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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Ernesto Pacheco Richter

Influências da psicanálise na constituição da Psicologia Política:

Reich, Fromm e Adorno

Doutorado em Psicologia Social

São Paulo

2017
Ernesto Pacheco Richter

Influências da psicanálise na constituição da Psicologia Política:

Reich, Fromm e Adorno

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
DOUTOR em Psicologia Social, sob orientação do
Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval.

São Paulo
2017
Ernesto Pacheco Richter

Influências da psicanálise na constituição da Psicologia Política:


Reich, Fromm e Adorno

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
DOUTOR em Psicologia Social, sob orientação do
Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval.

Aprovado em: ____ de _______________ de 2017.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. Alessandro Soares da Silva – USP

____________________________________________
Profa. Dra. Analice de Lima Palombini – UFRGS

____________________________________________
Prof. Dr. Jorge Broide – PUC/SP

____________________________________________
Prof. Dr. Willis Santiago Guerra – PUC/SP

____________________________________________
Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval – PUC/SP
AGRADECIMENTOS

Ainda que a escrita de uma tese seja uma atividade solitária, o caminho
percorrido até o momento em que as ideias viram palavras escritas é repleto de
companheiros. Gostaria, portanto, de deixar expressos meus agradecimentos
àqueles que, de alguma forma ou outra, contribuíram para que este trabalho
pudesse ser realizado.

Salvador, por acolher a psicanálise no núcleo, ajudar intelectualmente e


deixar que meu pensamento flua.

Alessandro, amigo e companheiro para todas as horas, que me ensina a


refletir.

Rubens, por tudo aquilo que o sinal fechado proporcionou e proporcionará.

Helena, eterna incentivadora.

Rogério, pelo companheirismo.

Vanilda, de colega à amiga.

Renata, por me levar a autorreflexão.

Os professores Odair Sass e Alessandro Soares da Silva, pelas críticas e


contribuições durante a qualificação.

Os professores integrantes da banca e aos suplentes, por dispensarem tempo


em ler meus pensamentos.

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo


financiamento.
À Helena, que me ensinou a valorizar a vida.
RESUMO

Este estudo tem por objetivo analisar as influências da teoria psicanalítica no


processo de constituição da Psicologia Política, como campo de pesquisa.
Inicialmente, enfocamos os pensadores franceses Alexis de Tocqueville, Gabriel
Tarde e Gustave Le Bon, cujas contribuições acerca das revoluções francesas são
relevantes ao campo. Em contrapartida, apresentamos os autores anglófonos
Graham Wallas e Harold Lasswell, pois suas reflexões aportam distintas
perspectivas aos eventos políticos, porém, não menos significativas para a posterior
institucionalização da Psicologia Política. Em seguida, os principais textos sociais de
Freud, bem como os metapsicológicos, são abordados com o objetivo de analisar os
elementos políticos subjacentes na teoria psicanalítica. Finalmente, apresentamos
três autores, que no nosso entendimento, são essenciais à história do campo:
Wilhelm Reich, Erich Fromm e Theodor Adorno, cujo interesse principal era o estudo
do autoritarismo. Por meio de uma análise crítica e reflexiva, buscamos mostrar as
contribuições da psicanálise e como ela foi apropriada por esses autores. Esta
pesquisa justifica-se por preencher uma lacuna na história da Psicologia Política e
mostrar a relevância da psicanálise para o pensamento político, especialmente,
durante e logo após a Segunda Guerra Mundial. Além disso, é indubitável a
atualidade desses autores, haja vista a crescente adesão ao discurso autoritário que
se observa em pleno século XXI.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicologia Política, História, Autoritarismo


ABSTRACT

This work aims to analyze the influences of psychoanalytic theory in the process of
constitution of Political Psychology, as research field. Initially, we focus on French
authors, such as, Alexis de Tocqueville, Gabriel Tarde and Gustave Le Bon, whose
contributions regarding French revolutions are relevant to the field. On the other
hand, we present the Anglophone authors Graham Wallas and Harold Lasswell, as
their thoughts bring different perspectives to political events, but no less significant
for the later institutionalization of Political Psychology. Afterwards, we analyze
Freud’s social texts, as well as the metapsychological ones, in order to elucidate the
political elements underlying psychoanalytic theory. Finally, we present three authors
we consider essential to the history of the field: Wilhelm Reich, Erich Fromm and
Theodor Adorno, whose main interest was the study of authoritarianism. Through a
critical and reflexive analysis, we show the contributions of psychoanalysis and how it
was appropriated by these authors. This research is justified by filling a gap in the
history of Political Psychology, and showing the relevance that psychoanalysis has
had for political thought, especially during and shortly after World War II.
Furthermore, the contributions of these authors are undoubtedly present, given the
growing adherence to the authoritarian discourse observed in the 21st century.

Keywords: Psychoanalysis, Political Psychology, History, Authoritarianism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8

CAPÍTULO I - ARQUEOLOGIA DA PSICOLOGIA POLÍTICA .......................... 14

1.1. Alexis de Tocqueville e o papel das emoções na política ....................... 20


1.2. Gabriel Tarde e as leis da imitação ......................................................... 32
1.3. Gustave Le Bon: a irracionalidade nos movimentos de massa................ 36

CAPÍTULO II – A PERSPECTIVA ANGLO-SAXÔNICA..................................... 46

2.1. Graham Wallas e a natureza humana na política ................................... 47


2.2. Harold Lasswell: a paternidade em questão........................................... 58

CAPÍTULO III – AS BASES POLÍTICAS DA TEORIA PSICANALÍTICA ....... 64

3.1. A psicanálise e as ciências políticas ..................................................... 66


3.2. Totem e tabu: primitivismo, onipotência e política .................................. 72
3.3. Freud explica a psicologia das massas .................................................. 81
3.4. Entre duas ilusões .................................................................................. 93
3.5. Homo homini lupus ................................................................................. 101
3.5.1. Os mal-estares na civilização ...................................................... 104

CAPÍTULO IV – PSICANÁLISE, AUTORITARISMO E EXÍLIO ...................... 114

4.1. Reich: os corpos e a política .................................................................. 119


4.2. Fromm: relações sadomasoquistas na política ..................................... 126
4.3. Adorno: autoritarismo e a política ......................................................... 135

CONCLUSÃO ................................................................................................... 147

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 155


8

INTRODUÇÃO

As contribuições de alguns pensadores são tão impactantes que chegam a


fazer brechas nos rígidos e espessos muros da academia e através delas seus
nomes começam a circular no social. Karl Marx, Albert Einstein, Charles Darwin,
Leonardo da Vinci e Aristóteles são alguns dos nomes que percorrem o imaginário
social e são muitas vezes evocados sem que se tenha tido qualquer contato com
suas obras. Sigmund Freud faz parte desta constelação. A expressão ‘Freud
explica’, proferida diante de atos e expressões irracionais de outrem, traduz o
alcance de suas ideias. Tomados por esse imaginário de que ele seria capaz de nos
explicar, fomos ao seu encontro e surpreendentemente deparamo-nos diante de nós
mesmos, com o estrangeiro que nos habita. Constatamos que se há alguma
explicação possível para nossos atos e expressões irracionais, ela demanda um
esforço próprio. Nesse sentido, as contribuições freudianas apenas indicaram o
caminho a ser tomado nesse processo. Portanto, Freud nada pode explicar sobre
nós mesmos. Ele aportou as ferramentas necessárias para acessarmos nossos
processos inconscientes.

Nosso processo analítico foi decisivo para percebemos a importância das


contribuições psicanalíticas. Foi um processo doloroso, porém libertador, que nos
levou novamente aos bancos escolares, após um desvio pelas ciências exatas e
alguns anos de errância mundo afora. Outra graduação e cinco anos soaram como
uma eternidade àqueles que não entendiam a força do desejo. Entretanto, esse
período de tempo fortaleceu nossa escolha, pois à medida que o curso avançava
nos deparávamos com explicações teóricas sobre nosso próprio processo de
análise.

A dimensão que tínhamos da psicanálise estava restrita ao campo


terapêutico, a qual não foi influenciada apenas por nossa experiência analítica, mas
essencialmente pela demasiada ênfase clínica dos cursos de psicologia. Finalmente,
o estágio em psicopatologia chegara e com ele a certeza de um encontro, face a
face, com nosso primeiro paciente no espaço terapêutico tradicional: o sacrossanto
consultório clínico. Entre as opções havia a possibilidade de engajamento em um
projeto de pesquisa sobre a prática do acompanhamento terapêutico, a qual vinha
demonstrando resultados positivos no tratamento de alguns casos de psicose. A
perspectiva do encontro com a loucura foi sedutora. Não hesitamos, ainda que não
9

soubéssemos o que encontraríamos, embarcamos nessa Stultifera Navis e


afastamo-nos do tão sonhado setting terapêutico tradicional.

Diferentemente do que costumava ocorrer não fomos desembarcados em


terras longínquas e banidos da sociedade; desembarcamos e percorremos distintos
lugares da cidade de Porto Alegre. Era a loucura de um jovem sendo acompanhada
na tessitura social: andanças por parques; cachorros-quentes interditados pela
família foram saboreados como a última refeição; a música alta ouvida em um
estúdio de uma rádio local, que colocava o acompanhado na mesma posição do
homenzinho que vivia na caixa de som de seu quarto; horas em um quarto escuro
buscando resgatá-lo de seu estado mortífero e tantas outras passadas em um
hospital psiquiátrico devido ao recrudescimento de seu quadro clínico. Estes foram
alguns dos cenários que compusemos. Passamos por momentos de clausura, mas
também por aventuras, que permitiram acompanhar a loucura no social.

Esses caminhos tortuosos, que, em algumas vezes, nos colocaram em


situações embaraçosas, foram fundamentais para despertar nosso interesse pela
loucura como fenômeno social. De certa forma, seguimos o mesmo caminho de
Freud; aproximamo-nos da singularidade de um jovem fragmentado psiquicamente
para depararmo-nos com o mal-estar na civilização. Após um ano de contato com a
loucura saímos modificados dessa nau. E, fundamentalmente, com muitos
questionamentos sobre a relação indivíduo e sociedade. Poderíamos dizer que
embarcamos como psicólogos clínicos e desembarcamos sociais.

Essa jornada levou a outros portos. Próximo porto: São Paulo, Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. Na mala trazíamos Michel Foucault e
Sigmund Freud, na cabeça a certeza de que não poderíamos negligenciar a relação
entre indivíduo e sociedade. Novos portos, novos ares. Assim, entramos em contato
com a teoria crítica da sociedade, a qual reafirmou nossas convicções acerca da
relevância da teoria psicanalítica na apreensão dos fenômenos sociais. Os teóricos
frankfurtianos, ao complementarem a teoria social com as contribuições
psicanalíticas, forneceram o estímulo necessário. Portanto, ainda que tenhamos
desembarcado psicólogos sociais, não abandonamos nossa perspectiva teórica
inicial. Poderíamos dizer que houve uma ressignificação da teoria, numa espécie de
Nachträglichkeit, que proporcionou o desvelamento de um Freud, até então,
renegado: o social.
10

Não sabíamos que ele estava incólume em nossa mala; sua descoberta
atiçou nosso interesse. Suas contribuições acerca dos fenômenos sociais tinham
sido praticamente ignoradas por nós; o Freud clínico foi o que nos interessou. A
leitura que realizamos de seus textos sociais foi superficial, desprezando a riqueza
da aplicabilidade da teoria psicanalítica aos fenômenos sociais. A psicanálise
aplicada ou em extensão ficou invariavelmente restrita à análise, muitas vezes
selvagem, de obras literárias e artísticas.

O reducionismo embutido em toda análise selvagem de fenômenos sociais,


que visa tudo explicar a partir de referenciais psicanalíticos, despertou a ira
justificável daqueles que viram seus campos de saber invadidos de forma arbitrária e
inconsequente. Transportar conhecimentos desenvolvidos em um campo do saber a
outro é uma tarefa nada fácil e requer parcimônia em nossas afirmações. Essa
tentativa, que pode ser frutífera, faz emergir a política envolvida na própria
construção do saber, uma vez que fronteiras, até então, definidas e rigidamente
delimitadas passam a ser transpostas e a disputa pelo poder intelectual se acirra.
Se, por um lado, esse ponto de contato entre distintos campos produz resistências,
por outro, ele demanda uma crítica sobre nossas práxis. Foi a partir de uma visão
crítica da prática do acompanhamento terapêutico, que salientamos a excessiva
ênfase dada aos aspectos clínicos e terapêuticos da loucura em detrimento dos
sociais.

A singularidade da loucura deve ser compreendida de forma ampla, uma vez


que distintas ordens constituem o homem; é na interseção entre os campos social,
histórico e libidinal que a singularidade aflora. Com base nesta concepção de
homem, a interlocução entre a psicanálise e os distintos campos das ciências
humanas se faz necessária, possibilitando a extensão de suas fronteiras, porém,
ciente de que há limites. A psicanálise não pode e não deve requerer a hegemonia
do saber nas ciências sociais. Independentemente da radicalização do pai da
psicanálise, que afirmara haver apenas dois ramos do conhecimento: a ciência da
natureza e a psicologia em suas duas vertentes, a pura e a aplicada, a psicanálise,
pouco a pouco, firmou-se e aproximou-se de campos distintos como a literatura, a
estética, a antropologia, a religião e a sociologia.

Não tínhamos noção de que nos aproximaríamos da sociologia ao embarcar


naquela nau dos loucos. Certos de que a relação indivíduo e sociedade é primordial,
11

chegamos a Londres, especificamente à clínica Tavistock, influenciados por seu


envolvimento na luta antimanicomial. Nossa indagação inicial relacionava-se ao
preconceito em relação à loucura. Porém, em virtude das mudanças sociais e
políticas presenciadas e vividas durante esse autoexílio, nosso foco foi, também, se
modificando.

Os atentados terroristas ao sistema público de transporte em 2005, a massiva


onda migratória de poloneses, o ingresso da Bulgária e Romênia à Comunidade
Econômica Europeia, indicando nova leva de imigrantes e a crise econômica
mundial acentuaram sentimentos xenófobos, islamofóbicos e isolacionistas.
Consequentemente, ideias conservadoras sobrevieram e o partido conservador
ascendeu ao poder; sua ascensão significou mudanças significativas nas políticas
públicas, afetando tanto imigrantes quanto cidadãos britânicos. Diante desse
cenário, nosso interesse foi, paulatinamente, deslocando-se do universo da loucura
ao da política.

Ao adentrarmos o mundo da política, algumas perguntas iniciais se


impuseram: teria a psicanálise algo a contribuir à política? Seria válido aplicar a
teoria psicanalítica na reflexão sobre o temor e o preconceito com relação tanto à
religião como àqueles que vêm de terras alheias? Duas questões com implicações
distintas. Enquanto esta nos levaria a um aspecto específico da política, aquela nos
conduziria a uma pesquisa mais ampla sobre a aplicabilidade da psicanálise à
política. Este último caminho parecia mais instigante, ainda que nos encontrássemos
na posição de estrangeiros. Guiados pela primeira, a presente pesquisa foi se
constituindo.

A psicologia política tornou-se o ponto de partida óbvio, pois este campo está
institucionalizado e vem se expandindo no meio acadêmico. Atualmente dispomos
de revistas científicas reconhecidas internacionalmente, cujos artigos se constituem
como um arquivo histórico da relação entre psicologia e política, entre os aspectos
subjetivos dos indivíduos e os objetivos da política. A revista Political Psychology
Journal é o periódico oficial da International Society of Political Psychology e, por
conseguinte, representa uma espécie de arquivo oficial. Ainda que os artigos
publicados desde 1978, ano do primeiro volume, não possam e não devam ser
menosprezados, pois não há história sem arquivo, não podemos tomá-los como
única fonte. Se assim procedêssemos, estaríamos diante de uma história oficial que
12

impede outro olhar a ela. Impede a história viva, aquela na qual a interpretação tem
espaço. Nesse sentido, agregamos outras vozes, outros arquivos, que possibilitem
reinterpretação e, por conseguinte, ir além da história oficial.

Voltamo-nos ao período pré-institucionalização da psicologia política, com o


objetivo principal de analisar as influências da psicanálise em sua constituição.
Incialmente, apresentamos tanto autores relevantes para a política quanto para a
psicanálise, pois, nesses encontramos evidências de articulação entre esses dois
campos. Em seguida, abordamos os textos sociais freudianos, estabelecendo
relações com a política. E, finalizamos com as contribuições de pensadores exilados
alemães.

No primeiro capítulo, Arqueologia da Psicologia Política, enfocamos o


pensamento de Alexis de Tocqueville, Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, norteados
por uma de suas obras: O antigo regime e a revolução, As leis da imitação, e
Psicologia das multidões, respectivamente, com o intuito de analisar as articulações
possíveis entre suas ideias e a teoria psicanalítica. Entretanto, não nos limitamos a
elas, nem a esses autores; recorremos, também, às reflexões de outros pensadores.
No segundo, A perspectiva anglo-saxônica, Graham Wallas e Harold Lasswell são o
foco. Do primeiro, abordaremos The life of Francis Place e Human nature in politics,
enquanto, do segundo, Psychopathology and politics será a obra de referência, visto
que nela a teoria freudiana é expressamente articulada com a política. Além disso,
como teórico da comunicação, publicou relevantes livros sobre propaganda política,
sendo considerado o fundador da psicologia política.

Em As bases políticas da teoria freudiana, terceiro capítulo, retomamos os


principais textos sociais de Freud para analisar os elementos políticos subjacentes
na teoria psicanalítica. No quarto e último, Psicanálise, autoritarismo e exílio,
apresentamos três autores, que no nosso entendimento, são essenciais à história da
psicologia política: Wilhelm Reich, Erich Fromm e Theodor Adorno. O método
utilizado é o mesmo do primeiro, assim, Psicologia das massas do fascismo, O medo
à liberdade e A personalidade autoritária, respectivamente, guiaram esta pesquisa.
Os três possuem ascendência judia e fugiram do nazismo; todavia, para os Estados
Unidos se exilaram nos Estados Unidos, escapando do nazismo.

Não é por essas semelhanças que os elegemos como objeto de estudo. Essa
eleição se deve ao impacto teórico e epistemológico que subjaz ao exílio e, também,
13

por representarem dois caminhos distintos que levam à interdisciplinaridade. De um


lado, Adorno, que parte do marxismo em direção ao freudismo, do outro, Reich e
Fromm, que segue a direção inversa; entretanto, os três têm um objeto comum: o
autoritarismo. Enquanto, aquele tem uma perspectiva marxista-freudiana, estes, por
sua vez, são freudo-marxistas.

O resgate desses autores permite preencher uma lacuna na história da


psicologia política e mostrar a relevância que a psicanálise teve para o pensamento
político, especialmente, durante e após a Segunda Guerra Mundial, momento de
barbárie da história da humanidade. Além disso, o momento econômico, social e
político atual apresenta certas similaridades com o da Alemanha, que culminou com
a ascensão do regime autoritário de Adolf Hitler, o que evidencia sua atualidade.
Considerando esses fatos, o presente trabalho torna-se relevante e justificável. Não
podemos retroceder à política vazia, que exclui o papel significativo dos indivíduos,
cujos processos conscientes e inconscientes influenciam suas vidas como atores
políticos.
14

CAPÍTULO I - ARQUEOLOGIA DA PSICOLOGIA POLÍTICA

A institucionalização de um campo de estudo é algo que se desenvolve pouco


a pouco e, portanto, quando procuramos nos dedicar a uma área do conhecimento
humano, é fundamental que tenhamos algumas noções históricas de sua
constituição. É nesse sentido que iremos abordar as raízes da psicologia política,
pois entendemos que ainda que ela tenha se institucionalizado no final da década de
1970, houve anteriormente vários autores que se interessaram em realizar a
articulação entre campos que a princípio podem parecer irreconciliáveis.

Essa aparente disparidade está fundamentalmente relacionada à


especificidade desses campos que possuem objetos de estudo distintos. Enquanto a
psicologia se dedica a estudar o ser humano e sua subjetividade, a política, por sua
vez, ainda que apresente distintas designações, está fundamentalmente relacionada
à vida na polis. As distintas concepções de política são apresentadas pelo filósofo
italiano Nicola Abbagnano (2007) em seu Dicionário de filosofia, as quais retomamos
a seguir, pois elas permitem que seja feita uma aproximação entre esses dois
campos de estudo. Segundo o autor, há quatro possíveis definições do que viria a
ser a política. A primeira foi apresentada por Aristóteles em seu livro Ética e estaria
relacionada à doutrina do direito e da moral; a segunda definição foi exposta
também pelo mesmo filósofo grego e estaria ligada à teoria do Estado; a terceira
teria sido proposta por Platão e estaria relacionada com a arte ou a ciência do
governo; e, finalmente, a quarta definição surgiu com Auguste Comte, em sua obra
Sistema de política positiva, que associa a política ao estudo dos comportamentos
intersubjetivos.

Ao analisarmos as definições acima, fica evidente que, além da política estar


relacionada com questões governamentais e de Estado, ela não pode estar
desvinculada dos sujeitos que compõem, não apenas as esferas governamentais,
como também a população em geral, pois as questões políticas afetam todos
aqueles que integram a sociedade. Portanto, é inconcebível refletirmos sobre política
sem levarmos em consideração os indivíduos de maneira geral, pois todos os
cidadãos são atores políticos, independentemente de ocuparem ou não cargos em
instituições políticas. Abre-se, portanto, espaço para a constituição de um novo
campo de estudo social que envolve a interlocução dessas duas disciplinas –
psicologia e política - que a princípio possuem objetos distintos: a psicologia política.
15

Sua constituição traz uma questão importante: a psicologia política é uma


disciplina ou campo de estudo dentro da psicologia social? A resposta a este
questionamento não é consensual, visto que muitos pesquisadores de distintas
áreas têm se interessado pela psicologia política, o que produz “uma dispersão e
isolamento bastante grandes, cuja consequência é a multiplicidade de enfoques e a
fragmentação temática, a falta de paradigmas integradores e uma conceitualização
ainda incerta” (MONTERO; DORNA, 1993, p. 8)1. Apesar disso, os autores a
consideram como uma disciplina.

Adela Garzón destaca, por sua vez, que a psicologia política é mais do que
uma simples disciplina, pois se trata de uma ferramenta que “permite ao psicólogo
colocar em contato cidadãos e políticos e à psicologia com as necessidades e
urgências que se apresentam em cada momento nas sociedades democráticas”
(GARZÓN, 2008, p. 5)2. Assim sendo, trata-se de um campo de atuação para a
transformação social e política. Essa definição, com a qual concordamos, é mais
ampla e está em sintonia com uma área de atuação eminentemente interdisciplinar.

Independentemente de ser uma disciplina ou uma prática ou ambas, é


importante salientar que, no processo de sua institucionalização, é necessária a
interlocução entre teóricos de distintas áreas do conhecimento das ciências sociais,
tarefa que nem sempre é fácil, pois exige que aqueles que se dedicam a ela reflitam
sobre suas convicções teóricas e estejam dispostos a revisar as fronteiras
epistemológicas rigidamente estabelecidas de suas disciplinas. Portanto, há
invariavelmente um olhar de desconfiança direcionado aos pesquisadores que se
empenham na árdua tarefa de estabelecer possíveis pontos de contato
interdisciplinares.

É caso cediço que um novo campo de estudo não emerge instantaneamente,


sempre há pensadores que podemos chamar de seus precursores e um trabalho
que se proponha a contribuir ao campo exige que se faça um retorno a suas origens.
Tal retorno pode ser comparado ao trabalho de arqueologia. É assim que

1
As citações de obras estrangeiras utilizadas nesta tese são traduções nossas. Portanto, sempre que houver
citações literais apresentaremos o texto original em nota de rodapé para que o leitor possa cotejá-las com nossa
tradução. [...] una dispersión y un aislamiento bastante grandes, cuya consecuencia es la multiplicidad de
enfoques y la fragmentación temática; la falta de paradigmas integradores y una conceptualizacién aún incierta.
2
[...] permite al psicólogo poner en contacto a ciudadanos y políticos, y a la psicología con las necesidades y
urgencias que presentan em cada momento las sociedades democráticas actuales.
16

retornaremos a um evento histórico relevante, que marca definitivamente os


primórdios da psicologia política: a Revolução Francesa.

A Revolução Francesa promoveu modificações significativas não apenas na


França, mas também em todo continente europeu, impactando a maneira que os
Estados se organizaram politicamente desde então. As incoerências observadas
durante o levante popular contra o regime monárquico absolutista que governava
durante séculos demandaram dos pensadores da época novas explicações e,
portanto, os mesmos foram obrigados a encontrarem pontos de interlocução entre
os distintos campos das ciências sociais. Isso ocorreu, pois eles se depararam com
um fenômeno que até o momento era praticamente inexistente: o fenômeno das
massas.

Havia nesse fenômeno uma incoerência que exigia explicações sobre o


comportamento humano e questões políticas; os franceses, por um lado, lutavam
pelos reconhecidos ideais revolucionários e progressistas - liberdade, igualdade e
fraternidade -, mas simultaneamente utilizaram métodos desumanos para atingi-los,
expondo a brutalidade do ser humano. É nesse sentido que a Revolução Francesa
fascinou os pensadores, pois pressupunha e encarnava tanto as possibilidades
utópicas do mundo moderno quanto suas brutalidades. Tamanha contradição fez
emergir um questionamento importante, e a intelectualidade da época se viu diante
de um problema: como “o jacobino de 1792, imbuído de espírito público, a
declaração dos direitos do homem em sua mão e o amor da humanidade em seu
coração, teria se tornado o terrorista de 1794” (LIVESEY, 2001, p. 1)3.

É nesse sentido que Dorna (1998) salienta que a cultura, “neste caso a
francesa, constitui uma matriz fecunda para o desenvolvimento das ideias políticas e
das condutas sociais. Não é casualidade que a Revolução de 1789 e os fatos
políticos e ideológicos, contraditórios, que levaram de Robespierre a Napoleão a
inspirar os primeiros esboços da psicologia política moderna” (p. 50)4.

O autor salienta que pensadores como Charles Fourier (1772-1837), Alexis de


Tocqueville (1805-1859) e Hippolyte Taine (1828-1893) não podem ser olvidados,

3
[...] the Jacobin de 1792, filled with public spirit, the Declaration of the Rights of Man in his hands, and the love
of humanity in his heart, should have become the Terrorist of 1794.
4
[...] en este caso francesa, constituye una matriz fecunda para el desarrollo de las ideas políticas y las
conductas sociales. No es casualidad que la Revolución de 1789 y los hechos políticos e ideológicos,
contradictorios, que la conducen de Robespierre a Napoleón inspiren los primeros esbozos de la psicología
política moderna.
17

pois suas reflexões aportaram aspectos psicológicos para o desenvolvimento das


ideias políticas e das condutas sociais. Dorna (1998) esclarece, ainda, que Fourier
“representa uma fonte de inspiração psicológica da política. Suas análises sobre a
educação das crianças, o matrimônio, o papel do pai e das paixões humanas o
situam como um dos precursores do freudismo social, do utopismo, da dinâmica de
grupo e da psicologia social” (p. 50)5. Tocqueville, por sua vez, “sustenta que os
homens fazem armadilhas a si próprios por excesso de cálculos sobre a estratégia
dos demais. De fato, a prática social demonstra que os ideais se alimentam
psicologicamente de crenças, valores e emoções” (p. 51) 6. Taine, por sua vez,
explicita “sua vontade de desenvolver uma ciência política baseada na psicologia
política: ‘a história é no fundo um problema psicológico’” (p.51) 7, para tanto ele se
dedica ao estudo de um dos principais grupos políticos da Revolução Francesa: os
jacobinos.

Esses autores contribuíram efetivamente para a emergência da psicologia


política e representam de certa forma traços embrionários desse campo. Outro
pensador que deve ser lembrado nesse processo é Émile Boutmy (1835-1906). Ele
foi amigo e discípulo de Hippolyte Taine e preconizava a importância dos fatores
psicológicos no entendimento da história a partir da análise das relações entre
identidades individuais e coletivas, privilegiava a ideia de um caráter nacional, a qual
desembocou na sua proposição da existência de uma personalidade coletiva que
seria fundamental na compreensão das dinâmicas sociais, institucionais e jurídicas
de uma sociedade. Sua concepção de uma psicologia dos povos foi apresentada no
início do século passado em Essai d'une psychologie politique du peuple anglais au
XIXe siècle (1901) e Éléments d'une psychologie politique du peuple américain: la
nation, la patrie, l'État, la religion (1902).

Neste trabalho de escavação arqueológica que nos propusemos, Gustave Le


Bon (1841-1931) se destaca; primeiro por sua perspicácia em descrever a psique
dos movimentos de massa em Psicologia das multidões, originalmente publicado em

5
[...] representa una fuente de inspiración psicológica de la política. Sus análisis sobre la educación de lós niños,
el matrimonio, el papel del padre y de las pasiones humanas lo sitúan como uno de los precursores del freudismo
social, del utopismo, de la dinâmica de grupo y de la psicología social
6
[…] sostiene que los hombres se hacen trampa a si mismos por exceso de cálculos sobre la estrategia de los
demás. De hecho, la practica social demuestra que los ideales se alimentan psicológicamente de creencias,
valores y emociones.
7
[…] su voluntad de desarrollar una ciencia política basada en la psicología científica: “la historia es en el fondo
un problema psicológico”.
18

1895, e, segundo, por ter lançado posteriormente um novo livro intitulado A


psicologia política e a defesa social (1910), o qual é menos conhecido, mas
fundamental, pois se constitui como um verdadeiro projeto ideológico e científico, no
qual seu conservadorismo se torna mais explícito.

Tanto Le Bon quanto Boutmy se distanciaram da forte tradição nacionalista


francesa, a qual pregava a defesa da cultura, da literatura e da tradição filosófica
nacionais; ambos foram influenciados pelos ideais liberais-conservadores vindos da
Inglaterra. Como afirma Consolim (2007) ao refletir sobre a formação da psicologia
social:

Para os psicólogos do ‘poder social’, tais como Boutmy e Le Bon, tratava-se


de demonstrar que a ‘mentalidade’ individualista, liberal e tradicionalista dos
anglo-saxões era mais civilizada e próspera do que a francesa. [...] eram
profissionais do mercado e que se construíram com base na iniciativa
privada, onde predominava uma espécie de culto ao liberalismo
conservador inglês. (p.130-131)

Como podemos observar, ainda que a ciência política tenha se inspirado no


legado deixado pelas ideias de determinismo social proposto por Émile Durkheim,
houve diversos estudiosos que compartilhavam das ideias propostas por Gabriel
Tarde. Isto ocorreu especialmente pelo fato de Tarde, ao contrário do que é
divulgado nos meios acadêmicos sobre a disputa entre esses dois importantes
autores, detinha capital intelectual significativo; “sua posição no campo intelectual
parisiense nos anos 1890 não foi periférica, mas absolutamente central”
(CONSOLIM, 2008, p. 269). A autora elenca três fatores fundamentais para a
influência tardeana na produção intelectual da cena parisiense: primeiro, devido ao
processo inacabado da autonomização universitária nas áreas de letras e filosofia;
segundo, em função das posições intelectualmente conservadoras e resistentes ao
modernismo intelectual nas ciências sociais e, por último, sua capacidade em
atender às expectativas dos setores social e intelectualmente dominantes da época.

Com a consolidação do processo de especialização nas ciências sociais e a


ascensão de Émile Durkheim e suas concepções positivistas, inspiradas em Auguste
Comte, a interlocução entre a psicologia e as outras especialidades das ciências
humanas foi dificultada. Houve, consequentemente, um rechaço generalizado às
contribuições psicológicas nos estudos políticos e sociais, o que retardou a
emergência da psicologia social e especialmente da psicologia política como
19

campos de estudo. As poucas iniciativas de estudiosos no sentido de abordar o


papel das emoções foram acusadas de produzirem determinismos psicológicos.

Mesmo várias vertentes da História Política fizeram das emoções um objeto


estranho às suas discussões, ao optarem pelo estudo exclusivo dos
aspectos cognitivos da política, e ao pressuporem serem os sujeitos
plenamente conscientes e racionais, orientando-se apenas pelo impulso de
satisfazer seus interesses, ou pela fidelidade a suas ideias.
(PROCHASSON, 2005, p. 305)

Contudo, a psicologia política prosperou e acabou sendo institucionalizada


como um importante campo de saber, estudo e atividade, mesmo que por muito
tempo tenha sido um campo incipiente. Nesse sentido, buscarmos revelar os
pioneiros é de suma importância, pois acreditamos que suas influências não devem
e não podem ser esquecidas, uma vez que elas contribuem sobremaneira para
entender os rumos que este campo tem tomado na contemporaneidade.

Ainda que tenhamos optado por nos deter nesses autores, convém salientar
que vários pensadores colaboraram para que a psicologia se instaurasse na
academia. Não podemos, ainda, deixar de mencionar o nome daquele que primeiro
cunhou o termo que dá nome ao nosso campo de estudo: Adolf Bastian (1826-
1905), etnólogo alemão que em 1860 lançou uma obra composta de três volumes
intitulada O homem na História - Der Mensch in der Geschichte, cujo terceiro volume
chama-se Zur Begründung einer psychologischen politische - Para a criação de uma
psicologia política. O primeiro: Die Psychologie als Naturwissenschaft – A Psicologia
como ciência - e o segundo Psychologie und mythologie – Psicologia e mitologia.
Além de ser a obra mais antiga que faz referência à psicologia política, as
elaborações desenvolvidas por Adolf Bastian influenciaram na elaboração do
conceito de inconsciente coletivo do psicanalista suíço Carl Jung, o que nos importa,
pois estabelece uma relação entre a psicologia política com a psicanálise, que é
fundamental em nosso trabalho.

Após salientar a importância desses autores para a emergência da psicologia,


abordaremos de forma pormenorizada as contribuições de Alexis de Tocqueville,
Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, pois entendemos que suas contribuições são
capitais para determinar as raízes da psicologia política.
20

1.1. Alexis de Tocqueville e o papel das emoções na política

O papel das emoções, dos sentimentos e dos afetos tem sido invariavelmente
destituído de qualquer relevância no estudo da política. Cientistas políticos, filósofos,
historiadores e sociólogos que se preocupam com os fatos e instituições políticas
parecem não perceber o quanto as emoções fazem parte da natureza humana.
Basta observarmos o momento político que passa o Brasil para verificarmos que não
há como evitá-las e não as levar em consideração quando nos dedicamos a
compreender a política. As passeatas que têm sido realizadas em solo brasileiro, os
debates no Congresso Nacional e as coberturas realizadas pela mídia deixam
transparecer claramente o importante papel que as emoções desempenham no
âmbito da política. Xingamentos, ações tresloucadas, análises descabidas, a busca
nada democrática e insana pelo poder e agressões físicas e verbais são exemplos
de que a política não está isenta da interferência das emoções.

Esse exemplo que nos é próximo evidencia que a política não pode ser
apreendida apenas por meio de seus aspectos cognitivos, como se os sujeitos
fossem plenamente racionais e conscientes. Isso não quer dizer que devamos
renunciar e desconsiderar esses aspectos; caso quiséssemos analisar a política
única e exclusivamente por meio das emoções seríamos acusados, com toda razão,
de produzir estudos baseados no determinismo psicológico. Porém não podemos
desconsiderar a subjetividade dos atores políticos, pois não há política e tampouco
sociedade sem os sujeitos que a fazem e a compõem, pois entendemos que os
indivíduos se compõem na interseção entre aquilo que lhes é individual e os
determinantes sociais e suas instituições.

A ausência das emoções nas pesquisas sociais e políticas não é um


fenômeno que vimos surgir atualmente. Podemos afirmar que a introdução do
pensamento filosófico de Auguste Comte teve um papel decisivo no afastamento das
emoções de todo e qualquer campo que se propunha a ser científico, pois a partir do
questionamento de Comte (1978) o positivismo se instaurou quase que
unanimemente no meio acadêmico. A ideia de que “cada ramo de nossos
conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado
teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo” (p.
3) foi determinante para que os pensadores tenham se furtado a inserir este aspecto
da natureza humana em seus estudos.
21

Até mesmo a própria psicologia foi influenciada pelo pensamento comteano,


como podemos observar nas palavras de Théodule Ribot (1896), um dos fundadores
da psicologia científica; ao afirmar que a psicologia dos estados afetivos exerceu
apenas uma sedução moderada, preferindo outros estudos, aqueles das
percepções, da memória, das imagens, dos movimentos e da atenção. Verificamos
que tais estudos são mais facilmente apreensíveis que as emoções. Contudo, o
autor enfatiza que a “natureza da vida afetiva não pode ser compreendida se não se
segue suas incessantes transformações, isto é, em sua história. Separá-la das
instituições sociais, morais, religiosas, das transformações estéticas e intelectuais
que a traduzem e encarnam é reduzi-la a uma abstração vazia e morta” (p. x)8.

Apesar da forte influência positivista nas ciências humanas, que buscavam


incessantemente se enquadrar aos preceitos das ciências naturais, alguns
pensadores não se eximiram de levá-las em consideração. Contudo, como afirma
Elster (1999) acerca de Aristóteles:

[...] mantendo-se muito perto dos fenômenos, ele evita as construções


implausíveis que encontramos em Descartes ou Hume. Mais do que
qualquer outro filósofo, ele mostra o quanto as emoções estão enraizadas
não apenas na psicologia individual, mas também na interação social. Suas
análises minuciosas dos antecedentes das várias emoções, [...], nunca
foram igualadas. E enquanto o que Descartes, Spinoza, Hume e Kant nos
falam sobre as emoções exprim pouco sobre a ordem política e social na
qual eles viveram, a argumentação aristotélica das emoções é também a
fonte principal para nosso entendimento da sociedade e da política
ateniense. (p. 50-51)9

Como podemos observar, vários filósofos e até mesmo psicólogos salientam


a importância das emoções para a psicologia individual bem como para a sociedade
e a política. Para além desses filósofos, Tocqueville também pode ser considerado
como um desses pensadores que não se absteve de englobar o papel das emoções
em seus escritos políticos, como salientam Prochasson (2005) e Elster (1995; 1999).

Não poderia ser distinto, Alexis de Tocqueville viveu numa época de


revoluções e de emoções intensas. As revoluções, as guerras, as grandes
epidemias, as forças da natureza e a eminente morte desvelam aquele estranho que
8
[…] nature de la vie affective ne pas être comprise que si on la suit dans se transformations incessantes, c'est-
à-dire dans son histoire. La séparer des instituitions sociales, morales, religieuses, des changements esthétiques
et intellectuels qui la traduisent et l'incarnent, c'est la réduire à une abstraction vide et morte.
9
[…] keeping very close to the phenomena, he avoids the implausible constructions that we find in Descartes or
Hume. More than any other philosopher, he shows how emotions are rooted not only in individual psychology but
also in social interaction. His minutely detailed analyses of the antecedents of the various emotions have never,
[…], been equaled. And whereas what Descartes, Spinoza, Hume, and Kant say about the social and political
order in which they lived, Aristotle’s discussion of emotions is also a main source for our understanding of
Athenian society and politics.
22

nos habita e que por muito tempo foi e tem sido negligenciado pela academia:
nossas emoções, nossos afetos, nossos sentimentos. Nesses momentos vemos
aflorar sobremaneira nossas duas faces, nossos dois lados: o humano e o animal,
nosso lado racional e nosso lado irracional.

Tocqueville não se limitou apenas a observar e descrever tais eventos como


um cientista distante e imparcial; ele foi parte tanto como cidadão quanto como
legislador, tendo sido cinco vezes conduzido à Câmara de representantes, após uma
primeira derrota. Antes que cientista e historiador político, ele era político, e suas
aspirações políticas foram registradas em uma carta endereçada a seu companheiro
de viagem aos solos estadunidenses (JASMIN, 1997). Seu desejo se concretizou:
ele seguiu a magistratura, que o levou a ser eleito representante e posteriormente
ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros durante o governo de Luís Bonaparte,
tendo renunciado ao posto quando houve o golpe de Estado de 1851. Portanto, ele
vivenciou diferentes lugares em sua vida e foi afetado como cidadão francês e como
representante deles. Isso permitiu-lhe uma compreensão mais abrangente que estão
expressas em seus trabalhos. Parece-nos, portanto, que não poderíamos deixar de
resgatar suas possíveis contribuições que possam estar relacionadas com a
psicologia política em estado bruto, em efervescência.

Jon Elster, filósofo, cientista social e político e acadêmico, dedica dois


capítulos a Tocqueville em seu livro Psicologia Política. Além de o autor igualar
Tocqueville a Stuart Mill, ele enfatiza o papel significativo da psicologia na
compreensão dos fatos e ações sociais e políticas. Suas palavras merecem ser
mencionadas:

Dos grandes pensadores do século XIX, somente John Stuart Mill e


Tocqueville lograram esquivar-se das armadilhas de uma posição
organicista e teológica ao insistir decisivamente que era necessário
encontrar microfundamentos na análise das instituições e dos processos
sociais. [...] Tocqueville não se limitou ao estudo da psicologia individual. Ao
afirmar que suas bases fundamentais são os mecanismos psicológicos,
quero dizer claramente que servem para construir e explicar algo. (ELSTER,
1995, p. 151)10

Parece-nos óbvio que o entendimento do funcionamento da psique humana é


relevante, senão indispensável, para compreendermos aquilo que o próprio ser

10
De los grandes pensadores del siglo XIX, solo John Stuart Mill y Tocqueville lograran rehuir las trampas de una
posición organicista y teológica, al insistir resueltamente en que era necesario encontrar microfundamentos en el
análisis de las instituciones y de los procesos sociales. [...]. Al afirmar que sus cimientos fundamentales son los
mecanismos psicológicos, quiero decir claramente que le sirven para construir y explicar algo más.
23

humano criou: a civilização, se é que podemos nos rotular dessa maneira. Talvez o
que produzimos seja apenas distintas formas de mal-estares com o passar do
tempo. Cada época produz seu mal-estar que oprime os indivíduos. As emoções
afloradas nas últimas manifestações no Brasil demandam que as emoções sejam
retomadas para pensarmos o momento político e social em que vivemos, pois não
há política nem sociedade que não sejam constituídas por seres humanos, e vice-
versa. Os indivíduos são razão e emoção. Entretanto, é inegável que elas não
podem ser quantificadas, não são palpáveis, não podem ser medidas com precisão
por experimentos laboratoriais, replicadas como se clones fôssemos; ou seja, o
estudo das emoções, dos sentimentos, daquilo que nos afeta não se coaduna aos
preceitos de ciência pragmática e empirista. Isso não quer dizer que a psicologia
deva ser considerada a regia scientia, pois entendemos que o ser humano se
desenvolve a partir de três campos: o biológico, o psicológico e o social. Assim, seria
leviandade requerer a supremacia sobre as outras ciências sociais. Queremos, sim,
reafirmar que não há como pensar a política e a sociedade sem levarmos em
consideração seus atores políticos e sociais, suas subjetividades, suas emoções,
pois acreditamos que elas fazem parte de nós e a vemos aflorar diuturnamente, em
maior ou menor grau de intensidade.

Nesse sentido, por sua vez, Prochasson (2005) também salienta a


importância do pensamento tocquevilleano, ao afirmar que, para o pensador francês
e os “teóricos do início do século XIX, a política dos modernos, após a Revolução,
não era inteiramente construída pela razão. A política não se nutria apenas de
axiomas, e nem reservava aos mais competentes a resolução das questões mais
árduas” (p. 308). O autor prossegue e expressa que a “longa história da política
contemporânea se desenrola sob o império desta dialética entre a razão, a paixão e
os interesses, cujo jogo sutil convém esclarecer” (p. 308).

Ambos os autores citados anteriormente relembram o quanto a figura de


Tocqueville é singular para a história da política bem como para encontrarmos raízes
do campo que veio a se constituir posteriormente: a psicologia política, pois
encontraram nele as emoções tão negligenciadas.

Para o pensador francês, as emoções eram invariavelmente vistas como algo


desagregador da ordem social, e não poderia ser diferente; afinal ele era um homem
24

do seu tempo e como tal trazia as marcas do pensamento positivista: ordem e


progresso. Contudo ele hesita com relação aos legados da revolução.

Isso fica transparente quando no prefácio de O antigo regime e a revolução


ele descreve sua percepção dos revolucionários franceses e da revolução, após
1789:

Sempre achei que foram muito menos bem-sucedidos neste


empreendimento de que se pensava lá fora e de que eles próprios
pensavam no início. Eu tinha a convicção de que, sem sabê-lo, retiveram do
antigo regime a melhor parte dos sentimentos, dos hábitos, e das próprias
ideias que os levaram a conduzir a Revolução que o destruiu e que, sem
querer, serviram-se de seus destroços para construir o edifício da nova
sociedade. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 43)

De um lado ele enfatiza seu descrédito com os desdobramentos da revolução,


do outro, ele expressa que somente a melhor parte dos sentimentos, hábitos e ideias
permaneceram. Seu pensamento dicotômico revela certa ingenuidade, considerando
que ele próprio vivera durante a revolução de 1830, quando houve a troca da
monarquia absolutista da casa de Bourbon pela constitucionalista da casa de
Orléans. É claro que não foi tão sangrenta, tampouco pacífica, a ponto de ter abolido
atos bárbaros. Por seu turno, ele é fonte de inspiração para realmente se dedicar a
estudar a Revolução Francesa de outra maneira.

Em seu empenho investigativo, ele não se restringiu a ler apenas obras


ilustres; voltou-se a vasculhar obras paralelas, as quais, “por serem redigidas com
pouca arte, talvez melhor ainda revelam os verdadeiros instintos da época”
(TOCQUEVILLE, 1989, p. 43). É desta maneira que, diferentemente dos
historiadores de sua época, dedicou-se a pesquisar a França que não existia mais e
não a de seu tempo. Ele queria ir além da superficialidade dos fatos e das histórias
de seus personagens principais presentes nas obras dos grandes escritores. Ele se
interessou tanto pelo lado social quanto pelo singular: os sentimentos, as opiniões e
ideias dos cidadãos comuns. Convém retornar ao autor, pois em seu método
historiográfico há um câmbio metodológico que inclui as vozes e vidas desses
franceses:

Cremos conhecer muito bem a sociedade francesa daquela época porque


vemos com clareza o que brilhava na superfície, porque possuímos em
todos seus pormenores a história dos seus personagens mais célebres que
nela viveram e porque críticas elogiosas ou eloquentes melhor ainda nos
familiarizaram com as obras dos grandes escritores que a ilustraram. Mas
quanto à maneira como se faziam os negócios, à prática real das
instituições, à posição exata das classes uma perante a outra, à condição e
25

os sentimentos daqueles que ainda não se faziam nem ouvir nem ver, afinal
quanto ao fundo das opiniões e dos costumes, só tínhamos ideias confusas
e muitas vezes errôneas. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 43)

Buscar o fundo das opiniões e dos costumes, para nós, é impossível sem
considerar a participação dos atores políticos e suas subjetividades. Notamos nessa
passagem do pensamento tocquevilleano a indicação de que para compreendermos
determinado momento social e político são necessárias, talvez indispensáveis, as
contribuições psicológicas. Enquanto observamos indícios em Tocqueville, Gabriel
Tarde e, posteriormente, Gustave Le Bon, é em Theodor Adorno, em pelo século
XX, quando as ciências psicológicas já estavam estabelecidas, que o papel da
psicologia para a teoria da sociedade é enfatizado. Ele vai além, revelando o quanto
a psicanálise é relevante ao entendimento da sociedade e, consequentemente, da
política; ele afirma que diante do fenômeno do fascismo, julgou-se necessário
“completar a teoria da sociedade com a psicologia, sobretudo a psicologia social
analiticamente orientada” (ADORNO, 2015a, p. 71-72).

Esse salto temporal evidencia que os indícios se tornaram realidade, mas,


sobretudo, que os momentos de turbulência social e política são o cenário perfeito
para observarmos os vestígios da irracionalidade humana. Enquanto para os autores
franceses a Revolução era o objeto se suas reflexões, para Adorno e alguns de seus
contemporâneos o fascismo era o foco. Em ambas épocas, observamos que para os
autores, as contribuições da psicologia têm um lugar importante nas reflexões sobre
os eventos sociais e políticos.

Essa tarefa de aproximação de distintos campos do saber não era nada fácil
na época de Tocqueville, pois a psicologia, além de estar em seus primórdios,
buscava adaptar-se aos métodos das ciências naturais com o intuito de ser
reconhecida como ciência. Contudo, suas observações são bastante pertinentes
quanto à existência de algo em nossa natureza que parece imutável ou tende à
repetição. Ele é contundente a esse respeito, escrevendo:

Tenciono, caso não me faltem as forças e o tempo, seguir através das


vicissitudes desta longa revolução e destes mesmos franceses com os
quais acabo de conviver tão intimamente sob o antigo regime e que este
antigo regime formou; vê-los modificando-se e transformando-se segundo
os acontecimentos, sem, entretanto, mudar de natureza, e ressurgindo sem
cessar à nossa frente com uma fisionomia um pouco diferente, mas sempre
reconhecível. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 45)
26

Por que os franceses, após anos de lutas sangrentas, não mudariam sua
natureza? Esta é a questão posta em suas palavras. Ao perceber esta
incongruência, ele faz uma série de questionamentos sobre qual teria sido o
verdadeiro legado da Revolução Francesa: “Qual foi o verdadeiro objeto da
Revolução? Qual é, afinal de contas, seu caráter próprio? Quais as razões exatas
pelas quais a fizeram? O que fez ela?” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67).

Ao procurar por respostas a suas indagações, o autor desacredita a ideia de


que a Revolução estivesse voltada fundamentalmente a “destruir o império das
crenças religiosas” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67). E chega à conclusão de que:

[...] o único legado desta revolução foi abolir as instituições políticas que
durante séculos dominaram totalmente a maioria dos povos europeus e que
recebem geralmente o rótulo de instituições feudais e substituí-las por uma
ordem social e política mais uniforme e mais simples tendo por base a
igualdade de condições. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67)

Talvez o seu senso crítico e emocional, que fica evidente em Lembranças de


1848, tenha sido vital para observar a revolução com distintos olhos. Essa mescla
indubitavelmente deve estar relacionada às suas próprias experiências de vida. Ele
era filho da revolução. Ele nasceu doze anos após seus pais quase terem sido
guilhotinados, uma vez que seu pai, Hervé de Tocqueville, era um aristocrata, cuja
simpatia pelos ideais revolucionários foi diminuindo com o aumento da brutalidade
da Revolução.

Além disso, Tocqueville tinha vivido o bastante para presenciar os eventos


subsequentes que culminaram com a eclosão de mais duas revoluções em solo
francês: a de 1830 e a de 1848. Não esqueçamos que ele fazia parte do
establishment, tendo se afastado da vida pública após o golpe de Estado perpetuado
por Luís Bonaparte que reinstaurou o império e se fez Imperador Napoleão III.

Suas perguntas são mais do que pertinentes. Como a Revolução Francesa,


que conclamava por igualdade, liberdade e fraternidade, retorna a outro regime
imperialista e autocrático? Como parece haver algo que sempre retorna
transfigurado? Qual foi a obra peculiar da Revolução Francesa? Esta última é a que
dá título a um dos capítulos de O antigo regime e a revolução. Deixemos que ele
mesmo responda.

Por mais radical que tenha sido a Revolução, inovou menos de que se
supõe geralmente [...]. A verdade é que destruiu inteiramente ou está
destruindo (pois ela ainda continua) tudo que, na antiga sociedade, derivava
27

das instituições aristocráticas e feudais, tudo que a elas se ligava de uma ou


outra maneira, tudo que delas trazia uma marca por menor que fosse. Do
antigo mundo só conservou o que sempre foi alheio a estas instituições ou
podia existir sem elas. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 67)

É perceptível sua decepção com o desenrolar dos eventos, mas, por sua vez,
isso não o impede de observá-los com clareza. Suas reflexões deixam transparecer
que há sempre algo que resta e se conserva. Ora, aquilo que se conserva para além
das instituições são os atores políticos que as criaram. Entretanto, não os
consideramos como alheios às instituições, pois acreditamos que o que resta são as
marcas subjetivas das gerações precedentes. Esse detalhe não invalida sua
constante tentativa de relacionar os eventos políticos com seus atores, bem como os
aspectos objetivos de suas existências.

Evidenciamos, portanto, a persistência de relações opressivas com novas


vestimentas e a presença de aspectos regressivos e irracionais, num aparente
retorno ao antigo, como se as revoluções e seus subsequentes desdobramentos se
repetissem ad eternum. Ele observou que, apesar dos franceses terem sido
modificados e transformados pelos eventos, eles não mudaram sua natureza; eles
apenas substituíram as instituições feudais por uma nova ordem social e política. É
nesse sentido que a Revolução pouco inovou; ela apenas destruiu tudo aquilo ligado
às instituições aristocráticas e feudais, conservando o que era alheio às instituições
ou que podia existir sem elas.

Ainda que tenhamos aventado que o que se conserva sejam seus atores
políticos e suas marcas subjetivas, talvez o mais correto seja afirmar que eles não
sejam alheios às instituições como afirmara o pensador francês, pois entendemos
que o homem é produtor dessas mesmas instituições e simultaneamente produto
delas.

Os indivíduos continuam a padecer diante das relações que eles estabelecem


entre si e também diante da constante demanda de controle e cerceamento
provenientes das instituições por eles criadas. Dessa maneira, os franceses ao se
lançarem na difícil e sangrenta tarefa de distanciamento do sofrimento que lhes era
imposto por uma sociedade aristocrática e feudal, na qual a irracionalidade das
relações era cada vez mais vigente, começaram a considerar a sociedade e seus
governantes como seus inimigos, sem perceberem que não há como desconectar-se
de suas instituições.
28

Fica evidente que, apesar das instituições feudais terem sido abolidas, os
seres humanos dificilmente conseguem construir uma sociedade em que a felicidade
seja plena; ainda que o mundo possa ser modificado, os indivíduos continuam a
sofrer, pois os laços sociais estabelecidos são a principal fonte de sofrimento e mal-
estar humanos, como irá mostrar Freud.

Parece-nos, a esse respeito, que Freud atribui ao social a relevância que este
merece. Após anos de contribuições para a psicologia individual, o pensador
austríaco finalmente a relaciona com a psicologia social e política. Não é por acaso
que o primeiro parágrafo de Psicologia das massas e análise do eu assim inicie:

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas,


que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua
agudeza se a analisamos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica do
ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto,
auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde
o início, psicologia social, num sentido mais ampliado, mas inteiramente
justificado. (FREUD, 1921/2011, p. 14).

A realidade era e continua sendo demasiadamente forte e favorece o


enfraquecimento da consciência e a alienação. As condições objetivas de vida
conduziram os revolucionários a atos irracionais e à perpetuação dos sistemas de
governos travestidos de novos; numa eterna busca por aperfeiçoamento de si e da
sociedade, os homens acabaram por estabelecer instituições semelhantes para o
espanto de Tocqueville. Observamos isso em suas reflexões. Ele afirma:

Tive a oportunidade de estudar as instituições políticas da Idade Média na


França, Inglaterra e Alemanha, e à medida que prosseguia este trabalho
fiquei espantado pela prodigiosa semelhança de todas estas leis e tentei
entender como povos tão diferentes e com poucos contatos puderam
chegar a tamanha identidade. É verdade que os detalhes variam sem
cessar e de uma maneira quase infinita, mas o fundo é o mesmo em toda
parte. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 63)

Ele prossegue afirmando que nessas três sociedades “vemos a mesma


hierarquia entre as diferentes classes; os nobres ocupam uma posição idêntica; têm
os mesmos privilégios, a mesma natureza: não são homens diferentes, são, por toda
parte, os mesmos homens” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 63). Assim sendo, não há
como acreditar que seja possível negligenciar a participação dos homens e sua
psique ao estudar a política. Não podemos negar que houve certas mudanças na
29

sociedade da época, porém, em sua essência, as instituições que surgiram após a


revolução pouco diferem das anteriores.

Recorreremos novamente ao pensamento de Adorno, pois consideramos que


a Escola de Frankfurt teve papel decisivo na aproximação da obra freudiana aos
estudos psicopolíticos, como mostraremos nos capítulos seguintes. É nesse sentido
que entremeamos nos autores franceses o pensamento de Freud e autores
frankfurtianos. Essa conexão com o pensamento dos teóricos franceses mostra que
a barbárie se atualiza: de foices a baionetas; de cadafalsos à fuzilamentos. A
liberdade, igualdade, fraternidade não foi atingida. Diante da constatação de que,
apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, social e político, continuamos a
assistir e permitir que o mal-estar persista.

Assim, Adorno fará uma crítica contundente aos caminhos tomados pela
psicologia norte-americana que enfatizava o fortalecimento do ego e que levou à
falsa crença de que os homens eram senhores de si e que seus destinos dependiam
única e exclusivamente de seus esforços, como se o mundo interior fosse totalmente
independente do exterior, como se a subjetividade não estivesse mediada
socialmente. O caráter adaptativo da psicologia estadunidense não considerava que
a realidade social é demasiadamente forte e favorece o enfraquecimento da
consciência.

As condições objetivas da vida aprisionam os homens e produzem uma cisão


entre seus atos sociais e sua consciência, visto que a realidade cotidiana é marcada
pela não reflexão, propiciando o surgimento de uma falsa consciência, levando-os a
ter a impressão de que suas verdades são próprias e internas; no entanto, isto é
apenas uma percepção superficial, pois elas não lhes pertencem.

Na formulação freudiana do aparelho psíquico, a instância egóica, como


mediadora entre as exigências libidinais do id, os imperativos do superego e o
mundo externo, revela-se, de saída, demasiadamente débil, pois a maior parte de
sua energia é utilizada à adaptação aos ditames sociais. Nesse processo adaptativo
evidenciamos tanto mecanismos psíquicos quanto sociais atuando. Adorno recorre
ao conceito de racionalização para demonstrar efetivamente a relação entre
sociologia e psicologia. O conceito de racionalização, mecanismo de defesa
introduzido por Ernest Jones em 1908, abrange todas as falas que,
independentemente de seu conteúdo de verdade, satisfazem funções no domínio
30

psíquico do falante, na maioria das vezes de defesa contra tendências


inconscientes. A argumentação utilizada na fala “pode ser verdadeira e falsa, ao ser
medida pela realidade ou pelo seu estatuto psicodinâmico” (ADORNO, 2015a, p.
99). Assim,

[...] esse duplo caráter é essencial às racionalizações, pois o inconsciente


segue a linha da menor resistência, apoiando-se, portanto, naquilo que a
realidade lhe oferece, e, além disso, opera tão mais desimpedido quanto
mais consistentes são os momentos reais em que se apoia. Na
racionalização, que é tanto ratio quanto manifestação do irracional, o sujeito
psicológico deixa de ser meramente psicológico. (ADORNO, 2015a, p. 99)

A racionalização, portanto, é também sociológica, pois a fala apoia-se na


realidade objetiva estabelecida e reforçada pelas normas sociais, que ao serem
internalizadas compõem a instância psíquica conhecida como superego, que o
psicanalista húngaro Sándor Ferenczi considerava como racionalizações, como
“normas coletivas do comportamento individual que a moral psicologicamente
irrefletida denomina de consciência” (ADORNO, 2015a, p. 100); assim sendo, o
indivíduo “confundiria as oportunidades contingentes de sua economia psíquica com
o estado objetivo. Sua integração seria a falsa reconciliação com o mundo
irreconciliado e provavelmente conduziria à ‘identificação com o agressor’, mera
máscara da submissão” (p. 101), propiciando a falsa consciência.

A psicodinâmica tende a refletir a própria irracionalidade da sociedade, que


paulatinamente leva o indivíduo a regredir a uma forma que seja fundamental à sua
sobrevivência. O indivíduo torna-se cego aos ditames da sociedade e se vê incluído
em uma massa indistinta de pessoas que possuem as mesmas necessidades,
porquanto são externas a eles próprios.

Talvez seja por isso que os teóricos frankfurtianos tenham enfatizado a


importância da psicanálise nos estudos da sociedade, pois ela é capaz de desvelar
os mecanismos inconscientes que subjazem nessa ilusão de um sujeito sem
mediação social que se assemelha às de caráter religioso.

Não por acaso, Tocqueville afirma que a Revolução Francesa foi uma
revolução política que se processou à maneira das revoluções religiosas e tomou
alguns de seus aspectos.

A Revolução Francesa agiu em relação a este mundo exatamente como as


revoluções religiosas operam em relação ao outro. Tem considerado o
cidadão de uma maneira abstrata, fora de qualquer sociedade particular, da
mesma maneira que as religiões consideram o homem em geral,
31

independentemente do país e da época. Não pesquisou tão-somente qual


era o direito particular do cidadão francês, mas também quais os deveres e
direitos gerais dos homens em matéria política. [...] Foi assim que pegou
este ar de revolução religiosa que tanto apavorou os contemporâneos, ou
melhor, tornou-se ela própria uma espécie de nova religião, uma religião
imperfeita, é verdade, sem Deus, sem culto, sem Além, mas que, todavia,
como o islamismo, inundou toda a terra com seus soldados, apóstolos e
mártires. (TOCQUEVILLE, 1989, p. 60)

Se, por um lado, o autor observou certa semelhança entre política e religião,
por outro, Freud nos mostra que tanto uma quanto outra estão relacionadas aos
laços que os indivíduos estabelecem entre si e entre eles e uma divindade. Há em
ambas um caráter ilusório, cuja explicação somente pode ser apreendida se formos
além da objetividade dos fatos econômicos, sociais, políticos e religiosos. Devemos
buscá-la também nos sujeitos sociais e no modo como estão constituídos
psiquicamente, pois a objetividade da vida não pode ser pensada como sendo
independente das questões subjetivas dos atores que a produzem, cuja existência
tem como objetivo principal a felicidade, a qual é sempre ilusória e efêmera.

Entretanto, a tão sonhada felicidade diante dos infortúnios da realidade nada


mais é do que uma busca incessante pelo mal menor. A busca pela felicidade
transformou-se em mitigação do desprazer. A fuga do desprazer passou a ser aquilo
que almejamos e é percebida como felicidade. Como Freud (1930/2010) salienta,
coube ao indivíduo se resignar e moderar suas reivindicações de felicidade. Assim,
ele se percebe “feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao
sofrimento” (p. 85), deixando a obtenção do prazer em segundo plano. Esse foi o
legado da Revolução Francesa e das transformações sociais e políticas
subsequentes. É nesse sentido que política e religião se assemelham. Ambas visam
aplacar nosso desamparo perante as mazelas da sociedade.

Essa analogia pode ser mais bem compreendida se levarmos em


consideração a psicologia das massas. Tanto os revolucionários quanto os religiosos
se identificam entre si a partir da identificação com um ideal de ego em comum. Os
laços libidinais estabelecidos são semelhantes, o que propicia o fortalecimento das
relações com aqueles que compartilham o ideal e a violência direcionada aos que
estão apartados do grupo. É, nesse sentido, que a analogia feita por Tocqueville
antecipa as reflexões de Freud que afirma:

[...] uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser
dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo toda
religião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam, e tende à
32

crueldade e à intolerância para com os não seguidores. Por mais difícil que
seja pessoalmente, não se deve recriminar os fiéis com muita severidade
por isso; para os infiéis e indiferentes as coisas são, psicologicamente, bem
mais fáceis neste ponto. Se agora essa intolerância não se mostra tão
violenta e cruel como no passado, não será lícito que houve uma
suavização dos costumes humanos. A causa deve ser buscada, isto sim, no
inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e das ligações
libidinais que deles dependem. Se outra ligação de massa toma o lugar da
religiosa, como a socialista parece estar fazendo, ocorre a mesma
intolerância com os de fora que havia na época das lutas religiosas, e se as
diferenças de concepções científicas viessem a ter, algum dia, importância
igual para as massas, o mesmo resultado se repetiria também com essa
motivação. (FREUD,1921/2011, p. 53-54)

Evidentemente o horror provocado pela violência não é uma característica


que se pode limitar à Revolução Francesa e ao islamismo, como Tocqueville
enfatiza em sua analogia; ele aflora sempre quando ocorre um fenômeno de massa.
Isso ocorreu nas cruzadas cristãs, no fascismo e também no nazismo. A barbárie
emerge invariavelmente quando homens e mulheres constituem uma massa
psicológica11, porém não podemos desconsiderar o cenário político e social que
propicia o seu surgimento; a massa é um fenômeno psicológico decorrente de
questões sociais e políticas que favorecem sua eclosão.

Tocqueville observou e descreveu com exímia propriedade os meandros e


desdobramentos da revolução enfatizando o papel das emoções e sentimentos,
porém ele não foi o único. Gabriel Tarde e Gustave Le Bon também aportaram
contribuições relevantes que abordaremos a seguir.

1.2. Gabriel Tarde e as leis da imitação

As sucessivas revoluções e contrarrevoluções que ocorreram no século XIX


em solo francês foram determinantes para o florescimento das ciências sociais e
políticas. Autores como Ernest Renan, Hippolyte Taine, Émile Boutmy, Albert Sorel,
Gabriel Tarde e Émile Durkheim fizeram parte da intelectualidade da época e
tiveram um papel preponderante na consolidação das distintas especialidades que
surgiram. Entretanto, o embate epistemológico estabelecido entre Tarde e Durkheim
teve um papel de destaque na seara acadêmica. As distintas concepções teóricas e
metodológicas desses pensadores culminaram em um debate organizado pela École
des Hautes Études Sociales em 1903.

11
Termo cunhado Gustave Le Bon, como veremos adiante.
33

De um lado, Tarde, um professor reconhecido, prestigiado e com vários


artigos e livros publicados na França e em outros países, foi descrito como um
ancião e, do outro, Durkheim, um aspirante professor da província de Bordeaux,
cujas ideias foram inicialmente recebidas com cautela. No entanto, como é sabido,
este obteve reconhecimento posterior e se estabeleceu como o fundador da
sociologia científica moderna, enquanto aquele foi considerado como mero precursor
da disciplina (VARGAS, 2004).

O que estava em disputa era a sociologia como disciplina especializada.


Enquanto Tarde advoga que os fatos sociais não poderiam ser entendidos sem levar
em consideração os indivíduos que os produziram, Durkheim os considerava como
objetos totais. Tarde (1898) é claro quanto à sua posição ao afirmar que:
“descartado o indivíduo, o social não é nada, e que não há nada, absolutamente
nada na sociedade que não exista, em estado de fragmento e de repetição contínua,
nos indivíduos vivos, ou que não tenha existido nos mortos que os precederam” (p.
75)12.

Desse modo, ele faz uma crítica contundente a seu oponente por propor que
a sociologia deveria se basear única e exclusivamente em pressupostos objetivos e
estatísticos, desconsiderando aquilo que ele concebe como a alma dos fatos sociais:
o indivíduo e suas relações como os demais. É, nesse sentido, que ele é acusado de
tentar psicologizar a sociologia. Assim, Durkheim (1895) rebate que “todas as vezes
que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico,
podemos estar seguros de que a explicação é falsa” (p. 128)13.

Tarde não visava psicologizá-la; seu intuito era que a sociologia não
abdicasse das contribuições psicológicas, pois a sociologia não perde sua
cientificidade e se engrandece. Assim, ele enfatiza que as palavras de um orador,
manifestação da linguagem, e o ajoelhar-se de um devoto, manifestação da religião,
são expressões humanas que não podem ser compreendidas unicamente a partir da
sociologia, pois “cada uma dessas ações não depende apenas da natureza do fato
social, mas também da constituição mental e vital do agente e do ambiente físico,
tais atos são espécies híbridas, fatos sócio-psíquicos ou sócio-físicos, cuja

12
[…] l'individuel écarté, le social n'est rien, et qu'il n'y a rien, absolument rien, dans la société, qui n'existe, à
l'état de morcellement et de répétition continuelle, dans les individus vivants, ou qui n'ait existé dans les morts
dont ceux-ci procèdent.
13
[…] toutes les fois qu’un phénomène social est directement explique par um phénomène psychique, on peut
être assuré que l’explication est fausse.
34

importância não mais macula a pureza científica da nova sociologia” (TARDE, 1895,
p. 70)14.

A ênfase dada por Tarde ao indivíduo e seus processos psíquicos


subjacentes valida seu ponto de vista, a saber: o social é constituído por indivíduos
que por meio da comunicação, verbal ou não, interagem entre si. Esse ponto é
capital em sua teorização, pois ele advoga que a imitação é o fenômeno basal da
sociedade, a qual se inicia no interior familiar e se expande posteriormente à
linguagem, à religião, às artes, à política e à moral. Em suma: o processo de
imitação é fundamental para o entendimento da sociedade, sem o qual a sociologia
torna-se uma disciplina estéril.

A primazia absoluta do social não permite o surgimento do novo. Se nos


indivíduos “não houvesse nada mais do que social, e especialmente nacional, pode-
se afirmar que as sociedades, que as nações, permaneceriam eternamente
imutáveis. Mas, apesar do tamanho de nossa dívida para com o meio social e
nacional, é claro que não lhes devemos tudo” (TARDE, 2003, p. 79). Os indivíduos
assim concebidos seriam como mônadas no sentido leibniziano da palavra. Isto é, a
sociedade seria um agregado de indivíduos que viveriam de forma harmoniosa em
virtude de uma predeterminação da divindade, lê-se aqui predeterminação da
sociedade.

No sentido de contradizer essa hipótese, Tarde rompe as mônadas de Leibniz


e propõe que elas sejam abertas: uma monadologia renovada, na qual os indivíduos
possam interpenetrar-se, em vez de serem exteriores uns aos outros. Assim, suas
singularidades podem emergir e interagir. Somente a partir dessa concepção é
possível sua transformação e, por conseguinte, a transformação social.

A sociologia, quando se volta exclusivamente ao fato social em busca de um


entendimento puramente científico, como defende Durkheim, abandona uma parte
importantíssima do fato social que é o indivíduo e sua espontaneidade. Existir é
diferir, segundo Tarde. Nesse sentido, ele enfatiza que toda ciência tem por “objeto
essencial as repetições, mas, também, as variações, e caracteriza-se pela natureza

14
[…] chacun de ces actes dépend non seulement de la nature du fait social, mais aussi de la constitution
mentale et vitale de l'agent et de l'environnement physique, ces actes sont des espèces hybrides, socio-
psychiques ou physico-physiques dont il importe de ne pas ternir plus longtemps la pureté scientifique de la
nouvelle sociologie.
35

destas como daquelas” (TARDE, 1895, p. 60)15, sendo que as variações viáveis e
fecundas são o ponto de partida de novas séries de repetições. Tais variações
ocorrem nos indivíduos e são imitadas. Portanto, não há como excluí-los, se
queremos apreender as transformações sociais. Assim sendo, o autor propõe que o
sociólogo deve conceder a palavra ao psicólogo (TARDE, 1890), uma vez que, para
ele, a sociedade é imitação.

O aprofundamento de suas reflexões mostra o porquê da inserção da


psicologia nos estudos sociológicos. O autor afirma: “Sabemos que a criação e a
imitação são o ato social básico. [...]. O que é criado, o que é imitado, é sempre uma
ideia ou uma vontade, um julgamento ou um propósito, que expressa certa dose de
crença e desejo” (TARDE, 1890, p. 163)16; crença e desejo são qualidades que
emanam inicialmente de forma singular, que, pouco a pouco, se disseminam em
outros seres por imitação e se tornam qualidades sociais.

Essa tendência à inovação e à consequente imitação, que se alastra de forma


contagiosa nos indivíduos, pode ser aplicada em diversos âmbitos da vida social. O
campo político, segundo o pensador francês, também está submetido a esta lógica
da imitação. Isso fica evidente quando ele aborda questões sociais de difícil solução,
como, por exemplo, os eventos sociais e políticos que os franceses viveram em sua
época. Como resolver essas questões que eclodem e se intensificam e que
aparentemente são irresolutas, ele se demanda e apresenta a resposta: por
imitação. Quando um “dos programas políticos que dividem uma nação se difunde,
através da propaganda ou do terror, até que ele tenha ganho quase todas as
mentes, uma a uma” (TARDE, 1890, p. 189)17. Ele prossegue afirmando que o
mesmo ocorre nas disputas religiosas e filosóficas. “Finalmente, se a unanimidade,
nunca absoluta, chega a se materializar em certa medida, a irresolução, seja
individual, seja social, está quase completa. Este é o fim inevitável” (p. 189)18.

Seguramente, as reflexões feitas por Tarde em Les lois de l’imitation


contribuíram sobremaneira para que Gustave Le Bon pudesse analisar o fenômeno

15
[...] objet essentiel des répétitions mais aussi des variations, et elle se caractérise par la nature de celles-ci
comme par la nature de celles-là.
16
L'invention et l'imitation sont l'acte social élémentaire, nous le savons. […].Ce qui est inventé ou imité, ce qui
est imité, c'est toujours une idée ou un vouloir, un jugement ou un dessein, où s'exprime une certaine dose de
croyance et de désir.
17
[…] des programmes politiques qui se partagent une nation, se répand par voie de propagande ou de terreur
jusqu'à ce qu'il ait gagné un à un presque tous les esprits.
18
Finalement, si l'unanimité, jamais parfaite, parvient à se réaliser dans une certaine mesure, toute irrésolution,
soit individuelle, soit sociale, se trouve à peu près terminée. C'est le terme inévitable.
36

de massa, que foi retomado por Freud, e que introduzimos gradualmente, desde
Toqueville, e será abordado no terceiro capítulo.

1.3. Gustave Le Bon: a irracionalidade nos movimentos de massa

Gustave Le Bon, seguindo o caminho iniciado por seus precursores, também


preconizava a importância do saber psicológico para a compreensão dos eventos
sociais. Esse pensador se interessou sobretudo pelo fenômeno de massa e em
1895, cinco anos após a primeira edição do livro de Tarde, publicou A psicologia das
multidões. Seu livro teve excelente receptividade e foi lançado em diversos países,
inclusive no Brasil.

A importância que o autor atribui à psicologia não se limita apenas ao título de


sua obra, como fica evidente no prefácio da edição inglesa, ao afirmar que os
indivíduos:

[...] são regidos por ideias, sentimentos e costumes, os quais são nossa
própria essência. Instituições e leis são manifestações externas de nosso
caráter, expressão de suas necessidades. Sendo sua manifestação,
instituições e leis não podem mudar este caráter. O estudo dos fenômenos
sociais não pode ser dissociado do dos povos entre os quais eles vieram a
existir. (LE BON, 2001, p. 5)19

Lembremo-nos que a França tinha sido palco de levantes populares que


fizeram aflorar a barbárie. Decapitações eram recorrentes na Revolução Francesa; o
sangue de seus compatriotas jorrou sucessivamente nos anos de 1815, 1830, 1848,
1851, 1871 e 1877; era uma época de constantes turbulências sociais e políticas, as
quais não ficaram despercebidas. Consequentemente, “Gustave Le Bon foi
naturalmente impressionado pelo fenômeno das multidões - mais particularmente
pelos movimentos populares e pelo terrorismo - que inquietava seus
contemporâneos” (MOSCOVICI, 1985, p. 74)20.

A publicação em 1895 desse célebre livro de Le Bon, cuja tiragem o


transformou em “um dos maiores êxitos científicos de todos os tempos”
(MOSCOVICI, 1985, p. 78), não significa que este fenômeno tenha sido uma

19
[…] are ruled by ideas, sentiments, and customs - matters which are of the essence of ourselves. Institutions
and laws are the outward manifestation of our character, the expression of its needs. Being its outcome,
institutions and laws cannot change this character. The study of social phenomena cannot be separated from that
of the peoples among whom they have come into existence.
20
[…] Gustave Le Bon fue naturalmente impresionado por el fenómeno de las multitudes – más particularmente
por los fenómenos populares y del terrorismo – que inquietaba a sus contemporáneos.
37

exclusividade dos franceses; ele se disseminou também por solo europeu


estremecendo Estados e transtornando as sociedades da época. Convém salientar
que foi justamente sua disseminação e o transtorno social causado que aguçaram
seu olhar, pois, diferentemente do que se tende a pensar, este fenômeno não era
algo inédito na história da humanidade; as multidões já tinham aflorado
anteriormente em Roma, em Alexandria, no Cartago e durante a Idade Média com
as cruzadas. Como o próprio Le Bon enfatiza ao afirmar que elas “sempre tiveram
na história um papel importante, embora nunca tão considerável quanto hoje. A ação
inconsciente das multidões, substituindo a atividade consciente dos indivíduos,
representa uma das características da época atual” (LE BON, 2008, p. 15).

As multidões surgidas na época de Le Bon eram distintas das anteriores


aparições; as classes sociais, cujas vozes eram inaudíveis, até então, se imiscuíram
na vida política para desgosto e desespero das elites que as dominavam. Pouco a
pouco elas se fizeram ouvir e se fortaleceram. Diante das condições desumanas a
que eram submetidas, foram às ruas e reivindicaram, em seu proveito, “limitação das
horas de trabalho, expropriação das minas, das estradas de ferro, das fábricas e do
solo; distribuição igual dos produtos, supressão das classes superiores” (LE BON,
2008, p. 21). Apesar de essas reivindicações serem justas, o que intrigou o
pensador francês foi o fato das multidões terem se mostrado pouco aptas à reflexão,
voltando-se a ações consideradas como irracionais, o que mostra seu
conservadorismo. É nesse sentido que ele observa que os “dogmas que vemos
nascer rapidamente adquirirão o poder dos velhos dogmas, isto é, a força tirânica e
soberana que descarta qualquer discussão. O direito divino das multidões substitui o
direito divino dos reis” (p. 21-22). Ou seja, a irracionalidade dos governos autoritários
foi substituída pela irracionalidade das multidões.

Assim, ele dedicou-se a estudar a psicologia das multidões; somente a partir


de seu conhecimento seria possível lançar “uma viva luz sobre numerosos
fenômenos históricos e econômicos totalmente ininteligíveis sem ela” (LE BON,
2008, p. 25). A psicologia, segundo o autor, “mostra a existência de uma ‘alma das
massas’, formada por impulsos elementares, organizada por crenças fortes, pouco
sensíveis à experiência e à razão” (MOSCOVICI, 1985, p. 76) 21; ela “mostra até que

21
[…] enseña la existencia de un “alma de las multitudes”, formada por impulsos elementales, organizada por
creencias fuertes, poco sensible a la experiência y a la razón.
38

ponto as leis e as instituições exercem pouca influência sobre sua natureza


impulsiva e quanto são incapazes de ter quaisquer opiniões além das que lhes são
sugeridas” (LE BON, 2008, p. 24). Isto é, “os homens nunca se comportam seguindo
as prescrições da razão pura” (LE BON, 2008, p.25).

O autor não pretendia esgotar o assunto em seu texto. Seu intuito era de
apresentar algumas considerações importantes acerca de suas observações. O
estudo da alma das multidões por ele realizado demanda posteriores reflexões. Ele
abriu “um caminho num terreno ainda muito inexplorado” (LE BON, 2008, p. 26). Sua
descrição das características gerais das multidões forneceu subsídios para Sigmund
Freud seguir seu caminho e aprofundar o assunto com base na deep psychology, o
que nos permite estabelecer pontos de interseção entre a psicanálise e o
pensamento leboniano.

A multidão pode ser definida como um aglomerado de indivíduos


independentemente de seus credos, classes sociais, gêneros, profissões,
nacionalidades, graus de instrução ou quaisquer outras classificações que possam
ter. Este fenômeno, como afirmamos anteriormente, sempre existiu e não era o foco
principal dos estudos de Le Bon; seu objetivo era ir além e descrevê-las do ponto de
vista psicológico, o qual lhe confere um significado distinto, uma vez os indivíduos
que as integram tendem a um rebaixamento de suas consciências e começam a agir
como uma alma coletivamente orientada; agem como um único ser e ficam
submetidos à lei da unidade mental das multidões. Essa unidade mental prescinde
da necessidade de estar lado a lado e até mesmo de um número significativo de
pessoas.

Milhares de indivíduos separados podem em um dado momento, sob a


influência de certas emoções violentas, um grande acontecimento nacional,
por exemplo, adquirir as características de uma multidão psicológica. [...].
Em certas horas da história, meia dúzia de homens podem constituir uma
multidão psicológica, ao passo que centenas de indivíduos reunidos
acidentalmente podem não constituí-la. Por outro lado, um povo inteiro, sem
que haja aglomeração visível, às vezes torna-se multidão sob a ação desta
ou daquela influência. (LE BON, 2008, p. 30)

Basta observarmos os recentes acontecimentos políticos nacionais para


podermos comprovar a asserção de suas palavras, seja nas ruas seja nas mídias
sociais. As emoções violentas e descabidas têm aflorado diuturnamente e são
independentes de sua orientação ideológica. Tanto à direita quanto à esquerda o
ódio, a raiva, as agressões e xingamentos têm se manifestado. Manifestações que
39

dificilmente ocorreriam caso não houvesse essa unidade psicológica. Assim, é “fácil
constatar em que medida o indivíduo na multidão difere do indivíduo isolado” (LE
BON, 2008, p. 33), pois raramente ele se manifestaria caso não estivesse sob a
influência de um objetivo em comum.

Com base nessa constatação, o autor salienta o papel relevante dos aspectos
inconscientes que regem os indivíduos, o que permite estabelecer relações com a
teoria freudiana. Ele deixa isso evidente ao afirmar que por “detrás das causas
confessas de nossos atos encontram-se causas secretas que ignoramos. A maioria
de nossas ações corriqueiras é efeito de móveis ocultos que nos escapam” (LE
BON, 2008, p. 33). Ele prossegue afirmando que “o indivíduo na multidão adquire,
exclusivamente por causa do número, um sentimento de poder invencível que lhe
permite ceder a instintos que, sozinho, teria forçosamente refreado” (p. 34).

Podemos constatar, mediante suas palavras, que alguns instintos são


refreados durante o processo de individualização. Porém, pelo “simples fato de fazer
parte de uma multidão, o homem desce, portanto, vários graus na escala da
civilização. Isolado era talvez um indivíduo culto, na multidão é um instintivo,
consequentemente um bárbaro” (LE BON, 2008, p. 36-37). Ora, observamos que o
homem em seus primórdios tende à agressividade que emerge ocasionalmente. Le
Bon deixa transparecer seu próprio medo das multidões; ele, como elite, coloca-se
como defensor da ordem social, disso decorre, o caráter conservador de sua obra.

Moscovici (1985) recupera as reflexões do historiador Walter Odajnyk, o qual


afirma que Sigmund Freud e Carl Jung estavam em consonância a respeito das
considerações aportadas por Le Bon. Ambos os autores concordam que o indivíduo
na massa se rebaixa a um nível intelectual mais primitivo e emocional. Portanto,
parece-nos conveniente retomar algumas contribuições da psicanálise freudiana em
relação à agressividade.

Freud havia se deparado com a questão da agressividade em sua clínica.


Na conferência XXXII – Angústia e instintos - ele próprio se demanda: “Por que
nós mesmos necessitamos de tanto tempo para nos decidirmos a reconhecer um
instinto de agressão, por que hesitamos em incorporar à teoria fatos que saltam
aos olhos e são conhecidos de todos?” (FREUD, 1933/2010, p. 252). Talvez esse
retardo em admitir o papel da agressividade seja devido ao fato de que ela tenha
sido aventada por Alfred Adler, um de seus desafetos, em 1908. Entretanto, diante
40

das evidências da pulsão de morte ele teve que considerá-la, o que lhe permitiu
desenvolver sua segunda tópica do aparelho psíquico. Foi somente a partir de
1920 que ele finalmente cedeu às evidências, concordando com Adler e Thomas
Hobbes sobre a natureza cruel do gênero humano. Para dar um fundamento
teórico a essa dimensão da agressividade, Freud estabeleceu um novo dualismo
pulsional que opõe amor e ódio, Eros e Tanatos, pulsão de vida e pulsão de morte,
pulsões sexuais e pulsões agressivas.
Considerando a premissa freudiana como verdadeira e que tanto as pulsões
sexuais quanto as agressivas são constituintes dos seres humanos e
reprimidas pela sociedade, temos de concordar que “a agressividade talvez não
ache satisfação no mundo exterior, porque se depara com obstáculos reais”
(FREUD, 1933/2010, p. 255). Isso ocorrendo “ela poderá retroceder, elevando a
medida de autodestruição vigente no interior” (p. 255). Assim, a agressividade
reprimida pode levar à autodestruição. Parece, portanto, que “é como se
tivéssemos que destruir outras coisas, outras pessoas, para não destruirmos a
nós mesmos, para nos guardar da tendência à autodestruição” (p. 255). Para nos
protegermos contra a autodestruição, a agressividade deve ser dirigida ao mundo
externo estando a serviço da pulsão de vida. Esta constatação é “uma triste
descoberta para o moralista!” (p. 255).
O fenômeno das multidões parece eliminar os obstáculos reais e faz com que
a agressividade aflore, o que, segundo Le Bon, é prejudicial à estabilidade social. É
nesse sentido que ele afirmou que o advento das multidões deveria ser impedido.
Não queremos dizer que ele fosse moralista, mas certamente um conservador que
estava preocupado com os efeitos destrutivos por elas causados. Por isso, ele
assinala que o “conhecimento da psicologia das multidões constitui o expediente do
homem de Estado que quer não governá-las [sic] – coisa que hoje se tornou difícil -,
mas ao menos não ser completamente governado por elas” (LE BON, 2008, p. 24).

Frente às suas observações, ele recorre aos estadistas e, consequentemente,


à política como forma de promover a ordem social, sem se dar conta que a barbárie
que assolou a França e a Europa dos séculos XVIII e XIX era a expressão coletiva
da própria constituição psíquica dos indivíduos. Era pulsão de morte amalgamada à
de vida, pois seus contemporâneos, ao externar sua agressividade, estavam
41

evitando sua própria destruição. Isso somente pôde ser compreendido à luz da
teoria freudiana.

A sagacidade de Le Bon em descrever as características das multidões


propiciou que seu livro fosse utilizado por chefes de Estado como um manual de
controle massas, especialmente, ao abordar a questão do contágio mental e da
sugestionabilidade. Para o pensador francês o indivíduo na multidão age como um
ser hipnotizado que “não é ele mesmo, é um autômato cuja vontade tornou-se
impotente” (LE BON, 2008, p. 36). Tal qual o hipnotizado se submete ao
hipnotizador, os indivíduos estariam submetidos incondicionalmente ao poder de um
líder que os conduziria como a uma marionete. Ele certamente estava tomado pelos
acontecimentos revolucionários e pelos atos de terror de sua época. Retomemos
suas palavras:

Até aqui as grandes destruições de civilizações envelhecidas constituíram o


papel mais claro das multidões. A história ensina que no momento em que
as forças morais, base de uma sociedade, perdem seu vigor, a dissolução
final é efetuada pelas multidões inconscientes e brutais adequadamente
qualificadas como bárbaras. Até aqui as civilizações foram criadas e
guiadas por uma pequena aristocracia intelectual, nunca pelas multidões.
Estas têm poder apenas para destruir. Seu domínio sempre representa uma
fase de desordem. Uma civilização implica regras fixas, uma disciplina, a
passagem do instintivo ao racional, a previsão do futuro, um elevado grau
de cultura, condições totalmente inacessíveis às multidões abandonadas a
si mesmas. Por seu poder unicamente destrutivo, agem como os micróbios
que ativam a dissolução dos corpos debilitados ou dos cadáveres. Quando
o edifício de uma civilização está carcomido, as multidões levam-no ao
desmoronamento. É quando seu papel aparece. A força cega da quantidade
torna-se por um instante a única filosofia da história. (LE BON, 2008, p. 23)

Esta citação evidencia o caráter maquiavélico que seu texto adquiriu e que
inspirou Hitler e Mussolini. Ambos leram Le Bon e utilizaram suas teses para
estabelecer seus governos despóticos. Ginneken (1992) afirma que Mussolini leu
suas obras e frequentemente releu Psicologia das multidões, tendo inclusive escrito
em sua autobiografia que ele tinha se interessado pela psicologia das multidões
desde muito cedo. Por sua vez, Hitler foi um de seus leitores mais dedicado; a
maioria de suas biografias atuais concorda que ele foi influenciado pelas ideias de
Le Bon. A visão conservadora de Le Bon não fica circunscrita apenas à sua
descrição da psicologia das massas. Ainda, segundo Ginneken, Le Bon não fazia
segredo de sua simpatia pelo movimento ultradireitista.

Talvez seu posicionamento à direita do espectro político tenha influenciado


suas considerações sobre o fenômeno de massa, desconsiderando seu aspecto
42

positivo. É, assim, que os frankfurtianos Horkheimer e Adorno o criticam. Eles


afirmam:

[...] a ênfase valorativa em toda sua obra é predominantemente negativa;


para Le Bon, a massa é, em sua essência, inimiga dos princípios da cultura.
A “alma das massas” converte-se no pérfido inimigo da alma da raça,
produtora de valores culturais, e que, não obstante, constitui o núcleo
inconsciente da alma da massa – uma contradição em termos com que Le
Bon não parece preocupar-se. O aparecimento da massa, como tal,
coincidiria, na vida dos povos e das culturas, com a fase final em que o
ocaso se prepara. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 81).

Se, em 1895, a concepção de Le Bon sobre a “essência primitiva da massa e


da aversão inata desta pelos princípios da razão ficou patente” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 82), em 1910, ele ratifica seu posicionamento ao publicar
Psicologia política e a defesa social, traduzido para o português em 1921.

Apesar “de seus defeitos, este texto merece uma leitura atenta, pois contém
alguns elementos de interesse epistemológico e metodológico” (DORNA, 1998, p.
54) para os estudos psicopolíticos. Uma das críticas que podemos apontar é que
suas ideias reforçam a manutenção do status quo e não consideram o poder das
multidões nas transformações sociais e na busca por uma sociedade mais
igualitária. Afinal sua psicologia política era a ciência do governo das elites; ela era
“tão necessária que os estadistas não poderiam dispensá-la. Eles não a dispensam
de fato; porém, na ausência de leis formuladas, os impulsos do momento e algumas
regras tradicionais muito breves, são seus únicos guias” (LE BON, 1910, p. 5)22. Seu
conservadorismo se revela de antemão no próprio título da obra ao enfatizar a
defesa da ordem social, indicando também um ponto de vista positivo, o qual se
reflete em nosso símbolo pátrio maior com a inscrição ordem e progresso. Sua
posição positivista se expressa de forma contundente ao afirmar que:

[...] após longos esforços, lutas incessantemente repetidas e inumeráveis


recomeços, tiver adquirido um ideal. Pouco importa a natureza desse ideal.
Quer seja o culto de Roma, o poder de Atenas ou o triunfo de Alá, ele
bastará para dotar todos os indivíduos da raça em via de formação de uma
perfeita unidade de sentimentos e de pensamentos.
É então que pode nascer uma nova civilização, com as suas instituições, as
suas crenças e a sua arte. Conduzida por seu sonho, a raça adquirirá
sucessivamente tudo o que proporciona de brilho, força e grandeza. Sem
dúvida ainda será multidão em certos momentos, mas, detrás das
características móveis e mutáveis das massas, estará o sólido substrato, a
alma da raça, que limita rigorosamente as oscilações de um povo e regula o
acaso. (LE BON, 2008, p. 191)

22
[…] si nécessaire qui les hommes d’Etat ne sauraient s’en passer. Ils ne s’en passent donc pas, mais, faute de
lois formulées, les impulsions du moment et quelque règles tradicionnelles fort sommaires, constituent leurs
seules guides.
43

A teoria leboniana consequentemente constitui-se como um verdadeiro


manual de administração das massas, que deveria ser e foi utilizado pelos
detentores do poder. “Assim, a psicologia das massas, ao postular a priori a
malignidade da massa e proclamar a necessidade de um poder que a mantenha sob
controle, torna-se instrumento da corrupção totalitária” (HORKHEIMER; ADORNO,
1973, p. 83). O florescimento do totalitarismo tanto a leste quanto a oeste reforçou
ainda mais a estreita relação entre a energia visceral das massas e a dominação
burocrática (MAZZARELLA, 2010). Às massas, fixaram-se ainda mais ideias de
dominação e homogeneidade, impedindo que as singularidades pudessem emergir e
fossem percebidas. Sociedade de massa, cultura de massa, massa de manobra,
massificação são expressões que denotam esse caráter homogêneo e sobretudo
sua suscetibilidade.

Foi nesse sentido que os teóricos frankfurtianos sabiamente recorreram aos


escritos freudianos para mostrar que a alma da raça descrita por Le Bon nada mais
era do que a alma dos indivíduos liberta momentaneamente das repressões a que
estavam submetidos. Retomemos as reflexões freudianas:

Não precisamos, em nosso ponto de vista, atribuir muito valor à


emergência de novas características. Basta-nos dizer que na massa o
indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das
repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes. As características
aparentemente novas, que ele então apresenta, são justamente as
manifestações desse inconsciente, no qual se acha contido, em
predisposição, tudo de mau da alma humana. Não é difícil
compreendermos o esvaecer da consciência ou do sentimento de
responsabilidade nestas circunstâncias. Há muito afirmamos que o cerne
da chamada consciência moral consiste no “medo social”. (FREUD,
1921/2011, p. 20-21)

Ainda que os conceitos de inconsciente propostos por Le Bon e por Freud


difiram, observamos claramente que o sentimento que aflora nos indivíduos na
massa nada tem de novo; o fenômeno de massa apenas serve como veículo para
que o indivíduo se desvencilhe dos mecanismos de repressão que lhes são
impostos. Assim, sua agressividade pode emergir sem barreiras e sem reprimendas
daqueles que os acompanham na massa. É uma forma de legitimação para atos
chamados absurdos que espantariam a sociedade caso eles fossem cometidos de
forma individual e isolada. A barbárie humana segue seu livre curso. Isso ocorreu no
regime nazista, no fascismo, no totalitarismo soviético e está se atualizando na
sociedade brasileira atual.
44

Coube à psicanálise freudiana “investigar como o indivíduo, apesar de


comportar-se, de modo geral, de uma forma radicalmente diferente, a partir do
instante em que se encontra coagido pela situação de massa, acaba caindo nessa
mesma situação como entidade psicológica individual” (HORKHEIMER; ADORNO,
1973, p. 83). Freud foi capaz de esclarecer, diferentemente dos psicólogos que o
antecederam, que o contágio que se observa no fenômeno de massa está
inexoravelmente ligado à fonte libidinal dos indivíduos. O contágio permite uma
espécie de comunhão entre os indivíduos; eles se identificam mutuamente e
ganham força ainda maior quando surge a figura de um líder que é capaz de captar
o espírito da massa.

Os grandes líderes são justamente aqueles indivíduos que têm a perspicácia


de compreender o momento político e social adequado para atuar e fazer com que
esse processo de identificação se intensifique, ofertando às massas a possibilidade
de expressão. Ao perceber o processo de identificação ocorrido nos fenômenos de
massa e o consequente comportamento dos indivíduos em massa, Freud analisa,
em Psicologia da massa e a análise do eu, aquilo que ele denominou como massas
altamente organizadas, duradouras e artificiais: a Igreja e o Exército. Nessas “duas
massas artificiais cada indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder (Cristo,
general), por um lado, e aos outros indivíduos da massa, por outro lado” (FREUD,
1921/2011, p. 49).

Os laços libidinais salientados por Freud são da ordem do inconsciente e se


relacionam com as primeiras relações estabelecidas pelo infante em seu núcleo
familiar. Essa relação não passou despercebida por Le Bon, que em vários
momentos faz menção sobre o caráter inconsciente dos comportamentos dos
indivíduos quando integram um movimento de massa. Ele inclusive os descreve
como seres selvagens em seus estágios inferiores do processo civilizatório. Le Bon
afirma que a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocinar, a ausência
de julgamento e de espírito crítico, o exagero dos sentimentos são características
observadas nas multidões. Estas são observadas também nas crianças. Parece-nos,
por conseguinte, que não podemos ignorar os posteriores desenvolvimentos trazidos
por Freud sobre o desenvolvimento psíquico, pois foi a partir das contribuições de Le
Bon e de William McDougall, relevante psicólogo social britânico, que Freud pôde
45

demonstrar que os eventos políticos que assolaram a França nos séculos XVIII e
XIX estavam intimamente relacionados à psicologia individual.

Ainda que Le Bon não tivesse ciência da real dimensão da relação entre a
psicologia individual e a das massas, ele havia sinalizado sua importância para a
psicologia política, uma vez que ela “se edifica de materiais diversos, cujos principais
são: a psicologia individual, a psicologia das massas e, enfim, a dos povos” (LE
BON, 1910, p. 6)23, as quais foram invariavelmente consideradas como inúteis. Seu
conhecimento foi ignorado pelos estudos políticos a tal ponto que não era estranho
um estudioso receber o título de doutor em ciências políticas sem jamais ter ouvido
falar de seus conhecimentos.

Diante das posteriores reflexões aportadas por Freud é legítimo reivindicar


que a psicanálise seja parte integrante da interdisciplinaridade da psicologia política,
pois os comportamos dos atores políticos tomados individualmente ou nas massas
são influenciados, também, pelas emoções, por aspectos inconscientes; os atos
políticos não são resultantes de um processo puramente racional.

23
[…] s’édifie avec des matériaux divers don’t les principaux sont: la psychologie individuelle, la psychologie des
foules et enfin, celle des races.
46

CAPÍTULO II – A PERSPECTIVA ANGLO-SAXÔNICA

Do outro lado do Canal da Mancha surge um nome que representa o


pensamento inglês para o desenvolvimento da psicologia política: Graham Wallas
(1858-1932), cientista político, sociólogo e educador, um dos líderes da Fabian
Society e fundador da London School of Economics. Sua produção intelectual foi
pequena, tendo publicado apenas cinco livros, porém valiosos, visto que sua visão
da política contrastava com a visão positivista da sociedade e dos fatos políticos da
época.

Diferentemente de Le Bon, ele não estava preocupado com os movimentos


de massa como os ocorridos em solo francês, mesmo porque, as preocupações, na
Inglaterra da época, eram distintas. Não obstante, Wallas enfatiza a relevância dos
aspectos individuais no estudo da política. Assim, inicialmente, interessou-se pela
vida de Francis Place (1771- 1854), cuja biografia foi seu primeiro livro publicado:
The life of Francis Place, no qual aborda aspetos relevantes sobre o embate político
por melhores condições de vida do crescente proletariado. Em seguida, reflete sobre
a natureza política dos indivíduos em Human nature in politics.

A perspectiva anglo-saxônica é distinta, visto que as condições sociopolíticas


eram distintas. A pauperização não era fruto de desmandos autoritários e
despóticos, que influenciaram as disputas políticas francesas; ela estava atrelada às
condições desumanas advindas do crescente processo de industrialização inglês
que, também, submete os indivíduos. O interesse de Wallas, nesse sentido, amplia o
estudo da política para além da luta pelo poder característica das revoluções e
contrarrevoluções, que intrigaram os pensadores franceses. Isso fica evidente em
ambos os livros.

Gradualmente, observamos a psicologia política constituindo-se. Primeiro, de


uma forma embrionária na França; segundo, com os aportes de Graham Wallas; e,
finalmente, ela consolida-se em solo estadunidense, sendo Harold Lasswell
reconhecido como seu fundador. Se, por um lado, o autor britânico enfatiza o papel
da psicologia no estudo da política, por outro, o americano salienta a importância da
psicanálise. Psychopatholgy and politics é um livro psicopolítico, cuja perspectiva
psicanalítica é inquestionável.
47

Ainda que esse livro seja relevante em nosso trabalho, não podemos deixar
de salientar as inúmeras contribuições de Lasswell para o campo, especialmente
seus estudos sobre propaganda. Nesse sentido, abordaremos, a seguir, esses
autores anglófonos.

2.1. Graham Wallas e a natureza humana na política

Place era um ativista político que trabalhou como secretário de uma


sociedade mutuária que dava suporte a trabalhadores quando os mesmos estavam
doentes e também durante suas greves por melhores salários. Além dessas
atividades ele produziu uma série de monografias sobre as eleições em Westminster
e a revogação de leis sobre o direito à reunião de pessoas - Combination Acts -, as
quais tinham o propósito de restringir e controlar a organização de trabalhadores.

Ainda que Place tenha se interessado pela questão laboral, uma de suas
primeiras atuações políticas foi pela educação, que era elitizada e restrita às classes
privilegiadas. Foi em busca de tornar a educação acessível àqueles que não podiam
bancá-la que ele se entusiasmou pelo lema ‘Schools for All’ da West London
Lancastrian Association, criada em 1813. Sua luta por promover a educação das
futuras gerações foi relevante e estava intimamente ligada a suas próprias
condições de vida. Ele era um pequeno alfaiate e tinha dificuldades em manter seus
nove filhos e proporcionar-lhes educação. Assim, ele foi influenciado pelo mote da
associação de Joseph Lancaster, cujo objetivo principal era educar as crianças
daqueles que, tendo comparativamente poucos meios, estavam desejosos de
oferecer uma educação verdadeiramente eficiente a seus filhos.

Apesar de seu entusiasmo inicial pelos ideais propostos por Lancaster, sua
adesão política ao sistema proposto pela associação não ocorreu sem embates. Ele
se indispôs com as características evangélicas adotadas pela British and Foreign
School Society que determinava que a educação deveria estar limitada ao estudo da
Bíblia. Por meio de seus esforços, com o apoio do filósofo escocês James Mill, foi
retirado das diretrizes gerais da Lancastrian Association que “somente a Bíblia será
lida sem interpretação ou comentário escrito ou expresso. Simultaneamente foi
também omitida a regra da associação de pais que todas as crianças deviam ser
48

levadas a algum lugar de devoção aos domingos” (WALLAS, 1898, p. 106) 24. Fica
evidente seu intuito de promover a laicidade da educação, que até então era
ministrada. Por conseguinte, sua destituição foi requerida e Place renuncia a seu
cargo na associação alguns meses após, quando os princípios religiosos foram
reintroduzidos no sistema educacional.

Sua renúncia não abalou suas convicções sobre a importância da educação


na vida das pessoas. Apesar do triunfo de seus opositores, ele persistiu e viu uma
nova oportunidade de atuação ao propor a criação do London Mechanics’ Institute, o
qual foi fundado em 1823. Seus esforços não foram em vão, como podemos
evidenciar em uma de suas correspondências, regatada por Wallas (1898), na qual
descreve sua satisfação em “ver ‘de 800 a 900 saudáveis, respeitáveis mecânicos
prestando notável atenção’ em uma palestra sobre química” (p. 112-113)25.

Francis Place não poderia imaginar a magnitude de sua atuação política no


campo da educação; o instituto sob a direção do doutor George Birkbeck prosperou
e em 1907 mudou seu nome para Birkbeck College. Atualmente é parte integrante
da Universidade de Londres e teve em seu corpo docente figuras como T. S. Eliot e
Eric Hobsbawm.

A atuação política não se restringiu somente à educação; ele teve papel


significativo na área laboral, especialmente quanto às reivindicações das
emergentes classes de trabalhadores que se deslocavam às cidades devido à
Revolução Industrial. As precárias condições laborais a que estavam submetidos e a
exploração da mão de obra fizeram com que os mesmos começassem a se
organizar paulatinamente. Isto não era bem visto pela classe empresarial, que logo
se mobilizou e demandou que eles fossem controlados a fim de evitar que suas
demandas fossem atendidas. Nesse sentido, foram promulgadas sucessivas leis que
impediam a organização da classe laboral, que ficaram conhecidas como
Combination Acts.

A primeira lei foi aprovada em 1721, regulamentando a jornada dos


trabalhadores de confecções; em 1799 foi promulgada uma lei mais geral que
impedia a reunião dos trabalhadores com a intenção de reivindicar alterações e

24
[…] the Bible alone, without gloss or comment, written or spoken, will be read. At the same time, the rule of the
parent society, that all children were to be taken to some place of worship on Sundays.
25
[…] at seeing “from 800 to 900 clean, respectable-looking mechanics paying most marked attention” to a
lecture on chemistry.
49

melhorias nas condições laborais. Um ano após ter sido revogada e diante das
crescentes manifestações proletárias o parlamento britânico aprovou nova lei que
praticamente reeditava a anterior, acrescentando a abolição do direito à greve:
Combinations of Workmen Act (1825). A evolução desses mecanismos de controle
demonstra o quanto os agrupamentos de indivíduos preocupavam não apenas os
governantes, mas especialmente a classe empresarial, pois eram instrumentos
desestabilizadores da sociedade e por isso necessitavam ser criminalizados. Apesar
desta série de leis não evitar que os trabalhadores se reunissem, ela autorizava
qualquer empregador que tivesse uma disputa com seus empregados a puni-los de
forma opressiva e tirânica.

Apesar de o próprio Place ter se tornado um empregador, ele nunca se


esqueceu do período em que ele também tinha sido um trabalhador da indústria de
confecções e que estava em constante perigo de ser preso. Wallas retoma suas
palavras em um relatório de 1831 dirigido ao Conselho de Política Nacional
Sindicalista:

Quando eu me tornei patrão não esqueci que tinha sido um assalariado e


agi apropriadamente. Nunca em minha vida deixei de chamar um homem
que trabalhasse para mim por seu nome. Eu sempre paguei o mais alto
valor de salários; sempre que os homens entraram em greve por aumento
de salários e nunca os submeti a deixar-me, porém em todas as três greves
que ocorreram enquanto permaneci no ramo dei o aumento logo que ele foi
pedido, [...]. Desde que encerrei o negócio em 1818 continuamente utilizei
parte do meu tempo em promover o bem-estar dos trabalhadores e às
vezes uma parte bastante considerável do meu tempo, [...], em obter, [...], a
revogação das leis contra as associações de operários. (WALLAS, 1898, p.
199)26

Fica evidente que as posições políticas de Place com relação à educação e


com a qualidade de vida dos trabalhadores estão intimamente ligadas às suas
próprias experiências de vida; sua origem humilde impactou sobremaneira sua
atuação política. Ainda que tenha lutado em prol de mudanças políticas
significativas, em nenhum momento ele desejou ser reconhecido como um ator
político com características narcísicas. Ele sempre rejeitou a notoriedade. Em uma
nota de rodapé de sua biografia, Wallas salienta que o próprio Place havia

26
When I became a master I did not forget that I had been a journeyman, and I acted accordingly. Never in my
life did I call any man who worked for me out of his name. I always paid the highest rate of wages, and whenever
the men struck for an increase of wages I never suffered them to leave me, but at all the three strikes which
occurred whilst I remained in business I gave the advance as soon as it was asked, […]. Since I left business in
1818 I have constantly employed some portions of my time to promote the welfare of the working people, and at
times a very considerable portion of my time, […] in procuring, […], the repeal of the laws against combinations of
workmen.
50

expressado que seu nome não fosse impresso em qualquer impresso relacionado ao
Instituto de Mecânicos de Londres. Inclusive quando Place faleceu, em 1854, foi
registrado em um artigo no Spectator que ele tinha sido um homem que amava o
poder silencioso com o objetivo de promover bons resultados.

Foi justamente para que sua vida não caísse no esquecimento das gerações
futuras que Wallas se dedicou a resgatar a importância de suas ações políticas.
Ainda que as intenções do pensador britânico tenham sido muito mais de cunho
histórico, parece-nos que essa biografia é relevante para o campo da psicologia
política. Nesse sentido, poderíamos ousar classificá-la como sendo um embrião da
primeira categoria de trabalhos psicopolíticos sistematizada por Fred Greenstein
(1970; 1992): análise psicológica individual de atores políticos. As outras duas
categorias elencadas pelo autor foram análise tipológica de atores políticos e análise
de agrupamentos sociais.

O estudo da vida de Francis Place direcionou Wallas a uma abordagem mais


universal sobre a relevância de estudar a política para além de suas instituições.
Assim, em 1908, ele lança Human nature in politics, livro no qual ele critica a
excessiva ênfase sociológica dada aos estudos políticos e propõe a superação deste
obstáculo que exclui a singularidade dos atores políticos. Contudo, ele demonstra
certo otimismo ao enfatizar que “esta tendência de separar o estudo da política do
da natureza humana provará ser somente uma fase momentânea de pensamento;
enquanto durar seus efeitos, tanto na ciência quanto na condução da política, eles
tendem a ser danosos. E já há sinais que esta fase está chegando a um fim”
(WALLAS, 1908, p. 15)27.

Apesar do otimismo do pensador, muitos cientistas políticos tendem a evitar


uma abordagem psicológica da política, como se ela fosse um campo de estudo que
estaria submetido a leis naturais. Seguidamente defrontamo-nos com análises
políticas que parecem conceber este campo como parte integrante das ciências
duras e consequentemente positivistas. Os cientistas políticos esquecem-se que a
política é uma ciência eminentemente humana. Convém, portanto, retomar as
reflexões aportadas por Wallas para que possamos relembrá-los que não existe
política sem atores políticos.
27
[…] this tendency to separate the study of politics from that of human nature will prove to be only a momentary
phase of thought, that while it lasts its effects, both on the science and the conduct of politics, are likely to be
harmful, and that there are already signs that it is coming to an end
51

Ao abordar a natureza humana na política, Wallas foi influenciado pela então


emergente ciência psicológica. Ele expressa essa influência no prefácio da primeira
edição de seu livro, fazendo especial referência ao livro Principles of Psychology,
(1890) de William James. Na segunda edição, publicada um ano após, ele
acrescentou a obra Social Psychology (1908) de William McDougall, salientando a
relevância da análise do instinto feita pelo autor. Podemos observar que Wallas tinha
na psicologia um referencial teórico relevante. O autor, nesse sentido, busca por
meio de sua obra completar uma lacuna nos estudos políticos, uma vez que aqueles
que se interessam pelo assunto tendem a evitar ou mesmo desprezar o papel dos
indivíduos na política. Assim, ele escreve:

[...] quase todos os estudantes da política analisam instituições e evitam a


análise do homem. É verdade que o estudo da natureza humana pelos
psicólogos avançou enormemente desde a descoberta da evolução
humana, todavia avançou sem afetar ou ser afetada pelo estudo da política.
Os modernos livros-texto de psicologia estão ilustrados com inumeráveis
fatos sobre o lar, a escola, o hospital e a psicologia experimental, mas neles
a política é dificilmente mencionada. (WALLAS, 1908, p. 14)28

Fica claro que a desconsideração do fator humano no estudo da política, não


se deve unicamente aos cientistas políticos, mas também aos próprios psicólogos
que, na época, estavam mais interessados em outros aspectos da vida humana e
negligenciaram as contribuições que a psicologia poderia fornecer à ciência política.
Portanto, tanto psicólogos quanto cientistas políticos contribuíram para o
retardamento do avanço da psicologia política como um campo do saber.

No primeiro capítulo, Wallas deixa transparecer a influência do trabalho


desenvolvido por James e McDougall, ao abordar o quanto os impulsos e instintos
são fundamentais para as decisões políticas, seja daqueles que detém o poder seja
dos atores políticos comuns. Portanto, a política não pode ser compreendida por
meros intelectualismos e decisões unicamente racionais. Compõem o fazer político
aspectos ditos irracionais ou pré-conscientes como o autor afirma. Para desenvolver
suas ideias sobre os instintos na seara política, ele realiza uma extensa analogia
entre as ações humanas e as dos animais inferiores.

28
[…] nearly all students of politics analyse institutions and avoid the analysis of man. The study of human nature
by the psychologists has, it is true, advanced enormously since the discovery of human evolution, but it has
advanced without affecting or being affected by the study of politics. Modern text-books of psychology are
illustrated with innumerable facts from the home, the school, the hospital, and the psychological laboratory; but in
them politics are hardly ever mentioned.
52

Para defender suas proposições ele retoma uma afirmação do historiador e


político britânico Thomas Macaulay que dizia que, quando observamos os atos de
um homem, sabemos com certeza qual é seu interesse. Wallas (1908) afirma que tal
argumento não passa de um intelectualismo falacioso, pois “impulsos políticos não
são meras inferências intelectuais de cálculos de meios e fins, mas tendências
anteriores ao pensamento e à experiência individual dos seres humanos, ainda que
possam ser modificados por eles” (p. x)29. O autor não deixa dúvida quanto a isso
observando que, se o historiador fosse pressionado, “provavelmente teria admitido
que há casos em que ações e impulsos humanos ocorrem independentemente de
qualquer ideia de um fim a ser alcançado por eles” (p. 23)30.

Se, por um lado, o afeto deve ser considerado no estudo da política, por
outro, o autor não se limita a abordá-lo. Ele vai além e salienta que um tratado que
vise certa plenitude deve levar em consideração outros tipos de impulso como o de
enfrentamento, de suspeição, de lealdade e de superação. Ele também aborda a
questão da psicologia das massas estudada pelos sociólogos franceses, em
especial a questão do medo e do ódio que emergem quando há grandes
aglomerados humanos como aqueles surgidos na França dos séculos XVIII e XIX,
que, segundo Wallas, dificilmente ocorreriam entre os povos de origem nórdica; a
excitação provocada pelo contato físico em um movimento de massa jamais
produziria a excitação dos ânimos nas ruas de Londres ou Manchester, pois os
ingleses tendem a ter um comportamento balanceado e letárgico. Foi, justamente,
essa distinção entre a cultura latina e a anglo-saxônica que levou Alexis de
Tocqueville a estudar a democracia americana. Tal distinção também é enfatizada
por Le Bon.

Ao abordar a importância dos afetos na vida dos seres humanos, no primeiro


capítulo, Wallas afirma que tais afetos estão relacionados com aquilo que ele chama
de natureza humana, ou seja, que no fundo pouco mudamos no transcorrer da
história da humanidade quanto aos nossos sentimentos e afetos, pois eles são
fundamentais à própria subsistência da espécie. Esses impulsos estão relacionados
à nossa animalidade, àquilo que nos define como animais que reagem e agem de

29
Political impulses are not mere intellectual inferences from calculations of means and ends; but tendencies
prior to, though modified by, the thought and experience of individual human beings.
30
[…] would probably have admitted that there are cases in which human acts and impulses to act occur
independently of any idea of an end to be gained by them.
53

acordo como o meio no qual nascem. Seu intuito foi demonstrar que somos seres
biológicos, somos animais que respondem de acordo com nossos instintos mais
primitivos, por isso ele faz uso de analogias como os animais inferiores. Entretanto,
somos animais dotados da capacidade de reflexão, de realizar inferências entre
meios e fins, somos animais culturais e, portanto, mais complexos e desenvolvemos
a capacidade de nos comunicar, o uso da linguagem.

O autor prossegue suas reflexões para mostrar que a classe política se utiliza
de nossos instintos para que possa governar e manter-se no poder. Os políticos
capturam os indivíduos por meio de mensagens simbólicas que produzem reações
afetivas na população, as quais são artificialmente produzidas. Wallas (1908) alerta
sabiamente que o “completo ritual de organização social e política entre os
selvagens, [...], ilustra o processo de criação de semelhanças políticas artificiais e
facilmente reconhecíveis” (p. 63)31.

Quando o símbolo pelo qual nosso impulso é estimulado é a linguagem


propriamente dita é ainda mais difícil não confundir a associação emocional
adquirida com o total processo de inferência lógica. Por isso um dos efeitos
desses sons e sinais que chamamos linguagem é estimular em nós um
processo de pensamento lógico e tendemos a ignorar todos os outros
efeitos. [...]. Quando estamos conscientemente tentando raciocinar
corretamente pelo uso da linguagem tudo isso se produz, da mesma forma
que ocorreria caso não tivéssemos desenvolvido o uso da linguagem falada,
e estávamos tentando construir uma lógica válida de cores, modelos e
imagens. Porém qualquer livro texto de psicologia explicará porque isto é
um equívoco, tanto por excesso quanto por inadequação, se tomado como
uma descrição do que realmente ocorre quando a linguagem é utilizada com
o propósito de nos estimular à ação. (WALLAS, 1908, p. 69)32

É patente, portanto, que a aquisição da linguagem não nos torna seres


racionais; há em todos os seres humanos uma parte que vai além da mera reflexão
e da inferência lógica. Agimos e reagimos por meio de elementos que muitas vezes
vão além da nossa compreensão. Tanto aspectos racionais quanto irracionais
compõem a mente humana. Concordamos, assim, com a analogia feita por Wallas
(1908) que descreve nossa mente com uma harpa, “cuja totalidade das cordas pulsa
em conjunto; de modo que emoção, impulso, inferência e o tipo especial de
31
The whole ritual of social and political organisation among savages, […], illustrates the process of creating
artificial and easily recognizable political likenesses.
32
When the symbol by which our impulse is stimulated is actual language, it is still more difficult not to confuse
acquired emotional association with the full process of logical inference. Because one of the effects of those
sounds and signs which we call language is to stimulate in us a process of deliberate logical thought we tend to
ignore all their other effects. […]. When we are consciously trying to reason correctly by the use of language all
this does occur, just as it would occur if we had not evolved the use of voice-language at all, and were attempting
to construct a valid logic of colours and models and pictures. But any text-book of psychology will explain why it
errs, both by excess and defect, if taken as a description of that which actually happens when language is used
for the purpose of stimulating us to action.
54

inferência chamada raciocínio são muitas vezes os aspectos simultâneos e


entremeados de uma única experiência mental” (p. 99)33.

Wallas apresenta vários exemplos daquilo que ele chama de inferências não-
racionais na política para demonstrar o quanto nossos atos políticos não estão
circunscritos à objetividade da razão como pregava o idealismo alemão, que
enfatizava a supremacia dos fins sobre os meios. Max Horkheimer (2000), nesse
sentido, faz também uma crítica à razão objetiva, que é considerada comumente
como “uma faculdade de coordenação, cuja eficiência pode ser aumentada pelo uso
metódico e pela remoção de quaisquer fatores não-intelectuais, tais como as
emoções conscientes ou inconscientes” (p. 18). O pensador alemão prossegue
afirmando:

A razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão
completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências
específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e
o modo de vida do homem. Entregou-os à sanção suprema dos interesses
em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado.
(HORKHEIMER, 2000, p. 18)

Dessa maneira, nossas ações e nosso modo de vida ficaram submetidos a


um jogo de interesses que vai além do bem comum. Convém, portanto, retomarmos
o papel importante da imprensa escrita no jogo de interesse políticos e econômicos
que favorece o eclipse da razão. Wallas (1908) denunciou o papel preponderante da
imprensa escrita da época no âmbito da política, observando que o jornalismo
também pode exercer um poder político. O autor britânico afirma que “um jornal,
para existir como uma força política, deve imprimir-se na mente dos homens para
sustentar dia a dia uma visão consistente” (p. 96)34. Algumas páginas adiante ele
vaticina o quão a imprensa pode influenciar a opinião dos eleitores: “o eleitor,
enquanto lê seu jornal, pode adotar por sugestão e perpetuar por repetição não
apenas opiniões políticas, mas uma completa cadeia de argumentos políticos; e não
sente necessariamente a necessidade de compará-las à cadeia de argumentos já
existente em sua mente” (p. 112)35.

33
The mind of man is like a harp, all of whose strings throb together; so that emotion, impulse, inference, and the
special kind of inference called reasoning, are often simultaneous and intermingled aspects of a single mental
experience.
34
[…] a newspaper is to live as a political force it must impress itself on men's minds as holding day by day to a
consistent view
35
The voter as he reads his newspaper may adopt by suggestion, and make habitual by repetition, not only
political opinions but whole trains of political argument; and he does not necessarily feel the need of comparing
them with other trains of argument already in his mind
55

As reflexões trazidas por Wallas sobre a imprensa escrita são incontestáveis.


Sabemos que os jornais não eram os únicos meios de informação da época, porém
o autor não aborda os demais. Atualmente as informações estão massificadas e se
desenvolveram para além da imprensa escrita. Não obstante, suas reflexões sobre o
papel das mídias continuam válidas. Basta observarmos o papel das mais variadas
mídias no contexto político brasileiro atual, para constatarmos o quanto a
propaganda encontra eco nos indivíduos, favorecendo o eclipse total da razão da
maior parte da sociedade. O poder político e os interesses econômicos são
evidentes e foram denunciados por meio das redes sociais e pela imprensa
internacional. Mesmo assim, grande parcela dos cidadãos brasileiros não se
questionada da intencionalidade daquilo que é noticiado.

Fica evidente a contribuição de Graham Wallas para o posterior


desenvolvimento do campo da psicologia política. Ele inicia seu percurso por meio
da biografia de Francis Place, que deixa transparecer o quanto suas experiências
influenciaram em seu posicionamento e luta política, para posteriormente realizar um
estudo mais geral sobre a política, que não pode prescindir dos conhecimentos
psicológicos. Em vários momentos de sua obra Human nature in politics ele faz
menção expressa da relevância da psicologia. Ele menciona expressamente
psicólogos que o influenciaram, bem como os sociólogos Gabriel Tarde e Gustave
Le Bon, para postular que qualquer estudante das ciências políticas deve ter
conhecimentos da emergente ciência psicológica. Ele afirma categoricamente que
tal estudante deveria no mínimo “começar seu curso por dominar um tratado de
psicologia, contendo todos os fatos sobre o gênero humano que têm sido mostrados
pela experiência ser úteis à política, de tal modo que este conhecimento pudesse ser
mais facilmente relembrado quando desejado” (WALLAS, 1908, p. 123)36.

Além dessa clara interlocução com a psicologia, podemos observar a


influência darwinista em suas reflexões. Podemos inclusive afirmar que seu
entendimento da política é evolucionista. Porém, uma política evolucionista que leva
em consideração aquilo que nos distingue das outras espécies de animais, que não
fica circunscrita somente à razão entre meios e fins; ele inclui nesse processo as
emoções. Podemos lê-lo como um pensador que advoga que as mudanças de

36
[…] begin his course by mastering a treatise on psychology, containing all those facts about the human type
which have been shown by experience to be helpful in politics, and so arranged that the student's knowledge
could be most easily recalled when wanted.
56

caráter de um povo ou de uma nação ocorrem geracionalmente de forma lenta, não


como um processo de evolução natural, mas como um processo político que se
utiliza fundamentalmente das emoções como ferramenta.

É por meio do estabelecimento de laços emocionais que propostas de


mudanças políticas ganham força e suporte da sociedade. Esse apelo emocional,
quando ecoado, torna-se uma ferramenta política que tanto pode levar a um
posicionamento à direita quanto à esquerda do espectro de tendências e
proposições políticas. Essa guinada a um lado ou ao outro de forma efervescente,
muitas vezes incontrolável, que estamos observando na política brasileira e mundial,
evidencia não apenas o uso da emoção como ferramenta política, mas sobretudo
seu relevante papel nos destinos políticos de uma nação. “Na política, de fato,
pregar a oposição entre razão e sentimento é particularmente ineficaz, porque os
sentimentos da humanidade não só proporcionam um motivo para a reflexão
política, mas também fixam a escala de valores que deve ser usada no julgamento
político” (WALLAS, 1908, p. 188)37.

Que tipo de emoções a política desperta nos indivíduos? Que emoções são
suscitadas pelos detentores do poder? Que valores estão associados a esses
conteúdos emocionais? É possível implementar leis que cambiem valores sociais?
Como fazemos nossos julgamentos políticos? Afinal, que política estamos
construindo? Aquela que promove a igualdade, respeitando a alteridade, ou aquela
voltada unicamente às oligarquias, a inclusiva ou a excludente?

Responder tais interrogações não é uma tarefa fácil, pois no jogo político
contribuem vários fatores. As sucessivas revoluções e contrarrevoluções; os golpes
de Estado; os conflitos bélicos sucedidos de armistícios; e a conquista de direitos
individuais e sua limitação mostram que a política, bem como a sociedade, não pode
ser pensada de forma positiva e reducionista, como uma sucessão linear de fatos
rumo ao progresso, pois aqueles que constroem e sustentam as instituições – os
indivíduos – não são positivos em sua essência. Somos racionais, mas, somos,
também, emoção. Nesse ir e vir não linear, os indivíduos evoluem como seres
políticos e politizados, sem esquecermos que são, igualmente, seres psíquicos, que
estabelecem relações que vão além da troca de bens materiais. Emoções,
37
In politics, indeed, the preaching of reason as opposed to feeling is peculiarly ineffective, because the feelings
of mankind not only provide a motive for political thought but also fix the scale of values which must be used in
political judgment.
57

sentimentos, fragilidades e superações são intercambiadas e transformam o ser


humano. Se conseguirmos escapar da lógica capitalista perversa, que coloca os
interesses econômicos acimas dos humanos, talvez seja possível que as
potencialidades dos indivíduos possam emergir e, assim, o indivíduo fortalecido em
sua singularidade promova as condições necessárias à construção de uma
sociedade senão justa e igualitária, uma menos perversa, na qual o outro não seja
colocado na mera posição de objeto.

Se quisermos uma sociedade democrática de fato e de direito é fundamental


que busquemos constantemente a eliminação dos mal-estares que nos afligem, em
especial aquele, apontado por Freud, que mais sofrimento causa: as relações com
os outros; é na micropolítica que primeiro ocorrem as mudanças. Concordamos,
assim, com Wallas (1908) quando ele expressou, há mais de um século, o quão
difícil é colocar o outro como igual; estabelecer uma escala de valores cujo propósito
seja humanitário ou humanista. Seguem suas palavras: “Ninguém espera uma
imediata Federação do Globo, ou profetiza com certeza definitiva; entretanto, a
consciência de um propósito comum na humanidade, ou mesmo o reconhecimento
de que tal propósito é possível, alteraria a face da política mundial imediatamente”
(p. 294)38. Em realidade, a política mundial cambiou, porém, no lugar do propósito
humanitário instaurou-se a barbárie com duas guerras mundiais sucessivas.

Ainda que Wallas não faça menção explícita acerca da psicanálise, em alguns
momentos de sua obra há partes que permitem ser relacionadas com o pensamento
freudiano. Como, por exemplo, em seu terceiro capítulo – Inferência não-racional em
política – no qual descreve que os homens não agem sempre baseados em
princípios e fins, argumentando que os “homens frequentemente agem em política
sob a influência do estímulo imediato do afeto, e esse afeto e interesse podem ser
dirigidos para as entidades políticas” (WALLAS, 1908, p. 98) 39. ‘

Ora, se o afeto pode ser dirigido às entidades políticas e é considerado como


uma inferência não-racional; portanto, irracional tal qual os impulsos inconscientes,
assim, parece legítimo estabelecer conexões entre o pensamento freudiano e
wallasiano. Por sua vez, Freud não abordou a política estrito senso, entretanto, seus

38
No one now expects an immediate, or prophesies with certainty an ultimate, Federation of the Globe; but the
consciousness of a common purpose in mankind, or even the acknowledgment that such a common purpose is
possible, would alter the face of world-politics at once.
39
[…] men often act in politics under the immediate stimulus of affection and instinct, and that affection and
interest may be directed towards political entities […].
58

textos sociais permitem reflexões sobre política, que serão discutidas


posteriormente, no terceiro capítulo.

Graham Wallas não é um autor fácil de ler, não que sua escrita seja
propriamente difícil. Suas considerações são permeadas por inúmeros exemplos
para embasá-las, o que requer leitura atenta, caso se queira apreender a essência
de seu pensamento. Isso mostra erudição e cuidado com seu objeto de estudo.
Nesse sentido, esse texto é um privilégio e um desafio, especialmente se
considerarmos que há pouca referência a seus trabalhos. É um autor que em nosso
entender não deveria ser deixado de lado, suas reflexões são importantes para a
psicologia política.

2.2. Harold Lasswell: a paternidade em questão

Harold Dwight Lasswell (1902-1978) foi um cientista político estadunidense e


teórico da comunicação, sendo considerado como o fundador da psicologia política.
A figura paterna oficial pode limitar a própria essência interdisciplinar do campo, pois
tende à especificação metodológica e teórica. Portanto, o que importa não é o pai
oficial e, sim, o pai teórico, aquele que guia, que norteia, que conduz o pensamento
do pesquisador. Além disso, permite saber quais bases sustentam seus argumentos
e propicia debates teóricos profícuos entre distintas correntes de pensamento.
Porém, não devemos tornar teoria em crença; o pai teórico onipresente, onisciente e
onipotente é o avesso do saber científico. É na pluralidade de ideias que a ciência e
o mundo social e político se transformam; for better or for worse.

A paternidade teórica, uma escolha singular do pesquisador, influencia a


práxis e o debate sobre ela revela disputas políticas no meio científico. Por que
Lasswell? Por que não Wallas, como propõe Stone (1981)? Talvez, Tocqueville?
Afinal, Jon Elster (1995) dedica dois capítulos em seu livro a ele. Ou o australiano
Elton Mayo, que, segundo Trahair (1981/82), teria influenciado significativamente
Lasswell. Esses múltiplos pais mostram a pluralidade do campo, que é benéfica e
frutífera, caso saibamos dialogar.

O fato é que Harold Lasswell contribui significativamente para a consolidação


e institucionalização do campo psicopolítico. Ele é uma pedra que não pode faltar
neste escavar arqueológico que nos propusemos; ele é um dos fundadores, um de
59

seus pais. Um politólogo, cujo currículo apresenta 55 livros, mais de 400 artigos,
capítulos, monografias e, aproximadamente, 250 revisões de seus livros (ASCHER,
1992), merece ser reconhecido.

Seu interesse pelos aspectos psicológicos da política deve-se, especialmente,


a Charles Merriam, coordenador do Departamento de Ciência Política da
Universidade de Chicago, que propunha a “investigação das bases psicológica e
sociológica do comportamento político e a introdução de métodos quantitativos na
análise dos fenômenos políticos” (ALMOND, 1987, p. 251)40. Coube a Lasswell a
primeira proposição, enquanto Harold Gosnell ficou encarregado da parte
experimental e estatística.

A psicanálise já estava estabelecida em território europeu e começava a ser


disseminada nos Estados Unidos; a atenção de Lasswell direcionou-se a ela,
sobretudo, a partir de sua viagem à Europa, quando teve oportunidade de circular no
meio psicanalítico. Anteriormente, seu foco era a propaganda no tempo da guerra,
que foi objeto de sua tese de doutorado Propaganda Technique in the World War.

Na época, visitou as principais sociedades psicanalíticas e manteve contato


pessoal com Anna Freud, Wilhelm Stekel, Eduard Hitschmann e Adolf Adler, entre
outros psicanalistas. Ele viveu um momento histórico efervescente para a
psicanálise; sua intimidade com o círculo psicanalítico era tamanha que teria escrito
em uma de suas cartas: “Freud, Adler, Jung e Stekel são os Quatro Grandes”
(MUTH; FINLEY; MUTH, 1990, p. 10)41, tendo sido analisado por Theodor Reik 42,
que, por sua vez, foi analisado por Freud, com quem mantinha estreita relação.

A experiência de ter sido analisado por um discípulo de Freud e o meio no


qual circulava, provavelmente, tiveram impacto em sua predileção pela psicanálise,
entre as teorias psicológicas. Com sua atenção voltada aos aspectos psicológicos e
sociológicos associados à liderança, Lasswell, escreve uma série de artigos, que
resultou na publicação, em 1930, de Psychopathology and politics.

40
[...] exploration of the psychological and sociological bases of political behavior, and [...] the introduction of
quantification in the analysis of political phenomena.
41
Freud, Adler, Jung and Stekel are the Big Four. Este trecho consta na carta endereçada a seus pais retomado
pelos autores a apresentado na nota de rodapé 41.
42
Reik foi o pivô de uma disputa política no meio psicanalítico internacional, ao ser acusado de prática ilegal de
medicina por praticar a psicanálise. De um lado, os americanos defendiam que apenas médicos tinham o direito
de praticá-la, do outro, os europeus eram contra esse tipo de impedimento. Freud era veementemente contra tal
restrição e advogou a favor de Reik, o que resultou no célebre texto A questão da análise leiga (1926/2014), no
qual defende o caráter leigo, não-médico, da psicanálise.
60

Nesse livro, o autor vai além da mera aproximação de dois campos do saber;
ele propõe uma nova metodologia de pesquisa para as ciências políticas, cujo
enfoque teórico seja o psicanalítico. A referência ao aspecto patológico da psique
revela que o autor foi fortemente influenciado pelos textos clínicos de Freud e não os
sociais. Diz ele: “A clínica tem aportado forte vitalidade à psicologia moderna. A
abordagem psicopatológica tem mostrado, gradualmente, ser razoável, à medida
que, mais e mais, suas concepções encontrem espaço permanente no vocabulário
da psicologia e da ciência social” (LASSWELL, 1960, p. 17)43.

Encontramos, em seu livro, uma breve história da psicanálise: a viagem de


Freud pela França, seu encontro com Charcot, as influências de Breuer e a cisão
com Adler. O autor retoma, também, o desenvolvimento da técnica, desde a hipnose
até a associação livre e descreve o desenvolvimento psicossexual infantil. Não há
nenhuma referência aos textos sociais freudianos, não obstante, o enfoque
psicanalítico é inegável. A psicopatologia de Lasswell é a psicanalítica.

Influenciado pela teoria da personalidade psicanalítica e determinado a


estabelecer pontos de interseção com a política, ele interessa-se pela história de
vida dos indivíduos. Para Lasswell: “Ciência política sem biografia é uma forma de
taxidermia” (LASSWELL, 1960, p. 1)44. Assim, seu livro contém inúmeras life-
histories, pois ele via nelas a possibilidade de estabelecer relações entre os eventos
da primeira infância com traços políticos.

Ele buscava compreender “quais experiências desenvolvimentistas são


significativas para os traços políticos e interesses do adulto. Isto é, queremos
entender o que há detrás de agitadores, administradores, teóricos e outros tipos que
estejam envolvidos na cena pública” (LASSWELL, 1960, p.8)45. Em suma, seu
objetivo é saber “se a investigação intensa de histórias de vida aprofundará em
algum aspecto nosso entendimento de toda ordem social e política” (p. 8-9)46.

43
Fresh vitality has come into modern psychology from the clinic. The psychopathological approach has gradually
vindicated itself as more and more of its conceptions find a permanente place in the vocabulary of psychology
and social Science
44
Political science without biography is a form of taxidermy.
45
[...] what developmental experiences are significant for the political traits and interests of the mature. This
means that we want to see what lies behind agitators, administrators, theorists, and other types who play on the
public stage.
46
[...] whether the intensive investigation of life-histories will in any way deepen our understanding of the whole
social and political order.
61

Para sustentar e substanciar seu intento investigativo ele encontra na


psicanálise elementos teóricos indispensáveis à sua pesquisa. Não se esquivando
de referenciar seu patrono, ele escreve:

O grande inovador no campo da subjetividade foi Freud. Seu livro sobre os


sonhos é uma das mais singulares autobiografias da história e suas
publicações definiram o ritmo para aqueles que desejaram registrar os reais
fluxos da desenfreada mente humana. Enfim havia um espírito
verdadeiramente científico que registrou tudo aquilo que a mente humana
era capaz e o observou criticamente com a esperança de encontrar as leis
da vida mental. (LASSWELL, 1960, p. 12)47

Assim, ele propõe a new technique of thinking - título do terceiro capítulo -


para as ciências políticas. Lasswell, ao propor uma nova técnica, coloca-se contrário
às metodologias que até então eram preconizadas. Ele questiona a teoria vigente,
que considerava que “os homens que tomam as importantes decisões na política
podem ser treinados para usar suas mentes sabiamente através do ensino rigoroso
das práticas do pensamento lógico” (LASSWELL, 1960, p. 28)48 e nos relembra que,
não obstante “nossos melhores esforços para divulgar a logicidade, as pessoas
estão sempre deixando seus preconceitos acompanhá-las, mesmo quando têm uma
mala de boas intenções” (p. 31)49.

Sua tese, portanto, é que a “crença no pensamento lógico é equivocada. A


exclusiva ênfase na lógica (mesmo onde a lógica é habilmente utilizada) incapacita
ao invés de ajustar a mente a funcionar como um adequado instrumento de
adaptação à realidade” (LASSWELL, 1960, p. 31)50. Observamos que, por um lado,
há um questionamento acerca do pensamento lógico, que mesmo em locais onde
vigora habilmente, para utilizar suas palavras, incapacita mais do que capacita as
pessoas à vida, por outro, ele propõe que o funcionamento adequado da mente está
na adaptação à realidade. A excessiva ênfase no pensamento lógico reinante na
maioria da intelectualidade científica dificulta a aceitação da psicanálise.

Lasswell inova as ciências políticas norte americanas, propondo a inclusão do


saber psicanalítico. Há em seu intento a busca de uma modificação na maneira de

47
The great innovator in the subjective field was Freud. His book on dreams is one of the most unique
autobiographies in history, and his publications set pace for those who wanted to record the actual outpourings of
the unrestrained human mind. Here at last was a truly scientific spirit who recorded everything of which the
human mind was capable, and looked at it critically in the hope of finding the laws of mental life.
48
[...] men who make important decisions in politics can be trained to use their minds wisely by disciplinary
training in the practices of logical thoughts.
49
[…] our best efforts to disseminate logicality, people are always letting their prejudice run away with them, even
when they have a baggage of good intentions.
50
[...] faith in logic is misplaced. Exclusive emphasis upon logic (even where logic is adroitly used) incapacitates
rather than fits the mind to function as a fit instrument of reality adjustment.
62

pensar, de refletir, o comportamento político que considere as unseen compulsions,


como ele escreve. Porém, não nos esqueçamos de que ele era também um
pensador formado nos Estados Unidos, cuja academia enfatiza o pensamento
positivista quantitativo e matemático.

Assim, ele concebe uma fórmula para descrever o desenvolvimento histórico


do homem político: p } d } r = P, sendo que “p representa os motivos privados; d,
deslocamento a um objeto público; r, racionalização em termos do interesse público;
P, o homem político; e } significa a transformação em” (LASSWELL, 1960, p. 75-76).
Temos, portanto, a mente política matematizada, o que demonstra não apenas suas
raízes acadêmicas, mas, sobretudo, o choque entre duas Weltanschauung distintas;
a americana, eminentemente positiva, de um lado e, de outro, a europeia,
destacadamente fenomenológica.

Assim, por mais que ele tenha feito esforços para aproximar a teoria freudiana
das ciências políticas, ele o fez a partir de pressupostos positivistas. É nesse sentido
que ele busca nas histórias de vida subsídios que lhe permitam estabelecer relações
entre as distintas características de personalidade para, posteriormente, categorizá-
las de acordo com os tipos políticos. Seu intento mostra a dificuldade, quiçá, a
impossibilidade, da teoria psicanalítica ser empregada dessa maneira, pois seus
pressupostos são metapsicológicos e, por conseguinte, inadequados à academia
americana.

Apesar das críticas que possam suscitar seu livro, Lasswell empenhou-se em
aproximar a psicologia da política. Trinta anos após a publicação da primeira edição,
ele faz uma recapitulação de suas contribuições, salientando que seu trabalho não
pode ser considerado como o de um psicanalista. Ele foi, em realidade, uma
tentativa de análise de um pesquisador que estudava o comportamento político. Ao
empregar as reflexões freudianas; seu intento era salientar a relevância dos
processos inconscientes no comportamento político.

Seu declarado entusiasmo pela psicanálise freudiana foi, pouco a pouco,


sendo abandonado, especialmente a partir da influência da psicologia do ego,
capitaneada por Anna Freud, que se instalou definitivamente em solo norte
americano, reafirmando a importância dos processos conscientes e cognitivos em
detrimento dos processos inconscientes. Apesar dessa guinada, não podemos negar
que a extensa contribuição de Lasswell para a ciência política foi fundamental para o
63

posterior desenvolvimento do campo interdisciplinar da psicologia política. Não é por


acaso que ele seja considerado como o patrono deste campo do saber científico.
64

CAPÍTULO III – AS BASES POLÍTICAS DA TEORIA PSIANALÍTICA

Como vimos no capítulo anterior, Lasswell foi um dos primeiros cientistas


políticos a relacionar a psicanálise com as ciências políticas, tendo sido influenciado
pelo método da associação livre e pela interpretação. Seu livro foi lançado no
mesmo ano de O mal-estar na civilização (1930), considerado, por nós, como o texto
social freudiano mais relevante. Apesar de sua relevância, Freud já havia escrito
Totem e tabu (1913), Psicologia das massas e análise do eu (1921) e O futuro de
uma ilusão (1927), os quais muito contribuíram em suas reflexões sobre a
sociedade. Ele, entretanto, não se deteve nesses textos. Depois de 1930, escreveu,
ainda, Por que a guerra? (1932), texto que responde às indagações do físico Albert
Einstein e Moisés e o monoteísmo em 1939, ano de seu falecimento.

Ainda que a teoria freudiana tenha se afirmado como um método


psicoterápico, ela não se limita única e exclusivamente a isso. Em realidade, a
intenção de Freud desde o início de sua elaboração teórica era muito mais
ambiciosa; o patrono da psicanálise buscava afirmar-se como um pensador sobre a
sociedade e via a possibilidade de aplicar sua teoria para além do setting
terapêutico.

Ele recorda que, após formular a hipótese da existência das pulsões de vida e
de morte e da divisão do aparelho psíquico em ego, superego e id, suas
contribuições à psicanálise não foram relevantes, deixando transparecer que seu
verdadeiro interesse tenha sido desde sempre a compreensão do homem em
sociedade. No pós-escrito de seu texto Um estudo autobiográfico, ele afirma:

[...] o que depois escrevi poderia muito bem não ter surgido, ou logo teria
sido proposto por alguém mais. Isto se relacionou com uma mudança
ocorrida em mim, com um certo desenvolvimento regressivo, se
quisermos chamá-lo assim. Após o détour de uma vida inteira pelas
ciências naturais, a medicina e a psicoterapia, meu interesse retornou aos
problemas culturais que um dia haviam fascinado ao jovem que mal
despertara para o pensamento. (FREUD, 1935/2011, p. 164)

Ao se dedicar ao estudo das neuroses, ele observa que o sofrimento psíquico


das histéricas tinha uma dimensão social que não podia e não devia ser
negligenciada. O complexo de Édipo, conceito fundamental em sua teoria, não pode
ser concebido de forma asséptica, deslocado dos contextos social, cultural e político,
como se no conflito edípico os primeiros cuidadores não fossem eles próprios
perpassados por esses contextos e não os transmitissem ao infante.
65

Isso fica patente em uma correspondência endereçada a Wilhelm Fliess


datada de 31 de maio de 1897, quando salienta que:

[...] os seres humanos, em benefício da comunidade mais ampla, sacrificam


uma parte de sua liberdade sexual e de sua liberdade em se entregar às
perversões. O horror ao incesto (coisa iníqua) baseia-se no fato de que, em
consequência da vida sexual comunitária (até mesmo na infância), os
membros de uma dada família ficam permanentemente juntos e se tornam
incapazes de entrar em contato com os estranhos. Logo, incesto é
antissocial — a civilização consiste nessa renúncia progressiva. (MASSON,
1986, p. 253)

Ele retoma essa ideia em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no qual
ele reforça sua tese da oposição entre civilização e o livre desenvolvimento da
sexualidade. Nesse texto, Freud apresenta uma abordagem psíquica da
sexualidade, concentrando-se num ponto sensível à sociedade da época: a criança.
Da perspectiva freudiana, a criança é polimorfa perversa e guiada pelo princípio do
prazer; ao “mostrar que as atividades infantis — os tipos de sucção, a masturbação,
as brincadeiras com o corpo ou com as fezes, a alimentação, a defecação etc. —
são fontes de prazer e de autoerotismo, Freud destrói o velho mito do ‘paraíso dos
amores infantis’” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 772) e causa desconforto.

Freud nos apresenta a criança, como um ser provido de sexualidade, até


então, incontrolável e indomável, que busca incessantemente o prazer, mas
paulatinamente, refreada em seu intento, percebe que a renúncia é o melhor
caminho. Através da repressão de seus impulsos sexuais, ela adentra o social. Esse
processo psíquico deixa marcas indeléveis, “cujas consequências podem ser
seguidas muito de perto na conformação de nossa vida, a importância do rumo
tomado pela vida sexual da criança para a vida posterior é muito pequena nos níveis
cultural ou social mais baixos e muito grande nos mais elevados” (FREUD,
1905/1996, p. 229). Para Freud a sexualidade é um determinante fundamental do
psiquismo e está em oposição aos preceitos culturais.

A relação entre indivíduo e sociedade fica ainda mais explícita em Moral


sexual civilizada e doença nervosa moderna; texto que, no nosso entender, marca o
início das obras sociais freudianas. Com base em observações clínicas, Freud
percebe a inexorável conexão existente entre as doenças mentais que afloravam em
sua época e a moral sexual civilizada, então, vigente. Ele afirma que “quem penetrar
nos determinantes das doenças nervosas cedo ficará convencido de que o
66

incremento dessas doenças em nossa sociedade provém da intensificação das


restrições sexuais” (FREUD, 1908/1996, p.179).

Tais limitações à livre expressão da sexualidade seriam impostas pelos


rígidos padrões sexuais, estabelecendo, assim, relação entre aquilo que concerne
ao indivíduo – sua enfermidade – e as demandas e restrições sociais. Revisitar esse
texto é relevante, pois ele aborda uma questão atual, mesmo passado um século de
sua publicação: a sexualidade e seu enlace no social.

Se, por um lado, na época de Freud, a sexualidade ficava restrita à esfera


individual e patológica, por outro, ela expandiu-se ao campo da política por meio do
ativismo de feministas e homossexuais que reivindicavam e continuam a reivindicar
tratamento igualitário, abrindo espaço a demandas por reconhecimento de outras
expressões da sexualidade. Ela sai dos consultórios, dos ambientes institucionais e
dos confessionários e passa ao debate político (RICHTER, 2015).

Estes fragmentos apresentados denotam que as preocupações de Freud


acerca da relação indivíduo e sociedade são parte integrante de sua elaboração
teórica, indicando a estreita relação entre a psicanálise e os fenômenos sociais.
Assim, o pensador vienense pouco a pouco foi adquirindo a maturidade teórica,
confessada a Fliess em 1897, que lhe permitiu adentrar o campo da psicanálise
aplicada; ou seja, a aplicação dos conceitos psicanalíticos a outros campos do
saber.

3.1. A psicanálise e as ciências políticas

A interlocução entre teóricos de distintas áreas do conhecimento das ciências


sociais é uma tarefa difícil e frequentemente desconfortável, pois demanda que os
mesmos reflitam sobre suas convicções teóricas e estejam dispostos a revisar as
fronteiras epistemológicas rigidamente estabelecidas de suas disciplinas. Há
invariavelmente um olhar de desconfiança direcionado àqueles que se empenham
na árdua tarefa de estabelecer possíveis pontos de contato interdisciplinares, os
quais favorecem o surgimento de novos campos de estudo, como a economia
política, a antropologia psicanalítica, a psicologia social e a psicologia política entre
tantos outros. Para tanto, é necessária flexibilização, observando os limites de suas
disciplinas.
67

A inserção da psicanálise para além de seus domínios foi percebida como


uma tentativa de avançar numa esfera de conhecimento que não era de sua
competência. Seus textos sociais foram descritos, por Marthe Robert (1991), como
uma aventura que colocou em xeque a reputação do pai da psicanálise e o futuro de
sua teoria, uma vez que parte dos psicanalistas da época se mostraram insatisfeitos
com as reflexões do mestre. Serge Moscovici se contrapõe à posição da autora por
ela não ter percebido a unidade do pensamento freudiano. Os textos sociais
freudianos não seriam “vagões separados da locomotiva que teriam descarrilado,
mas um trem inteiro solidamente enganchado que tomou uma direção inesperada”
(MOSCOVICI, 1985, p. 278).

A crítica à psicanálise aplicada51 não é exclusividade de teóricos de outros


campos do saber, como a de Marthe Robert. Ela foi alvo de debates na Sociedade
Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro círculo da história do freudismo. No
entanto, Freud foi um dos seus defensores e praticantes, o que culminou com a
publicação de Schriften zur angewandten Seelenkunde. Essa coletânea teve como
ensaio inaugural o texto freudiano intitulado Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen.
Outros psicanalistas como Carl Gustav Jung, Karl Abraham, Otto Rank, Isidor
Sadger, Franz Riklin, Oskar Pfister, Max Graf, Ernest Jones, Adolf Josef Storfer e
Hermine von Hug-Hellmuth contribuíram significativamente para o campo.

Em pouco tempo, essa série revelou-se estreita demais para garantir o


desenvolvimento de um setor em plena expansão. Nasceu então a ideia de
uma revista inteiramente dedicada aos trabalhos de psicanálise aplicada,
“não médica”, como Freud deixou claro numa carta a Jung, datada de 27 de
junho de 1911, uma revista que Hanns Sachs e Otto Rank fundariam em
1912, que levaria o nome de Imago e à qual Freud dedicaria muita energia e
recursos. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 607)

Na revista Imago foram publicadas as primeiras versões de Totem e tabu e


O Moisés de Michelangelo. O firme propósito de Freud em expandir os limites da
psicanálise tinha por base a convicção de que “nada do que o ser humano faz e
produz é compreensível sem a ajuda da psicologia, aplicações da psicanálise a
muitos âmbitos do saber, sobretudo nas ciências humanas” (FREUD, 1933/2011,

51
Ainda que psicanálise aplicada ou em extensão sejam expressões discutíveis e controversas, optamos por
mantê-las, especialmente, nas citações, pois seu uso é recorrente no meio psicanalítico. Não obstante,
consideramos ser mais apropriado psicanálise implicada, pois reflete como entendemos a psicanálise: engajada
na realidade social. Recomendamos, nesse sentido, Em torno da psicanálise aplicada, dissertação de mestrado
de Vanessa Lopes dos Santos Passarelli.
68

p. 306). Assim, elas “ impuseram-se naturalmente e solicitaram elaboração” (p.


306).
Entre debates, considerações, limitações e utilizações impróprias e
superficiais da teoria psicanalítica na interlocução com outras áreas do
conhecimento, a teoria psicanalítica foi fixando-se como uma possibilidade
interdisciplinar, especialmente com a antropologia, a literatura e a religião.

A psicanálise implicada transpôs o restrito grupo da Sociedade Psicológica


das Quartas-Feiras; Isador Coriat foi o primeiro americano a introduzi-la nos Estados
Unidos com um ensaio sobre o personagem Lady Macbeth de Shakespeare,
seguido por Ludwig Jekels com um artigo acerca de Napoleão. Erik Erikson, por sua
vez, dedicou-se à psicobiografia de personagens históricos como Jesus Cristo,
Charles Darwin, Martinho Lutero e Mahatma Gandhi; esta última rendeu-lhe o
prêmio Pulitzer em 1970. Por sua vez, os psicanalistas franceses René Laforgue e
Marie Bonaparte também publicaram ensaios sobre Baudelaire e Edgar Allan Poe,
respectivamente.

Apesar de sua disseminação, a psicanálise implicada sofre rejeição por parte


da comunidade psicanalítica francesa, uma vez que ela pode comprometer o
verdadeiro legado da teoria e prática psicanalítica. A despeito dessa resistência,
pensamos que ela pode ser um campo relevante de elaboração teórica. Para tanto,
é mister que tenhamos cuidados e não a utilizemos de forma leviana e superficial.
Caso contrário poderíamos cair em psicologismos exacerbados e infrutíferos.

O próprio Freud advogou a validade e a importância da psicanálise implicada;


ele, inclusive, empenhou-se em tornar a teoria psicanalítica uma disciplina que fosse
além do método terapêutico; na mesma época em que publicou Totem e tabu ele
escreve O interesse científico da psicanálise, no qual são elencadas várias áreas do
conhecimento que se beneficiariam com as descobertas psicanalíticas sobre a vida
psíquica. Ciente da real possibilidade de expansão da psicanálise, ele finaliza esse
texto afirmando: “Meu objetivo se cumpriu se agora estiver claro como ela pode
interessar a muitos âmbitos do conhecimento” (FREUD, 1913/2012, p. 363).

Três anos após, nas Conferências introdutórias sobre psicanálise, o


pensador austríaco reforça mais uma vez essa ideia, enfatizando que:

No trabalho da psicanálise formam-se vínculos com numerosas outras


ciências mentais, cuja investigação promete resultados do mais elevado
69

valor: vínculos com a mitologia e a filosofia, com o folclore, com a psicologia


social e com a teoria da religião. Os senhores não ficarão surpresos ao
ouvir que uma revista cresceu em solo psicanalítico e seu único objetivo é
fortificar esses vínculos. (FREUD, 1916/1996, p. 196)

Como podemos observar ele foi, paulatinamente, enfatizando a relevância


dos conceitos psicanalíticos para outras áreas das ciências humanas, incentivando
seus pares e publicando seus textos sociais. Ampliando, assim, as fronteiras de sua
teoria. Indubitavelmente o intento de Freud vingou e a psicanálise serviu de base
teórica, juntamente com a teoria marxista e a fenomenologia, para o surgimento de
uma escola de pensamento desenvolvida em Frankfurt: a teoria crítica da sociedade,
também conhecida como Escola de Frankfurt.

O crescente interesse de alguns psicanalistas em aproximar-se de questões


sociais tem relação com uma disputa política dentro do próprio movimento
psicanalítico alemão, cujo foco central é a questão da análise didática. De um lado,
os psicanalistas mais ortodoxos quanto ao ensinamento e a consequente pertença
ao seleto meio psicanalítico e, de outro, um grupo que pregava regras mais flexíveis
nas condições exigidas para se tornar psicanalista. Finalmente no congresso da IPA
– International Psychoanalytic Association – em Bad-Homburg (1925) foi
estabelecido que os psicanalistas em formação deveriam estar em análise e realizar
supervisão. Essa determinação era extensiva a todas as sociedades afiliadas e teve
apoio incondicional do Instituto Psicanalítico de Berlim (IPB).

O monopólio das sociedades psicanalíticas na transmissão do conhecimento


e da prática da psicanálise prosperou em Berlim e seu instituto tornou-se modelo
das normas estabelecidas pela Associação Psicanalítica Internacional, formando a
partir de suas rígidas normas a maioria dos grandes terapeutas do movimento
freudiano. Os debates que ocorriam na casa de Freud desde 1902 todas as quartas-
feiras - um verdadeiro laboratório das ideias freudianas – foram, pouco a pouco, se
institucionalizando e enrijecendo.

“Entre 1902 e 1907, homens vindos de diversos horizontes reuniram-se em


torno de um mestre, na casa dele na rua Berggasse, com o único objetivo de ter
suas consciências despertadas à luz da suprema inteligência daquele que inventara
uma nova doutrina: a psicanálise” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 719). Aquilo que,
segundo os autores, se assemelhava a um banquete socrático, no qual todos tinham
a palavra, engessou-se e tornou-se “um cenáculo em torno do ‘pai’, os homens das
70

quartas-feiras identificavam-se com a famosa ‘horda selvagem’ que Freud


descreveria em Totem e tabu” (p. 719).

A institucionalização da psicanálise e o estabelecimento da Deutsche


Psychoanalytische Gesellschaft (DPG) permitiram a abertura de outros institutos e,
em 1929, foi criado o Instituto Psicanalítico de Frankfurt (IPF). Se, por um lado, o
instituto de Berlim tinha se constituído como um centro da divulgação clínica com
traços conservadores e doutrinários, por outro, o IPF tornou-se um centro de
“reflexão intelectual, dando origem à corrente da esquerda freudiana”
(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 11). A criação de institutos possibilitou abrir
caminhos “que permitissem simultaneamente formar terapeutas [...] e enraizar os
tratamentos psicanalíticos em um terreno social” (p. 11).

Foi exatamente essa preocupação com as questões sociais que impulsionou


a aproximação entre o Instituto Psicanalítico de Frankfurt e o Instituto de Pesquisa
Social. Parece-nos que, em solo frankfurtiano, estava sendo gerido aquilo que já se
fazia presente nos escritos freudianos e que veio a culminar com o estabelecimento
de uma importante escola de pensamento para as ciências sociais e políticas: a
Escola de Frankfurt.

A importância do pensamento psicanalítico para a sociedade foi reconhecida


por Max Horkheimer, um dos fundadores de pensamento frankfurtiano; em uma
carta endereçada a Leo Lowenthal, de 1942, ele escreve:

Seu pensamento é uma das Bildungsmächte [pedras angulares] sem as


quais a nossa própria filosofia não seria o que é. Nestas últimas semanas,
mais uma vez, tenho consciência da sua grandeza. Muito se disse, como
sabemos, que o seu método original correspondia essencialmente à
natureza da burguesia muito refinada de Viena, na época em que ele foi
concebido. Claro que isso é totalmente falso em geral, mas mesmo que
houvesse um grão de verdade, isso em nada invalidaria a obra de Freud.
Quanto maior for uma obra, mais estará enraizada em uma situação
histórica concreta. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 12)

Fica evidente, em suas palavras, a relevância da teoria psicanalítica para a


Escola de Frankfurt. Portanto, devemos reconhecer o papel desempenhado pelos
frankfurtianos em divulgar e validar o pensamento freudiano nas ciências sociais.
Talvez tenha sido pelas contribuições de Mar Horkheimer, Theodor Adorno, Erich
Fromm, Herbert Marcuse e tantos outros pensadores que a psicanálise se
estabeleceu no meio acadêmico, ainda que continue sendo criticada por sua falta de
71

cientificidade e empirismo, como uma teoria que pode contribuir para o pensamento
social.

Considerando que a psicanálise pôde contribuir para áreas do conhecimento


como estética, literatura, antropologia, religião e sociedade, um questionamento
importante se coloca. Seria possível a utilizar, também, como uma teoria capaz de
colaborar com as ciências políticas? Nossa resposta seria sim. Em realidade, o
próprio Freud realizou um estudo psicológico de um importante ator político: o
presidente estadunidense Thomas Woodrow Wilson.

Essa empreitada freudiana em parceria com o diplomata William Bullitt,


publicada apenas em 1967 após a morte da segunda esposa do presidente, foi alvo
de críticas. Peter Gay (1989), biógrafo de Freud, a caracterizou como uma aventura
desastrosa. Roudinesco e Plon (1998) a descrevem como um ensaio inverossímil,
enquanto Enriquez (1999) releva ser bastante constrangedor. A querela sobre este
trabalho foi tamanha que foi sugerido a Bullitt que uma cópia do manuscrito fosse
enviada a Anna Freud para sua apreciação. Apesar disso, ele foi publicado sem a
avaliação da filha de Freud, que, após lê-lo atentamente, foi categórica em declarar
que somente a introdução era de autoria de seu pai. A celeuma em torno deste livro,
que mais se assemelha a uma análise selvagem, foi tamanha que o livro não figura
nas edições completas da obra de Freud.

Críticas à parte, o fato é que a psicanálise aplicada às ciências políticas é


uma possibilidade factível e frutífera. Nesse sentido, Irving Louis Horowitz reconhece
a relevância da teoria psicanalítica no processo de constituição da Psicologia
Política; no primeiro encontro da International Society of Political Psychology, ele
declara que a “revolução freudiana teve um imenso papel neste processo, visto que
a capacidade de explicar racionalmente o comportamento dito irracional tornou
possível a fusão da psicologia e da política; os determinantes de cada uma
tornaram-se cruciais para explicar o fenômeno do comportamento político”
(HOROWITZ, 1979, p. 101)52.

Para além das palavras de reconhecimento às contribuições freudianas, o


sociólogo estadunidense deixa transparecer que a política vista única e

52
[...] Freudian revolution played an immense role in this process. Since it was the ability to rationally explain so-
called irrational behavior that made possible the fusion of psychology and politics, the determinants of each
became crucial in explaining the phenomenon of political behavior.
72

exclusivamente a partir de suas instituições seria uma forma de política oca, sem
seu principal componente: o homo politicus em toda sua complexidade e
singularidade.

Diante das contribuições de Freud à teoria social, do estabelecimento da


Escola de Frankfurt e do reconhecimento de Horowitz, buscaremos, a seguir, realizar
uma leitura política dos principais textos sociais freudianos. Ainda que saibamos que
esta tarefa não é fácil, consideramos que articular esses dois campos - psicanálise e
política – é pertinente, uma vez que ações políticas são perpassadas por questões
psicológicas.

3.2. Totem e tabu: primitivismo, onipotência e política.

Freud já havia afirmado que o incesto é antissocial, contudo, foi com seu texto
Totem e tabu que ele traz as bases sociais para o entendimento desta afirmação.
Para tanto, ele se aproxima aos estudos antropológicos de sua época, que estavam
marcados por uma visão europeia etnocêntrica, buscando nas organizações sociais
ditas primitivas indícios para sua reflexão. Este ensaio é considerado como o
primeiro de uma série em que o autor se dedica às questões sociais.

Seu interesse é tamanho que ele afirma em cartas ao psicanalista Sándor


Ferenczi, que talvez este fosse seu último bom trabalho, o qual escrevera com a
mesma convicção que teve durante a elaboração da obra angular da psicanálise: A
interpretação dos sonhos. Por que tal convicção? Aventamos a dizer que ela se
deve ao fato de ele ter observado nas tribos totêmicas e nos tabus a confirmação de
suas descobertas sobre a sexualidade e a agressividade, as quais estão presentes
no conceito fundamental da teoria psicanalítica: o complexo de Édipo. Nesse
sentido, Enriquez (1999) enfatiza que, por um lado, a exploração dos sonhos é a via
régia para o conhecimento do inconsciente, por outro, a compreensão dos tabus e
dos fenômenos totêmicos permite a exploração do vínculo social. Totem e tabu “abre
um novo campo no pensamento freudiano que, sob alguns aspectos, dá
continuidade às suas teorias anteriores” (p. 28-29).

Não obstante, seu texto foi criticado tanto por psicanalistas, pois não trazia
nenhuma contribuição ao tratamento das neuroses, quanto por antropólogos,
“principalmente os anglo-saxões, que não hesitaram em taxar as hipóteses
73

freudianas de absurdas, inverificáveis e arbitrárias” (KOLTAI, 2010, p. 52). Segundo


Enriquez (1999), foi somente a partir da crise política de maio de 1968 que alguns
psicanalistas demonstraram maior interesse na obra sociológica freudiana.

Diante das críticas e do posterior interesse despertado pelos textos sociais


freudianos, convém retomá-lo brevemente. Seu texto é subdividido em quatro
ensaios com o intuito de recompor a genealogia da cultura.

O primeiro é dedicado a analisar as tribos aborígenes australianas que


preservavam uma organização totêmica, uma vez que tais tribos fornecem subsídios
que evidenciam tanto o desejo quanto o horror por práticas incestuosas. Seu
interesse pelo totemismo é devido ao fato dele estar relacionado com a exogamia,
ou seja, todos aqueles indivíduos que pertencem ao mesmo totem estão impedidos
de estabelecer relações sexuais entre si. Há, portanto, uma relação direta entre o
totemismo e a interdição ao incesto e as punições àqueles que por ventura a
desobedeçam são passíveis de castigos severos, o que se aproxima com a vida
psíquica dos neuróticos, como foi evidenciado pela clínica. Freud havia encontrado
em seus casos clínicos o mesmo dilema entre o desejo e o horror ao incesto.

No segundo, analisa a questão dos tabus e a ambivalência dos sentimentos a


eles relacionada. O tabu, segundo o autor, tem dois significados distintos: por um
lado, é algo santificado e consagrado e, por outro, inquietante, proibido ou impuro.
Tendo esses significados opostos, é evidente que os tabus propiciem sentimentos
ambivalentes de veneração e de horror. Ao abordá-los a partir da psicanálise, Freud
ressalta a semelhança com a neurose obsessiva. Assim ele conclui: “Se não
estivesse habituado a designar tais pessoas como ‘doentes obsessivos’, acharia
apropriado o nome de ‘doença do tabu’ para seu estado” (FREUD, 1913/2012, p.
53).

Ele prossegue assinalando que a permanência dos tabus está relacionada


com as duas proibições fundamentais do totemismo: não eliminar o animal totêmico
e evitar as relações sexuais com indivíduos do mesmo totem. Por conseguinte, ele
afirma que o resultado disso é:

[...] o desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos em que
há tabu. Eles têm, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente;
nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las [sic],
mas também têm receio disso; receiam justamente porque querem, e o
temor é mais forte que o desejo. No entanto, o desejo é inconsciente em
74

cada indivíduo desse povo, tal como no neurótico. (FREUD, 1913/2012, p.


60-61)

Da comparação entre os tabus e a neurose obsessiva, podemos concluir que


as interdições são instauradas porque tanto os indivíduos dos clãs totêmicos quanto
os neuróticos obsessivos apresentam desejos inconscientes de violá-las. Daí
decorre a ambivalência dos sentimentos.

Essa ambivalência está presente nos três tabus essenciais e primitivos


estudados por Freud: o dos inimigos, dos soberanos e dos mortos, os quais são
estrangeiros ou estranhos. O primeiro à tribo, o segundo ao grupo e o terceiro à
vida. (ENRIQUEZ, 1999; KOLTAI, 2010). Os estrangeiros possuem certa
semelhança por seu caráter fora do comum, do ordinário, pois afetam os indivíduos
em sociedade; o “inimigo nos mata, o soberano nos subjuga e os mortos nos
assombram” (ENRIQUEZ, 1999, p. 37). Todos exercem certo poder sobre os
indivíduos. Entretanto, os soberanos “têm um poder e uma capacidade de conferir
benefícios que são próprios de deuses” (FREUD, 1913/2012, p. 77).

Os soberanos, esses deuses encarnados, não são exclusividade dos povos


antigos. Freud elenca exemplos como o de Carlos I, Carlos II e Guilherme II, cujos
toques eram capazes de curar doenças como a tuberculose linfática. Sua
importância fez com que eles fossem apartados e protegidos; a necessidade de
protegê-los é decorrente tanto do bem quanto do mal que poderiam infligir a seus
súditos.

Considerando as descobertas totêmicas e o consequente sentimento


ambivalente direcionado ao totem, podemos estabelecer relações como a política.
Freud deixa claro que os animais totêmicos e os sentimentos relacionados a eles
são de natureza semelhante àqueles direcionados aos soberanos primitivos:
ambivalente. Assim, reis, rainhas e dirigentes políticos se comportam como os
antigos soberanos. Aos políticos e governantes atuais não são mais atribuídos
poderes curativos, porém a similitude quanto ao seu distanciamento dos cidadãos
comuns não pode ser negada. Eles agem como os antigos soberanos, com seus
cerimoniais e etiquetas, que se transformam, eles próprios, em tabus.

Há, portanto, um quê de desconfiança que os circundam. Esses atores


políticos são alvos de uma hostilidade inconsciente devido a seus privilégios e
poder. Essa hostilidade, porém, “não é admitida como tal, mas travestida de
75

cerimonial” (FREUD, 1913/2012, p. 86) e transformada em admiração e inveja.


Segundo Freud, os sentimentos ambivalentes estão intrinsecamente ligados ao
complexo de Édipo e à vida pulsional dos indivíduos, pois durante o conflito edípico,
o infante desenvolve sentimentos ambivalentes em relação ao pai; há “um amor
fundamentado e um ódio não menos justificado, ambos dirigidos para a mesma
pessoa” (FREUD, 2012/1926, p. 33). Assim podemos estabelecer uma analogia
entre os atores políticos poderosos e a psique do indivíduo.

Essa ambivalência emocional dirigida aos soberanos, aos atores políticos, é


“abafada por uma intensificação excessiva do carinho, que se manifesta como
angustiosa solicitude e que se torna obsessiva, pois de outro modo não cumpriria
sua tarefa de manter sob repressão a corrente oposta inconsciente” (FREUD,
1913/2012, p. 85). Freud, assim, aproxima os sentimentos ambivalentes
direcionados a esses sujeitos privilegiados dos sintomas neuróticos. A relação entre
amor e ódio é desenvolvida detalhadamente em Inibição, sintoma e angústia; o autor
afirma que na ambivalência:

[...] um dos dois impulsos em luta, geralmente o afetuoso, fortalece-se


bastante, enquanto o outro desaparece. Apenas o caráter exagerado e
compulsivo da afeição nos revela que tal postura não é a única presente,
que ela está sempre em guarda para manter suprimido seu contrário, e nos
leva a imaginar um processo que caracterizamos de repressão por
formação reativa (no Eu). (FREUD, 1926/2012, p. 33-34)

Essa dualidade entre amor e ódio para com esses privilegiados atores
políticos é marcante nos regimes autoritários e ditatoriais, especialmente, quando há
sua deposição. A história contemporânea está repleta de exemplos. Vários ditadores
antes adorados tiveram como destinos o exílio, e aprisionamento ou até mesmo a
morte, o que demonstra a ambivalência de sentimentos que despertavam. Em
Uganda, Idi Amin Dada foi deposto e recebeu exílio na Arábia Saudita; Nicolae
Ceausescu juntamente com sua esposa Elena Ceausescu foram executados, após a
revolução romena; Hosni Mubarak governou o Egito por quarenta anos até ser
encarcerado; Saddam Hussein foi deposto após a invasão do Iraque e enforcado
após seu julgamento.

Apesar da ambivalência de sentimentos ficar mais explícita nos regimes


autoritários, ela também está presente nos regimes democráticos. Dilma Rousseff,
eleita democraticamente por mais de 54 milhões de votos, também foi alvo do ódio
reprimido de seus governados. Após a crise econômica e política que assolou o solo
76

brasileiro, demonstrações de hostilidade foram-lhe direcionadas. Basta recorrermos


às mídias sociais na internet para comprovação.

Portanto, não é estranho que pessoas ditas racionais exibiram cartazes


sugerindo que ela deveria ter sido morta durante o período ditatorial brasileiro da
década de 1960. As manifestações de massa são propícias para que tal hostilidade
seja expressa livremente, pois os indivíduos, quando inseridos na massa, rebaixam
suas repressões e deixam aflorar sentimentos que solitariamente seriam barrados.
Essa questão será pormenorizada a seguir, ao abordarmos outro texto social
freudiano: A psicologia das massas e a análise do eu.

Não obstante termos aportado algumas considerações políticas a partir do


segundo ensaio, o que fica evidente é que Freud, a partir do totemismo e do tabu,
vai se aproximando do ponto fundamental que será apresentado no último ensaio; a
saber: a gênese da civilização ou cultura está inexoravelmente ligada ao desejo de
matar os poderosos, em especial o pai primevo, e suas consequências: a renúncia
necessária, a impossibilidade de fazê-la de forma definitiva e o surgimento do
sentimento de culpa. Antes de chegarmos a esse ponto, apresentaremos seu
terceiro ensaio que versa sobre a onipotência dos pensamentos.

No início de Animismo, magia e onipotência do pensamento, título do terceiro


e penúltimo ensaio, Freud adverte que um dos defeitos da psicanálise às ciências
humanas em interlocução é a limitada contribuição aos leitores de ambas, servindo,
segundo o autor, como incitações para posteriores desenvolvimentos. Apesar de sua
advertência, ele volta-se aos povos primitivos para elaborar suas reflexões sobre o
animismo, recorrendo às contribuições de Wilhelm Wundt, considerado um dos
fundadores da psicologia experimental.

O animismo se caracteriza pela onipotência do pensamento, que pode ser


observada na tendência dos indivíduos primevos em atribuir suas qualidades tanto
às coisas inanimadas quanto às animadas. A transformação do mundo em sua
imagem e semelhança permite ao indivíduo lidar com as vicissitudes da vida e
consequentemente aplacar a angústia de sua existência. O ego passa a ser, então,
referência última de satisfação. Entretanto, a onipotência do pensamento não é
exclusividade dos homens primitivos, ela está também presente nos estágios
posteriores da história da civilização humana, ainda que, com menor intensidade,
como afirma Freud:
77

Na fase animista o homem atribui a si mesmo a onipotência; na religiosa,


ele a cede aos deuses, mas não a abandona seriamente, pois reserva-se a
faculdade de influir sobre os deuses de maneiras diversas. Na concepção
científica do mundo não há mais lugar para a onipotência do homem, ele
reconhece a própria pequenez e submete-se resignadamente à morte e às
outras necessidades naturais. Mas a confiança no poder do espírito
humano, a contar com as leis da realidade, retém algo da primitiva fé na
onipotência. (FREUD, 1913/2012, p. 139-140)

Mesmo em um estado mais evoluído do pensamento humano, que leva em


consideração a insignificância do ser humano e a realidade objetiva dos fatos há
resquícios da onipotência do pensamento; a Weltanschauung científica não aboliu a
onipotência do pensamento, uma vez que retém algo de sua primitiva fé.

Essa constatação de Freud lhe permitiu estabelecer uma comparação entre


os estágios de desenvolvimento libidinal proposto pela psicanálise e as distintas
Weltanschauung na história do desenvolvimento humano. Filogênese e ontogênese
se encontram. Freud explicita tal relação:

Se é lícito vermos, na demonstrada onipotência de pensamentos entre os


primitivos, uma evidência em favor do narcisismo, podemos arriscar uma
comparação entre as etapas de desenvolvimento da concepção humana do
universo e os estágios de desenvolvimento libidinal do indivíduo. Então a
fase animista corresponde, tanto cronologicamente como em termos de
conteúdo, ao narcisismo; a fase religiosa, ao estágio de eleição de objeto,
caracterizado pela ligação aos pais; e a fase científica tem sua contrapartida
no estado maduro do indivíduo que renunciou ao princípio do prazer e
busca no mundo exterior, adequando-se à realidade. (FREUD, 1913/2012,
p. 139-140)

Considerando a relação entre a onipotência do pensamento, característica do


animismo, e o conceito psicanalítico de narcisismo, que se refere ao estágio do
desenvolvimento libidinal no qual o ego é tomado como objeto de investimento, é
possível verificarmos que ambos têm por característica o rechaço da realidade
objetiva do mundo que nos circunda.

Enriquez (1999) enfatiza que, esse afastamento da realidade característico da


onipotência do pensamento não se extingue e está presente na condução da
política; “no mundo moderno, fundamentalmente regido pela política, a arte de
governar, a arte da política (ou mesmo a política como arte suprema) é impulsionada
ao mais elevado grau” (p. 41). O autor prossegue afirmando:

Como não entender que a magia das palavras, o fascínio que elas exercem
sobre milhões de cidadãos, a referência a soluções milagrosas constitui o
elemento fundamental do espetáculo cotidiano, o que permite a uma
categoria de dirigentes assentar e glorificar seu poder e ainda pensar que a
realidade deve curvar-se aos projetos e leis por eles edificados.
(ENRIQUEZ, 1999, p. 41)
78

A própria história é testemunha disso; basta um mínimo de conhecimento


histórico sobre estadistas como Napoleão e Hitler para verificarmos o quanto a
onipotência do pensamento está presente em projetos políticos magnânimos e
simultaneamente nefastos para a humanidade. “Os homens-narcisistas, os
megalomaníacos, se transformam finalmente em paranoicos, agindo no e sobre o
‘socius’” (ENRIQUEZ, 1999, p. 39). Como podemos verificar, Totem e tabu vai além
de um estudo psicanalítico antropológico, ele descreve nas suas entrelinhas
relações de poder e, portanto, concordamos com Roudinesco e Plon (1998), que
afirmam que ele é antes de tudo um texto político. As relações de poder ficam ainda
mais notórias em seu último e mais polêmico ensaio que abordaremos a seguir.

Freud finaliza seu texto trazendo suas reflexões acerca da passagem de um


mundo selvagem e violento ao nascimento da civilização. Para tanto, ele recorre a
Charles Darwin e sua horda primeva. Ele salienta que a civilização está fundada em
um acontecimento: o assassinato do pai primevo que detinha todo e qualquer poder
sobre aqueles de viviam sob seu jugo: as fêmeas e os filhos de seu bando.

O pensador austríaco advoga que o nascimento da civilização está


fundamentado em dois prazeres intrínsecos a todo e qualquer indivíduo: o incesto e
a agressividade. Assim sendo, sua concepção de homem é fundamentalmente
hobbesiana. Ou seja, a interdição ao incesto desempenharia papel regulador na
sociedade; seria a lei fundadora da civilização, a qual teria sido introjetada em
virtude do arrependimento pelo assassinato do pai primevo e, assim, atuaria
inconscientemente. Freud não poderia ter sido mais coerente ao vincular o
nascimento da civilização à agressividade do homem e ao incesto. Afinal, a questão
da sexualidade é central em sua teoria.

Resumidamente, a ideia apresentada por Freud é a seguinte: os homens


viviam em pequenas hordas. Todos que nelas viviam estavam submetidos ao poder
despótico de um único macho que se apoderava de todas as fêmeas e bania seus
filhos à medida que cresciam. Contudo, os filhos banidos e afastados de qualquer
possibilidade de gozo se agruparam e resolveram matar o pai tirânico, devorando-o
em seguida. Eles o odiavam, pois ele se antepunha frente a seus desejos sexuais e
ao poder, porém, simultaneamente o amavam e admiravam, pois ele era possuidor
daquilo que lhes faltava; a ambivalência se apresenta. O sentimento de culpa e
remorso, em função do assassinato do pai, adveio, e o pai se tornou mais forte do
79

que quando estava vivo, fazendo com que os filhos abdicassem das suas pulsões
sexuais e agressivas e, por conseguinte, passassem a viver em comunidade,
declarando ser proibido o assassinato e privando-se das mulheres.

“Assim criaram, a partir da consciência de culpa do filho, os dois tabus


fundamentais do totemismo, que justamente por isso tinham de concordar com os
dois desejos reprimidos do complexo de Édipo” (FREUD, 1913/2012, p. 219); a
saber: o parricídio e o incesto.

A crítica dos antropólogos da época foi substancial. Entretanto, a concepção


da existência de uma lei primordial que organiza e possibilita a civilização foi
corroborada posteriormente por Claude Lévi-Strauss em seus estudos sobre as
estruturas de parentesco. Ele conclui que a proibição do incesto está no cerne da
constituição de laços sociais, visto que os indivíduos são forçados para além de seu
meio familiar e biológico.

Ela “não é uma proibição igual às outras, mas a proibição, na forma mais
geral, aquela talvez a que todas as outras se reduzem [...] como casos particulares.
A proibição do incesto é universal” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 534). Poderíamos
conceber, portanto, que essas interdições primordiais e fundamentais os impeliram à
exogamia. O estabelecimento desse vínculo entre os filhos fez com que eles se
elevassem acima da organização biológica para atingir a organização social,
transcendendo a animalidade e adentrando o estágio de socialização.

Não obstante Lévi-Strauss critique a existência de uma horda primeva como


prega Freud, pois o “desejo da mãe ou da irmã, o assassínio do pai e o
arrependimento dos filhos não correspondem, sem dúvida, a qualquer fato, ou
conjunto de fatos, que ocupam na história um lugar definido” (LÉVI-STRAUSS, 1982,
p. 532), ambos concordam sobre a centralidade da proibição ao incesto no processo
civilizatório.

Se levarmos em consideração tanto os achados freudianos quanto as


constatações posteriores de Lévi-Strauss, percebemos que a gênese da civilização
está intrinsecamente ligada a uma relação de poder. Mesmo nas tribos matrilineares
das Ilhas Trobriand, estudadas pelo antropólogo Bronisław Malinowski, que o levou
a criticar a universalidade do complexo de Édipo por serem avunculares, a proibição
de certas relações estava presente.
80

A crítica malinowskiana à universalidade do complexo edípico ocorre


fundamentalmente por não perceber que o que está presente neste complexo não é
a paternidade biológica, mas, sim, uma questão funcional. Seja o pai nas
organizações patrilineares do fin-de-siècle freudiano, seja o tio nas organizações
trobriendeses, ambos são detentores de poder e, por conseguinte, encarnam a
própria lei, cuja função é regular aquilo que é permitido e aquilo que é interditado.
Assim sendo, fica claramente demonstrado que o que está em jogo é uma relação
de poder e uma posição de autoridade que limita os indivíduos em seus instintos.

A posição paterna no complexo de Édipo é passível de ser deslocada a outras


figuras de poder, sejam elas humanas ou institucionais. Nesse sentido, as
contribuições da psicanálise francesa, que a partir da releitura dos textos freudianos,
introduziu a ideia de função paterna, contribuíram para a atualização da teoria
psicanalítica. A ideia de função paterna, como aquela que instaura uma lei e,
portanto, que detém poder, facilita percebermos que a posição de autoridade
atribuída única e exclusivamente ao pai da horda possa ser deslocada ao campo da
política.

Disso decorre que a primeira experiência do poder se dá no seio familiar, por


meio da relação da criança com o pai ou seu substituto, visto que é ele quem define
os objetos bons e maus, bem como distingue os atos permitidos e interditados,
recompensando e punindo aqueles que a ele estão submetidos, tal qual o pai da
horda primeva.

Indubitavelmente o que fica da exposição de Freud sobre a gênese da


civilização é que os laços sociais são estabelecidos por meio de uma conspiração
contra um poder vivido como maléfico. Tanto “a alteridade quanto o reconhecimento
mútuo procedem de um movimento contrário e são inauguralmente um efeito de ódio
partilhado” (ENRIQUEZ, 1999, p. 32).

Dessa constatação, parece-nos lícito aproximarmos psicanálise e política,


uma vez que a organização social e a política podem ser vistas como decorrentes de
um pacto que nos iguala como irmãos, mas, simultaneamente, nos diferencia à
medida que somos submetidos aos poderes institucionais. O Estado pouco a pouco
se torna um substituto do pai primevo, “sendo assim apreendido negativamente,
como uma instituição coercitiva e repressora, constituindo-se como um aparelho de
violência no imaginário social” (HUR, 2011, p. 112). Porém, convém ressaltar que
81

esse imaginário social é cambiável de acordo com o ambiente social, político e


econômico vivido.

Essa ideia, trazida por Domenico Hur, fazia-se presente em Freud, ainda que
ele não tenha se dedicado à política propriamente dita. Em dois momentos ele faz
menção tanto ao poder político quanto ao religioso como sucedâneos do poder
paterno e reitera que os mesmos são alvos da ambivalência dos sentimentos.
Seguem suas palavras:

Seria equivocado acreditar, porém, que nesse período de renovada


autoridade paterna estejam completamente silenciados os impulsos hostis
que são próprios do complexo paterno. Pelo contrário, nas primeiras fases
de domínio dos dois novos sucedâneos do pai, os deuses e reis,
encontramos as mais enérgicas expressões da ambivalência característica
da religião. (FREUD, 1913/2012, p. 229)

Nesta citação ele faz breve menção a deuses e reis como substitutos do pai
primevo. Anteriormente, ele é enfático quanto ao papel do Estado na ordenação
social; “reis divinos surgem na ordenação social, transpondo o sistema patriarcal ao
Estado. É preciso dizer que a vingança do pai deposto e novamente entronizado é
implacável, o domínio da autoridade está no apogeu” (FREUD, 1913/2012, p. 228).

Ao refletirmos sobre a questão do poder exercido por reis, rainhas e dirigentes


políticos fica notório que as elaborações freudianas podem contribuir sobremaneira,
especialmente se considerarmos quanto toda e qualquer relação de poder está
intrinsicamente ligada à dimensão narcísica dos atores políticos, sejam os
governantes, sejam os governados. Como salienta Koltai (2010), ao retomar as
reflexões do psicanalista Jean Clavreul, a “verdade é que a onipotência de qualquer
tirano é tão mítica quanto a do pai da horda primitiva, pois, [...], o único verdadeiro
poder absoluto é aquele exercido por sua majestade, o bebê; o que por si só já nos
fala da dimensão narcísica do poder” (p. 110). Assim, não há como separar a
psicologia social e política da individual, pois quem atua politicamente é o indivíduo
por meio de poderes instituídos socialmente.

3.3. Freud explica a psicologia das massas

Em 1920 é publicado Psicologia das massas e análise do eu; texto em que


Freud retoma a questão do fenômeno de massas que impactou diversos pensadores
em virtude das sucessivas revoluções que ocorreram em solo europeu. Ainda que
82

esse fenômeno tenha sido descrito de forma brilhante e perspicaz por Gustave Le
Bon, em seu livro Psicologia das multidões, coube a Freud explicá-lo. Enquanto o
pensador francês descreve, Freud explica.

Para tanto, ele recorre em diversos momentos ao livro de Le Bon, bem como
às reflexões aportadas por William McDougall sobre a mente grupal, no intuito de
embasar sua proposição principal de que a psicologia individual é indissociável da
psicologia social, pois entende que todo indivíduo se constitui psiquicamente a partir
da relação com outrem, uma vez que ele parte de duas premissas: “a de que o
instinto social pode não ser primário e indivisível, e de que os primórdios da sua
formação podem ser encontrados num círculo mais estreito como o da família”
(FREUD, 1921/2012, p. 15-16).

Em que pese seu apreço pelas considerações lebonianas, ele as


complementa com os pressupostos da psicologia profunda, pois o pensador francês
não apresenta o porquê dos indivíduos em massa agirem como uma unidade
psicológica. O que os une entre si, levando-os a agirem de maneira distinta caso
estivessem isolados? É em busca desta resposta que ele desenvolve suas
reflexões.

Segundo Le Bon, os indivíduos em massa apresentariam características


novas que não possuíam antes de se reunirem, as quais estariam ligadas a três
fatores: o primeiro é que em função do número de pessoas inseridas na massa, os
indivíduos apresentariam um sentimento de poder invencível que lhes permitiria
ceder a instintos que isoladamente manteriam controlados; o segundo seria a força
do contágio mental que evocaria aptidões contrárias à natureza dos indivíduos; e o
terceiro e mais importante seria a sugestão como se os indivíduos estivessem
hipnotizados. Assim, ele conclui:

Portanto, desaparecimento da personalidade consciente, predomínio da


personalidade inconsciente, orientação por meio da sugestão e de contágio
dos sentimentos e das ideias num mesmo sentido, tendência a transformar
imediatamente em ato as ideias sugeridas são as principais características
do indivíduo na massa. Ele já não é ele mesmo, é um autômato cuja
vontade tornou-se impotente. (LE BON, 2008, p. 36)

Diante das características e da conclusão apresentadas, o indivíduo na


massa tende a revelar os substratos inconscientes que estavam reprimidos. É nesse
sentido que Freud se apropria do texto leboniano para demonstrar que os atos
83

irascíveis e bárbaros que afloram nas massas são passíveis de explicações a partir
das contribuições da psicanálise.

A possibilidade de interlocução entre a psicanálise e os fenômenos de massa


fica ainda mais patente quando o autor conclui que as características da alma das
massas são a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocinar e a
ausência de julgamento e de espírito crítico. Tais características “são igualmente
observáveis entre os seres que pertencem a formas inferiores de evolução, como o
selvagem e a criança” (LE BON, 2008, p. 39). Posteriormente, ele é mais
contundente ao afirmar que nas massas o indivíduo “não admite obstáculo entre seu
desejo e a realização desse desejo, ainda mais que o número lhe proporciona uma
sensação de poder irresistível” (p. 41).

Ao fazer essa analogia entre o comportamento dos indivíduos na massa, dos


selvagens e das crianças, ele abre caminho a posteriores desdobramentos por parte
da psicologia e é justamente a isso que Freud se dedica. De certa forma sua
analogia já está presente no item anterior desta tese, especialmente no ensaio
Animismo, magia e onipotência dos pensamentos. Freud foi além e enfatiza que nas
“massas as ideias opostas podem coexistir e suportar umas às outras. O mesmo
sucede, porém, na vida anímica inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos
neuróticos, como há muito demonstrou a psicanálise” (FREUD, 1921/2012, p. 28).

Como podemos observar, pouco a pouco, o pensador austríaco vai realizando


uma leitura psicanalítica do fenômeno das massas. Outra questão abordada por
Freud é de importância vital para o mundo da política: o poder das palavras. Não
obstante Le Bon tenha afirmado que as massas são impressionadas sobretudo por
imagens, ele adverte que mesmo que não se disponha delas é possível evocá-las
pelo emprego cuidadoso de palavras. “O poder das palavras está ligado às imagens
que evocam e é completamente independente de seu significado real” (LE BON,
2008, p. 98). As palavras são capazes de produzir ilusões tão fortes quanto a própria
realidade.

É basicamente por meio de palavras que os poderosos atores políticos se


mantêm; “o primeiro dever do verdadeiro homem de Estado é mudar as palavras
sem tocar, bem entendido, nas próprias coisas” (LE BON, 2008, p. 101). Mais
adiante ele reforça essa ideia afirmando que uma das “funções mais essenciais dos
homens de Estado consiste, portanto, em batizar com palavras populares, ou ao
84

menos neutras, as coisas detestadas pelas massas com seus antigos nomes” (p.
101-102). De palavra em palavra criam-se ilusões que estão distantes da realidade
objetiva dos fatos. Por conseguinte, as massas “nunca tiveram sede de verdades.
Diante das evidências que lhes desagradam, desviam-se, preferindo deificar o erro
se este as seduzir. Quem sabe iludi-las facilmente torna-se seu mestre, quem tenta
desiludi-las é sempre sua vítima” (p. 104-105), vaticina o autor.

A história tem demonstrado o quanto o discurso político pode influenciar as


massas, caso contrário não teria havido o extermínio de milhões de judeus em
campos de concentrações durante a segunda guerra mundial. Hitler foi exemplar em
utilizar as palavras e criar cenas de completa submissão, nas quais a razão não
estava presente. Este fenômeno nem sempre desemboca em extermínios
generalizados. Em campanhas eleitorais isso também ocorre, basta observarmos os
discursos de Donald Trump em sua tentativa de eleger-se presidente dos Estados
Unidos para verificarmos o quanto o povo americano se deixa influenciar por suas
palavras que invocam o medo.

Porém não é toda linguagem que possui tal poder; somente aquela que
encanta, enfeitiça e é repetida com veemência que tem a capacidade quase mágica
de iludir. Enriquez, nesse sentido, enfatiza que a análise de conteúdo é um
instrumento metodológico que mostra o quanto os discursos políticos desvelam a
real intenção dos atores políticos que os proferem. Seus discursos, diz ele:

[...] pretendem menos demonstrar e argumentar, do que seduzir, atrair,


fascinar por figuras de estilo, por variações de vozes, intensidade
expressiva e, sobretudo, por repetições de fórmulas simples, que podem ser
retomadas em coro pelo conjunto das massas. Os discursos funcionam
como indicadores de ação e visam impedir qualquer reflexão contraditória.
Neste caso, estamos no centro do funcionamento artístico, na medida em
que este visa fascinar, transportar, fazer sonhar e fazer o sonho passar por
realidade. (ENRIQUEZ, 1999, p. 58)

Assim, quando o poder político é exercido por líderes hábeis transforma-se


na arte do engodo. A política então se assemelha a um teatro que suscita as mais
diversas emoções com o objetivo único de estabelecer laços fortes entre os líderes e
seus comandados. Entretanto, tais laços nas massas tendem a ser de pouca
duração, pois o poder das palavras tende a ser efêmero. Caso não haja algo a mais
que os vincule, as massas tendem a ser instáveis, suscetíveis e facilmente
sugestionáveis.
85

Contudo, sabemos que os indivíduos quando em grupo são também capazes


de grandiosas realizações. A “alma coletiva é capaz de geniais criações do espírito,
como a própria língua demonstra, acima de tudo, e também o canto popular, o
folclore etc.” (FREUD, 1921/2012, p. 33). Os indivíduos reunidos são agentes dos
mais bárbaros atos, mas também são capazes de produções intelectuais de suma
grandeza. Essa aparente contradição propiciou o surgimento de teóricos que se
dedicaram a analisar esse segundo aspecto das massas.

Essa distinção já estava presente em McDougall (1927) ao diferenciar as


massas organizadas das não organizadas. Ao deparar-se com essa questão, o
psicólogo britânico elenca cinco condições para a elevação da vida anímica da
massa a um nível superior. A primeira é a continuidade de sua existência; a segunda
é que haja uma concepção de sua natureza, função, realizações e reivindicações; a
terceira é que haja rivalidade entre distintos movimentos de massa; a quarta é que
deve haver tradições, costumes e disposições semelhantes entre os indivíduos que
a compõem; e a última e quinta condição é que os indivíduos se diferenciem e se
especializem no interior da massa.

Com base nas contribuições de Le Bon e McDougall, Freud se interroga e


analisa o fenômeno de massa, do ponto de vista da psicanálise. Ele volta-se então à
questão da sugestão que permeia ambos os tipos de massa e retoma o conceito
psicanalítico de libido para compreender a psicologia das massas - libido, cujo
correlato no senso comum é denominado de amor. Sua justificativa para tal é que a
investigação psicanalítica havia demonstrado que a palavra amor não se limita à
união carnal e sexual; o amor também engloba outras expressões como o amor a si
mesmo – amor narcísico -, o amor aos pais e aos filhos, a amizade, o amor aos
seres humanos e a dedicação a objetos concretos e ideias abstratas.

Todas essas formas de amor são manifestações “dos mesmos impulsos


instintuais que nas relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras
circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas
sempre conservam bastante de sua natureza original, o suficiente para manter sua
identidade reconhecível (abnegação, busca de aproximação)” (FREUD, 1921/2012,
p. 43).

Freud lança então a hipótese de que relações de amor ou ligações libidinais,


para utilizarmos termos psicanalíticos, constituem a essência da alma coletiva.
86

Ligações libidinais estariam ocultas atrás do biombo da sugestão e teriam papel


fundamental nos laços estabelecidos pelos indivíduos integrantes das massas,
sejam elas organizadas ou não. Para Freud o que diferencia esses dois tipos de
massa é fundamentalmente a função desempenhada por um líder, a qual foi
negligenciada tanto pelo autor francês quanto pelo britânico.

A questão do líder será desenvolvida posteriormente, uma vez que


enfatizaremos a seguir outro aspecto que nos parece pertinente para mostrar a
possibilidade de uma leitura que enfatiza essa dualidade de comportamento do
indivíduo nas massas, que ora se comporta como um bárbaro, ora como um gênio
capaz de criações significativas para o desenvolvimento cultural, social e político da
sociedade.

Para tanto, utilizaremos os conceitos psicanalíticos de pulsão de vida e de


morte, os quais instauram sua segunda e última concepção do aparelho psíquico53.
Essa nova concepção do dualismo psíquico começou a ser esboçada entre março e
maio de 1919, quando Freud redigiu a primeira versão de Além do princípio do
prazer, momento em que introduziu a concepção da pulsão de morte. A versão final
foi publicada em 1920, um ano antes da publicação de Psicologia das massas e
análise do eu. Sua reformulação da teoria do aparelho psíquico se torna definitiva
em 1923 com a publicação de O eu e o id.

Cabe, portanto, fazermos uma leitura psicanalítica do fenômeno de massa a


partir da segunda tópica freudiana, pois ela nos parece propícia e profícua, uma vez
que os indivíduos na massa deixam transparecer em seus atos aquilo que é
constituinte de sua psique. Principalmente se considerarmos que o conceito de libido
– essência da alma coletiva e fonte energética das pulsões -, opera em tudo o que
se relaciona ao amor.

A introdução do conceito de narcisismo propiciou uma virada na teoria


freudiana, que culminou com a reformulação da teoria do aparelho psíquico, o qual
estaria submetido a um novo dualismo em que se contrapõem as pulsões de vida –
Eros - e as de morte – Thanatos. As pulsões de morte, que a princípio eram apenas
uma consideração especulativa, tornaram-se parte integrante da teoria freudiana. É

53
A concepção do aparelho psíquico, conhecida, também, como tópica, sofreu modificação no decorrer da
elaboração da teoria psicanalítica. Há duas concepções tópicas ou concepções do aparelho psíquico. A primeira,
é composta pelas instâncias psíquicas consciente, pré-consciente e inconsciente, por sua vez, na segunda tópica
as instâncias são id, ego e superego.
87

no embate entre Eros e Thanatos, entre as pulsões de vida e de morte, que os


indivíduos atuam no mundo; amor e ódio os regem.

Dessa maneira, os indivíduos, ao se reunirem em prol de um ideal comum,


identificam-se uns aos outros e são capazes de cometer atos que individualmente
não cometeriam, e a agressividade pode escoar livremente e direcionar-se para fora
do grupo. Os indivíduos reunidos no amor se engrandecem e se potencializam,
regredindo a posições narcísicas, nas quais as barreiras do superego não operam
em toda sua potência; tal regressão consente-lhes o escoamento de seus instintos
agressivos. Foi, justamente, o que Le Bon identificou nas atitudes bárbaras dos
revolucionários franceses.

Os atos agressivos evitam a autodestruição, visto que uma parte da pulsão de


morte “se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de
agressão e destruição” (FREUD, 1930/2012, p. 86). Preserva-se o eu a expensas de
outrem; Thanatos atua sob a influência de Eros, “na medida em que o vivente
destruiria outras coisas, animadas ou inanimadas, em vez de si próprio” (p. 86). A
luta pela vida, portanto, é marcada tanto pela pulsão de vida quanto pela de morte.
Freud mostrou em diversas ocasiões “que a tendência à destruição de outrem ou de
si mesmo é mais manifesta, em que a fúria de destruição é mais cega, que pode
estar sempre presente uma satisfação libidinal” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p.
409).

Diante dessas considerações, não é estranho que em momentos políticos de


instabilidade como na Revolução Francesa os jacobinos tenham se tornado
bárbaros, ainda que lutassem pelos ideais nobres de liberdade, igualdade e
fraternidade, pois os revolucionários franceses revelaram nas massas aquilo que é
constitutivo da psique humana: a luta entre vida e morte, entre Eros e Thanatos. Os
indivíduos em massa podem potencializar a agressividade que lhes é inerente.
Como sabiamente salienta Enriquez (1999):

[...] se a massa sonha, o indivíduo também sonha, ele não renuncia


facilmente a um ‘prazer momentâneo’, mesmo se este é ‘incerto em suas
consequências’. Ele deseja certezas e não o saber; o impossível o fascina e
o excita. Então não existe, como pensava Le Bon, uma barreira radical entre
massa e indivíduo. Freud nos leva à hipótese de que a massa só faz
acentuar as forças que, habitualmente, guiam o indivíduo. Sabemos que
nossos atos voluntários são apenas parte de nossos comportamentos e, às
vezes, os menos significativos. A ‘neurose’ da massa é, portanto, uma
amplificação da ‘neurose individual’ consubstancial à própria condição
88

humana. De forma alguma ela pode aparecer como um fenômeno de


essência diferente. (p. 59)

Por conseguinte, das análises feitas por Freud, evidencia-se que a distinção
entre massa e multidão, como apregoam alguns teóricos como Michael Hardt e
Antonio Negri, não se sustenta. Concordamos, assim, com William Mazzarella
(2010) que, em um artigo intitulado The Myth of the Multitude, or, Who’s Afraid of the
Crowd?, contesta a ideia de que as massas devam ser temidas, porque são
heterônomas, ou as multidões idealizadas, por propiciarem a autonomia. Sua análise
do fenômeno é nitidamente sociológica, na qual o autor sugere que a distinção entre
massa e multidão é engendrada com o intuito de reproduzir uma enganosa distinção
temporal entre as fases passadas e presentes da modernidade.

A nossa, por sua vez, é psicológica e baseia-se na questão da agressividade


presente nos grupos, seja eles considerados como massa, seja como multidão. É
nesse sentido que advogamos que ela está presente tanto nos grupos organizados
como a Igreja e o Exército, quanto nos não-organizados. O que buscamos salientar
é que, em ambos, a agressividade aflora devido à impossibilidade de separarmos a
análise do coletivo da dos indivíduos que o compõem, como Freud tão bem
demonstra em seu texto.

Alguns anos após, sua carta-resposta a Albert Einstein – Porque a guerra? –


deixa ainda mais evidente que a coletividade une os semelhantes e aparta
violentamente os diferentes. A psicologia da massa está intrinsecamente ligada à
questão da agressividade, e não é algo que tende a ser eliminado com o passar do
tempo, basta um olhar sobre a história da humanidade para verificarmos “uma série
infindável de conflitos entre uma comunidade e outra ou várias outras, entre
unidades maiores e menores, cidades, províncias, tribos, povos, reinos, que quase
sempre são resolvidos mediante a prova de força da guerra” (FREUD, 1932/2012, p.
423).

Assim, a psicologia da massa reflete a própria psicologia do indivíduo; a


agressividade emerge invariavelmente porque está relacionada às pulsões de vida e
de morte que regem a vida psíquica dos seres humanos. Ele adverte a Einstein “que
os instintos humanos são de dois tipos apenas: os que tendem a conservar e unir –
nós os chamamos de eróticos, exatamente no sentido de Eros, no Banquete de
89

Platão – e os que procuram destruir e matar, que reunimos sob o nome de instinto
de agressão ou destruição” (FREUD, 1932/2012, p. p. 426).

Portanto, nos fenômenos de massa, vemos emergir amor e ódio e seus


correlatos psicanalíticos Eros e Thanatos; esses dois instintos são indispensáveis à
política, uma vez que eles agem concomitantemente nos fenômenos da vida. Sendo
a política um campo de disputa de poder, não há como deixar de observar que
estamos sempre diante de uma luta entre esses deuses do olimpo, pois eles regem
a nós e às coletividades a que pertencemos, como afirma Freud ao abordar a
questão da luta pelo poder e suas consequências para o direito:

[...] o direito da comunidade se torna expressão das desiguais relações de


poder em seu interior, as leis são feitas por e para os que dominam,
reservando poucos direitos para os dominados. Daí em diante há duas
fontes de inquietação relativamente ao direito na comunidade, mas também
de aperfeiçoamento do direito. Primeiro, tentativas de alguns dos senhores
de se colocarem acima das restrições vigentes para todos, ou seja,
retrocederem do domínio do direito para o domínio da violência; segundo,
constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter essas
mudanças reconhecidas em lei – para, bem ao contrário, ir do direito
desigual ao direito igual a todos. Essa última corrente se torna
particularmente significativa quando no interior da comunidade há
verdadeiros deslocamentos nas relações de poder, como pode ocorrer
devido a fatores históricos diversos. Então o direito pode gradualmente se
adequar às novas relações de poder ou, o que é mais frequente, a classe
dominante se recusa a levar em conta essa mudança, e chega-se à
rebelião, à guerra civil, ou seja, à temporária suspensão do direito e a novos
ensaios violentos, após os quais é instaurada uma nova ordem jurídica.
(FREUD, 1932/2012, p. 422-423)

Tal citação, ainda que extensa, revela o quanto os textos freudianos são
políticos e atuais e podem fornecer subsídios para refletirmos sobre a questão da
atualidade política nacional, especialmente, sobre os avanços sociais e políticos que
a população brasileira adquiriu mediante os governos do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e de Dilma Rousseff. São incontestáveis os ganhos significativos que as
classes populares tiveram sob o comando desses presidentes. Não obstante, a
classe política dominante se recusou a assimilar tais mudanças e contra-atacou de
forma torpe e ilegítima, ainda que tenha, para tanto, utilizado de instrumentos
constitucionais e legais como o impedimento da presidente eleita democraticamente.

Não estamos aqui defendendo atos de corrupção que tenham assolado tais
governos. Nosso intuito é mostrar que, diante dos avanços de direitos, houve o
surgimento de movimentos de massa violentos de ambas as partes, para ilustrar que
tanto à direita quanto à esquerda do espectro político as massas voltaram às ruas e,
90

com elas, a violência e a agressividade emergiram, o que comprova, por um lado, a


união de semelhantes em oposição aos desiguais. Eros e Thanatos invadiram as
ruas brasileiras. Cada grupo uniu-se no amor e liberaram seu ódio ao grupo oposto,
dividindo o país.

Interessante observarmos que, de um lado, há o clamor pela volta da


presidente, cujo governo está sendo acusado de corrupção, de outro, há
reivindicação pela volta dos militares ao poder e exaltação de políticos como
Eduardo Cunha e Aécio Neves, cujos nomes estão envolvidos no mesmo tipo de
delito. O que isso significa? Parece-nos que ambos os grupos clamam por uma
figura de poder, por alguém ou por um ideal que possa uni-los. Ainda que tanto à
direita quanto à esquerda haja suspeição de corrupção, ambos os lados não se
igualam, pois diferem ideologicamente. Enquanto o primeiro busca melhorias
sociais, promovendo uma sociedade menos desigual e injusta, menos perversa, o
segundo, visa os interesses das grandes corporações econômicas, haja vista as
propostas reformistas, que visam a eliminação de direitos sociais e trabalhistas.

Podemos, agora, voltarmos ao papel do líder e os laços libidinais


estabelecidos entre os indivíduos da massa. A presença de um líder, seja ele qual
for, favorece o estabelecimento de um duplo vínculo libidinal, os quais são
fundamentais para que a massa possa subsistir. Isso leva Freud a explicitar os
mecanismos e processos de identificação, cuja base encontra-se na figura mítica de
Eros, no amor; “a massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a que poder
deveríamos atribuir este feito senão a Eros, que mantém unido tudo o que há no
mundo?” (FREUD, 1921/2011, p. 45). Através de Eros podemos explicar, assim, os
laços estabelecidos entre os indivíduos na coletividade e o líder.

O líder, seja ele personificado, seja uma ideia, é colocado numa posição
objetal. Como objeto ele permite que os indivíduos o coloquem como um substituto
de seu próprio eu. “Ele é amado pelas perfeições a que o indivíduo aspirou para o
próprio Eu, e que através desse rodeio procura obter, para satisfação de seu
narcisismo” (FREUD, 1921/2011, p. 71). Assim, “o Eu se torna cada vez menos
exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais sublime, mais precioso; chega
enfim a tomar posse do inteiro amor-próprio do Eu, de modo que o autossacrifício
deste é uma consequência natural” (p. 72). É por esse mecanismo psicológico que
os indivíduos na massa tendem a obliterar qualquer pensamento racional e se
91

entregam irracionalmente diante do objeto amado. Seu senso crítico é rebaixado e a


realidade objetiva perde seu valor, havendo, portanto, um eclipse da razão. Por
outro lado, esse mesmo rebaixamento do ego e a elevação do objeto pode levar a
atos heroicos e desenvolvimento culturais relevantes.

É por meio desse processo psíquico individual que Freud (1921/2011) explica
o fenômeno de massa e estabelece a conexão entre a psicologia coletiva e a
individual. A massa, revela o autor, “é uma quantidade de indivíduos que puseram
um único objeto no lugar de seu ideal de Eu e, em consequência, identificaram-se
uns com os outros em seu Eu” (p. 76). A relação entre a psicologia individual e a
coletiva foi representada graficamente por Freud, o que reproduzimos a seguir.

Fonte: Extraído de Freud, 1921/2011, p. 76.

Este gráfico permite-nos visualizar mais claramente o que Freud está


propondo em sua análise. No esquema, ele apresenta um grupo reduzido com
apenas três indivíduos que estão identificados pela palavra Eu; cada um desses
indivíduos identifica-se com um objeto singular que representa seu ideal de Eu,
porém na presença de um objeto externo – um líder ou uma ideia – ele é unificado.
Essa unificação é representada pelas linhas tracejadas. Assim, os distintos
indivíduos na massa identificam-se com o objeto externo e o transformam em um
ideal do Eu coletivo, o qual é comungado, permitindo que os laços libidinais entre os
indivíduos se estabeleçam e fortaleçam o laço libidinal com o objeto externo.

A análise de dois coletivos organizados – Igreja e Exército - em torno de uma


liderança permitiu a Freud estabelecer essa conexão, até então, impensada, e que é
fundamental para repensarmos o social e a política, uma vez que a coletividade, ao
se estabelecer, exclui tudo e todos que diferem, possibilitando a inclusão e exclusão
de indivíduos de acordo com o ideal de eu que a coletividade gera.
92

A exclusão e a consequente violência ocorrem na própria religião. Assim, o


cristianismo “que se denomina a religião do amor, tem de ser dura e sem amor para
com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião de
amor para aqueles que a abraçam, e tendem à crueldade e à intolerância para com
os não seguidores” (FREUD, 1921/2011, p. 54).

Se, por um lado, essa questão religiosa é importante, por outro, não é menos
importante para outros tipos de ligações libidinais coletivas. Para evidenciar sua
assertiva conclusão sobre o que ocorre psicologicamente no fenômeno de massa,
Freud (1921/2011) refere-se ao sistema político socialista que ascendia no oeste
europeu afirmando que “se outra ligação de massa toma o lugar da religiosa, como a
socialista parece estar fazendo, ocorre a mesma intolerância com os de fora que
havia na época das lutas religiosas” (p. 54). Vemos nessa extensão que o autor faz
a eventos políticos de sua época que o fenômeno de massa, quando explicado à luz
da psicologia profunda, tende a se repetir.

Isso explica porque tantos alemães aderiram cegamente ao ideal da raça


ariana e cometeram crimes hediondos que levaram milhões de indivíduos às
câmaras de gás. Assim, judeus, deficientes, ciganos e homossexuais foram vítimas
de exclusão pelo regime nazista. Entretanto, esse mesmo processo psicológico
identificado por Freud serve de ferramenta para refletirmos sobre os movimentos
sociais que impulsionaram o surgimento de uma sociedade mais igualitária.

A luta pelo voto feminino, o ideal de igualdade de gênero do movimento


feminista, a inclusão daqueles que sofrem de transtornos mentais, bandeira do
movimento antimanicomial, a não discriminação racial que levou à guerra da
secessão nos Estados Unidos e tantos outros movimentos sociais são regidos pelo
mesmo processo psicológico que une o indivíduo à coletividade e possibilita o
empoderamento de coletivos e indivíduos que até então estavam à margem da
sociedade. Um exemplo mais recente são os direitos adquiridos pelo movimento
LGBT.

Fica visível não apenas como indivíduo e sociedade estão inexoravelmente


ligados, mas também a assimetria existente nesta relação, como enfatizou Theodor
Adorno (2015a) em suas reflexões acerca da relação psicologia e sociologia. É
válido, portanto, afirmar que esse distanciamento entre a psicologia e a sociologia,
entre indivíduo e sociedade, não é somente aparente; é, simultaneamente falso e
93

verdadeiro. Esse atravessamento do social deixa marcas indeléveis no psiquismo e


influencia não apenas como os indivíduos se colocam em sociedade, mas, também,
a maneira como esta trata as singularidades divergentes. Na comunidade natural: o
banimento; na sociedade vitoriana: a institucionalização; na sociedade
contemporânea: o embate político.

Nesse sentido, recordamos que Freud, em sua autobiografia, enfatiza que a


psicanálise adquire outro significado; ela vai além de sua aplicação terapêutica.
Retomemos suas palavras acerca da amplitude de suas descobertas:

Raramente esta ciência é capaz de resolver um problema por si só; mas


parece destinada a contribuir de modo relevante a diversos campos do
saber. A área de aplicação da psicanálise tem a mesma extensão que a da
psicologia, à qual fornece um complemento de grande envergadura.
Posso então dizer, voltando o olhar para o trabalho de minha vida até o
momento, que iniciei muitas coisas e lancei muitas sugestões, de que algo
deve resultar no futuro. Mas eu mesmo não saberia dizer se será muito ou
pouco. Posso apenas manifestar a esperança de haver aberto o caminho
para um importante progresso em nosso conhecimento. (FREUD,
1925/2011, p. 162)

Parece-nos que suas palavras foram proféticas, uma vez que suas
contribuições continuam a interessar outros campos do saber. É com esse intuito
que nos empenhamos a mostrar que a psicanálise pode contribuir à psicologia
política. Para tanto, abordaremos adiante o texto social freudiano que no nosso
entender é ímpar: O mal-estar na civilização. Antes, entretanto, traremos
brevemente algumas considerações sobre o texto O futuro de uma ilusão, texto que
o antecede.

3.4. Entre duas ilusões

Em 1927, Freud publica O futuro de uma ilusão. Apesar desse texto abordar
diretamente a questão religiosa, ele é importante porque abre caminho a suas
reflexões posteriores sobre os mal-estares na civilização ou na cultura. Ainda que
possamos questionar a diferenciação entre cultura e civilização, o autor adverte que
ele não faz distinção entre ambas, pois ambos os termos significam o conjunto de
saberes e técnicas adquiridos pelos indivíduos que os distinguem da natureza, ou
seja, de sua dimensão animal.

Ambos os termos representam, para o autor, dois aspectos indissociáveis. O


primeiro envolve todos os conhecimentos e habilidades adquiridos pelo homem com
94

o intuito de controlar as forças da natureza para satisfazer suas necessidades; o


segundo, por sua vez, envolve todas as instituições regulatórias das relações entre
os indivíduos. Essa inexorável conexão entre esses dois aspectos é consequência
de três fatores: primeiro, porque a relação entre os indivíduos é influenciada pelo
grau de satisfação instintual que os bens adquiridos possibilitam; segundo, porque o
próprio indivíduo pode constituir-se como um bem material; e terceiro, porque todo
indivíduo traz em sua constituição um componente narcísico, que o coloca em
oposição à cultura.

Freud enfatiza, então, que todos os regulamentos, instituições e decretos


produzidos pela civilização têm como objetivo último protegê-la dos impulsos hostis
dos seres humanos, o que deixa a “impressão de que a civilização foi algo imposto a
uma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se apropriar dos meios de
poder e de coação” (FREUD, 1927/2014, p. 234).

Podemos, portanto, ver nessa concepção freudiana de civilização, com a qual


concordamos, uma organização que permite estabelecer relações com as políticas
dominantes que, invariavelmente, detêm o poder para subjugar a grande maioria dos
indivíduos. Os governantes como líderes políticos representam o protótipo desse
tipo organizacional, que impede a grande maioria da população de desfrutar dos
benefícios da civilização. Entretanto, essa tendência dos políticos em legislar em
causa própria, que evidencia uma posição narcísica, não é exclusividade deles.
“Muitíssimas pessoas civilizadas, [...], não se negam à satisfação da sua cobiça, de
seu prazer em agredir, de seus apetites sexuais, não deixam de prejudicar outras
com mentiras, fraudes e calúnias se puderem fazê-lo impunemente, e assim sempre
foi, ao longo de muitas épocas da civilização” (FREUD, 1927/2014, p. 242).

Fica evidente que os indivíduos buscam invariavelmente sua satisfação


narcísica. Isso fica ainda mais patente quando analisamos as diferentes culturas,
pois cada qual tende a se engrandecer e simultaneamente menosprezar as outras.
Pequenas diferenças culturais levaram países vizinhos a se hostilizarem e inúmeras
vezes essa distinção levou a conflitos sangrentos. Lembramos ainda que a
satisfação narcísica é motor de conflitos no interior de uma mesma cultura.

Se, por um lado, o ideal cultural de uma civilização leva os indivíduos a


lutarem pela manutenção de uma identidade nacional, por outro, aqueles indivíduos
que são oprimidos em sua cultura se igualam e desejam a mesma satisfação que é
95

privilégio de poucos nessa mesma cultura. Eles veem em seus senhores seu próprio
ideal; surgem assim os conflitos internos relacionados à classe, à raça, à
sexualidade e a tantos outros aspectos que os diferenciam de seus senhores.

Essa relação desigual leva Freud (FREUD, 1927/2014) a comparar a


situação dos indivíduos na cultura com a situação vivida pelo infante, proporcionado
novamente a relação entre a psique coletiva e a individual. Tanto o indivíduo adulto
em uma sociedade desigual quanto a criança encontram-se desamparados.
Portanto, a experiência humana em uma situação de desigualdade perante aqueles
que detêm o poder e consequentemente privilégios “não é nova, ela tem um modelo
infantil; é, na realidade, apenas a continuação daquela anterior, pois o indivíduo já
se encontrou assim desamparado” (p. 249). Para melhor entendermos essa questão
e como ela está ligada às ilusões que criamos é necessário elucidarmos o conceito
psicanalítico de desamparo – Hilflosigkeit.

Todo ser humano nasce em estado de desamparo devido à imaturidade


biológica. Diferentemente dos outros animais, os seres humanos necessitam de
alguém que dê suporte à sua existência nos primeiros anos de vida; caso contrário
suas chances de sobrevivência diminuem consideravelmente. Esse desamparo
privilegia o aparecimento de uma relação dual muito intensa entre o recém-nascido e
os cuidadores primários, objetos externos ao eu. O infante depende inteiramente de
outrem para a satisfação de suas necessidades básicas de subsistência como a
fome e a sede. Como eles são incapazes de ações coordenadas e eficazes para
satisfazê-las, desde a mais tenra idade os indivíduos são assolados por esses
perigos de aniquilamento do eu e tornam-se dependentes de alguém que possa
aplacar o desprazer que as necessidades biológicas lhe causam.

É nesse sentido que Freud reconhece, em Inibição, sintoma e angústia, a


base biológica do estado de desamparo, afirmando que:

A existência intrauterina do ser humano mostra-se relativamente breve,


comparada à maioria dos animais; ele é trazido ao mundo ‘menos’ pronto do
que eles. Por isso a influência do mundo real externo é reforçada, a
diferenciação do Eu em relação ao Id é logo promovida, os perigos do
mundo externo têm sua importância elevada, e o valor do único objeto
capaz de proteger contra esses perigos e tomar o lugar da vida intrauterina
perdida é bastante aumentado. Portanto, o fator biológico dá origem às
primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, que
jamais abandona o ser humano. (FREUD, 1926/2014, p. 101)
96

Diante do desamparo a criança superestima os objetos externos que são


capazes de aplacar a angústia proveniente do desamparo. Os indivíduos adultos, no
intuito de “afastar os terrores da natureza, conciliar os homens com a crueldade do
destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e compensá-los pelos
sofrimentos e privações que lhes são impostos pela vida civilizada que partilham”
(FREUD, 1927/2014, p. 250), se apegam a criações ilusórias.

Assim todos os terrores, sofrimentos e durezas da vida estão fadados à


extinção; a vida após a morte, que dá continuidade à nossa vida terrena, tal
como a parte invisível do espectro se acrescenta à visível, traz toda
perfeição de que podemos ter sentido falta aqui. E a superior sabedoria que
dirige esse desenvolvimento, a infinita bondade que nele se manifesta, a
justiça que nele se implementa, são os atributos dos seres divinos que
também nos criaram, a nós e ao mundo como um todo. (FREUD,
1927/2014, p. 252)

As concepções religiosas nada mais são do que ilusões que visam aplacar a
dor da existência, tal qual o pai amado e temido que nos protegeu e nos castigou.
Se no início de nossas vidas o pai encarnado é engrandecido e visto como fonte de
proteção ao nosso desamparo, a ideia de Deus separa definitivamente a alma do
corpo. Enquanto o corpo padece, a alma é enaltecida. Assim, os indivíduos se
apegam a um ideal de eu de perfeição, que aplacaria até mesmo a possibilidade da
angústia, e se identificam com seu objeto. A ideia de Deus como o protetor supremo
é capaz de nos proteger de um dos enigmas de nossas existências que é a morte.
Crer em uma alma que transcende é uma ilusão que elegemos para lidarmos com a
própria morte e tantos outros terrores que nos assombram. Life is tough!

Ilusão, de acordo com Freud, está relacionada à realização de um desejo e,


por conseguinte, não pode ser considerada como um erro, pois ela não se submete
à realidade. Assim, a unificação dos deuses em um ser etéreo, por isso mesmo mais
forte e eficaz, fortalece sua imagem; um ser onipotente, onisciente e onipresente é
capaz de aplacar qualquer dor existencial e qualquer angústia a ela associada.
Portanto, a crença nos preceitos divinos é uma ilusão conectada à angústia
proveniente do estado de desamparo e na consequente necessidade de amparo, de
sermos cuidados e protegidos. As crenças religiosas nascem no amor.

Amor pelo onipotente, pelo pai, de quem cada indivíduo sente nostalgia,
amor por um ideal criado para se defender de sua própria impotência ou
para negá-la, amor pronto para fixar-se em qualquer figura paterna
substituta (mestre, educador, terapeuta). Trata-se sempre de repor sua
própria vida nas mãos de uma (ou várias) imagem investida da capacidade
de onipotência (deus, ancestral, chefe guerreiro, profeta, taumaturgo), com
97

objetivo de assegurar, como resposta, sua benevolência, sua proteção e


seu amor, ou seja, a certeza da salvação. (ENRIQUEZ, 1999, p. 87)

As palavras do psicólogo francês são significativas por transcreverem de


forma sucinta o enlace psicológico individual e subjetivo com o fenômeno religioso,
que está relacionado ao momento de nossas vidas em que necessitamos proteção,
sem a qual nossas possibilidades de sobrevivência são ínfimas. Momento em que as
figuras parentais não só nos nutrem, saciam nossa sede, mas, sobretudo,
estabelecem relações emocionais que deixam marcas psicológicas.

Nesse sentido, as crenças religiosas per se são fundamentais ao psiquismo


humano, pois, after all, elas diminuem nossas angústias. Por que então a oposição
de Freud? Ao estabelecer a relação entre o desejo de proteção do infante e as
crenças religiosas, Freud explica o porquê de as crenças religiosas persistirem e
prosperarem, visto que elas estão indelevelmente sustentadas em um substrato
psicológico: Hilflosigkeit. Portanto, a crença religiosa joga em favor do princípio do
prazer uma vez que é capaz de aplacar o estado de desamparo, nos afastando do
desprazer proveniente da angústia diante de nossas dores. Nesse sentido ela
produz um gozo.

Nosso questionamento é o mesmo de Freud, ao introduzir no texto seu


interlocutor imaginário, que atualmente é reconhecidamente o pastor e psicanalista
Oskar Pfister e está baseada na constatação de que inumeráveis “pessoas têm nas
doutrinas religiosas o seu único consolo, apenas com o auxílio delas podem suportar
a vida. Pretende-se privá-las desse apoio, e não se tem nada de melhor para lhes
dar em troca” (FREUD, 1927/2014, p. 273), contrapõe-se Freud.

Seguem-se diversos questionamentos entre Freud e seu interlocutor, cujo


foco principal é, por um lado, a defesa da laicidade da educação e, por outro, o caos
que poderia advir da abolição da educação com base na religião, afinal o que
aconteceria caso fosse retirado seu único consolo capaz de faz frente ao inexorável
sofrimento da existência humana. Poderíamos inferir que Freud defende uma
educação voltada à realidade, cujo veículo seria a crença na ciência, a ilusão
científica, como revida seu interlocutor Pfister, que defende a religiosidade como
meio de aplacar a angústia, a ilusão religiosa contra o caos na civilização.

Esse debate interno que Freud estabelece com seu interlocutor imaginário,
reflete o debate externo que ele mantivera com o pastor Pfister. Roudinesco e Plon
98

(1998) relembram que, numa carta endereçada ao pastor – datada de 25 de


novembro de 1928 –, “Freud esclarece que, ao tratar da análise leiga, pretendia
proteger a psicanálise dos médicos, ao passo que, em O futuro de uma ilusão,
procura defendê-la dos padres” (p. 287).

Diante dessa questão Freud não poupa esforços em mostrar o quanto a


ilusão religiosa é danosa, pois ela impede não apenas a educação para a realidade,
mas, sobretudo, a ascensão ao pensamento científico que possibilita a dúvida e o
questionamento. Impede, em suma, a desnaturalização das diferenças culturais e
sociais. Ele defende nitidamente sua posição ao se opor à pedagogia vigente que
era influenciada pela educação religiosa que atrofia a radiante inteligência de uma
criança. Segue sua reflexão:

Acho que uma criança livre de influência demoraria muito para começar a
refletir sobre Deus e as coisas do além. [...], incutimos nela as doutrinas
religiosas numa época em que não tem interesse por elas nem capacidade
de lhes compreender o alcance. Postergação do desenvolvimento
intelectual e antecipação da influência religiosa – não são esses os dois
pontos principais na agenda da pedagogia atual? Quando o intelecto da
criança desperta, as doutrinas religiosas já se tornaram inatacáveis.
(FREUD,1927/2014, p. 289)

Ainda que o autor se coloque claramente contra as ilusões religiosas, pois


elas tendem a obstruir o acesso ao conhecimento científico e a uma educação para
a realidade, ele manifesta certo otimismo, que não lhe é característico, quanto ao
futuro derradeiro dessas ilusões mesmo para aqueles indivíduos pertencentes à
parcela oprimida da sociedade, os quais “têm todas as razões para serem inimigos
da civilização. Enquanto não sabem que não se acredita mais em Deus, tudo está
bem. Mas saberão, infalivelmente, mesmo que esse livro não seja publicado”
(FREUD, 1927/2014, p. 278-279).

A ideia de que a massa de oprimidos infalivelmente abandonará sua crença


em Deus soa otimista, mas, por sua vez, revela certa ingenuidade quanto ao poder
político que a religião adquire quando é institucionalizada pelos homens. O poder
político da instituição Igreja é inquestionável e persiste. Persiste como tradição: os
reis e rainhas, mesmo nos países mais desenvolvidos, são ainda coroados por um
clérigo; persiste de fato, quando apela ao desamparo psicológico característico do
ser humano para manter seu poder.
99

A Igreja não somente nos livra da morte, pois continuamos vivos enquanto
espírito. A Igreja nos garante a plenitude, mas em retorno nos demanda de forma
impositiva a abdicação de nossos impulsos. Lembremo-nos que Moisés trouxe, de
seu encontro com o Senhor, as tábuas com os dez mandamentos: dos quais oito
iniciam com o imperativo negativo e ou demais são no imperativo positivo de louvor
a Deus e aos pais. Ele garante que a alma viva eternamente em Deus, mas em
contrapartida os indivíduos pagam com suas almas, as quais passam a ser
submetidas aos ditames morais e religiosos.

A institucionalização da crença se dá à custa da abdicação do princípio do


prazer a submissão os pais e ao pai maior, Deus. Os quais, por sua vez, são
aqueles que transmitem as primeiras interdições, os ordenamentos sociais. Uma
instituição com tais poderes regulatórios sobre nossas almas, mas, também, sobre
nossos desejos mais carnais, não pode ser subestimada como uma força social e
política. O poder da religião como instituição foi o que mais fez uso do sentimento de
desamparo que a psicanálise tratou de abordar. Ao fazer uso do desamparo, a Igreja
regula as emoções e as pulsões a partir de substratos psíquicos; age tal qual um
verme que se alimenta de das entranhas, que os hospeda.

Considerando o poder da Igreja e a rigidez de suas doutrinas não podemos


deixar de observar, por um lado, a repressão institucionalizada, por outro o poder
político que isso representa. Assim as doutrinas religiosas vão sendo imiscuídas
naquilo que os seres humanos têm de mais subjetivo: sua psique. A história da
humanidade é prova cabal das atrocidades cometidas, que estão sendo cometidas e
que virão a ser cometidas em nome de Deus. O fato das diferentes igrejas
condenarem atrocidades, pois não representam o pensamento religioso, não
significa que suas doutrinais tenham se atualizado. Tanto não se atualizaram que
vemos suas marcas indeléveis em crimes cometidos em nome das três grandes
religiões monoteístas.

Freud já havia revelado o poder repressivo da religião em 1907, quando


estabelece relação entre Atos obsessivos e práticas religiosas. Na ocasião ele
escreve:

A renúncia progressiva aos instintos constitucionais, cuja ativação


proporcionaria o prazer primário do ego, parece ser uma das bases do
desenvolvimento da civilização humana. Uma parcela dessa repressão
instintual é efetuada por suas religiões, ao exigirem do indivíduo que
100

sacrifique à divindade seu prazer instintual: ‘A vingança é minha, diz o


Senhor’. (FREUD, 1907/1996, p. 116-117)

Se uma parcela da repressão provém das doutrinas religiosas que impede a


vida plena, pois demanda retidão e o afastamento de qualquer sinal de tentação,
não podemos negar seu poder político.

As religiões não se limitaram a exercer seu poder político a partir de seus


púlpitos, elas foram aos palanques, aos comícios e chegaram aos cargos políticos
da ordem social constituída; e, assim, ganharam mais poder. Nesse novo lugar que
ocupam, não necessitam o poder do convencimento, pois a eles cabem a tarefa de
tornar decreto a palavra divina. Basta observarmos o movimento da bancada
evangélica em nosso Congresso Nacional para termos a clareza do poder religioso
como poder político54. A influência dessa parcela de congressistas sobre as
questões sociais é no mínimo uma afronta à laicidade do Estado; eles não se
contentam em controlar a alma de seus crentes, eles buscam regular nossos corpos
e nossas relações, através de leis propostas por, ou influenciadas pelos, homens de
Deus.

A Igreja “provoca o desaparecimento do trabalho do pensamento, o qual


comporta interrogação, dúvida, exercício, experiência” (ENRIQUEZ, 1999, p. 87); ela
provoca o embotamento do ser. Seu poder político daí reside, pois há um
obscurecer de qualquer possibilidade de exercício racional, um credo quia
absurdum, que pode e está demonstrando seu poder. Vide os últimos atos
terroristas cometidos em nome de Allah; as igrejas católicas queimadas na Índia; o
eterno conflito entre muçulmanos e judeus; as campanhas antiaborto; a definição
constitucional de família; questões ligadas à educação sexual...

Enquanto a Igreja tentar reger todas nossas relações privadas, como eram
regidas na época em que foram estabelecidas suas doutrinas básicas, ela será
anacrônica, nem por isso menos poderosa politicamente. Talvez, os estritos
mandamentos religiosos sejam os principais responsáveis pelo seu poder, pois
somente aqueles que seguem uma vida dedicada a servir o Senhor terão a garantia
de a Ele juntar-se. Uma ilusão que não é qualquer, com ela sua alma está em eterna
salvação, mesmo que para tanto o corpo padeça e o indivíduo abdique ao prazer e à

54
Nesse sentido, recomendamos Religião e política: ideologia e ação da Bancada Evangélica na Câmara
Federal, de Bruna Suruagy do Amaral Dantas.
101

felicidade em vida, da vida em vida. Nesse sentido, o Senhor etéreo


institucionalizado torna-se político e contribui para a regulação das relações
humanas: um dos mal-estares na civilização, já que a angustia de morte já está
baixo controle. Freud nos coloca diante duas ilusões: ciência ou religião?

3.5. Homo homini lupus

Como deixamos claro anteriormente, consideramos o texto O mal-estar na


civilização singular dentro da obra social freudiana. Por quê? Porque ele sintetiza e
sobretudo explicita a íntima relação entre os conceitos psicanalíticos desenvolvidos
ao longo de sua trajetória como clínico e a sociedade em que viveu. Esse texto se
torna ainda mais ímpar, pois continua sendo atual a despeito dos inúmeros avanços
sociais, culturais e políticos.

Esse texto, em nossa visão, é a concretização do trabalho de Freud como


pensador do social. Moscovici (1985) coloca-o lado a lado a Karl Marx, Albert
Einstein, Charles Darwin, Leonardo da Vinci, Aristóteles, cujas contribuições
perduraram e influenciaram sobremaneira o conhecimento de forma universal; são
pensadores da universalidade, distintamente de Weber, Durkheim e Broglie,
considerados como pensadores da universidade, cujas ideias ficaram circunscritas
aos muros da academia. Consideramos esse texto como a realização de um projeto
de vida, um sonho, ou um desejo que Freud nutria desde quando não tinha a
maturidade intelectual necessária, como ele próprio reconheceu, em 1935, como já
descrevemos no início anteriormente.

Para além dessa suposta realização de um projeto de vida, ele nos é singular
porque nele encontramos elos entre conceitos psicanalíticos – tais como: estado de
desamparo, narcisismo, deslocamento, libido, pulsão de vida e de morte - e a
civilização ou cultura, termos que para ele podem ser utilizados indistintamente, pois
ambos representam “a inteira soma das realizações e instituições que afastam a
nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a
proteção do homem contra a natureza e a regulação dos vínculos dos homens entre
si” (FREUD, 1930/2010, p. 48-49), cujo fim último é a felicidade dos indivíduos.

A distinção, ou não, entre cultura e civilização é tema relevante, que levou a


debates sobre a própria tradução, haja vista a mudança ocorrida no próprio título das
102

edições brasileiras. Enquanto a editora Imago opta traduzir Kultur por civilização, a
Companhia dos Tempos, tradução direta do alemão, é mais fidedigna ao original ao
utilizar cultura. Em suma, a opção de Freud por não diferenciar cultura de civilização
“não é a marca de uma indiferença pessoal ou de uma indiferenciação conceitual.
Essa vontade é ao contrário, altamente polêmica” (LE RIDER, 2002, p.100).
Polêmica à parte, esse texto revela fundamentalmente que a união dos indivíduos
em comunidade não foi capaz de regular totalmente a agressividade que lhes é
inerente, a qual está associada a um dos mal-estares na civilização: a regulação das
relações sociais.

Freud parte, portanto, do singular para o geral, do mal-estar que assola o


indivíduo ao mal-estar na civilização. Foi no L’Hôpital de la Salpêtrière que Freud
deixou-se tocar pelo sofrimento das histéricas. Sua experiência junto a Charcot
ocorreu quando o hospital já não mais abrigava entre sete e oito mil pessoas, cuja
maioria “vivia em ‘um ócio vergonhoso e perpétuo’” (BELLIER, 1992, p. 402) 55.
Várias décadas haviam se passado desde a introdução das ideias inovadoras de
Philippe Pinel, que permitiram a inclusão dos alienados na categoria de doentes
mentais e despertaram o interesse da incipiente psicopatologia.

Foi no renovado hospital que Freud ouve os gritos da dor humana. Vinte anos
passados dessa abalável e reveladora experiência, ele lança Moral sexual civilizada
e doença nervosa moderna, citado anteriormente, cuja ideia principal defendida era
de que a proibição à livre expressão da sexualidade está na gênese das doenças
psíquicas.

Talvez possamos inferir que a dor das histéricas foi seu primeiro encontro
com a inexorável e imbricada relação entre indivíduo e sociedade. Ao escutar o
sofrimento daquelas mulheres, o quanto seus desejos eram negados e reprimidos,
cuja energia reprimida emanava em famosas conversões, Freud pôde constatar
muito cedo que a sociedade se organiza de forma repressiva.

Se nossa inferência é possível, e acreditamos que o seja, ousaremos propor


uma analogia ferroviária distinta daquela proposta por Moscovici (1985), que
mencionamos anteriormente. Reafirmamos, portanto, nossa posição de que os
textos sociais freudianos não são um trem que tomou uma direção inesperada como

55
[…] vivait dans “une honteuse et perpétuelle oisiveté”.
103

afirma o autor francês; foi, antes, um processo de profunda reflexão sobre o mal-
estar individual e subjetivo e sobre a sociedade. Assim, nossa reformulação da
analogia moscoviciana é a de que a metapsicologia e os textos sociais freudianos
sejam vistos como dois trens que se deslocam paralelamente.

Numa linha algumas das principais estações seriam: Estudos sobre a histeria,
A interpretação dos sonhos, Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, Três ensaios
sobre sexualidade, Os chistes e sua relação com o inconsciente, Sobre o
narcisismo, Além do princípio do prazer, O eu e o Id e Inibição, sintoma e angústia.
Na outra: Delírios e sonhos de Gradiva de Jensen, Atos obsessivos e práticas
religiosas, Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, O tabu da virgindade,
Totem e tabu, Psicologia das massas e análise do eu e O futuro de uma ilusão. A
partir de Totem e tabu os dois trens andam lado a lado acoplando-se
ocasionalmente até chegarem juntos à estação principal: O mal-estar na civilização.

Assim, consideramos esse texto a finalização de um projeto de vida.


Inicialmente ambicioso para um jovem médico de vinte e nove anos que vai a Paris e
se defronta com a histeria, porém a maturidade e sua capacidade reflexiva
permitiram-lhe realizá-lo a contento, visto que o mal-estar na civilização persiste.

Não é necessário grande esforço para constatar que a civilização, apesar dos
avanços científicos e tecnológicos, não foi capaz de trazer a tão sonhada e almejada
felicidade aos indivíduos. Diante de guerras político-religiosas no Oriente Médio, da
onda migratória rumo à Europa que ceifa vida de crianças, da ascensão de
movimentos xenófobos e separatistas, da crise econômica mundial, de ataques
homofóbicos e, finalmente, do terrorismo de cunho religioso, é evidente que a
experiência de felicidade fique submetida ao mero afastamento do desprazer, do
mal-estar que nos assola.

Não é de admirar que, sob a pressão de todas destas possibilidades de


sofrimento, os indivíduos costumem moderar suas pretensões à felicidade –
assim como também o princípio do prazer se converteu no mais modesto
princípio da realidade, sob a influência do mundo externo -, se alguém se dá
por feliz ao escapar à desgraça e sobreviver ao tormento, se em geral a
tarefa de evitar o sofrer impele para segundo plano a de conquistar o
prazer. (FREUD, 1930/2010, p. 31)

A justeza com que coube essa citação em nossas reflexões é suficiente para
reafirmar a atualidade de seu pensamento. Todavia estamos regidos por Ananke -
deusa símbolo da necessidade -, pelo princípio da realidade, que impede a
104

felicidade, visto que a maior parte de nossas energias está sendo consumida na
autoconservação e no afastamento dos infortúnios, dos mal-estares.

3.5.1. Os mal-estares na civilização

Ao refletir sobre o fenômeno das massas, social, portanto, Freud expressara


que não se pode considerar o indivíduo sem levar em consideração as relações
estabelecidas com os outros. Desse modo ele deixa clara a importância do social
para a constituição psíquica que é singular. Nesse texto de 1921, ele estabelece
algumas relações relevantes entre a psicologia individual e a coletiva. Entretanto, é
ao abordar os mal-estares que continuam a afligir os indivíduos em sociedade que
ele estabelece definitivamente um elo entre a ontogênese e a filogênese, tendo
como concepção de homem aquela proposta pela psicanálise.

Freud desde muito jovem esteve preocupado com a dor humana. O


sofrimento psíquico alheio e o seu permitiram-lhe, finalmente, estabelecer as bases
para a consolidação de sua teoria e estendê-la ao social. Afinal, ele passara pela
Primeira Guerra Mundial e por lutos familiares, rompera com alguns de seus mais
caros discípulos, presenciara a ascensão do nazismo e padecia com as dores de um
câncer de garganta. Seus mal-estares, os de seus pacientes e os dos indivíduos em
coletividade serviram como subsídios para sua proposição principal de que o
indivíduo não pode ser compreendido como uma célula à parte de seu contexto
social; indivíduo e sociedade são partes integrantes de uma mesma estrutura e,
como tal, são indissociáveis.

Devido à incontestável assimetria existente entre indivíduo e sociedade; esta


é muito mais forte do que aquele, visto que a sociedade, pouco a pouco, leva o
indivíduo a regredir a uma forma que seja fundamental à sua sobrevivência. Assim,
o indivíduo torna-se cego aos ditames da sociedade e se vê incluído em uma massa
indistinta de pessoas que possuem as mesmas necessidades. A capacidade
humana de raciocinar sobre seus atos, sobre a realidade que os circunda, diminui
consideravelmente; os indivíduos, paulatinamente, passam por um processo de
alienação chegando a se reificarem; tal característica passa a ser típica de sua
realidade objetiva e acabam por desconhecer suas possibilidades, até mesmo a de
serem felizes.
105

Nesse sentido, Freud, ao elencar as três fontes básicas do sofrimento


humano, afirma que o mal-estar proveniente de nossas relações com os outros
indivíduos é o que causa mais sofrimento. As outras duas fontes são a inexorável
finitude corpórea e a também inexorável força avassaladora da natureza.

Ora, é certo que os avanços nas áreas da climatologia, oceanologia, geologia,


sismologia e vulcanologia não foram capazes de eliminar a fúria ocasional da
natureza. Por outro lado, a capacidade de predição e fundamentalmente o
entendimento científico dos fenômenos da natureza tornaram a vida menos
assustadora. Portanto, não é estranho que Freud o tenha colocado em segundo
plano, pois tais fenômenos ocorrem apenas ocasionalmente e o conhecimento
científico os desmistificou.

A outra fonte de mal-estar: nosso próprio corpo ainda nos atormenta apesar
dos ganhos significativos aportados pela vida em sociedade. A expectativa média de
vida do europeu ocidental aumentou vinte anos em média desde 1930. A medicina,
a biologia, a genética e outras disciplinas ligadas ao corpo foram responsáveis pela
diminuição do sofrimento humano. Contudo, a morte é inevitável. A certeza de que a
vida é finita e a constatação do processo de envelhecimento de nossos corpos são
ainda fontes de angústia. A busca incessante pela juventude eterna, traço de nossa
contemporaneidade, é uma busca vã, porém produz o afastamento do desprazer.
Por conseguinte, há um ganho psíquico: instantes de felicidade.

Essas são “as três fontes de onde vem o nosso sofrer: a prepotência da
natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os
vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade” (FREUD, 1930/2010, p.
43). Ele afirma, ainda, que diante da inevitabilidade das duas primeiras os indivíduos
se veem obrigados a reconhecer sua pequenez diante das forças da natureza e sua
morte e, consequentemente, render-se.

A rendição diante do inevitável dessas fontes de desprazer, sobre as quais


nosso controle é bastante limitado, está relacionada com a aceitação do princípio de
realidade: somos animais e como tais estamos sujeitos às leis da natureza. Ainda
que sejamos dotados de consciência, temos de admitir que o controle total da
natureza é impossível e que, enquanto animais, somos “uma construção transitória,
limitada em adequação e desempenho” (FREUD, 1930/2010, p. 43). Seja nossa
impotência frente à natureza, seja a fragilidade de nossos corpos, ambas estão
106

relacionadas com a consciência da morte. Ela virá. Caminhamos inevitavelmente em


direção a ela; estar ciente desse destino pode ser aterrador, caso neguemos a
transitoriedade de nossa existência.

O conhecimento e a rendição são, nesse sentido, maneiras de lidar com o


sofrimento. “Se não podemos abolir todo o sofrer, podemos abolir parte dele, e
mitigar outra parte” (FREUD, 1930/2010, 43). Entretanto, essa não é única maneira
de lidar com o sofrer, seja ele proveniente de qualquer das três fontes. Os métodos
são variados. Segundo Freud, são mais eficazes “aqueles que tentam influir no
próprio organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na
medida em que o sentimos, e nós o sentimos sem virtude de certos arranjos de
nosso organismo” (p. 32). A relação estabelecida entre sofrimento e sensações
corpóreas evidencia a matriz biológica do pensamento freudiano.

Na busca de métodos capazes de suavizar nossa existência, o da intoxicação


tem um papel de destaque, pois a ela “se deve não só o ganho imediato de prazer,
mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo
externo. Sabe-se que com ajuda do ‘afasta-tristeza’ podemos nos subtrair à pressão
da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio” (FREUD, 1930/2010, p. 33). A
indústria de psicofármacos está ciente da eficácia desse método e têm capitalizado
na produção de afasta-tristezas de última geração.

Nesse sentido, Elisabeth Roudinesco, em seu livro que aborda o porquê da


psicanálise, faz uma crítica ao uso exacerbado e indiscriminado dos psicofármacos.
A autora não é contra os avanços da indústria psicofarmacológica, sua posição é
semelhante ao do psiquiatra francês Édouard Zarifian (1996), citado por ela, que
afirma: “O psicotrópico simbolizou a vitória do pragmatismo e do materialismo sobre
as enevoadas elucubrações psicológicas e filosóficas que tentaram definir o homem.
(ROUDINESCO, 2000, p. 24). A intoxicação por meio de drogas psicoativas legais,
prossegue a autora, “encerrou o sujeito numa nova alienação ao pretender curá-lo
da própria essência da condição humana. Por isso, através de suas ilusões,
alimentou um novo irracionalismo” (p. 22). Demandamo-nos que ilusão seria essa. A
ilusão da eterna felicidade, responderíamos.

Concordamos, portanto, com Freud, ao afirmar que a busca da felicidade,


inerente a todos, “tem dois lados: uma meta positiva e uma negativa; quer a
ausência de dor e desprazer e, por outro, a vivência de fortes prazeres. No sentido
107

mais estrito da palavra, ‘felicidade’ se refere apenas à segunda” (FREUD,


1930/2010, p. 30). Felicidade, stricto sensu, está relacionada com o princípio do
prazer e não com o afastamento do desprazer. Desse modo, os psicotrópicos agem
a partir do lado negativo, eles visam atacar o sintoma, o lado visível do sofrimento
humano; não há preocupação com o porquê do sofrimento. Façamos com que ele se
esvaneça.

A entrega voluntária às mais diversas substâncias químicas tem sido


recorrente. Nossa experiência como servidor público em uma unidade especializada
em saúde mental tem permitido perceber o aumento da demanda por poções
miraculosas que afastem a dor da existência. Nossa percepção é de que os
indivíduos passam seus mal-estares às mãos de Panaceia, com seu remédio
universal que a tudo cura. De deuses em deuses, de religião em religião, de ilusão
em ilusão, continuamos a sofrer. Por quê? Porque, da perspectiva freudiana, nosso
maior mal-estar provém das relações sociais e está intrinsicamente ligada à
constituição psíquica.

Freud (1930/2010), nesse sentido, observa semelhanças entre os processos


civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo, ambos estão baseados na
repressão das pulsões. Os filhos primevos foram reprimidos em seu desejo de
ocupar o lugar de poder do pai, assim como o infante ao nascer deve reprimir seus
desejos incestuosos, deve abdicar da posição que detinha: sua majestade o bebê.
Destronado, cabe-lhe adentrar na cultura e reprimir suas pulsões. Tanto a civilização
quanto o indivíduo estão submetidos a leis que impedem a plena satisfação dos
seus desejos. É “impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre
a renúncia instintual, o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação (pela
supressão, repressão, ou o quê mais?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração
cultural’ domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens” (p. 60).

É na família - representante microcósmico da sociedade - que o infante logo


percebe que o princípio do prazer está em “desacordo com o mundo inteiro, tanto
com o macrocosmo quanto com o microcosmo. É absolutamente inexequível, todo o
arranjo do Universo o contraria” (FREUD, 1930/2010, p. 30). O sentimento de
felicidade proveniente de uma vida regida pelo princípio do prazer pressupõe o livre
escoamento da libido, mas isso não é compatível com a ideia de civilização, pois a
“liberdade individual não é um bem cultural” (p. 57).
108

Daí decorre o sofrimento advindo da coletividade, pois há um desequilíbrio de


forças entre as exigências e normas sociais e a vida de plena felicidade e regida
pelo princípio do prazer que todos almejamos. Submetemos nossa liberdade e
felicidade à proteção da vida em sociedade. Todavia, o indivíduo “sempre defenderá
sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo” (FREUD,
1930/2010, p. 58); e nesse embate o ego sofre. Sofre duplamente, pelas excessivas
reivindicações da civilização e pelas do superego, instância psíquica que trata o ego
como objeto e que se constitui a partir da interiorização das exigências e das
interdições parentais.

Os valores éticos e morais que influenciam as exigências e interdições


parentais são perpassados pelos ideais culturais. A criança se socializa ao renunciar
à satisfação de seus desejos, interiorizando as interdições como superego, que atua
como modelo a ser seguido, mas simultaneamente como censor.

A reformulação da teoria do aparelho psíquico na década de 1920 foi decisiva


para o estabelecimento da relação entre a psicologia individual e a coletiva a partir
do sofrimento humano, pois o mesmo é proveniente de duas fontes que parecem ser
distintas, mas que se entrecruzam por meio da interdição. A existência de uma
instância psíquica que atormenta e pune os indivíduos, especialmente nos surtos
melancólicos, abriu caminho para verificar que esta instância, denominada de
superego ou consciência moral, não é inata. Esse papel severo exercido pelo
superego sobre o eu, que em caso das patologias se assemelha a um carrasco,
antes de ser introjetado “é desempenhado primeiramente por um poder externo, pela
autoridade parental” (FREUD, 1933/2010, p. 199). Decorre daí que o superego
“toma o lugar da instância parental e então observa, dirige e ameaça o Eu,
exatamente como os pais faziam com a criança” (p. 199). Não obstante ele seja
considerado como herdeiro dessa ligação estreita e fundamental com as figuras
paternas, o superego acolhe também as influências das pessoas que tomaram o
lugar dos pais, ou seja, de educadores, mestres, modelos ideais” (p. 202). Portanto,
ele é desenvolvido a partir de processos identificatórios com as pessoas que são
significativas para a criança.

Como o superego é inconsciente, ele é construído não de forma direta


segundo os modelos dos pais, mas no superego dos mesmos, tornando-se “veículo
de tradição, de todos os constantes valores que assim se propagam de geração em
109

geração” (FREUD, 1930/2010, p. 205). É desse modo que ele fornece subsídios que
ajudam o “entendimento da conduta social humana – por exemplo, a questão da
delinquência – e talvez também que sugestões práticas dela resultam para a
educação” (p. 206).

O caráter inconsciente do superego permite a Freud esclarecer que sua


instauração no psiquismo dos indivíduos não é reflexo apenas das condições
objetivas da vida e de ideologias do tempo presente em que o indivíduo vive. O
superego traz as marcas do passado e da tradição. Ele afirma que a “humanidade
nunca vive inteiramente no presente; o passado, a tradição da raça e do povo
prossegue vivendo nas ideologias do Super-eu, apenas muito lentamente cede às
influências do presente, às novas mudanças, e, na medida em que atua através do
Super-eu, desempenha um grande papel na vida humana” (FREUD, 1930/2010, p.
206). Por conseguinte, não podemos subestimar este fator. Caso o subestimemos
cairemos numa visão igualmente ideológica e socializante de que os indivíduos
“nada mais são que produto e superestrutura de suas relações econômicas atuais”
(p. 206), visão esta defendida por Émile Durkheim, que ignora o papel singular e
subjetivo dos atores sociais, como se fossemos marionetes guiados única e
exclusivamente pelas estruturas sociais do presente.

O superego é presente e passado e remonta à horda primeva que coloca no


centro do processo civilizatório um ato: o assassinato daquele cujo gozo é ilimitado.
Para que a civilização se estabeleça é fundamental a renúncia de nossas intenções
agressivas e reconhecermos que “o ser humano não é uma criatura branda, ávida
de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve
incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade”
(FREUD, 1930/2010, p. 76). Reconhecermos que o homem é o lobo do homem e
que o mandamento de amar aos outros como a si mesmo é uma falácia. Isto é:

[...] o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual,


mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para
explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente
contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para
infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. (FREUD, 1930/2010, p. 76-77)

A admissão do pendor humano à agressividade é fundamental para a


política, pois ela permite um distinto entendimento das relações de poder presentes
em eventos passados e presentes. Os horrores “das invasões dos hunos, dos
110

mongóis de Gêngis Khan e Tamerlão, da conquista de Jerusalém pelos piedosos


cruzados, e ainda das atrocidades da recente Guerra Mundial” (p. FREUD,
1930/2010, 77) revelam o quanto os indivíduos socializados reprimem seus instintos
agressivos e, quando o cenário favorece, tornam-se selvagens e não poupam os de
sua própria espécie, afirma Freud.

Esses exemplos históricos são apenas uma ilustração da agressividade


primária entre os homens, porém não são os únicos. Basta um pouco de
conhecimento de história para constatarmos o quanto o indivíduo tende a colocar
seu semelhante como objeto, assim como ele próprio é objeto da agressividade
interna proporcionada pelo superego, que, sempre vigilante, ameaça-o não
distinguindo o ato do pensamento. O simples pensamento hostil e agressivo tem a
força de um ato consumado.

Foi, portanto, a partir da reformulação da teoria do psiquismo que Freud pôde


estabelecer definitivamente a relação entre os dois instintos primários que regem o
indivíduo. De um lado, a sexualidade que tende a unir os indivíduos em
comunidades cada vez maiores; e, de outro, a agressividade que os aparta. Amor e
ódio se entrecruzam e regem o desenvolvimento individual bem como o cultural.

Essa ideia já estava presente em seu ensaio Moral sexual civilizada e doença
nervosa; em 1908 Freud escrevera:

Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos


instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma
parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações
vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições
resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. [...] Aquele que
em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar
com a supressão do instinto, torna-se um 'criminoso', um 'outlaw', diante da
sociedade - a menos que sua posição social ou suas capacidades
excepcionais lhe permitam impor-se como um grande homem, um 'herói'.
(Freud, 1908/1996, p. 173)

É válido, portanto, afirmar que o distanciamento entre indivíduo e sociedade é


apenas aparente; a sociedade se estende pelo indivíduo. Esse atravessamento do
social que ocorre inicialmente no seio familiar deixa marcas indeléveis no psiquismo
e influencia não apenas como os indivíduos se colocam em sociedade, mas também
a maneira como esta trata as singularidades divergentes. Nas comunidades
naturais: o banimento; na sociedade vitoriana: a institucionalização; na sociedade
contemporânea: o embate político.
111

Não obstante os distintos destinos – banimento, institucionalização ou embate


político -, a oposição entre indivíduo e sociedade persiste e já estava presente em
Aristóteles, que colocava a sociedade - a pólis - no centro de seu estudo sobre
política. Ainda que o filósofo grego não desconsiderasse aqueles que compunham
as cidades-estados: os cidadãos, sua concepção da anterioridade da cidade em
relação à família e esta em relação ao indivíduo revela tanto a relação assimétrica
entre indivíduo e sociedade quanto a imutabilidade social, evidenciando uma
perspectiva adaptativa e não transformadora, como suas palavras evidenciam:

[...] o homem, por natureza, é um animal político [isto é, destinado a viver


em sociedade], e que o homem que, por sua natureza e não por mero
acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou
inferior ao homem. Tal indivíduo, segundo Homero, é 'um ser sem lar, sem
família, sem leis', pois tem sede de guerra e, como não é freado por nada,
assemelha-se a uma ave de rapina. (ARISTÓTELES, 2008, p. 56)

Ele prossegue enfatizando ainda mais a exclusão e a sorte daqueles que não
se submetem à lei e à justiça: "o homem que não consegue viver em sociedade, [...],
não faz parte da Cidade; por conseguinte, deve ser uma besta ou um deus"
(ARISTÓTELES, 2008, p. 57). Algumas linhas mais adiante ele sacramenta que "o
homem sem virtude é a mais perversa e cruel das criaturas, a mais entregue aos
prazeres dos sentidos e seus desregramentos" (p. 57).

Fica-nos evidente que para que o homem aristotélico se constitua, como um


ser político e, portanto, adentre o social e pertença à cidade-estado, é necessário
domar sua animalidade. Ele não pode desfrutar livremente seus prazeres, os quais
são reprimidos no lar, na família e na sociedade, como enfatiza Homero. As diversas
instituições, pouco a pouco, freiam a sexualidade e a tendência à agressividade;
àqueles que não se submetem às regras da pólis lhes é reservado o rótulo de sem
leis, tal qual o outlaw freudiano.

Podemos, por conseguinte, estabelecer uma analogia entre o homo politicus


aristotélico - que deve ser reprimido, freado, para que suas emoções e prazeres não
se sobressaiam, permitindo-lhe acesso à pólis - e o homem freudiano em seu enlace
no social, uma vez que a ideia de repressão também se faz presente.
Diferentemente de Aristóteles que preconizava a natureza dos homens "de distinguir
o bem do mal, o útil do prejudicial, o justo do injusto" (ARISTÓTELES, 2008, p. 56-
57) e, portanto, enfatizava os processos conscientes, Freud volta-se ao inconsciente
e suas expressões.
112

Contudo, evidenciamos tanto num quanto noutro a impossibilidade de


separarmos indivíduo e sociedade e, sobretudo, a importância do reconhecimento
da existência de uma lei reguladora, cuja submissão é imperativa; conditio sine qua
non à constituição do homem político aristotélico e do sujeito psíquico freudiano. De
acordo com o filósofo grego, o homem digno da pólis seria aquele capaz de
racionalmente renunciar aos seus prazeres e desregramentos e submeter-se às leis
sociais, haja vista sua capacidade de distinguir o bem do mal, o justo do injusto. Por
sua vez, o pensador austríaco advoga, desde Totem e tabu, que esse processo de
submissão à lei está relacionado a dois prazeres fundamentais: o incesto e o
parricídio. Ou seja, a interdição ao incesto desempenharia papel regulador na
sociedade; seria a lei fundadora da civilização, a qual teria sido introjetada em
virtude do arrependimento pelo assassinato do pai primevo e, assim, atuaria
inconscientemente.

Considerando as contribuições da teoria freudiana acerca da constituição


psíquica dos indivíduos e do desenvolvimento cultural, é plausível afirmarmos que
elas possam ter o que acrescentar ao estudo da política, pois grande parte das lutas
da humanidade centraliza-se no embate entre as reivindicações sociais e as
individuais. Um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é saber se
esse conflito é irreconciliável ou não. Se há possibilidade de solução, ela se
encontra no campo político.

A história dos movimentos sociais tem demonstrado que é possível. Sabemos


que o indivíduo isolado é ineficaz em buscar a reconciliação entre suas
reivindicações e as da sociedade, entretanto, quando se unem, são capazes de
ganhos políticos significativos. A posição social com relação à sexualidade tem
cambiado e permitido que singularidades divergentes possam ser expressas,
indicando que vivemos em uma sociedade mais tolerante com a diversidade; as
mulheres encontram cada vez mais espaço na sociedade; os negros já não são mais
escravizados como antes; e direitos trabalhistas foram conquistados. Entretanto, a
infelicidade ainda reina, demonstrando que as pequenas diferenças ainda servem
como pressuposto para o aniquilamento do próximo e que “a intenção de que o
homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’” (FREUD, 1930/2010,
p. 30).
113

Isso indica que O mal-estar na civilização ainda se impõe; suas contribuições


são relevantes e nada anacrônicas. “Tais temas, e muitos outros, [...], são o
testemunho da importância conferida por Freud à dimensão política, como elemento
específico do fracasso da cultura em amainar o mal-estar” (PLON, 2002, p. 153).
Ainda que a questão política não seja designada como tal no decorrer do texto, ela
está presente.
114

CAPÍTULO IV – PSICANÁLISE, AUTORITARISMO E EXÍLIO

A psicologia política como um campo profícuo de estudo começou a se


delinear no final do século XIX e início do XX, especialmente na Europa em virtude
das sucessivas revoluções que afloravam. Talvez o evento mais significativo tenha
sido a Revolução Francesa, mas, como Le Bon (2010) afirma, não podemos
imaginar que a psicologia política seja fruto único e exclusivo dessa revolução, pois
devemos considerar o fator determinante do tempo em sua germinação. “O tempo
acumula o imenso resíduo de crenças e pensamentos sobre o qual nascem as
ideias de uma época. Não germinam ao acaso e ao sabor da aventura. Suas raízes
se fincam num longo passado” (p. 84).

É nesse sentido que recuperar sua história é fundamental, como procuramos


delinear nos capítulos anteriores ao abordar as contribuições de Tocqueville, Tarde,
o próprio Le Bon, Wallas, Lasswell e Freud. Assim como as organizações sociais e
políticas levaram séculos para se firmarem, os campos de saber que, atualmente,
são parte da academia também estão atrelados à passagem do tempo. O
estabelecimento da psicologia política é o resultado de sucessivos atos de
semeadura intelectual de pensadores, até que, finalmente, germinou, consolidou-se
e se institucionalizou. O tempo preparou sua eclosão. Podemos afirmar que, tal qual
a psicologia social, a psicologia política tem suas raízes em solo europeu, embora
tenha florescido em solo norte-americano.

Se, por um lado, os fenômenos de massa contribuíram para a aproximação


da psicologia às ciências sociais, por outro, a ascensão do nazismo e a eclosão da
Segunda Guerra Mundial e a subsequente diáspora intelectual alemã aproximou-a
definitivamente das ciências políticas. Isso não significa que ela tenha ocorrido
essencialmente a partir da chegada desses intelectuais aos Estados Unidos da
América.

Esse acercamento já estava presente na Alemanha com a criação do Instituto


de Pesquisa Social56, após a Primeira Guerra Mundial. A guerra e os posteriores
desdobramentos impactaram os pensadores da época, especialmente devido ao
inesperado sucesso da revolução bolchevique. Tal sucesso “criou um sério dilema
para aqueles que tinham estado no centro do marxismo europeu: os intelectuais
56
A partir deste momento, sempre que nos referirmos ao Instituto de Pesquisa Social utilizaremos apenas
Instituto.
115

esquerdistas alemães” (JAY, 1996, p. 3) 57, tais como Max Horkheimer, Theodor
Adorno, Walter Benjamin, Leo Löwenthal, Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm
Reich, entre outros proeminentes teóricos.

É interessante observar que a aproximação dessas distintas e aparente


inconciliáveis disciplinas – psicologia e política – ocorre por meio de dois
proeminentes teóricos em seus campos: Sigmund Freud e Karl Marx. Pouco a pouco
foi se constituindo uma escola de pensamento que perdurou e se estabeleceu de
forma inequívoca: a Escola de Frankfurt, que ousou integrar a psicanálise ao
marxismo. Martin Jay (1996), assim, afirma:

Na década de 1970 é difícil apreciar a audácia dos primeiros teóricos que


propuseram o enlace improvável de Freud e Marx. Com o recente
ressurgimento do interesse em Wilhelm Reich e o amplo impacto de Eros e
Civilização de Marcuse, a noção que ambos pensadores estavam falando
sobre problemas similares, mesmo que a partir de distintas perspectivas,
ganhou crédito entre muitos pensadores de esquerda. (p. 86)58

Ainda que essa aproximação tenha sido uma marca das reflexões
frankfurtianas, ela não foi acrítica. Muitos deles fizeram ressalvas à psicanálise
freudiana. Fromm, por exemplo, rejeitou a teoria da pulsão de vida e de morte. Por
sua vez, os estudos antropológicos sobre a cultura matriarcal de Bronislaw
Malinowski influenciaram Reich a ponto de ele considerar o matriarcado como a
organização social natural. Fromm segue na mesma direção, negando a
universalidade do complexo de Édipo (JAY, 1996).

Essas e outras críticas que possam ser feitas são pertinentes; entretanto, elas
não os impediram de empregar conceitos freudianos com a devida parcimônia
necessária. O reconhecimento da psicanálise como teoria relevante nas reflexões
sociais e políticas é expressa por Horkheimer a Leo Löwenthal que lhe solicitara
conselhos de como responder à demanda de Ernst Kris, expoente da psicologia do
ego, sobre a posição do Instituto com relação à obra de Freud. Segue sua opinião:

Penso que você deveria ser simplesmente positivo. Em realidade, estamos


em profunda dívida com Freud e seus colaboradores. Seu pensamento é
uma das Bildungsmächte (pedras basais), sem as quais nossa filosofia não
seria o que é. Compreendi novamente sua grandeza durante as últimas
semanas. Você recordará que muita gente diz que seu método original era

57
[...] created a serious dilema for those who had previously been at the center of European Marxism, the left-
wing intellectuals of Germany.
58
In the 1970’s it is difficult to appreciate the audacity of the first theorists who proposed the unnatural marriage of
Freud and Marx. With the recent resurgence of interest in Wilhelm Reich and the widespread impact of Marcuse’s
Eros and Civilization, the notion that both men were speaking to similar questions, if from very different vantage
points, has gained credencie among may on the left.
116

particularmente adequado à refinada classe média vienense. Como


generalidade isto é, com certeza, totalmente falso, mas há nisto um grão de
sal que não prejudica à obra de Freud. Quanto maior a obra, mais enraizada
ela está nas concretas situações históricas. Mas se você olhar atentamente
sobre esta conexão entre a Viena liberal e o método original de Freud, você
se conscientizará o quão grande pensador ele era. (HORKHEIMER apud
JAY, 1996, p. 102)59

Horkheimer, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, apesar de proferir


palavras de reconhecimento à obra de Freud, não se exime também de criticá-la,
especialmente com relação à segunda tópica. Afinal, os frankfurtianos tinham a
crítica como algo fundamental em sua teoria, portanto, seria estranho que tomassem
a obra freudiana em suas reflexões sem a criticarem, sem mostrarem seus pontos
obscuros. Não obstante, ele é mais enfático em sua crítica direcionada à psicologia
do ego, ao afirmar que “Fromm e Horney retornam à psicologia vulgar e inclusive
psicologizam a cultura e a sociedade”. (HORKHEIMER apud JAY, 1996, p. 102)60.

Independentemente das críticas a Freud, o fato é que os frankfurtianos foram


aqueles que trouxeram definitivamente a psicanálise para fora do âmbito clínico que
a caracterizou. Foram, eles, que, para nós, merecem serem reconhecidos como
participantes essenciais à história da psicologia política. Se não tiveram um
protagonismo, ao menos contribuíram para uma visão fenomenológica ao campo, ao
contrário da Escola de Chicago que tinha uma perspectiva comportamentalista.

A atual situação política nacional e internacional assemelha-se muito a da


Alemanha pré-nazista. A guinada à direita se espalha. Lembremos que ambos os
períodos foram assolados por turbulências econômicas importantes. Ventos
conservadores sopram em nossos rostos, os quais facilmente podem se tornar em
ventania reacionária.

Sentimentos xenófobos; intolerância religiosa; partidos de extrema direita


aumentando significativamente sua participação na política institucionalizada; o
isolacionismo que esbarra em um nacionalismo extremista; retorno ao anacronismo
da família tradicional e a consequente volta da mulher ao seu lugar: bela, recatada e

59
I think you should be simply positive. We really are deeply indebted to Freud and his collaborators. His thought
is one of Bildungsmächte (foundation stones) without which our own philosophy would not be what it is. I have
anew realized his grandeur during the last weeks. You will remember that many people say his original method
was particularly adequate to the Viennese sophisticated middle class. This is, of course, totally untrue as a
generality, but there is a grain of salt in it which does not do any harm to Freud’s work. The greater a work, the
more is rooted in the concrete historical situation. But if you take a close look at this connection between
liberalistic Vienna and Freud’s original method, you become aware of how great a thinker he was.
60
[...] Fromm and Horney get back to commonsense psychology and even psychologize culture and society.
117

do lar; as desigualdades sociais se acentuando. Esses não são apenas


considerações retóricas, são observações empíricas sobre nosso entorno.

No Reino Unido, o povo votou a favor da separação da União Europeia,


aumentando crimes xenófobos e religiosos; o Front National, partido da extrema
direita francesa de Marine Le Pen, teve quase 30% de votos nas eleições nacionais;
a eleição do excêntrico, para não dizer egocêntrico, Donald Trump nos Estados
Unidos; as políticas econômicas brasileiras adotadas que cortam benefícios sociais,
afetando drasticamente o investimento nas políticas públicas e agravando o
sofrimento psíquico daqueles cujos benefícios foram cortados; o apoio
desconcertante dado a Trump pela Ku Klux Klan; a repressão ostensiva aos
movimentos sociais; atores presos durante peça teatral; o fechamento das fronteiras
europeias aos imigrantes; igrejas frequentadas por negros incendiadas; pessoas
pedindo a volta da ditadura; imigrantes desesperados em Calais em busca da
suposta terra prometida que está do outro lado do canal.

Pedimos desculpas por termos listado tantos exemplos e estamos seguros


que poderíamos prosseguir, porém a intenção é mostrar que vivemos aqui e acolá
tempos de retrocessos, nos quais a irracionalidade aflora e simultaneamente
assusta. Que momento social e político estamos vivendo? Como entender tanta
irracionalidade, tanto aplauso a ideias retrógradas, tanto autoritarismo à direita, mas
também à esquerda, tantas guerras, tantos atos administrativos que impactam
sobremaneira a vida psíquica e social de indivíduos? Frente a essas questões,
temos de concordar que as reflexões frankfurtianas não apenas devem ter seu lugar
na história da psicologia política, mas, são, sobretudo, atuais. Concordamos,
portanto, com os psicólogos chilenos Figueroa e Arias que elencam três elementos
presentes no pensamento dos frankfurtianos que indicam a relevância e a atualidade
da Escola de Frankfurt; a saber:

[...] uma orientação transdisciplinar que tem por objetivo fundir as disciplinas
científico-sociais com a filosofia social, uma filosofia da história que permite
especificar o lugar da psicologia em uma orientação transdisciplinar e
dialética, e, por último, os estudos empíricos sobre autoritarismo que
demonstram o uso prático da psicologia. (FIGUEROA; ARIAS, 2016, p. 53)61

61
[...] una orientación transdisciplinaria que tiene por objetivo fusionar las disciplinas científico-sociales con la
filosofía social, una filosofía de la historia que permite especificar el lugar de la psicologia en una orientación
transdisciplinaria y dialéctica, y, por último, los estudios empíricos sobre autoritarismo que manifestan el uso
práctico de la psicologia.
118

As premissas dos autores refletem nossa concepção de psicologia política: a


transdisciplinaridade, preferimos o termo interdisciplinaridade, e a relevância da
psicologia no debate sobre questões políticas. Embora os autores tenham citado
Horkheimer (Cf. FIGUEROA; ARIAS, 2016) na defesa da psicologia como parte
integrante do pensamento do Instituto, eles não mencionam que a mudança na
direção do Instituto foi significativa para a assimilação da psicologia em seu corpo
teórico. “De fato, uma das divisões básicas dos membros do Instituto, entre as
gerações de Grünberg e Grossman e a de seus sucessores guiados por Horkheimer,
era o contraste em suas respectivas atitudes frente à psicologia” (JAY, 1996, p.
87)62. Sob a coordenação de Horkheimer, observa-se uma mudança teórico-
metodológica com relação ao seu antecessor Carl Grünberg, cuja ênfase era a
economia política. A proposta de Horkheimer era mais abrangente e significava um
questionamento ao marxismo tradicional.

Ele não se limitou a colocar os conhecimentos psicológicos em pauta no


Instituto; em realidade, seu reconhecimento acerca da grandeza da obra freudiana
evidencia sua predileção pela deep psychology. Poderíamos relacionar essa
inclinação teórica ao fato dele ter tido contato com a obra de Freud, anteriormente,
por intermédio de Löwenthal, e ao fato dele próprio ter passado pela experiência
psicanalítica, tendo como psicanalista o psiquiatra Karl Landauer, aluno de Freud.
Poderíamos fazer outra suposição: sua preferência estaria relacionada ao caráter
fenomenológico da psicanálise, que se coaduna com sua visão da filosofia social,
com a qual as especialidades deveriam dialogar e contribuir na apreensão do
universal.

Conjecturas à parte, a “tentativa de inserir a psicanálise na sua Teoria Crítica


neomarxista foi, portanto, um passo ousado e não convencional. Foi também um
sinal do desejo do Instituto de deixar para trás a camisa de força do marxismo
tradicional” (JAY, 1996, p. 87)63. Não obstante as críticas à psicanálise, a troca
intelectual com a comunidade psicanalítica fortaleceu-se por meio de um acordo
estabelecido com o Instituto de Psicanálise de Frankfurt, já mencionado
anteriormente; o instituto psicanalítico manteve estreita conexão com Horkheimer e

62
In fact, one of the basic divisions between the Grünberg-Grossmann generations of Institut members and their
successors, led by Horkheimer, was the contrast in their respective atitudes towards psychology.
63
[...] attempt to introduce psychoanalysis into its neo-Marxist Critical Theory was thus a bold and unconventional
step. It was also a mark of the Institute’s desire to leave the traditional Marxist straitjacket behind.
119

seus colegas, porém, Erich Fromm foi o elo principal. Foi “principalmente através do
trabalho de Fromm que o Instituto primeiro tentou reconciliar Freud e Marx” (JAY,
1996, p. 88)64.

Considerando a relevância intelectual da produção frankfurtiana e tendo a


psicanálise desempenhado papel significativo nela, cabe, a seguir, resgatar as
reflexões de Theodor Adorno, Erich Fromm e Wilhelm Reich e como eles se
apropriaram da teoria freudiana. Sabemos, que há outros autores que também se
empenharam nessa tarefa. Entretanto, nossa opção se deve fundamentalmente ao
impacto dessas obras, bem como serem representantes de leituras distintas de
Freud.

Adorno, com uma leitura crítica e fiel e, por seu turno, Fromm e Reich, com
uma leitura também crítica, porém revisionista. Enquanto Fromm se aproxima cada
vez mais da psicologia do ego, Reich se estabelece como mentor de uma escola
psicanalítica. A despeito dos caminhos tomados – provavelmente relacionados ao
contato com a academia e a sociedade norte-americanas -, eles são importantes
para à história da psicologia política e, quiçá, seria recomendável relê-los à luz dos
atuais eventos políticos, tal sua atualidade.

A trajetória que seguiremos é a cronológica, considerando o ano de


publicação dos livros que servirão de referência: Psicologia de massas do fascismo
(1933), O medo à liberdade (1941) e A personalidade autoritária (1950), pois
entendemos serem obras que, a despeito de não buscarem uma reflexão política em
seu senso estrito, podem ser lidas a partir desse referencial. As duas primeiras
demonstram a articulação inicial entre o pensamento freudiano e o marxista,
enquanto, a última revela a tentativa de sintetizar conceitos psicanalíticos com a
metodologia empírica. As três obras têm como objeto de reflexão o autoritarismo e,
portanto, podem ser consideradas como psicopolíticas.

4.1. Reich: os corpos e a política

Wilhelm Reich (1897-1957), de ascendência judaica, foi criado em uma


fazenda, longe das tradições do judaísmo. Após a Primeira Guerra Mundial, ingressa
na Faculdade de Medicina de Viena e frequenta as reuniões da sociedade
64
[...] primarily through Fromm’s work that the Institute first attempted to reconcile Freud e Marx.
120

psicanalítica, como graduando; nessa época, conhece Otto Fenichel, psicanalista


austríaco, com quem mantém afinidades políticas, levando-o a se interessar pela
obra de Karl Marx e Friedrich Engels.

A guerra recém acabada, as condições econômicas desfavoráveis e o


crescimento do nacionalismo germânico criaram as condições sociais necessárias o
surgimento de um posicionamento político à esquerda no meio psicanalítico.
Siegfried Bernfeld, Erich Fromm, Wilhelm Reich, Ernst Simmel, Frances Deri e Marie
Langer são alguns dos psicanalistas que fomentaram o surgimento de uma corrente
intelectual: o freudo-marxismo. Roudinesco e Plon (1998), salientam que esse
movimento esteve presente no círculo freudiano desde 1920, seja do ponto de vista
teórico – freudismo e marxismo -, seja do ponto de vista político: comunismo e
psicanálise. O engajamento político aberto não era bem visto pela instituição.

Todos os freudianos que aderiram ao marxismo foram perseguidos,


expulsos ou marginalizados pela International Psychoanalytical Association
(IPA), em particular sob a direção de Ernest Jones, que preferiu compactuar
com o nazismo, em nome de uma política de “salvamento” da psicanálise na
Alemanha, a se interessar pelos freudianos de esquerda e de extrema
esquerda. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 281-282)

Havia, por outro lado, rejeição à psicanálise nos movimentos de esquerda,


visto ser considerada uma ciência burguesa. Em suma, Reich foi duplamente
banido. Não obstante, ele foi um dos pilares do freudo-marxismo, “o teórico de uma
análise do fascismo que marcou todo o século e o artífice de uma reformulação da
técnica psicanalítica que se apoiava em uma concepção da sexualidade mais
próxima da sexologia que da psicanálise (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 651)65.
Aliás, os autores apresentam Reich como o fundador do freudo-marxismo, cujo
manifesto foi publicado sob o título Materialismo dialético e psicanálise, em 1929. No
mesmo ano, viaja à Rússia; ao retornar, começa a estruturar Psicologia de massas
do fascismo. A primeira edição data de 1933, quando Hitler torna-se chanceler
alemão, e foi proibida “em 1935, juntamente com todas as obras de psicologia
política” (REICH, 2001, p. XXII). Portanto, trata-se de um texto psicopolítico.

65
Antevendo as possíveis críticas ao fundamento biológico de sua teoria orgástica, que o definiria como
sexólogo e não psicanalista, como os autores deixam transparecer, Reich (2004) explica: “Se eu houvesse
definido a sexualidade apenas como sexualidade genital, cairia na noção pré-freudiana errada de sexualidade, e
sexual equivaleria a ‘genital’. Alargando o conceito de função genital com o conceito de potência orgástica, e
definindo-o em termos de energia, somei uma nova dimensão à teoria psicanalítica de sexualidade e libido,
conservando o seu arcabouço original” (p. 102).
121

Apesar de tê-lo escrito durante a ascensão do partido nacional-socialista,


durante a guerra, no prefácio da terceira edição inglesa, ele esclarece que “o
‘fascismo’ não é obra de um Hitler ou de um Mussolini, mas sim a expressão da
estrutura irracional do homem da massa” (REICH, 2001, p. XXV). Assim, ele
apresenta sua questão norteadora: “o que se passa nas massas, que as leva a
seguir um partido cuja liderança é, objetiva e subjetivamente, oposta aos interesses
das massas trabalhadoras?” (p. 37). As massas não são exclusivamente compostas
pelo proletariado empobrecido, Reich enfatiza que o fascismo é um movimento da
classe média. Ela o sustenta e impulsiona.

Considerando que a classe média é a massa reichiana e que os movimentos


de massa envolvem necessariamente relações de poder, é fundamental analisar as
atitudes dos indivíduos médios frente à autoridade; a ambivalência dos laços sociais
estabelecidos sinaliza que a “revolta contra a autoridade, acompanhada de respeito
e submissão, é uma característica básica das estruturas da classe média” (REICH,
2001, p. 34), portanto, é entre revolta e submissão que a classe média balança. Ele
enfatiza:

Aqueles que negam ou não apreciam devidamente a função da base de


massas do fascismo surpreendem-se perante o fato de que a classe média,
não possuindo os principais meios de produção nem trabalhando neles, não
pode ser uma força motriz permanente na história e, por isso, oscila
invariavelmente entre o capital e os trabalhadores. Esses mesmos não
percebem que a classe média pode ser e é "uma força motriz na história",
se não permanentemente, pelo menos temporariamente, como provam o
fascismo italiano e o alemão. E isso não significa apenas a destruição das
organizações de trabalhadores, as inúmeras vítimas, a erupção da barbárie,
mas também, e principalmente, o impedir que a crise econômica resultasse
numa revolta política, isto é, na revolução social. Uma coisa é certa: quanto
maior é o peso e a dimensão das camadas da classe média numa nação,
tanto maior é a sua importância, como força social de ação decisiva.
(REICH, 2001, p. 39)

Nesse movimento pendular da classe média, ora se submetendo, ora se


afirmando, la nave va, entre momentos de expansão e retração do ego. Entre
liberdade positiva e negativa, com diz Fromm, que será abordado adiante. A massa
de indivíduos enfraquecidos, em momentos de adversidades sociais e econômicas,
tende a submeter-se à ideologia vigente, que:

[...] transforma concretamente as estruturas das massas trabalhadoras, para


servir o imperialismo. Dizer que as catástrofes sociais são provocadas por
uma “psicose de guerra” ou pelo embotamento das massas” é jogar
palavras fora. Essas explicações não explicam nada. Considerar que as
massas são receptivas a semelhante processo de embotamento seria
subestimá-las. O que acontece é que cada ordem social cria nas massas
122

que a compõem as estruturas de que ela necessita para atingir seus


objetivos fundamentais. (REICH, 2001, p. 21)

As tragédias sociais não ocorrem, portanto, sem a participação de indivíduos


ideologizados. Porém, o processo de ideologização é ativo e passivo e não ocorre
se não houver uma predisposição à determinada ideologia. Reich distingue as
funções objetiva e subjetiva da ideologia, e Rouanet sintetiza:

A primeira está enraizada historicamente nos interesses das classes


dominantes, e consiste na metamorfose desses interesses em sistemas de
ideias, cujo objetivo é mascarar esses interesses e facilitar sua realização
efetiva. A segunda consiste na alteração psíquica dos indivíduos, a fim de
tornar as classes subalternas receptivas ao sistema de poder. (ROUANET,
1998, p. 37)

A alteração que ocorre com o indivíduo em massa, quando a ideologia ecoa


em sua estrutura psíquica, não pode ser explicada exclusivamente a partir das
ciências políticas e econômicas. A contradição da servidão voluntária, que leva os
indivíduos a apoiarem “a sua própria opressão, só pode ser explicada de um ponto
de vista da psicologia de massas” (REICH, 2001, p. 33). O autor radicaliza, ao
propor a primazia da psicologia de massas; eventos sociais e políticos que têm o
poder de alterar psiquicamente o indivíduo requerem um estudo interdisciplinar.

A fim de saber “por que motivo as massas se deixam iludir politicamente”


(REICH, 2001, p. 33) por uma ideologia de cunho autoritário, o autor volta-se à
célula mater da sociedade: a família. É no ambiente familiar que relações autoritárias
acontecem e marcam o indivíduo psiquicamente.

O Estado autoritário tem o pai como seu representante em cada família, o


que faz da família um precioso instrumento do poder.
A posição autoritária do pai reflete o seu papel político e revela a relação da
família com o Estado autoritário. A posição que o superior hierárquico
assume em relação ao pai, no processo de produção, é por este assumida
dentro da família. Ele reproduz nos filhos, especialmente nos de sexo
masculino, a sua atitude de submissão para com a autoridade. (REICH,
2001, p. 48-49)

Quando a ideologia ecoa na estrutura psíquica da maioria dos indivíduos, o


caminho está aberto para que ela floresça e se enraíze ainda mais. A passividade e
a obediência do indivíduo durante o nazismo e outros regimes fascistas devem-se
em parte ao tipo de relações familiares estabelecidas. “O pensamento reacionário
[...] é uma continuação secundária dos processos psíquicos que já se verificam na
criança educada em uma família autoritária”, salienta Reich (2001, p. 49).
123

As relações familiares são fundamentais para o estudo da ideologia, pois é


nelas que o indivíduo torna-se receptivo ou não à autoridade. O equívoco dos
intelectuais marxistas ortodoxos foi desconsiderar sua relevância “como fator de
igual importância [...] ou até mesmo decisivo no processo de formação das
estruturas humanas” (REICH, 2001, p. 53). A recusa desses teóricos em considerá-
la, infere Reich, só pode ser atribuída ao fato deles próprios estarem ainda sujeitos
às suas relações familiares. O autor, em nota de rodapé apresenta, de forma
inflexível e ríspida, sua posição:

Quem não conseguiu superar a sua própria ligação à família e à mãe ou,
pelo menos, não aclarou nem excluiu tal influência do seu julgamento, deve-
se abster de estudar o processo de formação das ideologias. Quem
classificar depreciativamente estes fatos como “freudianos” só conseguirá
provar a sua cretinice científica. Devem-se apresentar argumentos
objetivos, em vez de afirmações ocas e não fundamentadas. Freud
descobriu o complexo de Édipo. Só esta descoberta veio tornar possível
uma política familiar revolucionária. Mas Freud está tão distante de tal
exploração e interpretação sociológica da ligação familiar quanto o
economista mecanicista o está da compreensão da sexualidade como fator
social. Podem-se apontar algumas aplicações erradas do materialismo
dialético; mas não se neguem fatos que já eram conhecidos de qualquer
trabalhador antes de Freud ter descoberto o complexo de Édipo. E não se
resolva o problema do fascismo com chavões, mas sim com conhecimentos.
Os erros são possíveis e reparáveis, mas a tacanhice científica é
reacionária. (REICH, 2001, p. 53)

Psicologia de massas do fascismo é, eminentemente, um estudo do processo


de formação das ideologias, o que evidencia que Reich se coloca como um
pensador que superou suas próprias relações familiares, não apenas as maternas,
mas, também, as paternas. Liberto dos laços familiares, pôde contestar seu pai
teórico; sua libertação, por um lado, permitiu-lhe assumir o lugar de pai da escola
reichiana de psicanálise, por outro, significou sua exclusão da comunidade
freudiana.

A ênfase dada ao aspecto biológico da libido – a concepção de libido fica


circunscrita à esfera da genitalidade – afasta teoricamente ambos os psicanalistas.
Reich considerava o inconsciente freudiano como o nível intermediário do caráter
humano; a camada mais profunda: os substratos biológicos do indivíduo é seu
interesse. Sua teoria, portanto, profere ele, “tornou possível a compreensão do
inconsciente freudiano” (REICH, 2001, p. XV). Ao propor que o caráter antissocial do
indivíduo é decorrente da repressão de exigências biológicas primárias, por
conseguinte, secundário, ele se distancia de Freud. O deslocamento da origem da
124

agressividade para a cultura é crucial para o autor refutar o conceito de pulsão de


morte: o rompimento teórico ocorreu.

Para Reich (2001), Freud, apesar de ter descoberto o complexo de Édipo,


“não percebeu que ele “não é tanto causa como, muito mais, consequência da
repressão sexual exercida pela sociedade sobre a criança. No entanto, os pais
realizam, sem o saber, os desígnios da sociedade autoritária” (p. 52), a qual se
perpetua e se atualiza desde quando se organizou de forma patriarcal. Reich (1974)
defende a anterioridade do matriarcado, pois “se caracteriza pelo comunismo
primitivo e pela mais ampla liberdade sexual” (p.6). O patriarcado, por sua vez, “se
caracteriza pela propriedade privada, pela escravização das mulheres e por uma
repressão semelhante à da nossa própria civilização” (p. 6).

Consequentemente, é a opressão sexual, advinda do patriarcado, “que


prepara o caminho da internalização das ideologias legitimadoras da autoridade, e
que leva o oprimido a identificar-se exatamente com aquelas instâncias que o
oprimem, não somente sexualmente, como também materialmente” (ROUANET,
1998, p. 39).

O indivíduo é produto e produtor das instituições que o aprisionam, porém,


para ser produtor genuíno, e não reprodutor, na perspectiva reichiana, é necessário
a revolução sexual, que acontece inicialmente nas relações micropolíticas familiares.
Somente o indivíduo, cuja libido genital está desimpedida, é capaz de criticar e
promover transformações sociais e políticas. “Se a primazia do intelecto é a meta do
desenvolvimento, tal primazia é inconcebível sem a primazia da genitalidade. Pois
aquela pressupõe uma economia libidinal ordenada, isto é, primazia genital” (REICH,
1995, p. 150)66. A liberdade do intelecto, da criatividade, da utopia, de reorganização
social passa pela liberdade sexual individual.

Reich (2001) estabelece uma relação direta entre liberdade sexual e


organização social e política. Para que tendências verdadeiramente democráticas
estejam presentes é fundamental a “afirmação da vida por parte das principais
instituições sociais em relação à sexualidade das crianças e dos adolescentes” (p.
201). Em contrapartida, quando houver “repressão autoritária e moralista da
sexualidade infantil e adolescente, e com uma legislação que a apoia, pode-se

66
Si la primacía del intelecto es la meta del desarrollo social, tal primacía es inconcebible sin la primacía de la
genitalidad. Pues aquélla presupone una economía libidinal ordenada, es decir, primacía genital.
125

concluir, com segurança, a presença de fortes tendências autoritárias e ditatoriais no


desenvolvimento social” (p. 201). A verdadeira democracia é aquela que afirma a
vida; a qual, no sentido reichiano, é potência orgástica.

Considerando a primazia genital, os indivíduos livres sexualmente tendem a


não aderir ao discurso autoritário. A excessiva restrição da sexualidade durante os
regimes fascistas explicaria a adesão dos indivíduos. Ora, temos observado o
crescimento de partidos de direita e extrema-direita, cujos discursos, além de
promoverem a xenofobia e o isolacionismo, são conservadores com relação à
sexualidade. Estaríamos, portanto, vivendo em momentos de mais repressão sexual,
que leva os indivíduos a se identificarem com seus algozes?

Discursos machistas e depreciativos com relação às mulheres; a tentativa de


restringir o aborto; o ideal de mulher apresentado como: bela, recatada e do lar; o
novo estatuto da família, que desqualifica relações homoafetivas e tentativa de abolir
o uso do nome social para transgêneros são exemplos de repressão autoritária da
sexualidade, indicando, segundo Reich, fortes tendências autoritárias e ditatoriais no
desenvolvimento social. Provavelmente, a resposta seria afirmativa, porém são
necessárias investigações empíricas aprofundadas para responder a essa complexa
questão. Entretanto, André Barreto, em seu livro A revolução das paixões, apresenta
reflexões importantes sobre a teoria reichiana e a política que ajudam teoricamente.

Ao analisar a questão do poder em Reich, o autor aproxima o pensador


austríaco de Michel Foucault, pois ambos divergem da política tradicional, “que
localiza o poder exclusivamente nas esferas do Estado e dos partidos políticos, ou
ainda nos grandes movimentos de classe. [...] o poder é um fenômeno intrínseco às
relações humanas, portanto, onipresente no campo social das relações
interpessoais” (BARRETO, 2000, p. 183). É no microcosmo social que as tendências
libertárias ou submissas são internalizadas. Reich concebe o poder como
dominação, “como uma relação perversa estabelecida a partir de uma patologia
emocional, a qual impede as pessoas de se tornarem responsáveis e livres,
fazendo-as dependentes de outrem” (p. 187). Assim, o “escravo político é um
indivíduo cuja estrutura emocional está ligada à experiência da submissão. O
exercício da dominação política não se restringe ao plano macrossocial,
encontrando sua gênese no universo subjetivo dos indivíduos” (p. 188). Para romper
126

esse ciclo de escravidão, cujas raízes estão na restrição da libido genital, o indivíduo
deve superar a si próprio para que atinja a potência orgástica.

A política reichiana é, nesse sentido, “a política dos corpos, porque neles


residem todos os registros emocionais que desenvolvemos em nossa vida pregressa
e que dão suporte, ou não, aos enfrentamentos da vida – e incluímos aí todas as
experiências relacionadas ao poder”, afirma Barreto (2000, p. 193). É, portanto, uma
micropolítica biológica, cujas influências sociais são determinantes. Apesar de ser no
indivíduo que ocorre o embate político dos corpos, é na mudança do caráter das
massas que uma nova ordem social e política se estabeleça.

Finalizemos com Reich:

Uma ordem social verdadeiramente nova não exige apenas a abolição de


instituições sociais de caráter autoritário e ditatorial, nem a criação de novas
instituições, pois estas novas instituições estão condenadas a degenerar em
formas ditatoriais e autoritárias se não se abolir ao mesmo tempo, pela
educação e pela higiene mental coletiva, a implantação do absolutismo
autoritário introduzido no próprio caráter das massas humanas. Não há
anjos revolucionários de um lado e diabos reacionários do outro. Não há
capitalistas ávidos de um lado e trabalhadores generosos de outro. Para
que a sociologia e a psicologia de massas possam vir a funcionar como
verdadeiras ciências, é preciso que se libertem da maneira de ver tudo
como branco ou preto, maneira esta própria da política. Têm de mergulhar
no caráter contraditório do homem que teve uma educação autoritária,
procurar a reação política no comportamento e na estrutura das massas
trabalhadoras, para então contribuírem para a sua articulação e eliminação.
(REICH, 2001, p. 205-206)

A adesão a discursos conservadores em democracia consolidadas, como o


Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos, tem aumentado
significativamente, apesar dos avanços sociais e políticos conquistados desde a
Segunda Guerra Mundial. As instituições se modificaram, se atualizaram, contudo, o
caráter da massa continua receptivo ao autoritarismo.

4.2. Fromm: relações sadomasoquistas na política

Erich Fromm nasce em 1900, ano da publicação da obra fundadora da


psicanálise: A interpretação dos sonhos. Criado em um ambiente judeu ortodoxo,
Fromm iniciou sua carreira acadêmica pelo direito, dedicando-se, posteriormente, ao
estudo da sociologia, área em que obteve seu doutorado sob a orientação de Alfred
Weber, irmão de Max Weber. Em meados dos anos 1920 começa sua formação em
psicanálise no Instituto Psicanalítico de Berlim e, em 1930, afilia-se ao Instituto de
127

Pesquisa Social, em Frankfurt, onde desenvolveu vários estudos psicossociais,


cujas bases são a teoria psicanalítica e o marxismo. Em 1934, foi um dos primeiros
intelectuais do Instituto a emigrar aos Estados Unidos, passando, primeiramente, por
Genebra.

Em solo estadunidense publica, durante a Segunda Guerra Mundial, sua obra


mais conhecida O medo à liberdade, que servirá de base a nossas reflexões. Ele
explicita de antemão, no prefácio da primeira edição, seu objetivo ao publicá-la e
também a importância da psicologia, sem deixar de salientar que as contribuições
psicológicas não devem ser supervalorizadas. Portanto, não se trata de uma obra
psicológica, porém não podemos prescindir de suas contribuições, visto que a
“entidade básica do processo social é o indivíduo, com seus desejos e receios, suas
paixões e sua razão, suas inclinações para o bem e para o mal” (FROMM, 1983, p.
9). A tese principal de seu livro é que:

[...] o homem moderno, emancipado dos grilhões da sociedade pré-


individualista que simultaneamente lhe davam segurança e o cerceavam,
não alcançou a liberdade na acepção positiva de realização do seu eu
individual: isto é, a manifestação de suas potencialidades intelectuais,
emocionais e sensoriais. A liberdade, não obstante haver-lhe proporcionado
independência e racionalidade, fez com que ele ficasse sozinho e, por
conseguinte, angustiado e impotente. Este isolamento é intolerável e as
alternativas com que ele defronta são, seja a de escapar do peso dessa
liberdade para novas dependências e para a submissão, seja progredir para
a realização plena da liberdade positiva que se baseia na originalidade e
individualidade do homem. (FROMM, 1983, p. 10)

O homem moderno, tomado pelo isolamento e angústia decorrentes do


caráter individualista de sua época, defronta-se com duas possibilidades: ou se
submete, ou se liberta definitivamente. Convém lembrar que o livro data de 1941;
tempos difíceis. Época da história da humanidade que questiona o próprio conceito
de humanidade. É difícil não questionar, diante das atrocidades perpetradas pelo
nacional-socialismo de Hitler. O medo à liberdade prosperou e a maior parte dos
alemães se submeteu às ideias propagadas pelo Führer, subjugando e humilhando,
por sua vez, judeus e todos aqueles que não se enquadravam nos padrões arianos
de raça. O não submetimento significava o comprometimento da própria existência,
tempos de autoconservação, de desumanização, de impedimento da originalidade e
individualidade.

Fromm, entretanto, não se abstém de enfocar os aspectos sociais e


ideológicos relacionados à submissão, porém enfatiza o caráter sadomasoquista das
128

relações estabelecidas, que favorecem a adesão a regimes totalitários. Somente por


meio da interlocução entre as distintas especialidades é possível analisar tal adesão
– submissão diria Fromm. A submissão que permite e aceita a desumanização do
outro.

O nazismo sintetiza o narcisismo das pequenas diferenças, proposto por


Freud; basta uma única distinção que fira o narcisismo de alguém para que ela seja
objeto de agressividade. Essa diferença torna-se ainda mais significativa com o
reforço de uma propaganda ideologicamente orientada, favorecendo a formação de
um grupo psicológico. Estando ele constituído, as diferenças não são aceitas e a
ideia de alteridade não é tolerada e deve ser eliminada. Os alemães, ao substituírem
seus ideais de ego pelo do grupo, formaram uma massa psicológica, cujo desfecho
foi o Holocausto. Como resume Oswaldo Marques:

Guiada pelo discurso de Hitler e demais lideranças do regime, os indivíduos


foram conduzidos de forma fanática, sem reflexão, movidos pela realidade
psíquica, desprovidos da capacidade de avaliar o falso do verdadeiro. As
mentes individuais foram substituídas pela mente grupal, cujo preconceito
revela sua característica principal. Da perspectiva freudiana, constatamos
que na massa ariana os indivíduos substituíram seu ideal do eu pelo ideal
do grupo, materializado pela figura do Führer. Esse ideal de grupo foi apto a
sustentar as fronteiras entre a tolerância aos seus membros e a intolerância,
em especial diante do povo judaico, pelos seus costumes e diferenças.
Essa intolerância conduziu os envolvidos, movidos pelo ideal do grupo e
desprovidos de reflexão, à perseguição maciça dos judeus até chegar à
solução final, com o Holocausto. (MARQUES, 2015, p. 95-96)

A adesão, consciente e/ou inconsciente, ao ideal de um grupo tende a


subjugar o indivíduo, e alcançar a liberdade positiva deixa de ser uma alternativa.
Fromm enfatiza que o processo psíquico subjacente é encontrado em outras esferas
da vida social, em decorrência das relações de poder estabelecidas, como a
econômica e a religiosa. O autor resume, assim, o impacto das transformações
sociais e econômicas no indivíduo, durante os séculos XV e XVI:

O indivíduo está livre da opressão dos grilhões econômicos e políticos. Ele


também ganha em liberdade positiva graças ao papel ativo e independente
que tem de desempenhar no novo sistema. Mas simultaneamente está livre
daqueles vínculos que costumavam dar-lhe segurança e uma sensação de
relacionamento. A vida deixou de ser vivida em um mundo fechado cujo
centro era o homem; o mundo tornou-se ilimitado e ao mesmo tempo
ameaçador. Ao perceber seu lugar fixo em um mundo fechado, o homem
perde a resposta para o significado de sua vida; o resultado é que dele se
apoderou a dúvida acerca de si próprio e da meta de sua vida. Ele está
ameaçado por poderosas forças suprapessoais, o capital e o mercado. Sua
relação com seus semelhantes, todos seus competidores, tornou-se hostil e
alienada: ele está livre – isto é, está sozinho, isolado, ameaçado de todos
os lados. Não dispondo da riqueza ou do poder que o capitalista do
129

Renascimento tinha, e tendo também perdido o sentido de unicidade com


os homens e com o universo, ele se vê esmagado pela sensação de sua
inutilidade e desvalia individual. O Paraíso está perdido de vez, o indivíduo
acha-se só e enfrenta o mundo – um estranho arremessado em um mundo
ilimitado e ameaçador. A nova liberdade tende a criar um profundo
sentimento de insegurança, impotência, dúvida, solidão e angústia. Estes
sentimentos têm de ser mitigados para que o indivíduo possa atuar
satisfatoriamente. (FROMM, 1983, p. 58-59)

Fica evidente, portanto, que capital e mercado se constituíram como os novos


grilhões que acorrentaram os indivíduos modernos. Se, anteriormente, o ideal de
ego dos indivíduos era enfraquecido pelo o ideal da comunidade, o homem moderno
substitui-o pelo ideal capitalista, que o alienou ainda mais. O paraíso está perdido de
vez, escreve Fromm. O homem encontra-se novamente isolado, impotente e
angustiado, e busca estabelecer novos vínculos com o intuito de aplacar a angústia
decorrente da segurança perdida.

O mesmo processo foi observado durante a Reforma. Apesar de Lutero ter


proporcionado aos indivíduos a libertação do jugo impiedoso da Igreja de Roma, ele
“fazia com que submetessem a uma autoridade mais tirânica, a de um Deus que
insistia em sujeição completa do homem e no aniquilamento do ego individual como
condição indispensável à salvação” (FROMM, 1983, p. 73). E complementa: “A ‘fé’
era a convicção de ser amado sob a condição de capitulação, uma solução que tem
muito em comum com o princípio de submissão total do indivíduo ao Estado e ao
‘chefe’” (p. 73).

Observamos que a adesão irracional ao grupo, que anula o próprio indivíduo,


está presente nas relações políticas, econômicas e religiosas. Haveria, por
conseguinte, um traço inato nos indivíduos que os impulsionasse à liberdade e,
posteriormente, à submissão por temê-la? Como explicar que o homem acaba
eventualmente se submetendo? A ideia de ambiguidade da liberdade apresentada
por Fromm pode auxiliar nas respostas.

Fromm (1983) mostra que o caráter ambíguo da liberdade está presente


inicialmente no primeiro processo de individuação, no processo da constituição do
eu. Assim, ele enfatiza seu caráter dialético. Se, por um lado, a criança, pouco a
pouco, se percebe como uno e se sente fortalecida física e emocionalmente, quanto
mais ela se desenvolve, “mais ela busca a liberdade e a independência” (p. 33). A
individuação, por outro lado, cria uma sensação de impotência e angústia, devido ao
afastamento dos vínculos primários que oferecem segurança e sentimento de
130

pertença. Há, de um lado, uma experiência prazerosa, pois o ego se engrandece ao


individualizar-se, do outro, uma sensação de impotência e angústia que é
desprazerosa.

Não se trata de uma questão puramente psíquica envolvendo o princípio do


prazer; desde tenra idade a criança percebe que os “limites do crescimento da
individuação e do eu são estabelecidos em parte por condições individuais, mas
essencialmente por condições sociais” (FROMM, 1983, p. 33). A liberdade é positiva
e negativa; ela liberta, porém ao fazê-lo, isola, angustia e aprisiona.

As condições sociais influenciam sobretudo na vida adulta; o indivíduo


isolado, à mercê de forças poderosas e diante de um mundo repleto de aspectos
perigosos e avassaladores - como no nazismo, no capitalismo e na Reforma -, tende
a sucumbir. “Surgem impulsos para se renunciar à própria individualidade, para
superar o sentimento de isolamento e de impotência submergindo completamente
no mundo exterior” (FROMM, 1983, p. 33). Dessa maneira, submergiram alemães,
operários e reformistas. A renúncia à própria individualidade significa massificação, é
a submissão.

Para o autor, o período da Reforma impactou sobremaneira como os


indivíduos se conduzem na vida moderna; os reformistas Lutero e Calvino
“prepararam o homem psicologicamente para o papel que tinha de assumir na
sociedade moderna: o de sentir seu próprio eu como algo insignificante e de estar
pronto a subordinar sua vida exclusivamente a fins que não os seus próprios”
(FROMM, 1983, p. 96). Segundo o autor, a doutrinação teológica reformista rompeu
a coluna vertebral espiritual do indivíduo, que, aquebrantado, entrega sua
individualidade e subsume. Assim, o homem submetido a “tornar-se apenas um
meio para a glória de um Deus que não simbolizava justiça nem amor, estava
suficientemente preparado para aceitar o papel de um servo da máquina econômica
– e, eventualmente, de um Führer” (p. 96).

Considerando as contribuições de Fromm, retomemos as perguntas feitas


anteriormente. A primeira questionava a existência ou não de um caráter inato à
submissão. Podemos inferir que não, entretanto há substratos psíquicos que
remontam à primeira infância, quando a criança se constitui como um eu isolado.
Quanto à eventual submissão do homem, tópico da segunda questão, parece-nos
que o indivíduo tende à repetição, especialmente diante de condições sociais,
131

econômicas e políticas adversas. Tudo indica que se submeta, que eleja outro ideal
de grupo, pois está incapacitado de construir um ideal de ego próprio; o indivíduo
continua enfraquecido, pois a solidão, o medo e a perplexidade persistem.

Apesar dos grandes avanços científicos nas mais diversas áreas, a liberdade
positiva continua, senão impedida, dificultada. Crise econômica mundial, guerras
aqui e acolá, ataques terroristas, xenofobia, refugiados econômicos e políticos,
separatismos.... Perante tantos horrores e inequidades, a busca pela felicidade, pela
realização do eu, pela individualização torna-se um trabalho hercúleo. As condições
sociais, econômicas, políticas e religiosas limitam a realização total do ego, “cada
sociedade caracteriza-se por um certo nível de individuação além do qual o indivíduo
normal não pode passar” (FROMM, 1983, p. 33). Nesse sentido, alcançar a
liberdade positiva é uma tarefa difícil. A tendência é o indivíduo seguir o caminho
oposto, “recuar, desistir de sua liberdade e procurar vencer a solidão eliminando a
brecha que se abriu entre ele e o mundo” (p. 117). A fenda divisória é transposta por
mecanismos de fuga da liberdade, saídas que produzem a sensação de segurança,
que havia sido perdida, e levam, invariavelmente, à rendição da individualidade. A
submissão “mitiga uma angústia insuportável e, evitando o pânico, possibilita viver;
contudo não resolve os problemas subjacentes e seu preço é um gênero de vida que
muitas vezes consiste unicamente de atividades automáticas e compulsivas” (p.
117).

Essa submissão, que conforta ao fundir o eu ao todo por meio da renúncia à


liberdade, esse anseio de submissão e dominação, esse mecanismo de fuga revela
os impulsos masoquistas e sádicos, que todo indivíduo possui em distintos graus.
Para Fromm, o indivíduo, ao entregar sua individualidade, sua liberdade, a alguém
ou algo valorizado socialmente, engrandece seu enfraquecido eu. As forças
opressoras são tão insuportáveis, que o afastamento da dor através da incorporação
ao sistema é vivido como felicidade, como empoderamento. Colocar-se na posição
objetal significa vida, uma vida masoquista.

“O indivíduo assustado busca alguém ou algo a que possa prender seu ego;
não suporta mais ser seu ego individual e tenta, freneticamente, descartar-se dele e
reencontrar outra vez a segurança eliminando esse fardo: o seu ego” (FROMM,
1983, p. 125). Liberta-se de seu ego às custas da submissão.
132

Porém, sabemos que as tendências masoquistas não andam só; as sádicas


invariavelmente as acompanham. As tendências sádicas, por sua vez, visam tornar
os outros dependentes, explorar os outros, e fazer ou ver os outros sofrerem. Há
uma relação de dependência entre ambos, cujo elo é o próprio indivíduo como
objeto. “A pessoa sádica precisa de seu objeto, tanto quanto a masoquista precisa
do dela, só que, ao invés de procurar segurança pelo fato de ser absorvida, ela a
conquista absorvendo outrem. Em ambos os casos, a integridade do eu individual se
perde” (FROMM, 1983, p. 130).

Essa dependência está relacionada sobretudo à necessidade básica humana


de associação, em virtude de a solidão ser insuportável. “É sempre a incapacidade
de suportar a solidão do eu individual que conduz ao impulso para entrar em uma
relação simbiótica com outrem” (FROMM, 1983, p. 130). Fica evidente, na
perspectiva frommiana, que o indivíduo enfrenta sucessivos processos de
individuação, iniciado com o primordial, o da criança, como vimos anteriormente, e
se defronta com o mesmo dilema: liberdade positiva ou negativa; buscar
incessantemente a individualidade ou sucumbir ao conforto e segurança,
submetendo seu próprio eu individual, liberdade e suas vicissitudes ou o medo à
liberdade.

É nesse processo que caminha a humanidade, um processo dialético, com


momentos de maior abertura para o pleno florescer do eu e momentos de
recrudescimento da vida, em que a rendição de si torna-se a única saída viável.
Momentos em que o sentimento de impotência e angústia predominam e o indivíduo
se entrega; individualidade e liberdade são, então, perdidas em relações
sadomasoquistas. Os indivíduos não são necessariamente sádicos ou masoquistas,
“porém ficam oscilando constantemente entre o lado ativo e o passivo do complexo
simbiótico, de modo que muitas vezes é difícil decidir qual o lado que está agindo
num dado momento” (FROMM, 1983, p. 131). Ora operam tendências masoquistas,
ora sádicas.

Esse tipo de relação, em que ambos os lados perdem suas individualidades, é


observado mais nitidamente em momentos de crise social, política e econômica,
como durante o nazismo. Procurando entender como os alemães aceitaram
passivamente sua própria submissão, Fromm propõe a existência de um caráter
133

social com tendências eminentemente sadomasoquistas. Rouanet sintetiza


brilhantemente:

O caráter social é a soma dos traços comuns a todos os indivíduos que


estão inseridos na mesma situação social, e na mesma condição de classe.
Constitui um padrão normativo, em função do qual o processo de
socialização modela as personalidades individuais. O interesse do grupo (ou
da classe dominante) é formulado na forma de ideologia, a qual se cristaliza
como caráter social, e este, internalizado no curso do processo de
socialização, produz um caráter individual tão próximo quanto possível do
padrão normativo típico, proposto pelo caráter social. (ROUANET, 1998, p.
54)

É no processo de submissão, ou não, ao padrão normativo vigente, que se


evidencia a característica sadomasoquista dos vínculos estabelecidos pelos
indivíduos e, por conseguinte, como se posicionam frente à autoridade; como vimos
anteriormente, a criança, de forma similar, pouco a pouco, se posiciona diante à
autoridade, lutando pela liberdade ou submetendo seu ego. No estabelecimento de
laços sociais, de vínculos secundários, os indivíduos têm demonstrado tendências
para estabelecer relações sadomasoquistas, submetendo-se ao poder instituído,
especialmente diante de condições sociais e políticas adversas. Como afirma
Rouanet (1998):

[...] a estrutura sadomasoquista sempre esteve presente em grande parte


da história humana, caracterizada, justamente, pela submissão da
existência a forças naturais ou históricas sobre as quais os indivíduos não
tinham grande influência. Mas a intensidade de sua manifestação é
historicamente variável” (p. 57).

Ela fica mais facilmente observável em momentos de incertezas, quando o


ego está enfraquecido. Lembremo-nos que a relação dos homens com Deus,
pregada pelo protestantismo, era de submissão e havia preparado psicologicamente
os indivíduos a novas submissões. O mesmo foi observado nas transformações
econômicas, que levaram o indivíduo a render-se às regras do capital; e, também,
durante o regime nazista. Se, no entanto, direcionarmos nossa atenção à atualidade,
observamos um ambiente propício para o caráter social sadomasoquista, autoritário,
mostrar novamente sua face de forma clara.

Até a crise econômica do início deste século, o indivíduo vivia uma situação
social que lhe permitia ter a sensação de certa liberdade; em outras palavras, ele
estava submetido a formas mais sutis de dominação. O recrudescimento e a
dimensão global da crise, a corrupção, a crescente onda migratória e atos terroristas
são elementos que favorecem a pauperização da vida. O indivíduo, combalido
134

econômica, social e fisicamente, se sente impotente, sem valor, e seu ego perde o
vigor, se enfraquece. A angústia é tão dilacerante, que o indivíduo ou adoece, ou a
afasta, subjugando-se psiquicamente.

O momento atual, nesse sentido, propicia a submissão do eu individual, pois


as condições necessárias estão presentes, tanto sociais quanto psíquicas. A decisão
dos britânicos de deixar o bloco europeu e a eleição de Donald Trump deixam
transparecer, num primeiro momento, a adesão ao discurso nacionalista,
protecionista e isolacionista. A ideia de nação, a preservação dos valores culturais e
a exaltação da existência de vilões responsáveis pelos infortúnios do indivíduo,
associados à impotência do eu, facilitam a rendição da individualidade, pois a ideia
de pertencimento à sua nação afasta psiquicamente o sofrimento e permite que sua
agressividade escoe em direção ao distinto, ao estrangeiro, ao estranho. O ego se
engrandece ao submeter-se; o grupo fortalece o indivíduo, porém, leva-o à
submissão. Talvez, ambas as campanhas souberam reproduzir a mentalidade
existente, o Zeitgeist.

As campanhas nacionalistas britânica e americana ecoaram nos ouvidos de


parte da sociedade, sobretudo daqueles indivíduos mais afetados pela crise
econômica. A mensagem subliminar, em ambas, - A Grã-Bretanha para os
britânicos; os Estados Unidos da América para os americanos, cujos respectivos
slogans eram Take Back Control e Make America Great Again – facilita a adesão ao
discurso nacionalista. Alienado social e economicamente, isolado, desamparado e
angustiado, o indivíduo substitui seu ideal de ego pelo do grupo. Não se trata de um
grupo qualquer, trata-se de um grupo chamado nação. E, tampouco, se trata de
qualquer nação. Por conseguinte, um ideal que não se deve menosprezar. Pertencer
a um grupo capaz de retomar o controle do Reino Unido e engrandecer a América
novamente produz a segurança necessária para que o ego se engrandeça. No
entanto, a plena expressão de sua individualidade fica impedida.

Potencializado e, simultaneamente, reprimido pelo grupo, sua agressividade é


direcionada ao out-group. Assim, muçulmanos, chineses, búlgaros, poloneses,
latino-americanos e tantos outros estranhos viraram alvo de hostilidade.
Muçulmanos são terroristas; chineses, búlgaros e poloneses roubam posições de
trabalho; mexicanos são estupradores. Eles substituíram os judeus e comunistas do
tempo do nazismo. Basta recorrer a ambas campanhas para constatar as
135

semelhanças com a propaganda fascista, que “ataca fantasmas [bogies], e não


oponentes reais, ou seja, ela constrói um imaginário do judeu ou do comunista,
separa-o em pedaços sem prestar muita atenção a como esse imaginário se
relaciona com a realidade” (ADORNO, 2015b, p. 143). O poder do imaginário sobre
os indivíduos em massa havia sido salientado por Le Bon; as palavras podem
evocar imagens poderosíssimas. “Manejadas com arte, possuem realmente o poder
misterioso que outrora lhe atribuíam os adeptos da magia. Provocam na alma das
multidões as mais formidáveis tempestades e podem também acalmá-las” (LE BON,
2008, p. 98)

Parece evidente que a adesão ao discurso nacionalista e isolacionista, em


ambos os lados do Atlântico, mostra o estabelecimento de vínculos masoquistas e
sádicos. Nesse sentido, as elaborações de Fromm poderiam contribuir teoricamente
para elucidar os mecanismos psíquicos envolvidos nesse caminho tomado por
britânicos e ingleses. Fiel à psicanálise, apesar de ter restrições à universalidade do
complexo de Édipo e à pulsão de morte, o autor salienta que somente uma
psicologia “que recorra à concepção de forças inconscientes pode penetrar nas
confusas racionalizações com que deparamos ao analisar quer um indivíduo, quer
uma cultura” (FROMM, 1983, p. 114). A política como expressão cultural e social do
indivíduo, portanto, é uma área que pode se beneficiar das contribuições da
psicanálise.

. 4.3. Adorno: autoritarismo e política

Theodor W. Adorno (1903-1969), filho de pai judeu e mãe católica de classe


média alta, teve boa formação. Apesar de ter sido influenciado pelos dons artísticos
de sua mãe, seu interesse primordial era a filosofia. Jovem, entrou na Universidade
de Frankfurt, porém não se restringiu aos estudos filosóficos; interessou-se pela
sociologia, psicologia e música. Após apresentar sua dissertação sobre a
fenomenologia de Husserl, passou um tempo em Viena estudando música; são
inúmeros os textos em que enfoca aspectos filosóficos e técnicos da música.

Em seu retorno, torna-se professor na mesma universidade onde havia


estudado, associando-se ao Instituto, que aglutinaria intelectuais proeminentes da
época. A chegada de Hitler ao poder e a disseminação de ideias antissemitas fez
136

com que o Instituo fosse impedido de seguir suas pesquisas, tendo primeiro se
estabelecido em Genebra e posteriormente em Nova Iorque, associado à
Universidade de Columbia. O exílio intensificou-se, e Adorno emigrou para os
Estados Unidos, tendo passado por Oxford. Após seu retorno à Alemanha, em 1949,
ele desempenha papel de liderança no Instituto.

Em solo americano, instalou-se, finalmente, em Berkeley, onde associou-se a


Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford, publicando Personalidade
autoritária; no prefácio da primeira edição, Horkheimer (1950) expressa que gostaria
que essa obra tivesse um lugar na história da interdependência entre a ciência e o
clima cultural, cujo objetivo seria “desenvolver e promover uma compreensão dos
fatores sociopsicológicos que possibilitaram o tipo autoritário ameaçar substituir o
tipo individualista e democrático” (p. x)67. Em busca dessa compreensão os autores
apresentam sua hipótese principal: “as convicções política, econômica e social de
um indivíduo frequentemente formam um padrão amplo e coerente, como se unidos
por uma ‘mentalidade’ ou ‘espírito’, e que este padrão é uma expressão de
profundas tendências de sua personalidade” (ADORNO et al., 1950, p. 27)68.

A hipótese é a de que há um componente psíquico - personalidade - que


influencia as convicções dos indivíduos e a consequente adesão ou não ao discurso
autoritário, antidemocrático. Por que há indivíduos que aderem facilmente a regimes
totalitários que os tolhem e subjugam? Tal indagação não é estranha aos
frankfurtianos, a irracionalidade havia influenciado suas pesquisas. Adorno e os
frankfurtianos modificaram o foco de suas pesquisas, como salienta Roaunet.

“Como é possível que a classe operária pense e aja contra os seus próprios
interesses?” A pergunta correspondente, para a Escola de Frankfurt, passou
a ser a seguinte: “Como é possível que a maioria da população, nos países
industrializados do Leste e do Oeste, pense e aja num sentido favorável ao
sistema que o oprime?” (ROUANET, 1998, p. 70)

Foi diante dessa primeira incongruência e a consequente necessidade de


repensar a leitura ortodoxa do marxismo, que a psicanálise encontrou espaço no
Instituto; “o fato a ser explicado consistia na vitória excessivamente fácil da ideologia

67
[...] to develop and promote an understanding of social-psychological factors which have made it possible for
the authoritarian type of man to threaten to replace the individualistic and democratic type.
68
[...] political, economic, and social convictions of an individual often form a broad and coherent pattern, as if
bound together by a "mentality" or "spirit", and that this pattern is an expression of deep-lying trends in his
personality.
137

sobre a realidade, explicação que o marxismo clássico não tinha condições de


fornecer, e que foi encontrada no freudismo” (ROUANET, 1998, p. 71).

Horkheimer (1999), em sua conferência inaugural como diretor, propusera um


rompimento com o marxismo dogmático que preconizava que “a psique dos homens,
a personalidade, como o direito, a arte, a filosofia, devem ser derivados inteiramente
da economia, são meras imagens que espelham a economia” (p. 130). Este Marx
abstrato, segundo o autor, é mal interpretado. Sua proposta, em contrapartida, é
apresentada por meio de uma questão fundamental:

[...] quais conexões é [sic] possível apurar – num determinado grupo social,
num período determinado, em determinados países – entre o papel desse
grupo no processo econômico, a transformação ocorrida na estrutura
psíquica dos seus membros singulares e os pensamentos e as instituições
que agem sobre esse mesmo grupo, como totalidade menor no todo da
sociedade, e que são por sua vez o seu produto? (HORKHEIMER, 1999, p.
131)

Para implementar as novas diretrizes epistemológicas, Horkheimer elege a


classe operária como foco principal das investigações do Instituto e convoca as
diversas ciências especializadas a participarem na “contínua interpenetração e
desenvolvimento dialéticos entre a teoria filosófica e a prática da ciência particular”
(HORKHEIMER, 1999, p. 128). Ele foi além, enfatizando a necessidade de agregar
pesquisas empíricas, cujas fontes seriam estatísticas publicadas, relatórios de
organizações e associações políticas e materiais de entidades públicas. Soma-se a
essas fontes a imprensa e a literatura.

Até mesmo os questionários, segundo o autor, poderiam ser inseridos nas


pesquisas, desde que não se tire conclusões exclusivamente a partir deles, pois elas
tendem a ser prematuras e apressadas. Ele, inclusive, menciona que, em relação à
“preparação dos questionários, a pesquisa social americana já concluiu importantes
trabalhos preliminares que pretendemos utilizar e desenvolver mais adiante para os
nossos propósitos” (HORKHEIMER, 1999, p. 131). Em solo americano, suas
diretrizes de promover a pesquisa social empírica ganha corpo com a pesquisa
sobre personalidade autoritária.

Coube a Adorno realizá-la, contando com a colaboração e a expertise


americana em pesquisa quantitativa. Nesse caso, o objeto de estudo não era a
classe operária. A barbárie que assombrou a Europa durante a segunda guerra
mundial, cuja irracionalidade exterminou milhões de judeus, homossexuais, ciganos
138

e outros grupos sociais minoritários, não poderia e não havia sido esquecida. Assim,
Adorno e colaboradores empenharam-se em pesquisar, inicialmente, o
antissemitismo. Os autores partem do pressuposto que o antissemitismo não está
fundamentado nas características dos judeus, mas, sim, na subjetividade dos
indivíduos e na situação em que se encontram.

Tendo a personalidade como foco principal, voltam-se ao indivíduo e suas


manifestações antissemitas. Entretanto, seus sujeitos de pesquisa eram aqueles que
não as expressavam aberta e conscientemente, pois poderia haver discrepância
entre a fala e as ideias mais profundamente arraigadas. “O que as pessoas
expressam, em menor grau, e o que realmente pensam depende, em grande
medida, da atmosfera de opinião na qual eles vivem” (ADORNO et al., 1950, p. 4) 69.
Assim, diante de câmbios na opinião pública, haveria indivíduos que são mais
suscetíveis à propaganda que outros; portanto, a adesão ou não à propaganda
política fascista teria que ser investigada a partir da personalidade.

A personalidade não é puro reflexo das condições sociais nas quais o


indivíduo vive, mas, resultado de suas experiências de vida e, portanto, tem um
aspecto estrutural enraizado. Nesse sentido, é “capaz de atuar por iniciativa própria
sobre o meio social e de selecionar os diversos estímulos impostos; algo que,
embora seja modificável, é frequentemente muito resistente à mudança radical”
(ADORNO et al., 1950, p. 6)70. Tanto a fixidez quanto a fluidez da personalidade são
capazes de explicar porque pessoas em determinadas condições sociais e políticas
têm pontos de vista distintos ou mesmo conflitantes.

Portanto, o enfoque adequado para estudar os indivíduos potencialmente


fascistas deve levar em consideração tanto as características permanentes da
personalidade quanto as flexíveis. Por conseguinte, devemos

[...]; considerar ambas categorias não como mutuamente excludentes, mas


como extremos de um único contínuo, ao longo do qual as características
humanas podem ser situadas, e deve fornecer uma base para a
compreensão das condições que favorecem um extremo ou o outro. A
personalidade é um conceito que serve para explicar uma relativa
estabilidade. Porém há que enfatizar novamente que a personalidade é
principalmente um potencial; é uma prontidão para o comportamento e não
o próprio comportamento; embora consista na disposição de se comportar
de determinada maneira, o comportamento que realmente ocorre sempre

69
What people say and, to a lesser degree, what they really think depends very largely upon the climate of
opinion in which they are living.
70
[...] capable of self-initiated action upon the social environment and of selection with respect to varied stimuli,
something which though Always modifiable is frequently very resistant to fundamental change.
139

dependerá da situação objetiva. Quando a preocupação são as tendências


antidemocráticas, uma delimitação das condições para a expressão
individual exige uma compreensão da organização total da sociedade.
(ADORNO et al., 1950, p. 7)71

Podemos deduzir, das palavras dos autores, que tanto aspectos individuais
quanto sociais são fundamentais para o entendimento do comportamento dos
indivíduos em sociedade. Indivíduo e sociedade estão intrinsicamente relacionados.
Além disso, o comportamento é a expressão superficial de estruturas psíquicas
internas dos indivíduos, e é nesse sentido que a psicologia profunda tem a contribuir
na pesquisa sobre personalidade autoritária, pois ela é capaz de “revelar forças da
personalidade que se encontram no inconsciente do sujeito” (ADORNO et al., 1950,
p. 12)72.

Apesar da influência dos pressupostos teóricos psicanalíticos freudianos, os


pesquisadores utilizaram diversas escalas de atitude, entrevistas e testes projetivos,
tornando este estudo singular, pois se distancia dos estudos interdisciplinares nos
Estados Unidos, cujo enfoque até então era hegemonicamente comportamentalista.
A personalidade autoritária além de ser um livro essencial à psicologia social,
também, pode ser referência para a psicologia política.

Ainda que a política não tenha sido a preocupação central da pesquisa,


Adorno e colaboradores pesquisam a ideologia político-econômica e sua relação
com o etnocentrismo, visto que o fascismo, “que representa a estrutura e a ideologia
política e econômica de direita mais extrema, é também a forma antidemocrática
mais virulenta do etnocentrismo” (ADORNO et al., 1950, p. 151)73. É nesse sentido
que foi construída a escala de conservadorismo político-econômico (CPE), que foi
complementada com entrevistas dos sujeitos pesquisados.

Esta escala tinha por objetivo avaliar a ideologia político-econômica dentro de


uma dimensão liberalismo-conservadorismo, porém verificou-se que havia
diferenças qualitativas importantes entre os distintos graus de tendências à direita e

71
[...]; it must regard the two not as mutually exclusive categories but as extremes of a single continuum along
which human characteristics may be placed, and it must provide a basis for understanding the conditions wich
favor the one extreme or the other. Personality is a concept to account for relative permanence. But it may be
emphasized again that personality is mainly a potencial; it is a readiness for behavior rather than behavior itself;
although it consists in disposition to behave in certain ways, the behavior that actually occurs will always depend
upon objective situation. Where the concern is with antidemocratic trends, a deliniation of the conditions for
individual expression requires an understanding of the total organization of society.
72
[...] bringing to light personality forces that lay in the subject’s unconscious.
73
[...] which represents the most extreme right-wing political and economic structure and ideology, is also the
most virulent antidemocratic form of ethnocentrism.
140

à esquerda do espectro político. Segundo os autores, isso se deve, em grande parte,


à heterodoxia ideológica, visto que há indivíduos que não se adequam às categorias
políticas formais. Assim, propuseram desconstruir a dicotomia direita/esquerda,
liberal/conservador, em vários padrões ideológicos, destacando a noção de
pseudoconservadorismo, que seria o mais significativo em termos de seu potencial
antidemocrático.

No capítulo sobre as questões política e econômica, Adorno e colaboradores


elencam componentes formais da política, a saber: ignorância e confusão, a
rotulação e a personalização, pseudoconservadorismo, ideologia aparente e opinião
verdadeira, os burocratas e políticos e, finalmente, a utopia.

Com relação à ignorância e à confusão na área política e econômica, os


autores comentam que os indivíduos, em geral, não conhecem a fundo o que
expressam, daí decorrem as incongruências observadas. Isso não significa que suas
opiniões são desprovidas de significação. Verificou-se que não apenas os sujeitos
que apresentaram índice elevado na escala de conservadorismo político-econômico,
mas também aqueles com índice baixo. Entretanto, os primeiros tendem, mais
frequentemente, a ser acríticos e a analisar de forma superficial os eventos políticos,
não levando em consideração as complexidades da sociedade contemporânea e
contribuindo para “criar um estado geral de ansiedade e incerteza, o qual é o terreno
fértil ideal para o tipo moderno de movimento reacionário de massa. Tais
movimentos são sempre de caráter ‘populista’ e maliciosamente anti-intelectual”
(ADORNO et al., 1950, p. 658).

A crise econômica de 2008, que abalou nações de forma distinta, fez os


mesmos sentimentos aflorarem, estabelecendo o ambiente social propício para que
o discurso reacionário proliferasse na sociedade; os representantes da política
institucionalizada colocaram-se na linha de frente, proferindo-os entusiasticamente.
De norte a sul, de leste a oeste, a oratória política soou como acordes musicais para
as massas. O autoritarismo aprimorou-se; o discurso de ódio, atualmente, possui um
canal de transmissão poderoso, as novas tecnologias possibilitam sua disseminação
através das mídias sociais, favorecendo o surgimento de uma massa psicológica
apta a aderir ao discurso autoritário.

Parece-nos que o sonho utópico dos revolucionários franceses - liberdade,


igualdade e fraternidade - está em seu ocaso, visto que é impossível sonhar “o reino
141

da liberdade quando se está imerso no reino da necessidade. A totalidade, nessas


condições, é sinônimo de totalitarismo” (ROUANET, 1998, p. 75); é sinônimo da
realidade à qual só nos resta adequar. Como advertem os autores de PA:

[...] não há utopia e, pode-se acrescentar, não deveria haver utopia. O


homem tem de ser "realista". Essa noção de realismo, contudo, não se
refere à necessidade de julgar e considerar mediante o discernimento
objetivo e factual, mas ao postulado que se reconhece, desde o início, a
superioridade esmagadora do existente sobre o indivíduo e suas intenções,
que defende uma adaptação que implica resignação em relação a qualquer
tipo de aperfeiçoamento básico, que desiste de qualquer coisa que possa
ser chamada de devaneio e se remodele em um apêndice da maquinaria
social. Isto é refletido pela opinião política na medida em que qualquer tipo
de ideia utópica na política é excluída completamente. (ADORNO et al.,
1950, p. 695)74

A utopia impedida reflete o existente unidimensional, sem contradições que


permitam pensar uma sociedade distinta da qual vivemos. É a “incapacidade de
distinguir a realidade, devido à cegueira socialmente necessária induzida pela
ideologia” (ROUANET, 1998, p. 73); é falsa consciência. A partir da concepção de
falsa consciência é possível estabelecer distinção entre o conservador genuíno e o
aparente. É certo que não se tratam de categorias estanques, entretanto é possível
diferenciá-las.

O primeiro se caracteriza pelo apoio ao capitalismo em sua forma liberal e


individualista e, simultaneamente, apoia os valores democráticos, rechaçando os
preconceitos contra as minorias. Por sua vez, o pseudoconservador ou fascista em
potencial tende a se apegar exageradamente às convenções sociais e políticas,
submetendo-se à autoridade. Consequentemente, o conservador genuíno teria certo
nível de consciência, enquanto o aparente teria uma falsa consciência, pois estaria
totalmente subsumido aos ditames sociais: o eclipse da razão.

A razão eclipsada que caracteriza o pseudoconservador, nesse sentido,


favorece a adesão ao discurso autoritário, pois encontra uma estrutura psíquica
propícia ao “convencionalismo e submissão autoritária, ao nível do ego,
acompanhado de violência, impulsos anárquicos e destruição caótica na esfera

74
[...] there is no utopia and, one may add, there should be no utopia. One has to be "realistic”. This notion of
realism, however, does not refer to the necessity of judging and accounting on the basis of objective, factual
insight, but rather to the postulate that one recognizes from the very beginning the overwhelming superiority of the
existent over the individual and his intentions, that one advocates an adjustment implying resignation with regard
to any kind of basic improvements, that one gives up anything that may be called a daydream, and reshapes
oneself into an appendage of the social machinery. This is reflected by political opinion in so far as any kind of
utopian idea in politics is excluded altogether.
142

inconsciente” (ADORNO et al., 1950, p. 675)75. Há, portanto, mecanismos


conscientes e inconscientes atuando simultaneamente. Inúmeros argumentos que
creem ser seus próprios indicam um processo de racionalização e, por conseguinte,
uma falsa consciência.

A declarada ideologia dos pseudoconservadores não é uma mera formação


reativa contra sua rebeldia subjacente, ela é o reflexo de determinantes psíquicos
inconscientes que, por meio de racionalização, admitem a expressão de impulsos
agressivos e destrutivos contra os considerados débeis, cuja categorização inclui
uma gama expressiva de minorias oprimidas. A agressividade expressa-se, então,
de modo modificado e, até certo ponto, tolerável, dependendo das condições sociais
e políticas de seu entorno.

Se, por um lado, eles se tornam opressores, por outro, são, também,
oprimidos, pois se colocam semelhantemente em posição de submissão aos ideais
sociais vigentes, por meio da “rígida identificação do indivíduo com um superego
exteriorizado” (ADORNO et al., 1950, p. 676). Esse ideal de ego autoritário ganha
ainda maior destaque nas democracias atuais, que delegam ao chefe do Executivo o
poder, favorecendo a personificação de seus ideais. A identificação fica favorecida,
sobretudo, em períodos eleitorais, quando “as questões objetivas em jogo estão
geralmente ocultas atrás da exaltação dos indivíduos envolvidos, muitas vezes em
categorias que têm pouquíssima relação com as funções que esses indivíduos
devem cumprir” (ADORNO et al., 1950, p. 669)76. A propaganda política
antidemocrática é expert na produção de políticos messiânicos, desde que as
condições sociais e políticas favoreçam. Como messias, os políticos têm o poder da
revelação.

A “esmagadora maioria dos pronunciamentos de todos os agitadores é


direcionada ad hominem” (ADORNO, 2015c, p. 153); a expressão latina não poderia
ser mais apropriada, pois os discursos políticos são essencialmente oriundos das
emoções e apelam a elas, em detrimento da razão e da lógica. Portanto, para
compreendermos tal revelação é necessário recorrer à psicologia, uma vez que o
intuito do orador é atrair seguidores a partir de enlaces psicológicos e não

75
[...] authoritarian submissiveness on the ego level, with violence, anarchic impulses, and chaotic
destructiveness in the unconscious sphere.
76
[...] the objective issues at stake are mostly hidden behind the exaltation of the individuals involved, often in
categories which have but very little to do with the functions those individuals are supposed to fulfill.
143

argumentos racionais; seu propósito “é instigar metodicamente o que, desde o


famoso livro de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como ‘a psicologia das
massas’” (ADORNO, 2015c, p. 154).

A atual conjuntura econômica, política e social - crash do mercado financeiro,


guerras localizadas e infindáveis, radicalização islâmica, migração em massa -, em
suma: momentos de instabilidade, produz no ego um sentimento de angústia e
desamparo. Assim, o “indivíduo tem de lidar com problemas que realmente não
compreende e desenvolver certas técnicas de orientação, por mais brutas e
falaciosas que sejam, que o ajudem a encontrar seu caminho através do escuro”
(ADORNO et al., 1950, p. 663-664)77.

Encontra-se em situação semelhante àquela vivida em sua infância, quando,


diante de um mundo estranho e ameaçador, a criança busca conforto e prazer nas
relações estabelecidas na família. Age tal qual a “criança que tem medo do homem
mau e, ao mesmo tempo, é tentada a chamar todo estranho de ‘tio’” (ADORNO et
al., 1950, p. 664)78.

A opacidade da situação política e econômica atual, para a pessoa média,


proporciona uma oportunidade ideal para o retrocesso ao nível infantil de
estereotipia e personalização. As racionalizações políticas empregadas
pelos desinformados e confusos são renovações compulsivas de
mecanismos irracionais nunca superados durante o crescimento do
indivíduo. Este parece ser um dos principais elos entre opiniões e
determinantes psicológicos. (ADORNO et al., 1950, p. 664)79

Passado mais de meio século, essas palavras são atuais. Os discursos dos
novos paladinos seguem almejando “convencer as pessoas manipulando seus
mecanismos inconscientes, e não apresentando ideias e argumentos” (ADORNO,
2015b, p. 138). O que se revela, portanto, são mecanismos psíquicos e não
propostas racionais que almejem a transformação social. As desigualdades
permanecem e se tornam a realidade objetiva a que os indivíduos devem se
adaptar.

77
The individual has to cope with problems which he actually does not understand, and he has to develop certain
techniques of orientation, however crude and fallacious they may be, which help him to find his way through the
dark, were.
78
[...] child who is afraid of the bad man is at the same time tempted to call every stranger "uncle."
79
The opaqueness of the present political and economic situation for the average person provides an ideal
opportunity for retrogression to the infantile level of stereotypy and personalization. The political rationalizations
used by the uninformed and confused are compulsive revivals of irrational mechanisms never overcome during
the individual's growth. This seems to be one of the main links between opinions and psychological determinants.
144

Para tanto, é necessário um líder que tenham a dom da oralidade a fim de


transformar os indivíduos em massa. Os líderes antidemocráticos são como
catalisadores, cujo objetivo é transformar essas “pessoas em ‘turba’, isto é,
multidões tendentes à ação violenta sem nenhum fim político sensato” (ADORNO,
2015c, p. 154). O autor acrescenta que

[...] a abordagem dos agitadores é verdadeiramente sistemática e segue um


padrão rigidamente estabelecido de “dispositivos” claramente delineados.
Isso não pertence apenas à unidade fundamental do propósito político – a
abolição da democracia através do apoio das massas contra o princípio
democrático-, mas ainda mais à natureza intrínseca do conteúdo e
apresentação da própria propaganda. (ADORNO, 2015c, p. 154)

Nesse sentido, a propaganda fascista e antidemocrática favorece um padrão


de oratória bastante semelhante nos distintos pronunciamentos, pois aqueles que os
proferem se utilizam de repetições constantes e esvaziadas de ideias. A semelhança
é tal que basta analisar as afirmações de um líder antidemocrático para se ter um
panorama completo da técnica da propaganda fascista. Ainda que seja prudente não
se precipitar em chamar de fascista o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald
Trump, não podemos deixar de observar em seus discursos a mesma técnica
empregada por Hitler ou Mussolini, ou tantos outros líderes. Suas ideias racistas,
machistas, xenofóbicas e nacionalistas, pronunciadas abertamente, podem ser
facilmente comparadas ao padrão da propaganda fascista, tanto na forma quanto no
conteúdo superficial e estereotipado.

As reflexões de Adorno, assim, ajustam-se perfeitamente à campanha


eleitoral de Trump, pois ele pode ser considerado como um incitador da massa, visto
que a construção psicológica do imaginário do líder, apresentada por Freud e
retomada pelo pensador frankfurtiano, “é corroborada por sua impressionante
coincidência com o tipo do líder fascista, [...]. Suas descrições são adequadas à
figura de Hitler não menos que às idealizações a que os demagogos norte-
americanos tentam se moldar” (ADORNO, 2015c, p. 170).

Ele aborda os ganhos narcísicos que os indivíduos massificados têm frente à


adesão à propaganda fascista, a qual “sugere continuamente, e algumas vezes de
forma maliciosa, que o seguidor, simplesmente por pertencer ao in-group, é melhor,
superior e mais puro que aqueles que são excluídos” (ADORNO, 2015c, p. 177).
Respaldados pelas palavras de Trump contra imigrantes latinos, mulheres e
muçulmanos, alguns eleitores republicanos sentiram-se fortalecidos e puderam
145

expressar sua violência, queimando igrejas frequentadas pela população negra,


considerada como inferior. Lembremo-nos que um dos dispositivos favoritos
frequentemente utilizados pelos nazistas era o de comparar “todos os estrangeiros e
particularmente refugiados e judeus, a animais inferiores e germes” (ADORNO,
2015c, p. 179). O mesmo dispositivo vemos nos discursos de Trump, que compara
muçulmanos a terroristas e mexicanos a estupradores e marginais.

Seu sucesso eleitoral deve-se essencialmente ao fato de que os líderes


antidemocráticos “não conhecem inibições ao se exprimirem. Eles atuam de forma
vicária por seus ouvintes desarticulados, ao fazer e dizer o que os últimos gostariam
mas não conseguem ou não se atrevem a tal” ((ADORNO, 2015b, p. 145). Há entre
eles uma ligação que vai além da racionalidade; há “uma similaridade estrutural
geral entre seguidores e líder, e o objetivo da propaganda é estabelecer um acordo
entre eles” ((ADORNO, 2015b, p. 144), que visa despertar ideias e emoções que já
estavam presentes em seus seguidores. Diante de seus discursos, seus seguidores
gratificam-se, obtendo prazer e aceitando a ideologia antidemocrática e autoritária
sem questionamento. Assim, seus seguidores têm suas próprias mentes reveladas.

Os movimentos de massa suscitados pelos líderes antidemocráticos são mais


fáceis de serem manipulados, pois a propaganda reacionária “se apoia
absolutamente na estrutura total, bem como em cada traço particular do caráter
autoritário, que é ele mesmo o produto de uma internalização dos aspectos
irracionais da sociedade moderna” (ADORNO, 2015c, p. 184). Por sua vez, o mesmo
pode ocorrer com movimentos políticos progressistas; “não há dúvida de que mesmo
o movimento político mais progressista pode deteriorar ao nível da ‘psicologia da
multidão’ e sua manipulação, se seu próprio conteúdo racional é despedaçado pela
reversão ao poder cego” (ADORNO, 2015c, p. 185), como ocorreu no leste europeu
no pós-guerra e mais recentemente com a degradação do governo de esquerda no
Brasil.

Podemos constatar que, tanto à direita quanto à esquerda, há a possibilidade


de incentivar o movimento de massa, porém fica evidente que os movimentos de
direita que buscam a perpetuação do status quo são mais suscetíveis à
massificação, pois, ao defenderam a “democracia contra os abusos e sob o pretexto
de eliminar tais abusos, terminam por abolir totalmente a democracia” (ADORNO et
146

al., 1950, p. 686), harmonizando-se de forma inequívoca com substratos irracionais


psicológicos.

É, nesse sentido, que a psicanálise como ciência psicológica ajusta-se ao


pensamento político vigente de forma inequívoca, uma vez que o pensamento
autoritário facilita a adesão à propaganda fascista e antidemocrática, pois mobiliza
processos irracionais, inconscientes e regressivos. A propaganda fascista:

[...] toma os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de
massa padronizada de hoje, em grande parte subtraídos de sua autonomia
e espontaneidade, em vez de se colocar metas cuja realização
transcenderia o status quo psicológico não menos que o social. A
propaganda fascista precisa apenas reproduzir a mentalidade existente em
seus próprios propósitos – ela não precisa induzir uma mudança -, e a
repetição compulsiva, que é uma de suas características mais importantes,
irá se coordenar com a necessidade por sua reprodução contínua.
(ADORNO, 2015c, p. 184)

O autor prossegue advertindo que, embora exista certa suscetibilidade


potencial ao fascismo, ele não pode ser explicado única e exclusivamente a partir de
um enfoque psicológico. Deve-se levar em consideração que o líder fascista ou
antidemocrático age como mandatário de poderosos interesses econômicos e
políticos. As “disposições psicológicas, na verdade, não causam o fascismo; em vez
disso, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada de forma
bem-sucedida pelas forças que o promovem por razões de interesse próprio
completamente não psicológicas (ADORNO, 2015c, p. 186). Assim, os líderes
autoritários utilizam-se de discursos que favoreçam “a substituição do narcisismo
individual pela identificação com o líder, aponta na direção do que poderia ser
chamado de apropriação da psicologia das massas pelos opressores” (p. 187).

Há, por conseguinte, o empobrecimento psicológico do indivíduo, que se


atomiza e se coloca à mercê da totalidade social e política. Nesse sentido, as
reflexões de Adorno e demais pensadores da Escola de Frankfurt, com base nas
contribuições de Marx e Freud, são relevantes à consolidação da psicologia política
enquanto um campo do saber científico, pois elas não se aplicam única e
exclusivamente à elucidação do nazismo e do fascismo, uma vez que são aplicáveis
à situação política atual.
147

CONCLUSÃO

A psicologia política é um campo em expansão no meio acadêmico e se


caracteriza por sua interdisciplinaridade, podendo, assim, aportar contribuições
significativas às diversas áreas das ciências sociais. Essa diversidade evidencia
uma concepção ampla de política, que envolve, fundamentalmente, relações de
poder, não se limitando a seus aspectos institucionais.

O objeto da psicologia é a psique humana; contudo, no transcorrer de sua


institucionalização, diferentes correntes de pensamento foram se estabelecendo, em
decorrência do entendimento que se tinha do objeto. Consequentemente, a
pluralidade metodológica e teórica do campo é fruto tanto das distintas áreas sociais
quanto da própria psicologia. Nessa pluralidade, a psicanálise é uma entre as teorias
psicológicas que têm colaborado nos estudos psicopolíticos.

É sabido que o encontro de Freud com as histéricas de Salpêtrière foi


fundamental para o desenvolvimento da teoria psicanalítica, permitindo-lhe
estabelecer relação entre o sofrimento daquelas mulheres do fin du siècle e a
sexualidade e os rígidos padrões sociais da sociedade da época. Anteriormente, os
distúrbios mentais estavam associados aos humores, às emoções. Foi precisamente
o aspecto emocional evidente nas sucessivas revoluções e contrarrevoluções que
despertaram o interesse de Alexis de Tocqueville, Gabriel Tarde e Gustave Le Bon.
As atitudes violentas, as emoções à flor da pele, dos movimentos de massa
demandavam explicações e requeriam a interlocução entre a psicologia e a política.

Diante de tantos atos bárbaros e insanos, Tocqueville salienta que a política


não era inteiramente construída pela razão. Entretanto, ele não estava interessado
unicamente na política de Estado; seu foco voltou-se, também, à maneira como se
faziam os negócios, à prática real das instituições, à posição exata das classes, uma
perante a outra, à condição e os sentimentos daqueles que ainda não se faziam nem
ouvir nem ver, afinal quanto ao fundo das opiniões e dos costumes 80. Seu objeto
principal era, portanto, aqueles indivíduos que tinham ideias confusas e muitas
vezes errôneas, cujos atos têm implicações políticas. Seja omitindo-se, seja
participando ativamente, os franceses desempenharam um papel político que
intrigou a intelectualidade da época.
80
Em nossas conclusões retomamos algumas palavras de alguns autores. Elas aparecem em itálico sem
referências, pois foram citadas anteriormente. Entendemos que dessa maneira a leitura fica facilitada.
148

Tocqueville comparou a Revolução Francesa a uma espécie de religião, uma


religião imperfeita, é verdade, sem Deus, sem culto, sem Além, mas que, todavia,
como o islamismo, inundou toda a terra com seus soldados, apóstolos e mártires.
Essa comparação permite estabelecer relação entre o pensamento tocquevilleano e
o freudiano, pois a semelhança observada entre o movimento religioso e a revolução
está relacionada com a psicologia das massas, que foi posteriormente descrita por
Le Bon e retomada por Freud; soldados, mártires e apóstolos, assim como os
jacobinos e os líderes revolucionários, formando uma massa psicológica.

Observamos em Tocqueville várias questões desenvolvidas nos textos sociais


freudianos, permitindo posteriores articulações com a teoria psicanalítica,
especialmente se considerarmos que a política não é regida unicamente pela razão.
Somos razão, e, simultaneamente, emoção; somos movidos, também, por processos
inconscientes, que se expressam de forma mais evidente em momentos de tensão
social, como na França do século XIX.

Se, por um lado, Tocqueville identificou similaridades entre o movimento


religioso e o revolucionário, por outro, coube a Tarde compreender os laços que
unem os indivíduos. Recorrer à psicologia seria o caminho adequado a seguir.
Ciente de que cada expressão humana não depende apenas da natureza do fato
social, mas também da constituição mental e vital do agente e do ambiente físico,
ele busca os determinantes psíquicos que fazem com que os indivíduos vivam em
comunidade. A sociedade é imitação, vaticina, Tarde.

A ideia de que os indivíduos agem por imitação suscita a imagem de uma


sociedade imutável. Porém, Tarde salienta que modificações ocorrem nos indivíduos
e começam, pouco a pouco, a ser imitadas e se transformam em objeto de imitação,
até que passe definitivamente ao âmbito amplo do social. A invenção e a imitação
são o ato social básico. O que é inventado, o que é imitado, é sempre uma ideia ou
uma vontade, um julgamento ou um propósito, que expressa certa dose de crença e
desejo.

Sendo a imitação o processo psíquico fundante das relações humanas, o


autor adverte que ele pode levar à unidade social; se a unanimidade, nunca
absoluta, chega a se materializar em certa medida, a irresolução, seja individual,
seja social, está quase completa. Este é o fim inevitável de todo indivíduo vivendo
sob um regime totalitário. Quando o totalitarismo se difunde, através da propaganda
149

ou do terror, até que tenha ganho quase todas as mentes, uma a uma, o indivíduo
sucumbe.

Apesar do interesse de Tarde não ser as revoluções francesas e a política,


pois seu foco principal era a criminologia, sua contribuição maior para a psicologia
política foi a constante defesa de estudos interdisciplinares, com a participação do
saber psicológico. Além disso, sua teoria sobre a imitação certamente influenciou
Freud, ainda que este não o tenha citado em suas obras. É difícil imaginar que um
homem com a erudição de Freud, que podemos constatar em seus textos, não tenha
tido contato com Les lois de l’imitation.

A explicação tardeana sobre o laço social, enfatizando o papel da imitação, e


sua defesa do saber psicológico são relevantes não só para a psicologia social, mas
também para a psicologia política. As últimas eleições americanas mostraram o
poder da propaganda, que não dispensa o discurso do medo para ganhar as
mentes, uma a uma. Nesse sentido, é apropriado demandar se as leis da imitação
estiveram em evidência nesse pleito eleitoral, haja vista a difusão do discurso
autoritário e isolacionista e os consequentes atos de violência perpetrados contra
grupos minoritários.

As eleições americanas fizeram emergir novamente o aspecto emocional da


política. Os discursos de Donald Trump foram hábeis em difundir o medo ao
estranho, ao estrangeiro, ao usurpador e, assim, propiciaram que as emoções
fluíssem em detrimento da razão. É obvio que não se trata de um processo
puramente psicológico, as condições sociais e econômicas adversas compuseram o
cenário para o eclipse da razão, enfraquecendo o indivíduo e, por conseguinte,
favorecendo que aspectos afetivos e emocionais prevalecessem. O salvador da
pátria, aquele que protege contra o desamparo, torna-se o protagonista e, portanto,
objeto de imitação; para Freud, objeto de identificação.

As reflexões de Tocqueville e Tarde permitiram algumas articulações entre e


a teoria psicanalítica e a política. Entretanto, a publicação de Psychologie de foules
contribuiu substancialmente, visto sua descrição precisa da psicologia das massas,
para que Freud explicasse os mecanismos inconscientes subjacentes no fenômeno
de massa. A visão conservadora de Le Bon não lhe permitiu perceber o quanto as
massas também são responsáveis pelos avanços culturais, sociais e políticos. Le
Bon salientou, unicamente, seus aspectos negativos: regressão a estágios psíquicos
150

inferiores, irracionalidade e agressividade. Assim, pelo simples fato de fazer parte de


uma multidão, o homem desce, portanto, vários graus na escala da civilização.
Isolado era talvez um indivíduo culto, na multidão é um instintivo, consequentemente
um bárbaro.

Ora, se todo movimento de massa transformasse os indivíduos em bárbaros,


como explicaríamos o movimento feminista, o movimento antissegregacionista, o
movimento LGBT, o movimento dos trabalhadores e tantos outros, que
transformaram e transformam a sociedade. Não há conquista social sem que as
massas estejam presentes. Entretanto, não podemos descontextualizar. Os
fenômenos de massa que lhe serviram de base foram sangrentos e bárbaros. As
condições sociais e políticas de opressão fazem emergir a agressividade, esse
estranho que habita nos indivíduos, como ocorreu na França e na época do
nazismo. Crítica à parte, a qualidade das reflexões de Le Bon é inegável, e seu texto
foi retomado por Freud.

Distante das revoluções francesas, Wallas estava preocupado com as


questões operárias: a política trabalhista. Foi nesse sentido que ele se dedica a
estudar a biografia do ativista político Francis Place. Esse livro pode ser classificado
como uma biografia psicopolíticas, uma das categorias elencada por Fred
Greenstein. Indubitavelmente, trata-se de um livro de psicologia política.

Posteriormente, ele amplia seus estudos a fim de dedicar-se à natureza


política dos indivíduos. Ele também constata, como os demais autores, que é
impossível separar as emoções do estudo da política. Aliás, os sentimentos da
humanidade não só proporcionam um motivo para a reflexão política, mas também
fixam a escala de valores que deve ser usada no julgamento político. O autor reforça
sua posição, afirmando que os homens frequentemente agem em política sob a
influência do estímulo imediato do afeto, e esse afeto e interesse podem ser
dirigidos para as entidades políticas.

Wallas vai além ao mostrar que o afeto pode ser dirigido às instituições
políticas. Podendo ser direcionado a algo impessoal, como as instituições políticas,
permite-nos articulá-lo com Freud, pois, do ponto de vista da psicanálise, os objetos
de afeto não se limitam aos indivíduos; o ideal de ego é também influenciado pelo
entorno social e político. Assim, a liderança política, bem como a autoridade que ela
exerce, pode prescindir da figura de um líder encarnado, como mostrou Freud ao
151

analisar a Igreja e o Exército, em Psicologia das massas e análise do eu. A


possibilidade do afeto voltar-se às instituições é potencializada, quando estas são
poderosas. É nesse sentido que Reich afirma que o fascismo não é obra de um
Hitler ou de um Mussolini, mas sim a expressão da estrutura irracional do homem da
massa.

A produção intelectual desses autores foi elaborada quando a psicanálise,


todavia, não estava ainda plenamente estabelecida. No entanto, observamos o
quanto seus textos são ricos e permitem fazer interlocuções, tanto com as ciências
políticas quanto com as psicológicas. A constância com que aparecem os termos
sentimentos, emoções e afetos, em seus textos, mostra o quanto a psicologia
desempenhava papel importante em seus pensamentos.

Raiva, ira, ódio, paixão e amor são sentimentos que estão, invariavelmente,
ligados aos aspectos irracionáveis do ser humano. Razão e emoção, racionalidade e
irracionalidade, consciente e inconsciente, influenciam nossos atos. Não apenas
nossos atos cotidianos, mas, também, nossos atos políticos, como defendem os
autores. Entretanto, devido ao caráter irracional das emoções, é pertinente que a
psicanálise participe dos estudos psicopolíticos.

Afinal, a teoria psicanalítica teve um papel significativo na constituição da


psicologia política, visto que a capacidade de explicar racionalmente o
comportamento dito irracional tornou possível a fusão da psicologia e da política; os
determinantes de cada uma tornaram-se cruciais para explicar o fenômeno do
comportamento político, como relembrou Irving Horowitz, por ocasião do encontro
inaugural da Sociedade Internacional de Psicologia Política.

Consideramos Lasswell, Reich, Fromm e Adorno como emblemáticos nesse


processo de constituição do campo. Ainda que tenham tido trajetórias intelectuais
distintas, esses autores empregaram a psicanálise em suas reflexões. De um lado,
Lasswell e Adorno, proveniente das ciências sociais, do outro, Reich e Fromm,
psicanalistas.

Ao articular psicanálise com política, Lasswell e Adorno propuseram


categorizações em seus estudos. Enquanto aquele preocupou-se em categorizar os
atores políticos em agitadores, legisladores e teóricos, este estava interessado em
um fenômeno específico: o autoritarismo, recorrendo a diversas escalas até chegar
152

a Escala F, que avalia as tendências autoritárias da personalidade. Não podemos


comparar A personalidade autoritária com Psicopatologia e política, seria injusto.
Contudo, ambos estudos revelam a dificuldade metodológica e teórica em conciliar
duas disciplinas com pressupostos distintos. A questão torna-se mais relevante, se
considerarmos as tradições acadêmicas americana e europeia. A primeira,
empiricista e pragmática, a segunda, filosófica e fenomenológica.

Assim, os pressupostos psicanalíticos serviram de fundamento para a


equação do homem político, proposta por Lasswell, e para a escala da
personalidade autoritária de Adorno e colaboradores, o que justifica as críticas. A
personalidade autoritária é um estudo tão controverso que, passado meio século de
sua publicação, o sociólogo John Martin (2001), da Universidade de Nova Jersey,
publica um artigo, no qual elenca questões teóricas e metodológicas. Isso evidencia
a dificuldade do estudo interdisciplinar, especialmente, quando envolve
pesquisadores de distintas tradições epistemológicas.

Reich e Fromm, por sua vez, analisam o autoritarismo a partir da psicanálise.


Reich enfoca a genitalidade e Fromm, o processo de individuação, porém, ambos se
distanciam de Freud ao questionarem a universalidade do complexo de Édipo e a
validade da pulsão de morte.

A estruturação patriarcal-autoritária da sociedade, para Reich, está no cerne


das tendências autoritárias, pois ela impede a livre expressão da genitalidade. A
libido genital inibida enfraquece o ego, tornando o indivíduo mais suscetível a aderir
ao discurso autoritário, reproduzindo-o, internalizando-o e perpetuando a estrutura
social. Somente quando houver a afirmação da vida, por parte das principais
instituições sociais em relação à sexualidade das crianças e dos adolescentes, as
tendências verdadeiramente democráticas surgirão, podemos depreender de suas
reflexões.

Fromm, por sua vez, entende que o processo de individuação produz um


sentimento de angústia e impotência na criança, em virtude do rompimento dos
vínculos primários. Se, por um lado, esse processo permite a libertação do indivíduo,
por outro, ele sente-se isolado. O medo à liberdade decorre do isolamento; a
angústia do isolamento pode ser tão insuportável que ela entrega seu ego em busca
de conforto e proteção. É sempre a incapacidade de suportar a solidão do eu
153

individual que conduz ao impulso para entrar em uma relação simbiótica com
outrem.

Essa relação tem um caráter eminentemente sadomasoquista, pois o prazer


da proteção tem um preço: a submissão da liberdade. Esse processo atualiza-se na
vida adulta. Assim, surgem no indivíduo impulsos para renunciar à própria
individualidade, para superar o sentimento de isolamento e de impotência
submergindo completamente no mundo exterior, pois no grupo o ego se fortalece,
ainda que às custas da submissão. O afastamento do sofrimento é vivido como
felicidade. Essa dinâmica subjaz à adesão ao fascismo.

Se, de um lado, Lasswell e Adorno se deparam com questões metodológicas


e teorias, de outro, os psicanalistas parecem psicologizar a sociologia e as ciências
políticas. Eles não chegam a ser totalmente reducionistas, porém, a ênfase está nos
processos psicológicos. Não obstante as distintas abordagens e referenciais
teóricos, os distintos autores apresentados fazem referência ao núcleo familiar. É na
família que se internaliza, ou não, o autoritarismo; ainda que as variações
infinitesimais ocorram no indivíduo, nas mônadas abertas de Tarde, elas se dão nas
relações com seu entorno, mais especificamente na célula mater da sociedade,
onde o processo de socialização inicia.

A família, à qual se referem os autores, é incontestavelmente distinta da atual;


os papeis tornaram-se menos rígidos e as novas composições poderiam indicar que
estaríamos caminhando em direção da liberdade positiva, proposta por Fromm,
aquela que o indivíduo exerce plenamente, sem necessidade da submissão, o que
significaria tendências democráticas. Entretanto, a crescente onda de
conservadorismo na atualidade tem mostrado o contrário: as tendências autoritárias
ainda perduram.

Nesse sentido, fizemos relações com o momento social e político atual, no


decorrer do trabalho, as quais não tinham a intenção nem o propósito de esgotar o
assunto; elas foram apresentadas com o intuito de mostrar a atualidade do
pensamento dos autores e, simultaneamente, as possíveis contribuições da teoria
psicanalítica à política. Em várias dessas articulações, inferimos que estamos
vivendo momentos autoritários. Não realizamos análises aprofundadas para
referendar nossas inferências, porém, um estudo quantitativo, realizado por Foa e
154

Mounk (2016), demonstra que há um aumento significativo no apoio ao autoritarismo


entre cidadãos norte-americanos e europeus.

Ao resgatarmos Harold Lasswell, Wilhelm Reich, Erich Fromm e Theodor


Adorno, nosso intuito era analisar suas contribuições para a psicologia política e
como a psicanálise os influenciou. É certo que a teoria psicanalítica teve papel
significativo em suas teorizações, porém, a interlocução entre psicanálise e política
apresenta certos desafios muitas vezes intransponíveis, que mostram os limites de
cada disciplina. A psicanálise é uma ciência psicológica essencialmente
interpretativa, portanto, não se adequa aos padrões empiricistas e pragmáticos. No
pragmatismo americano não há espaço para ela. Assim, a psicologia do ego
prosperou em seu lugar.

A psicanálise teve seu apogeu em solo americano principalmente no período


entre guerras, perdendo seu vigor a partir do estabelecimento de sua vertente
americana, criticada pelos teóricos de Frankfurt por seu caráter adaptativo. Apesar
disso, tem havido uma retomada, ainda incipiente, dessa articulação com a política.
Lene Auestad, filósofa da Universidade de Oslo, coordena uma série de
conferências, desde 2010, intitulada Psychoanalysis and politics, cujo objetivo é
refletir a política contemporânea a partir da teoria psicanalítica. Andrew Samuels, da
Universidade de Essex, cujos livros A psique política e Politics on the couch:
citizenship and the internal life, apresentam uma abordagem junguiana da política.
Em São Paulo, destacamos os núcleos de pesquisa coordenados por Raul Pacheco
e Miriam Debieux, ambos alocados no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica.

Como vimos, a teoria psicanalítica teve um papel relevante na constituição da


psicologia política. As constantes críticas e seus próprios limites, sejam no âmbito
terapêutico, sejam na articulação com outros saberes, parecem que não
conseguiram desacreditá-la totalmente. A psicanálise sobreviveu e ainda está viva,
como técnica terapêutica e como teoria, sobretudo porque na micropolítica familiar
as relações autoritárias se mantêm. Nesse sentido, defendemos que a teoria
psicanalítica participe da interdisciplinaridade da psicologia política, cientes de seus
limites e dispostos a criticá-la, caso seja adequado.
155

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