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PUC-SP
São Paulo
2017
Ernesto Pacheco Richter
São Paulo
2017
Ernesto Pacheco Richter
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Alessandro Soares da Silva – USP
____________________________________________
Profa. Dra. Analice de Lima Palombini – UFRGS
____________________________________________
Prof. Dr. Jorge Broide – PUC/SP
____________________________________________
Prof. Dr. Willis Santiago Guerra – PUC/SP
____________________________________________
Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval – PUC/SP
AGRADECIMENTOS
Ainda que a escrita de uma tese seja uma atividade solitária, o caminho
percorrido até o momento em que as ideias viram palavras escritas é repleto de
companheiros. Gostaria, portanto, de deixar expressos meus agradecimentos
àqueles que, de alguma forma ou outra, contribuíram para que este trabalho
pudesse ser realizado.
This work aims to analyze the influences of psychoanalytic theory in the process of
constitution of Political Psychology, as research field. Initially, we focus on French
authors, such as, Alexis de Tocqueville, Gabriel Tarde and Gustave Le Bon, whose
contributions regarding French revolutions are relevant to the field. On the other
hand, we present the Anglophone authors Graham Wallas and Harold Lasswell, as
their thoughts bring different perspectives to political events, but no less significant
for the later institutionalization of Political Psychology. Afterwards, we analyze
Freud’s social texts, as well as the metapsychological ones, in order to elucidate the
political elements underlying psychoanalytic theory. Finally, we present three authors
we consider essential to the history of the field: Wilhelm Reich, Erich Fromm and
Theodor Adorno, whose main interest was the study of authoritarianism. Through a
critical and reflexive analysis, we show the contributions of psychoanalysis and how it
was appropriated by these authors. This research is justified by filling a gap in the
history of Political Psychology, and showing the relevance that psychoanalysis has
had for political thought, especially during and shortly after World War II.
Furthermore, the contributions of these authors are undoubtedly present, given the
growing adherence to the authoritarian discourse observed in the 21st century.
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO
Essa jornada levou a outros portos. Próximo porto: São Paulo, Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. Na mala trazíamos Michel Foucault e
Sigmund Freud, na cabeça a certeza de que não poderíamos negligenciar a relação
entre indivíduo e sociedade. Novos portos, novos ares. Assim, entramos em contato
com a teoria crítica da sociedade, a qual reafirmou nossas convicções acerca da
relevância da teoria psicanalítica na apreensão dos fenômenos sociais. Os teóricos
frankfurtianos, ao complementarem a teoria social com as contribuições
psicanalíticas, forneceram o estímulo necessário. Portanto, ainda que tenhamos
desembarcado psicólogos sociais, não abandonamos nossa perspectiva teórica
inicial. Poderíamos dizer que houve uma ressignificação da teoria, numa espécie de
Nachträglichkeit, que proporcionou o desvelamento de um Freud, até então,
renegado: o social.
10
Não sabíamos que ele estava incólume em nossa mala; sua descoberta
atiçou nosso interesse. Suas contribuições acerca dos fenômenos sociais tinham
sido praticamente ignoradas por nós; o Freud clínico foi o que nos interessou. A
leitura que realizamos de seus textos sociais foi superficial, desprezando a riqueza
da aplicabilidade da teoria psicanalítica aos fenômenos sociais. A psicanálise
aplicada ou em extensão ficou invariavelmente restrita à análise, muitas vezes
selvagem, de obras literárias e artísticas.
A psicologia política tornou-se o ponto de partida óbvio, pois este campo está
institucionalizado e vem se expandindo no meio acadêmico. Atualmente dispomos
de revistas científicas reconhecidas internacionalmente, cujos artigos se constituem
como um arquivo histórico da relação entre psicologia e política, entre os aspectos
subjetivos dos indivíduos e os objetivos da política. A revista Political Psychology
Journal é o periódico oficial da International Society of Political Psychology e, por
conseguinte, representa uma espécie de arquivo oficial. Ainda que os artigos
publicados desde 1978, ano do primeiro volume, não possam e não devam ser
menosprezados, pois não há história sem arquivo, não podemos tomá-los como
única fonte. Se assim procedêssemos, estaríamos diante de uma história oficial que
12
impede outro olhar a ela. Impede a história viva, aquela na qual a interpretação tem
espaço. Nesse sentido, agregamos outras vozes, outros arquivos, que possibilitem
reinterpretação e, por conseguinte, ir além da história oficial.
Não é por essas semelhanças que os elegemos como objeto de estudo. Essa
eleição se deve ao impacto teórico e epistemológico que subjaz ao exílio e, também,
13
Adela Garzón destaca, por sua vez, que a psicologia política é mais do que
uma simples disciplina, pois se trata de uma ferramenta que “permite ao psicólogo
colocar em contato cidadãos e políticos e à psicologia com as necessidades e
urgências que se apresentam em cada momento nas sociedades democráticas”
(GARZÓN, 2008, p. 5)2. Assim sendo, trata-se de um campo de atuação para a
transformação social e política. Essa definição, com a qual concordamos, é mais
ampla e está em sintonia com uma área de atuação eminentemente interdisciplinar.
1
As citações de obras estrangeiras utilizadas nesta tese são traduções nossas. Portanto, sempre que houver
citações literais apresentaremos o texto original em nota de rodapé para que o leitor possa cotejá-las com nossa
tradução. [...] una dispersión y un aislamiento bastante grandes, cuya consecuencia es la multiplicidad de
enfoques y la fragmentación temática; la falta de paradigmas integradores y una conceptualizacién aún incierta.
2
[...] permite al psicólogo poner en contacto a ciudadanos y políticos, y a la psicología con las necesidades y
urgencias que presentan em cada momento las sociedades democráticas actuales.
16
É nesse sentido que Dorna (1998) salienta que a cultura, “neste caso a
francesa, constitui uma matriz fecunda para o desenvolvimento das ideias políticas e
das condutas sociais. Não é casualidade que a Revolução de 1789 e os fatos
políticos e ideológicos, contraditórios, que levaram de Robespierre a Napoleão a
inspirar os primeiros esboços da psicologia política moderna” (p. 50)4.
3
[...] the Jacobin de 1792, filled with public spirit, the Declaration of the Rights of Man in his hands, and the love
of humanity in his heart, should have become the Terrorist of 1794.
4
[...] en este caso francesa, constituye una matriz fecunda para el desarrollo de las ideas políticas y las
conductas sociales. No es casualidad que la Revolución de 1789 y los hechos políticos e ideológicos,
contradictorios, que la conducen de Robespierre a Napoleón inspiren los primeros esbozos de la psicología
política moderna.
17
5
[...] representa una fuente de inspiración psicológica de la política. Sus análisis sobre la educación de lós niños,
el matrimonio, el papel del padre y de las pasiones humanas lo sitúan como uno de los precursores del freudismo
social, del utopismo, de la dinâmica de grupo y de la psicología social
6
[…] sostiene que los hombres se hacen trampa a si mismos por exceso de cálculos sobre la estrategia de los
demás. De hecho, la practica social demuestra que los ideales se alimentan psicológicamente de creencias,
valores y emociones.
7
[…] su voluntad de desarrollar una ciencia política basada en la psicología científica: “la historia es en el fondo
un problema psicológico”.
18
Ainda que tenhamos optado por nos deter nesses autores, convém salientar
que vários pensadores colaboraram para que a psicologia se instaurasse na
academia. Não podemos, ainda, deixar de mencionar o nome daquele que primeiro
cunhou o termo que dá nome ao nosso campo de estudo: Adolf Bastian (1826-
1905), etnólogo alemão que em 1860 lançou uma obra composta de três volumes
intitulada O homem na História - Der Mensch in der Geschichte, cujo terceiro volume
chama-se Zur Begründung einer psychologischen politische - Para a criação de uma
psicologia política. O primeiro: Die Psychologie als Naturwissenschaft – A Psicologia
como ciência - e o segundo Psychologie und mythologie – Psicologia e mitologia.
Além de ser a obra mais antiga que faz referência à psicologia política, as
elaborações desenvolvidas por Adolf Bastian influenciaram na elaboração do
conceito de inconsciente coletivo do psicanalista suíço Carl Jung, o que nos importa,
pois estabelece uma relação entre a psicologia política com a psicanálise, que é
fundamental em nosso trabalho.
O papel das emoções, dos sentimentos e dos afetos tem sido invariavelmente
destituído de qualquer relevância no estudo da política. Cientistas políticos, filósofos,
historiadores e sociólogos que se preocupam com os fatos e instituições políticas
parecem não perceber o quanto as emoções fazem parte da natureza humana.
Basta observarmos o momento político que passa o Brasil para verificarmos que não
há como evitá-las e não as levar em consideração quando nos dedicamos a
compreender a política. As passeatas que têm sido realizadas em solo brasileiro, os
debates no Congresso Nacional e as coberturas realizadas pela mídia deixam
transparecer claramente o importante papel que as emoções desempenham no
âmbito da política. Xingamentos, ações tresloucadas, análises descabidas, a busca
nada democrática e insana pelo poder e agressões físicas e verbais são exemplos
de que a política não está isenta da interferência das emoções.
Esse exemplo que nos é próximo evidencia que a política não pode ser
apreendida apenas por meio de seus aspectos cognitivos, como se os sujeitos
fossem plenamente racionais e conscientes. Isso não quer dizer que devamos
renunciar e desconsiderar esses aspectos; caso quiséssemos analisar a política
única e exclusivamente por meio das emoções seríamos acusados, com toda razão,
de produzir estudos baseados no determinismo psicológico. Porém não podemos
desconsiderar a subjetividade dos atores políticos, pois não há política e tampouco
sociedade sem os sujeitos que a fazem e a compõem, pois entendemos que os
indivíduos se compõem na interseção entre aquilo que lhes é individual e os
determinantes sociais e suas instituições.
nos habita e que por muito tempo foi e tem sido negligenciado pela academia:
nossas emoções, nossos afetos, nossos sentimentos. Nesses momentos vemos
aflorar sobremaneira nossas duas faces, nossos dois lados: o humano e o animal,
nosso lado racional e nosso lado irracional.
10
De los grandes pensadores del siglo XIX, solo John Stuart Mill y Tocqueville lograran rehuir las trampas de una
posición organicista y teológica, al insistir resueltamente en que era necesario encontrar microfundamentos en el
análisis de las instituciones y de los procesos sociales. [...]. Al afirmar que sus cimientos fundamentales son los
mecanismos psicológicos, quiero decir claramente que le sirven para construir y explicar algo más.
23
humano criou: a civilização, se é que podemos nos rotular dessa maneira. Talvez o
que produzimos seja apenas distintas formas de mal-estares com o passar do
tempo. Cada época produz seu mal-estar que oprime os indivíduos. As emoções
afloradas nas últimas manifestações no Brasil demandam que as emoções sejam
retomadas para pensarmos o momento político e social em que vivemos, pois não
há política nem sociedade que não sejam constituídas por seres humanos, e vice-
versa. Os indivíduos são razão e emoção. Entretanto, é inegável que elas não
podem ser quantificadas, não são palpáveis, não podem ser medidas com precisão
por experimentos laboratoriais, replicadas como se clones fôssemos; ou seja, o
estudo das emoções, dos sentimentos, daquilo que nos afeta não se coaduna aos
preceitos de ciência pragmática e empirista. Isso não quer dizer que a psicologia
deva ser considerada a regia scientia, pois entendemos que o ser humano se
desenvolve a partir de três campos: o biológico, o psicológico e o social. Assim, seria
leviandade requerer a supremacia sobre as outras ciências sociais. Queremos, sim,
reafirmar que não há como pensar a política e a sociedade sem levarmos em
consideração seus atores políticos e sociais, suas subjetividades, suas emoções,
pois acreditamos que elas fazem parte de nós e a vemos aflorar diuturnamente, em
maior ou menor grau de intensidade.
os sentimentos daqueles que ainda não se faziam nem ouvir nem ver, afinal
quanto ao fundo das opiniões e dos costumes, só tínhamos ideias confusas
e muitas vezes errôneas. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 43)
Buscar o fundo das opiniões e dos costumes, para nós, é impossível sem
considerar a participação dos atores políticos e suas subjetividades. Notamos nessa
passagem do pensamento tocquevilleano a indicação de que para compreendermos
determinado momento social e político são necessárias, talvez indispensáveis, as
contribuições psicológicas. Enquanto observamos indícios em Tocqueville, Gabriel
Tarde e, posteriormente, Gustave Le Bon, é em Theodor Adorno, em pelo século
XX, quando as ciências psicológicas já estavam estabelecidas, que o papel da
psicologia para a teoria da sociedade é enfatizado. Ele vai além, revelando o quanto
a psicanálise é relevante ao entendimento da sociedade e, consequentemente, da
política; ele afirma que diante do fenômeno do fascismo, julgou-se necessário
“completar a teoria da sociedade com a psicologia, sobretudo a psicologia social
analiticamente orientada” (ADORNO, 2015a, p. 71-72).
Essa tarefa de aproximação de distintos campos do saber não era nada fácil
na época de Tocqueville, pois a psicologia, além de estar em seus primórdios,
buscava adaptar-se aos métodos das ciências naturais com o intuito de ser
reconhecida como ciência. Contudo, suas observações são bastante pertinentes
quanto à existência de algo em nossa natureza que parece imutável ou tende à
repetição. Ele é contundente a esse respeito, escrevendo:
Por que os franceses, após anos de lutas sangrentas, não mudariam sua
natureza? Esta é a questão posta em suas palavras. Ao perceber esta
incongruência, ele faz uma série de questionamentos sobre qual teria sido o
verdadeiro legado da Revolução Francesa: “Qual foi o verdadeiro objeto da
Revolução? Qual é, afinal de contas, seu caráter próprio? Quais as razões exatas
pelas quais a fizeram? O que fez ela?” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67).
[...] o único legado desta revolução foi abolir as instituições políticas que
durante séculos dominaram totalmente a maioria dos povos europeus e que
recebem geralmente o rótulo de instituições feudais e substituí-las por uma
ordem social e política mais uniforme e mais simples tendo por base a
igualdade de condições. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67)
Por mais radical que tenha sido a Revolução, inovou menos de que se
supõe geralmente [...]. A verdade é que destruiu inteiramente ou está
destruindo (pois ela ainda continua) tudo que, na antiga sociedade, derivava
27
É perceptível sua decepção com o desenrolar dos eventos, mas, por sua vez,
isso não o impede de observá-los com clareza. Suas reflexões deixam transparecer
que há sempre algo que resta e se conserva. Ora, aquilo que se conserva para além
das instituições são os atores políticos que as criaram. Entretanto, não os
consideramos como alheios às instituições, pois acreditamos que o que resta são as
marcas subjetivas das gerações precedentes. Esse detalhe não invalida sua
constante tentativa de relacionar os eventos políticos com seus atores, bem como os
aspectos objetivos de suas existências.
Ainda que tenhamos aventado que o que se conserva sejam seus atores
políticos e suas marcas subjetivas, talvez o mais correto seja afirmar que eles não
sejam alheios às instituições como afirmara o pensador francês, pois entendemos
que o homem é produtor dessas mesmas instituições e simultaneamente produto
delas.
Fica evidente que, apesar das instituições feudais terem sido abolidas, os
seres humanos dificilmente conseguem construir uma sociedade em que a felicidade
seja plena; ainda que o mundo possa ser modificado, os indivíduos continuam a
sofrer, pois os laços sociais estabelecidos são a principal fonte de sofrimento e mal-
estar humanos, como irá mostrar Freud.
Parece-nos, a esse respeito, que Freud atribui ao social a relevância que este
merece. Após anos de contribuições para a psicologia individual, o pensador
austríaco finalmente a relaciona com a psicologia social e política. Não é por acaso
que o primeiro parágrafo de Psicologia das massas e análise do eu assim inicie:
Assim, Adorno fará uma crítica contundente aos caminhos tomados pela
psicologia norte-americana que enfatizava o fortalecimento do ego e que levou à
falsa crença de que os homens eram senhores de si e que seus destinos dependiam
única e exclusivamente de seus esforços, como se o mundo interior fosse totalmente
independente do exterior, como se a subjetividade não estivesse mediada
socialmente. O caráter adaptativo da psicologia estadunidense não considerava que
a realidade social é demasiadamente forte e favorece o enfraquecimento da
consciência.
Não por acaso, Tocqueville afirma que a Revolução Francesa foi uma
revolução política que se processou à maneira das revoluções religiosas e tomou
alguns de seus aspectos.
Se, por um lado, o autor observou certa semelhança entre política e religião,
por outro, Freud nos mostra que tanto uma quanto outra estão relacionadas aos
laços que os indivíduos estabelecem entre si e entre eles e uma divindade. Há em
ambas um caráter ilusório, cuja explicação somente pode ser apreendida se formos
além da objetividade dos fatos econômicos, sociais, políticos e religiosos. Devemos
buscá-la também nos sujeitos sociais e no modo como estão constituídos
psiquicamente, pois a objetividade da vida não pode ser pensada como sendo
independente das questões subjetivas dos atores que a produzem, cuja existência
tem como objetivo principal a felicidade, a qual é sempre ilusória e efêmera.
[...] uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser
dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo toda
religião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam, e tende à
32
crueldade e à intolerância para com os não seguidores. Por mais difícil que
seja pessoalmente, não se deve recriminar os fiéis com muita severidade
por isso; para os infiéis e indiferentes as coisas são, psicologicamente, bem
mais fáceis neste ponto. Se agora essa intolerância não se mostra tão
violenta e cruel como no passado, não será lícito que houve uma
suavização dos costumes humanos. A causa deve ser buscada, isto sim, no
inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e das ligações
libidinais que deles dependem. Se outra ligação de massa toma o lugar da
religiosa, como a socialista parece estar fazendo, ocorre a mesma
intolerância com os de fora que havia na época das lutas religiosas, e se as
diferenças de concepções científicas viessem a ter, algum dia, importância
igual para as massas, o mesmo resultado se repetiria também com essa
motivação. (FREUD,1921/2011, p. 53-54)
11
Termo cunhado Gustave Le Bon, como veremos adiante.
33
Desse modo, ele faz uma crítica contundente a seu oponente por propor que
a sociologia deveria se basear única e exclusivamente em pressupostos objetivos e
estatísticos, desconsiderando aquilo que ele concebe como a alma dos fatos sociais:
o indivíduo e suas relações como os demais. É, nesse sentido, que ele é acusado de
tentar psicologizar a sociologia. Assim, Durkheim (1895) rebate que “todas as vezes
que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico,
podemos estar seguros de que a explicação é falsa” (p. 128)13.
Tarde não visava psicologizá-la; seu intuito era que a sociologia não
abdicasse das contribuições psicológicas, pois a sociologia não perde sua
cientificidade e se engrandece. Assim, ele enfatiza que as palavras de um orador,
manifestação da linguagem, e o ajoelhar-se de um devoto, manifestação da religião,
são expressões humanas que não podem ser compreendidas unicamente a partir da
sociologia, pois “cada uma dessas ações não depende apenas da natureza do fato
social, mas também da constituição mental e vital do agente e do ambiente físico,
tais atos são espécies híbridas, fatos sócio-psíquicos ou sócio-físicos, cuja
12
[…] l'individuel écarté, le social n'est rien, et qu'il n'y a rien, absolument rien, dans la société, qui n'existe, à
l'état de morcellement et de répétition continuelle, dans les individus vivants, ou qui n'ait existé dans les morts
dont ceux-ci procèdent.
13
[…] toutes les fois qu’un phénomène social est directement explique par um phénomène psychique, on peut
être assuré que l’explication est fausse.
34
importância não mais macula a pureza científica da nova sociologia” (TARDE, 1895,
p. 70)14.
14
[…] chacun de ces actes dépend non seulement de la nature du fait social, mais aussi de la constitution
mentale et vitale de l'agent et de l'environnement physique, ces actes sont des espèces hybrides, socio-
psychiques ou physico-physiques dont il importe de ne pas ternir plus longtemps la pureté scientifique de la
nouvelle sociologie.
35
destas como daquelas” (TARDE, 1895, p. 60)15, sendo que as variações viáveis e
fecundas são o ponto de partida de novas séries de repetições. Tais variações
ocorrem nos indivíduos e são imitadas. Portanto, não há como excluí-los, se
queremos apreender as transformações sociais. Assim sendo, o autor propõe que o
sociólogo deve conceder a palavra ao psicólogo (TARDE, 1890), uma vez que, para
ele, a sociedade é imitação.
15
[...] objet essentiel des répétitions mais aussi des variations, et elle se caractérise par la nature de celles-ci
comme par la nature de celles-là.
16
L'invention et l'imitation sont l'acte social élémentaire, nous le savons. […].Ce qui est inventé ou imité, ce qui
est imité, c'est toujours une idée ou un vouloir, un jugement ou un dessein, où s'exprime une certaine dose de
croyance et de désir.
17
[…] des programmes politiques qui se partagent une nation, se répand par voie de propagande ou de terreur
jusqu'à ce qu'il ait gagné un à un presque tous les esprits.
18
Finalement, si l'unanimité, jamais parfaite, parvient à se réaliser dans une certaine mesure, toute irrésolution,
soit individuelle, soit sociale, se trouve à peu près terminée. C'est le terme inévitable.
36
de massa, que foi retomado por Freud, e que introduzimos gradualmente, desde
Toqueville, e será abordado no terceiro capítulo.
[...] são regidos por ideias, sentimentos e costumes, os quais são nossa
própria essência. Instituições e leis são manifestações externas de nosso
caráter, expressão de suas necessidades. Sendo sua manifestação,
instituições e leis não podem mudar este caráter. O estudo dos fenômenos
sociais não pode ser dissociado do dos povos entre os quais eles vieram a
existir. (LE BON, 2001, p. 5)19
19
[…] are ruled by ideas, sentiments, and customs - matters which are of the essence of ourselves. Institutions
and laws are the outward manifestation of our character, the expression of its needs. Being its outcome,
institutions and laws cannot change this character. The study of social phenomena cannot be separated from that
of the peoples among whom they have come into existence.
20
[…] Gustave Le Bon fue naturalmente impresionado por el fenómeno de las multitudes – más particularmente
por los fenómenos populares y del terrorismo – que inquietaba a sus contemporáneos.
37
21
[…] enseña la existencia de un “alma de las multitudes”, formada por impulsos elementales, organizada por
creencias fuertes, poco sensible a la experiência y a la razón.
38
O autor não pretendia esgotar o assunto em seu texto. Seu intuito era de
apresentar algumas considerações importantes acerca de suas observações. O
estudo da alma das multidões por ele realizado demanda posteriores reflexões. Ele
abriu “um caminho num terreno ainda muito inexplorado” (LE BON, 2008, p. 26). Sua
descrição das características gerais das multidões forneceu subsídios para Sigmund
Freud seguir seu caminho e aprofundar o assunto com base na deep psychology, o
que nos permite estabelecer pontos de interseção entre a psicanálise e o
pensamento leboniano.
dificilmente ocorreriam caso não houvesse essa unidade psicológica. Assim, é “fácil
constatar em que medida o indivíduo na multidão difere do indivíduo isolado” (LE
BON, 2008, p. 33), pois raramente ele se manifestaria caso não estivesse sob a
influência de um objetivo em comum.
Com base nessa constatação, o autor salienta o papel relevante dos aspectos
inconscientes que regem os indivíduos, o que permite estabelecer relações com a
teoria freudiana. Ele deixa isso evidente ao afirmar que por “detrás das causas
confessas de nossos atos encontram-se causas secretas que ignoramos. A maioria
de nossas ações corriqueiras é efeito de móveis ocultos que nos escapam” (LE
BON, 2008, p. 33). Ele prossegue afirmando que “o indivíduo na multidão adquire,
exclusivamente por causa do número, um sentimento de poder invencível que lhe
permite ceder a instintos que, sozinho, teria forçosamente refreado” (p. 34).
das evidências da pulsão de morte ele teve que considerá-la, o que lhe permitiu
desenvolver sua segunda tópica do aparelho psíquico. Foi somente a partir de
1920 que ele finalmente cedeu às evidências, concordando com Adler e Thomas
Hobbes sobre a natureza cruel do gênero humano. Para dar um fundamento
teórico a essa dimensão da agressividade, Freud estabeleceu um novo dualismo
pulsional que opõe amor e ódio, Eros e Tanatos, pulsão de vida e pulsão de morte,
pulsões sexuais e pulsões agressivas.
Considerando a premissa freudiana como verdadeira e que tanto as pulsões
sexuais quanto as agressivas são constituintes dos seres humanos e
reprimidas pela sociedade, temos de concordar que “a agressividade talvez não
ache satisfação no mundo exterior, porque se depara com obstáculos reais”
(FREUD, 1933/2010, p. 255). Isso ocorrendo “ela poderá retroceder, elevando a
medida de autodestruição vigente no interior” (p. 255). Assim, a agressividade
reprimida pode levar à autodestruição. Parece, portanto, que “é como se
tivéssemos que destruir outras coisas, outras pessoas, para não destruirmos a
nós mesmos, para nos guardar da tendência à autodestruição” (p. 255). Para nos
protegermos contra a autodestruição, a agressividade deve ser dirigida ao mundo
externo estando a serviço da pulsão de vida. Esta constatação é “uma triste
descoberta para o moralista!” (p. 255).
O fenômeno das multidões parece eliminar os obstáculos reais e faz com que
a agressividade aflore, o que, segundo Le Bon, é prejudicial à estabilidade social. É
nesse sentido que ele afirmou que o advento das multidões deveria ser impedido.
Não queremos dizer que ele fosse moralista, mas certamente um conservador que
estava preocupado com os efeitos destrutivos por elas causados. Por isso, ele
assinala que o “conhecimento da psicologia das multidões constitui o expediente do
homem de Estado que quer não governá-las [sic] – coisa que hoje se tornou difícil -,
mas ao menos não ser completamente governado por elas” (LE BON, 2008, p. 24).
evitando sua própria destruição. Isso somente pôde ser compreendido à luz da
teoria freudiana.
Esta citação evidencia o caráter maquiavélico que seu texto adquiriu e que
inspirou Hitler e Mussolini. Ambos leram Le Bon e utilizaram suas teses para
estabelecer seus governos despóticos. Ginneken (1992) afirma que Mussolini leu
suas obras e frequentemente releu Psicologia das multidões, tendo inclusive escrito
em sua autobiografia que ele tinha se interessado pela psicologia das multidões
desde muito cedo. Por sua vez, Hitler foi um de seus leitores mais dedicado; a
maioria de suas biografias atuais concorda que ele foi influenciado pelas ideias de
Le Bon. A visão conservadora de Le Bon não fica circunscrita apenas à sua
descrição da psicologia das massas. Ainda, segundo Ginneken, Le Bon não fazia
segredo de sua simpatia pelo movimento ultradireitista.
Apesar “de seus defeitos, este texto merece uma leitura atenta, pois contém
alguns elementos de interesse epistemológico e metodológico” (DORNA, 1998, p.
54) para os estudos psicopolíticos. Uma das críticas que podemos apontar é que
suas ideias reforçam a manutenção do status quo e não consideram o poder das
multidões nas transformações sociais e na busca por uma sociedade mais
igualitária. Afinal sua psicologia política era a ciência do governo das elites; ela era
“tão necessária que os estadistas não poderiam dispensá-la. Eles não a dispensam
de fato; porém, na ausência de leis formuladas, os impulsos do momento e algumas
regras tradicionais muito breves, são seus únicos guias” (LE BON, 1910, p. 5)22. Seu
conservadorismo se revela de antemão no próprio título da obra ao enfatizar a
defesa da ordem social, indicando também um ponto de vista positivo, o qual se
reflete em nosso símbolo pátrio maior com a inscrição ordem e progresso. Sua
posição positivista se expressa de forma contundente ao afirmar que:
22
[…] si nécessaire qui les hommes d’Etat ne sauraient s’en passer. Ils ne s’en passent donc pas, mais, faute de
lois formulées, les impulsions du moment et quelque règles tradicionnelles fort sommaires, constituent leurs
seules guides.
43
demonstrar que os eventos políticos que assolaram a França nos séculos XVIII e
XIX estavam intimamente relacionados à psicologia individual.
Ainda que Le Bon não tivesse ciência da real dimensão da relação entre a
psicologia individual e a das massas, ele havia sinalizado sua importância para a
psicologia política, uma vez que ela “se edifica de materiais diversos, cujos principais
são: a psicologia individual, a psicologia das massas e, enfim, a dos povos” (LE
BON, 1910, p. 6)23, as quais foram invariavelmente consideradas como inúteis. Seu
conhecimento foi ignorado pelos estudos políticos a tal ponto que não era estranho
um estudioso receber o título de doutor em ciências políticas sem jamais ter ouvido
falar de seus conhecimentos.
23
[…] s’édifie avec des matériaux divers don’t les principaux sont: la psychologie individuelle, la psychologie des
foules et enfin, celle des races.
46
Ainda que esse livro seja relevante em nosso trabalho, não podemos deixar
de salientar as inúmeras contribuições de Lasswell para o campo, especialmente
seus estudos sobre propaganda. Nesse sentido, abordaremos, a seguir, esses
autores anglófonos.
Ainda que Place tenha se interessado pela questão laboral, uma de suas
primeiras atuações políticas foi pela educação, que era elitizada e restrita às classes
privilegiadas. Foi em busca de tornar a educação acessível àqueles que não podiam
bancá-la que ele se entusiasmou pelo lema ‘Schools for All’ da West London
Lancastrian Association, criada em 1813. Sua luta por promover a educação das
futuras gerações foi relevante e estava intimamente ligada a suas próprias
condições de vida. Ele era um pequeno alfaiate e tinha dificuldades em manter seus
nove filhos e proporcionar-lhes educação. Assim, ele foi influenciado pelo mote da
associação de Joseph Lancaster, cujo objetivo principal era educar as crianças
daqueles que, tendo comparativamente poucos meios, estavam desejosos de
oferecer uma educação verdadeiramente eficiente a seus filhos.
Apesar de seu entusiasmo inicial pelos ideais propostos por Lancaster, sua
adesão política ao sistema proposto pela associação não ocorreu sem embates. Ele
se indispôs com as características evangélicas adotadas pela British and Foreign
School Society que determinava que a educação deveria estar limitada ao estudo da
Bíblia. Por meio de seus esforços, com o apoio do filósofo escocês James Mill, foi
retirado das diretrizes gerais da Lancastrian Association que “somente a Bíblia será
lida sem interpretação ou comentário escrito ou expresso. Simultaneamente foi
também omitida a regra da associação de pais que todas as crianças deviam ser
48
levadas a algum lugar de devoção aos domingos” (WALLAS, 1898, p. 106) 24. Fica
evidente seu intuito de promover a laicidade da educação, que até então era
ministrada. Por conseguinte, sua destituição foi requerida e Place renuncia a seu
cargo na associação alguns meses após, quando os princípios religiosos foram
reintroduzidos no sistema educacional.
24
[…] the Bible alone, without gloss or comment, written or spoken, will be read. At the same time, the rule of the
parent society, that all children were to be taken to some place of worship on Sundays.
25
[…] at seeing “from 800 to 900 clean, respectable-looking mechanics paying most marked attention” to a
lecture on chemistry.
49
melhorias nas condições laborais. Um ano após ter sido revogada e diante das
crescentes manifestações proletárias o parlamento britânico aprovou nova lei que
praticamente reeditava a anterior, acrescentando a abolição do direito à greve:
Combinations of Workmen Act (1825). A evolução desses mecanismos de controle
demonstra o quanto os agrupamentos de indivíduos preocupavam não apenas os
governantes, mas especialmente a classe empresarial, pois eram instrumentos
desestabilizadores da sociedade e por isso necessitavam ser criminalizados. Apesar
desta série de leis não evitar que os trabalhadores se reunissem, ela autorizava
qualquer empregador que tivesse uma disputa com seus empregados a puni-los de
forma opressiva e tirânica.
26
When I became a master I did not forget that I had been a journeyman, and I acted accordingly. Never in my
life did I call any man who worked for me out of his name. I always paid the highest rate of wages, and whenever
the men struck for an increase of wages I never suffered them to leave me, but at all the three strikes which
occurred whilst I remained in business I gave the advance as soon as it was asked, […]. Since I left business in
1818 I have constantly employed some portions of my time to promote the welfare of the working people, and at
times a very considerable portion of my time, […] in procuring, […], the repeal of the laws against combinations of
workmen.
50
expressado que seu nome não fosse impresso em qualquer impresso relacionado ao
Instituto de Mecânicos de Londres. Inclusive quando Place faleceu, em 1854, foi
registrado em um artigo no Spectator que ele tinha sido um homem que amava o
poder silencioso com o objetivo de promover bons resultados.
Foi justamente para que sua vida não caísse no esquecimento das gerações
futuras que Wallas se dedicou a resgatar a importância de suas ações políticas.
Ainda que as intenções do pensador britânico tenham sido muito mais de cunho
histórico, parece-nos que essa biografia é relevante para o campo da psicologia
política. Nesse sentido, poderíamos ousar classificá-la como sendo um embrião da
primeira categoria de trabalhos psicopolíticos sistematizada por Fred Greenstein
(1970; 1992): análise psicológica individual de atores políticos. As outras duas
categorias elencadas pelo autor foram análise tipológica de atores políticos e análise
de agrupamentos sociais.
28
[…] nearly all students of politics analyse institutions and avoid the analysis of man. The study of human nature
by the psychologists has, it is true, advanced enormously since the discovery of human evolution, but it has
advanced without affecting or being affected by the study of politics. Modern text-books of psychology are
illustrated with innumerable facts from the home, the school, the hospital, and the psychological laboratory; but in
them politics are hardly ever mentioned.
52
Se, por um lado, o afeto deve ser considerado no estudo da política, por
outro, o autor não se limita a abordá-lo. Ele vai além e salienta que um tratado que
vise certa plenitude deve levar em consideração outros tipos de impulso como o de
enfrentamento, de suspeição, de lealdade e de superação. Ele também aborda a
questão da psicologia das massas estudada pelos sociólogos franceses, em
especial a questão do medo e do ódio que emergem quando há grandes
aglomerados humanos como aqueles surgidos na França dos séculos XVIII e XIX,
que, segundo Wallas, dificilmente ocorreriam entre os povos de origem nórdica; a
excitação provocada pelo contato físico em um movimento de massa jamais
produziria a excitação dos ânimos nas ruas de Londres ou Manchester, pois os
ingleses tendem a ter um comportamento balanceado e letárgico. Foi, justamente,
essa distinção entre a cultura latina e a anglo-saxônica que levou Alexis de
Tocqueville a estudar a democracia americana. Tal distinção também é enfatizada
por Le Bon.
29
Political impulses are not mere intellectual inferences from calculations of means and ends; but tendencies
prior to, though modified by, the thought and experience of individual human beings.
30
[…] would probably have admitted that there are cases in which human acts and impulses to act occur
independently of any idea of an end to be gained by them.
53
acordo como o meio no qual nascem. Seu intuito foi demonstrar que somos seres
biológicos, somos animais que respondem de acordo com nossos instintos mais
primitivos, por isso ele faz uso de analogias como os animais inferiores. Entretanto,
somos animais dotados da capacidade de reflexão, de realizar inferências entre
meios e fins, somos animais culturais e, portanto, mais complexos e desenvolvemos
a capacidade de nos comunicar, o uso da linguagem.
O autor prossegue suas reflexões para mostrar que a classe política se utiliza
de nossos instintos para que possa governar e manter-se no poder. Os políticos
capturam os indivíduos por meio de mensagens simbólicas que produzem reações
afetivas na população, as quais são artificialmente produzidas. Wallas (1908) alerta
sabiamente que o “completo ritual de organização social e política entre os
selvagens, [...], ilustra o processo de criação de semelhanças políticas artificiais e
facilmente reconhecíveis” (p. 63)31.
Wallas apresenta vários exemplos daquilo que ele chama de inferências não-
racionais na política para demonstrar o quanto nossos atos políticos não estão
circunscritos à objetividade da razão como pregava o idealismo alemão, que
enfatizava a supremacia dos fins sobre os meios. Max Horkheimer (2000), nesse
sentido, faz também uma crítica à razão objetiva, que é considerada comumente
como “uma faculdade de coordenação, cuja eficiência pode ser aumentada pelo uso
metódico e pela remoção de quaisquer fatores não-intelectuais, tais como as
emoções conscientes ou inconscientes” (p. 18). O pensador alemão prossegue
afirmando:
A razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão
completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências
específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e
o modo de vida do homem. Entregou-os à sanção suprema dos interesses
em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado.
(HORKHEIMER, 2000, p. 18)
33
The mind of man is like a harp, all of whose strings throb together; so that emotion, impulse, inference, and the
special kind of inference called reasoning, are often simultaneous and intermingled aspects of a single mental
experience.
34
[…] a newspaper is to live as a political force it must impress itself on men's minds as holding day by day to a
consistent view
35
The voter as he reads his newspaper may adopt by suggestion, and make habitual by repetition, not only
political opinions but whole trains of political argument; and he does not necessarily feel the need of comparing
them with other trains of argument already in his mind
55
36
[…] begin his course by mastering a treatise on psychology, containing all those facts about the human type
which have been shown by experience to be helpful in politics, and so arranged that the student's knowledge
could be most easily recalled when wanted.
56
Que tipo de emoções a política desperta nos indivíduos? Que emoções são
suscitadas pelos detentores do poder? Que valores estão associados a esses
conteúdos emocionais? É possível implementar leis que cambiem valores sociais?
Como fazemos nossos julgamentos políticos? Afinal, que política estamos
construindo? Aquela que promove a igualdade, respeitando a alteridade, ou aquela
voltada unicamente às oligarquias, a inclusiva ou a excludente?
Responder tais interrogações não é uma tarefa fácil, pois no jogo político
contribuem vários fatores. As sucessivas revoluções e contrarrevoluções; os golpes
de Estado; os conflitos bélicos sucedidos de armistícios; e a conquista de direitos
individuais e sua limitação mostram que a política, bem como a sociedade, não pode
ser pensada de forma positiva e reducionista, como uma sucessão linear de fatos
rumo ao progresso, pois aqueles que constroem e sustentam as instituições – os
indivíduos – não são positivos em sua essência. Somos racionais, mas, somos,
também, emoção. Nesse ir e vir não linear, os indivíduos evoluem como seres
políticos e politizados, sem esquecermos que são, igualmente, seres psíquicos, que
estabelecem relações que vão além da troca de bens materiais. Emoções,
37
In politics, indeed, the preaching of reason as opposed to feeling is peculiarly ineffective, because the feelings
of mankind not only provide a motive for political thought but also fix the scale of values which must be used in
political judgment.
57
Ainda que Wallas não faça menção explícita acerca da psicanálise, em alguns
momentos de sua obra há partes que permitem ser relacionadas com o pensamento
freudiano. Como, por exemplo, em seu terceiro capítulo – Inferência não-racional em
política – no qual descreve que os homens não agem sempre baseados em
princípios e fins, argumentando que os “homens frequentemente agem em política
sob a influência do estímulo imediato do afeto, e esse afeto e interesse podem ser
dirigidos para as entidades políticas” (WALLAS, 1908, p. 98) 39. ‘
38
No one now expects an immediate, or prophesies with certainty an ultimate, Federation of the Globe; but the
consciousness of a common purpose in mankind, or even the acknowledgment that such a common purpose is
possible, would alter the face of world-politics at once.
39
[…] men often act in politics under the immediate stimulus of affection and instinct, and that affection and
interest may be directed towards political entities […].
58
Graham Wallas não é um autor fácil de ler, não que sua escrita seja
propriamente difícil. Suas considerações são permeadas por inúmeros exemplos
para embasá-las, o que requer leitura atenta, caso se queira apreender a essência
de seu pensamento. Isso mostra erudição e cuidado com seu objeto de estudo.
Nesse sentido, esse texto é um privilégio e um desafio, especialmente se
considerarmos que há pouca referência a seus trabalhos. É um autor que em nosso
entender não deveria ser deixado de lado, suas reflexões são importantes para a
psicologia política.
seus pais. Um politólogo, cujo currículo apresenta 55 livros, mais de 400 artigos,
capítulos, monografias e, aproximadamente, 250 revisões de seus livros (ASCHER,
1992), merece ser reconhecido.
40
[...] exploration of the psychological and sociological bases of political behavior, and [...] the introduction of
quantification in the analysis of political phenomena.
41
Freud, Adler, Jung and Stekel are the Big Four. Este trecho consta na carta endereçada a seus pais retomado
pelos autores a apresentado na nota de rodapé 41.
42
Reik foi o pivô de uma disputa política no meio psicanalítico internacional, ao ser acusado de prática ilegal de
medicina por praticar a psicanálise. De um lado, os americanos defendiam que apenas médicos tinham o direito
de praticá-la, do outro, os europeus eram contra esse tipo de impedimento. Freud era veementemente contra tal
restrição e advogou a favor de Reik, o que resultou no célebre texto A questão da análise leiga (1926/2014), no
qual defende o caráter leigo, não-médico, da psicanálise.
60
Nesse livro, o autor vai além da mera aproximação de dois campos do saber;
ele propõe uma nova metodologia de pesquisa para as ciências políticas, cujo
enfoque teórico seja o psicanalítico. A referência ao aspecto patológico da psique
revela que o autor foi fortemente influenciado pelos textos clínicos de Freud e não os
sociais. Diz ele: “A clínica tem aportado forte vitalidade à psicologia moderna. A
abordagem psicopatológica tem mostrado, gradualmente, ser razoável, à medida
que, mais e mais, suas concepções encontrem espaço permanente no vocabulário
da psicologia e da ciência social” (LASSWELL, 1960, p. 17)43.
43
Fresh vitality has come into modern psychology from the clinic. The psychopathological approach has gradually
vindicated itself as more and more of its conceptions find a permanente place in the vocabulary of psychology
and social Science
44
Political science without biography is a form of taxidermy.
45
[...] what developmental experiences are significant for the political traits and interests of the mature. This
means that we want to see what lies behind agitators, administrators, theorists, and other types who play on the
public stage.
46
[...] whether the intensive investigation of life-histories will in any way deepen our understanding of the whole
social and political order.
61
47
The great innovator in the subjective field was Freud. His book on dreams is one of the most unique
autobiographies in history, and his publications set pace for those who wanted to record the actual outpourings of
the unrestrained human mind. Here at last was a truly scientific spirit who recorded everything of which the
human mind was capable, and looked at it critically in the hope of finding the laws of mental life.
48
[...] men who make important decisions in politics can be trained to use their minds wisely by disciplinary
training in the practices of logical thoughts.
49
[…] our best efforts to disseminate logicality, people are always letting their prejudice run away with them, even
when they have a baggage of good intentions.
50
[...] faith in logic is misplaced. Exclusive emphasis upon logic (even where logic is adroitly used) incapacitates
rather than fits the mind to function as a fit instrument of reality adjustment.
62
Assim, por mais que ele tenha feito esforços para aproximar a teoria freudiana
das ciências políticas, ele o fez a partir de pressupostos positivistas. É nesse sentido
que ele busca nas histórias de vida subsídios que lhe permitam estabelecer relações
entre as distintas características de personalidade para, posteriormente, categorizá-
las de acordo com os tipos políticos. Seu intento mostra a dificuldade, quiçá, a
impossibilidade, da teoria psicanalítica ser empregada dessa maneira, pois seus
pressupostos são metapsicológicos e, por conseguinte, inadequados à academia
americana.
Apesar das críticas que possam suscitar seu livro, Lasswell empenhou-se em
aproximar a psicologia da política. Trinta anos após a publicação da primeira edição,
ele faz uma recapitulação de suas contribuições, salientando que seu trabalho não
pode ser considerado como o de um psicanalista. Ele foi, em realidade, uma
tentativa de análise de um pesquisador que estudava o comportamento político. Ao
empregar as reflexões freudianas; seu intento era salientar a relevância dos
processos inconscientes no comportamento político.
Ele recorda que, após formular a hipótese da existência das pulsões de vida e
de morte e da divisão do aparelho psíquico em ego, superego e id, suas
contribuições à psicanálise não foram relevantes, deixando transparecer que seu
verdadeiro interesse tenha sido desde sempre a compreensão do homem em
sociedade. No pós-escrito de seu texto Um estudo autobiográfico, ele afirma:
[...] o que depois escrevi poderia muito bem não ter surgido, ou logo teria
sido proposto por alguém mais. Isto se relacionou com uma mudança
ocorrida em mim, com um certo desenvolvimento regressivo, se
quisermos chamá-lo assim. Após o détour de uma vida inteira pelas
ciências naturais, a medicina e a psicoterapia, meu interesse retornou aos
problemas culturais que um dia haviam fascinado ao jovem que mal
despertara para o pensamento. (FREUD, 1935/2011, p. 164)
Ele retoma essa ideia em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no qual
ele reforça sua tese da oposição entre civilização e o livre desenvolvimento da
sexualidade. Nesse texto, Freud apresenta uma abordagem psíquica da
sexualidade, concentrando-se num ponto sensível à sociedade da época: a criança.
Da perspectiva freudiana, a criança é polimorfa perversa e guiada pelo princípio do
prazer; ao “mostrar que as atividades infantis — os tipos de sucção, a masturbação,
as brincadeiras com o corpo ou com as fezes, a alimentação, a defecação etc. —
são fontes de prazer e de autoerotismo, Freud destrói o velho mito do ‘paraíso dos
amores infantis’” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 772) e causa desconforto.
51
Ainda que psicanálise aplicada ou em extensão sejam expressões discutíveis e controversas, optamos por
mantê-las, especialmente, nas citações, pois seu uso é recorrente no meio psicanalítico. Não obstante,
consideramos ser mais apropriado psicanálise implicada, pois reflete como entendemos a psicanálise: engajada
na realidade social. Recomendamos, nesse sentido, Em torno da psicanálise aplicada, dissertação de mestrado
de Vanessa Lopes dos Santos Passarelli.
68
cientificidade e empirismo, como uma teoria que pode contribuir para o pensamento
social.
52
[...] Freudian revolution played an immense role in this process. Since it was the ability to rationally explain so-
called irrational behavior that made possible the fusion of psychology and politics, the determinants of each
became crucial in explaining the phenomenon of political behavior.
72
exclusivamente a partir de suas instituições seria uma forma de política oca, sem
seu principal componente: o homo politicus em toda sua complexidade e
singularidade.
Freud já havia afirmado que o incesto é antissocial, contudo, foi com seu texto
Totem e tabu que ele traz as bases sociais para o entendimento desta afirmação.
Para tanto, ele se aproxima aos estudos antropológicos de sua época, que estavam
marcados por uma visão europeia etnocêntrica, buscando nas organizações sociais
ditas primitivas indícios para sua reflexão. Este ensaio é considerado como o
primeiro de uma série em que o autor se dedica às questões sociais.
Não obstante, seu texto foi criticado tanto por psicanalistas, pois não trazia
nenhuma contribuição ao tratamento das neuroses, quanto por antropólogos,
“principalmente os anglo-saxões, que não hesitaram em taxar as hipóteses
73
[...] o desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos em que
há tabu. Eles têm, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente;
nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las [sic],
mas também têm receio disso; receiam justamente porque querem, e o
temor é mais forte que o desejo. No entanto, o desejo é inconsciente em
74
Essa dualidade entre amor e ódio para com esses privilegiados atores
políticos é marcante nos regimes autoritários e ditatoriais, especialmente, quando há
sua deposição. A história contemporânea está repleta de exemplos. Vários ditadores
antes adorados tiveram como destinos o exílio, e aprisionamento ou até mesmo a
morte, o que demonstra a ambivalência de sentimentos que despertavam. Em
Uganda, Idi Amin Dada foi deposto e recebeu exílio na Arábia Saudita; Nicolae
Ceausescu juntamente com sua esposa Elena Ceausescu foram executados, após a
revolução romena; Hosni Mubarak governou o Egito por quarenta anos até ser
encarcerado; Saddam Hussein foi deposto após a invasão do Iraque e enforcado
após seu julgamento.
Como não entender que a magia das palavras, o fascínio que elas exercem
sobre milhões de cidadãos, a referência a soluções milagrosas constitui o
elemento fundamental do espetáculo cotidiano, o que permite a uma
categoria de dirigentes assentar e glorificar seu poder e ainda pensar que a
realidade deve curvar-se aos projetos e leis por eles edificados.
(ENRIQUEZ, 1999, p. 41)
78
que quando estava vivo, fazendo com que os filhos abdicassem das suas pulsões
sexuais e agressivas e, por conseguinte, passassem a viver em comunidade,
declarando ser proibido o assassinato e privando-se das mulheres.
Ela “não é uma proibição igual às outras, mas a proibição, na forma mais
geral, aquela talvez a que todas as outras se reduzem [...] como casos particulares.
A proibição do incesto é universal” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 534). Poderíamos
conceber, portanto, que essas interdições primordiais e fundamentais os impeliram à
exogamia. O estabelecimento desse vínculo entre os filhos fez com que eles se
elevassem acima da organização biológica para atingir a organização social,
transcendendo a animalidade e adentrando o estágio de socialização.
Essa ideia, trazida por Domenico Hur, fazia-se presente em Freud, ainda que
ele não tenha se dedicado à política propriamente dita. Em dois momentos ele faz
menção tanto ao poder político quanto ao religioso como sucedâneos do poder
paterno e reitera que os mesmos são alvos da ambivalência dos sentimentos.
Seguem suas palavras:
Nesta citação ele faz breve menção a deuses e reis como substitutos do pai
primevo. Anteriormente, ele é enfático quanto ao papel do Estado na ordenação
social; “reis divinos surgem na ordenação social, transpondo o sistema patriarcal ao
Estado. É preciso dizer que a vingança do pai deposto e novamente entronizado é
implacável, o domínio da autoridade está no apogeu” (FREUD, 1913/2012, p. 228).
esse fenômeno tenha sido descrito de forma brilhante e perspicaz por Gustave Le
Bon, em seu livro Psicologia das multidões, coube a Freud explicá-lo. Enquanto o
pensador francês descreve, Freud explica.
Para tanto, ele recorre em diversos momentos ao livro de Le Bon, bem como
às reflexões aportadas por William McDougall sobre a mente grupal, no intuito de
embasar sua proposição principal de que a psicologia individual é indissociável da
psicologia social, pois entende que todo indivíduo se constitui psiquicamente a partir
da relação com outrem, uma vez que ele parte de duas premissas: “a de que o
instinto social pode não ser primário e indivisível, e de que os primórdios da sua
formação podem ser encontrados num círculo mais estreito como o da família”
(FREUD, 1921/2012, p. 15-16).
irascíveis e bárbaros que afloram nas massas são passíveis de explicações a partir
das contribuições da psicanálise.
menos neutras, as coisas detestadas pelas massas com seus antigos nomes” (p.
101-102). De palavra em palavra criam-se ilusões que estão distantes da realidade
objetiva dos fatos. Por conseguinte, as massas “nunca tiveram sede de verdades.
Diante das evidências que lhes desagradam, desviam-se, preferindo deificar o erro
se este as seduzir. Quem sabe iludi-las facilmente torna-se seu mestre, quem tenta
desiludi-las é sempre sua vítima” (p. 104-105), vaticina o autor.
Porém não é toda linguagem que possui tal poder; somente aquela que
encanta, enfeitiça e é repetida com veemência que tem a capacidade quase mágica
de iludir. Enriquez, nesse sentido, enfatiza que a análise de conteúdo é um
instrumento metodológico que mostra o quanto os discursos políticos desvelam a
real intenção dos atores políticos que os proferem. Seus discursos, diz ele:
53
A concepção do aparelho psíquico, conhecida, também, como tópica, sofreu modificação no decorrer da
elaboração da teoria psicanalítica. Há duas concepções tópicas ou concepções do aparelho psíquico. A primeira,
é composta pelas instâncias psíquicas consciente, pré-consciente e inconsciente, por sua vez, na segunda tópica
as instâncias são id, ego e superego.
87
Por conseguinte, das análises feitas por Freud, evidencia-se que a distinção
entre massa e multidão, como apregoam alguns teóricos como Michael Hardt e
Antonio Negri, não se sustenta. Concordamos, assim, com William Mazzarella
(2010) que, em um artigo intitulado The Myth of the Multitude, or, Who’s Afraid of the
Crowd?, contesta a ideia de que as massas devam ser temidas, porque são
heterônomas, ou as multidões idealizadas, por propiciarem a autonomia. Sua análise
do fenômeno é nitidamente sociológica, na qual o autor sugere que a distinção entre
massa e multidão é engendrada com o intuito de reproduzir uma enganosa distinção
temporal entre as fases passadas e presentes da modernidade.
Platão – e os que procuram destruir e matar, que reunimos sob o nome de instinto
de agressão ou destruição” (FREUD, 1932/2012, p. p. 426).
Tal citação, ainda que extensa, revela o quanto os textos freudianos são
políticos e atuais e podem fornecer subsídios para refletirmos sobre a questão da
atualidade política nacional, especialmente, sobre os avanços sociais e políticos que
a população brasileira adquiriu mediante os governos do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e de Dilma Rousseff. São incontestáveis os ganhos significativos que as
classes populares tiveram sob o comando desses presidentes. Não obstante, a
classe política dominante se recusou a assimilar tais mudanças e contra-atacou de
forma torpe e ilegítima, ainda que tenha, para tanto, utilizado de instrumentos
constitucionais e legais como o impedimento da presidente eleita democraticamente.
Não estamos aqui defendendo atos de corrupção que tenham assolado tais
governos. Nosso intuito é mostrar que, diante dos avanços de direitos, houve o
surgimento de movimentos de massa violentos de ambas as partes, para ilustrar que
tanto à direita quanto à esquerda do espectro político as massas voltaram às ruas e,
90
O líder, seja ele personificado, seja uma ideia, é colocado numa posição
objetal. Como objeto ele permite que os indivíduos o coloquem como um substituto
de seu próprio eu. “Ele é amado pelas perfeições a que o indivíduo aspirou para o
próprio Eu, e que através desse rodeio procura obter, para satisfação de seu
narcisismo” (FREUD, 1921/2011, p. 71). Assim, “o Eu se torna cada vez menos
exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais sublime, mais precioso; chega
enfim a tomar posse do inteiro amor-próprio do Eu, de modo que o autossacrifício
deste é uma consequência natural” (p. 72). É por esse mecanismo psicológico que
os indivíduos na massa tendem a obliterar qualquer pensamento racional e se
91
É por meio desse processo psíquico individual que Freud (1921/2011) explica
o fenômeno de massa e estabelece a conexão entre a psicologia coletiva e a
individual. A massa, revela o autor, “é uma quantidade de indivíduos que puseram
um único objeto no lugar de seu ideal de Eu e, em consequência, identificaram-se
uns com os outros em seu Eu” (p. 76). A relação entre a psicologia individual e a
coletiva foi representada graficamente por Freud, o que reproduzimos a seguir.
Se, por um lado, essa questão religiosa é importante, por outro, não é menos
importante para outros tipos de ligações libidinais coletivas. Para evidenciar sua
assertiva conclusão sobre o que ocorre psicologicamente no fenômeno de massa,
Freud (1921/2011) refere-se ao sistema político socialista que ascendia no oeste
europeu afirmando que “se outra ligação de massa toma o lugar da religiosa, como a
socialista parece estar fazendo, ocorre a mesma intolerância com os de fora que
havia na época das lutas religiosas” (p. 54). Vemos nessa extensão que o autor faz
a eventos políticos de sua época que o fenômeno de massa, quando explicado à luz
da psicologia profunda, tende a se repetir.
Parece-nos que suas palavras foram proféticas, uma vez que suas
contribuições continuam a interessar outros campos do saber. É com esse intuito
que nos empenhamos a mostrar que a psicanálise pode contribuir à psicologia
política. Para tanto, abordaremos adiante o texto social freudiano que no nosso
entender é ímpar: O mal-estar na civilização. Antes, entretanto, traremos
brevemente algumas considerações sobre o texto O futuro de uma ilusão, texto que
o antecede.
Em 1927, Freud publica O futuro de uma ilusão. Apesar desse texto abordar
diretamente a questão religiosa, ele é importante porque abre caminho a suas
reflexões posteriores sobre os mal-estares na civilização ou na cultura. Ainda que
possamos questionar a diferenciação entre cultura e civilização, o autor adverte que
ele não faz distinção entre ambas, pois ambos os termos significam o conjunto de
saberes e técnicas adquiridos pelos indivíduos que os distinguem da natureza, ou
seja, de sua dimensão animal.
privilégio de poucos nessa mesma cultura. Eles veem em seus senhores seu próprio
ideal; surgem assim os conflitos internos relacionados à classe, à raça, à
sexualidade e a tantos outros aspectos que os diferenciam de seus senhores.
As concepções religiosas nada mais são do que ilusões que visam aplacar a
dor da existência, tal qual o pai amado e temido que nos protegeu e nos castigou.
Se no início de nossas vidas o pai encarnado é engrandecido e visto como fonte de
proteção ao nosso desamparo, a ideia de Deus separa definitivamente a alma do
corpo. Enquanto o corpo padece, a alma é enaltecida. Assim, os indivíduos se
apegam a um ideal de eu de perfeição, que aplacaria até mesmo a possibilidade da
angústia, e se identificam com seu objeto. A ideia de Deus como o protetor supremo
é capaz de nos proteger de um dos enigmas de nossas existências que é a morte.
Crer em uma alma que transcende é uma ilusão que elegemos para lidarmos com a
própria morte e tantos outros terrores que nos assombram. Life is tough!
Amor pelo onipotente, pelo pai, de quem cada indivíduo sente nostalgia,
amor por um ideal criado para se defender de sua própria impotência ou
para negá-la, amor pronto para fixar-se em qualquer figura paterna
substituta (mestre, educador, terapeuta). Trata-se sempre de repor sua
própria vida nas mãos de uma (ou várias) imagem investida da capacidade
de onipotência (deus, ancestral, chefe guerreiro, profeta, taumaturgo), com
97
Esse debate interno que Freud estabelece com seu interlocutor imaginário,
reflete o debate externo que ele mantivera com o pastor Pfister. Roudinesco e Plon
98
Acho que uma criança livre de influência demoraria muito para começar a
refletir sobre Deus e as coisas do além. [...], incutimos nela as doutrinas
religiosas numa época em que não tem interesse por elas nem capacidade
de lhes compreender o alcance. Postergação do desenvolvimento
intelectual e antecipação da influência religiosa – não são esses os dois
pontos principais na agenda da pedagogia atual? Quando o intelecto da
criança desperta, as doutrinas religiosas já se tornaram inatacáveis.
(FREUD,1927/2014, p. 289)
A Igreja não somente nos livra da morte, pois continuamos vivos enquanto
espírito. A Igreja nos garante a plenitude, mas em retorno nos demanda de forma
impositiva a abdicação de nossos impulsos. Lembremo-nos que Moisés trouxe, de
seu encontro com o Senhor, as tábuas com os dez mandamentos: dos quais oito
iniciam com o imperativo negativo e ou demais são no imperativo positivo de louvor
a Deus e aos pais. Ele garante que a alma viva eternamente em Deus, mas em
contrapartida os indivíduos pagam com suas almas, as quais passam a ser
submetidas aos ditames morais e religiosos.
Enquanto a Igreja tentar reger todas nossas relações privadas, como eram
regidas na época em que foram estabelecidas suas doutrinas básicas, ela será
anacrônica, nem por isso menos poderosa politicamente. Talvez, os estritos
mandamentos religiosos sejam os principais responsáveis pelo seu poder, pois
somente aqueles que seguem uma vida dedicada a servir o Senhor terão a garantia
de a Ele juntar-se. Uma ilusão que não é qualquer, com ela sua alma está em eterna
salvação, mesmo que para tanto o corpo padeça e o indivíduo abdique ao prazer e à
54
Nesse sentido, recomendamos Religião e política: ideologia e ação da Bancada Evangélica na Câmara
Federal, de Bruna Suruagy do Amaral Dantas.
101
Para além dessa suposta realização de um projeto de vida, ele nos é singular
porque nele encontramos elos entre conceitos psicanalíticos – tais como: estado de
desamparo, narcisismo, deslocamento, libido, pulsão de vida e de morte - e a
civilização ou cultura, termos que para ele podem ser utilizados indistintamente, pois
ambos representam “a inteira soma das realizações e instituições que afastam a
nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a
proteção do homem contra a natureza e a regulação dos vínculos dos homens entre
si” (FREUD, 1930/2010, p. 48-49), cujo fim último é a felicidade dos indivíduos.
edições brasileiras. Enquanto a editora Imago opta traduzir Kultur por civilização, a
Companhia dos Tempos, tradução direta do alemão, é mais fidedigna ao original ao
utilizar cultura. Em suma, a opção de Freud por não diferenciar cultura de civilização
“não é a marca de uma indiferença pessoal ou de uma indiferenciação conceitual.
Essa vontade é ao contrário, altamente polêmica” (LE RIDER, 2002, p.100).
Polêmica à parte, esse texto revela fundamentalmente que a união dos indivíduos
em comunidade não foi capaz de regular totalmente a agressividade que lhes é
inerente, a qual está associada a um dos mal-estares na civilização: a regulação das
relações sociais.
Foi no renovado hospital que Freud ouve os gritos da dor humana. Vinte anos
passados dessa abalável e reveladora experiência, ele lança Moral sexual civilizada
e doença nervosa moderna, citado anteriormente, cuja ideia principal defendida era
de que a proibição à livre expressão da sexualidade está na gênese das doenças
psíquicas.
Talvez possamos inferir que a dor das histéricas foi seu primeiro encontro
com a inexorável e imbricada relação entre indivíduo e sociedade. Ao escutar o
sofrimento daquelas mulheres, o quanto seus desejos eram negados e reprimidos,
cuja energia reprimida emanava em famosas conversões, Freud pôde constatar
muito cedo que a sociedade se organiza de forma repressiva.
55
[…] vivait dans “une honteuse et perpétuelle oisiveté”.
103
afirma o autor francês; foi, antes, um processo de profunda reflexão sobre o mal-
estar individual e subjetivo e sobre a sociedade. Assim, nossa reformulação da
analogia moscoviciana é a de que a metapsicologia e os textos sociais freudianos
sejam vistos como dois trens que se deslocam paralelamente.
Numa linha algumas das principais estações seriam: Estudos sobre a histeria,
A interpretação dos sonhos, Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, Três ensaios
sobre sexualidade, Os chistes e sua relação com o inconsciente, Sobre o
narcisismo, Além do princípio do prazer, O eu e o Id e Inibição, sintoma e angústia.
Na outra: Delírios e sonhos de Gradiva de Jensen, Atos obsessivos e práticas
religiosas, Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, O tabu da virgindade,
Totem e tabu, Psicologia das massas e análise do eu e O futuro de uma ilusão. A
partir de Totem e tabu os dois trens andam lado a lado acoplando-se
ocasionalmente até chegarem juntos à estação principal: O mal-estar na civilização.
Não é necessário grande esforço para constatar que a civilização, apesar dos
avanços científicos e tecnológicos, não foi capaz de trazer a tão sonhada e almejada
felicidade aos indivíduos. Diante de guerras político-religiosas no Oriente Médio, da
onda migratória rumo à Europa que ceifa vida de crianças, da ascensão de
movimentos xenófobos e separatistas, da crise econômica mundial, de ataques
homofóbicos e, finalmente, do terrorismo de cunho religioso, é evidente que a
experiência de felicidade fique submetida ao mero afastamento do desprazer, do
mal-estar que nos assola.
A justeza com que coube essa citação em nossas reflexões é suficiente para
reafirmar a atualidade de seu pensamento. Todavia estamos regidos por Ananke -
deusa símbolo da necessidade -, pelo princípio da realidade, que impede a
104
felicidade, visto que a maior parte de nossas energias está sendo consumida na
autoconservação e no afastamento dos infortúnios, dos mal-estares.
A outra fonte de mal-estar: nosso próprio corpo ainda nos atormenta apesar
dos ganhos significativos aportados pela vida em sociedade. A expectativa média de
vida do europeu ocidental aumentou vinte anos em média desde 1930. A medicina,
a biologia, a genética e outras disciplinas ligadas ao corpo foram responsáveis pela
diminuição do sofrimento humano. Contudo, a morte é inevitável. A certeza de que a
vida é finita e a constatação do processo de envelhecimento de nossos corpos são
ainda fontes de angústia. A busca incessante pela juventude eterna, traço de nossa
contemporaneidade, é uma busca vã, porém produz o afastamento do desprazer.
Por conseguinte, há um ganho psíquico: instantes de felicidade.
Essas são “as três fontes de onde vem o nosso sofrer: a prepotência da
natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os
vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade” (FREUD, 1930/2010, p.
43). Ele afirma, ainda, que diante da inevitabilidade das duas primeiras os indivíduos
se veem obrigados a reconhecer sua pequenez diante das forças da natureza e sua
morte e, consequentemente, render-se.
geração” (FREUD, 1930/2010, p. 205). É desse modo que ele fornece subsídios que
ajudam o “entendimento da conduta social humana – por exemplo, a questão da
delinquência – e talvez também que sugestões práticas dela resultam para a
educação” (p. 206).
Essa ideia já estava presente em seu ensaio Moral sexual civilizada e doença
nervosa; em 1908 Freud escrevera:
Ele prossegue enfatizando ainda mais a exclusão e a sorte daqueles que não
se submetem à lei e à justiça: "o homem que não consegue viver em sociedade, [...],
não faz parte da Cidade; por conseguinte, deve ser uma besta ou um deus"
(ARISTÓTELES, 2008, p. 57). Algumas linhas mais adiante ele sacramenta que "o
homem sem virtude é a mais perversa e cruel das criaturas, a mais entregue aos
prazeres dos sentidos e seus desregramentos" (p. 57).
esquerdistas alemães” (JAY, 1996, p. 3) 57, tais como Max Horkheimer, Theodor
Adorno, Walter Benjamin, Leo Löwenthal, Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm
Reich, entre outros proeminentes teóricos.
Ainda que essa aproximação tenha sido uma marca das reflexões
frankfurtianas, ela não foi acrítica. Muitos deles fizeram ressalvas à psicanálise
freudiana. Fromm, por exemplo, rejeitou a teoria da pulsão de vida e de morte. Por
sua vez, os estudos antropológicos sobre a cultura matriarcal de Bronislaw
Malinowski influenciaram Reich a ponto de ele considerar o matriarcado como a
organização social natural. Fromm segue na mesma direção, negando a
universalidade do complexo de Édipo (JAY, 1996).
Essas e outras críticas que possam ser feitas são pertinentes; entretanto, elas
não os impediram de empregar conceitos freudianos com a devida parcimônia
necessária. O reconhecimento da psicanálise como teoria relevante nas reflexões
sociais e políticas é expressa por Horkheimer a Leo Löwenthal que lhe solicitara
conselhos de como responder à demanda de Ernst Kris, expoente da psicologia do
ego, sobre a posição do Instituto com relação à obra de Freud. Segue sua opinião:
57
[...] created a serious dilema for those who had previously been at the center of European Marxism, the left-
wing intellectuals of Germany.
58
In the 1970’s it is difficult to appreciate the audacity of the first theorists who proposed the unnatural marriage of
Freud and Marx. With the recent resurgence of interest in Wilhelm Reich and the widespread impact of Marcuse’s
Eros and Civilization, the notion that both men were speaking to similar questions, if from very different vantage
points, has gained credencie among may on the left.
116
59
I think you should be simply positive. We really are deeply indebted to Freud and his collaborators. His thought
is one of Bildungsmächte (foundation stones) without which our own philosophy would not be what it is. I have
anew realized his grandeur during the last weeks. You will remember that many people say his original method
was particularly adequate to the Viennese sophisticated middle class. This is, of course, totally untrue as a
generality, but there is a grain of salt in it which does not do any harm to Freud’s work. The greater a work, the
more is rooted in the concrete historical situation. But if you take a close look at this connection between
liberalistic Vienna and Freud’s original method, you become aware of how great a thinker he was.
60
[...] Fromm and Horney get back to commonsense psychology and even psychologize culture and society.
117
[...] uma orientação transdisciplinar que tem por objetivo fundir as disciplinas
científico-sociais com a filosofia social, uma filosofia da história que permite
especificar o lugar da psicologia em uma orientação transdisciplinar e
dialética, e, por último, os estudos empíricos sobre autoritarismo que
demonstram o uso prático da psicologia. (FIGUEROA; ARIAS, 2016, p. 53)61
61
[...] una orientación transdisciplinaria que tiene por objetivo fusionar las disciplinas científico-sociales con la
filosofía social, una filosofía de la historia que permite especificar el lugar de la psicologia en una orientación
transdisciplinaria y dialéctica, y, por último, los estudios empíricos sobre autoritarismo que manifestan el uso
práctico de la psicologia.
118
62
In fact, one of the basic divisions between the Grünberg-Grossmann generations of Institut members and their
successors, led by Horkheimer, was the contrast in their respective atitudes towards psychology.
63
[...] attempt to introduce psychoanalysis into its neo-Marxist Critical Theory was thus a bold and unconventional
step. It was also a mark of the Institute’s desire to leave the traditional Marxist straitjacket behind.
119
seus colegas, porém, Erich Fromm foi o elo principal. Foi “principalmente através do
trabalho de Fromm que o Instituto primeiro tentou reconciliar Freud e Marx” (JAY,
1996, p. 88)64.
Adorno, com uma leitura crítica e fiel e, por seu turno, Fromm e Reich, com
uma leitura também crítica, porém revisionista. Enquanto Fromm se aproxima cada
vez mais da psicologia do ego, Reich se estabelece como mentor de uma escola
psicanalítica. A despeito dos caminhos tomados – provavelmente relacionados ao
contato com a academia e a sociedade norte-americanas -, eles são importantes
para à história da psicologia política e, quiçá, seria recomendável relê-los à luz dos
atuais eventos políticos, tal sua atualidade.
65
Antevendo as possíveis críticas ao fundamento biológico de sua teoria orgástica, que o definiria como
sexólogo e não psicanalista, como os autores deixam transparecer, Reich (2004) explica: “Se eu houvesse
definido a sexualidade apenas como sexualidade genital, cairia na noção pré-freudiana errada de sexualidade, e
sexual equivaleria a ‘genital’. Alargando o conceito de função genital com o conceito de potência orgástica, e
definindo-o em termos de energia, somei uma nova dimensão à teoria psicanalítica de sexualidade e libido,
conservando o seu arcabouço original” (p. 102).
121
Quem não conseguiu superar a sua própria ligação à família e à mãe ou,
pelo menos, não aclarou nem excluiu tal influência do seu julgamento, deve-
se abster de estudar o processo de formação das ideologias. Quem
classificar depreciativamente estes fatos como “freudianos” só conseguirá
provar a sua cretinice científica. Devem-se apresentar argumentos
objetivos, em vez de afirmações ocas e não fundamentadas. Freud
descobriu o complexo de Édipo. Só esta descoberta veio tornar possível
uma política familiar revolucionária. Mas Freud está tão distante de tal
exploração e interpretação sociológica da ligação familiar quanto o
economista mecanicista o está da compreensão da sexualidade como fator
social. Podem-se apontar algumas aplicações erradas do materialismo
dialético; mas não se neguem fatos que já eram conhecidos de qualquer
trabalhador antes de Freud ter descoberto o complexo de Édipo. E não se
resolva o problema do fascismo com chavões, mas sim com conhecimentos.
Os erros são possíveis e reparáveis, mas a tacanhice científica é
reacionária. (REICH, 2001, p. 53)
66
Si la primacía del intelecto es la meta del desarrollo social, tal primacía es inconcebible sin la primacía de la
genitalidad. Pues aquélla presupone una economía libidinal ordenada, es decir, primacía genital.
125
esse ciclo de escravidão, cujas raízes estão na restrição da libido genital, o indivíduo
deve superar a si próprio para que atinja a potência orgástica.
econômicas e políticas adversas. Tudo indica que se submeta, que eleja outro ideal
de grupo, pois está incapacitado de construir um ideal de ego próprio; o indivíduo
continua enfraquecido, pois a solidão, o medo e a perplexidade persistem.
Apesar dos grandes avanços científicos nas mais diversas áreas, a liberdade
positiva continua, senão impedida, dificultada. Crise econômica mundial, guerras
aqui e acolá, ataques terroristas, xenofobia, refugiados econômicos e políticos,
separatismos.... Perante tantos horrores e inequidades, a busca pela felicidade, pela
realização do eu, pela individualização torna-se um trabalho hercúleo. As condições
sociais, econômicas, políticas e religiosas limitam a realização total do ego, “cada
sociedade caracteriza-se por um certo nível de individuação além do qual o indivíduo
normal não pode passar” (FROMM, 1983, p. 33). Nesse sentido, alcançar a
liberdade positiva é uma tarefa difícil. A tendência é o indivíduo seguir o caminho
oposto, “recuar, desistir de sua liberdade e procurar vencer a solidão eliminando a
brecha que se abriu entre ele e o mundo” (p. 117). A fenda divisória é transposta por
mecanismos de fuga da liberdade, saídas que produzem a sensação de segurança,
que havia sido perdida, e levam, invariavelmente, à rendição da individualidade. A
submissão “mitiga uma angústia insuportável e, evitando o pânico, possibilita viver;
contudo não resolve os problemas subjacentes e seu preço é um gênero de vida que
muitas vezes consiste unicamente de atividades automáticas e compulsivas” (p.
117).
“O indivíduo assustado busca alguém ou algo a que possa prender seu ego;
não suporta mais ser seu ego individual e tenta, freneticamente, descartar-se dele e
reencontrar outra vez a segurança eliminando esse fardo: o seu ego” (FROMM,
1983, p. 125). Liberta-se de seu ego às custas da submissão.
132
Até a crise econômica do início deste século, o indivíduo vivia uma situação
social que lhe permitia ter a sensação de certa liberdade; em outras palavras, ele
estava submetido a formas mais sutis de dominação. O recrudescimento e a
dimensão global da crise, a corrupção, a crescente onda migratória e atos terroristas
são elementos que favorecem a pauperização da vida. O indivíduo, combalido
134
econômica, social e fisicamente, se sente impotente, sem valor, e seu ego perde o
vigor, se enfraquece. A angústia é tão dilacerante, que o indivíduo ou adoece, ou a
afasta, subjugando-se psiquicamente.
com que o Instituo fosse impedido de seguir suas pesquisas, tendo primeiro se
estabelecido em Genebra e posteriormente em Nova Iorque, associado à
Universidade de Columbia. O exílio intensificou-se, e Adorno emigrou para os
Estados Unidos, tendo passado por Oxford. Após seu retorno à Alemanha, em 1949,
ele desempenha papel de liderança no Instituto.
“Como é possível que a classe operária pense e aja contra os seus próprios
interesses?” A pergunta correspondente, para a Escola de Frankfurt, passou
a ser a seguinte: “Como é possível que a maioria da população, nos países
industrializados do Leste e do Oeste, pense e aja num sentido favorável ao
sistema que o oprime?” (ROUANET, 1998, p. 70)
67
[...] to develop and promote an understanding of social-psychological factors which have made it possible for
the authoritarian type of man to threaten to replace the individualistic and democratic type.
68
[...] political, economic, and social convictions of an individual often form a broad and coherent pattern, as if
bound together by a "mentality" or "spirit", and that this pattern is an expression of deep-lying trends in his
personality.
137
[...] quais conexões é [sic] possível apurar – num determinado grupo social,
num período determinado, em determinados países – entre o papel desse
grupo no processo econômico, a transformação ocorrida na estrutura
psíquica dos seus membros singulares e os pensamentos e as instituições
que agem sobre esse mesmo grupo, como totalidade menor no todo da
sociedade, e que são por sua vez o seu produto? (HORKHEIMER, 1999, p.
131)
e outros grupos sociais minoritários, não poderia e não havia sido esquecida. Assim,
Adorno e colaboradores empenharam-se em pesquisar, inicialmente, o
antissemitismo. Os autores partem do pressuposto que o antissemitismo não está
fundamentado nas características dos judeus, mas, sim, na subjetividade dos
indivíduos e na situação em que se encontram.
69
What people say and, to a lesser degree, what they really think depends very largely upon the climate of
opinion in which they are living.
70
[...] capable of self-initiated action upon the social environment and of selection with respect to varied stimuli,
something which though Always modifiable is frequently very resistant to fundamental change.
139
Podemos deduzir, das palavras dos autores, que tanto aspectos individuais
quanto sociais são fundamentais para o entendimento do comportamento dos
indivíduos em sociedade. Indivíduo e sociedade estão intrinsicamente relacionados.
Além disso, o comportamento é a expressão superficial de estruturas psíquicas
internas dos indivíduos, e é nesse sentido que a psicologia profunda tem a contribuir
na pesquisa sobre personalidade autoritária, pois ela é capaz de “revelar forças da
personalidade que se encontram no inconsciente do sujeito” (ADORNO et al., 1950,
p. 12)72.
71
[...]; it must regard the two not as mutually exclusive categories but as extremes of a single continuum along
which human characteristics may be placed, and it must provide a basis for understanding the conditions wich
favor the one extreme or the other. Personality is a concept to account for relative permanence. But it may be
emphasized again that personality is mainly a potencial; it is a readiness for behavior rather than behavior itself;
although it consists in disposition to behave in certain ways, the behavior that actually occurs will always depend
upon objective situation. Where the concern is with antidemocratic trends, a deliniation of the conditions for
individual expression requires an understanding of the total organization of society.
72
[...] bringing to light personality forces that lay in the subject’s unconscious.
73
[...] which represents the most extreme right-wing political and economic structure and ideology, is also the
most virulent antidemocratic form of ethnocentrism.
140
74
[...] there is no utopia and, one may add, there should be no utopia. One has to be "realistic”. This notion of
realism, however, does not refer to the necessity of judging and accounting on the basis of objective, factual
insight, but rather to the postulate that one recognizes from the very beginning the overwhelming superiority of the
existent over the individual and his intentions, that one advocates an adjustment implying resignation with regard
to any kind of basic improvements, that one gives up anything that may be called a daydream, and reshapes
oneself into an appendage of the social machinery. This is reflected by political opinion in so far as any kind of
utopian idea in politics is excluded altogether.
142
Se, por um lado, eles se tornam opressores, por outro, são, também,
oprimidos, pois se colocam semelhantemente em posição de submissão aos ideais
sociais vigentes, por meio da “rígida identificação do indivíduo com um superego
exteriorizado” (ADORNO et al., 1950, p. 676). Esse ideal de ego autoritário ganha
ainda maior destaque nas democracias atuais, que delegam ao chefe do Executivo o
poder, favorecendo a personificação de seus ideais. A identificação fica favorecida,
sobretudo, em períodos eleitorais, quando “as questões objetivas em jogo estão
geralmente ocultas atrás da exaltação dos indivíduos envolvidos, muitas vezes em
categorias que têm pouquíssima relação com as funções que esses indivíduos
devem cumprir” (ADORNO et al., 1950, p. 669)76. A propaganda política
antidemocrática é expert na produção de políticos messiânicos, desde que as
condições sociais e políticas favoreçam. Como messias, os políticos têm o poder da
revelação.
75
[...] authoritarian submissiveness on the ego level, with violence, anarchic impulses, and chaotic
destructiveness in the unconscious sphere.
76
[...] the objective issues at stake are mostly hidden behind the exaltation of the individuals involved, often in
categories which have but very little to do with the functions those individuals are supposed to fulfill.
143
Passado mais de meio século, essas palavras são atuais. Os discursos dos
novos paladinos seguem almejando “convencer as pessoas manipulando seus
mecanismos inconscientes, e não apresentando ideias e argumentos” (ADORNO,
2015b, p. 138). O que se revela, portanto, são mecanismos psíquicos e não
propostas racionais que almejem a transformação social. As desigualdades
permanecem e se tornam a realidade objetiva a que os indivíduos devem se
adaptar.
77
The individual has to cope with problems which he actually does not understand, and he has to develop certain
techniques of orientation, however crude and fallacious they may be, which help him to find his way through the
dark, were.
78
[...] child who is afraid of the bad man is at the same time tempted to call every stranger "uncle."
79
The opaqueness of the present political and economic situation for the average person provides an ideal
opportunity for retrogression to the infantile level of stereotypy and personalization. The political rationalizations
used by the uninformed and confused are compulsive revivals of irrational mechanisms never overcome during
the individual's growth. This seems to be one of the main links between opinions and psychological determinants.
144
[...] toma os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de
massa padronizada de hoje, em grande parte subtraídos de sua autonomia
e espontaneidade, em vez de se colocar metas cuja realização
transcenderia o status quo psicológico não menos que o social. A
propaganda fascista precisa apenas reproduzir a mentalidade existente em
seus próprios propósitos – ela não precisa induzir uma mudança -, e a
repetição compulsiva, que é uma de suas características mais importantes,
irá se coordenar com a necessidade por sua reprodução contínua.
(ADORNO, 2015c, p. 184)
CONCLUSÃO
ou do terror, até que tenha ganho quase todas as mentes, uma a uma, o indivíduo
sucumbe.
Wallas vai além ao mostrar que o afeto pode ser dirigido às instituições
políticas. Podendo ser direcionado a algo impessoal, como as instituições políticas,
permite-nos articulá-lo com Freud, pois, do ponto de vista da psicanálise, os objetos
de afeto não se limitam aos indivíduos; o ideal de ego é também influenciado pelo
entorno social e político. Assim, a liderança política, bem como a autoridade que ela
exerce, pode prescindir da figura de um líder encarnado, como mostrou Freud ao
151
Raiva, ira, ódio, paixão e amor são sentimentos que estão, invariavelmente,
ligados aos aspectos irracionáveis do ser humano. Razão e emoção, racionalidade e
irracionalidade, consciente e inconsciente, influenciam nossos atos. Não apenas
nossos atos cotidianos, mas, também, nossos atos políticos, como defendem os
autores. Entretanto, devido ao caráter irracional das emoções, é pertinente que a
psicanálise participe dos estudos psicopolíticos.
individual que conduz ao impulso para entrar em uma relação simbiótica com
outrem.
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