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REVISTA DO SEMINÁRIO

DOS ALUNOS DO
PPGLM/UFRJ
Revista de Filosofia

Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2018


ISSN: 2236-0204
Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ
Revista de Filosofia
ISSN: 2236-0204, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2018
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E-mail: seminarioppglm@gmail.com

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Departamento de Filosofia
Programa de Pós-graduação Lógica e Metafísica
Largo São Francisco de Paula, n. 1, sala 320-B

Comissão Organizadora do XII Seminário dos Alunos do PPGLM


Daniele Pacheco, Filipe Carijó, Jonathan Sousa, Luciana Valesca Chachá, Mario Tito, Michelle
Montoya, Miécimo Ribeiro, Olívia Klem Dias, Rayane Araújo, Rosi Leny Morokawa, Thiago Augusto
Passos.

Revisores de texto
Daniele Pacheco, Mario Tito, Michelle Montoya, Rayane Araújo, Rosi Leny Morokawa,Thiago Augusto
Passos.

Agradecimentos
Ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica – PPGLM, da UFRJ
Ao Departamento de Filosofia da UFRJ
Ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
À Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Diagramação
Rosi Leny Morokawa

Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ: Revista de Filosofia. Anual.


Volume 9, número 1, 2018, 144 páginas.
Publicação digital
ISSN: 2236-0204

1. Filosofia – Periódicos. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-


graduação Lógica e Metafísica (PPGLM) 2. Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ.

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Sumário

Editorial ............................................................................................................................ 4
Truthmaker e fatos morais ............................................................................................ 7
Mariana Cabral Falqueiro (PPGLM/UFRJ)................................................................... 7
Os fundamentos transcendentais da ciência newtoniana ...................................... 21
Ludmila Aster S. Gomes (UFMG) ................................................................................. 21
Veracidade, mentira e direito a partir de “Sobre o suposto direito de mentir por
amor à humanidade” de Kant ..................................................................................... 30
Marcos Cesar Paes de Carvalho Filho (UERJ) ............................................................ 30
O que pode um professor de Filosofia? A reflexão em torno da responsabilidade
ético-política do ensino de Filosofia .......................................................................... 40
Bruno Tavares Assunção (UERJ) ................................................................................. 40
A Crise na Educação em Hannah Arendt: para além de uma análise conceitual 51
Izaquiel Arruda Siqueira (UFPE) ................................................................................ 51
Adução e análise de algumas questões vinculadas à “filosofia pré-socrática”:
um reporte aos estudos empreendidos por André Laks ........................................ 69
Viviane Veloso Pereira Rodegheri (UFRRJ) ................................................................. 69
Merleau-Ponty entre Schelling e Husserl .................................................................. 87
Edson Lenine Gomes Prado (UFSCar) ......................................................................... 87
Michel Foucault e a Antiguidade Greco-Romana ...................................................107
Priscila Céspede Cupello (PPGLM/UFRJ) ................................................................ 107
Loucura e Verdade em História da Loucura de Michel Foucault .........................116
Raphael Thomas Ferreira Mendes Pedgen (UERJ) .................................................... 116
A Cidade e o Controle dos Corpos ..........................................................................128
Eduardo Spengler (UERJ) .......................................................................................... 128

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Loucura e Verdade em História da Loucura de Michel Foucault

Raphael Thomas Ferreira Mendes Pedgen (UERJ)165

Resumo: Pretendemos analisar o modo como Foucault compreendeu o conceito de loucura


presente em História da Loucura contextualizando o tema a partir do modo como sua filosofia
problematiza a noção de sujeito no pensamento moderno. História da Loucura buscou
descrever a consolidação de uma forma de saber indicando as operações por meio das quais se
codificou o fenômeno da loucura a partir de uma grade conceitual que tinha como eixo central
a noção de doença mental. Assim, ao descrever a constituição da psiquiatria como dita ciência,
coube ao autor estudar, não as pretensas “descobertas” teóricas dos primeiros alienistas, mas
sim as condições históricas que possibilitaram a captura conceitual da loucura pela percepção
médica. Ao deslocar o eixo de análise do discurso psiquiátrico para uma apreensão da
experiência da loucura no ocidente clássico, Foucault pode identificar uma série de temas
polêmicos referentes às condições de delimitação desse objeto sobre o qual iria se sobrepor a
medicina ocidental. Mais do que a loucura propriamente, tratava-se da produção de um discurso
de verdade sobre o homem e se a reflexão recaia-se sobre uma verdade antropológica, ela só o
fazia, pois, tinha como condição de enunciação a constituição de um espaço de verdade situado
no homem por meio de uma leitura (ou captura) médica sobre a loucura em geral. Nesse aspecto,
cabe indicar que o interesse que conduzira Foucault à psiquiatria dizia mais respeito aos
procedimentos de objetivação de uma verdade do homem do que aos discursos teóricos sobre
alienação mental produzidos a partir do início do século XIX.
Palavras-chave: Loucura; psiquiatria; verdade; homem e História da loucura.

Abstract: We intend to analyze how Foucault understands the concept of madness in History
of Madness contextualizing the theme from the way in which his philosophy problematizes the
notion of the subject in the modernity. History of Madness sought to describe the consolidation
of a new form of knowledge indicating the processes by which the phenomenon of madness was
codified by a conceptual grid that had his central axis the notion of mental illness. So,
describing the constitution of the psychiatry as a science, it was up to the author to study, not
the alleged “discoveries” of the first alienists, but rather the historical conditions that allowed
the conceptual capture of madness by the medical perception. By shifting the axis of analysis
from psychiatric discourse to an expression of the experience of madness in the classical period
of western culture, Foucault was able to identify a series of controversial themes concerning
the delimitation of this object that would be overlapped by western medicine. More than

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Mestrando em Filosofia pela UERJ. Bolsista FAPERJ.

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madness itself, Foucault was concerned whit the emergence of a discourse of truth about
men and if the reflection falls into an anthropological truth, it only did so because it had
as a condition the constitution of a form of truth placed in men by a medical reading (or
capture) of madness in general. With this point of view, it should be pointed out that Foucault’s
interest in psychiatry referred more to processes of objectifying a truth of men other than with
theoretical discourses on mental alienation, produced in the XIXth century.
Keywords: Madness; psychiatry; truth; men and History of Madness.

INTRODUÇÃO

Pretendemos refletir brevemente sobre as relações traçadas entre verdade e loucura a


partir da obra de Michel Foucault, especificamente em História da loucura. Acreditamos que
esse livro estreia no pensamento de Foucault a crítica à noção tradicional de sujeito,
compreendido como fundamento de conhecimento. Tal crítica se afirma a partir da noção de
“ilusão antropológica”, fortemente argumentada no período arqueológico compreendida na
década de 1960. Contudo, para esclarecermos o modo pelo qual o filósofo francês veio a
formular sua crítica, iremos considerar seus textos pouco conhecidos de 1954, Introdução (In:
Binswanger) e Maladie Mentale et personnalité, para então, acompanhar o amadurecimento do
seu pensamento que o teria conduzido até a formulação da crítica presente em História da
Loucura.

OS PROJETOS DE FUNDAMENTAÇÃO DA PSICOLOGIA

Recuando aos trabalhos da sua juventude, aqueles situados na década de 1950,


encontramos Michel Foucault dedicado ao tema da possibilidade da fundamentação da
psicologia. Escritos como a Introdução (In: Binswanger) e Maladie Mentale et personnalité
refletem, cada um a sua maneira, essa preocupação. Cabe sublinhar que o interesse pela
possibilidade de fundamentação não corresponde a uma questão particular do pensamento do
jovem Foucault, mas diz respeito à própria história da psicologia, que se viu as voltas com essa
questão desde seus momentos iniciais. A partir da sua afirmação como disciplina científica no
pensamento alemão professado por autores como Wundt, Brentano, Dilthey, etc., foram
diversos os autores que buscaram afirmar a necessidade de formulação de um projeto que
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garantisse o estatuto científico dessa disciplina. Na França, por exemplo, em 1928, Politzer
(1998) havia publicado Crítica dos fundamentos da Psicologia, texto no qual discutia a
possibilidade da fundamentação científica da Psicologia. Em 1949, Daniel Lagache (1988) iria
retomar a discussão no seu trabalho intitulado A unidade da psicologia.
Os primeiros escritos de Foucault também não se distanciam muito dessa visão que
presava por uma fundamentação da psicologia. No texto de Introdução (In: Binswanger),
testemunhamos o ensaio de uma fundamentação antropológica do ser-homem (menschsein) a
partir de uma elucidação das coordenadas existências da realidade humana. A partir de uma
abordagem fenomenológica, Foucault buscou assinalar o modo como todo o saber sobre o
homem (inclusive a psicologia) deveria se assentar sobre um saber antropológico fundamental.
No texto, ele declara a ideia desse projeto:

(...) estas linhas de introdução não têm senão um propósito: apresentar uma forma
de análise cujo projeto não é o de ser uma filosofia, e cujo fim não é o de ser uma
psicologia; uma forma de análise que se designa como fundamental para todo
conhecimento concreto, objetivo e experimental. Enfim, uma análise cujo princípio
e método são determinados, desde o início, pelo privilégio absoluto de seu objeto: o
homem, ou melhor, o ser-homem, o menschsein. (FOUCAULT, 2010c, p. 71-72)

Já em Maladia menatale et personnalitè tratou de especificar a patologia mental a partir


de uma dupla crítica: uma referente ao paradigma naturalista que buscava sustentar uma
analogia arbitrária entre a concepção de doença orgânica e a noção de doença mental e outra
endereçada aos componentes metapsicológicos compreendidos como abstrações teóricas
resultantes de uma transposição de método das ciências orgânicas para a psicologia. Em
oposição a esses preconceitos metodológicos e conceituais, Foucault propunha uma
antropologia centrada no homem como ser natural e social (FOUCAULT, 1954). O contexto
espiritual que determinava a atmosfera da época na França era aquele marcado pela
fenomenologia, marxismo, psicanálise e estruturalismo. O próprio Foucault parece reconhecer
a marca dessa influência nos seus primeiros escritos. Numa entrevista de 1883 o filósofo teria
afirmado:

Maladie mentale et personnnalité é uma obra totalmente destacada de tudo o resto


que escrevi depois. Eu a escrevi em um período no qual as diferentes significações
da palavra alienação, seu sentido sociológico, histórico e psiquiátrico se confundiam
em uma perspectiva fenomenológica, marxista e psiquiátrica. (FOUCAULT, 2010b,
p. 341)

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Mas se o interesse inicial consistia num projeto de fundamentação, logo as dificuldades


que emergiam em torno da possibilidade de realização de tal projeto acabaram se convertendo
num diagnóstico sobre a condição de possibilidade do próprio saber sobre o homem. Tal
movimento representa o período de ruptura do pensamento do filósofo francês com a
fenomenologia, marxismo e psicanálise e aponta para o amadurecimento da crítica que iria
caracterizar seu método arqueológico. Segundo Eribon:

Foi na encruzilhada de influências heterogêneas, díspares, que Foucault forjou as


bases do seu trabalho [...] Aceitar apenas uma ou outra dessas tradições que se
agregam, se coagulam e se fundem na História da loucura é condenar-se a não
compreender nada do que foi o nascimento da obra de Foucault, que poderá dizer
posteriormente, e com exatidão, que procurou fazer uma história racional da razão.
Pois, se o lirismo do projeto que percorre as páginas da História da Loucura pode
realmente ser fundamental para compreender as condições nas quais nasceu o projeto
desse livro, nem por isso é menos verdade que a obra é um trabalho histórico.
(ERIBON, 1996, p. 95)

Ora, a partir de História da loucura, Foucault buscou apontar que as contradições das
ciências humanas, não eram efeitos derivados de um descaso metodológico-científico que
emergiam como “mal do século” a partir das diferentes abordagens epistemológicas na
psicologia. Mas elas eram, antes, a própria condição de possibilidade de organização das
ciências do homem que ao fundar uma verdade no homem constituíram, também, um domínio
no qual este surgia como um duplo: sujeito e objeto de conhecimento. A intuição que conduz o
pensamento de Foucault aponta para a suspeita de que as contradições das psicologias, que ele
mesmo havia tentado apaziguar nos escritos da década de 1950, não eram propriamente
contradições, mas o efeito do modo como o saber moderno concebia a figura do homem como
duplo empírico-transcendental. Fundar uma verdade do homem através do homem, tal como
pretendem as ciências humanas, implica na articulação de um jogo de verdades que desloca as
análises do empírico para o transcendental confundindo os dois domínios. A contradição, assim,
seria própria do modo como os termos estavam postos na estrutura de saber moderno. Segundo
Edgardo Castro:

O mal-estar já não é mais o da psicologia, mas o da antropologia, entendida em


sentido muito amplo como disposição ou sonho da cultura moderna de querer
encontrar no homem o fundamento do próprio homem. Nessa perspectiva, as
dificuldades para abordar o conhecimento do homem segundo o modelo das ciências

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da natureza e as oscilações que caracterizam as ciências humanas, reveladas em


Doença mental e personalidade (...) deixam de ser problema fundamentalmente
metodológico ou epistemológico. (CASTRO, 2014, p. 37)

O mal-estar das ciências do homem convertia-se assim em diagnóstico de uma ilusão


antropológica. Historia da loucura lança luz sobre essa questão deslocando o eixo da
fundamentação da psicologia para uma denuncia ao sonho antropológico cuja origem é
identificada por Foucault no advento das ciências médicas que tomam o homem a partir da sua
finitude. A psiquiatria do início do séc. XIX se inscreve no âmbito deste projeto. Nesse aspecto,
ao invés de fundar um saber do homem no homem (tal como fora esboçado anteriormente nos
escritos de 1954), Foucault irá descrever os momentos históricos que teriam confeccionado
aquilo que hoje compreendemos por sujeito, indicando sua emergência num passado recente.

A CRÍTICA À NOÇÃO DE SUJEITO

Num artigo de 1982 Foucault esclarece que, ao longo da sua obra, o objeto com o qual
seu pensamento se viu às voltas era aquele pertinente à questão do sujeito: “o meu objetivo (...)
foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos
tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p. 231). Tratava-se de esclarecer as operações
históricas por meio das quais nossa cultura instaura sobre o homem diferentes jogos de verdade
a partir de diferentes regimes de subjetivação. A noção de sujeito, no âmbito desta afirmação,
deve ser compreendida como o efeito dos modos de sujeição: operação singular que indica a
constituição histórica de verdades que agem sobre nós discriminando condutas, delegando
papeis, fixando identidades, possibilitando experiências; isto é, compondo um campo complexo
no qual o homem é convidado a refletir sobe si como ser histórico.
Nesse sentido, o conceito de homem não encerraria em si uma compreensão prévia como
um dado natural que serviria de superfície de inscrição para os modos de produção subjetiva.
Ele seria o próprio efeito do movimento histórico no qual o sujeito se produz. Haveria, assim,
uma relação de imanência entre as noções de sujeito e história na filosofia foucaultiana: marca
da expressão de um pensamento que não cessou de se interrogar sobre as condições pelas quais
o homem ocidental veio a enunciar, em distintas épocas, diferentes verdades de si.

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Parece-me que a aposta, o desafio que toda história do pensamento deve suscitar,
está precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de
dimensão determinada, pode efetivamente constituir, na história do pensamento, um
momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de
sujeito moderno. (FOUCAULT, p. 13, 2006)

O papel atribuído ao sujeito na historiografia foucaultiana representa assim uma crítica


à tradição ocidental que desde a modernidade fez da subjetividade um elemento a priori. Para
Foucault, não há um a priori em relação à história, pois a própria história seria constitutiva das
formas de conhecimento. Isto é, trata-se de um outro a priori cuja estrutura não se encontra
fixada numa subjetividade transcendental ou numa consciência originária:

Esse a priori é aquilo que numa dada época, recorta na experiência um campo de
saber possível, define o modo de ser dos objetos que aí aparecem, arma o olhar
cotidiano de poderes teóricos e define as condições de conhecimento que se pode
sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro. (FOUCAULT,
2016, p. 219)

Logo, trata-se de um campo de determinação epistêmica que não se encontra fundado


no sujeito, mas que visa na história os movimentos necessários para organizar uma leitura clara
das formas de constituição das diferentes ordens de saber que, a cada época, enunciou suas
verdades, permitindo diferentes olhares a partir de variados arranjos discursivos. Afinal, “uma
“época” não preexiste aos enunciados que a exprimem, nem às visibilidades que a preenchem”
(DELEUZE, 2005, p. 58). Diferentemente da tradição metafísica ocidental, que se interrogou
historicamente pelas condições de possibilidade do conhecimento, ou da epistemologia
francesa, que se interrogava pelas condições de verificação da verdade científica, o projeto de
Foucault tratou de se interrogar as condições de existência do saber. O campo de interrogação
sobre tais condições não era aquele senão a própria história: terreno no qual seria possível lançar
luz sobre os modos de constituição das verdades a partir das suas determinações temporais
formatadas em diferentes codificações perceptivas e discursivas. Sob quais condições históricas
uma determinada forma de saber conquistou sua existência? Sob quais formas de saber
produziu-se as diferentes relações entre as condições de enunciação e de visibilidade na ordem
do conhecimento? Sob quais jogos de verdade o homem viria a se perceber e se enunciar? Sob
quais condições de verdade produziram-se sujeitos?

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O que Foucault espera da História é esta determinação dos visíveis e dos enunciáveis
em cada época, que ultrapassa os comportamentos e a as mentalidades, as ideias,
tornando-as possíveis. Mas a História só responde porque Foucault soube inventar,
sintonizando com as novas concepções dos historiadores uma maneira propriamente
filosófica de interrogar, maneira nova e que dá nova vida à história. (DELEUZE,
2005, p. 59)

A originalidade pode ser compreendida, em certa medida, a partir do modo como


Foucault soube situar os regimes discursivos e os campos perceptivos num domínio que não só
dispensava o sujeito como recurso epistemológico (como pontos de visibilidade e de
enunciação), mas que também distinguia as subjetivações como efeito dessas formatações
históricas. Isto é, há um discurso e há uma evidência, mas eles independem de qualquer
constituição subjetiva; pois, para Foucault, não há nenhuma consciência intencional, nem
apercepção originária ou ego transcendental. As regras de constituição, distribuição e
organização das formações históricas seriam, antes, da ordem do acaso, da contingência e do
acontecimento. A partir delas é que se orientam os espaços perceptivo-discursivos dos saberes
e a relação entre esses espaços e o sujeito seria de uma ordem derivada na qual este, o sujeito,
emergiria mais como o efeito de uma modulação temporal do que como condição gnosiológica.
Não há para Foucault um sujeito que enuncia e percebe a história, mas um sujeito que, em
determinadas condições, é enunciado e percebido historicamente. Logo, ao querer escrever a
história dos processos de produção de verdade no pensamento ocidental, Foucault indicou o
papel do sujeito como o efeito regional dessas verdades históricas: a História da loucura
descreve as relações nas quais o louco é enunciado e percebido como doente mental;
Nascimento da clínica descreve o momento em que a cultura ocidental enuncia sobre o corpo
humano uma finitude percebendo o homem como ser doente; As palavras e as coisas trata do
momento em que o saber moderno inaugura um discurso sobre o homem, enquanto duplo
empírico-transcendental, percebendo-o e enunciando-o como ser que vive, trabalha e fala;
Vigiar e punir trata de refletir o momento histórico quando o homem é apreendido
historicamente como passível de punição e codificado como delinquente e, por fim, o conjunto
da obra História da Sexualidade reflete as formas de subjetivação históricas nas quais o homem
é convocado a falar a verdade de si pela cifra do desejo. Contudo, no conjunto da sua obra,
devemos indicar que a História da loucura tem um papel privilegiado na formulação da sua
crítica a noção tradicional de sujeito.

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CRÍTICA ANTROPOLÓGICA E HISTÓRIA DA LOUCURA

Ora, se o tema sobre o “sujeito” não cessa de aparecer na obra de Foucault como forma
de problematização histórica; cabe esclarecermos então, não só o sentido de tal crítica, mas o
modo como Foucault alcançou pela primeira vez as condições de formulação desse problema.
Isto é, em que ocasião e sob quais circunstâncias o tema do sujeito apareceu como “questão”
cuja existência apontaria incessantemente para a crítica problematizadora que se efetuou
posteriormente na arqueologia e nas genealogias? Não se trata de fazer uma leitura arqueológica
ou genealógica do conceito de sujeito na própria obra do filósofo. Mas trata-se, antes de tudo,
de situar no âmbito do seu pensamento, a delimitação de um problema que constituiria um
campo de pesquisa. De início, indicamos que seu trabalho de doutoramento, publicado em 1961,
já aponta para essa questão. História da loucura é a primeira publicação de Foucault que
investiga as relações entre homem e verdade na cultura ocidental num sentido arqueológico.
Nessa obra o autor buscou descrever a consolidação de uma forma de saber indicando
as operações por meio das quais se codificou o fenômeno da loucura a partir de uma grade
conceitual que tinha como eixo central a noção de doença mental. Assim, ao descrever a
constituição da psiquiatria como dita ciência, coube ao autor estudar, não as pretensas
“descobertas” teóricas dos primeiros alienistas, mas sim as condições históricas que
possibilitaram a captura conceitual da loucura pela percepção médica. Nesse sentido, Foucault
não se propôs a escrever uma história da constituição psiquiátrica; mas ele se ocupou, antes,
com as condições de possibilidades históricas da produção subjetiva desse foro íntimo, a psique,
sob a qual poder-se-ia alojar a verdade médica.
Ao deslocar o eixo de análise do discurso psiquiátrico para uma apreensão da
experiência da loucura no ocidente clássico, Foucault pôde identificar uma série de temas
polêmicos referentes às condições de delimitação desse objeto sobre o qual iria se sobrepor a
medicina ocidental. Mais do que a loucura propriamente, tratava-se da produção de um discurso
de verdade sobre o homem e se a reflexão recaia-se sobre uma verdade antropológica, ela só o
fazia, pois, tinha como condição de enunciação a constituição de um espaço de verdade situado
no homem por meio de uma leitura (ou captura) médica sobre a loucura em geral. Nesse aspecto,
cabe indicar que o interesse que conduzira Foucault à psiquiatria dizia mais respeito aos
procedimentos de objetivação de uma verdade do homem do que aos discursos teóricos sobre
alienação mental produzidos a partir do início do século XIX. Afinal, não há história das ideias,
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mas sim uma crítica arqueológica às formações históricas dos regimes de subjetivação. E se de
alguma forma as análises de História da loucura dedicam certa atenção às teorias de Willis,
Tucke, Pinel, Esquirol, etc.. elas o fazem a título de uma elucidação discursiva sobre a
constituição da grade conceitual por meio da qual aprisionou-se as experiências da loucura no
domínio da doença mental.
Assim, se a psiquiatria se apresenta como tema privilegiado para os estudos sobre os
modos históricos de produção de verdade do homem como sujeito, isso se dá pelo fato de que,
para Foucault, a constituição desse domínio de verdade moderna seria tributária de um gesto
anterior e mais fundamental que pôs a cultura ocidental em diálogo com a experiência da
loucura. Trata-se de um gesto de exclusão. Gesto esse que teria projetado sobre nós uma divisão
entre loucura e razão tão clara quanto o dia e a noite. Esses dois termos, inclusive, dia e noite,
irão figurar entre as imagens que compõem o vocabulário de História da loucura para ilustrar
o termo da relação que o ocidente iria inaugurar com a exclusão da loucura. Mas o ponto de
articulação entre “a exclusão da loucura” e “instauração e uma verdade antropológica” não se
apresenta em História da loucura como o efeito de uma interpretação; mas significa, antes, o
eixo central da crítica foucaultiana. Pois, segundo o filósofo, a articulação entre esses dois
eventos tem sua coerência e unidade na produção desse domínio que os saberes psi’s iriam
reivindicar para si. Isto é,

Essa grande divisão, ele [o homem moderno] iria aprender a dominá-la, a reduzi-la
ao seu próprio nível; a fazer nele o dia e a noite; a alinhar o sol da verdade e a frágil
luz da sua verdade. O fato de ter dominado sua loucura, tê-la captado entregando-as
às masmorras de seu olhar e de sua moral, tê-la desarmado empurrando-a para um
canto dele próprio, autorizava o homem a estabelecer, enfim, dele próprio para ele
próprio, essa espécie de relação que chamamos de “psicologia”. Foi preciso que a
Loucura cessasse de ser Noite e se tornasse sombra fugitiva na consciência para que
o homem pudesse pretender deter sua verdade e desatá-la no conhecimento.
(FOUCAULT, 2010d, p. 159)

Produção de verdade e exclusão da loucura, dois movimentos simultâneos que


encontram a força de sua expressão histórica, nas análises de Foucault, como chave de leitura
para o esclarecimento do surgimento da psiquiatria como domínio de saber. A força deste saber
emana desta dupla colocação: o recorte de um domínio de verdade situado no próprio homem
e a exclusão da loucura capturada e dominada por esse olhar racional que apartava-se do louco.
A descrição deste processo coincidia com uma análise das condições de possibilidade da própria

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psiquiatria. Assim, se uma história da psiquiatria se faz presente em História da loucura, ela o
faz como o efeito de um gesto simultâneo à análise central referente à emergência da verdade
antropológica.
É justamente aqui que podemos apontar uma das originalidades de História da loucura.
Sua narrativa não descreve o desenrolar histórico de um conjunto de ideias sobre as quais
arquitetou-se o edifício teórico da psiquiatria. Ela se projeta sobre outro conjunto de elementos,
traça um caminho norteado por outros interesses que destaca a psiquiatria a partir de uma
perspectiva de relance, como alguém que ao analisar uma luz refratada por um cristal, não deixa
de enxergar também o cristal. Mais do que indicar os elementos necessários para uma narrativa
sobre a constituição da psiquiatria no ocidente, a História da loucura trata de descrever, no
âmbito das suas “lutas” e “embates”, esse processo histórico implicado na criação (no sentido
nietzschiano de Ursprung) de um conhecimento psicológico. Mais do que indicar as operações
inscritas num movimento de descoberta da doença mental, a história foucaultiana busca lançar
luz sobre os artifícios de produção de verdade que confeccionaram sobre o homem algo como
uma psique, algo como um foro íntimo sobre o qual poder-se-ia alojar um saber antropológico
comunicado como psicológico. Assim, a pergunta que não cessa de aparecer ao longo da obra,
fazendo sua sombra percorrer tanto sobre as reflexões filosóficas quanto nas análises históricas,
se debruça sobre a seguinte questão: “como chegamos a interrogar-nos sobre a verdade do eu,
fundamentando-nos sobre sua loucura?” (FOUCAULT, 2010b, p. 331).
Com isso parece-nos que Foucault busca instigar seus leitores a uma reflexão que não
teria deixado de fascinar a ele mesmo: quais as relações tecidas entre verdade e loucura que
teriam nos autorizado a falar uma verdade sobre o homem? O modo pelo qual os argumentos
de História da loucura se projetam sobre essa indagação mostra como Foucault compreende a
objetivação da loucura como condição de possibilidade dessa experiência de si que o homem
moderno faz ao buscar discorrer uma verdade de si a partir de uma ciência do homem.

O homem ocidental só pôde se constituir a seus próprios olhos como objeto de


ciência, só se situou no interior de sua linguagem, e só se atribuiu, nela e por ela,
uma existência discursiva por referência à sua própria destruição: da experiência da
Desrazão nasceram todas as psicologias e a própria possibilidade da psicologia.
(FOUCAULT, 2015, p. 217)

Compreende-se assim que a verdade enunciada sobre o homem a partir da modernidade


corresponde a uma “verdade” cuja positividade deriva de uma negatividade. Isto é, a
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objetivação do homem, enquanto algo tematizado por um conjunto de saberes só encontra


condição de possibilidade de expressão histórica a partir da delimitação de um campo
discursivo cuja prática tende a discriminar o verdadeiro do homem a partir da sua não verdade,
tal como a psiquiatria discorre sobre a razão a partir de uma objetivação da loucura, ou a
psicologia que determina a natureza das condutas normais a partir de um estudo das condutas
anormais. É nesse sentido que podemos compreender a sentença proferida em 1962: “nunca a
psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da
psicologia” (FOUCAULT, 1975, p. 59).

CONCLUSÃO

Verdade e loucura se projetam, então, num jogo de mútuo pertencimento que possibilita-
nos, não só compreender as condições de surgimento da psiquiatria e das ciências do homem,
mas, sobretudo, compreender essa relação complexa estabelecida entre o homem moderno e
suas formas de saber que convidam-no a refletir sobre si, a enunciar uma verdade sobre si
através de uma exclusão incessante daquilo que se impõe como o negativo da sua imagem. Cada
sociedade, cada cultura em cada momento histórico produz seus próprios jogos de exclusão por
meio dos quais se torna possível elencar aquele conjunto de princípios que definem suas
estruturas de identidade e de diferença. A verdade que o homem moderno ocidental teria
aprendido a ver em si pertence a esse jogo complexo cuja tessitura não deixa de acusar as
relações delicadas e sutis que definem nas nossas diferenças um parentesco burlesco com aquilo
que buscamos nos distanciar. Daí a afirmação de Foucault de “a loucura só existe em uma
sociedade, ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa
que a excluem ou a capturam” (FOUCAULT, ditos I, p. 163). Trata-se então de uma relação de
cumplicidade entre os limites traçados por uma cultura e aquilo que aos olhos dessa mesma
cultura se vê identificado como marca da transgressão. A loucura, nesse aspecto, aparece-nos
sempre como uma experiência-limite. Pois essa mesma divisão que havia nos possibilitado
diferenciar a loucura da razão, nos projetou para essa relação inacabada na qual a contemplação
do nosso reflexo (nossa identidade) trás consigo também essa imagem do outro cuja existência
nos serve para indicar o limite que nos diferencia (nossa alteridade). Assim, para Foucault, o
homem moderno é um duplo jogo de reflexos: identidade e diferença, sujeito e objeto,
racionalidade e loucura, verdade e não-verdade.
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