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EXPERIÊNCIAS DE REFLEXÃO TEOLÓGICA

Caminhos e formas da teologia cristã

Jürgen Moltmann

Tradutor
Nélio Sclmeider

nD1TOR1\ UNISINOS
Coleção Theolog ia Publica
2004
PREFÁClO

Epilegômenos cm vez de prolegômenos

l labitualmcnte uma dogmática teológica ou uma teologia sistemática in1c1a


com os assim chamados /Jrolagô111e11os. Nestes sào abordados os fundamentos da rcolo­
gia cristà, o método escolhido e a concepção Lcológica pressuposta. Sendo o método
claro, ele poderá ser aplicado a todas as doutrinas teológicas. Pelo fato de, desde os pri­
mórdios cio pensamento crítico da era moderna, os próprios fundamentos e métodos
d:i teologia terem se tornado questionáveis, os teólogos modernos lançaram-se com
intensidade especial sobre esses prolcgômenos da dogmática e, com a ajuda da filoso­
fia, psicologia ou ciência da rcligilio, ciências que naquele momento eram novas, pro­
curaram responder às seguintes questões básicas: de gue maneira a teologia cristã é
possível sob as condições do mundo moderno? e: tuna ética cristã própria é possível
de alguma forma'
Essas questões de método pouco me interessaram até o momento, porguc
queria primeiramente tomar conhecimento dos conteúdos teológicos. Considerei
mais importanlcs a revisão destes à luz de sua origem bíblica e sua inovação cm face cio
desafio do presente. Entre outras, há também rnzões pessoais para isso: na minha ju­
ventude, não Live exatamente uma formação cristã. Minha família hamhurgucsa, "es­
clarecida" desde a adesão de meu ::ivô à maçonaria, havia assumido uma postura bas­
tante distanciada e indiferente cm relação ao cristianismo ele modo geral e à igrej�1 cris­
tã cm particular. Desde o início do meu estudo de tcologü1, primeiramente no campo
de prisioneirns de Norton-Camp junto a Notúngham, depois, após o regresso cm
1948, cm Gottingcn, o teológico corno um todo constnuiu uma dimensão maravilho­
samente nova 1nm mim. Tive de apropriar-me primeiro com o entendimento de tuào
aquilo que outros haviam aprendido desde a juventude.
1\ teologia foi e é para mim um:i aventma das idéias. l�la é um caminho aber­
to, convidativo. 1 �la foscinou e até hoje fascina a minh:, curiosidade intclectua 1. Por
essa rnzào, os meus métodos Lcológicos surgiram pelo conhecimenLo dos objetos teo-
10 JttR(õl·.N MOI.TM,\NN

lógicos. O ca111i11hq só foi s111JJ11do ,,o c11111i11hn1: E mil'lhas tentativas de caminhar rnitural­
mente são dctcnni1\adas 110 nível biográfico-pessoal, co11textual-político e pelo krliró.r
histórico em que estou vivendo. Busquei a palavm certa para o momento cerLo. Não
escrevi manuais teológicos. Meus artigos de dicionário em diversas enciclopédias teo­
lógicas raramente resultaram satisfatórios. Não 111.t cafa hem éolecion�r exatidõcs teo­
lógicas porque estava por demais ocupado com a percepção de novas per�pec.tivas e
de aspectos inusitados. Não almejei ser discípulo dos grandes mestres teológicos da
geração precedente. Tampouco almejo fundar uma nova escola teológica. Tudo o que
quis e quero é estimular ou tros a descobrirem a teologia por si mesmos, a formul�rem
seus próprios pensamentos teológicos e a se porem, �k:s próprios, a caminho. Estas
são as razões que me levaram 11 colocar cm segundo plano as questões metodológicas
dos prolegômenos gerais à dogmática e a esforçar-me. nestas Co11trih111çõe.r .ri.rtemáticaJ ti
teologi11, por ir diretamente "aos temas propriamente ditos". Nos J>refácio.r aos volumes
individuais, manifestei-me a respeito do respectivo,(llmi1ho escolhido, de modo que os
interessados já puderam reconhecer o meu método implícito a parLir dos cinco prefá­
cios referidos. Pelo fato de o meu método não esta, fixado já antes da sua aplicação,
mas de ter smgido no seu decorrer, elevo agora, no final desse percurso, falar dele e,
em lugar dos habituais prolcgômenos � dogmática, redigir alguns epilegômenos às minhas
contribuições sistemfocas. Como pessoalmente não sou muito afeito a "pós-fácios",
pode muito bem ocorrer que cu chegue novamente apenas a um "prefácio" a novos
caminhQs. Se este for o caso, então este "posfácio" de modo algum resultou mal suce­
dido, mas apenas revela a minha convicção mais íntima, de <1ue, na teologia cristã, "no
final reside o começo" e que o cristão na sua fé na ressurreição, em contraste com o ju­
deu no seu dia sabático, é "o e terno iniciante'', como disse Fram: Rosenzweig certa
vez, e, pmtanto, sempre necessita começar pelo começo, pois "se o início for bom -
tudo está bem" (Der Stem der Erliwmg, H.eidclbcrg, 3. e.d., 19S4, 111, 2, p. 127). A pro­
missão divina e a esperança despertada ensinam a toda teologia, que ela necessaria­
mente permanece fragmentária e inacabada, porque ela é o pensar sobre Deu s daque­
les que se encontram a caminho e <JUC são, portanto, itinerantes e ainda não chegaram
cm casa. Por essa ra?.ào, até mesmo as catedrais e os domos medievais tinham de per­
manecer 1nconclusos, pnra poderem àponrnr para além ele si mesmos.

Contribuições sistemáticas il teologia

Quando comecei, cm l 980, escolhi p:1rn esta série tcmáuca o título Co11tri/J11i­
çties .rislc111álic".r ri leologi". Quis e:,q,rcssar com isso, cm primem, lugar, que a teologia cm
seu c.:onjunw é 111�is do tiuc tçolugia �1stemátin1 tn1 dugmáuca. T:imbl'.111 há teologia bí-
PREF/\/'10 11

blica, teologia h1S1ónca, teologia práuc:1 <' outras mais. Te()log1a sistemática é :1penas
uma contrihu1ção a u:n tudo mmor, comum, da Lcologia. Por isso, ela não pode consu­
lllir um sistema fechado, mas eleve mostrar os pontos de conexão dialógicos com as
demais disciplinas teológicas. A velha briga cm torno da "coroa da teologia" é vã. O
teólogo sistemático pode até ser "um diletante e chrigente" da orquestra teológica,
como o esulizou cerrn vez Kornchs I kiko Miskoue, mas este naturnlmcnte pode ser
também um teólogo prático, para quem todas as teorias teológicas desembocam na
práxis, ou um teólogo histonaclor, se ele acredita que todo o presente e futuro um dia
serão passado e, ass11n, objeto de sul! pesquisa. P:1ra mim, a teologia ocorre onde pes­
soas chegam ao conhecunento de Deus e "percebem" a presença de Deus com todos
os seus senudos na práxis de sua vidll, de sua felicidade e de seus sofrimentos. Ú a isso
que a teologi:1 sistem:ítica deve dar a sua contribLtiçào cm última análise e em primeiro
lugar. Por outro lado, essas "contribuições" sistemáucas à teologia não pretendem forne
ccr o "meu sistema" ou a "minha dogmática". Até mesmo no nível da eslrutura tentei
buscar a vt·rdade no diálogo e evitar os monólogos. A Lcologia cristã é uma tarefa CO·
munitãna do "ministério teológico geral de todos os crentes". Por essa razão, procure:
valer-me do estilo comunicativo da proposição. l\kL1 interesse não era a defesa de dog·
mas impc.:ssoais ou verd11cles desprovid:1s de sujeito. Mas tampouco pretendia externar
apenas a mmha opinião particular. Desqo, porém, c1ue mrnhas proposições se1am lc­
vaclas a seno na comunhão dos teólogos e das teólogas. não apenas topando com
aprovação ou rejeiç:io, mas estimulando o diálogo cuntinuado da teologia. Eu própno
acolhi os e�tímulos de outros sempre t]UC me pareceram fru1íferos e me levaram adian
te. Isso pode ter ocorrido com mais frcc1iiéncia do que tenho consciência. A teologia é
como um sisrc:na fh1vial de influências recíprocas e desafios mútuos e de modo algum
um deserto cm que cada indivíduo está sozinho consigo mesmo e com seu Deus. Para
mim, o acesso teológico à verdade do Deus triúno é dialógico, comunitário e coopera·
tivo. Thi:ologit1 vial1Jm111 é um diálogo crítico constante com as gerações anteriores a nós
e corr. os contempor:ineos ac> nosso lado, no aguardo daqueles que vêm depois de nós.
Por isso, o que escrevi não está assegurndo por 1odos os lados, mas às vezes é "arroja­
do", como opina1'am com prcocupaçao alguns homens da igreja. I\ difícil não ser
"controverso" em assuntos de teologia. Não por último, o autor reconhece, nas suas
Co11trib11irõr.r, as condições e limites de sua p1·ópria localização no tempo e no espaço e :1
relati vidadc.: de seu próprio contexto. 1 �le não est{1 cm condições de dizer o que é teolo·
girnmentc válido para cada um cm todas as épocas e em cada lugar. Uma lheoloJ!/a pcrm­
ni.r não lhe·é possível. Ele deve, portanto, dissipar criticamente a aut<>·refcrência ingê
nua e absoluta do pt·nsanll''1to. Foi por isso que esncvi. cm 1980, no pl'cfádo :11iinda­
rlr e Remo d,• /)em, o seguinte: "Com certeza, ele é europeu; mns a teologia europeia devi'
cki:rnr de �cr aprcsc11lada eurou11//icm111•111f. Com rcneza, ele é um homem; mas a tcolo
r,1a deve ck1:,;ar de \Cr apresentada andrormlnr,1111mlr. Com <-CrtC7J'I, clt· vive no 'Primei
ro Mundo'; mas a l<·olog1a <Jll<' l'le dt:sc-nvolvt: n:ío pode �cr o reflexo dos pontos de
vista dos do111111aclorcs. 1 �lc deseja, acima de 1udo, contribuir parn que a voz elos opri­
midos seja ouvida. O conceito ele 'contribrnçõcs para a teologia' visa a mdicar a sus
pensão do absolutismo Lácito e preconcebido das idéias particulares de um contex
t0" jPetrópobs: Vozes, 2000, p. 12]. Na partç Ili deste livro, que m1U"1 dos "Reílexos de
teologia libertadora", procurei finalmente cumprir essa promessa.

Teologia e biografia

Apresentei, neste livro, os meus acercamcntos h1stórico-vivcnc1ais à teologia


na minha própria pessoa, na comunidade e ll:t universidade primeiro cm termos gerais
e depois em especial a cada um cios problemas 1cológicos, como introdução aos diver­
sos capítulos; procedi assim porque aprendi <JUe a dimensão biográfica é uma d11nen­
sâo essencial do conhecimento teológico. Durante o meu estudo, t0ci:1via, não havia
percebido que o lugar do sujeito é 1111 clogmiltica; ao contr:íno: a pum objetividade da
asserção dcvena garnntir a sua vcrificabiüdadc a c1ualqucr tempo por yuak1uer um e
qualquer uma onde quer que fosse. Essa é a razão por c1ue não se podia reconhecer
pelo aspecto dos magníficos livros dos meus professores <1uem os unha escrito, nem
c1uando e onde h:wiam sido cscri1os. Com o recuo da subjctividack do autor também
passaram parn o segundo plano todas as referências à época. O suposto "espírito de
época" foi deixado a cargo elos jornalistas, embora nmguém 1ama1s tenha v;sto esse
"espírito". Tendo s1clo desprtzado o "espínLO de época", desapareceu também a con­
temporaneidade cios teólogos, que se scntifün c:í embaixo apenas como "hóspedes
numa bela estrela" (l lelmut Thielicke). Custou-me algum tempo e também superação
até que, por insistência da minha mulher, ousei dizer "cu" t:tmbém na teologia. Contu­
do, numa situação social cm que, ele um lado, é anunciada "a morte do sujeito" e t:1m­
b{:m praticada no en()rmc crescimento do nt'unero de "st:pultamemos anônimos", e,
po1 outro lado, cada vez mais pessoas se acotovelam para "abrir-se" cm /(llk .rho111s e
quebrar toda d1scnção respeitosa e t�lo l11mtc do puclor, torna-se necessário e difícil
falar sobre si mesmo. Nos últimos trinrn anos, notei que e mais difícil comunicar :1os
mllrns as abstrações ela nossa própria situ:1çào e história de vida do que a verdade con­
creta, não impona quão subjetiva ou contextualmente da seja formulada. (� esta <1ue
começa a esumular os outros a encontrar a verdade de Deus na história de sua própria
v1d,1. Os leito1Ts de um livro não gosrnrrnm dr saber apenas o que o ;nnor tem :i dizer,
mas 1:unbém como ele ch('gou a isso e porque ele o diz cl:1 rnaneirn romo n disse. Nos
anos 1970, houve um mov1nH:nto tcológ1n> nos �U/\ que exigm, el') ro111rapos1çao :1
ua,a tco!og1a a1gumc1ua11va um:1 "teologia narrativa" e cnrão, no :imb1to dessa tcolo­
!'P n;1rra11va, 1;11nh<.:m uma "tt·ologia r111110 bwgrafia" . .Johann Bapt1�1 ;\lctz abordou
l'REF,\CIO 13

esse tema em 1974 num anigo 1m11to nco cm conteúdo: Theologic(I/J Biogmphie [Teologin
co1110 /J1oimfinj (in: Clll11he i11 Ce.rchichtc 1111d Cm/lsdHtji, Mainz, l 977, p. 195-203). Pelas mi­
nhas experiências com a reflexão teológica, na teologia cristã as duas coisas andam
juntas: a 11111mtiw1 da história de Deus e o t1rgw11e11/o cm fov<>r da presença de Deus, a m/J­
;etivid(/(le histórico-vivencial e a objetividt,de esquecida de si mesma. Escrevi as introdu­
ções b1ográfic:1s arincmcs ao assunto porc1ue o caminho, isto é, o método foz parte cio
conhecimento do assunto, não por causa do sujeito, mas por causa do caminho para
chegar ao conhecimento do assunto. Não se trata de allt<> referências de um eu solita­
rio, porque o sujeito procede de uma comunidade e fala para dentro de uma comuni­
dade: "O que tens que não recebeste?"

Teologia cm prol do Reino de Deus

l lá sistemas teológicos que não pretendem apenas estar livres de contrnd1-


ções internas, mas também ficar livres <le inte1pclação externa. J\ teologia transfor­
ma-se, parn eles, numa estratégia ele auto-imuni'l.açào. Tais sistemas são como fortale­
zas cm que não se consegue penetrar, mas das lluais tampouco se consegue escapar e
tJue, por isso, são derrntadas à míngua pelo desinteresse público. Não alimento o dese­
jo de viver 1111ma forrnleza clcssi1s, e, mesm<> sendo barthiano, igualmente resist i à ten­
tação ele encarar a D0g111ntic(/ teluiol /irthliche D0g111nlikj de Karl Barth como uma forta­
K

leza desse tipo. Ela nflo o é, mesmo LJLIC alguns banhianos deixem Karl l3arth pensar
por eles para se sentirem seguros, e outros o declarem como "nco ortodoxo" para não
terem de lê-lo e se ocupar com ele. Minha imagem ela teologia não é "Castelo forte é
nosso Deus ... ", mas o êxodo cio povo de Deus no seu caminho para a terra prometida
da hberdadc, onde habita Deus. Para mim, a teologia não é uma dogmática in­
tra-eclesial ou pós-moderna apenas para a pa:ópria comunidade de fé. Ela tampouco é,
para mim, a ciência cultural da religião civil da sociedade burguesa. J\ teologia surge da
paixão pelo Remo de Deus e sua justiça e esta paixão surge da comunhão com Cristo.
Nessa paixào, a 1cologii1 transforma-se na fantasia cm prol do Reino de Deus no mun­
do e cm prol do mundo no Reino de Deus. Como teologia do Reino de Deus, ela é
obngawria111cn1c teologin 111i.rsiol/(í1in, que liga a igreja à sociedade e o povo de Deus aos
povos ela Terra. Eb torna-se uma teologm p,íblim (JJ11b!ic Jbeology}, que compartilha os "so­
fnmcmos desta épora" e que formula suas esperanças cm Deus no lugar cm que vi­
vem os seus contemporâneos. A teologia cio Rc·ino de Deus imiscui-se crítica e profc­
uc.11 1cn1e nos assuntos púlilrcos da sociedade e traz publ icamente à memória, não os
1111eresses cclesiais,mas "o Reino ele Deus, o mnndamcnw e a justiça de Deus", como
diz ;1 Tese S de Aamwn. Por c�sa razão, a teologia do Remo de Deus não pode rt·co-
14 JUR(.jl'.t,; MOI.TMANN

lhcr-se <le modo fundamentalisrn à própria c:omuni<ladc de fé, nem acomodar-se de


modo modernista �s tendências da sociedade. Ela está com o pensamento voltado fir
me e produtivamente para o futuro da vida cb criação terrena como um todo.
Alguns opinaram criticamente <1ue penso saber mais de. Deus e do seu futuro
cio ttue humanamente se pndl'ria saber. Recomendam-me guardar máis silêncio dian1c
do mistério insondável, indizível e ÍO{lTlular mais twogu, 11egntiv11 ao "dar pela falta de
Deus" Q. B Metz). Sou suficientemente m:stico para compreender o que eles estão
querendo dizer. Todavia, justamente porc1ue o mistério rcveh1do do nome .de Deus é
insondável, nem se pode pretender saber<> suficiente sobre ele. O Espírito investiga
também as dimensões profundas da divindade ...
Outros criacaram 1rnnicamente o 1110 tpie.foffJ d(/ Bí/1/ia como sendo um uso d !t1
C111te, embora ele não se cliferenc1c cm pnncíp10 do de Karl Bmth ou cio ele Basílio Mag­
no, :1 não ser quanto à limitação do meu conhecimento (�1 Bíblia. Na ·1 eologin da espmm
(11 (1964), ainda pude lançar mão elas exegeses vétero e ncotcstamentárias de Gerharcl
vem Rad e Ernst Kasemann, que cu conhecia bem. No entanto, em algum momen:o
dos anos 1970, a discussão exegética e mais ainda a discussão hcnnenêutica tomaram
dimensões impossíveis de serem abrangidas. Senti c1ue elas h:1viam se tornado m11t·s
um empecilho para ouvir os textos bíblicos. Na Alcm:inh:i, a exegese histórica e a teo­
logica tomaram rumos separados. A crítica histórica pmllcmneme desapareceu. Per­
plexo diante disso, decerto encontrei então uma relação própria, pós crítica e "ingê
nua" com os escritos bíblicos e tentei formular "minha própri:1 rima" dos textos. Ao
fazer isso, notei o quanto me sinto em casa na Bíblia e como gosto ele permitir c1uc os
m:us diversos texms estimulem a reflexão propriamente m111ha. '-.:as citações, auve me
cada vez mais à Bíblia de Lutcro, não porque a tradução de Lutero seja especialmente
fiel ao original, mas porc1uc o povo alemão foi alfabetizado com a Bíblia de Lutero e
porque a linguagem cultural alemã de l .cssing e Goctht• até Thomas Mann e Bert
Brecht, de Kant e Hegel até Nietzsche e J lcicleggcr foi moldada essencialmente pela
Bíblia de Lutero. Mas, ao lidar com os enunciados bíblicos, também notei o quanto me
havrn tornado crítico e livre cm relação a eles. Certamente gostari:1 de saber o que eles
1111crcm dizer, mas não me sinto na Ol\rigaçao de repetir e interpretar apenas aquilo que
dcs dizem; antes, posso muito bem me unagmar dizendo o de m:mc1rn diferente da
1111cLI cm que eles o expressam Portamo, tomo a Escritura como estímulo parn a rcíl<·­
xào teológica própria, não como padrão e limite autoriz:1dorcs. O importante é a "cau­
sa da Escritura" e não a "esnita da causa", mesmo que só se chegue àc1ucla por meio
desta. "A pal:wra de Deus não está presa", nem â cultura patnarcal e à desqualificação
cl�, mulheres, nem it sociedade de trah:\lho escravo, nem as iransiçocs pré-modernas
da vida nômade 1>Ma a vida agn\rin e da vula agrári:1 parn a vida citadina, contextos cm
tiuc foram rcd1g1dos os escritos bfülicos. Rel<-vante r l1111carncn1c a11t11lo que remete
pa1;1 além das c'l)OC:,S cm <Jlll" tor:11n rcd1g1dos, n.mo ao nos:,o futi.ao: :i h1st<íria <ia pro
nuss:io de Dt'us e a hisrú11:1 do seu fu1uro Essa "cau sa d., 1 �scriwra" ,Li nos lihnd:ul<'
PREl'ACIO 15

criativa frente aos enunciados temporalmente condicionados da Escritura. Foi nessa


linha, creio eu, que se desenvolveu o "uso da Escritura" praticado por mim. Coloco
em discussão o respectivo método hermenêutico na parte 1I deste Livro sob o título
"l lermenêutica da esperança".
Pode-se ler este livro também como uma Introd11ção à teologia cristã. Por essa ra­
zão, empenhei-me, na pane 1, por definições detalhadas da "teologia histórica", da
"teologia cristã" e da "teologia natural" e, na pane II, por uma" teoria teológica do co­
nhecimento". Somente quando se sabe o que é teo!ogi", pode-se escrever uma introdu­
ção à teologia. É por isso que esta /ntrod11çdo aparece só no final. Ela não pretende ser
uma introdução à minha teologia, mas naturalmente é a minha introdução à teologia.

Teologia confessional ou ccurnênic�1?

Em 19'18, retornei dos campos de prisioneiros na condição de cristão, mas


não tinha CJltalqucr relação com as igrejas. No campo de trabalhos forçados da Escó­
cia, um professor de filosofia católico reunia cm torno de si um círculo de interessa­
dos, cm Norton Camp estudei teologia evangélica. Em Uremen trabalhei numa comu­
nidade reformada e, cm l ,ccr, na Frísia oriental, fui ()rdenaclo como pastor reformado.
A cooperação com colegas católicos cm Bonn e Tübingen, as conferências ecumêni­
cas da Comissão "Faith anel Order [Fé e ordem]" no Conselho Mundial de Igrejas, das
(Juais participei de 1963 a 1983, a participação na equipe editorial da revista reforrnisla
católica CONCILJUM convenceram-me de que a minha o rigem, por certo, é reforma­
da e evangélica, mas o meu futuro seria ecumênico. Entendo a tradição reformada cm
que vivo e penso como parte de um todo maior, comum, da cristandade a ser unificada
ecumenicamente e não senti quak 1uer reserva da parte de círculos católicos, ortodoxos
ou pentecostais; ao contrário, em toda parte me senti aceito e cm casa. Sempre consi­
derei estreitas e sectárias as cartelas de citações cm livros teológicos - papas citam so·
mente papas, católicos, somente c;itólicos, ortodoxos, somente ortodoxos e teólogos
evangélicos, somente autores evangélicos. As fronteiras confessionais atualmente ne·
cessárias não acompanham mais as tradicionais linhas demarcatórias confessionais,

,..
nem mesmo na doutrina da justificação e nem na compreensão da trindade. Smgirnm
novas alianças e novas diferenças no nível teológico. O que importa é valer-se delas
para formular a teologia ecumênica cm surgimento.
Devo clcsculpar-mc, ao finiil, junto aos numerosos doutorandos e amores de
reccnsões, por 11:10 ter podido lcv:tr em conta as suas apreciações críticas. De tantos
que roram, isso teria n:s11lt:1do num livro para si. Os que me enviaram as suas disserta·
çôcs e reccnsõcs podem ter certeza de que as li. Os tiuc não :1s cnvi11rnm não o quisc
ram ou não acharam necess:ítio seguir o estilo acadêmico tradicional. Comudo seria la­
mentável se a comunidade acadêmica fosse dissolvida nesse ponto e os autores não
mais pudessem saber o c1ue alguém escreveu sobre eles. Nem a internet compensaria
isso.
Assim como fiz há 35 anos com a Teo/ogit1 dt1eJpem11çn, com à qua� iniciei a.mi­
nha teologia sistemática. dedico também o último bvro desta série à minh·i1 mulher. As
minhas Experiências de reflexão teológi.a surgiram durante a nossa comunhão de vida e
provêm da alegria perene proporcionada por ela.

Tübingen, 23 de março de 1999


Ji.irgen Moltmann

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