportamento anormal da
examinada. Crentes, como todo o pensamento médico da épo-
ca, de que a degenerescência, como qualquer outra patologia,
se revelava por alterações fisiológicas, procuraram os estigmas
que a marcavam e, sublinhe-se, encontraram na forma peculiar
das suas orelhas o indicador procurado.
Em seguida, examinaram a história recente da paciente e
concluíram que a extraordinária memória que possuía, o gosto
pelas actividades teatrais, a volubilidade de humor que, segun-
do os testemunhos de acusação, a caracterizavam, eram outros
tantos indícios de uma predisposição patológica, que desgostos
recentes teriam agravado (a morte de um irmão em 1913, o
receio de ver o seu filho partir para a guerra em 1917). Tudo
isto explicaria o comportamento depressivo e sintomático que
teria caracterizado Maria Adelaide Coelho da Cunha antes da
sua fuga com Manuel Cardoso Claro.
Por último, a sua idade, isto é, o aproximar da menopausa –
característica patológica de relevo, que acarretara um recrudes-
cimento sexual e uma quebra das inibições que a educação, a
cultura e o meio social ao longo dos seus 50 anos tinham criado
–, tinham-na levado a apaixonar-se por um rapaz de 26 anos e a
ignorar a condição social inferior, episódio que, na perspectiva
dos médicos peritos, confirmava esta tese: a examinada sofria
de uma forma de alienação mental, tipificada por Maudsley
como loucura lúcida, isto é, apenas os seus afectos, as suas
inclinações, o seu temperamento, os seus hábitos e a sua condu-
ta se encontrariam alterados.
Na verdade, à luz dos conhecimentos e dos pré-conceitos
masculinos e médicos da época (e tal como no caso de Rosa
Calmon), o diagnóstico tinha de ser este. Como poderia ser
aceite, entendida e classificada de outro modo a fuga escanda-
losa de Maria Adelaide Coelho da Cunha, de 49 anos de idade,
com o seu chauffeur de 26 anos?

Conclusão. Já há muito que Michel Foucault chamou a


atenção dos historiadores para o imenso poder do saber médico.
No alvorecer de Novecentos, a elites médicas não hesitaram em
patologizar – com todas as consequências jurídicas e pessoais
que isso acarretava – comportamentos que se afastavam dos
modelos de normal/ideal por elas definidos. E, regra geral, con-
sideraram normais os comportamentos familiares e próprios da
sua condição social e género, anatematizando, em nome da
ciência, a diferença julgada ameaçadora. A obsessão uniformi-
zadora chegou a este extremo: os loucos, afinal, podiam ser
racionais.

Notas
1
Harris, Ruth, Murders and Madness. Medicine, law and society in the
fin de siècle, Oxford, Clarendon Press, 1993, p.15.
2
Machado de Assis, O Alienista, Lisboa, Hiena Editora, [1881-1882]
1992, pp.31-32.
3 Bombarda, Miguel, “Formulas sociaes”, in A Medicina Contemporâ-

nea. Hebdomadário Portuguez de Sciencias Medicas, XXI Anno, nº37,


13-IX-1903, pp.293-294.
4 Bombarda, “Interesses profissionaes”, in A Medicina Contemporânea,

XXX Anno, nº14, 7-IV-1912, p.109.


5
Hespanha, António, Imbecilitas. Categories of discrimination in
European Legal Tradition: children, women, savages, fools, Baltimore,
Johns Hopkins University Press (a ser publicado em 2006), p.22.
Agradeço ao autor a consulta do manuscrito.

134
6
Matos, Júlio de, A Loucura. Estudos clínicos e medico-legaes, (2ª edi-
ção), Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1913, p.459.
7
Mattos, Julio de, A Questão Calmon. Reflexões sobre um caso medico-
legal, Porto, Livraria Moreira, 1900, p.12.
8
Lucas, Bernardo, Aspecto juridico do Caso Calmon, Porto, Typogra-
phia a vapor de Arthur Sousa & Irmão, 1901, p.5.
9
Ibid., pp. 29-31.
10
“Nº23. Sessão de 27 de Abril de 1900”, in Diario da Camara dos
Dignos Pares do Reino, Lisboa, Imprensa Nacional, 1900.
11
“Um caso de sensação”, in O Primeiro de Janeiro, 33º Anno, nº 43,
19-II-1901, p.1.
12
, “Um caso de sensação”, in O Primeiro de Janeiro, 33º Anno, nº 44,
21-II-1901, p.2.
13
O Primeiro de Janeiro, 33º Anno, nº48, 28-II-1901, p.1; “O Caso
Calmon”, Diario da Tarde, Anno IV, nº42, 19 – II- 1901, p.2, e dias
seguintes.
14
“A questão do dia”, in Novidades, Anno XVII, nº 5185, 25-II-1901,
p.1.
15
Estas dimensões foram sublinhadas em Maria Rita Lino Garnel, “O
Caso Rosa Calmon (1900-1901): género, discurso médico e opinião
pública”, comunicação apresentada ao II Curso Livre de História das
Mulheres, Em torno da História das Mulheres, UNL-FCSH, Maio 2003.
16
Lucas, A Loucura perante a lei penal. Estudo medico-legal dos delin-
quentes, Porto, Barros & Filhos, 1887, p.57.
Um Ensaio sobre a Escrita:
Húmus, de Raul Brandão

Patrícia San Payo

Qualquer reflexão sobre uma convergência entre literatura e


loucura nos situa de imediato numa área agreste do pensame n-
to onde apenas podemos caminhar com dificuldade, como se
uma tal reflexão nos conduzisse seguramente a um limite que
não pode ser transposto porque, como diria Artaud, para além
dele tudo se torna irrespirável, inumano. O pensamento que
especularmente se pensa – e só o pode fazer convocando esse
limite – parece dever associar a si as figuras que o dobram e o
ameaçam, que passam assim a fazer parte das regras do jogo
(mas o jogo em si constitui o emaranhado no qual as próprias
regras devem ser removidas). Algumas palavras prévias ao meu
assunto – uma leitura de Húmus de Raul Brandão orientada por
uma reflexão sobre a escrita – visam enumerar um feixe de difi-
culdades e algumas propostas para as superar. Visam igualmen-
te fornecer um mapa da região de onde falo e cujo clima será,
em qualquer caso, sempre menos inóspito e um pouco mais
familiar.
Quando intentamos prosseguir para lá do limite contra o
qual o pensamento colide e que podemos designar de muitos
modos – loucura, finitude, negatividade – e, mais
acentuadamente, quando procuramos referir-nos a ele com os
meios da teoria, é como se o ar se fosse tornando
progressivamente mais rarefeito. Para Artaud a experiência
artística conduz-nos a uma idêntica rarefação da atmosfera ou,
como ele próprio diz, a um “um nó de asfixia central” do
“um nó de asfixia central” do pensamento a partir do qual a
poesia deve prosseguir criando espaços de respiração, espaços
para a vida, porque ela é o «orgão» do espírito que falta ao
nosso corpo, algo de que se nasce amputado e que é necessário,
por uma questão de sobrevivência, inventar e pôr em funcio-
namento. Esta convicção de Artaud, que ele exprime menos na
sua poesia do que na correspondência com Jacques Rivière, seu
editor, pode tê-lo guiado na sua própria experiência artística
mas dificilmente podemos servirmo-nos dela como de um pro-
grama capaz de nos abrir as antecâmaras pelas quais comuni-
cam a razão e o seu Outro. O “pobre senhor Artaud”, como a
ele se referia o seu psiquiatra, não pode ser o nosso guia nas
regiões infernais onde a consciência se indiferencia ou extingue,
ainda que a voz que fala na sua poesia e no seu teatro só fale
verdadeiramente se admitirmos que atravessou o limite que o
seu autor coloca previamente, limite esse que só existe para ser
transposto, num movimento que parece não deixar ileso o artis-
ta.
A experiência da loucura não é generalizável, não é nada
que se possa captar do exterior e as próprias obras literárias
que, como Aurélia de Nerval, foram escritas com o propósito
explícito de nos dar a conhecer os estados de demência de que
o autor regressou e sobre os quais pôde escrever, só podem ser o
que são, obras literárias, porque a lucidez triunfou momenta-
neamente sobre a loucura que nada realiza, se limita a destruir,
a demolir todas as construções da razão. Se faz sentido falarmos
de loucura a propósito de Aurelia ou de obras de autores que,
não tendo sido loucos, dela propõem uma visão desassombrada,
como Henri James em The Turn of the Screw, na verdade isso
deve-se a que a percepção da loucura surge nelas como uma
condição retórica do próprio texto. Não avançamos também

138
muito se admitirmos que o entrecruzar da experiência literária e
dos estados de demência é propiciado pelo génio de alguns
doentes célebres como Hölderlin, Artaud, Nerval ou Lautréa-
mont, ou seja, se admitirmos que a palavra da poesia e a desra-
zão comunicam de modo necessário no interior de uma sombria
e obscura unidade a que nos habituámos a referir nos termos da
psicologia. A contradição que logicamente surge sempre que
falamos de obra e de loucura foi assinalada por Maurice Blan-
chot. Este autor refere-se à loucura de Hölderlin como “a lou-
cura por excelência”, título paradoxal que atribui a um poeta
semelhante em tudo a qualquer outro louco, alheio até, a partir
de certa altura, à forma poética que tinha sido a sua, sem que a
poesia jamais o tivesse abandonado. O texto de Blanchot sobre
Hölderlin interroga um limite que se afirma entre a possibilida-
de da obra e o que deveria, em qualquer caso, comprometê-la
em absoluto, aniquilá-la em absoluto (o «desoeuvrement» da
loucura), um espaço intersticial que se exprime, paradoxalmen-
te, na conjuncão copulativa de uma frase como “poesia e lou-
cura em Hölderlin” ou que ecoa já na simples designação com
que os poemas de posteriores a 1807 são referidos: Poemas da
Loucura 1. Se, por oposição ao discurso racional, o discurso do
louco se caracteriza pela desagregação, a fragmentação e o
sem-sentido, na realidade, o silêncio que este último coloca em
evidência atravessa de modo inaparente toda e qualquer mani-
festação linguística, constituindo, no caso do discurso contínuo
e coerente, o seu lado «inoperante». Para Blanchot, o discurso
do louco, por ser a manifestação discursiva de uma força que
excede qualquer enunciado e que, ao mesmo tempo, é condição
de qualquer enunciação – aquilo a que chama o de-fora
(«dehors») – esclarece-nos sobre a relação do silêncio e da lin-
guagem, dando a conhecer a contrapartida silenciosa do discur-
so, pela qual o pensamento associa a si o informe e o indizível.
Pensar de outra forma a relação da linguagem e da loucura, da
razão e da desrazão, sem fundamentarmos uma sua suposta
unidade na «psicologia» do artista, só parece possível na refe-
rência ao de-fora. Nesse sentido é possível pensá-las como rea-
lidades não apenas compatíveis como indissociadas.
Referindo-se também ele à poesia de Hölderlin, Foucault
observou que a possibilidade de um discurso sobre a relação
possível dessas duas exterioridades – a poesia e a loucura –
depende da colocação prévia de um limite da linguagem e para
lá desse limite de um silêncio que lhes é comum2. A este autor
não parece útil manter-se um discurso misto sobre a poesia e a
loucura cuja historicidade procura justamente determinar e
cujo momento de nascimento lhe parece ser aquele em que a
Europa cristã se começou a referir aos artistas como a heróis,
seres de excepção (o que acontece já no sec. XVI, com Vasari e
as suas Vite). A partir do momento em que a cultura ocidental
se torna ela própria um mundo de representações, a dimensão
heróica celebrada na épica transfere-se para aquele que a repre-
senta. A obra passa por essa altura a participar “da dimensão
lendária que outrora se limitava a cantar. Torna-se «gesto» não
apenas porque confere uma verdade eterna aos homens e às
suas acções transitórias, mas porque reenvia (…) para a ordem
maravilhosa da vida dos artistas”3.
Para Vasari, a psicologia do artista, o seu génio, fornece a
chave de uma conciliação que permanece para Foucault impro-
vável. De uma tal unidade pressuposta entre a vida e a obra
terá nascido o tema da «loucura» do artista. Quando não pare-
ce pertinente falar-se da «loucura» do artista, fala-se da sua
«psicologia», sempre de algum modo ensombrada por aquela. É
por isso que Foucault pôde dizer: “A dimensão psicológica surge

140
na nossa cultura como o negativo das percepções épicas”4.
Podemos fazer derivar de uma concepção pós-psicológica da
consciência o modo como Foucault baralha as cartas e inverte
os dados da questão. Interrogando-se sobre a relação da loucura
e da poesia em Hölderlin, irá dizer que não é a esquizofrenia
que dá asas à lírica, mas que é a lírica que se aproxima da lou-
cura, por se tratar sempre de uma fala que se perde para lá de
um limite a partir do qual a palavra só pode murmurar, estran-
geira, num maravilhoso alheamento: Ein Zeichen sin Wir, deu-
tungslos /Schmerzlos sind wir und haben fast/ Die Sprache in
der Fremde verloren (um signo, somos, sem sentido, sem dor,
quase perdemos a linguagem num país estrangeiro).
Compreendemos assim melhor a atitude ambivalente de
Foucault no que diz respeito ao discurso psicanalítico, na medi-
da em que esse discurso é ainda um «discurso misto», ou seja,
subentende ainda a mesma unidade pressuposta por Vasari,
quando o cruzamento da linguagem e da loucura se dá no exte-
rior dessa pressuposta unidade. Se, desde L'Histoire de la Folie,
pensar a loucura implica convocar um silêncio a que ela surge
desde sempre associada, o silêncio a que se refere não é de facto
um silêncio literal, mas um silêncio determinado por um siste-
ma normativo que regulamenta a produção dos discursos ver-
dadeiros, ou seja, dos discursos que se constituem tendo como
pano de fundo uma vontade de verdade, que se colocam de um
modo previsível na ordem do discurso. Seguir Foucault signifi-
ca, entre outras coisas, conceber um Outro da razão sem a qual
esta não se pode exercer, a não ser como mero exercício dentro
de limites que constrangem o pensamento, porque não podem
ser, de nenhum modo, transpostos.
Maurice Blanchot precisa com clareza a particularidade do
pensamento de Foucault:
Foucault, a quem a psicanálise nunca apaixonou, está ainda
menos disposto a considerar um grande inconsciente colectivo,
alicerce de todo o discurso e de toda a história, espécie de pro-
vidência pré-discursiva cujas instâncias soberanas, talvez cria-
doras, talvez destruidoras, já só teríamos de transformar em
significações pessoais. O certo é que Foucault, tentando afastar
a interpretação («o sentido oculto») a originalidade (o desvelar
de um começo único, a Ursprung heideggeriana) e por fim
aquilo a que ele próprio chamava «a soberania do significante»
(…) trabalha, todavia, ainda sobre o discurso para isolar neste
uma forma a que dará o nome sem prestígio de enunciado (…)
o enunciado raro, singular que não precisa senão de ser descri-
to ou simplesmente reescrito, mas apenas em relação com as
suas condições externas de possibilidade (o lado de fora, a
exterioridade) dando assim lugar a séries aleatórias que de
tempos em tempos acontecem.5

Significa isto, prossegue Blanchot, que Foucault recusa pura


e simplesmente a noção de sujeito? Já não há obra, já não há
autor, já não há unidade criadora? É bem claro que quando
procura abalar a noção de cogito como unidade primeira e irre-
dutível fundamento, Foucault está a sugerir que os enunciados
remetam preferencialmente para uma multiplicidade não-
unitária, «serial», porque a possibilidade de repetição é uma
propriedade dos enunciados, da qual deriva, por sua vez, a
possibilidade de articulação com outras séries. É esse o aconte-
cimento a que Blanchot também se refere: o momento em que
por um «deslocamento das singularidades» na sua relação com
a série, por vezes determinadas configurações se imobilizam e
«formam quadro» e outras vezes se inscrevem em sequências
errantes, em fragmentos ao mesmo tempo aleatórios e necessá-
rios. O sujeito, observa Blanchot, não desaparece, esta disper-
são não o aniquila. O que de facto acontece é que dele só
podemos aceder a uma pluralidade de posições e a uma descon-

142
tinuidade de funções. Assim o que é problemático, para Fou-
cault, não é o sujeito (que permanece, ainda que na modalidade
do desaparecimento), mas a sua unidade excessivamente
determinada. É essa unidade que é pressuposta no discurso que
abrange simultaneamente a obra e a vida do autor, como se elas
comunicassem obscuramente e se deixassem formular na lin-
guagem de uma sombria e obscura interioridade. É esse o mito
que subjaz à «vida maravilhosa dos artistas» de Vasari e a todos
os discursos que de uma maneira ou de outra partem da mesma
ideia (a ideia da «psicologia» ou da «loucura» do artista).
A posição ambivalente de Foucault relativamente à psica-
nálise – embora em L'Histoire de la folie reconheça que com
Freud a loucura foi, pela primeira vez , entendida como algo
que ao invés de ser silenciado deveria ser escutado (“É preciso
sermos justos com Freud”, lemos nesse livro) –, deve-se certa-
mente a que a psicanálise permanece de costas viradas a esse
silêncio para que o discurso do louco e o discurso poético apon-
tam e que, a seu ver, é justamente o que permite que as formas
do seu entrecruzar possam ser pensadas. Para Foucault é esse
silêncio que os une e confere a possibilidade de um conheci-
mento que, se não pode possuir um carácter sistemático ou
exaustivo, está até certo ponto apto a reconhecer, porventura a
nomear, determinadas configurações do saber que, de outro
modo, apenas podemos conceber na modalidade do recalca-
mento como o lixo da História ou a poeira dos arquivos.
Jean Starobinski aponta para um paradoxo do discurso psi-
canalítico sobre a literatura, incapaz de se defrontar com o
silêncio: “O psicanalista, especialista em retórica inconsciente,
não quer ser, por sua vez, um retórico. Desempenha o papel
que Jean Paulhan considerava ser o do terrorista: quer que se
fale claro” 6. Starobinski refere-se a uma reserva de silêncio,
coincidente com o que, no espaço propiciado pela palavra, não
sabe falar. Matar o silêncio do que nos textos não sabe falar,
pretender que se fale claro, é também para Shoshana Felman7,
paradoxalmente, recalcar o inconsciente que se procura justa-
mente «explicar». Mas é também marginalizar a literatura, no
sentido em que se silencia uma palavra que não sabe dizer o que
sabe. Esse gesto de exclusão encontra uma caução na designa-
ção de «loucura» pelo qual o intérprete tende a considerar o
recalcado como exterior ao Sentido. Ora é o próprio movimen-
to retórico do texto que subverte a polaridade ou a alternativa
que opõe o analista e o analisado, a interpretação e o sintoma, a
teoria e o delírio, a própria psicanálise à loucura. Em certos
textos, nos quais a suspeita de loucura é importante porque é
uma condição retórica da nossa percepção da história (é o caso
de Henry James, por exemplo, em The Turn of the Screw, ou das
narrativas de Hoffman), a loucura é inquietante precisamente
porque é insituável, porque coincide com o próprio espaço da
leitura. Neste sentido, afirma a autora, o texto literário exige do
intérprete que, na sua leitura, não seja psicanalista mas louco;
que não procure a clareza mas que se situe, como de Man suge-
re, do ponto de vista da cegueira.
Susan Sontag, em The Aesthetic of Silence, fala-nos do que
concebe como um novo mito que tendo origem nas práticas
artísticas da modernidade postularia as relações da consciência
e da arte como essencialmente trágicas. Um tal mito, no qual
estariamos ainda imersos, teria destronado um mito anterior
pelo qual arte era a expressão da consciência e, como tal, uma
busca pelo auto-conhecimento. Ora, de acordo com o que con-
cebe como um novo mito moderno, a arte não é vista, de
nenhum modo, como a expressão da consciência, mas antes
como um antídoto para ela. Uma tal concepção terá trazido

144
para a experiência artística a demanda de um desconhecido
para lá do conhecido e de um silêncio para lá das palavras, que
a orienta no sentido de uma anti-arte, da eliminação do assunto
(objecto ou imagem), da substituição da intenção pelo acaso e
de uma busca quase extenuada pelo silêncio (os silêncios
«sérios» de Valéry ou Rilke, os vazios anelantes de Beckett, os
ruídos e os vazios de Cage, os temas inanimados da Pop, por
exemplo). Susan Sontag situa a experiência da alienação na
base do que considera uma quimera ou uma desesperada tenta-
tiva. A «arte do silêncio», como lhe chama, teria colocado o
silêncio no lugar da linguagem ou, no caso das artes visuais,
substituiria o olhar contemplativo, atento e capaz de se deixar
atrair por focos de interesse que o captam mais ou menos inten-
samente («looking») por um olhar fixo, definível pelo seu
carácter compulsivo («staring»). Num caso como no outro, no
caso do silêncio e no desse olhar compulsivo, a arte contempo-
rânea procuraria ir o mais longe possível na direcção de uma
condição a-histórica e não-alienada8.
Parece inegável que aquilo a que Sontag se refere como a
“consciência trágica da relação entre a arte e a consciência” se
deve, em parte, a circunstâncias históricas. Mas apenas em
parte. Justificar o ensimesmamento da arte contemporânea
fundamentalmente pelas circunstâncias históricas que determi-
nariam essa condição parece-me uma perspectiva questionável,
na medida em que subordina excessivamente a experiência
artística a uma História que não detém sobre ela a última
palavra. Obras como as de Blanchot, por exemplo, permitem-
nos pensar que o silêncio, na arte contemporânea, não se deve,
ou não se deve sobretudo, a um desejo mais ou menos cons-
ciente de a-historicidade que corresponde a uma condição alie-
nada. Mas que coincide com a descoberta de que ao lado do
discurso coerente, do discurso contínuo que se constitui no
desconhecimento da sua própria inevitável descontinuidade,
uma outra palavra prossegue a partir da incoerência, do balbu-
ciar, da fragmentação, da lacuna, da carência, do paradoxo.
Uma tal palavra permitiria, no interior da obra, uma articulação
com o que permanece, relativamente a ela, do-lado-de-fora e
alargaria o âmbito da nossa compreensão a um não-dito, a um
silêncio que, contrariamente ao que Sontag pressupõe não exis-
te apenas na obra como elemento estruturante mas recomeçaria
sempre um sentido outro, a partir justamente de um trabalho
desestruturante ou de desfiguração. Nesse sentido, o que para
Susan Sontag é um mito da arte dos nossos dias, não é de facto
um mito, mas uma descoberta fundamental.

***

Há algo que interessa precisar quando, a propósito de


modernismo e loucura, elegemos a obra de Raul Brandão como
um dos lugares privilegiados para se pensar aquela relação.
Raul Brandão não é rigorosamente um moderno, mas a sua
obra abre em muitos sentidos que serão depois explorados pelo
modernismo português. Pelos motivos que espero ter deixado
claros, é irrelevante para o meu propósito que Raul Brandão
não tenha sido louco. Também não procuro na sua obra as
imagens da loucura que nos fornece (em Húmus mas também,
por exemplo, em O Doido e a Morte) porque a relação da loucu-
ra e da literatura que me interessa aqui interrogar não é essen-
cialmente temática. Não me interessa tanto interrogar textos
dos loucos do nosso modernismo – textos de um Ângelo de
Lima, eventualmente de um António Botto ou de um António
Maria Lisboa – nem os textos nos quais o tema da loucura é

146
explicitamente abordado – como em Régio, Mário de Sá Car-
neiro ou Pascoaes. Mas interessa-me em Húmus a estranheza da
própria voz que conduz a escrita, bem como a confissão de um
temor: o temor de se ser louco, ou de se abrigar um louco den-
tro de si. Interessa-me ainda o modo como em Húmus se põe
em cena uma espécie de teatro no qual a razão dá a conhecer
aquilo que a excede – o heterogéneo, o caos, o amálgama, as
forças instintivas – e o modo como isso surge associado ao ques-
tionamento do Eu que se multiplica nas figuras da alteridade:
repartição teatral das vozes, duplos, máscaras. Assim, procura-
rei reconhecer e fazer reconhecer em Húmus uma dupla pala-
vra: entre a voz do narrador e a do filósofo-alquímico-louco que
se instala nela, como se a assombrasse, a escrita que as unifica
prossegue ininterrupta um movimento de quase imperceptível
ruína que submete o sentido a uma constante vacilação. O que
me parece decorrer de uma instabilidade essencial que, a ser
ignorada, deixa na sombra um dos aspectos pelos quais esta
obra é única no panorama finissecular e no modernismo portu-
guês.
Em duas das mais importantes tendências que Raul Bran-
dão leva até ao limite – a da descontinuidade ou fragmentação
discursivas e o discurso da alteridade – encontramos o ponto
de partida de alguma modernidade 9. Juntamente com o O Livro
do Desassossego, de Pessoa, esta obra pode ser considerada fun-
dadora de um novo paradigma ficcional que coloca o inacaba-
mento e a não-fixação de géneros como uma nova condição do
seu conseguimento. João Almeida Flor, interrogando-se sobre
os discursos da alteridade num estudo sobre o monólogo dramá-
tico, explica que o caso de Pessoa pode ser melhor compreendi-
do se posto em relação com a literatura inglesa pós-romântica
de que leva as inclinações até às últimas consequências. Nesta
leitura, Browning surge como o Shakespeare possível na Ingla-
terra vitoriana e Pessoa como o Browning do sec. XX portu-
guês, porque teria levado a poesia lírica à poesia dramática ain-
da que sem lhe dar forma de drama nem implícita nem explici-
tamente10. Vítor Viçoso, por sua vez, observou que em Húmus
os seres “não se desprendem das teias da escrita” e não podem
ser referidos a “uma verdadeira objectividade dramática e
romanesca”11. Fazendo jogar entre si estas duas leituras, colo-
cando-as em diálogo, diria que elas permitem iluminar de outro
ângulo a questão da alterização, tal como ela se coloca no caso
de Pessoa e no caso de Raul Brandão. No caso deste último, a
consciência, que num primeiro momento parece capaz de se
fragmentar de modo a responder à diversidade e encenar a
multiplicidade de perspectivas e leituras do real, acaba, final-
mente, por uma tendência oposta, por tudo absorver e recondu-
zir a si mesma; com efeito é por um acentuado pendor expres-
sionista e por uma estética do grotesco que o sujeito se confron-
ta com a sua própria divisão interior. Em Húmus, como obser-
vou Vitor Viçoso, “o outro é sempre o outro de mim, nunca o
outro como objectividade autónoma; o outro é sobretudo a
sensação de estranheza perante as minhas próprias máscaras”12 .
Será essa a razão pela qual, apesar de um complexo desdobra-
mento enunciativo, não encontramos em Raul Brandão uma
forma de poesia dramática, tal como não encontramos em
Húmus um programa como o que o romance tradicional actua-
liza. A razão pela qual Raul Brandão não escreveu um romance
parece-me, aliás, ser a mesma que o impediu de dar o passo que
Fernando Pessoa deu na sequência de Shakespeare e depois de
Browning, conforme foi dito.
Há uma particularidade de Húmus decorrente de um pendor
manifestamente expressionista a que Pessoa é alheio. Em Fer-

148
nando Pessoa não encontramos o carácter pânico de exclama-
ções como as que lemos em Húmus:

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos.


Não me desligo disto - nem do crime, nem da pedra, nem da
voragem. Sou o espanto aos gritos. (p. 173)13

Ou seja, em Fernando Pessoa nada se regista desse combate


de que Húmus parece ser o registo e de que resulta uma voz
assim. O «drama» em Húmus – um «debate perpétuo» entre o
sujeito e a sua própria escrita, na qual não se reconhece e que,
em determinados momentos, encara como um espelho defor-
mador – , não é, como no autor da Mensagem, um drama em
gente e as gentes desse drama. E, inversamente, não encontra-
mos em Fernando Pessoa uma «dramatização da existência»
(Bataille) no sentido em que ela acontece em Húmus, onde as
fronteiras da individualidade se perdem de acordo com uma
leitura vertiginosa do mundo. Será oportuno observar que o Eu
sofre nesse processo uma profunda alteração pela qual passa a
não coincidir consigo enquanto entidade que assegura e contro-
la os domínios da experiência. E que é nesse sentido que se
extravia, se indiferencia. Se, como observou Vitor Viçoso, os
seres que se desprendem das «pulsões contraditórias do Eu» não
se libertam «da teia do sujeito da escrita», esse sujeito, por sua
vez nada é, a teia ocupa todo o espaço, a aranha desapareceu.
Nos dois casos, no de Fernando Pessoa e no de Raul Bran-
dão, parece impossível distinguir o rosto das máscaras, porém,
neste último, a vida é já um baile de máscaras grotesco e o ros-
to, por detrás dessas máscaras, é o rosto da morte. A consciên-
cia da finitude é indissociável da construção da alteridade num
texto em que o sujeito é permanentemente reconduzido ao
momento da sua morte, onde por vezes eleva a sua voz para
além dela no sentido da sua superação, no sentido apocalíptico
em que se pode dizer que o fim recomeça. Nesses momentos, a
voz amplia-se adquire uma força capaz de desenraizar da terra-
amálgama o grito para lá das palavras e captar um latejar cós-
mico que excede qualquer experiência individual e qualquer
tentativa para a dizer: do húmus revolto, matéria informe do
canto, desprende-se um clamor cósmico no qual muitas cama-
das de mortos reclamam os seus direitos sobre os vivos. O que
Vítor Viçoso descreve como uma constante oscilação entre
uma atrofia e uma hipertrofia do Eu em Húmus14 , parece-me de
facto responder a um movimento do texto pelo qual a trans-
gressão dos limites da consciência aponta implicitamente para
uma lacuna na qual a subjectividade desaba e ao mesmo tempo
se multiplica. Era aliás essa, para Foucault, uma das estruturas
fundamentais do pensamento contemporâneo. A partir da veri-
ficação de que os signos são marcados por uma dispersão
interminável e configuram um espaço neutro que, do interior
da obra, permite a articulação com o de-fora, Foucault falou
de um «pensamento do exterior», ou da «exterioridade». Seria
por aí, aliás, que o silêncio da loucura e o da obra se entrecruza-
riam. Permanece problemático o modo da sua abordagem. Mas
se esse duplo silêncio não pode ser positivamente descrito por
meios teóricos, pode até certo ponto, ser conhecido transver-
salmente nos seus efeitos. Se se seguir Foucault com uma rela-
tiva fidelidade neste domínio, poder-se-á acrescentar que são
múltiplos e objecto de uma constante reinvenção os modos
pelos quais a arte, da modernidade aos nossos dias, procura dar
voz ou corpo a esse pensamento do exterior15 . No caso de Raul
Brandão a consciência da escrita como despossessão e configu-
ração teatral do drama que uma tal despossessão comporta
pode ser encarada a partir de dois ângulos distintos. Em primei-

150
ro lugar, por um pendor niilista que herda de Nietzsche. Em
segundo lugar, por uma estética do grotesco que traduz já a
consciência de uma desorientação associada à própria lingua-
gem, que arrasta no sentido do informe e do inumano.
As figuras da alteridade parecem nascer, em Húmus, do pró-
prio processo de escrita: Gabiru, duplo do narrador, mas tam-
bém personagens que como a Joana, as velhas, o Santo, o cava-
dor, os ladrões, os desgraçados participam em efabulações de
carácter fragmentário que devemos situar no interior de divaga-
ções de natureza especulativa. Húmus, com a sua vila e a cida-
de, com as suas catedrais e os seus casinos, as suas instituições
militares, ordens religiosas e motins é um texto densamente
povoado. Mas não são as falas das personagens que habitam
esses espaços e que configuram o teatro, o circo grotesco da
existência, que configuram o drama que lhes é, de facto, ante-
rior:

Entre mim e mim interpõe-se um muro. O drama não tem per-


sonagens nem gestos, nem regras, nem leis. Não tem acção.
Passa-se no silêncio, despercebido, entre mim e mim. É um
debate perpétuo.

Como observou Wolfgang Kayser, no grotesco “o que pro-


duz horror não consiste unicamente nos conteúdos da lingua-
gem mas essencialmente na sua indisponibilidade, na medida
em que a linguagem, esse meio familiar e imprescindível à nos-
sa existência no mundo, subitamente se mostra caprichoso,
exótico, demoniacamente animado, arrastando o homem para o
nocturno e o inumano”16 . Este autor assinala ainda que à esté-
tica do grotesco corresponde uma estrutura própria pela qual se
dissolvem as categorias que regem a nossa orientação no mun-
do, configurando processos de dissolução ( interpenetração de
domínios separados) como a anulação da estática, a perda da
identidade, a deformação das proporções «naturais», a anula-
ção da categoria de «coisa», a destruição do conceito de perso-
nalidade ou a aniquilação da ordem histórica. Seguindo esta
orientação, Maria João Reynaud mostrou como a noção fun-
damental de grotesco é, em Húmus, mais do que um «conteú-
do», um princípio desconstrutor: “Não é difícil admitir que Raul
Brandão tenha visto no grotesco um princípio estético desesta-
bilizador que lhe permitia subverter os modelos literários vigen-
tes e pôr radicalmente em causa a oposição entre o mimético e
o discursivo, jogar simbolicamente com a ambivalência da cari-
catura, ora cómica ora trágica, abolir a oposição entre o homem
e a natureza, entre a vida aparente e a vida oculta, entre o divi-
no e o diabólico,negar, enfim, os princípios de identidade e de
não contradição”17 .
Parece-me claro que, para lá de uma “subversão (dos) mode-
los literários vigentes”, o que Maria João Reynaud diz ser um
trabalho do grotesco ao nível da linguagem de que resultaria,
afinal, segundo as suas próprias palavras, uma negação dos
“princípios de identidade e da não contradição”, traduz uma
outra subversão a que aquela que se refere estaria vinculada.
Ou melhor, que essa subversão de que fala – subversão dos
modelos literários vigentes – deriva de uma interrogação sobre
os limites da linguagem por intermédio de uma escrita que
exacerba as suas possibilidades expressivas e extenua esses
poderes. Porque não é possível negar os princípios da identida-
de e da não-contradição sem comprometer a estabilidade dis-
cursiva que prossegue apoiada nesses princípios, substituindo-
lhe todas as figuras do pensamento que a comprometem -o
paradoxo, o lacunar, o fragmentário, a repetição diferenciante.
Em Húmus nenhuma oposição traduz uma verdadeira oposição:

152
a vida e morte, a presença de Deus e a sua ausência, o interior e
o exterior, o alto e o baixo, o silêncio e o grito, o minuto e a
eternidade, o amor e o ódio, o céu e a terra, a esperança e o
desespero, o sentido e o sem sentido, o humano e o inumano, a
lucidez e a loucura ocupam posições reversíveis num discurso
que não se apoia, para se constituir, numa lógica dialéctica de
superação dos contrários. Não há aqui qualquer superação, mas
sim um movimento oscilante que afirma constantemente a
impossibilidade pela dupla afirmação de coisas mutuamente
exclusivas. Em Húmus a única transformação é a da reversibili-
dade, o que é sentido como grotesco e como absurdo: “Até as
coisas mais belas se transformam em absurdo e me pesam como
chumbo. Pesa-me a tua amizade, pesa-me o teu amor – para
sempre” (p. 43).
A dramatização do Eu coloca de modo insistente o sujeito
da escrita em confronto constante com a sua própria voz de que
parece ser despossuído: “Eu não sei quem sou e até o meu metal
de voz estranho. Eu não sou quem falo (…) E com espanto
ouço e desconheço a minha própria voz” (p. 44). “Eu sou o
actor de mim mesmo: represento sempre até quando sou since-
ro; até quando digo o que sinto, é outro, noutro tom de voz que
diz o que sinto” (p.107) . Se se cruzam no texto vozes litigantes,
a esse litígio corresponde no texto um não-dito, porque tudo se
passa no silêncio: “Os maiores dramas passam-se (…) no silên-
cio” (p.51). O silêncio em Húmus é também o silêncio da lou-
cura: é esse o drama, o diálogo ininterrupto no qual a consciên-
cia que se afirma não é a consciência per se, mas a consciência
da sua condição de ruína:

No fundo de mim mesmo tudo isto me parece um sonho mons-


truoso e sem nexo e às vezes surpreendo-me a pensar: –sou um
doido? Sou um doido? –É que me vem não sei de onde, não sei
de que confins ou de que recanto da alma, que tenho medo de
explorar, um bafo que me entontece. Serei eu doido? (p. 144)

O doido que “em nós prega e nos deixa aturdidos” traduz


uma crise pela qual o pensamento associa a si algo contra o qual
a consciência colide porque entra em contacto com o que tende
a excluir da sua esfera: uma reflexão sobre a morte e a mortali-
dade e sobre os limites da linguagem, entendida como logos, ou
seja, razão discursiva. É ao logos que o discurso do louco se
sobrepõe, revelando nele uma ruína secreta. Mas convém
observar que o recuo relativamente à razão que esta espécie de
teatro do espírito constantemente encena é ainda conduzido
pela razão discursiva: o discurso do louco é um discurso paralelo
que por vezes se funde com o do narrador mas cujo poder
transgressivo devemos referir a essa proximidade.
Este texto coloca, pela reversibilidade dos sentidos, um pro-
blema essencial de leitura. Com efeito como ler as exclamações
que o pontuam “A vida! A vida! A vida!” e aquela com que ele
se suspende “Estamos aqui todos à espera da morte! Estamos
aqui todos à espera da morte!”, para além da específica cadên-
cia que marcam, sem atender à inevitável paralisia que resulta
dessa contraposição de termos imóveis face a face? Porque a
negação comparece, nesta escrita, segundo uma lógica parado-
xal na qual a frequente contraposição de termos que reenviam
continuamente uns para os outros está na origem de um deslo-
camento que deve mais à repetição do que às regras da prosse-
cução. Para a vida paradoxal, a morte não é seu reverso antité-
tico, não é o outro de si em face da totalidade (o elemento
negativo em contraponto com a positividade), mas o seu outro,
o absolutamento estranho. Essa dimensão da estranheza surge
como um efeito do modo como o pensamento, apoiando-se no

154
logos, na razão discursiva, toma partido contra o movimento
próprio à razão e à sua tendência para a conciliação e a redu-
ção. É neste sentido que Húmus (tal como, por exemplo, Finis-
terra, de Carlos Oliveira) pode ser lido como um ensaio sobre a
escrita como o que unifica o pensamento e o que no pensamen-
to não se deixa pensar 18.
Maria João Reynaud assinala ainda que em Húmus se verifi-
ca um enclausuramento do tempo no «presente» discursivo, ou
seja, que a especifica temporalidade da obra coincide com a
convergência do tempo e da enunciação. Esse «presente», por-
que participa da complexidade do sistema enunciativo, é um
presente multidimensional, observa 19. Seria necessário acres-
centar que há sobretudo, em Húmus, uma dimensão do presen-
te que constantemente se actualiza, ou seja, uma dimensão do
tempo que não é histórico, no sentido em que não é parte de
uma progressão mas coincide precisamente com a sua suspen-
são. É também nesse sentido que o movimento ressureccional, o
modo como os mortos vivem, em Húmus, não deve ser entendi-
do apenas como um tema poético. Ao serviço desse tema
encontramos poderosas metáforas como as da Primavera (A
Primavera eterna, as Primaveras sucessivas, as Primaveras pri-
mordiais de Húmus) ou o projecto de Gabiru, alquimista-
filósofo-doido que procura a pedra-filosofal e em cujo quintal as
flores desabrocham em pleno inverno (“Sente-se, quase se ouve
a dor das árvores ao terem de apressar a sua vida lenta” p. 35).
O que de facto se passa é que também os temas e os motivos
poéticos contribuem para reforçar o colapso temporal e o modo
como a escrita aponta para uma outra temporalidade associada
a um presente que constantemente recomeça, um presente à
deriva, constantemente reafirmado contra o movimento que
determina a sua superação num processo histórico: “Quero
tornar a viver a mesma vida aborrecida e inútil. Quero recome-
çar a desgraça” (p. 38).
Na estrutura diarística de Húmus ecoa um tempo que parece
afinal exceder largamente a dimensão da existência. O tempo
mensurável para que apontam as datas cuja notação pode signi-
ficar um apego do escritor às circunstâncias efectivas da exis-
tência é largamente excedido por uma outra dimensão que o
esmaga. Como as figuras, também o tempo se retorce e se con-
vulsiona: “o minuto e a eternidade”, convergindo, tudo referem
ao abismo de uma noite onde o homem, à escuta, descobre no
interior de si camadas sucessivas de mortos:

O turbilhão colérico abala o mundo, ouro e negro, esplêndido


e feroz. Desenraiza tudo. As almas acordam num sobressalto, e
não há homem que se não ponha à escuta (…) É o grito conti-
do há milhões de anos, o grito dos mortos libertos . (p. 39)

É importante observar o que há de contraditório neste duplo


gesto: o gesto de datar os fragmentos de texto que parecem
assim ficar subordinados a um pendor autobiográfico e confes-
sional e o gesto que desdiz o primeiro, em articulação com uma
dicção transcendente pela qual um profundo descentramento
se produz e se traduz no modo como o sujeito passa a objecto e
se contempla a si próprio de um impossível exterior. Não mais
do que uma dobra gramatical, a este sujeito que assim se dilui
não corresponde já uma posição específica no enunciado - não
é responsável por uma Weltanschauung, emissor de uma propo-
sição unívoca ou uma descrição «verdadeira» da realidade -
dado que coincide com um feixe de relações e de posições anti-
téticas (mas também imóveis) constitutivas, em ultima análise,
de um sentido que nada possui de literal mas que, porque
resulta da própria textualidade e dos jogos de significação infi-

156
nitamente mutáveis, aponta sempre para a possibilidade de ser
outramente.
Gostaria de concluir com uma referência a Nietzsche sobre a
questão da verdade, questão essa a que anteriormente aludi em
articulação com o problema genealógico colocado por um texto
com as características de Húmus. Se tudo na obra de Raul Bran-
dão a partir de certa altura nos começa a soar como uma versão
de Verdade e Mentira em Sentido Extra-Moral de Nietzsche, tal
não possui nada de surpreendente. A presença de Nietzsche
afirma-se em alguns textos da nossa literatura finissecular e com
maior pujança em António Patrício (sobretudo em Serão
Inquieto) e Raul Brandão. De acordo com um «instinto de ver-
dade» que o guia, diz Nietzsche, o homem, que nisso difere dos
outros animais, utiliza o intelecto para construir um disfarce,
uma roupagem com base na qual fundamenta os seus princípios
morais. Para Nietzsche, como para Raul Brandão, tudo é roupa,
máscara, parada, convenção hipócrita. Para ambos a verdade
não corresponde a uma verdade subjacente ao dizer mas
coincide com a linguagem enquanto jogo tropológico e, como
tal, infinitamente mutável e sempre ilusória. No entanto, se
uma certa leitura de Nietzsche nos permite a esperança de que
o mundo assim tornado fábula nos permita ainda dançar, que a
dança consista precisamente em desposar esse movimento do
pensamento pelo qual ele abraça essa condição, em Raul
Brandão a consciência de um desfazamento entre o «instinto de
verdade» e o desnorte de se intuir que tudo não passa de um
jogo de metáforas concebido como um véu muito frágil com
que pudicamente escondemos o rosto da morte, está na origem
do grotesco que é também uma outra roupagem com que nos
rimos da tragédia da existência:
Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos
de palavras. Vamos até à cova com palavras. (…) Por detrás
daquela parede fica o céu infinito. Para não morrer de espanto,
para poder com isto, para não ficar só e doido, é que inventei a
insignificância, as palavras, o dever, a consciência e o inferno
(…) É então um mundo de fórmulas a que eu obedeço e tu
obedeces? Sem ele não poderíamos existir. Se víssemos o que
está por detrás não poderiamos existir. O nosso mundo não é
real: vivemos num mundo como eu o compreendo e explico.
Não temos outro. É a voz dos mortos insistente que teima e se
nos impõe. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos.
Decerto não passamos de ecos. (pp. 25-26)

É também pela consciência da verdade e da mentira como


faces da mesma moeda num mundo muito moral que em
Húmus, na vila-vida de Húmus

(…) o mundo moral está com escritos e reduz-se a uma loja


escura, com teias de aranha no tecto. (p. 142)

Torna-se entretanto audível, em Húmus, de acordo com um


movimento que nos afasta de Nietzsche mas nos aproxima de
Herberto Helder20 , uma voz sobreposta a esta que contraria o
movimento aparentemente irreversível pelo qual as palavras
traduzem o desvio relativamente à experiência e a perda da
intuição. Por vezes, no caso de Raul Brandão, essa voz coincide
com um gesto que procura, pelo anti-discurso, cobrir a napa das
palavras com a sugestão do inefável. Prova de que ele habitava
ainda na impossibilidade que o edifício Pessoano possibilitou,
ainda que de um modo desencantado. Brandão descobre que
por detrás das máscaras não há qualquer rosto, apenas o inces-
sante movimento da escrita, mas Pessoa sabe que a esta cabe
levar mais longe os poderes artísticos da linguagem, conduzida
dos seus fins pragmáticos à capacidade de criar ficções e colocar

158
a fábula no início (“Au commencement était la fable”, escre-
veu um dia Valéry). Herberto Helder, por sua vez, reescrevendo
Húmus, sabe que repete o gesto de Brandão e reencanta a voz
de Pessoa, ao mesmo tempo que se afasta de ambos.

Notas
1
Refiro-me ao texto de Blanchot “La Folie par Excellence” publicado
como introdução à tradução francesa do livro de Karl Jaspers: Jaspers,
Strindberg et Van Gogh: Swedenborg-Hölderlin, Minuit, 1953.
2
Foucault, “Le Non du père”, in Dits et Écrits, I, Paris, Gallimard,
1994, pp.186-203.
3
Ibid., p. 194.
4
Ibid., p. 194.
5
Blanchot, Foucault como o Imagino, trad. de Miguel Serras Pereira,
Lisboa, Relógio d'Água Editores, s/d, pp.33-34.
6
Starobinski, Jean, La Relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p.271.
7
Felman, Shoshana, La Folie et la chose littéraire, Paris, Seuil, 1978.
8
Sontag, Susan, “The Aesthetic of Silence”, in A Susan Sontag
Reader, Penguin Books, 1982. Em “The Aesthetic of silence” lemos,
por exemplo: “Language is experienced not merely as something
shared but as something corrupted, weighed down by historical
accumulation (…) To compensate for this ignominious enslavement
to history, the artist exalts himself with the dream of a wholly
ahistorical and therefore unalienated art” (p. 190).
9
Em Húmus seria importante acentuar-se ainda a busca incessante de
um ritmo que articule o pensamento e a matéria sensível da lingua-
gem, como recentemente obse rvou Maria João Reynaud no seu estudo
sobre Húmus, Metamorfoses da Escrita (Campo das Letras, 2001). Esta
autora observa que um cotejo da última versão (de 1926) com as duas
anteriores (respectivamente de 1917 e 1921) permite concluir que
houve da parte de Raul Brandão a intenção de “atenuar a prolixidade
da primeira versão, dando-lhe uma maior coesão semântica” objectivo
que “vai de par com a preocupação de conseguir um maior equilíbrio
distributivo do texto, capítulo a capítulo”, mas que “aquilo que age
globalmente no processo de reconstrução é o ritmo. Subjacente a uma
concepção da obra está um modo específico de articular o pensamen-
to e a matéria sensível da linguagem”.
10
Almeida Flor, João, “Discursos da Alteridade”, prefácio a Robert
Browning, Monólogos Dramáticos, selecção e versão portuguesa de J.
A. F., A Regra do Jogo Edições, 1980.
11
Viçoso, Vítor, A Máscara e o Sonho – Vozes, Imagens e Símbolos na
Ficção de Raul Brandão, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, p. 311.
12
Ibid., p. 311.
13
Brandão, Raul, Húmus, Lisboa, Vega, s/d. Todas as citações de
Húmus feitas neste trabalho se referem a esta edição.
14
Como observa Vítor Viçoso: “A irrupção do outro (…) constitui-se
sempre como uma cenografia do espanto e do pânico. O espaço do Eu
é invadido por forças hostis e ambivalentes que determinam, labirinti-
camente, a desagregação da individualidade. O não ser (o não-eu)
hipertrofia-se e anula o ser (o eu) embora o mergulho nessa totalidade
desagregadora flutue numa deriva de contornos místicos e espanto
niilista, num movimento ondulatório e frenético. Deste modo o texto
orienta-se para as conjunções místicas e euforizantes (eu-todo), como
para as disjunções disforizantes (o eu como totalidade fragmentada)”
(Viçoso, A Máscara e o Sonho, cit., p. 303).
15
Em «La pensée du Dehors» (1966), Foucault refere-se à multiplica-
ção teatral do Eu em todas as poéticas da alteridade deste século, à
violência pulsional patente nos textos de um Artaud ou de um
Michaux, ao naufrágio da consciência como vontade, poder de afir-
mação em Mallarmé e a todas as formas de silêncio que apontam para
uma singularidade-qualquer.
16
Wolwgang Kaiser, citado in Reynaud, Metamorfoses da Escrita, cit.,
p. 224.
17
Ibid., cit., p. 357.
18
A propósito das narrativas de Maurice Blanchot, Jacques Derrida
referiu-se a um movimento próprio da escrita pelo qual avançar é
recuar, um passo sem passo que aponta na dialéctica para uma dimen-
são da diferença que dela constaria como que rasurada. Para Derrida é
no espaço entreaberto entre a afirmação e a negação, no jogo das
antinomias sem superação dialéctica, que se dá uma problematização
do tempo e da subjectividade pela qual o texto é abertura à alteridade.
A escrita de Raul Brandão conduz-nos justamente aí, a essa alteridade
que excede a simples distribuição das vozes no interior de um egocen-
trismo dramático.
19
Reynaud, Metamorfoses da Escrita, cit., p. 357.
20
Relembro de Herberto Helder o poema «Húmus» (Poesia Toda)
sugerindo que o ponto de contacto entre Brandão e Helder, para

160
além dessa citação explícita e desse trabalho de reescrita possa ser
também este.
Da histeria à neurastenia
(Quental e Pessoa)

Jerónimo Pizarro Jaramillo

Hystérique, madame, voilà le grand mot du


jour.

Maupassant,“Une femme”,
Chroniques (1882)

Sob uma óptica que tem a França como centro do universo


social ou literário, costuma-se chamar ao século XIX – e sobre-
tudo às últimas décadas – a idade de ouro da histeria. É certo
que muitos escritores criaram personagens, famílias e estirpes
inteiras de histéricos (ou melhor, de histéricas) e que não só
Zola, que escreveu as vinte novelas que constituem o ciclo
Rougon-Macquart (1871-1893), mas também muitos outros
romancistas se ocuparam a retratar essa maladie du siècle que foi
a histeria. Muitos destes artistas, como os Goncourt, Zola, ou
Huysmans, entre outros, conheceram para além disso a Salpê-
trière, o asilo e laboratório de enfermidades nervosas onde
Charcot comunicou as suas lições clínicas a partir de 1866. Os
vínculos entre medicina e literatura estudaram-se muito em
França – e sobretudo em França ou por causa da literatura
francesa – e, neste contexto, o naturalismo é talvez a corrente
mais estudada. Antes que Breton e Aragon fizessem a sua pro-
clamação esteticista, “a histeria é a maior descoberta poética
dos finais do século XIX” (1928: 20), já muitas mulheres histé-
ricas haviam sido imortalizadas pela arte (ou melhor, por escri-
tores homens) e, até, alguns médicos haviam dado os seus pri-
meiros passos como romancistas ou dramaturgos (cf. Carroy,
1982 e 1990).
Com o título pretendo fazer abordagem que parta do primei-
ro termo, «histeria», para tratar depois do segundo, «neuraste-
nia»; proporei um deslocamento neste percurso. Este passo é
necessário para dar mais visibilidade à outra grande invenção
do século XIX – a neurastenia – e, sobretudo, para poder captar
melhor o discurso médico que influenciou alguns autores portu-
gueses. Escapando ao brilho da histeria, que está associado ao
brilho da literatura francesa, talvez seja possível abrir o repertó-
rio crítico e rastrear os vínculos entre a literatura e a medicina
em outros textos de finais do século XIX e princípios do XX. Se
a histeria tem um passado europeu, a neurastenia, pelo contrá-
rio, foi difundida nos Estados Unidos por George Beard e bapti-
zada como the american nervousness1. Esta enfermidade foi tida,
pois, por um esgotamento devido ao progresso da «civilização»
norte-americana, e só mais tarde se estendeu a outras latitudes.
Por isso é notável a sua aparição em Portugal e em outros países
da Europa (Gijswijt-Hofstra e Porter, 2001), contra a cultura
dominante da histeria e o apostolado dos médicos franceses. No
caso de Portugal, aliás, não se pode deixar de advertir uma
coincidência histórica: a apropriação de “a enfermidade de
Beard” – como foi conhecida a neurastenia – ocorreu em simul-
tâneo com a preocupação de muitos intelectuais pela decadên-
cia nacional. Recuperar a neurastenia, para além da histeria, é
aprofundar uma história que não se pode isolar dos fenómenos
sociais e que permite compreender uma realidade que não é só
médica ou literária.
O texto que se segue é parte de um estudo mais vasto e que está
em curso. A primeira destas notas refere-se a Antero de Quental, que

164
passou primeiro por histérico e depois por neurasténico, cujo exemplo
serve de charneira entre as duas enfermidades; e a segunda a ernando
Pessoa, que se definiu como histero-neurasténico (síntese das duas) ao
considerar a origem psiquiátrica dos seus heterónimos.

***

Misto infeliz de trevas e de brilho,


Sou talvez Satanás; – talvez um filho
Bastardo de Jeová – talvez ninguém.

Antero de Quental, “Homo”

No seu ensaio intitulado “Os dois Anteros” (1929?), o


ensaísta português António Sérgio distingue um Antero apolí-
neo e viril, e um outro, nocturno e débil. Depois de fervoroso e
jubiloso jovem revolucionário (em poesia, com as Odes Moder-
nas; em política, com as Conferências Democráticas), o poeta
açoriano ter-se-ia deixado abater por uma doença nervosa.
Como o mesmo relata na sua famosa carta autobiográfica de
Maio de 1887:

Nesse mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com uma


doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me com-
pletamente2. A forçada inacção, a perspectiva da morte vizi-
nha, a ruína de muitos projectos ambiciosos e uma certa acui-
dade de sentimentos, próprios da nevrose, puseram-me nova-
mente e mais imperiosamente do que nunca, em face do gran-
de problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã
e a existência em geral incompreensível. (Quental, 1989, II: p.
837)

A visão dualista de Sérgio, cuja linha divisória seria o ano de


1874, é a que tem sido seguida, de maneira mais ou menos
matizada, por outros críticos ao abordarem a vida e a obra de
Antero. O problema principal desta imagem, se a analisarmos, é
que, no fundo, é a imagem de um ser patologizado. Sérgio fala
de “duas personagens incompatíveis” (1934: p. 153), que arras-
tariam o poeta em direcções opostas.
No discurso médico da época, ainda que por razões diferen-
tes, Antero também surgia como um ser dividido. A histeria
criava já uma primeira cisão, pois era tida por enfermidade
principalmente feminina, mas começava a ser também diagnos-
ticada nos homens. Quando, em 1877, Antero de Quental visi-
tou Charcot, “o primeiro homem de França para as enfermida-
des nervosas”, este avaliou o seu caso e respondeu ao poeta:
“nós equivocámo-nos; você não tem nada na espinha: você tem
uma enfermidade de mulher, transposta num corpo de homem:
é o histerismo” (Quental, 1989, I: p. 378).
A contradição deste e de outros diagnósticos afins reside no
facto de que os médicos buscavam, como explica Foucault,
decifrar o «sexo verdadeiro» (em Barbin, 1980: viii), mas, ao
atribuírem a um homem uma enfermidade feminina – sem rom-
per com a diferenciação –, produziam um diagnóstico equívoco
e ambivalente.
Sem alongar estas considerações, o interessante é assinalar como
em Portugal, apesar da popularidade da histeria na França (a que não
se furtou Freud, que foi aluno de Charcot), alguns médicos optaram
não por este diagnóstico mas por aquele que se divulgou pouco depois,
o da neurastenia.
Enquanto a histeria vinha do grego hysterikos (de hystéra,
útero ou matriz), a neurastenia era só uma astenia (do grego
astheneia, de asthenēs, debilidade) dos nervos e podia-se associar
mais facilmente ao sexo masculino.
Assim, aquando do regresso de Antero a Portugal, após duas
temporadas (Julho - Outubro de 1877; Junho - Outubro de

166
1878) num estabelecimento de hidroterapia perto de Paris, o
diagnóstico muda. Primeiro, tinha sido tratado como histérico,
tanto no arquipélago dos Açores e na capital continental Lis-
boa, como em Paris; depois começou a ser tratado como neu-
rasténico.
Na sua controversa “Nosografia de Antero”, Sousa Martins –
mais um médico generalista do que alienista – escreve:

Ao tempo em que a doença de Anthero ganho fórma, era ella


anonyma ou antes polynomyna na sciencia.
Confundida com as espécies mais affins, uns lhe chamavam
nervosismo, outros nevrose proteiforme, estes hysterismo, aquelles
hystericismo, qual a dizia vapores, qual a denominava cachexia
nervosa; e muitos, outros appellidos lhe attibuiam.
O certo é que nome legitimo não o tinha, pela boa razão de lhe
faltar identidade. Só quando esta lhe foi determinada pelo
médico americano Beard é que a nosologia a houve como a
especie definida e aceitou as duas denominações propostas em
1880 por esse médico: nervous exhaustion e neurasthenia; preva-
lecendo a última, mercê do seu travo hellenico. (1993: p. 253)

Graças às cartas de Antero, sabe-se que foi Charcot, o gran-


de guru da histeria no século XIX, quem lhe diagnosticou um
“nervosismo proteiforme” (Quental, 1989, I: 382), isto é protei-
co, atributo típico da histeria em geral. O livro de Beard, a que
Sousa Martins alude, é A practical treatise on nervous exhaustion
(neurasthenia): its symptoms, nature, sequences, treatment (1880).
O discurso da neurastenia é também um discurso misógino,
mas não há um órgão único ou assinalável, como o útero, ao
qual responsabilizar pelos sintomas. Na sua nosografia, influen-
ciada pela leitura de Beard, Sousa Martins vai tão longe, na
divisão que traça a propósito do género, por exemplo, que
“masculino” identifica-se com o intelecto “septentrional” e
“feminino” com a sensibilidade “meridional” de Antero. Daí
que fale do filósofo de “alma ancestralmente scandinava” (Mar-
tins, 1993: 250) e do poeta de “temperamento maternalmente
hysterico” (ibidem: 279).3
O que aqui convém sublinhar, em suma, é que o duplo
Antero esboçado por Sérgio é um ser patologizado, pois corres-
ponde a uma visão dualista (saúde, enfermidade; luz, sombra;
grandeza, decadência; etc.), que a ideia dos tipos mórbidos
reforça. Por outro lado, cabe sublinhar o facto significativo de
ser o diagnóstico de Antero, o grande poeta do século XIX em
Portugal, o antecedente mais importante da “auto-
interpretação” de Pessoa, o grande poeta do século XX.4

***

Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!

Álvaro de Campos, “Ode Marítima”

Na sempre citada carta a Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro


de 1935, que costuma ser um bom ponto de partida, Pessoa escreve:

Começo pela parte psychiatrica. A origem dos meus heterony-


mos é o fundo traço de hysteria que existe em mim. Não sei se
sou simplesmente hysterico, se sou, mais propriamente, um
hystero-neurasthenico. Tendo para esta segunda hypothese,
porque ha em mim phenomenos de abulia que a hysteria, pro-
priarmente dita, não enquadra no registro dos seus symptomas.
Seja como fôr, a origem mental dos meus heteronymos está na
minha tendencia organica e constante para a despersonaliza-
ção e para a simulação. Estes phenomenos – felizmente para
mim e para os outros – mentalizaram-se em mim: quero dizer,
não se manifestam na minha vida practica, exterior e de con-
tacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a
sós commigo. Se eu fosse mulher – na mulher os phenomenos
hystericos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema

168
do Alvaro de Campos (o mais hystericamente hysterico de
mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e
nos homens a hysteria assume principalmente aspectos men-
taes; assim tudo acaba em silencio e poesia... (BN, E15, caixa
10)

A carta é de 1935, o que faz com que Pessoa seja um dos


últimos escritores a fazer referência à neurastenia, descoberta
(ou inventada?) na América quase setenta anos antes. É possí-
vel que soubesse dela pelas traduções francesas e pelos livros de
alguns epígonos franceses, mas, mesmo assim, quando começa a
fazer referência “à enfermidade de Beard” em princípios do
século XX, ela é menos uma novidade do que um objecto de
discussão. A carta sobre a génese dos heterónimos demonstra
que Pessoa deixou de ler muito rapidamente e com a mesma
assiduidade dos primeiros anos as “ciências médicas” de finais
do século XIX e princípios do XX, mas continuou fiel a algumas
das suas tipologias.
O que quero salientar agora, porém, é essa preciosa indica-
ção de Pessoa quando diz: “Campos [é] o mais hystericamente
hysterico de mim”…

The
peculiar
combination of northern intellect (metaphysical) touched by
southern sentiment.
V. p. 246
See p.249 about men, according to near heredity “thinking
femininely and feeling masculinely” – Vice-versa – Search.
p.278 – “a aspiração vaga para qualquer cousa de novo” é,
segundo Arndt, possivel manifestação da neurasthenia.
p.279 – O trascendentalismo natural aos cerebros do Norte,
insalubre nos do Sul.
p.289 – James Sully attribue o pessimismo ao estado pathologi-
co dos allemães (National Illness – study this)

113I-55: documento inédito do espólio de Fernando Pessoa que


contém notas de leitura do livro Anthero de Quental. In Memoriam, em
que apareceu publicada a “Nosografía” (1894) de Sousa Martins
(1993: 219-314). A nota de Alexander Search (“vice-versa”) serve
para abreviar uma observação do médico (“Estejam porém inverti-
das…”); cf. a seguinte passagem: “O mesmo para os attributos men-
taes. Á prole d’um casal cheio de saude, o sentimento corre-lhe do
lado da mãe e o intellecto do lado do pae. Estejam porém invertidas
em alguns dos progenitores as proporções psychicas, os filhos poderão
pensar feminilmente e masculinamente sentir” (1993: p. 249). Noto
que Search assina o livro de José de Lacerda Os Neurasthenicos
(1895), prefaciado por Sousa Martins e existente na biblioteca pessoal
do poeta, hoje na Casa Fernando Pessoa.
Quem é Campos? Campos é o poeta dos ísmos, dos arreba-
tes, da violência masoquista (na “Ode triunfal” e na “Ode marí-
tima”)5, dos nervos e das máquinas modernas, que depois da
sua explosão vanguardista dá lugar ao escritor do alto moder-
nismo.
Este Campos, pelo qual Pessoa se desdobra em várias másca-
ras, e cujo Mestre – Caeiro – (como o pai de Pessoa) teria mor-
rido de tuberculose, este Campos, dizia, era “um typo vagamen-
te de judeu portuguez”, um pouco dândi, que teria viajado para
o Oriente e escrito um poema decadentista, o “Opiário”. Se
estes dados não nos pusessem de alerta – as taras de que eram

170
culpados os judeus, a vagabundagem, a viagem… e ao Oriente!
que eram elementos que serviam para traçar quadros mórbidos
no século XIX –, bastaria ler a obra de Campos para descobrir
outros rasgos que fazem do Engenheiro, educado na Escócia,
uma das raras figurações de um homem histérico na literatura
portuguesa.6
Mas qual é a relação do histerismo de Campos com a histe-
ro-neurastenia de Pessoa? À primeira vista, é uma relação nega-
tiva. Ao caracterizar Campos, Pessoa distingue-o de si próprio,
assim como noutros textos distingue certos autores (Shakespea-
re, Goethe, por exemplo) consoante neles predomine um traço
histérico, epíléptico ou neurasténico. Pessoa seria histero-
neurasténico, mas ao escrever enquanto Campos potenciaria só
o seu histerismo. Como Bernardo Soares, que seria uma «muti-
lação» da personalidade total de Pessoa, ou como o ortónimo
(da Mensagem) que seria só uma «faceta» dela, Campos seria
uma “sub-personalidade”, precisamente por não ter um traço
neurasténico... E que representava para Pessoa ter este traço
caracterológico?
Para responder a esta pergunta quero chamar a atenção para
outros dois documentos inéditos do espólio pessoano. Ambos se
constroem sobre divisões tripartidas. No primeiro se lê: “A epi-
lepsia favorece aos homens dotados para a acção, a hysteria aos
dotados para a emoção, os estados neurasthenicos aos dotados
para o pensamento” (BN, E3 / 134A-10); no segundo, que é
uma variação do primeiro, lê-se: “O hyst[erismo] é basicamente
emotivo. | A e[pilepsia] é basicamente impulsiva. | A
n[eurasthenia] é basicamente intellectual [var.: reflexiva]” (BN,
E3/134A-19). Isto evoca o que Pessoa escreve, noutras partes,
sobre os vários tipos de sensações e os diferentes graus de des-
personalização dramática.
Se aceitarmos estas hierarquias, à «personalidade» de Cam-
pos faltaria a componente intelectual que a neurastenia faculta-
ria, sendo ele, por isso, muito mais propenso à expansão emoti-
va. Trata-se de uma simplificação, sem dúvida, mas esta simpli-
ficação é a que na carta obriga Pessoa a lembrar um facto que –
em princípio – não precisava de lembrar: “sou homem”. Dir-se-
ia que primeiro procura definir-se como mais do que histérico
(histero-neurasténico) e depois acrescenta, desnecessariamente,
que mesmo que fosse histérico mentalizaria a sua histeria por
ser homem. Mas não é este o caso de Campos? Não é ele um
homem? Estas perguntas são as tornam possível observar, a
outro nível, um pressuposto da carta: era por não ser mulher e
poder interiorizar as emoções, que Pessoa pretendia que nada
passasse de silêncio e poesia...
No fundo, o que se depreende do trecho citado da carta é o
que Pessoa procura esconjurar: o medo de ser “um alarme para
a vizinhança” e de não reprimir o seu temperamento feminino.
Como se sabe, Pessoa definiu-se como “um temperamento
feminino com uma inteligência masculina”7. E, tendo em conta
que Campos é esse lado mais feminino de Pessoa, é possível
reler, por exemplo, a “Saudação a Walt Whitman” ou outros
poemas de claro conteúdo homoerótico8 . De resto, muito se
poderia dizer da sexualidade de Campos e da relação desta com
a histeria... Mas isso mereceria um tratamento à parte. O certo
é que as questões de género não podem ser esquecidas ao estu-
darem-se as alusões a certas enfermidades que vacilavam na
atribuição dos sintomas segundo o sexo do paciente, e que o
drama em gente pessoano pode ser visto como uma parábola da
soberania ou a perda do poder absoluto.

***

172
Para resumir e concluir estes apontamentos, diria que embo-
ra o diagnóstico de neurastenia tenha surgido para descrever
uma enfermidade americana por excelência 9, esse diagnóstico
expandiu-se por diversas partes da Europa e complicou o qua-
dro, já de si heterogéneo, do diagnóstico de histeria. Os sinto-
mas do american nervousness, do nervosismo americano, foram
“reconhecidos” pelos psiquiatras europeus nos seus pacientes, e
por isso convém dedicar uma maior atenção crítica a esta doen-
ça – americana só na sua origem.
Ao contrário da histeria, que tinha um carácter mais his-
triónico e confinava, muitas vezes com a loucura, a neurastenia
apontava para um simples (ou mais básico) esgotamento nervo-
so, fruto da civilização e do progresso. Isto, somado ao facto de
a neurastenia ter uma sintomatologia mais comum nos homens
e nas mulheres, serviu para superar o impasse da histeria, que
continuava a ser considerada uma enfermidade principalmente
feminina.
A opinião de Sousa Martins, segundo a qual a neurastenia
permitiu nomear o que na ciência não tinha ainda «nome legí-
timo», prova que o diagnóstico de neurastenia ameaçou deslo-
car o de histeria. A “Nosografia” deste médico é sobretudo
notável por ter “corrigido” o diagnóstico de Antero e por ter
recorrido a uma autoridade americana – e não francesa – para o
modificar. Antero passou, como se disse, de histérico a neuras-
ténico e recebeu os tratamentos correspondentes.
Pessoa leu a “Nosografia” de Sousa Martins e conhecia o
diagnóstico de Antero como neurasténico. Também leu – em
1909 – as Notas sobre os Sonetos e as Tendencias Geraes da
Philosophia de Anthero de Quental, de António Sérgio – na
Casa Fernando Pessoa existe um exemplar com muitas notas e
sublinhados –, estudo que marcaria a interpretação sergiana de
Antero nos anos posteriores. É portanto de esperar, como aliás
se constata noutros fragmentos do espólio, que a figura de
Antero – vista através da leitura de Sousa Martins e de Sérgio,
entre outros – tenha influenciado as auto-análises pessoanas.
Pessoa viveu o que se pode descrever como decadência da
época áurea da histeria e viu-se confrontado não só com o
diagnóstico desta doença como também com o da neurastenia,
que acabou por o complementar, mas não o substituiu. Daí a
preocupação – algo misógina – em distinguir os rasgos histéricos
dos neurasténicos; de resto, esta preocupação permitiu-lhe for-
mular um diagnóstico misto (histero-neurastenia) e frisar que,
de todos os seus heterónimos, Campos era “o mais hysterica-
mente hysterico de mim”.

Notas
1
Beard encarregou-se de difundir a neurastenia, como diagnóstico,
ainda que não foi quem cunhou o termo – como, erradamente, acredi-
tou (cf. Beard 1869). O termo já teria aparecido num glossário inglês
e no artigo de Edwin H. Van Deusen «Observations on a Form of
Nervous Prostration (Neurasthenia) culminating in Insanity»(1869) –
ver Bibliografia.
2
A enfermidade nervosa de Antero pode ter sido uma abulia exacer-
bada por problemas digestivos ou um “transtorno ciclotímico” (Moita
Flores, 1991).
3
Portugal, e em particular os Açores, tornava-se, assim, um nicho
privilegiado de histero-neurasténicos – como se no sul da Europa, ou
na finisterra, nenhum pensamento se pudesse enraizar. Assim como
nestas terras não se tendia ao trabalho, parecia não se poder dedicar a
um esforço prolongado, sem ficar exausto (nervous exhaustion). Este
tema foi um dos temas recorrentes em Espanha e Portugal quando se
tratou de pensar a decadência nacional. Sobre as explicações que se

174
aventuraram para a “excessiva predominância das manifestações do
espírito emotivo sobre o analítico, particularmente o científico”, na
península ibérica, veja-se Almeida (1992).
4
A visão patológica que recai sobre Antero reproduz a de um país
“decadente” que seria “uma promessa que se não cumpriu” (Sérgio
1928: 19). Por isso a sua morte será também um sacrifício ritual, na
perspectiva de uma mentalidade iluminada e modernizadora, que
deseja superar certas contradições sem as reconhecer ou compreender
totalmente.
5
Para uma análise destas odes e outros textos de conteúdo homoeró-
tico na obra pessoana, veja-se Fernando Arenas, “Fernando Pessoa: o
drama homoerótico”, Gragoatá 12 (2002): 197-201. Sobre alguns
pontos de contacto entre masoquismo e decadentismo na literatura
francesa finissecular, veja-se o terceiro capítulo (“Sexualité et
androgyne”) do livro de Frédéric Monneyron, L’androgyne décadent.
Mythe, figure, fantasmes. Grenoble: Ellug, 1996.
6
Veja-se a respeito da histeria masculina os textos de Charcot (1984)
editados por Michèle Ouerd.
7
Cf. “Não encontro difficuldade em definir-me: sou um temperamen-
to feminino com uma intelligencia masculina [...] Quanto á sensibili-
dade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar,
tenho dicto tudo [...] Agradava-me a passividade. [...] Reconheço
sem illusão a natureza do phenomeno. É uma inversão sexual fruste.
Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditacão sobre
mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de
que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me
ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente
a esse impulso, mas bastava o desejo para me humilhar” (BN, E3/20-
17; cf. Pessoa, 1966: pp. 27-28). Nas comunicações mediúnicas de
Pessoa (ca. 1916-1917) recentemente publicadas, que se apresentam
como uma espécie de diálogo automático com o além, e que ele veria
mais tarde como fruto da histero-neurastenia e da auto-sugestão, lê-se
que a mulher que fará perder a castidade a Pessoa “is a masculine type
of girl […] strong and immensely masculine in her will and in her
manner of making you submit to her” (BN, E3/138-49 a 51; cf. Pes-
soa, 2003: p. 227).
8
A este respeito veja-se Fernando Arenas (2002) e Richard Zenith
(2002). Sobre a sexualidade de Pessoa há um artigo recente, também
de Zenith (2004).
9
A neurastenia brotava, segundo Beard, “em comunidades intelec-
tuais e civilizadas […] em compensação parcial pelo nosso refinamen-
to e nosso progresso” (1869: p. 217). Ainda que fosse um mal, a neu-
rastenia era o que permitia à sociedade, esgotada pelo ritmo do pro-
gresso, manter-se à tona. Ou pelo menos formar defesas que estavam
vedadas aos indivíduos mais “fortes” e “musculares”.

Bibliografia

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176
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O Governo da Real Casa Pia de Lisboa (1780-
1807)

José Subtil

Poder, administração e governamentalidade. A passagem


da centralidade política para a centralização política ao longo
do século XVIII em Portugal acarretou novas preocupações de
poder e, consequentemente, a necessidade da emergência de
uma nova administração. Estas novas preocupações e necessi-
dades tiveram a ver com a questão de um melhor conhecimen-
to das sociedades (temas, entre outros, como a saúde e higiene,
demografia, actividades económicas, criminalidade e segurança)
para traçar as melhores opções de gestão das populações e, des-
ta forma, afirmar a soberania do príncipe. O conceito de gover-
namentalidade estabelece a relação entre estas práticas e as
técnicas que se lhe associaram relacionadas com as tecnologias
do «eu», ou seja, entre o governo de todos e o governo de cada
um 1.
A revelação de que a administração é o «braço» do poder de
Estado decorre das primeiras teorias marxistas e teve como
consequência a desvalorização, desde logo, da análise sobre os
fenómenos administrativos mas, sobretudo, um efeito de estra-
nheza por todos os outros fenómenos de poder que podemos
designar por micro poderes. Mesmo antes das propostas de revi-
são das teses clássicas do marxismo, iniciadas por Althusser
com a introdução dos efeitos de sobredeterminação das instân-
cias políticas sobre os aparelhos produtivos, começaram a ser
propostas outras leituras, sobretudo a partir dos contributos de
Max Weber e Norbert Elias, abrindo à investigação um leque
muito variado de sistemas de dominação decorrentes das mais
variadas lógicas de poder. Mais recentemente, especialmente
com Michel Foucault, Pierre Legendre e Pierre Bourdieu, abri-
ram-se novos problemas e objectos de análise como o dos afec-
tos e sentimentos, as tecnologias disciplinares, a inculcação do
habitus ou a concorrência entre campos de poder. Estas novas
caracterizações do poder e das relações entre poderes apontam
para outras consequências na ideia de Estado como regulador
da vontade dos homens2.
Está neste caso a administração. O termo administração apa-
rece nos textos jurídicos, na regulamentação dos regimentos e
na lei durante o Antigo Regime, aludindo-se ao termo com
bastante frequência durante o século XVIII pelo que podemos
circunscrever o seu sentido a uma determinada categoria con-
ceptual. Este sentido é dado por um conjunto de novas ideias
em torno de uma doutrina designada por «cameralismo»
(kameralien, do termo latino camera, ou seja, câmara real, lugar
da intimidade e da vontade do príncipe) e «por ciência de polí-
cia» (polizei, afirmação da vontade do rei, a boa razão entre as
outras razões) que se imiscuía nos mais diversos campos sociais
como as finanças, a economia, a segurança, as prisões, a saúde
pública, a definição do paradigma da felicidade, isto é, em dife-
rentes áreas da actividade jurídica, política, social e cultural.
Este novo pensamento sobre um determinado conjunto de acti-
vidades governativas teve consequências profundas na relação
entre o Estado, a sociedade e o indivíduo. O novo registo da
lógica centralizadora ao procurar definir a dimensão da inter-
venção do Estado atingia, de modo surpreendente, o indivíduo,
não como ser concreto, mas como entidade abstracta para ser

180
racionalizada e regulada. Abriram-se as portas a diversas fórmu-
las de disciplina individual, social e de controlo político, direc-
tamente relacionadas com a própria existência da vida dos
indivíduos. Para esta nova arte de governo o que passou verda-
deiramente a interessar como domínio e poder foram as racio-
nalidades dos métodos e das regras mais do que a imposição
violenta da lei ou a sua coerciva aplicação.
Nesta nova configuração de ambientes de poderes, a função
administrativa passou a ser determinada por um progressivo
distanciamento entre o monarca e as tarefas concretas do
governo, precisamente porque entre o príncipe e os vassalos se
interpunha uma rede de organismos administrativos cujos
objectivos era refundar, em novos moldes, o tipo de comando
político praticado em períodos anteriores. Tratava-se de substi-
tuir as ideias de dominação por outras, doravante fundadas em
tecnologias de regulação e de auto-regulação. A construção
deste projecto político implicava, por isso, um progressivo dis-
tanciamento entre o poder central e certas tarefas concretas de
governo visto que a centralização concebia como regra de con-
trolo social a sedimentação da disciplina social no interior da
própria sociedade civil.

As condições para a mudança das novas racionalidades.


Se é certo que estamos em presença de uma profunda alteração
nas formas de governar, devemos compreender a genealogia da
mudança em torno das ideias de processo e enunciação.
Como processo, os trabalhos sobre a auto-organização dos
seres vivos dos chilenos Humberto Maturana e Francisco Vare-
la e dos húngaros Vilmos Csanyi e Gyorgy Kampis podem aju-
dar a compreender as lógicas de ruptura nos sistemas sociais 3.
Segundo estes biólogos, o modo como os sistemas se formam
e se mantêm vivos obedece à dinâmica da replicação, ou seja, as
células garantem a sua continuidade, portanto a sua própria
vida, assegurando a sua substituição. Este modelo, designado
por autopoiético, transporta em si mesmo, no seu código gené-
tico (ADN), a informação replicativa que lhe assegura a vida.
O mesmo parece passar-se nos sistemas sociais que, para se
formarem, expandirem e manterem coesos, necessitam de asse-
gurar a sua continuidade criando informação replicativa. Tal
como nos seres vivos, os sistemas sociais, ao mudarem a infor-
mação replicativa, mudam o modelo de auto-organização, sen-
do que esta mudança pode ocorrer por variados motivos e
situações.
De particular interesse para o que nos propomos estudar é
saber como se constrói um novo paradigma assente na criação
de um modelo de normas capaz de moldar comportamentos
considerados razoáveis para se ser admitido em sociedade e, em
contrapartida, quais os que são diagnosticados como perigosos
para o equilíbrio social ou para a propensão da estabilidade
política. Ou seja, como é que de uma cultura do Antigo Regi-
me, enraizada no fixismo criacionista, se constrói um novo
padrão de comportamentos que prescreve e diagnostica situa-
ções bipolares no interior da lógica do que é normal e do que é
anormal, admitindo que o indivíduo pode exercer a sua vontade
sobre a sua própria liberdade. Ou, ainda, como é que um siste-
ma baseado na ideia de «corpo social» é substituído por um
sistema social fundado na ideia do indivíduo, na produção da
riqueza através do esforço do trabalho, no poder hierárquico e
na obediência a regras e normas de conduta criadas pela racio-
nalidade.

182
Se a nova organização do poder que acabamos de caracteri-
zar só pôde vingar através da força cultural (imposição de novos
símbolos, mitos, de uma linguagem refrescada de sinais e sig-
nos), da força física (imposição da violência) e da força de uma
legitimidade (imposição de um novo Direito), o que é certo é
que foi necessário operar mudanças na informação replicativa
do campo social e político, ou seja, formar um novo código de
ideias e comportamentos para ser inculcado na mente de cada
um (homem, mulher, criança) e, assim, transformar a visão do
mundo assente na razão, na vontade e na liberdade.
Este processo de remodelação foi obra da época moderna e 4
continuou pelos séculos XIX e XX prosseguindo, ainda, nos
nossos dias. A nova informação replicativa utilizou várias for-
mas de inculcação de que salientamos duas. Uma, foi a imposi-
ção de processos de educação e adestramento através de ritmos
de repetição e exibição pública, com mais ou menos espectacu-
laridade, acompanhados da manifestação de forças intermiten-
tes para dominar os erros e as falsidades. Outro, o domínio do
corpo, da sexualidade produtora e a consequente dominação
masculina.
Michel Foucault situa, para o caso francês, a emergência do
novo sistema e a sua consequente imposição a partir do século
XVII onde, evidentemente, realça, entre outros, os indícios
desta nova materialidade disciplinar no aparecimento da loucu-
ra/psiquiatria, dos novos sistemas de funcionamento dos tribu-
nais, das prisões e dos hospitais, ou seja, da formação coerente e
global da afirmação de dois opostos, o normal e o anormal, em
que o primeiro diagnostica o segundo, procede à sua cura e
integração ou, em caso de necessidade, à sua exclusão social.
Na linha do mesmo autor, o eixo de corrigibilida-
de/incorrigibilidade determinará, em última instância, o conceito
de anormal, sendo, então, necessária uma mediatização especia-
lizada da cura, própria de um saber e de um aparelho clínico e
social específico que passou a requerer novas tecnologias disci-
plinares.
Temos aqui, também, o célebre problema levantado pelo
mesmo autor, da relação entre poder e saber, entre o poder e a
verdade e, naturalmente, o da genealogia das condições de
possibilidade para o aparecimento de um determinado tipo de
saber e de um determinado modo de exercício de dominação5.
Acerca da violência simbólica da nova dominação, da eco-
nomia dos bens simbólicos e das estratégias de reprodução,
Pierre Bourdieu não deixa de afirmar, a este respeito, a impor-
tância do «trabalho histórico», tanto na construção do novo
paradigma “reconstruir l’histoire du travail histoique de déshistorici-
sation”, como na sua consolidação através de agentes e institui-
ções que asseguram a constância imposta pelo processo de
inculcação social e cultural, isto é, por outras palavras, pelo
dispositivo replicativo6 .
O caso da Real Casa Pia de Lisboa é, tanto no que respeita
ao modelo de imposição das normas e regras como ao sistema
de coerência que o enforma, o primeiro exemplo português a
afirmar, no plano político e social, uma instituição que formula
e aplica o modelo da construção de uma sociedade regulado
pelos princípios da inclusão e da exclusão sociais.

184
Os sinais da governamentalidade. Podemos identificar a
evidência desta mudança em Portugal durante o século XVIII
através de um conjunto de ideias políticas e de dispositivos
disciplinares de que salientamos os seguintes:
1. A afirmação do paradigma individualista face ao modelo
corporativo, consubstanciado na acreditação da vontade como
fórmula para a mudança social e cultural;
2. A prática de classificações sociais através do método qua-
litativo (descrições tipológicas, formulação de taxinomias, rela-
tórios) e do método quantitativo (estatísticas, recenseamentos,
inquéritos);
3. A explosão da ideia da educação e da pedagogia moderna
como pólos para a mobilização do progresso e, consequente-
mente, da evolução política e social;
4. A crescente tendência para a monopolização da violência
simbólica por parte das instituições da administração central e
da formulação de novos padrões de normalidade, admitidos
como indispensáveis à segurança social;
5. O aparecimento do conceito de regeneração como legiti-
mação do trabalho de correcção dos «anormais» ou, no limite
deste mesmo trabalho, para desencadear o processo de exclusão
social para incorrigíveis ou incapazes;
6. A fundamentação do conhecimento e da cultura dos nor-
mais nos quais se deviam observar com regularidade as seguin-
tes qualidades: a) A respeitabilidade. Esta característica dos indi-
víduos e das famílias tinha necessariamente a ver com os modos
de vida adoptados. Para serem respeitáveis deveriam possuir
uma base de sustentação económica estável e assegurada pelo
trabalho (ter um emprego), pelo rendimento ou pela fortuna; b)
A alfabetização. Saber ler e escrever ou, pelo menos, ler, era o
caminho que devia ser seguido, admitindo-se que a sua falta
acarretaria, mais cedo ou mais tarde, problemas na evolução
individual e na integração social; c) A virtude da obediência, ou
seja, o cumprimento das regras reguladas por costumes, tradi-
ções e normas que devem aglutinar os membros da sociedade;
d) A paternidade como dignidade política e social; e) A materni-
dade como sustentáculo da moralidade e dos bons costumes.
Em contrapartida, desencadeiam-se procedimentos para
diagnosticar os anormais, aqueles cuja capacidade para a subjec-
tividade os impossibilita «du souci de soi-même», isto é, de se
poderem conduzir cuidando de si mesmos por falta, entre
outros, dos seguintes requisitos: a) A falta de educação, tal como
insultar terceiros, fazer escândalos na praça pública, falar dema-
siado alto, não se saber vestir com descrição; b) A prostituição
feminina. Admite-se que a prostituição feminina é aceite pela
vítima e que, portanto, os homens são considerados, apenas,
cúmplices desta anormalidade; c) A mendicidade, ou seja, a não
aceitação do valor promocional do trabalho; d) A vagabunda-
gem, ou seja, a não aceitação das regras sociais; e) O roubo e
formas de criminalidade relacionadas com a propriedade, isto é, a
desestruturação da ordem económica considerada, cada vez
mais, como a base da felicidade dos povos; f) A desobediência
como a não aceitação do princípio da autoridade e da submis-
são à regularidade das mecânicas sociais.
A tomada de consciência deste pensamento e da consolida-
ção de um consenso geral em torno do mesmo, efectivou a
necessidade do seu conhecimento, permitindo gerar exercícios
e práticas sociais e políticas em redor do binómio «poder e
saber». As marcas desta nova hermenêutica podem ser reco-
nhecidas em alguns postulados como, por exemplo, a preven-
ção, a recuperação e a reinserção.

186
A prevenção funda-se, em primeiro lugar, na vigilância civil
com a montagem de uma rede de denunciantes. A delação era
recompensada de diversas formas mas distinguia sempre, em
quaisquer dos casos, dois tipos de denunciantes. Os criminosos
que se habilitavam a uma redução das penas e os homens
honestos que receberiam recompensas em dinheiro.
Em segundo lugar, na espionagem. A acção desencadeada
pelos célebres “moscas”, ou seja, indivíduos que procuravam
estar em todos os lugares perigosos e que não falavam, apenas
escutavam, sem fazer barulho. Estes “moscas” nunca faziam
relatórios escritos, apenas, depoimentos orais.
A prevenção utilizava, ainda, dispositivos de controlo como
os passaportes (de cidade e de bairro) onde eram registadas as
entradas e saídas de cada indivíduo com a indicação do modo
de vida que levava. Ou o registo das casas de residência tempo-
rária, como pensões e residenciais, com a obrigação do assen-
tamento dos ocupantes dos quartos, dias de entrada e saída.
Ou, também, as rondas, a cargo dos guardas-nocturnos, oriun-
dos dos vários ofícios do bairro, cargo que ninguém podia recu-
sar, a menos que se pagasse o serviço de escala. Estes milicianos
percorriam os lugares mais frequentados da noite como taver-
nas, casas de jogos ou de prostituição.
A recuperação começava pela educação pedagógica. Uma
educação geral que se inseria no plano de reformas implantadas
desde o pombalismo e uma educação especial ministrada em
centros de recolhimento e tratamento. Depois, pelo interna-
mento. A ideia do internamento consiste no recolhimento e
vigilância permanente que proporciona a correcção do indiví-
duo e, por conseguinte, cria condições para a sua inserção
social. Em caso de recidiva admite-se, então, que o tratamento
terá falhado, restando ao incorrigível a via da repressão materia-
lizada na prisão e, eventualmente, nos trabalhos forçados. A
recuperação devia ser feita, também, através do trabalho, con-
siderado um dos melhores remédios para a correcção da sanida-
de mental dos indivíduos.
E, por fim, a reinserção, um processo que deveria ser cuida-
do e cuidadoso na medida em que avaliava as competências
adquiridas ao longo do processo de regeneração e, desse modo,
ser acompanhado por várias medidas que assegurassem a vigi-
lância dos comportamentos e o desempenho pessoal e social.

A Real Casa Pia de Lisboa (1780-1807). A Real Casa Pia


de Lisboa foi criada em 20 de Maio de 1780 sendo instalada no
Castelo de S. Jorge. Embora tivesse autonomia de funciona-
mento interno, estava dependente da Intendência Geral da
Polícia7. Ambas as instituições eram dirigidas pelo Intendente
Geral da Polícia, o Doutor e Desembargador Diogo Inácio de
Pina Manique.
A nova instituição surge num ambiente social, cultural e
político em que se impõem ideias inovadoras quanto ao diag-
nóstico e tratamento de certa marginalidade, nomeadamente a
decorrente da pequena criminalidade, da ociosidade e da falta
de instrução. Por isso mesmo, o seu aparecimento coincide com
um amplo movimento de valorização do ensino (em especial o
das primeiras letras), da criação de novas instituições culturais e
da multiplicação de outras organizações com funções similares8.
Pode caracterizar-se a Casa Pia como um organismo emi-
nentemente preventivo na medida em que procura recolher e
cuidar a população potencialmente perigosa para a sociedade.
A esta qualidade preventiva estava associada a ideia de
regeneração dado que os internos da Casa, depois de recupera-

188
dos, eram inseridos na sociedade de uma forma cautelosa e
vigilante. É o caso, por exemplo, do casamento (1785) de 32
órfãos e 59 ex-prostitutas que se incorporaram na sociedade
constituindo família. Os seus percursos familiares continuaram
a ser acompanhados pela Casa Pia e sujeitos a relatórios de
avaliação. Ou, ainda, a criação de condições económicas para a
montagem de oficinas para muitos dos que aprenderam com
êxito um ofício. Para estas oficinas, a Casa Pia garantia a venda
dos produtos durante o período de reabilitação social. Ou, tam-
bém, o prosseguimento dos estudos para premiar os melhores
alunos com ofertas de bolsas no Reino ou no estrangeiro para se
especializarem em profissões carenciadas no Reino.
Para além do recolhimento de crianças em perigo, abando-
nadas ou em dificuldade familiares, a Casa Pia internava adul-
tos para serem recuperados pelo trabalho e pela educação. Eram
integrados na chamada Casa da Força, constituída pela Casa de
Santa Margarida de Cortona e Casa de Nossa Senhora da Con-
ceição para as mulheres (sobretudo prostitutas) e pela Casa de
Nossa Senhora do Monte do Carmo para os homens (especial-
mente vagabundos)9.
Desde a sua fundação até à fuga da família real para o Bra-
sil 10, a Casa Pia era composta por várias repartições que conta-
vam, em 1793, com a seguinte população residente 11:

Unidade orgânica Total Obs.

Colégio de S. Lucas 175

Colégio das Ciências Naturais de Coimbra 47 a


Colégio das Artes de Anatomia,
7 b
Cirurgia e Medicina
Colégio das Artes de Gravador,
8 c
Arquitectura Civil, Pintura e Escultura
Colégio de S. José 88

Casa de S. António 181 d

Colégio de S. Diogo 24 e

Recolhimento da Rainha Santa Isabel 134 f


Recolhimento de Nossa Senhora
20 g
do Livramento
Casa da Força (Senhora do Monte
439 h
do Carmo e Santa Maria de Cortona)
Casa de Nossa Senhora da Conceição 22 i

Total 1.145

Observações: a) Colegiais matriculados nos três anos de


Filosofia e Matemática e nos dois anos de Medicina; b) Em
Edimburgo; c) Em Roma; d) Aulas de primeiras letras, aritméti-
ca e escrituração mercantil; e) Aulas de ler, escrever, contar,
gramática latina, tudo em língua alemã; f) Aprendem doutrina,
ler e escrever, bordar, fazer toucas, flores e tecer fitas; g) Desti-
nadas a criadas de servir; h) “Onde se corrige a mocidade liber-
tina, sem modo de vida, filhos de desobedientes de seus pais”.
No apoio a esta Casa trabalhavam vários funcionários distribuí-
dos do seguinte modo: 82 para as lonas; 100 para as cordoarias;
24 para os tecidos de linho e algodão; 6 para as meias e 30
alfaiates; i) “Mulheres convertidas que se ocupam a cozer, fiar
linho, algodões”.

190
Com as invasões francesas e consequente aproveitamento
das instalações para uso militar, a Casa Pia foi desactivada,
perdendo-se a maioria da documentação que registava a sua
actividade. Todavia é possível, através do que foi preservado,
alinhar algumas ideias sobre o modo como funcionava a insti-
tuição 12.
Os principais instrumentos de controlo das actividades
pedagógicas e correctivas e da evolução do percurso dos inter-
nos eram constituídos por fichas, cadastros e relatórios. Quais-
quer destes dispositivos pretendia constituir-se num arquivo-
memória que sustentasse a elaboração de diagnósticos adequa-
dos, ao mesmo tempo que formavam o repositório das interven-
ções e do desempenho obtido pelos internos ao longo do trata-
mento regenerativo.
Contudo, as melhores fontes de informação no que respeita
ao modelo de funcionamento da Casa são os regulamentos,
direccionados para a repetição de comportamentos e atitudes,
para os castigos e recompensas e para a orientação do trabalho
a prosseguir pelos agentes encarregues da imposição das normas
e das regras.
Alguns destes regulamentos mantiveram-se inalteráveis até
meados do século XIX, altura ((1843) em que se procedeu a
uma reforma interna. Contam-se, entre os mais importantes, os
seguintes 13:
Regulamento para as Aulas da Casa Pia. Destinava-se ao
ensino mútuo, gramática portuguesa, aulas de francês, de inglês,
primeiras aulas de música, segundas aulas de música, aula de
desenho. Estipulava a forma como deviam ser processadas as
aulas, desde o início até ao encerramento das mesmas.
Regulamento Policial da Contadoria. Constituído por 13 arti-
gos definia as regras a que deviam obedecer os empregados, o
registo de livros de ponto, a justificação de faltas, o trabalho
ordinário e extraordinário, a ética profissional e o funcionamen-
to do arquivo de todos os registos.
Regulamento para o fornecimento por arrematação de géneros e
fazendas. Era formado por seis artigos que orientavam os proce-
dimentos para o anúncio no Diário do Governo e outros perió-
dicos quanto ao fornecimento de géneros, a qualidade e quanti-
dade de produtos que se pretendiam comprar e a forma de apu-
rar os concorrentes.
Regulamento para o Fiel da Casa da Fazenda. Determinava as
horas de entrada e saída, fecho da Casa, frequência de outros
funcionários, faltas e doenças, bem como a relação funcional
com as restantes repartições da Casa Pia.
Regulamento para as Órfãs e Empregadas do Recolhimento de
Santa Isabel. Estipulava as horas de levantar, recolher, refeições,
aulas e recreio. As internas eram acompanhadas em todos os
movimentos dentro do estabelecimento pelas regentes que, por
sua vez, são enquadradas pelas mestres. As regras obrigavam,
em dias santos e aos domingos, depois do almoço, à audição da
“Doutrina” a que se seguia o sacramento da eucaristia.
O regulamento descriminava com detalhe as obrigações das
regentes com referência explícita à proibição para não brinca-
rem com as internas, “nem tendo intimidades donde possa
resultar a falta de respeito”.
Os castigos escolhidos eram os seguintes: a) palmatórias,
tantas quantas a natureza da falta, tipificando-se as mais fre-
quentes; b) prisão no Recolhimento; c) expulsão da Casa.
A Regente em chefe respondia perante a administração e
era coadjuvada por duas ajudantes que garantiam, também, a
inspecção do trabalho dos restantes empregados, registando, em

192
livros apropriados, todas as ocorrências dignas de nota. Verifi-
cavam e anotavam as faltas dos empregados.
Regulamento para os Castigos dos Órfãos. Era constituído por
28 artigos que detalhavam o tipo de falta e o respectivo castigo.
Era lido, todos os sábados, em reunião geral.
Os castigos estavam repartidos pelos seguintes tipos: a) ajoe-
lhar no local da falta, desde um quarto de hora até uma hora
conforme se tratasse de uma primeira vez ou de reincidência; b)
palmatórias para a falta de asseio. No caso de não se emenda-
rem eram obrigados a trazer, durante seis dias no braço esquer-
do, uma tira de pano branco com a palavra Desleixado; c) ajoe-
lhar com rezas se a falta fosse cometida à hora da oração; d)
permanecer em pé em cima de um banco; e) estar de joelhos no
púlpito durante as refeições; f) o mesmo castigo mas lendo em
voz alta; g) custódia; h) prisão, i) serviço extraordinário no
refeitório; j) assistir ao almoço e ao jantar de joelhos; l) jejum a
pão e água; m) andar com uma tira de pano no braço esquerdo
onde se escrevia a palavra Mentiroso ou Atrevido (quando
desobedeciam); n) andar com objectos ao pescoço no caso de
serem encontrados a jogar às cartas ou outros jogos proibidos.
O que, fundamentalmente, se castigava eram faltas de
asseio, faltas a toques de chamada, falar nas horas de silêncio,
estar fora do lugar a que lhe esteja destinado, sair à noite dos
colégios, calúnias, pratica de jogos de fortuna ou de azar, fumar,
possuir bebidas «espirituosas», praticar actos ou proferir pala-
vras desonestas, furto, desobediência ou falta de respeito, desa-
venças, posse de instrumentos cortantes, fugir da casa dos mes-
tres, enviar ou receber cartas sem autorização.
Era obrigatório o registo dos castigos num livro próprio,
indexado pelo número das matrículas (cadastro individual).
Regulamento para os Castigos das Órfãs. Era composto por 15
artigos que especificavam o tipo de falta e o respectivo castigo.
Era lido, todos os sábados, em reunião geral.
Os castigos estavam repartidos pelos seguintes tipos: a) ajoe-
lhar no local da falta, desde um quarto de hora até uma hora
conforme se tratasse de uma primeira vez ou de reincidência. À
terceira vez era castigado com o uso de um escapulário preto ao
pescoço com a palavra Teimosa; b) para a falta de asseio, o uso
no braço direito de um rótulo com a palavra Desleixada; c) não
fazendo os trabalhos com perfeição eram obrigadas a andar com
uma tabuleta pendurada na mão com os dizeres de Grosseira; d)
rezar de joelhos; e) ficar sentada numa tábua no chão do refei-
tório e comer pão e água; f) assistir ao jantar com as mãos pre-
sas e de pé ou de joelhos; g) andar com o objecto furtado pen-
durado ao pescoço durante determinados dias; h) acréscimo de
tarefas; i) custódia; j) reclusão; l) corte de cabelo; m) expulsão.
Castigava-se, sobretudo, a falta de asseio, a falta aos toques
de chamada, não fazer os trabalhos com perfeição, falar nas
horas de silêncio, roubar, desobedecer, falta de respeito e desa-
venças. Da mesma forma, em cada colégio, existia um livro de
registo dos castigos por ordem alfabética (cadastro individual).
Regulamento para os regentes da Casa. Os regentes tinham
como chefe um Perfeito subordinado a um Director e, para
além do serviço diário normal, faziam ainda serviço aos pátios.
O regulamento era composto por 19 artigos onde se definiam as
principais funções que deviam desempenhar.
Este género de informação permite-nos ter uma ideia sobre o
que terá sido o dia de trabalho dos internos e que se pode resu-
mir da seguinte forma. Pela alvorada, os alunos depois de se
levantarem, faziam a formatura e respondiam à chamada. De
seguida tinha lugar a reza do levantar a que se seguia a limpeza

194
e a feitura das camas. Depois iam lavar-se e arranjar-se, for-
mando de seguida para se proceder à distribuição pelas oficinas,
aulas, serviços ao refeitório ou outro qualquer estabelecimento.
Ao toque para o almoço, nova reunião em formatura, mar-
chando para o refeitório onde se conservavam de pé com as
mãos viradas para as mesas à espera de ordem para se sentarem.
O almoço, que deveria durar meia hora, decorria em silêncio.
No fim do almoço tinha lugar uma oração. À saída do refei-
tório fazia-se, outra vez, formatura para o recreio no claustro,
seguindo-se, novamente, a distribuição pelos vários serviços.
O mesmo esquema era observado ao jantar e à ceia.
A entrada nas aulas era feita, também, em formatura, da
responsabilidade do regente que entregava os alunos ao profes-
sor.
O toque para a missa, antes do jantar, obrigava a nova for-
matura e a uma inspecção por parte dos regentes para verifica-
rem se os internos estavam asseados e com as roupas em ordem.
Caso fosse necessário providenciavam para os que tivessem
necessidades de arranjos ou de asseio fossem para a Rouparia.
Regulamento do Porteiro à Aula de Ensino Mútuo. Estipulava
as obrigações do regente destacado para ajudar os professores,
bem como os seus ajudantes, no que respeita ao controlo dos
alunos que saíam da sala de aula por motivos específicos. Ou
porque o professor decidia castigá-los e pô-los fora da aula ou
porque os tinha mandado realizar outras tarefas julgadas con-
venientes para a aula.
Cabia-lhes, também, mandar varrer a sala de aula, mantê-la
limpa e cuidar de todos os materiais pedagógicos.
Regulamento do Porteiro da Porta Principal. Um outro regente
era destacado para o serviço da portaria central. Competia-lhe
abrir a porta antes do nascer do sol, controlar a entrada das
pessoas, cuidar da limpeza, vigiar o livro de ponto, fazer o regis-
to dos visitantes, das saídas dos alunos ou funcionários e proibir
qualquer tipo de reunião,
Os internos da Casa tinham um uniforme próprio para o
Verão e um outro para o Inverno. Os rapazes usavam, ainda,
uma gravata de couro.

A proeminência do poder simbólico. Uma das característi-


cas mais marcantes do exercício do poder na Casa Pia foi a sua
dimensão simbólica14 .
Um conjunto de regras de precedência e reverência tiveram
por objectivo afirmar a relevância da ordem, da regularidade e
fixar um conjunto de obrigações que se destinavam a disciplinar
e organizar o comportamento dos internos. Outras disposições
trabalharam para a afirmação das lógicas de diferenciação como
a distribuição espacial dos lugares, os castigos e a ordem de
precedências que vigorava em todos os actos colectivos. O
resultado final destas disposições era separar, por sinais ou ges-
tos, os comportamentos do normal e do anormal, o bem com-
portado do mal comportado, com o objectivo de reproduzir
fórmulas de aproximação a um modelo ideal gizado na geome-
tria das racionalidades. Para o efeito, eram utilizados todos os
actos que revestissem carácter público para se tornarem visíveis
ao colectivo. A distinção transformava-se, assim, num poderoso
instrumento de dominação, visando criar uma imagem ordena-
da e estável.
As tecnologias do eu, de que nos fala Michel Foucault, esta-
vam associadas a estes dispositivos de imposição exterior da
disciplina na medida em que estimulavam o sujeito a imprimir
transformações na sua consciência e sobre a sua percepção do

196
mundo. Exigiam, por isso, um impulso ininterrupto que organi-
zava, por si mesmo, uma constante vigilância de atitudes e
comportamentos, ou seja, desencadeava um processo de subjec-
tivação cujo objectivo consistia em domesticar cada “eu”,
desenvolvendo novas formas de conhecimento pessoal, orien-
tadas e avaliadas constantemente em cada circunstância.
O segredo e o silêncio, associados às estratégias de dissimu-
lação, eram, também, geradores de suspeitas misteriosas que,
propositadamente, não esclareciam o sentido oculto das práti-
cas. Dito de outro modo, as metodologias fundadas no segredo
e no silêncio determinavam o desenvolvimento de um certo
conhecimento policial que cristalizava o processo de adestra-
mento. Por isso, o decoro, sobretudo os comentários sobre
comportamentos e atitudes, estava, igualmente, ligado a este
culto na medida em que a banalização e o falatório sobre as
opiniões dos outros rompia o carácter respeitoso que era devido
aos vigilantes e valorizava outro género de aprendizagem do
cumprimento das regras sem risco da quebra das ordens estabe-
lecidas.
Saber conduzir-se era, portanto, uma das competências mais
eficazes a par da arte de bem observar os outros e a si próprio.
Este trabalho, acompanhado por actos de regularidade discipli-
nar, arrastava, em si mesmo, um potencial persuasivo de auto-
ridade. Este domínio assentava no exame dos factos e no estudo
das reacções dos outros sobre os comportamentos de quem
observa com a perspectiva de obter a máxima economia de
proveitos pessoais no jogo final estabelecido entre o ganho de
privilégios e de castigos.
Considerações finais. O que as regras e as normas da Real
Casa Pia de Lisboa manifestam é, antes de tudo, uma configu-
ração reprodutora de práticas que tendem a organizar e a unifi-
car a multiplicidade de formas comportamentais, tanto para os
que estavam encarregues de a vigiar como os que a ela tinham
de obedecer. Todos os actores do processo faziam parte de um
todo harmonioso que era necessário preservar porque só esta
dinâmica podia conduzir à replicação disciplinar.
Esta geometria é a característica que fundamenta a adapta-
ção aos padrões de identificação da ordem. Uma adaptação
obtida à custa de um ritmo diário sincopado (traba-
lho/descanso/estudo/reza) e previsível que inculca um olhar
integrador das práticas, isto é, produz uma junção de hábitos
que só aparentemente são fragmentários. Por esta forma alcan-
ça-se a máxima racionalidade possível das ordens estabelecidas.
Por outro lado, uma boa parte dos castigos, a grande maio-
ria, são públicos para que os observadores possam meditar e
reflectir, no silêncio imposto, sobre as escolhas que pretendem
fazer: seguir o caminho dos maus comportados e castigados,
com todas as consequências que essa opção acarretava, ou pre-
ferirem aproximar-se, mesmo a custo da vontade pessoal, às
normas que integravam a realidade objectiva. Estamos perante
uma tecnologia de produção de símbolos cuja interiorização se
faz, sobretudo, através da educação visual, projectando deter-
minados estilos de vida, correctos e verdadeiros ou hostis e
errados, com consequências para qualquer sujeito individual.
Mostra-se, assim, ao olhar de cada um e de todos, uma ordem
intrínseca das coisas e pede-se ao pensamento que seja capaz de
apreender e aprender essa mesma ordem.
Se verificarmos o alcance da proporcionalidade dos castigos,
a tendência para reforçar as incidências nos castigos corporais

198
sem grande sofrimento, pretendia marcar uma relação tensa
entre vigilante, vigiado e o pensamento de ambos. Vantagens e
desvantagens de um corpo histórico, uma espécie de composi-
ção pictórica de conotações visíveis ou ocultas nos registos das
consciências ou das fichas individuais. A proporcionalidade dos
castigos significava, ainda, uma vantagem acrescida da capaci-
dade para aplicar sanções, ou seja, transmitia-se a ideia de uma
mecânica de resolução dos problemas até ao limite das técnicas.
Esse limite, intransponível, ficava ligado não à qualidade das
técnicas de correcção mas à ausência de faculdades mentais do
incorrigível a quem restaria esperar pela expulsão. Podemos
dizer que se a doença do incorrigível traduzia o falhanço da
capacidade de integração das normas e das regras fora da racio-
nalidade, também a desorganização da ordem, onde todos se
integravam, podia conduzir à implosão de todo o projecto de
integração se o mesmo não fosse aceite como indispensável do
ponto de vista político. É por isto mesmo que a obediência e a
distribuição gradativa de responsabilidades materializava a ima-
gem do sucesso do sistema e da sua auto-regulação.

Notas
1
Sobre o conceito de governamentalidade, ver de Foucault, Dits et
Écrits (1976- 1979), Paris, Gallimard, 1978
2
Cf. Elias, Norbert, A Sociedade de Corte, Lisboa, Estampa, 1987;
Bourdieu, Pierre, especialmente, La Noblesse d’État, Paris, Minuit,
1989, O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989 ; Bourdieue, “L’habitus et
l’espace des styles de vie”, in La Distinction, Critique Sociale du Juge-
ment, Paris, Minuit, 1982, pp. 189-230; Legendre, L., “La royauté du
droit administratif”, in Revue Historique de Droit Français et Étranger,
Paris, Sirey, 1974, pp. 696-733.
3
Cf. Maturana e Varela, Autopoiesis and Cognition, the Realization of
the Living, Londres, Robert S. Cohen/Marx W. Wartofshy, 1980.
4
Ver, do ponto de vista político, os trabalhos de António Manuel
Hespanha sobre a temática do corporativismo e individualismo,
nomeadamente, Hespanha, “A representação da sociedade e do
Poder”, in História de Portugal, Lisboa. Círculo de Leitores/Estampa,
1993, vol. IV, pp. 121-155, texto em parceria com Ângela Barreto
Xavier (e bibliografia sobre o assunto).
5
De referir, sobretudo, as já clássicas obras sobre a loucura e as pri-
sões: Foucault, História da Loucura, S. Paulo, 1999, 6ª edição; Fou-
cault, Vigiar e Punir, Petrópolis, Editora Vozes, 1977; Foucault, Micro-
física do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979. Fundamental são os seus
cursos no Collège de France entre 1974 e 1975: Foucault, Les Anor-
maux, Paris, Gallimard/Seuil, 1999 (citam-se as obras em português
quando existem traduções).
6
Bourdieu, La domination masculine, Paris, Seuil, 1998, pp. 90-109
7
Alvará de 25 de Junho de 1760 com a publicação do Regimento.
8
Ver a propósito, Subtil, Jose, “No Crepúsculo do Corporativismo”, in
História de Portugal, coordenação de António Manuel Hespanha,
Lisboa, Editorial Estampa, 1997, pp. 415-424.
9
Sobre o assunto ver, em especial, Patrícia, Félix, Diogo Inácio de Pina
Manique, Intendant Général de la Police de la Cour et du Royaume de
Portugal (1780-1805): Pouvoir et Actions Face à la Criminalité,
Université de Marne La Vallée, maîtrise d’ Histoire Moderne, 1998
(policopiado).
10
Consultar a cronologia das diversas fases da Casa Pia em: Pinto,
José dos Santos, Casa Pia de Lisboa, “A Feliz Sementeira”, Lisboa, Casa
Pia de Lisboa, 1994 (2ª edição) com bibliografia sobre a instituição.
11
Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa (na fase final de inventário
e com bastante documentação para o século XIX). Os números apre-
sentados são ligeiramente inferiores aos colhidos por Patrícia Félix –
Félix, Diogo Inácio de Pina Manique, cit., pp. 129-130 –, pelo facto da
fonte que utilizou ter incluído o total de funcionários afectos às diver-
sas unidades orgânicas.
12
As ideias que os nossos primeiros liberais veicularam nas Cortes
Extraordinárias e nas Ordinárias durante o período vintista quanto às
críticas ao aparelho repressivo do Antigo Regime e as entusiásticas
adesões às novas ideias regeneradoras através do trabalho, da oração e
da educação não são de facto inovadoras. Como se pode constatar
essas ideias estão presentes na implantação da Casa Pia e no esforço
de articulação com a Intendência Geral da Polícia com uma antece-
dência de quase meio século.

200
13
Ver 1º Registo de Regulamentos (manuscrito), Arquivo Histórico da
Casa Pia.
14
Cf. Bourdieu, O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989; Bourdieu,
“L’habitus et l’espace des styles de vie”, in La Distinction, Critique
Sociale du Jugement, Paris, Minuit, 1982, pp. 189-230.

Abstract
O traço mais marcante de modernidade na Real Casa Pia de Lis-
boa foi a assunção política da arte para governar os homens através de
exercícios, instrumentos e dispositivos que perseguem a imposição de
comportamentos homólogos. A criação desta instituição mariana sob
a tutela da Intendência Geral da Polícia é um produto, bastante ela-
borado, de técnicas que, desde o início do século XVIII, potenciaram
a “ciência de polícia”, um conjunto de prescrições e orientações que
pretendiam governar os homens intervindo de forma permanente nas
suas condutas. Este texto tem por objectivo apresentar e comentar
alguns destes instrumentos disciplinares.
O inconsciente na filosofia de F. W. J. Schelling

Teresa Pedro

Quando Sigmund Freud escreve em 1919 o seu célebre tex-


to sobre das Unheimliche (o sinistro, o inquietante ou, como a
tradução francesa de Marie Bonaparte diz, a estranheza inquie-
tante – l`inquiétante étrangeté), uma definição deste termo
retém particularmente a sua atenção. Trata-se de uma formula-
ção de F. W. J. Schelling registada no Wörterbuch der Deutschen
Sprache de Daniel Sanders. A definição de Schelling diz o
seguinte: “Qualifica-se de unheimlich tudo aquilo que deveria
ficar... em segredo, escondido, e que se manifesta”1. A definição
de Schelling interessa especialmente Freud; ela relaciona os
termos de Geheimnis (segredo) e unheimlich, possibilitando o
estabelecimento de uma ligação entre heimlich (familiar) e
unheimlich (estranho).2 Todavia, a atenção que Freud concede a
esta referência não significa de modo algum que o seu texto se
inspire da definição de Schelling, ou que um paralelo possa ser
estabelecido entre aquilo que os dois autores designam com a
palavra Unheimlich. O que esta referência a Schelling nos revela
é que, tal como Freud, Schelling se encontra atento aos fenó-
menos que parecem irromper à superfície da vida psíquica
(mesmo se estes se inscrevem no contexto metafísico da sua
filosofia) e revelar algo que até aí se encontrava coberto.
É a partir desta definição – reveladora de uma determinada
concepção da filosofia – que colocamos a seguinte hipótese:
Schelling desenvolve uma concepção totalmente original do
inconsciente.3 Ela destaca-se, pela sua especificidade, na histó-

206
ria da filosofia ocidental. 4 Mais, na medida em que o incons-
ciente constitui um princípio que possui uma dinâmica própria,
independente da razão, ele não se reduz assim puramente ao
«não-consciente», ou seja, à ausência de consciência 5.
Se bem que com carácter subsidiário, é para nós importante
sublinhar o facto de esta concepção de Schelling emergir ape-
nas na sua «filosofia intermediária». 6 Por outro lado, ela está
ligada à conceptualização de uma ontologia da vontade que
transforma profundamente as aquisições transcendentais das
suas primeiras obras.7

***

A noção de uma actividade inconsciente subjacente à reali-


dade – e constituindo-a – encontra-se presente desde os escri-
tos de juventude. No seguimento dos passos de J. G. Fichte,
Schelling considera a realidade a partir da noção de actividade
(Tätigkeit). De que maneira, podemos perguntar-nos, Schelling
é levado a considerar a totalidade da realidade através da noção
de «actividade»? A resposta a esta questão está intimamente
relacionada com o projecto filosófico do próprio Schelling que,
como veremos, vai determinar a confrontação da sua filosofia
com fenómenos considerados como estranhos ou inquietantes
(unheimlich). O projecto de Schelling, que se encontra determi-
nado pelo contexto filosófico alemão pós-Kant, consiste numa
filosofia compreendida enquanto sistema da totalidade do real.
O sistema exige assim que de um primeiro princípio se possa
derivar toda a realidade. Esta função, segundo a filosofia da
juventude de Schelling, só poderá ser preenchida pela noção de
«eu», na medida em que ela compreende a identidade entre ser
e pensar. Ora, o «eu» é compreendido como um «tornar-se
objecto para si mesmo», e neste sentido ele é «actividade»,
distinguindo-se da noção de «objecto» que reenvia a algo de
estático.
É sobretudo no Sistema do idealismo transcendental de
1800 que Schelling constrói a seu pensamento em torno de
uma interacção entre uma actividade inconsciente8 que produz
a natureza (natura naturans) e uma actividade consciente que se
manifesta na vontade e que é condição de possibilidade de uma
filosofia prática.9 Destas duas actividades Schelling deriva o
mecanismo do «eu». A necessidade de admitir uma «actividade
inconsciente» no seio do «eu» procede do facto de haver na
consciência de si um desdobramento entre um sujeito e um
objecto (que é na realidade um sujeito-objecto, na medida em
que o sujeito se reconhece nele). Assim, Schelling admite, na
derivação da consciência de si e consequentemente de toda a
realidade, duas actividades10: uma que se dirige para o exterior,
uma actividade real (reelle), objectiva e limitável (begrenzbare) e
uma actividade ideal (ideelle), subjectiva, ilimitável (unbegrenz-
bare)11. A primeira é designada como «objecto puro», a segunda
como «sujeito puro», ou seja, um sujeito e um objecto só serão
possíveis através da interacção destas duas actividades12 .
Mas se a realidade é constituída a partir de duas actividades
– consciente e inconsciente13 – o problema surge de pensar a
condição de possibilidade de interacção destas. Esta questão
levará Schelling a considerar que o monismo é o único sistema
possível, mesmo se a admissão de um dualismo originário no
interior do monismo é necessário para compreender a «diferen-
ça».
É pois no contexto do monismo que Schelling considera no
Sistema de 1800 a actividade inconsciente como idêntica à
actividade consciente. Ela arriscaria, no caso contrário, de fazer

208
sucumbir o real numa dualidade ininteligível. A actividade
inconsciente obedece assim às próprias estruturas da razão,
enquanto a partir da obra de 1809, Investigações filosóficas
sobre a essência da liberdade humana, Schelling compreenderá
o «princípio inconsciente» (Schelling abandonará a designação
de «actividade inconsciente») como uma força que não reflecte
apenas a razão na produção inconsciente da natureza, mas
apresenta uma dinâmica própria. E, como veremos, será a mes-
ma questão da ininteligibilidade do real – relacionada desta vez
com o problema concomitante do fenómeno unheimlich – que
levará Schelling a reformular a sua resposta a esta questão.
De facto, na filosofia de juventude de Schelling, a identida-
de entre estas duas actividades encontra-se implícita no próprio
projecto de uma derivação da consciência através da natureza.
O projecto de génese material da consciência implica que o
telos da própria natureza, que é caracterizada através de uma
produtividade inconsciente, não é outro que a consciência de
si. Ao estabelecer uma génese da consciência a partir de uma
produtividade inconsciente, Schelling supõe que a natureza é
considerada como um «espírito invisível», o que significa que
ela obedece à lógica interna da razão. Se Schelling pode deduzir
a consciência a partir da natureza, é porque ele admite um
paralelismo estrutural entre as duas. A natureza, segundo o
Schelling das primeiras obras, não é mais do que uma inteligên-
cia adormecida 14.
Assim, o «inconsciente» reveste uma significação tripla: ao
mesmo tempo que ele caracteriza a produtividade inconsciente
e material da natureza, ele designa uma das actividades (a acti-
vidade ideal, o sujeito puro que precede a cisão entre sujeito e
objecto) enquanto constituintes da consciência e do real, e a
identidade entre as duas actividades consciente e inconsciente.
Se esta actividade ideal e produtividade material são desig-
nadas pelo conceito de «inconsciente» é porque elas constituem
a condição de possibilidade da própria consciência – e, nesse
sentido, não se podem tornar conscientes intrinsecamente. Esta
impossibilidade deve ser compreendida num sentido lógico: na
medida em que a actividade ideal constitui uma actividade
«limitante». Ora, como tudo o que se torna consciente compor-
ta uma limitação, esta actividade não se pode tornar conscien-
te, pois ela constitui a própria causa da limitação. Por fim, na
medida em que a consciência supõe sempre uma cisão entre ela
mesma e um objecto do qual ela é consciente e que a actividade
originária constitui a unidade daquilo que se divide na cons-
ciência, o «inconsciente», enquanto o outro nome da unidade
absoluta, não se pode tornar consciente.
Todavia, o génio artístico, que reúne, segundo Schelling,
dom natural e liberdade, na medida em que ele obedece a uma
tendência inconsciente de maneira consciente, constitui o úni-
co exemplo de uma identidade entre actividade inconsciente e
actividade consciente que são conscientes. Este exemplo de
Schelling revela que o «inconsciente» se encontra assim, no
Sistema, relacionado com a produção: por um lado ele predica a
produção material da natureza e, por outro, ele encontra-se
subjacente a toda a produção artística 15.
Como é que Schelling desenvolve, a partir destas aquisições,
uma concepção do «inconsciente» que, apesar de apresentar
uma racionalidade tal como a «actividade inconsciente» no
Sistema, é no entanto compreendido enquanto princípio que se
opõe à razão?
O passo decisivo nesta direcção, segundo nos parece, é dado
por Schelling quando ele interpreta explicitamente os dois
princípios constituintes do real (que designava com o nome de

210
«actividade» na sua filosofia transcendental) sob o prisma de
uma ontologia da vontade.16 Isso significa que o princípio
inconsciente (ou de contracção da matéria do ponto de vista da
filosofia da natureza) é compreendido como desejo (Sehnsucht)
inconsciente de existir, apetite (Begierde) voltado para o inte-
rior de si mesmo, enquanto o princípio de expansão ou cons-
ciente é um princípio de uma vontade consciente aberta ao
mundo exterior17 . Estes dois princípios são também nomeados
na obra de 1809 através do vocábulo «vontade»: o princípio
inconsciente é «vontade própria ou particular» (Eigenwille ou
Partikularwille), o princípio consciente é «vontade universal»
(Universalwille). A identidade destas duas vontades é salva-
guardada através da sua origem comum e, numa certa medida,
elas convergem para o mesmo objectivo. Tentaremos responder
mais adiante à questão de saber em que medida os dois princí-
pios constituintes do real, que são considerados em 1809, na
sua divisão mais geral, enquanto «fundo» (Grund)18 e «existên-
cia» (Existenz), e que retomam, numa certa medida, a distinção
entre «inconsciente» e «consciência», se podem opor.
Esta reformulação dos dois princípios do real transforma não
só a própria concepção da vontade, que antes era considerada
por Schelling sobretudo como relevando do domínio da cons-
ciência19, mas o próprio conceito de «inconsciente». O princí-
pio inconsciente enquanto vontade apresenta uma especifici-
dade, e o seu telos já não é puramente idêntico ao da razão.
A seguinte objecção poderia no entanto apresentar-se: já no
Sistema do idealismo transcendental as duas actividades eram
compreendidas através de um conflito de direcções e, por outro
lado, os dois princípios apenas na «filosofia intermediária»
retomam esta oposição. Poderíamos responder que a oposição
de direcções não implicava, no Sistema, a emergência de um
certo tipo de fenómenos unheimlich, e que essa oposição era
necessária ao próprio mecanismo do «eu». Em 1809, os dois
princípios continuam, sem dúvida, a ser compreendidos através
da oposição de direcções, facto que é necessário para pensar a
realidade. Todavia, o facto de o princípio inconsciente ser
compreendido através da noção de vontade implica que este
comporta uma vontade própria, que não é apenas direcção
oposta ao princípio de expansão, mas constitui um desejo de
existir e de constituir a totalidade da realidade. Ora, isso vai
implicar que um novo tipo de fenómenos emerge no seio do
Sistema: o princípio inconsciente, na medida em que ele é von-
tade, pode não preencher a sua função de direcção oposta à
expansão e necessária à existência, mas opor-se mesmo à esta
última.
A questão surge de saber que questão filosófica terá condu-
zido Schelling a esta reformulação dos dois princípios consti-
tuintes do real. Segundo pensamos poder mostrar, é o problema
da inteligibilidade, que já tinha levado Schelling a adoptar a
solução monista, que o conduz, na sua «filosofia intermediária»,
a confrontar-se com fenómenos que põe de forma particular-
mente premente a questão da racionalidade do real.
Assim, a confrontação da filosofia de Schelling com fenó-
menos que, segundo o autor, parecem à primeira vista furtar-se
ao exame da razão, nomeadamente o mal e a loucura, é exigida
– e de forma paradoxal – pela própria concepção da filosofia
enquanto sistema. Ao respeitar a exigência fundamental de
todo sistema racional de não deixar inexplicável nenhum ele-
mento que possa pôr assim em causa esse sistema o pensamento
de Schelling abre-se à possibilidade de um fundamento do sis-
tema que lhe escapa, na medida em que ele não se reabsorve
totalmente nele. 20

212
De facto, os fenómenos do mal e da loucura colocam um
problema à razão tal que ela é compreendida pelos filósofos do
século XIX. 21 A razão de Schelling e de Hegel distingue-se de
uma razão «mecanicista», ou seja, de uma razão determinada
puramente pela relação de causa a efeito. Nessa medida, a
explicação de fenómenos não passa pela atribuição de uma
causa. A razão implica sobretudo uma organização orgânica do
real, onde todos os seus membros concorrem para o mesmo
telos. Assim, uma explicação do mal e da loucura que atribua a
estes fenómenos uma causa numa cadeia de causas e efeitos não
pode de modo algum corresponder a uma explicação racional: a
estes tem que ser atribuída uma função no sistema enquanto
etapa necessária do próprio desenvolvimento da razão.
A loucura e o mal constituem, por isso, na filosofia de Schel-
ling, dois fenómenos privilegiados. Eles manifestam o princípio
inconsciente que se encontra subjacente a toda a realidade
enquanto seu fundamento.22
É este fundamento irredutível à razão que ao manifestar-se
levará Schelling a considerar o fenómeno qualificado de inquie-
tante, estranho (unheimlich). 23 Que este termo designe um cer-
to tipo de fenómenos encontra-se implicado na própria defini-
ção de Schelling, na medida em que ele supõe algo que aparece,
algo que se manifesta no campo da experiência (mesmo se ele
não se reduz a ela). A necessidade impõe-se assim de um ques-
tionamento transcendental a este tipo de fenómenos: quais são
as suas condições de possibilidade? Que função exerce cada
princípio na constituição ontológica do real?
O princípio do fundo (Grund) possui uma função bem deli-
mitada no sistema: ele constitui a base ou fundamento da exis-
tência, na medida em toda a individualidade implica uma con-
tracção num ponto determinado, sem a qual esta não poderia
existir.24 O princípio de expansão dissolver-se-ia sem a «solidifi-
cação» operada pela contracção. É neste sentido que este prin-
cípio é nomeado por Schelling de «fundamento» (Grund).
Se esta dualidade de princípios se encontra em todos os
seres e os constitui, ela não se encontra presente evidentemente
da mesma maneira em todos eles. A noção de potência (Potenz)
desenvolvida por Schelling responde ao problema que se coloca
ao filósofo de pensar os vários degraus de relação que se estabe-
lecem entre estas forças. No interior de cada força há um des-
dobramento dos dois princípios. Dessa forma nunca encontra-
mos um «puro consciente», nem um «puro inconsciente», mas
as duas tendências sob o expoente (domínio) de um deles.
Assim, a consciência, que é pensada através estas duas forças,
reúne-as sobre a forma dominante do princípio consciente. Se o
princípio inconsciente é identificado numa das suas potências
mais baixas com a matéria ou princípio corporal, ele torna-se,
enquanto força constituinte da consciência, num princípio que
decerto é corporal, mas implica uma significação abrangente do
corporal que não se reduz à sua materialidade ou sensibilidade
primária, pois as forças que têm a sua origem no corpo consti-
tuem elas mesmas a vida do espírito humano. Este princípio
inconsciente, que possui uma dinâmica própria e que investe a
vida psíquica consciente, constitui o fundamento desta. Ele
encontra-se numa fronteira entre o somático e o psíquico.
Estes princípios são, como já tivemos oportunidade de evo-
car, interpretados a partir de uma ontologia da vontade. Apesar
do princípio inconsciente ser caracterizado pelo desejo dirigido
para a ipseidade, este comporta também um desejo que investe
o exterior. É neste sentido que ele se inscreve na mesma direc-
ção que o princípio da vontade universal. Todavia, se este prin-
cípio de contracção serve os «desígnios» da razão, subsiste sem-

214
pre a possibilidade de este se afirmar contra ela, como se verifi-
ca no caso dos fenómenos do mal e da loucura. Schelling tenta
recuperar estes fenómenos numa progressão necessária da
razão. 25 Mas apenas na medida em que ele inscreve a possibili-
dade do mal e da loucura numa etapa necessária do desenvol-
vimento da razão26 . Porém, esta possibilidade escapa ao mesmo
tempo a esta progressão, na medida em que ela é qualificada de
algo que «não deve ser».
De facto, os fenómenos do mal e da loucura revelam que o
não deve ser é possível, no sentido que o fundo nem sempre
segue os desígnios da razão. De facto, a inversão de funções é
compreendida por Schelling através da noção de dever ser, que
não comporta neste contexto uma dimensão estritamente ética,
mas implica sobretudo uma concepção do ser a partir da função
que este ocupa no cosmos, e que constitui a determinação de
cada elemento a partir do lugar que lhe cabe no sistema. Assim,
o que distingue estes fenómenos dos restantes é o dever. Os
fenómenos qualificados de unheimlich «não devem ser». A
expressão de «não dever ser» implica que o princípio incons-
ciente exerce uma função que não lhe cabe na economia do
sistema: se este princípio deixa de servir de base e investe a
totalidade do fenómeno, como se verifica no mal ou na loucura,
a unidade constituída dissolve-se nestas figuras.
O «deve ser» de Schelling supõe assim uma certa estrutura
ontológica. Tal implica uma hierarquia na organização das for-
ças constitutivas da existência. Esta hierarquia pode ser subver-
tida. Mas o facto surpreendente é este: a possibilidade de algo
não exercer a sua função não se encontra no sistema à escala de
um indivíduo, mas à escala da totalidade do sistema: um dos
dois princípios da realidade pode de facto não exercer a sua
função.27
Estes fenómenos – a loucura e o mal – revelam que o «prin-
cípio inconsciente» não é apenas desejo de existir enquanto
individualidade, mas pode manifestar-se à superfície da vida
psíquica, enquanto regressão e tendência à auto-destruição.
Assim, ao proceder nas Idades do Mundo, a uma derivação da
consciência a partir da inconsciência28 , Schelling evoca uma
etapa nesta progressão que ele nomeia «loucura».29 Ela corres-
ponde a um estado de conflito extremo entre as duas forças
constitutivas da existência, conflito que se perpetua num movi-
mento cíclico onde nenhuma progressão pode subsistir30 . Schel-
ling designa este movimento de «roda da geração» e como uma
«loucura de auto-dilaceração selvagem»31 . Este movimento
consiste numa tendência a retornar a um estado anterior, uma
repetição do mesmo. Schelling não identifica expressamente a
regressão à loucura, mas esta comporta sem dúvida um carácter
repetitivo, de regressão à origem, à natureza. A loucura
intervém no momento em que a natureza se consome num
movimento de repetição do mesmo.32
Esta concepção vai possibilitar uma compreensão renovada
da génese da consciência de si. De facto, segundo cremos, a
génese da consciência de si segundo o Schelling da «filosofia
intermediária» reside num desejo de desdobramento, inerente à
natureza. O prazer da existência desdobra-se no prazer de se
saber existente. De facto, o princípio inconsciente, determinado
enquanto desejo, investe toda a consciência, e constitui a base
a partir da qual a consciência pode emergir. A consciência her-
da, por assim dizer, de todo um passado atemporal que o
inconsciente e o corpo implicam. 33 E é o fenómeno da loucura
que revela essa verdade da razão, pois ela manifesta aquilo que
se encontra velado na razão: ela manifesta à razão as forças
primitivas que a constituem.34

216
Para concluir, podemos indicar que estas análises de Schel-
ling só são possíveis no contexto de uma certa interpretação da
tarefa própria à filosofia. A filosofia é considerada por Schelling
como um inquérito sobre as origens (Ursprung). A investigação
das origens, na medida em que ela se distingue de um questio-
nar dos primeiros princípios imutáveis de todo o real, implica
uma concepção genealógica da filosofia. Esta história é, e aqui
reside o ponto fundamental que constitui a originalidade de
Schelling face a Fichte, do qual o primeiro se inspirou, é uma
história que remonta para além da consciência e tenta reconsti-
tuir o seu «passado imemorial», o inconsciente que ela pressu-
põe. 35 É assim que o método filosófico de Schelling depende e
condiciona a relevância de fenómenos como a loucura ou o mal
para a reflexão.
Assim, é a própria questão filosófica que traz consigo a
necessidade de considerar tais fenómenos, onde algo que per-
turba uma certa organização do real, irrompe. O «inconsciente»
de Schelling permite-lhe renovar com a questão grega do
espanto, ele constitui antes de mais a possibilidade do aconte-
cimento.

Notas
1
Tradução da autora do original alemão: “unheimlich nennt man
alles, was im Geheimniβ, im Verborgen, [...] bleiben sollte und hevor-
getreten ist”. Esta frase encontra-se em Schelling, Filosofia da Mitolo-
gia (Philosophie der Mythologie), in Sämtliche Werke (adiante abreviado
com a sigla SW), XII, p. 649.
2
A ligação entre os dois termos, que num determinado contexto se
podem tornar sinónimos, será feita por Freud através da noção de
recalcamento, que segundo o autor esclarece a própria definição de
Schelling: o retorno daquilo que foi recalcado explica de que maneira
o que é familiar se pode tornar estranho. Sobre a utilização da citação
de Schelling por Freud cf. Assoun, P.-L., Freud, la philosophie et les
philosophes, Paris, PUF (Quadrige), 1976, pp. 178-181.
3
Schelling não utiliza frequentemente o vocábulo «inconsciente»
enquanto substantivo, mas existem todavia várias ocorrências desta
utilização. No entanto, convém atirar a atenção desde já para o facto
de Schelling não considerar o «inconsciente» como uma substância,
mas como um princípio de constituição ontológica compreendido
através da noção de força e que é nomeado «inconsciente» na medida
em que a «inconsciência» constitui uma das suas caracterizações fun-
damentais, como veremos mais adiante.
4
Eduard von Hartmann, na sua Filosofia do Inconsciente (Philosophie
des Unbewussten), destaca a concepção de Schelling, da qual ele se
aproxima particularmente, ao percorrer as concepções do inconscien-
te fornecidas pelos vários filósofos. Cf. Eduard von Hartmann`s
Ausgewählte Werke, Band VII: Philosophie des Unbewussten, Leipzig,
Hermann Haacke, p.20.
5
Leibniz é frequentement visto como o primeiro filósofo ocidental a
conceber claramente a ideia de uma actividade mental inconsciente
através da sua teoria das «percepções indistintas». Todavia, é apenas
com a filosofia de Schelling e, numa certa medida, com o pensamento
de Fichte, que o «inconsciente» se articula com as noções de instinto
e de vontade.
6
Os comentadores de Schelling divisem a obra do filósofo em vários
períodos que variam segundo os autores. É possível no entanto apre-
sentar a seguinte divisão que reúne o consenso da maior parte dos
comentadores: a filosofia da juventude compreende as obras escritas
até 1809, a «filosofia intermediária» cobre o período que se estende de
1809 a 1827 e a «filosofia tardia» corresponde ao período posterior a
esta data.
7
Jean-Marie, Vaysse considera que o «inconsciente da produção» na
filosofia de Schelling é percursor de uma problematização da vontade
enquanto categoria do inconsciente nas filosofias de Schopenhauer e
de Nietzsche. (Vaysse, Jean-Marie, L`inconscient des modernes. Essai
sur l`origine métaphysique de la psychanalyse, Paris, Gallimard, 1999, p.
252 e 286).
8
Se o adjectivo «inconsciente» faz a sua aparição no vocabulário
filosófico com a filosofia de Fichte para qualificar um certo tipo de
actividade, é porque todo o real é pensado a partir da consciência. Na

218
medida em que esta constitui um dos pontos centrais da filosofia em
finais do século XVIII na Alemanha, aquilo que não pode vir à cons-
ciência, aquilo que é «inconsciente» adquire assim, facto paradoxal,
uma importância fundamental. Neste contexto, «inconsciente» deixa
de designar simplesmente aquilo que não é consciente mas que se
poderia tornar consciente, para qualificar aquilo que não se pode tor-
nar consciente intrinsecamente, ou seja, devido à sua estrutura pró-
pria. Este ponto tornar-se-á mais claro adiante.
9
Schelling, Sistema do idealismo transcendental (System des transzenden-
talen Idealismus), SW III, p. 349. Todavia, desde a sua filosofia da
natureza de 1797 a 1799, Schelling procede já a uma derivação da
consciência a partir da produtividade inconsciente da natureza.
10
Schelling elabora uma concepção de duas actividades constituintes
da realidade a partir dos dois princípios da construção da matéria
admitidos por Kant nos Princípios metafísicos da ciência da natureza
(Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft), ou seja, a força
de contracção e a força de expansão da matéria e a partir da teoria
fichteana das duas actividades (Tätigkeiten) consciente e inconscien-
te, através das quais Fichte deduz a consciência e todas as categorias
na Doutrina da Ciência.
11
Schelling, Sistema do idealismo transcendental, SW III, p. 398.
12
O projecto de Schelling de uma derivação do mecanismo do «eu» a
partir de duas actividades necessita de ser explicitado. O conflito
originário destas duas actividades relaciona-se com a sua direcção. No
«eu» existe uma tendência a dirigir-se ao exterior numa produção do
infinito, que só pode ser considerada enquanto tal se ela se distingue
de uma actividade dirigida para o interior. Este antagonismo é impli-
cado na consciência de si e é assim que existe uma separação entre o
interior e o exterior no «eu». Para esta questão cf. Schelling, Sistema,
SW III, pp. 391-392. Este antagonismo próprio à consciência de si
reveste assim neste contexto uma significação transcendental que se
encontrará transformada, posteriormente, como veremos, através
duma ontologia da vontade.
13
Odo Marquard chamou a atenção para certos paralelos que a este
propósito podem ser estabelecidos entre Schelling e Freud. Não se
trata apenas, segundo este autor, de aproximar a teoria das duas ten-
dências (Tendenzen) em Schelling da teoria das duas tendências freu-
diana enquanto sistemas do consciente et do inconsciente, mas de
estabelecer uma comparação na própria compreensão que cada autor
fornece da tendência inconsciente. De facto, O. Marquard considera
que ambos os autores interpretam a tendência inconsciente como
uma pulsão indefinida, sem forma, “livremente móbil”. Por seu lado, a
tendência consciente é caracterizada através do trabalho de inibição e
de recalcamento (Verdrängung). Cf. Marquard, O., Schwierigkeiten mit
der Geschichtsphilosophie, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973,
pp. 88-89. Nós poderíamos adicionar à lista de O. Marquard o facto
dos processos inconscientes serem compreendidos como atemporais
segundo os dois autores. Cf. Freud, Para lá do princípio do prazer, GW,
XIII, pp. 27-28. No entanto, este tipo de comparação entre Schelling
e Freud apresenta vários defeitos, na medida em que ela se baseia
numa compreensão geral dos elementos citados sem ter em conta o
contexto da metafísica schellinguiana e da psicanálise de Freud, no
qual estes elementos adquirem um significado específico. Para uma
relação entre os dois autores através da obra de Mesmer, cf. Tilliette,
X., Schelling. Une philosophie en devenir, tome I, Vrin, Paris, 1969, pp.
602-603.
14
Segundo D. Snow – Snow, «The Role of the Unconscious in
Schelling`s System of Transcendental Idealism» in Idealistic Studies,
vol. XIX (1989), p. 241 – , Schelling explora neste texto a possibilida-
de do inconsciente ser intrinsecamente irracional. Esta posição pare-
ce-nos ser problemática.
15
Todavia, convém assinalar que Schelling considera também outro
aspecto do «inconsciente» que se manifesta na história. De facto o
«inconsciente» designa, na parte prática do Sistema, a necessidade
(providência) que obra na história, concepção que inspirou a teoria
hegeliana da história. Baseando-se na significação que o «inconscien-
te» assume na parte prática do Sistema, F. Scribner tentou mostrar que
Schelling desenvolve uma «ética do inconsciente», ou seja, que o
inconsciente intervém na explicação da ética, tal como, segundo o
autor, para Freud e Lacan. Todavia, parece-me que o facto de Schel-
ling admitir que o inconsciente e o consciente concorrem para os
mesmos objectivos distingue radicalmente o projecto de Schelling
daquele de Freud ou de Lacan. Cf. Scribner, F., «Towards an Ethic of
the Unconscious»: Schelling`s Critique of ´Duty`in the System of
1800 » in Asmuth, Denker e Vater (ed.), Schelling. Zwischen Fichte
und Hegel. Between Fichte and Hegel, Amsterdam/Philadelphia, B. R.
Grüner, 2000, pp. 161-177.
16
É sobretudo a partir das Investigações filosóficas sobre a essência da
liberdade humana que Schelling desenvolve uma ontologia da vontade.
Para este ponto cf. Heidegger, M., Schellings Abhandlung über das

220
Wesen der menschlichen Freiheit (1809), Tübingen, Max Niemeyer
Verlag, 1971.
17
Estes dois princípios, que constituem todos os fenómenos no inte-
rior do sistema, continuam a ser compreendidos num contexto dinâ-
mico, não implicando assim nenhuma substancialização.
18
Schelling explicou-se sobre a utilização deste termo numa carta a
Georgii de 18 de Julho de 1810, onde ele distingue fundo da noção de
causa e o relaciona com os termos de base e fundamento.
19
Todavia, Schelling utiliza por vezes o vocábulo «vontade» numa
acepção não relacionada com a consciência, o que anuncia já os
desenvolvimentos posteriores da sua filosofia.
20
Esta exigência do sistema de Schelling é partilhada por Hegel – cf.
Hegel, Enciclopédia (Enzyklopädie), § 379 –, mas conduz a soluções
diferentes para os dois autores.
21
Esta referência ao mal e à loucura como constituindo um certo tipo
de fenómenos não implica que a loucura seja compreendida na filoso-
fia de Schelling como um fenómeno de natureza moral. De facto,
como Heidegger tentou mostrar no seu curso de 1936 dedicado às
Investigações filosóficas sobre a liberdade humana de Schelling, o mal na
filosofia schellinguiana não reveste apenas conotações morais, mas
possui uma relevância metafísica.
22
A ideia de uma «elevação do fundo» no fenómeno do mal foi
desenvolvida por G. Deleuze em Différence et Répétition, – Deleuze,
Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p.198 –, onde ele cita as
Investigações Filosóficas sobre a essência da liberdade humana de Schel-
ling.
23
Cf. Schelling, Conferências de Stuttgart (Stuttgarterprivatvorlesungen),
SW, VII, 441. Esta afirmação necessita no entanto de ser matizada,
pois Schelling parece afirmar o contrário noutras passagens do texto.
24
Para esta questão cf. Morujão, Carlos, Schelling e o problema da indi-
viduação (1792-1809), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2004.
25
Este facto constitui uma das ambiguidades da filosofia de Schelling
e a razão pela qual este princípio não é completamente reabsorvido no
sistema da razão. Este princípio inconsciente, ao mesmo tempo que se
opõe ao princípio consciente complementa-o, exactamente pelo moti-
vo que ele lhe oferece uma resistência.
26
Em que medida estes fenómenos se podem integrar no sistema? Nas
Investigações Filosóficas sobre a essência da liberdade humana, ao abor-
dar a questão de saber se um sistema da liberdade, subente ndido, um
discurso racional que reconhece a realidade da liberdade é possível,
Schelling recusa reduzir ou compreender o mal como privação. Inspi-
rando-se de Kant, Schelling compreende os fenómenos do mal e da
loucura através da noção de desordem, de irregularidade, de dis –
harmonia. Assim, aquilo que se encontra em jogo é de tentar forjar
uma conceptualidade da razão que possa dar conta destes fenómenos.
A tentativa de Schelling para salvar o sistema face ao fenómeno do
mal, que não cabe aqui analisar, apresenta vários problemas. Num
artigo da mesma autora atirámos a atenção para as dificuldades que as
respostas de Schelling a este problema põe. Cf. Pedro, T., «Freiheit
und Böse. Eine Gegenüberstellung zwischen Fichtes früher Sittenlehre
und Schellings Freiheitsschrift» in Fichte-Studien, Bd. 28 (a ser
publicado brevemente).
27
De facto, Schelling utiliza expressões como o «princípio universal
do mal», mesmo se este só se efectiva através da liberdade do homem.
28
Schelling, Idades do Mundo (Weltalter) in Schellings Werke,
Nachlassband, p. 135 (versão de 1813). Trata-se de uma derivação a
um nível metafísico, mas a identidade de estrutura de todo o ser e
consciência segundo Schelling, permite aqui evocar a análise do filó-
sofo.
29
Segundo Schelling, o sujeito e a personalidade não constituem
factos primitivos, mas são antes algo de construído. A personalidade
assim como a subjectividade só se constituem no horizonte de uma
ultrapassagem de um estado pré-subjectivo, um estado caótico,
inconsciente. Na descrição da «ultrapassagem» alguns autores viram
indícios da teoria do recalcamento de Freud. Para este ponto cf. Vays-
se, L`inconscient des modernes, cit., pp. 264-265.
30
Mas a loucura não constitui apenas uma etapa, ela constitui uma
ameaça constante, na medida em que a razão alberga em si permanen-
temente a possibilidade da sua actualização (cf. SW, VIII, p. 338).
Segundo Schelling é possível explicar esta irrupção ou ela é produto
de um acaso? Da etiologia da loucura o filósofo fornece uma explica-
ção que faz intervir várias suposições metafísicas e que não apresenta
assim o interesse que nós podemos encontrar noutras análises schel-
linguianas. A ideia principal vai todavia na mesma direcção daquilo
que tivemos oportunidade de abordar: a loucura tem a sua origem na
quebra de uma unidade, no interior da qual as várias forças (Schelling
fala de Potenzen) constitutivas do espírito humano não desempenham
o seu papel específico. A loucura é provocada por uma alteração da
relação do espírito com ele mesmo. A loucura é assim duma certa

222
maneira pensada como uma «falha do espírito humano», mesmo se
nela, ao contrário da «idiotice» segundo Schelling, todas as faculdades
do espírito humano funcionam. Ela revela no entanto, enquanto
«falha», a imensidade da fragilidade dessa mesma razão. Um exemplo
de uma utilização contemporânea da análise de Schelling encontra-se
em Maldiney, H., Penser l`homme et la folie, Grenoble, Editions Jérôme
Millon, 1991, p. 16.
31
Schelling, Idades do Mundo (Weltalter), in Schellings Werke,
Nachlassband, p. 42 (versão de 1811). Schelling estabelece também
uma relação entre a regressão e o mal. Cf. Idades do Mundo, Schellings
Werke, Nachlassband, p.54 (versão de 1811). Cf. também F. W. J.
Schelling, Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana
(Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen
Freiheit), trad. Carlos Morujão, Lisboa, Edições 70, p.82 (SW, VII,
374): «[…] ; porque todo o Mal deseja regressar ao Caos, quer dizer,
àquela situação em que o centro originário não estava ainda subordi-
nado à luz ; é um borbulhar do centro da nostalgia, privada ainda de
entendimento. »
32
Cf. SW, VIII, p.260. Este regresso é um retorno a um estado ante-
rior da consciência, uma tendência à repetição que não deixa de lem-
brar aquela analisada por Freud no seu livro contemporâneo de Das
Unheimliche, o Para lá do princípio de prazer, onde o autor reconhece
explicitamente o caracter regressivo da pulsão.
33
É aqui que reside o sentido do deslocamento conceptual que Schel-
ling opera na concepção fichteana e hegeliana da consciência. Em vez
de uma concepção que determina a consciência através de uma rela-
ção sujeito-objecto que Schelling adopta nos seus primeiros escritos e
que é de influência fichteana, o filósofo vai considerá-la a partir de
1809 através de uma partição entre um princípio racional e um prin-
cípio irracional (Cf. SW, VII, 425.). Isso significa que a consciência na
sua constituição íntima é investida pelo princípio da irracionalidade.
Que esta concepção se confunda de uma certa maneira com a primei-
ra distinção sujeito-objecto é um facto a que não se pode negar uma
certa verdade, mas ela vai para além desta, pois trata-se no segundo
caso de duas forças que não são puramente representativas. Esta con-
sideração de Schelling releva um dos aspectos fundamentais da sub-
jectividade que contém no seu seio o princípio da irracionalidade.
Sobre a questão da irracionalidade na primeira filosofia de Schelling
que será desenvolvida na sua «filosofia tardia» cf. G. Blanchard, Die
Vernunft und das Irrationale. Die Grundlagen von Schellings
Spätphilosophie im «System des transzendentalen Idealismus» und der
«Indentitätsphilosophie», Franfurt/Main, Haag + Herchen Verlag,
1979.
34
Schelling continuará a desenvolver a noção de «inconsciente» na
sua «filosofia tardia» enquanto «passado transcendental mitológico».
A este propósito, J.-M. Vaysse considera que Schelling interpreta um
«inconsciente» como uma instância de ordem simbólica. Cf. Vaysse,
L`inconscient des modernes, cit., p.420. A discussão desta concepção
ultrapassaria o quadro deste artigo.
35
É justamente este o sentido da comparação frequente que Schelling
estabelece entre o filósofo e o historiador, que não deixa de nos lem-
brar a figura do psicanalista enquanto arqueólogo evocada por Freud.
Cf. Schelling, Idades do Mundo e o texto das Cinco Psicanálises de S.
Freud.

224
A obra de Foucault

Entrevista com Antonio Negri

Questão 1: As análises de Foucault são actuais para compreen-


der o movimento das sociedades? Em que domínios lhe parece que
deveriam ser renovadas, reajustadas, prolongadas?
Resposta 1: A obra de Foucault é uma estranha máquina,
não permite na realidade pensar a história mais que como histó-
ria presente. Provavelmente, uma boa parte do que Foucault
escreveu (Deleuze assinalou-o muito justamente) deveria ser
hoje rescrito. O que é surpreendente – e tocante –, é que não
deixa jamais de procurar, faz aproximações, desconstrói, formu-
la hipóteses, imagina, constrói analogias e conta fábulas, lança
conceitos, relança-os ou modifica-os... É um pensamento de
uma inventividade formidável. Mas isto não é o essencial: eu
creio que o seu método é o fundamental, porque lhe permite
estudar e descrever ao mesmo tempo o movimento do passado
ao presente e o do presente ao porvir. É um método de transi-
ção onde o presente representa o centro. Foucault está aí, no
entre-dois, nem no passado do qual faz a arqueologia, nem no
futuro que esboça por vezes –«como um rosto sobre a areia no
limite do mar»– a imagem. É a partir do presente que é possível
distinguir os outros tempos. Frequentemente tem sido censura-
do a Foucault a legitimidade científica das suas periodizações:
compreende-se aos historiadores, mas ao mesmo tempo eu teria
vontade de dizer que esse não é um verdadeiro problema: Fou-
cault está aí onde se instala o questionamento, sempre a partir
do seu próprio tempo.
A análise histórica, com Foucault, devém, então uma acção,
o conhecimento do passado uma genealogia, a perspectiva porvir
um dispositivo. Para os que vêm do marxismo militante dos anos
60 (e não das tradições dogmáticas caricaturais da Segunda e
da Terceira Internacionais), o ponto de vista de Foucault é
naturalmente percebido como absolutamente legítimo, corres-
ponde à percepção do acontecimento, das lutas, e da alegria de
correr riscos fora de qualquer necessidade e qualquer teleologia
pre-estabelecida. No pensamento de Foucault o marxismo é
totalmente desmantelado, seja do ponto de vista da análise das
relações de poder, ou do da teleologia histórica, da recusa do
historicismo ou de um certo positivismo; mas ao mesmo tempo
o marxismo é igualmente reinventado e remodelado desde o
ponto de vista dos movimentos e das lutas, ou seja, na realida-
de, dos sujeitos destes movimentos e destas lutas: porque conhe-
cer é produzir subjectividade.
Mas antes de ir mais longe, eu queria voltar atrás por um
instante. É corrente distinguir três Foucault: até ao fim dos
anos 60, ele estuda a emergência do discurso das ciências
humanas, ou seja, o que ele chama uma arqueologia do saber e
da sua economia desde há três séculos e, ao mesmo tempo, uma
grande leitura da modernidade ocidental através do conceito de
episteme; depois, nos anos 70, as investigações sobre as relações
entre os saberes e os poderes, sobre a aparição das disciplinas,
do controlo e dos biopoderes, da norma e da biopolítica, ou
seja, uma analítica geral do poder e, ao mesmo tempo, uma
tentativa de fazer a história do desenvolvimento do conceito de
soberania desde a sua emergência no pensamento político até
aos nossos dias; e, por fim, nos anos 80, a análise dos processos
de subjectivação sob a dupla perspectiva da relação estética a si
e da relação política aos outros – mas sem dúvida que se trata

226
aqui da mesma interrogação: o cruzamento da estética de si e
do cuidado político, isto que também se denomina a ética.
Na realidade, eu não sei se podemos distinguir três Foucault,
nem sequer dois, uma vez que antes da publicação dos Dits et
Écrits e dos cursos no Collège de France, tinha-se verdadeira-
mente a tendência para não considerar o último Foucault.
Parece-me com efeito que os três temas sobre os quais a aten-
ção foucaultiana se dirigiu são perfeitamente contínuos e coe-
rentes – coerentes no sentido em que formam uma produção
teórica unitária e contínua.
O que muda é provavelmente a especificidade das condições
históricas e as necessidades políticas com as quais Foucault é
confrontado e que determinam absolutamente os campos pelos
quais se interessa. Desde este ponto de vista, assumir a perspec-
tiva foucaultiana é também – digo-lhes com as minhas palavras,
espero apenas que possam ser também as de Foucault – pôr um
estilo de pensamento (aquele que se reconhecia na genealogia
do presente, aquele que não cessa de relançar quando fala de
produção de subjectividade) em contacto com uma situação
histórica dada. E esta situação histórica dada é uma realidade
histórica das relações de poder. Foucault repete-o muitas vezes,
quando fala da sua paixão pelos arquivos, e do facto de que a
emoção da sua leitura vem de que estes nos contam fragmentos
de existência: a existência, passada ou presente, confiada por
papéis amarelados, ou vivida dia a dia, é sempre um encontro
com o poder – não é mais que isto, mas é enorme.
Quando Foucault se põe a trabalhar sobre a passagem entre
o fim do século XVII e o princípio do século XIX, quero dizer, a
partir de Surveiller et Punir, encontra-se frente a uma dimensão
específica das relações de poder, dos dispositivos e das estraté-
gias que esta implica, quero dizer, na realidade frente a um tipo
de relações de poder totalmente articulado sobre o desenvolvi-
mento do capitalismo. Este exige um investimento total da vida
na medida em que a constituição de uma força de trabalho, por
uma parte, e as exigências de rentabilidade da produção, por
outra, o solicitam. O poder deveio biopoder. Agora, é verdade
que se Foucault utiliza à continuação o modelo dos biopoderes
para procurar fazer uma ontologia crítica do presente, vocês
procurarão em vão nas análises consagradas ao desenvolvimen-
to do capitalismo a determinação da passagem do Welfarestate à
crise deste, da organização fordista à organização pós-fordista
do trabalho, dos princípios keynesianos aos da teoria neoliberal
da macro-economia. Mas é verdade também que nesta simples
definição da passagem do regime da disciplina ao do controlo,
no princípio do século XIX, já se pode compreender que o pós-
moderno não representa um retrato do Estado da dominação
sobre o trabalho social senão um aperfeiçoamento do seu con-
trolo sobre a vida.
Na realidade, esta intuição encontra-se em Foucault desen-
volvida por todo o lado, como se a análise da passagem da era
pós-industrial constituísse o elemento central do seu pensamen-
to, ainda que ele não fale jamais disto directamente. O projecto
de uma genealogia do presente, que estrutura inteiramente a
sua relação com o passado desde o princípio dos anos 70, e a
ideia de uma produção de subjectividade que permite, desde o
interior do poder, modificar e fender o funcionamento tanto
como para criar novas subjectividades, são impensáveis fora da
determinação material deste presente e da transição que encar-
nou. Da passagem da definição da política moderna à da biopolítica
pós-moderna, eis aqui de onde Foucault teve, creio, a intuição
extraordinária.

228
Em Foucault, o conceito de política – e o da acção num
contexto biopolítico – difere radicalmente das conclusões de
Max Weber e dos seus epígonos do século XIX, tanto como das
concepções modernas do poder (Kelsen, Schmitt, etc.). Fou-
cault provavelmente havia sido sensível às suas teses – mas
tenho a impressão de que a partir de 68 o quadro muda radi-
calmente, e Foucault não pode deixar de o ter em conta.
Para nós, que continuamos a utilizar Foucault apesar dele,
para além dele – e é um presente que nos fez de uma generosi-
dade extraordinária: Foucault teve o pensamento generoso, o
que é assaz raro como para que se insista –, não há nada por
renovar nem por corrigir nas suas teorizações: basta prolongar
as suas intuições sobre a produção de subjectividade e sobre as
suas implicações.
Quando Foucault, Guattari e Deleuze sustêm por exemplo
as lutas sobre a questão presidiária carcerária nos anos 70, cons-
tróem uma nova relação entre o saber e o poder: esta relação
não diz respeito somente a situação nas prisões mas também o
conjunto de situações onde se podem desenvolver, sobre o
mesmo modelo, espaços de liberdade, pequenas estratégias de
torção do poder desde o interior do poder, a reconquista da sua
própria subjectividade individual e colectiva, a invenção de
novas formas de comunidade de vida e de luta – brevemente: o
que nós chamamos subversão.
Foucault não é somente grande pela impressionante analíti-
ca do poder que efectua, pelas suas fulgurâncias, ou pela manei-
ra inédita em que cruzou a filosofia, a história e o cuidado do
presente. Ele deixa-nos intuições das quais não deixamos de
constatar a validade; em particular, ele redefiniu o espaço das
lutas políticas e sociais e a figura dos sujeitos revolucionários
com relação ao marxismo «clássico»: a revolução, para Fou-
cault, não é – ou em todo o caso não somente – uma perspecti-
va de libertação, é uma prática de liberdade. É produzir-se a si
mesmo e com os outros nas lutas, é inovar, inventar linguagens
e redes, é produzir, é reapropriar-se o valor do trabalho vivente.
É armadilhar o capitalismo desde o interior.
Questão 2: Não lhe parece que se assiste a uma certa toma-
da de distância a respeito de Foucault na maioria das correntes
que declaram querer restabelecer a crítica social e política em
França? O que acontece no resto da Europa (em Itália, por
exemplo) e nos Estados Unidos?
Resposta 2: Os meios académicos detestam Foucault. Creio
que se o pôs à distância desde os anos 60, depois houve a pro-
moção ao Collège de France, para isolá-lo melhor – e não só
porque a universidade não perdoa o sucesso aos intelectuais. O
positivismo sociológico à la Bourdieu foi certamente muito
fecundo, mas não foi capaz de chegar ao fundo do pensamento
foucaultiano e denunciou o seu subjectivismo. Agora, eviden-
temente não há subjectivismo em Foucault. Bourdieu prova-
velmente percebeu-o nos últimos anos.
O que Foucault refuta sempre, em todos os recantos da sua
obra, é o transcendentalismo, são as filosofias da história que
não aceitam pôr em jogo todas as determinações do real frente
ao tecido e ao conflito das potências subjectivas. Por transcen-
dentalismo, em suma, entendo todas as concepções da socieda-
de que pretendem poder avaliá-la ou manipulá-la desde um
ponto de vista autoritário. Não, não é possível. O único método
que nos permite o acesso ao social é o da imanência absoluta, da
invenção contínua da produção do sentido e dos dispositivos de
acção. Como outros autores importantes da sua geração, Fou-
cault acerta as suas contas com todas as reminiscências do
estruturalismo – ou seja, com a fixação transcendental das

230
categorias epistemológicas que este prescreve (hoje, este erro
reproduz-se com uma certa renovação do naturalismo que se
opera na filosofia e nas ciências humanas e sociais...).
E depois, em França, Foucault é refutado porque, desde o
ponto de vista da crítica, não se inscreve nas mitologias da tra-
dição republicana: ninguém está mais afastado que ele do sobe-
ranismo, inclusive jacobino; da laicidade unilateral, inclusive
igualitária; do tradicionalismo na concepção da família e da
demografia patriótica, inclusive integradora, etc. Mas então a
metodologia de Foucault não se reduz a uma posição relativista,
céptica, quero dizer, à degradação de uma concepção idealista
da história? Não, de novo não. O pensamento de Foucault pro-
põe fundar a possibilidade da subversão – a palavra é mais
minha que sua; Foucault falaria da «resistência» – numa eman-
cipação total com relação à tradição moderna do Estado-nação
e do socialismo. Uma proposição que nada tem de céptica ou
relativista, pelo contrário, é construída sobre a exaltação da
Aufklärung, da reinvenção do homem e da sua potência demo-
crática, depois de que todas as ilusões do progresso e da recons-
trução comum terem sido atraiçoadas pela dialéctica totalitária
do moderno. Resumindo, Foucault poderia apropriar-se da frase
do jovem Descartes: Larvatus prodeo, avanço mascarado.
Cada um de nós deve, creio, admitir isto: o nacional-
socialismo é um puro produto da dialéctica do moderno. Liber-
tar-se significa ir mais longe. A Aufklärung, lembra-nos Fou-
cault, não é a exaltação utópica das luzes da razão; ao contrá-
rio, é a des-utopia, é a luta quotidiana em redor do aconteci-
mento, é a construção da política a partir da problematização
do «aqui, agora», dos temas da emancipação e da liberdade. A
batalha de Foucault em torno da questão das prisões que con-
duz com o GIP no princípio dos anos 70, parece-lhes relativista
e céptica? Ou, pelo contrário, a posição tomada para apoiar os
autónomos italianos no momento mais difícil da repressão e do
compromisso político em Itália?
Em França, Foucault tem sido muitas vezes vítima da leitura
que dele fizeram os seus amigos, os seus alunos e os seus colabo-
radores. O anticomunismo jogou aqui um papel crucial. Apre-
sentou-se a ruptura metodológica com o materialismo e o colec-
tivismo como uma reivindicação do individualismo neoliberal.
Quando desconstruía as categorias do materialismo dialéctico,
Foucault era maravilhoso; mas ele reconstruía também as do
materialismo histórico, e isso já não lhe funcionava tão bem. E
quando a leitura dos dispositivos e o trabalho sobre a ontologia
crítica do presente fazem referência à liberdade das multidões, à
construção de bens comuns, ao desprezo pelo neoliberalismo, é
aqui que estes alunos se retiram. Talvez Foucault tenha morri-
do no momento certo.
Em Itália, nos Estados Unidos, na Alemanha, em Espanha,
na América Latina, e agora cada vez mais na Grã-Bretanha,
não conhecemos este jogo perverso parisiense que tem sido
conduzido para marginalizar Foucault sobre a cena intelectual.
Foucault não passou pelo filtro, massacrando as querelas ideo-
lógicas da inteligência francesa: tem sido lido em função do que
disse. A analogia com as tendências da renovação do pensa-
mento marxista em finais dos anos 70 é, assim, muitas vezes
considerada como fundamental. Não se retém, contudo, apenas
a coincidência cronológica: é antes o sentimento de que o pen-
samento foucaultiano deve ser compreendido no meio de toda
uma série de tentativas – práticas ou teóricas – de emancipação
e de libertação, num encabrestamento das preocupações epis-
temológicas e das perspectivas ético-políticas que implicam uma
crítica violenta dos partidos, da leitura da história e dos sujeitos

232
que se lhe reconhece. Creio que os trabalhistas europeus e as
feministas americanas, por exemplo, encontraram em Foucault
numerosas pistas de investigação e, sobretudo, a incitação para
transformar as suas meta-linguagens numa língua comum, tal-
vez universal, para o mundo porvir – ou, em todo o caso, para o
século porvir.
Questão 3: Juntamente com Michael Hardt escreveu em Empire
que “o contexto biopolítico do novo paradigma é perfeitamente cen-
tral na nossa análise” (edição francesa, p. 52). Pode explicar-nos o
laço, nada evidente, entre as novas formas de poder imperial e o
«biopoder»?
Questão 4: A sua dívida para com Michel Foucault, da qual dá
testemunho muitas vezes, não está isenta de certas críticas. Escre-
vem, assim, que ele não chegou a apreender “a dinâmica real da
produção na sociedade biopolítica”. Que queriam dizer a respeito? É
necessário deduzir que as análises foucaultianas conduziriam a uma
espécie de impasse político?
Respostas 3 e 4: Partindo destas duas questões, quisera pro-
curar esclarecer o que, em Empire, Michael Hardt e eu toma-
mos emprestado a Foucault, e isto a propósito do qual, pelo
contrário, levantamos críticas. Falando de império, nós não
procuramos apenas identificar uma nova forma de soberania
global diferente da forma do Estado-nação: procuramos
apreender as causas materiais, políticas e económicas deste
desenvolvimento e, ao mesmo tempo, definir o novo tecido de
contradições que encerra necessariamente. Para nós, desde um
ponto de vista marxista, o desenvolvimento do capitalismo
(compreendido na forma extremamente desenvolvida do mer-
cado mundial) se enraíza nas transformações, como nas contra-
dições, da exploração do trabalho. São as lutas dos trabalhado-
res que transformam as instituições políticas e as formas de
poder do capital. O processo que conduziu à afirmação da
hegemonia da regra imperial não é excepção: desde 1968, desde
a grande revolta dos trabalhadores assalariados nos países
desenvolvidos e a dos povos colonizados do terceiro mundo, o
capital não pode já (sobre o terreno económico e monetário,
militar e cultural) controlar e conter os fluxos da força de traba-
lho nos limites do Estado-nação. A nova ordem mundial corres-
ponde à exigência de uma nova ordem no mundo do trabalho. A
resposta do capitalismo toma forma a diferentes níveis, mas o
da organização tecnológica dos processos de trabalho é funda-
mental.
Trata-se, com efeito, da automatização da indústria e da
informatização da sociedade: a economia política do capital e a
organização da exploração começam a desenvolver-se cada vez
mais através do trabalho imaterial, a acumulação diz respeito às
dimensões intelectuais e cognitivas do trabalho, à sua mobilida-
de espacial e à sua flexibilidade temporal. A sociedade inteira e
a vida dos homens devêm assim o objecto de um interesse novo
por parte do poder. Marx tinha previsto perfeitamente (nos
Grundrisse e n’ O Capital) este desenvolvimento, que ele cha-
mava «subsunção real da sociedade sob o capital». Foucault
compreendeu, creio, esta passagem histórica, pois descreveu,
pela sua parte, a genealogia do investimento da vida pelo poder
– tanto da vida individual como da vida social. Mas a subsun-
ção da sociedade sob o capital (tal como a emergência dos bio-
poderes) é muito mais frágil do que cremos – e em particular do
que o capital mesmo crê, ou do que o objectivismo dos epígonos
marxistas (como a Escola de Frankfurt, por exemplo) quer
reconhecer.
Na realidade, a subsunção real da sociedade (isto é, do tra-
balho social) sob o capital generaliza a contradição da explora-

234
ção a todos os níveis da sociedade mesma, tal como a extensão
dos biopoderes se abre a uma resposta biopolítica da sociedade:
já não os poderes sobre a vida, senão a potência da vida como
resposta a estes poderes; em suma, abre à insurreição e à proli-
feração da liberdade, à produção da subjectividade e à invenção
de novas formas de luta. Quando o capital investe a vida inteira, a
vida revela-se como resistência. É então sobre este ponto que as
análises foucaultianas do retorno dos biopoderes como biopolí-
tica influenciaram os nossos sobre a génese do império: em
suma, quando as novas formas do trabalho e da luta, produzidas
pela transformação do trabalho material em trabalho imaterial
se revelam como produtoras de subjectividade.
Depois, não sei se Foucault estaria totalmente de acordo
com as nossas análises – mas espero que sim! –; porque produ-
zir subjectividade, para Michael Hardt e para mim, é na reali-
dade encontrar-se numa metamorfose biopolítica que introduz
ao comunismo. Por outras palavras, penso que a nova condição
imperial na qual vivemos (e as condições sociopolíticas nas
quais construímos o nosso trabalho, as nossas linguagens e
então a nós mesmos) põe no centro do contexto biopolítico o
que nós chamamos o comum: não o privado ou o público, não o
individual ou o social, senão o que, todos em conjunto, cons-
truímos para assegurar ao homem a possibilidade de produzir-se
e reproduzir-se. No comum, nada do que fazia as nossas singula-
ridades é suspendido ou apagado: as singularidades são só arti-
culadas umas nas outras para obter um «agenciamento» – o
termo é de Deleuze – onde cada potência se encontre desmulti-
plicada pela dos outros, e onde cada criação é imediatamente
também a dos outros.
As vias que ligam a revisão criativa do marxismo (à qual
aderimos nós) às concepções revolucionárias do biopolítico e da
produção da subjectividade elaboradas por Foucault são então,
creio, muito numerosas.
Questão 5: As duas últimas obras de Foucault sobre os
modos de subjectivação parecem ter chamado menos a sua
atenção. A construção de ética e de estilos de vida estranhos ou
resistentes ao biopoder é uma via demasiado afastada do que se
propõem (a figura do militante comunista)? Ou, pelo contrário,
há possibilidades de um acordo mais profundo que não tenha-
mos percebido bem?
Resposta 5: As últimas obras de Foucault tiveram sobre mim
uma grande influência, creio que o que lhes tenho vindo a dizer
a propósito de Empire o mostra bem. Permitam-me que lhes
conte uma recordação, um pouco curiosa: em meados dos anos
70, escrevi um artigo sobre Foucault em Itália – sobre o que se
chama hoje o «primeiro Foucault», o Foucault da arqueologia
das ciências humanas. Tentava apontar os limites deste tipo de
interrogação e esperava uma espécie de passo adiante, uma
maior insistência sobre a produção de subjectividade. Na época,
estava a tratar de encontrar a saída de um marxismo que, sendo
profundamente inovador sobre o terreno teórico – uma vez que
se perguntava se um «Marx para além de Marx» era possível –,
apresentava em contrapartida sobre o terreno da prática mili-
tante o risco de erros terríveis.
Quero dizer com isto que nos anos de luta apaixonada que
se seguiram a 1968, na situação de repressão feroz que os
governos de direita exerceram contra os movimentos sociais de
contestação, muitos de nós correram o perigo de uma deriva
terrorista, e alguns cederam. Mas, por detrás deste extremismo,
havia sempre a convicção de que o poder era um e nada mais
que um, que o biopoder tornava a direita e a esquerda idênti-
cas, que só o partido podia salvar-nos – e se não era o partido,

236
então eram as vanguardas armadas estruturadas como pequenos
partidos em versão militar, na grande tradição dos «partisans»
da segunda guerra mundial. Nós compreendemos que esta deri-
va militar era algo de que os movimentos não se recuperariam;
e que era não só uma eleição humanamente insustentável,
senão um suicídio político. Foucault, e com ele Deleuze e Guat-
tari, puseram-nos em guarda contra esta deriva. Eram a este
respeito verdadeiros revolucionários: quando criticavam o esta-
linismo ou as práticas do «socialismo real» não o faziam de uma
maneira hipócrita e fariseia, como os «novos filósofos» do libe-
ralismo; procuravam encontrar o meio de afirmar uma nova
potência do proletariado contra o biopoder do capitalismo.
A resistência ao biopoder e a construção de novos estilos de
vida não estão afastados da militância comunista, se aceitarmos
pensar que a militância é uma prática comum de liberdade, e
que o comunismo é a produção do comum. Como em Empire, a
figura do militante comunista não é tomada de um velho mode-
lo. Ao contrário, apresenta-se como um novo tipo de subjecti-
vidade política que se constrói a partir da produção (ontológica
e subjectiva) das lutas pela libertação do trabalho e por uma
sociedade mais justa.
Para nós, mas creio que também para os movimentos sociais
de hoje, a importância das últimas obras de Foucault é por con-
sequência excepcional. A genealogia perde aqui todo o carácter
especulativo e devém política – uma ontologia crítica de nós mesmos
–, a epistemologia é «constitutiva», a ética assume dimensões «trans-
formadoras». Depois da morte de Deus, assistimos ao renasci-
mento do homem. Mas não se trata de um novo humanismo;
ou, mais exactamente, trata-se de reinventar o homem no seio
de uma nova ontologia: é sobre as ruínas da teleologia moderna
que nós recuperamos um telos materialista.
NB. Artigo/entrevista para «Nouveaux Regards» revista da Federação
Sindical Unitária do Ensino em França, Agosto de 2004.

(Tradução do francês por Susana Guerra)

238
Entre o Anjo e a Besta

Entrevista com António Vieira

Depois do seu polémico livro sobre o termo da história (saí-


do em 1994), António Vieira volta ao ensaio com Improvisa-
ções sobre a ideia de Deus (2005, Lisboa: & etc.). Ao confron-
tar-se com os seus preconceitos e correndo assim o risco de se
tornar paradoxal pratica uma reavaliação das religiões do deser-
to desde a perspectiva excêntrica da ciência moderna. Na con-
versa que mantivemos com ele, porém, o escritor tentou deixar
de lado o psiquiatra e o professor universitário para dar voz a
um autor com o qual não acaba por se identificar totalmente.

Você vem da ciência mas é também escritor de literatura. Então,


é o escritor ou o professor que se preocupa pela ideia de Deus? E
qual é a pertinência para cada um deles?
Bem, para mim, o essencial foi sempre a literatura, mas tive
de fazer uma carreira universitária. Então, todos os territórios
percorridos contribuíram, claro, para o trabalho literário. Por
exemplo: houve alguns anos, três ou quatro anos no passado,
em que estudei, com viva curiosidade, história das religiões.
Mas este livro é um ensaio de literatura sobre um tema da
metafísica ocidental.
Mas, enquanto cientista, qual é a pertinência da ideia de Deus
para a ciência?
Não suscito o problema enquanto cientista, mas enquanto
escritor. Não se trata, aqui, de um trabalho de pesquisa em
antropologia das religiões, nem em teologia, mas de um texto
literário.
Para entrar mais a fundo nas questões do seu livro, haverá uma
polaridade entre “Deus” e a “ideia de Deus”? Será o seu livro ani-
mado, mais do que pela tentativa de produzir uma certa ideia de
Deus, por uma vontade de voltar ou de chegar à “presença de
Deus”?
Não houve nenhum projecto – pelo menos consciente –
nesse sentido. Tentei tratar fenomenologicamente a ideia de
Deus, ora pondo-me na pele de um crente de uma religião, logo
de outra, ora situando-me na onda do pensamento de alguém
que aborda um livro sagrado. Foi assim que os fragmentos do
livro me foram suscitados. Não tinha nenhum intuito de chegar
à «presença de Deus». Fui sempre um descrente implacável, e
assim tenciono permanecer.
A sua severa análise dos deuses dos monoteísmos é acompanhada
por alguma nostalgia pelas divindades homéricas (caprichosas, indi-
ferentes e ociosas e cujo poder nunca era absoluto: Zeus e as Moi-
ras), o pelas antigas religiões da Índia (em que tempos e mundos
eram infinitos), concorda com esta leitura?
Os deuses gregos, védicos, hinduístas, e outros, surgem em
contraponto com as divindades dos monoteísmos, para acen-
tuarem contrastes e visibilidades, inconsistências, lapsos, que
assim melhor ressaltam. Mas, sim, há uma nostalgia dos deuses
gregos do começo – o Caos, a Noite – que, sendo ignorados, são
os senhores do que está em jogo.
Então qual seria o lugar destes deuses pré-monoteístas?
Ao escrever, o autor sentiu grande cumplicidade com o deus
de Heráclito, um menino que brinca improvisando formas sem
destino, pelo prazer lúdico e funesto de inventar. Ora, os dois
heróis do livro, se se pode falar em heróis, são: de um lado, o

240
Deus de Israel, o tal Deus-ponto terrivelmente abstracto; e, do
outro lado, o malin génie de Descartes, a divindade negativa que
é suscitada no Discurso do método. E sem dúvida que o autor se
inclina para um Deus lúdico, destituído de sentido e ausente. É
dito mesmo, a certa altura, que o génio malicioso (de Descar-
tes) reivindica o seu lugar na genealogia dos deuses monoteís-
tas.
No seu livro encontramos possíveis desvios da Ideia de Deus, um
em que Adão e Eva se alimentaram da árvore da vida (e não da
ciência) e um, ainda mais radical, em que Deus (como no pensa-
mento dos Dogon reconstituído por Marcel Griaule) tem um gémeo.
São esses exercícios intelectuais, pesares por possibilidades falhadas
ou indícios de humanidades potenciais?
Assim como creio no modelo de um deus-jogo, também
joguei aí com a ideia de Deus. O Dieu d’eau, por exemplo, é
referido por pura coquetterie. Nesse livro, hoje um clássico da
antropologia, Griaule conversa com um velho iniciado nos
mitos dos Dogon, que lhe revela os segredos da sua religião, e
que os primeiros deuses foram gémeos. A hipótese apresentada
num ponto das Improvisações é a de a aventura do mundo ter
sido desencadeada por princípios antagónicos simultâneos,
como gémeos colados pelas costas e que nunca se olham, nem
se podem olhar, tendo visões opostas do mundo. Pura disserta-
ção… Pura provocação…
O autor parece deixar a impressão de que a ideia de Deus tem
origem numa imprópria conjugação de pensamento analógico e de
pensamento mítico, e que seria mais recomendável manter-se dentro
dos limites de cada um desses dois universos; é uma leitura correcta?
Qual é a relação entre analogia e mito?
É uma pergunta rigorosa, e se eu tivesse trabalhado como
filósofo teria de me restringir ou a uma perspectiva ou à outra.
Mas como trabalhei como escritor, achei que era engenhoso e
produtivo misturar os materiais, e extrair daí certa retórica…
Falou desse Deus-lúdico para além de todo o sentido, mas no seu
livro é permanente a recorrência dum sentido que está associado a
este pessimismo de que falámos. Há um fim da história e é terrível
para o homem. O seu pessimismo tem um sentido nesta história.
O meu pessimismo provém de um olhar crítico sobre o que
decorre perante os nossos olhos e pode bem ser visto, embora a
enorme maioria das pessoas não consiga, ou não queira, ver.
Expus essa posição pessimista, há anos, num Ensaio sobre o ter-
mo da História. Os dois livros – esse, e, agora, as Improvisações –
pertencem ao mesmo campo semântico: num dos fragmentos
actuais, o Incaracterístico reaparece: ele é o dono da sociedade,
homem-mercadoria, senhor mas escravo, sem espírito, sem
horizonte existencial, sem ética. Sendo assim, a agonia da His-
tória ajusta-se à não razão do mundo, ao seu não sentido, e a
um criador insano, incompatível com qualquer optimismo.
Portanto, quando mesmo no fim do livro aparece esta ideia dum
“processo de extinção” do humano, isto não remete a um niilismo de
corte heideggeriano?
Sim, como foi analisado recentemente por Agamben no
livro O aberto. O homem e o animal, com o conteúdo do qual
sinto grande afinidade e consonância. Ao lê-lo, percebi como é
o problema da origem e do destino da linguagem que separa a
minha visão como antropólogo e como homem de letras.
Quando faz este diagnóstico pessimista fala da imensidade do
tempo, do descobrimento pela ciência moderna de que o universo é
infinito. Mas parece relegar a um segundo plano o descobrimento,
também moderno, da infinidade do instante.
A infinidade do instante remete-nos para uma análise do
tempo vivido, que nos revela – vejam Proust – os inesgotáveis

242
matizes da vivência. Enquanto, no plano do divino, o infinita-
mente pequeno se identifica com o Deus-ponto, que contém as
potencialidades do Ser, em supremo paradoxo.
Então há uma intervenção do cientista nesta escrita?
Admito que sim, mas o biólogo, o antropólogo, retiram-se
para deixar lugar ao escritor. E, no entanto, certos dados irrefu-
táveis e elementos do método crítico das ciências ficam ao
alcance do escritor, como princípios para a direcção do discur-
so.
Não acha que o cientista é não só inevitável mas também decisi-
vo na escrita deste livro?
Acho que sim. Quando o autor diz, por exemplo, que há
uma teratologia do mundo, e, contra a ideia de Leibniz de uma
criatura perfeita, sugere que são esses erros e anomalias que
intervêm decisivamente na evolução, na conformação do mun-
do.
Já que se falou no infinito do instante, acho que mesmo esta for-
ma de escrever por parágrafos lembra a escrita em arquipélago de
René Char. Não será que marca duma certa forma inconsciente o
infinito do instante através da forma?
Nunca tinha pensado nisso. Bem, eu não me inspirei em
René Char, embora trate o tema em fragmentos breves e con-
centrados. É verdade que aí surge, por vezes, a cintilação do
instante – como nos haikai da poesia japonesa clássica. Formal-
mente, guiei-me pelos moralistas franceses da Idade Clássica,
La Bruyère, Vauvenargues, Joubert, e, sobretudo, François de la
Rochefoucauld. Mas decidi manter a unidade do texto, inserin-
do os índices laterais (como na edição da Pléiade dos Cahiers de
Valéry), o que deixou o livro formar um corpo único, sem capí-
tulos. Achei que mantinha a identidade do ensaio, embora
indicando os vários temas abordados.
Há um certo carácter intempestivo do livro, assim como um tom
aristocrático, que lembra Nietzsche. Mas parece tratar-se de um
Nietzsche oitocentista e passo a citar um pequeno fragmento: “O que
para o ingénuo aparece como enigma torna-se evidência para o geó-
metra.” (op. cit., p. 42).
Se bem me lembro, há um momento arrogante no livro,
quando é citado o Timeu: que a ideia de Deus não é para todos,
que os consumidores de Deus, a multidão, os intelectuais de
Estado que vigiam a multidão e lhe indicam dia a dia o que
deve e não deve ser lido, toda essa gente deve considerar-se
excluída dessa procura. Mas, pelo tom de ingénua impertinên-
cia em que coisas tão sérias são formuladas jovialmente – e vai
no rasto de Nietzsche – esse carácter intempestivo acompanha
o texto. Concordo, apercebi-me disso quando o reli já editado.
Então a pergunta é a seguinte: até que ponto este distanciamento,
paralelo ao que, noutro plano, opõe o crente médio e este «perfeito
ímpio» que parece querer conduzir a reflexão sobre a ideia de Deus,
não implica uma ingenuidade, e de facto uma piedade análoga,
girando, não já em torno a Deus, mas em torno à razão (mais para
cá da ideia da razão, que, como todas, só pode ser histórica e nesta
medida, relativa). Noutras palavras: em que medida esta oposição
entre o «perfeito ímpio» e o crente médio, entre o ingénuo e o crítico,
não depende de uma certa ingenuidade e também duma certa pieda-
de, a piedade da razão iluminista.
O caso é que a razão, neste ensaio, nunca domina. Conduz o
jogo, isso sim, mas como se rodasse o ângulo de espelhos frente
a outros espelhos, revelando aspectos ocultos do problema. O
«perfeito ímpio» faz-se de místico, para pôr em equação a ques-
tão fulcral, a ideia de Deus, sob facetas sucessivas.
Também é certo que a razão – pelo menos a figura moderna da
razão – não só joga como princípio da crítica das religiões monoteís-

244
tas, mas também como fundamento duma ética sem deuses – pelo
menos sem deuses morais. Refiro-me, evidentemente, à reapropria-
ção do imperativo kantiano. Ora, da mesma maneira que os deuses e
os corolários morais das religiões reveladas, o imperativo kantiano
também tem uma história e é “convocado conforme o génio do povo
que lhe deu lugar” (op. cit., p.20). Mais, esta história afunda as suas
raízes precisamente no monoteísmo que critica. Como justificar entre
esta “ideia de Deus sem regras, prístino, imprescindível” (corolário
da ciência moderna) e esta outra ideia do “imperativo categórico
kantiano” (corolário, sem nenhuma dúvida, do cristianismo)?
Mas o «imperativo categórico» advém ao homem crítico, ao
tal Eu soberano, porque ele se consegue pôr no lugar dos outros
e, independentemente das religiões reveladas, ser solidário com
os seus semelhantes – ainda que os deuses sejam enganosos e a
aventura do mundo destituída de senso.
Mas o que é que se passa com o imperativo kantiano?
Essa é uma pergunta que deveria ser feita ao Incaracterísti-
co, que olha para os seus semelhantes como se fossem mercado-
ria, e que se apresenta ele mesmo como mercadoria, radicalmen-
te destituído de sentido ético (o que nada tem a ver com cons-
trangimentos morais, a que sempre se sujeita).
E você enquanto escritor guarda alguma distância em relação a
este Eu soberano?
O escritor, durante a construção do livro, tomou o Eu sobe-
rano como a única personagem digna, como um ideal. Porque,
há que dizê-lo, ele próprio, como qualquer pessoa do tempo
presente, sofreu algum contágio, alguma contaminação do Inca-
racterístico.
Pessoalmente, acho que a herança da ciência moderna manifes-
ta-se com mais força no Eu soberano que aposta no imperativo cate-
górico antes do que no geómetra que faz a história da religião.
O Eu soberano procura dois objectivos: reflectir sobre o pro-
blema que o ocupa, sem preconceitos nem restrições; e manter-
se ético, o quer que se lhe depare no curso da pesquisa.
Apesar de se reclamar de uma tradição filosófica, as suas refle-
xões em torno da ideia de Deus não deixam de ser da mais urgente
actualidade. E aqui o que me preocupa é o seguinte: a sua crítica dos
deuses do deserto comporta, entre outras coisas, a explicação duma
certa violência religiosa (que não vou negar aqui), que parece abo-
nar para estes discursos que actualmente tendem a ocultar toda uma
série de problemas políticos, económicos e estratégicos, por detrás do
véu de uma confrontação entre religiões. Cito um fragmento espe-
cialmente ilustrativo: “os deuses do deserto (aos quais se juntou um
terceiro) disputam hoje o mundo e tramam uma guerra implacável –
com o absoluto desprezo pelos não-semitas – pela hegemonia sobre a
Terra e a História” (op. cit., p. 26). Então, a minha pergunta é: em
que medida está disposto a assumir as consequências políticas de
uma afirmação semelhante?
Há tempos, numa conversa informal com alguns colegas da
Faculdade (estávamos todos a falar de problemas políticos)
disse algo que era pura ficção, mas não destituída de alguma
realidade: que assistimos a uma luta entre dois deuses do deser-
to – na medida em que a intelligentsia judaica se apoderou de
centros de decisão da maior potência do mundo, os EUA; e, por
outro lado, chefes muçulmanos emergentes (lícitos e ilícitos)
procuram, com os grandes dinheiros do petróleo e por meio do
crime, tornado espectáculo nos «mass media», tomar hegemo-
nia sobre a Terra. Um e outro alimentam a utopia de uma
apropriação integral do mundo. Nesse cenário fictício, os Deu-
ses do deserto lutam entre si, fazendo tábua rasa de todos os
outros deuses e grupos culturais e linguísticos. Pura utopia,

246
claro, este combate entre deuses semitas (a tomar em sentido
linguístico originário).
Agora, ao pensar que este livro se inscreve numa actualidade
política onde se pretende instaurar esta versão religiosa como expli-
cação de todos os factos, não acha que é problemático politicamente?
Bem, tudo aqui é uma provocação…
E, então, houve reacções? Já o vieram buscar à porta?
Sim, sobretudo dos chamados «católicos de esquerda», que
se sentiram inquietos, foi a palavra que usaram. É curioso, a
palavra católico não aparece sequer no texto, julgo que num
ponto há referência a «cristãos de obediência papal». Quando
foi do Ensaio sobre o termo da História, então sim, houve reac-
ções vivíssimas, pessoas que se sentiram ofendidas, embora no
livro ninguém fosse nomeado. Colegas, na Faculdade, deixaram
de me olhar e de me estender a mão (o aperto de mão, simétri-
co, é o único cumprimento humano guiado por um ideal demo-
crático, reparem), e fiquei surpreendido. Percebi depois que se
tinham projectado na figura do Incaracterístico e se exaspera-
vam com esse auto-desmascaramento, que lhes era insuportá-
vel.
Sempre é possível criticar atitudes do Governo de Israel quando
nega a possibilidade que a Palestina se constitua como povo, e que
assimile o estado israelita ao povo escolhido, mas é uma afirmação
política. Isto não tem nada a ver com a problematização do judaísmo
enquanto fenómeno religioso.
Judeus e palestinianos situam-se numa comum perspectiva
de insaciável avidez político-religiosa. Vocês vejam os romanos,
por exemplo: tinham a cerimónia da evocatio, quando as legiões
tomavam uma cidade, invocavam os deuses dos vencidos: dora-
vante, os vossos deuses passam também a ser nossos. É a atitude
oposta à dos Deuses do deserto.
Pressente-se por detrás das palavras o tom sossegado e distante
do cientista que sabe “domar” o seu objecto de estudo. Como se
sente ele em relação ao homem ensimesmado que se interroga, as
palavras são suas, “sobre o seu surgimento e o sentido precário do
seu trajecto enquanto ser-presente rumo à aniquilação”?
Em termos científicos, a presença do homem de aspecto
actual na Terra é recente e brevíssima, uma lâmina quase invi-
sível sobre o tempo de duração dos seres vivos. A questão é:
como agir, sabendo que seremos aniquilados? E, para mais,
escutando os bramidos de optimismo intolerante da maioria?
Coisa, ao mesmo tempo, trágica e cómica.
Acaba o seu livro com uma inquietação: “Quando os humanos,
em um comum processo de extinção, forem varridos da biosfera –
fenómeno que, à escala da idade da Terra e por força da própria
acção humana, não parece distante – quem visitará ainda a ideia de
Deus? L’ange? ou la bête?” (op. cit. p.139). Imagina uma resposta
possível?
Ah, deixe-me reflectir… o caso é que la bête somos também
nós todos. A linguagem, seguramente, evoluiu por patamares
até ao estado actual de elaboração, até permitir levar alguns
humanos à concepção pasmosa da ideia do Ser. Ora, voltando
às minhas denotações, o Incaracterístico, privado do desejo, e
até da possibilidade, de uma reflexão sobre a sua condição no
mundo, condena-se a permanecer no plano estrito da animali-
dade.
E portanto, seria la bête.
É claro. Seria la bête.
E então, quem é que esteve a visitar nestas Improvisações sobre
a ideia de Deus?
Movi-me em volta de um tema que se inscreve entre os dois
pólos pascalianos: o bicho não se preocupa com a ideia de

248
Deus; e o anjo talvez se encontre elucidado. Mas, a meio cami-
nho, nesse espaço turvo em que se jogam as dúvidas, o proble-
ma põe-se, vivo, incita à reflexão, convida ao jogo.

NB. Entrevista realizada por Davide Scarso, Eduardo Pellejero, Gol-


gona Anghel.
Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico

***********?

Peter Szondi marcou profundamente a cena intelectual nas


décadas de 50 e 60 do século XX. Foi um sobrevivente da
Shoah, obcecado, como tantos outros, pelo demérito de existir,
nessa injusta escolha da transcendência para marcar a ferros
quentes a memória do mundo (lembramo-nos de Paul Celan,
com o qual trocou, aliás, muitos textos epistolares e sobre quem
deixou um estudo inacabado). Discípulo de Georg Lukás, deu-
nos duas obras de referência: Theorie des modernen Dramas
(Teoria do Drama Moderno) e Versuch über das Tragische
(Ensaio sobre o trágico). Mas foi sobretudo no Departamento
de Literatura Comparada da Universidade de Berlim, sua cria-
ção, que melhor soube constituir-se como pensamento de refe-
rência sobre a poiesis Ocidental.
A sua escrita tem uma contenção exemplar. Szondi é
extraordinariamente lúcido e económico na exposição dos seus
argumentos – o que pode ser comprovado na leitura deste
Ensaio sobre o Trágico. É precisamente essa frugalidade discursi-
va que nos coloca o desconforto de quase não podermos senão
resumir. E se procurarmos dobras nas teses luminosas que nos
deixou, talvez cometamos esse abuso hermenêutico do deslo-
camento mimético injustificado.
Publicado em 1961, Versuch über das Tragische, tem uma
estrutura aparentemente anódina. Na primeira parte, “A Filo-
sofia do Trágico”, expõe sumariamente as concepções do trági-
co de doze pensadores, todos alemães – porque se “trata de um
tema próprio da filosofia alemã, caso se possa incluir nela Kier-
kegaard” – (Schelling, Hölderlin, Hegel, Solger Goethe, Scho-
penhauer, Vischer, Kierkegaard, Hebbel, Nietzsche, Simmel,
Scheler); na segunda, “Análises do Trágico”, dá-nos a conhecer
a tragidicidade de oito obras da Antiguidade grega, do Barroco
espanhol, inglês e alemão, do Classicismo francês e alemão
(Édipo Rei, A Vida é um Sonho, Otelo, Leo Armenius, Fedra,
Demétrio, A Família Schroffenstein, A Morte de Danton).
Entre estes dois momentos situa-se uma aparentemente estra-
nha “Transição: Filosofia da história da tragédia e análise do
trágico”. Será daqui que Peter Szondi lança essa dúvida funda-
mental sobre a possibilidade de se apreender O Trágico, ao
mesmo tempo que convoca a condição dialéctica para superar a
fragmentação das singularidades teóricas e poiéticas.
A primeira parte assenta numa metodologia hermenêutica
(Szondi publicou um ensaio sobre teoria da interpretação,
Einführung in die literarische Hermeneutik), onde expõe a ideia de
trágico de cada um dos doze pensadores. Em cada caso uma ou
duas pequenas citações pontuam a sua explicação. No essencial
pretende pôr-nos em diálogo com o original, Szondi parece
funcionar somente como cicerone bem informado. A segunda
parte é bastante mais exigente, e arriscada. Dar conta das
linhas trágicas que, por vezes desafiadoramente evanescentes,
cosem as Tragédias denota um exercício exigente; é que elas
são quase exclusivamente originadas na recepção das obras
(assim se percebe a importância da Poética de Aristóteles).
“Análises do Trágico” assume, por isso, muito mais a subjectivi-
dade interpretativa do que “A Filosofia do Trágico”. Mas neste
risco vive grande parte da excelência do livro. Porque desta
forma vamos acompanhados ao teatro clássico trágico, em diá-
logo com as ideias de Szondi para que o logos estético não se
afunile no círculo puro (mas estéril) da mesmidade.

252
Se o desejo do leitor estiver na contemplação teórica do trá-
gico, se pretender viver numa distância segura das “legiões da
noite” (portadoras também da luminosidade não coada, bruta,
selvagem, mas inocente – sem os artifícios dos códigos huma-
nos, demasiado humanos), embora sinta esse impulso ctónico
para se aproximar do sopro vital (tensão contraditória sintetiza-
da de forma lapidar por… van Gogh: “não sei quem chamou a
este estado, trágico, ser tocado de morte e de imortalidade”),
então será com certeza recompensado pela leitura das dez pági-
nas que constituem o intermezzo do livro. O início obriga-nos
imediatamente a operar com uma tese surpreendente: “A pró-
pria história da filosofia do trágico não está livre de tragidicida-
de. Ela é como o voo de Ícaro: quanto mais o pensamento se
aproxima do conceito geral, menos se fixa a ele o elemento
substancial que deve impulsioná-lo para o alto. Ao atingir a
altitude da qual pode examinar a estrutura do trágico, o pensa-
mento desaba, sem forças. (…) Portanto, parece que a filosofia
não é capaz de apreender o trágico – ou então que não existe o
trágico”. Esta recondução do trágico à historicidade retira-lhe
aquilo que durante muito tempo, de Nietzsche a George Stei-
ner, passando por Lacoue-Labarthe, lhe garantiu o sucesso teó-
rico: o seu carácter metafísico, universal ou teológico.
Tomando Walter Benjamin como referência (Origem do
Drama Barroco Alemão), evita pensar a refutação metafísica
como um deslocamento estratégico para uma poética neoaristo-
télica (poética do trágico em vez de metafísica do trágico). A
tese, de ambos, argumentada ao longo de toda a obra, é a de
que só uma filosofia da história da tragédia pode configurar o
trágico (embora tenha de erigir a sua reflexão no solo seminal
das obras concretas). Para Benjamin, “a ideia da tragédia cons-
tituía-se a partir dos factores do sacrifício, da ausência de pala-
vras [do herói] e do agôn.” Szondi atende a esses rostos do trá-
gico, mas prefere, numa espécie de desvelamento empírico,
retirar das tragédias em análise a ideia que um movimento dia-
léctico informa toda a história do trágico. Mais, esse traço fun-
damental (sem que seja universal) já estava na Poética, como
perpassou todas as definições de trágico de Schelling a Scheler:
“É esse factor dialéctico que expõe o denominador comum das
diversas definições idealistas e pós-idealistas do trágico e, com
isso, constitui uma possível base para o seu conceito geral.”
Para fugir à cilada metafísica, está-se demasiado perto da totali-
dade, refere que porque “nem toda a dialéctica é trágica, o trá-
gico teria que ser reconhecido como uma determinada forma da
dialéctica num determinado espaço”.
É portanto nas estrias da história (sem historicismo) que o
trágico é fabricado, trata-se bem de chamar pelos artífices que
trabalharam a dialéctica fazendo dela um agôn incandescente,
como Shakespeare, por exemplo: “Oh hálito amoroso,/ Que
quase a convencer chegaste a própria/ Justiça e despedaça a sua
espada!/ Mais um, mais um. Se assim ficares, morta,/ Quero
tirar-te a vida e, após, amar-te” (Otelo, acto 5, cena 2, v. 16-9).
Assim, numa radicalização da imanência, “a filosofia do trágico
concorda com a poesia trágica: em vez de se falar da definição
do trágico por Schopenhauer, dever-se-ia falar da tragidicidade
schopenhaueriana – do mesmo modo que se fala de uma tragi-
dicidade shakespeareana”.
Resta então esclarecer a dialéctica própria dos trágicos, nes-
te plural que salva sem salvar a tese da imanência, da poetiza-
ção da metafísica do trágico (sem que, voltamos a dizê-lo, a
teoria literária fique com o exclusivo da crítica trágica). É que,
numa espécie de micro experiência da dialéctica, somos levados
a ler que “como o conceito de trágico se ergue desastrosamente

254
do concretude dos problemas filosóficos até às alturas da abs-
tracção, é preciso que ele baixe até ao nível mais concreto das
tragédias, caso deva ser salvo.” O lugar do negativo hegeliano
torna-se agora a maternidade do ser (numa ontologia pluralista,
multiperspectívica). A Ideia de trágico evaporou-se. Mas esta
supressão do estrato inteligível puro (ficção decisiva na história
da filosofia) acaba por ser relativizada quando lemos que “É
trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos
opostos, a partir da transformação de algo em seu oposto, a
partir da autodivisão. Mas também só é trágico o declínio de
algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa
uma ferida incurável.” Portanto, só o rasgar da concórdia origi-
nal (desesperante formação da alteridade rebelde, do altermun-
do humano), ou a queda do insuspeito (inocente sem o ser,
como Édipo) é acção dialéctica trágica.
Com tudo isto deixamos de ter um conforto metafísico (ou
teológico) perante a desgraça do humano (essa distância do
abandono), não sabemos como resistir ao desabrigo, ao acaso
experienciado como arbitrariedade malévola. E já nem a arte
pode socorrer-nos, como pretendia Nietzsche, porque o efeito
estético, sem um palimpsesto metafísico, só pode ter o alcance
de um consolo apolíneo. Ou então, quando ainda apesar de
tudo buscamos sentidos globais, acreditarmos nas belas palavras
de Philippe Lacoue-Labarthe: “O momento trágico, na sua
nulidade mesmo, não é histórico: é a condição da história. A
qual mais não é do que a submissão ao interdito da transgressão
ou, o que vai dar ao mesmo, do excesso metafísico.” (Metaphra-
sis seguido de O Teatro de Hölderlin, Lisboa, Projecto Teatral,
1999, p. 36).
Mas não é por isto que o texto de Peter Szondi perde encan-
to, precisamente esse poder de enfeitiçar a razão com um pe n-
sar auroral (dê-se ênfase à claridade a vir). É que, como já foi
dito, a sua frugalidade argumentativa (pouco mais de cem pági-
nas) nunca deixa de dar conta da espessura filosófica (o que dá
a pensar acima do tecido quotidiano) do tema. Resumindo, é
um óptimo ensaio sobre o trágico.

NB. Peter Szondi, Ensaio sobre o Trágico (Versuch über das Tragische,
964), trad. brasileira Pedro Süssekind, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2004.

256
Mauro Carbone, Una deformazione senza precedenti.

Davide Scarso

Mais do que uma vez, Merleau-Ponty, nos seus últimos


escritos, apela à reflexão filosófica para prestar atenção aos
sinais da relação mudada com o ser que na sua opinião marca a
nossa época, sinais que ele entrevê no pensamento cientifico,
na pintura e na literatura. Em Una deformazione senza preceden-
ti, Mauro Carbone procura responder de maneira frontal a esta
exigência prosseguindo as pesquisas conduzidas em Ai confini
dell’esprimibile (Milão, 1990), em Il sensibile e l’eccedente (Milão,
1996) e em Di alcuni motivi in Marcel Proust (Milão, 1998), até
delinear os traços da nova ontologia inaugurada pelo fenome-
nologo francês.
A primeira parte do ensaio é dedicada ao estudo filosófico
de algumas das passagens mais significativas de La Recherche,
reconstruindo em particular o percurso que conduz Swann da
descoberta da memoria involuntária até á revelação artística
das essências. Carbone empenha-se na restituição da concepção
não platonistica das ideias cujo esboço, segundo Merleau-
Ponty, é possível entrever na obra proustiana. “Não se tratará
de uma concepção geral das ideias?”, escreve o filosofo francês
comentando – naquele que será o seu ultimo curso ao Collége de
France – as paginas em que Swann volta a ouvir a petite phrase
da Sonata de Vinteuil; e ainda “Falou-se em platonismo, mas
estas ideias são sem sol inelegível” (Merleau-Ponty, Notes de
Cours au Collége de France 1958-59 et 1960-61, Gallimard,
Paris, 1996, p. 193 e p. 194).
No seu último curso, Merleau-Ponty retira das paginas de La
Recherche uma noção que procura fugir à oposição metafísica
entre sensível e inteligível, a noção de ideia sensível, ou seja de
uma ideia que não é separável da sua manifestação sensível. As
ideias sensíveis são assumidas como tema central da pesquisa de
Carbone, cujo desenvolvimento passa por uma comparação
entre Walter Benjamin e Merleau-Ponty acerca do tema da
memoria involuntária e da peculiar experiência que lhe é ligada
como também. Mas a atenção de Carbone centra-se sobretudo
nas reflexões que Merleau-Ponty e Gilles Deleuze dedicaram á
noção proustiana de «ideia», entendida no sentido de «essên-
cia». Em particular, entende por em evidência as profundas
convergências que caracterizam o pensamento de Merleau-
Ponty e de Deleuze, lembrando como Proust foi uma referência
constante para o pensamento dos dois, sem deixar de relevar às
especificidades e os limites das reflexões de cada um.
É a musica que sugere em primeiro lugar a existência das
ideias sensíveis. No entanto, e sempre a partir de uma sugestão
de Merleau-Ponty, Carbone recorre também á biologia para nos
fornecer uma penetrante formulação daquele que pode ser o
valor ontológico – mas não por isso necessariamente metafísico
– da noção de espécie. A espécie animal pode pois muito bem
ser interpretada como ideia sensível, enquanto ideia que existe
somente no dar-se dos seus exemplares.
No capitulo central, o autor passa a confrontar-se então
com a tradição do platonismo e, paralelamente, com as refle-
xões que Deleuze dedicou ao conceito platónico de eidos. Mas
mais ainda, o interesse é com o projecto de inversão do plato-
nismo que Deleuze retoma de Nietzsche, permitindo a elabora-
ção de uma teoria não platonistica do reconhecimento. Para
tal, Carbone interroga o estatuto ontológico da deformação e

258
da sua relação com a forma que é suposta ter o lugar de origem
ou modelo.
Aqui o autor, voltando á analise directa das paginas de La
Recherche, mostra como mais uma vez Proust foi mais longe do
que qualquer outro – para retomar a expressão de Merleau-
Ponty – e nos indica a possibilidade de pensar um reconhecimen-
to sem semelhança. Um reconhecimento que Carbone caracteri-
za como eidetico – sublinhando porém algumas insuficiências da
leitura que Deleuze dedica a este tema – para o condensar de
seguida na expressão “Wesensschau carnal”, ou seja de uma
essência perceptível em conjunto e por meio da sua própria
deformação. Uma vez posto em luz o nó que liga inextrinca-
velmente sensível e inteligível, e na intenção de o acompanhar
mais de perto, o autor dirige a sua atenção á leitura que Mer-
leau-Ponty fez da psicanálise. Reconstruindo com rigor as eta-
pas que conduziram o filosofo francês a traçar o perfil de uma
filosofia do freudismo, muitas vezes contra o próprio Freud,
Carbone sublinha como a teoria psicanalítica, que contribui na
revelação do carácter criativo da memoria, pode levar a um
terreno em que a lembrança é indistinguível da fantasia, a con-
servação da deformação; um lugar onde o passado não repre-
senta a origem mas sim o originário, tornando-se portanto passa-
do mítico e imemorável.
A questão da temporalidade das ideais sensíveis e a interro-
gação da dimensão do mito concluem o ensaio, num capitulo
significativamente intitulado “Come riconoscere ció che non si
conosceva?” A figura de Mnemosyne, divindade grega da
memoria, é aqui convocada: possuindo ela uma peculiar amál-
gama de passividade e criação, Mnemosyne será a faculdade que
torna possível o reconhecimento de uma deformação da qual
não é dado modelo nenhum, nenhuma forma originaria,
nenhum precedente. Carbone – não deixando de observar como
também o pensamento de Merleau-Ponty movesse na direcção
de um «empirismo trascendental» – mostra como as ideias sen-
síveis, ideias a que somo iniciados pela nossa experiência sensí-
vel, chegam a abrir uma sequencia ininterrupta de retomas e
recomeços somente na medida em que fundam também, com o
mesmo gesto, um «tempo mítico» que nunca deixará de estar
de algum modo presente.

NB. Mauro Carbone, Una deformazione senza precedenti. Quodlibet,


Macerata 2004 pp. 184, 15 €.

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Loucura

Voltaire

Não se trata de renovar o livro de Erasmo, que não seria


hoje senão um lugar-comum assaz insípido.
Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro que
impede necessariamente um homem de pensar e agir como os
outros. Não podendo gerir o seu bem, é proscrito. Não podendo
ter ideias convenientes à sociedade, é excluído. Se é perigoso, é
encarcerado. Se é furioso, é agrilhoado.
O que importa observar é que esse homem não está absolu-
tamente privado de ideias. Tem-nas como todos os outros
homens durante a vigília e frequentemente quando dorme.
Pode perguntar-se porque é que a sua alma espiritual, imortal,
alojada no seu cérebro, recebendo todas as ideias muito claras e
distintas dos sentidos, nunca engendra, no entanto, um juízo
são. Ela vê os objectos como as almas de Aristóteles, Platão,
Locke, Newton, as vêem. Escuta os mesmos sons, tem o mesmo
sentido de tocar. Como é, pois, que, recebendo as percepções
que os mais sábios experimentam, não se exime de elaborar
uma combinação extravagante?
Se essa substância simples e eterna tem para as suas acções
os mesmos instrumentos que têm as almas dos mais sábios cére-
bros, deve raciocinar como elas. Quem a pode impedir? Com-
preendo forçosamente que, se o meu louco vê vermelho quando
os sábios vêem azul, se o meu louco escuta o zurro de um asno
quando os sábios escutam música, se o meu louco crê assistir a
uma comédia quando eles crêem assistir à prédica de um ser-
mão, se o meu louco escuta não quando eles escutam sim,
então a sua alma deve pensar às avessas das outras. Mas o meu
louco tem as mesmas percepções que elas. Não há nenhuma
razão aparente segundo a qual a sua alma, tendo recebido atra-
vés dos seus sentidos todos os seus utensílios, não possa fazer
uso deles. Ela é pura, diz-se. Por si própria, não está sujeita a
nenhuma enfermidade. Está munida de todos os apoios neces-
sários. O que quer que se passe no seu corpo não muda em
nada a sua essência. No entanto, conduzem-na no seu estojo
para as Petites-Maisons.
Esta reflexão pode levar à suspeita que a faculdade de pen-
sar, dada por Deus ao homem, está sujeita ao desarranjo tal
como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro
padece, da mesma maneira que um gotoso é um doente que
sofre dos pés e das mãos. Pensava pelo cérebro, tal como anda-
va com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incom-
preensível de andar, nem do seu poder não menos incompreen-
sível de pensar. Tem-se gota no cérebro tal como nos pés.
Enfim, após mil raciocínios, talvez só a fé nos possa convencer
que uma substância simples e imaterial possa estar doente.
Os doutos e os doutores dirão ao louco: «Meu amigo, ainda
que tenhas perdido o senso comum, a tua alma é tão espiritual,
tão pura, tão imortal, quanto a nossa. Contudo, a nossa alma
está bem alojada, a tua está mal. As janelas da casa estão fecha-
das para ela. Falta-lhe o ar. Ela sufoca.» O louco, nos seus bons
momentos, responder-lhes-á: «Meus amigos, como de costume,
vocês supõem o que está em questão. As minhas janelas estão
tão abertas quanto as vossas, pois vejo os mesmos objectos e
escuto as mesmas palavras. Logo, segue-se necessariamente ou
que a minha alma faz um mau uso dos seus sentidos ou que a
minha alma é apenas ela própria um sentido viciado, uma qua-

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do, uma qualidade depravada. Em suma, ou a minha alma é
louca em si própria ou não tenho absolutamente alma.»
Um dos doutores poderá responder: «Meu camarada, Deus
criou talvez almas loucas, assim como criou almas sábias.» O
louco replicará: «Se acreditasse no que me diz, seria ainda mais
louco que o que sou. Por favor, vocês que tanto sabem, digam-
me, porque é que sou louco?»
Se os doutores tiverem ainda um pouco de juízo, responder-
lhe-ão: «Não sabemos.» Não compreenderão porque é que uma
cabeça tem ideias incoerentes. Não compreenderão melhor
porque é que uma outra cabeça tem ideias regulares e encadea-
das. Acreditarão ser sábios e serão tão loucos quanto ele.

NB. Voltaire, article «Folie» in Dictionnaire Philosophique, Paris, Gar-


nier Flammarion, 1964, pp. 196-198.

(Tradução do francês por Nuno Melim)


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