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Disciplina:

Hermenêutica Bíblica
Prof. Adilton Cruz Coêlho
Adilton Cruz Coêlho

Hermenêutica Bíblica

1ª edição

Seminário Teológico Adonai


Associação Educacional Adonai

Palmas-TO (2019)
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS............................................................................................04

I. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA HERMENÊUTICA...........................................04

II. A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO..................................................................05

III. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO CULTURAL.......................................................10

IV. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO GRAMATICAL................................................17

V. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO LITERÁRIO........................................................21

VI. A PRIMEIRA TAREFA DO INTERPRETE: A EXEGESE.......................................23

VII. A SEGUNDA TAREFA DO INTERPRETE: A HERMENÊUTICA........................25

VIII. AS EPÍSTOLAS – APRENDENDO A PENSAR CONTEXTUALMENTE...........25

IX. AS NARRATIVAS DO A.T. – SEU EMPREGO APROPRIADO............................27

X. AS PARÁBOLAS – VOCÊ PERCEBE A LIÇÃO? ....................................................30

XI. AS LEI(S) – AS ESTIPULAÇÕES DA ALIANÇA PARA ISRAEL........................32

XII. OS SALMOS – AS ORAÇÕES DE ISRAEL E AS NOSSAS..................................38

XIII. A SABEDORIA – ENTÃO E AGORA....................................................................39

VX. FIGURA DE LINGUAGEM......................................................................................41

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................46

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................47
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Não há maior privilégio nem alegria maior do que estudar a Palavra de Deus é o
que afirma em sua obra Osborne (2009: p.18). Quando nos damos conta de que Deus nos
amou o bastante para não apenas enviar seu Filho como sacrifício expiatório pelos nossos
pecados, mas também se importou tanto conosco, que nos revelou suas verdades para
desafiar e orientar nossa vida, ficamos pasmos de ver como merecemos pouco diante do
muito que ele fez por nós!
Portanto, estudar a Palavra de Deus com a máxima atenção é tanto um privilégio
quanto uma responsabilidade. Como cristão, deixar de estudar a revelação inspirada
equivale a recusar conhecer as leis do país em que vivemos e, assim, inflingi-las de modo
impune. É um ato que fatalmente trará conseqüências catastróficas, pois significa que não
damos importância para as regras às quais prometemos obedecer por sermos cidadãos do
nosso país – seja o Brasil, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, ou o céu (ver Fp. 3:21),
O propósito desta apostila é proporcionar um panorama abrangente dos princípios
hermenêuticos que regem ao estudo e à compreensão da Bíblia, a Palavra de Deus.
Fornecer-lhe as ferramentas necessárias para cavar mais fundo na Palavra e ensiná-lo a
usá-las. O alvo é o tesouro supremo da verdade divina!

Quem Precisa de Hermenêutica?

Em sua obra Correia (2012) afirma que o termo hermenêutica tem se tornado cada
vez mais popular em recentes décadas.
A palavra “hermenêutica” deriva-se do termo grego “hermeneutike” que, por sua
vez, se deriva do verbo “hermeneuo” significando: ARTE DE INTERPRETAR OS
LIVROS SAGRADOS E OS TEXTOS ANTIGOS. De modo geral, fala da teoria da
interpretação de sinais e símbolos duma cultura, e da arte de interpretar leis.
Podemos defini-la assim: Hermenêutica é a ciência que nos ensina os princípios,
as leis e os métodos de interpretação.
Além da hermenêutica geral como arte de interpretar os fatos da história, da
profecia, da poesia e das leis, há outro tipo de hermenêutica como “HERMENÊUTICA
SAGRADA”, ligada essencialmente à interpretação e compreensão da Palavra de Deus.
Usado por tantos escritores, o termo transforma-se em alvo móvel, gerando
ansiedade nos leitores que buscam, em vão, defini-lo e compreender o que significa.
O significado de HERMENÊUTICA BÍBLICA – é a disciplina da teologia
exegética que ensina as regras para interpretar as Escrituras e a maneira de aplicá-las
corretamente. É a ciência da compreensão de textos bíblicos.

I. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA HERMENÊUTICA

É do interesse divino que não apenas creiamos na Bíblia. Deus exige que a
conheçamos adequadamente.
Deve pesar sobre os nossos ombros, além do cultivo duma vida cheia do Espírito
(ver Ef. 5:18), a responsabilidade de nos apossarmos de todos os meios legítimos que nos
propiciem maior e melhor conhecimento da Palavra de Deus.
Segundo Osborne (2009: p.27), a hermenêutica é importante porque capacita a
pessoa a se movimentar do texto para o contexto, para que o significado inspirado por
Deus na Bíblia fale hoje com uma relevância tão nova e dinâmica quanto em seu ambiente
original. Além disso, pregadores e professores devem anunciar a Palavra de Deus em vez
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de suas opiniões religiosas repletas de subjetividade, isto é, de acordo com o julgamento,


os sentimentos ou hábitos pessoais. Só uma hermenêutica bem definida pode manter
alguém atrelado ao texto.

II. A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO

“Você não precisa interpretar a Bíblia; leia-a, apenas, e faça o que ela diz”
Convictos, Gordon & Douglas (2008 p:13/15) afirmam que o problema individual
mais sério que as pessoas têm com a Bíblia não é uma falta de entendimento, mas, sim o
fato de que entendem bem demais a maior parte das coisas!
“Fazei tudo sem murmurações nem contenda” (Fp 2:14), por exemplo, não é
compreendê-lo, mas, sim, obedecê-lo – colocá-lo em prática.
O alvo da boa interpretação: chegar ao “sentido claro do texto”. O ingrediente mais
importante a essa tarefa é o bom-senso aguçado. A interpretação correta traz alívio à mente
como uma aguilhoada ou cutucada no coração.

2.1. Qual o ponto de vista é válido?

Segundo Zuck (1994: 68 a 86), uma verdade acerca da Bíblia evidente por si
mesma é que ela é um livro. Como outros livros, foi escrita em línguas faladas pelos seres
humanos com o propósito de transmitir conceitos dos escritores para os leitores.
Outra observação óbvia a respeito da Bíblia é que se trata de um livro divino. É
evidente que, apesar de a Bíblia assemelhar-se a outros livros, é incomparável por sua
origem ser divina.
A partir de dois axiomas, isto é, premissa imediatamente evidente que se admite
como universalmente verdadeira sem exigência de demonstração, a Bíblia é um livro
humano e divino.

2.1.1. Primeiro princípio evidente por si mesmo: a Bíblia é um livro humano

Embora a Bíblia seja uma obra sobrenatural de Deus, também é um livro. Como
qualquer outro livro, foi escrita em idiomas que permitissem a comunicação de conceitos
aos leitores.
Uma série de consequências deriva desse princípio evidente que diz que a Bíblia é
um livro humano dado como comunicação escrita em língua humana para que as pessoas o
entendam.

1. Cada escrito bíblico – isto é, cada palavra, frase e livro – foi registrado em
linguagem escrita obedecendo a sentidos gramaticais comuns, incluindo a linguagem
figurada.

Para Zuck (1994), isto indica que a Bíblia não foi escrita num código misterioso
para ser decifrado por meio de alguma fórmula mágica. Deus comunicou verdades sobre si
próprio nos idiomas das pessoas que foram as primeiras a ler as Escrituras – idiomas que
elas conheciam. Não era necessário consultar um mago, um feiticeiro ou alguém que
tivesse um raro discernimento espiritual ou uma intuição mística para transmitir o
significado. É claro que numa língua há idiomatismos, expressões incomuns exclusivas
dessa língua e figuras de linguagem.
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2. Todo texto bíblico foi escrito por alguém para ouvintes ou leitores específicos,
que se encontravam num contexto histórico e geográfico específico, e com um objetivo
específico.

Esse princípio indica que cada trecho da Bíblia foi escrito originalmente para
determinado leitor ou leitores que viviam em certos locais e épocas, e que havia um
propósito para tal. Volta-se assim o fato de que cabe à exegese descobrir o sentido original
do texto.
Deus mandou Noé construir uma arca. Mas por acaso isso significa que todo cristão
moderno deve construir uma arca? Precisamos entender a ordem que Noé recebeu dentro
de um contexto histórico e geográfico específico.

3. A Bíblia foi afetada e influenciada pelo meio cultural em que cada autor humano
a escreveu.
Isso significa que o intérprete da Bíblia precisa atentar para os aspectos culturais.
Essas características culturais incluem a agricultura, a arquitetura, a geografia, o sistema
militar e o aspecto político.

4. Cada passagem bíblica era apreendida ou entendida tendo em mente seu


contexto.

Entender uma palavra ou frase dentro de seu contexto é outro aspecto da


interpretação normal, de como costumamos ler um texto qualquer. Uma única palavra ou
frase pode ter vários sentidos, dependendo do contexto em que é empregada. A palavra
tronco pode significar o caule de uma árvore, uma parte do corpo humano, um artigo
instrumento de tortura, um cárcere, um elemento geométrico ou um termo de
telecomunicações. O leitor pode descobrir o sentido com base no emprego da palavra na
frase.

5. Cada escrito bíblico adquiriu o caráter de um estilo literário específico.

Embora a forma mais comum de entendermos um texto seja mediante seu sentido
normal, claro, ao mesmo tempo reconhecemos diferenças de estilos literários. Quando
lemos um romance histórico, não esperamos que todos os detalhes tenham precisão
histórica. Nós não lemos um relatório da mesma forma como lemos revistas em quadrinho.
Como a Bíblia possui diversos estilos literários, é preciso que se levem em conta as
características singulares de cada um deles na interpretação bíblica. A Bíblia contém
narrativas, poesias, profecias, epístolas, provérbios, literatura dramática, jurídica e
sapiencial, visões apocalípticas, parábolas e discursos. Se não estivermos conscientes
desses estilos literários, é possível que não interpretemos corretamente as afirmações neles
contidas.

6. Os primeiros leitores entendiam cada escrito bíblico de acordo com os


princípios básicos da lógica e da comunicação.

Quando lemos uma obra literária, dramática, autobiográfica ou jornalística,


seguimos os princípios normais de comunicação.
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Vejamos seis situações que ao lermos a Bíblia devemos fazer as seguintes


perguntas:
1. Qual o significado gramatical das palavras para os leitores contemporâneos do
autor?
2. O que essas palavras transmitiram para os primeiros leitores?
3. Como o ambiente cultural influenciou e afetou o que foi escrito?
4. Qual é o significado das palavras dentro de seu contexto?
5. Em que estilo literário o trecho foi escrito e como isso influi no que foi dito?
6. Como os princípios da lógica e da comunicação normal influem no sentido?

EXAMINAR O CONTEXTO

Para se descobrir o significado de uma palavra no texto bíblico, Zuck (1994: 123)
afirma que o exame do contexto é extremamente importante por três razões:
Em primeiro lugar, as palavras, as locuções e as frases podem assumir sentidos
múltiplos, e o estudo de seu emprego em determinado contexto pode auxiliar-nos a
descobrir qual dentre vários significados é o mais provável.
Em segundo lugar, os pensamentos normalmente são expressos por uma sequencia
de palavras ou de frases, ou seja, por elementos associados, não isolados. “O sentido de
qualquer termo específico quase sempre é determinado pelos elementos que o precedem e
sucedem.”
Em terceiro lugar, desconsiderar o contexto normalmente acarreta interpretações
falsas.
Os missionários gostam de usar Salmos 2.8 – “pede-me, e eu te darei as nações por
herança, e as extremidades da terra por tua possessão” – para ilustrar sua expectativa de
conversões nos campos das missões. Entretanto, o versículo anterior deixa claro que se
trata de Deus Pai falando a Deus Filho.
A interpretação bíblica deve levar em consideração vários tipos de contexto. Em
primeiro lugar, há o CONTEXTO INICIAL. Normalmente, a frase em que a palavra foi
usada esclarece seu sentido. Exemplo: “O substantivo PENA pode significar PENA DE
AVE ou SENTIMENTO DE SOLIDARIEDADE, mas na maioria dos casos a frase
esclarece o sentido.”

Se lermos a exclamação “Que frango!”? Como saber o significado da frase? A


palavra frango pode significar: a) filho da galinha antes de ser galo, b) bola fácil que o
goleiro deixa passar ou c) rapazola, adolescente.
Podemos aplicar todos as seis situações para descobrir o significado.
Em primeiro lugar, verificarmos qual o sentido gramatical normal. Nesse caso, o
significado normal da palavra frango é o de uma ave. Mas, se o sentido da oração for
figurado, cabe uma das outras duas definições: (b) bola fácil que o goleiro deixa passar ou
c) rapazola, adolescente.
Em segundo lugar, procuramos conhecer a situação histórica e geográfica em que a
frase sobre o frango foi escrita. Quem disse o quê, e para quem? Se a exclamação tivesse
sito feita numa situação familiar, é possível que o sentido fosse o terceiro: (rapazola,
adolescente). Se tivesse sido feita num programa esportivo, caberia a segunda definição:
(bola fácil que o goleiro deixa passar). Se alguém a tivesse feito durante um jantar,
provavelmente o sentido seria o primeiro (filho da galinha antes de ser galo), ou quem sabe
os outros dois (bola fácil que o goleiro deixa passar).
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Em terceiro lugar, a próxima pergunta a ser feita seria: “Em que ambiente cultural
aquelas palavras foram ditas?”. Se a frase em questão fosse de um livro escrito em 1920, é
provável que a segunda definição (“bola não defendida”) não se aplicasse, pois talvez não
fosse usada em tal sentido naquela época.
Em quarto lugar, em que contexto a frase foi usada? Isso é o que melhor deve
indicar o sentido que o autor quis dar à frase sobre o frango. 4
Em quinto lugar, qual o estilo literário usado? Se a frase for de um diálogo num
romance, o sentido bem pode ser o terceiro (rapazola, adolescente). Mas, se for de um livro
sobre transmissão de futebol, é mais provável que se aplique à segunda definição (bola
fácil que o goleiro deixa passar).
O sexto, referente à lógica e à comunicação. Qualquer um dos três sentidos pode ter
sido o pretendido.
2.1.2. Segundo princípio evidente por si mesmo: a Bíblia é um livro divino
Na qualidade de veículo de comunicação, a Escritura é um livro tal como qualquer
outro, as palavras foram registradas pelas mãos de pessoas. Tendo em vista que esses
instrumentos humanos escreveram os livros da Bíblia em linguagem humana, o primeiro
princípio evidente por si mesmo manda-nos prestar atenção às regras naturais de gramática
e sintaxe.
No entanto, a Bíblia é um livro sem igual. É singular porque nos foi dada pelo
próprio Deus. Isso fica evidente a partir de suas próprias reivindicações de inspiração.
Paulo disse: “Toda Escritura é inspirada por Deus...” (ver 2 Tm. 3:16). Embora Deus tenha
usado autores humanos para escrever as Escrituras, com seus estilos de linguagem
particulares e expressando suas próprias personalidades, as palavras que registraram foram
“inspiradas” por Ele. Assim, inspiração é a obra sobrenatural do Espírito Santo por meio da
qual ele orientou e supervisionou os escritores bíblicos para que o que escrevessem fosse a
Palavra de Deus.
Quando falamos de inspiração da Bíblia, não queremos dizer que os escritores
foram inspirados, mas sim que as próprias palavras o foram, ou seja, elas foram sopradas
por Deus. Em certo sentido, Deus incutiu sua vida nas palavras da Bíblia, de sorte que são
realmente palavras suas. Não se pode dizer o mesmo de nenhum outro livro já escrito!
Está claro, então, que a Bíblia veio de Deus. Sem sombra de dúvida, a afirmação de
que ela é um livro divino constitui uma verdade evidente por si própria.
Os intérpretes da Bíblia devem atentar para estuda-la:

1. Pelo fato de ser um livro divino, a Bíblia é inerrante.

A conclusão lógica da inspiração das Escrituras por parte do Espírito Santo é que
elas são inerrantes, isto é, os originais não contêm erros. (A inerrância não se aplica às
cópias dos originais, pois nelas os escribas cometeram alguns erros no processo de
transmissão.) Portanto, quando nos dispomos a interpretar a Bíblia, nós a aceitamos como
um livro sobrenatural cujos originais não continham erros.

2. Como a Bíblia é um livro divino, é fonte indiscutível.

O fato de que Jesus fazia citações do Antigo Testamento frequentemente,


reconhecendo sua origem sobrenatural, é mais uma prova de que ele acreditava na
autoridade do texto. O que Ele considerava indiscutível, nós devemos considerar
indiscutível, sem margem para dúvidas. Considerando que a Bíblia é nossa fonte suprema e
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estamos sujeitos à sua autoridade, enfrentamos o desafio de interpretá-la com a maior


precisão possível.

3. Como a Bíblia é um livro divino, apresenta unidade.

Embora tenha sido elaborada por cerca de 40 autores humanos, a Bíblia é obra do
próprio Deus. Várias questões decorrem desse fato.
Primeira: a Bíblia não se contradiz. Como obra de Deus, que é a verdade, as
Escrituras são coerentes e uniformes.
Segunda: como a Bíblia é coerente, suas passagens obscuras e secundárias devem
ser interpretadas com base em trechos claros e principais. John Knox respondeu: “A
Palavra de Deus é clara por si só. Havendo algum ponto obscuro, o Espírito Santo, que não
contradiz a si mesmo, apresenta-o com maior clareza em outros trechos”.
Terceira: outra consequência da unidade das Escrituras é que, muitas vezes, a
Bíblia interpreta a si mesma. Martinho Lutero e João Calvino costumavam dizer: “A
Escritura interpreta a Escritura”. Certas passagens esclarecem outras. Isso não surpreende,
porque a Bíblia é um livro harmônico, uma emanação da mente do próprio Deus.
Quarta: aceitar a unidade da Bíblia também implica reconhecer o que é chamado de
progresso da revelação. Isso não significa que a revelação bíblica evoluiu. O que se
pretende dizer é que nas últimas passagens Deus fez acréscimos ao que revelara nas
primeiras. Não estamos insinuando que o que ficou registrado nos trechos mais antigo da
Bíblia seja imperfeito, sendo as revelações posteriores perfeitas; tampouco que os
primeiros registros contenham erros e que os trechos mais novos sejam fidedignos. O que
se quer dizer é que uma informação que pode ter sido parcial foi acrescentada
posteriormente, de sorte que a revelação ficou mais completa.
A revelação progressiva também significa que alguns mandamentos vieram a ser
alterados. A circuncisão, ordenada a Abraão e a seus descendentes em Gêneses 17:10,
posteriormente foi abolida (ver Gl. 5:2). A lei de Moisés tornou-se obsoleta, como vemos
em 2 Cor. 3:7-11 e em Hb. 7:11-19. Em Mt. 10:5-7, Jesus deu aos 12 apóstolos instruções
diferentes das que transmitiu após sua ressurreição, obviamente, como se vê em 28:18-20.
Ele também disse aos discípulos que o Espírito Santo, que estava com eles, haveria de
habitar neles (ver Jo 14:17). É semelhante ao que João escreveu no capítulo 7:39 “...pois o
Espírito até esse momento não fora dado...”. Isso dá a entender que a vinda do Espírito
Santo aconteceria mais tarde, no dia de Pentecoste (ver At. 2). Ao relatar esse evento
ocorrido na casa de Cornélio, Pedro usou as seguintes palavras: “...caiu o Espírito Santo
sobre eles, como também sobre nós no princípio” (ver 11:15).

4. Como a Bíblia é um livro divino, tem seus mistérios.

E preciso admitir que a Bíblia contém muitas coisas difíceis de entender. Os


estudiosos das Escrituras têm de reconhecer que nem sempre são capazes de determinar o
sentido de certas passagens.
A Bíblia encerra mistérios em quatro áreas: Uma delas é a profética. Ela contém
predições sobre acontecimentos futuros que nenhum ser humano poderia antecipar
sozinho, sem revelação divina. Esse fator singular precisa ser levado em conta na
interpretação bíblica. Outros aspectos do mistério das Escrituras são os milagres. Como é
possível explicar que um machado flutuou? Como é possível andar sobre a água? Como
alguém poderia ressuscitar dos mortos? Como a terra pode ter sido feita a partir do nada?
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Nada disso seria possível sem a atuação sobrenatural de Deus. Se aceitamos a natureza
divina da Bíblia, então podemos aceitar esses milagres como verdadeiros.
Aceitar a natureza divina da Bíblia significa reconhecer sua inerrância, sua
autoridade, sua unidade e seu mistério. Se for considerada mero livro humano, então, ao
tentarmos interpretá-la, não poderemos esperar que seja inerrante, indiscutível, harmoniosa
e misteriosa.

A TAREFA DE INTERPRETAR ENVOLVE O ESTUDANTE EM DOIS


NÍVEIS:

Em primeiro lugar – é necessário escutar a Palavra que eles ouviram, compreender


o que foi dito a eles lá e então.
Em segundo lugar – Devemos aprender a ouvir essa mesma Palavra no aqui e
agora.

III. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO CULTURAL

Para Zuck (1994: 88 a 111), no trabalho de interpretação da Bíblia, é fundamental


conhecer o contexto bíblico.
O contexto consiste num dos problemas mais graves na interpretação bíblica. Se
desconsiderarmos o “meio envolvente” de um versículo bíblico, poderemos acabar
interpretando-o de forma completamente errada. Precisamos levar em conta as frases e os
parágrafos que antecedem e sucedem o versículo em questão e, ainda, considerar o
contexto cultural em que aquela passagem e até mesmo o livro inteiro foram escritos.
A importância desse procedimento decorre das diferenças culturais que existem
entre nossa cultura ocidental e a cultura dos tempos bíblicos. “Para entender a Bíblia
adequadamente, precisamos esvaziar nossas mentes de todas as ideias, opiniões e métodos
modernos e procurar transportar-nos para a época e o ambiente em que viviam os apóstolos
e os profetas que a escreveram.” Quanto mais tentarmos transportar-nos para o contexto
histórico dos autores bíblicos e nos desvincular de nossas próprias culturas, mais cresce a
probabilidade de interpretarmos as Escrituras com maior precisão.
Quando os reformadores (Martinho Lutero, Philip Melanchton, João Calvino e
outros) acentuaram a necessidade do retorno às Escrituras, eles ressaltaram a interpretação
histórica, gramatical. Com “histórica”, estavam-se referindo ao contexto em que os livros
da Bíblia foram escritos e as circunstâncias em jogo. Com “gramatical”, referiam-se à
apuração do sentido dos textos bíblicos mediante estudo das palavras e das frases em seu
sentido normal e claro.
O contexto em que determinada passagem bíblica foi escrita influi no entendimento
que se terá dela. O contexto abrange vários elementos:

• O(s) versículo(s) imediatamente anterior(es) e posterio(res);


• O parágrafo e o livro em que o versículo se encontra;
• A dispensação em que foi escrito;
• A mensagem de toda a Bíblia;
• O ambiente histórico-cultural da época em que foi escrito.

É importante conhecer as circunstâncias que cercavam determinado livro da Bíblia.


Para tanto, procura-se responder às seguintes perguntas: Quem escreveu o livro? Em que
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época foi escrito? O que levou o autor a escrevê-lo? Em outras palavras, a que problemas,
situações ou necessidades ele estava referindo-se? De que trata o livro? Ou seja, qual é seu
tópico ou tópicos principais? Para quem foi escrito? Quem foram os primeiros leitores ou
ouvintes? As respostas a essas indagações podem ajudar-nos a discernir o que o livro está
dizendo.

3.1. Que queremos dizer com cultura?

Os dicionários definem “cultura” como “o conjunto dos moldes de comportamento,


crenças, instituições e valores espirituais e materiais característicos de uma sociedade”.
Portanto, a cultura envolve o que as pessoas pensam e crêem, dizem, fazem e produzem. A
cultura de um indivíduo abrange vários níveis de relacionamentos e influências – suas
relações com outras pessoas e grupos, a função que exerce na família e na classe social e a
nação ou governo a que está sujeito. A religião, a política, as operações militares, as leis, a
agricultura, a arquitetura, o comércio, a economia e a geografia da região onde o indivíduo
vive e por onde viaja, o que ele e outros escreveram e leram, o que ele veste e a(s)
língua(s) que fala – tudo isso influencia seu modo de vida e, no caso de ser um autor
bíblico, o que ele escreve.
Quando um missionário vai para um país de cultura diferente, precisa saber como
aquele povo pensa, em que acredita, o que diz, faz e produz. Ele precisa entender a cultura
local para compreender as pessoas e comunicar-se bem. Se você já viajou para o exterior,
sem dúvida alguma experimentou algum tipo de “choque cultural”. Isso significa que você
sentiu o impacto dos ambientes e dos hábitos diferentes do povo daquela nação. À medida
que foi-se familiarizando com aqueles costumes diferentes, o choque amenizou-se.
Quando abrimos as Escrituras, é como se estivéssemos entrando num país estranho.
Da mesma forma como ficamos confusos com a maneira de agir das pessoas de outros
países, podemos ficar confusos com o que lemos na Bíblia. Assim, é importante sabermos
o que os personagens bíblicos pensavam, em que acreditavam, o que diziam, faziam e
produziam. À medida que procedemos assim, temos mais condições de compreender e
transmitir essas informações com mais exatidão. Se não atentarmos nessas questões
culturais, podemos ser culpados de fazer uma eisegese, que é projetar na Bíblia nossos
conceitos ocidentais do século XXI. “A preocupação com o contexto força-nos a um
distanciamento de nossas interpretações particulares e a voltarmo-nos para o [...] mundo do
autor.”

3.2. Como a variedade de costumes culturais influi na interpretação de certas


passagens?

O que alguém pensa afeta seus atos; o que faz está ligado àquilo em que acredita, e
assim por diante.
Os aspectos culturais agrupa-se normalmente em 11 categorias: política, religião,
economia, leis, agricultura, arquitetura, vestimentas, vida doméstica, geografia,
organização militar e estrutura social.
Apresentamos alguns exemplos de passagens bíblicas cuja interpretação depende
do conhecimento de certos aspectos do contexto cultural.
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(POLÍTICA (NACIONAL, INTERNACIONAL E CIVIL)

Por que Jonas não queria ir para Nínive? Fontes seculares dão conta de que os
ninivitas cometiam atrocidades com seus inimigos. Eles decapitavam os líderes dos povos
conquistados e empilhavam as cabeças. Às vezes, colocavam numa jaula um chefe
capturado e tratavam-no como animal. Era seu costume “empalar” os prisioneiros, isto é
atravessar com uma lança uma pessoa pelo ânus até sair geralmente pela boca ou deixando-
os agonizar até à morte. Por vezes, esticavam as pernas e os braços do prisioneiro e
esfolavam-no ainda vivo. Não é de admirar que Jonas não quisesse pregar uma mensagem
de arrependimento aos ninivitas! Ele achava que mereciam ser julgados por suas
atrocidades.

Por que Boaz foi até a porta da cidade falar com os anciãos sobre o terreno de
Noemi (ver Rt. 4:1)? A porta da cidade era o lugar oficial para a realização de negócios e
para o julgamento de casos (ver Dt. 21:18-21; 22:13-15; Js 20:4; Jó 29:7).

(RELIGIÃO)

Por que Elias propôs que o monte Carmelo fosse o local de sua disputa com os 450
profetas de Baal? Os seguidores de Baal acreditavam que este habitasse no monte Carmelo.
Portanto, Elias deixou que eles “jogassem em casa”. Se Baal não conseguisse fazer cair um
raio sobre um sacrifício em seu próprio território, sua fraqueza se tornaria evidente. Outro
ponto interessante é que os cananeus viam a Baal como o deus da chuva, dos raios, do fogo
e das tempestades. Como até pouco antes desse episódio dramático houvera uma seca de
três anos e meio, estava claro que Baal não era capaz de fazer chover. Sua incapacidade
também foi demonstrada pelo fato de não conseguir fazer cair fogo do céu sobre o
sacrifício.

Por que Paulo levantou a questão da carne oferecida a ídolos, em 1 Cor 8?


A questão é que os coríntios compravam a carne no mercado, ofereciam uma parte
a ídolos pagãos num dos muitos templos e levavam o restante para casa, a fim de servir no
jantar. Consequentemente, alguns cristãos achavam que o fato de comerem aquela carne os
tornaria participantes da adoração a ídolos.

(ECONOMIA)

Por que o parente mais chegado de Elimeleque deu sua sandália a Boaz (ver Rt. 4:8,
17)? Segundo as tábuas Nuzi, encontradas no Iraque em escavações que se estenderam
desde 1925 até 1931, esse ato simbolizava a cessão de direitos de uma pessoa sobre a terra
que pisava. Agia-se assim quando era concluída a venda de um terreno.

(LEIS)

Em 2 Reis 2:9, quando Eliseu disse a Elias: “...Peço-te que me toque por herança
porção dobrada do teu espírito”, será que ele estava pedindo duas vezes mais poder
espiritual do que Elias tinha? Não, estava expressando o desejo de ser seu herdeiro, seu
sucessor. De acordo com Deut. 21:17, o primogênito de uma família tinha direito de
receber em dobro sua parte da herança deixada pelo pai.
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(AGRICULTURA)

Por que Salmo 1:4 compara os ímpios à palha? Para mostrar que o ímpio não tem
segurança. Quando os fazendeiros separavam o trigo, o vento levava a palha, que é mais
leve. Nenhum fazendeiro procurava guardar e usar a palha, pois não é útil. Os ímpios,
como ela, não têm segurança nem utilidade.

(ARQUITETURA)

Como Raabe podia ter uma casa em cima de uma muralha (ver Js. 2:15)? Jericó
tinha muralhas duplas, e o intervalo entre elas era cheio de terra, de forma que se podiam
construir casas ali e ainda estarem quase ao nível do topo.

(VESTIMENTA)

Qual é o sentido da ordem “Cinge os teus lombos”, em Jó 38:3, 40:7 e 1 Pe 1:13?


Quando um homem corria, trabalhava ou guerreava, enfiava a túnica por dentro de uma
faixa larga que trazia à cintura para que pudesse ter maior liberdade de movimentos. A
ordem, portanto, tem o sentido de induzir um estado de alerta e a capacidade de reação
rápida.

(VIDA DOMÉSTICA)

Qual é o significado de Oséias 7:8: “Efraim [...] é um pão que não foi virado? Às
vezes, um pão assa mais de um lado que de outro se não for virado. Parece que Oséias
empregou essa ilustração para dizer que Efraim carecia de equilíbrio, dando mais atenção a
determinadas coisas e deixando de atentar para outras.
Por que Tiago disse que se ungissem os enfermos com óleo (Tg. 5:14)? Existem
dois verbos gregos com o sentido de esfregar, ou ungir. O primeiro é chriô, que significa
ungir num ritual. Não foi esse o termo que Tiago usou. O verbo em Tiago 5:14 é aleiphô,
cujo significado é esfregar com óleo. Assim sendo, Tiago não estava referindo-se a um
ritual. Pelo contrário, ele falava de uma atitude refrescante e estimulante para com as
pessoas doentes ou deprimidas. (Aleiphô também é empregado em Mateus 6:17 com o
sentido de passar óleo na própria cabeça [para refrescar-se], e em Lucas 7:46 em referência
ao fato de a pecadora ter esfregado perfume nos pés de Jesus.)
Por que, em Lucas 9:59, o homem disse que queria enterrar o pai antes de seguir
Jesus? Ele não quis dizer que o pai tinha acabado de morrer, mas que se sentia obrigado a
esperar o pai morrer, mesmo que levasse vários anos, provavelmente, para receber a
herança. Isso explica sua relutância em seguir Jesus.

(GEOGRAFIA)

Por que a carta para a igreja de Laodicéia, em Apocalise 3:16, dizia que os
membros daquela igreja eram “mornos”, nem “quentes” nem “frios”? Essa afirmação
reflete o fato de que aquela congregação local era como a água da cidade, em termos
espirituais. A água percorria em dutos os quase 10 km de Hierápolis a Laodicéia. Ela saía
14

quente dar termas de Hierápolis, obviamente, mas quando chegava a Laodicéia já estava
morna.
(ESTRUTURA SOCIAL)

Por que José barbeou-se antes de ir ao encontro de Faraó (ver Gn. 41:14)? Não era
costume dos hebreus usar barba? Mas, como os egípcios não usavam barba, José
simplesmente seguiu o costume do país

Qual é o significado de “aliança de sal” (Ver Nm 18:19; 2 Cr. 13:5)? Não se sabe
como o sal era utilizado naqueles pactos, mas o aspecto de conservação a ele associado
pode indicar que as partes envolvidas desejavam a conservação de sua amizade

Em suma, está claro que o desconhecimento de tais costumes pode levar a um


entendimento errado do significado dos textos. O estudante da Bíblia depara com muitos
outros costumes ao lê-la. Assim sendo, é sábio manter-se atento a costumes raros que
sejam mencionados e descobrir o significado das passagens para os que viviam na época.

ATÉ QUE PONTO OS TEXTOS BÍBLICOS SÃO LIMITADOS PELOS


FATORES CULTURAIS?

Um dos problemas mais importantes que os intérpretes da Bíblia enfrentam é o das


passagens restritas a uma cultura. Em outras palavras, será que certas passagens bíblicas
estão restritas àquela época pelos aspectos culturais, não podendo, portanto ser
transportadas para nossa cultura, ou será que tudo o que lemos nas Escrituras vale para
hoje?
A questão da aplicabilidade cultural é importante por causa das duas funções do
intérprete: descobrir o significado do texto para os primeiros leitores, dentro daquele
contexto cultural, e verificar seu significado para nós, hoje, em nosso contexto.
Deve ser óbvio que nem todos os costumes bíblicos têm aplicação hoje em dia.
Vamos ilustrar essa questão da seguinte forma: leia cada um dos itens abaixo e
circule o “P” (permanente) ou o “T” (temporário) que segue cada frase:

1. Cumprimentar uns aos outros com beijo santo (ver Rm. 16:16) P T
2. Abster-se de carnes oferecidas a ídolos (ver At. 15:29) P T
3. Ser batizado (Ver At. 2:38) P T
4. Lavar os pés uns dos outros (ver Jo. 13:14) P T
5. Oferecer a destra de comunhão (ver Gl. 2:9) P T
6. Ordenação por “imposição de mãos” (ver At. 13:3) P T
7 Proibir as mulheres de falar na igreja (ver 1 Cor, 14:34) P T
8. Ter um horário fixo para orar (ver At. 3:1) P T
9. Cantar salmos, hinos e cânticos espirituais (ver Cl. 11:24) P T
10. Abster-se de comer sangue (ver At. 15:29) P T

Como vamos saber quais devem ser consideradas permanentes e, portanto,


aplicáveis a nós hoje e quais devem ser consideradas temporárias e restritas a determinada
cultura?
15

Vejamos alguns princípios que podem orientar nossas respostas:

1. Certas situações, mandamentos ou princípios são aplicáveis, contínuos ou


irrevogáveis e dizem respeito a temas morais e teológicos e são repetidos em outras
parte das Escrituras, sendo, portanto, permanentes e transferíveis para nós.

Os nazireus deviam deixar o cabelo crescer em sinal de dedicação ao Senhor (ver Jz


13:5; 1 Sm 1:11). Já no Novo Testamento, era desonroso para o homem usar cabelo
comprido (ver 1 Cor. 11:14). Assim, o Novo Testamento revogou o costume dos nazireus,
que constava da lei mosaica do Antigo Testamento.
Para McQuilkin: “Todo texto bíblico deve ser considerado normativo para qualquer
pessoa de qualquer sociedade em todas as épocas, a não ser que a própria Bíblia restrinja o
público.” “Quando a Bíblia dá uma ordem explícita e não a anula posteriormente, esta deve
ser aceita como a vontade revelada de Deus e como mandamento que tem por fim moldar
nosso comportamento individual e coletivo (nossa ‘cultura’) na forma dessa instrução.”
Isso significa que a Bíblia é auto-regulamentadora, tendo até autoridade para
determinar quais costumes são pertinentes a certa cultura e quais não. Uma forma de
sabermos quais mandamentos devem ser repetidos é verificar se tal mandamento ou
situação tem algum paralelo em outro texto bíblico.

2. Certas situações, mandamentos ou princípios dizem respeito às


circunstâncias específicas de um indivíduo não aplicáveis e a temas que não possuem
caráter moral ou teológico e foram revogados, sendo, portanto inaplicáveis na
atualidade.

Não existe nenhum mandamento para que os pais cristãos sacrifiquem seus filhos
como foi ordenado a Abraão fazer (ver Gn. 22:1-19); deu-se aquela ordem em tal ocasião
específica da vida do patriarca.

No Antigo Testamento, a punição para os casos de incesto era o apedrejamento (ver


Lv. 20:11), mas no Novo Testamento o caso era resolvido pela excomunhão (ver 1 Cor.
5:1-5).

3. Determinadas situações ou mandamentos dizem respeito a contextos


culturais que se assemelham apenas parcialmente ao nosso e nos quais só os
princípios são aplicáveis.

O Novo Testamento cita cinco vezes a saudação mútua com um beijo santo (ver
Rm. 16:16; 1 Cor. 16:20; 2 Cor. 13:12; 1 Ts 5:26; 1 Pe. 5:14). Visto que essa era a forma
de cumprimento normal naquela época e como não o é em nossa cultura ocidental, deduz-
se que tal hábito não precisa ser trazido para o presente. Mas o princípio que existe por trás
deve ser seguido, ou seja, demonstrar delicadeza e amor para com os outros. Na América
Latina, esse mesmo princípio é expressado por meio de abraço, em vez de beijo, e no
Brasil um aperto de mão às vezes é acompanhado de um abraço ou de um “tapinha” nas
costas.
16

Embora a carne que compramos não tenha sido oferecida a ídolos, o princípio de 1
Cor. 8 continua válido, que é o de não nos envolvermos em nada que escandalize os
cristãos mais fracos.

4. Certas situações ou mandamentos dizem respeito a contextos culturais


totalmente diferentes, mas em que os princípios se aplicam.

Uma passagem muito discutida tratando-se de trechos bíblicos com “limitações


culturais” é 1 Cor. 11:2-16. Esse texto diz que o próprio cabelo da mulher deve servir de
cobertura ou que ela deve usar outro tipo de cobertura? As mulheres deveriam usar véus na
cabeça para ir à igreja hoje em dia?

Não, porque o uso do véu no mundo greco-romano não teria o mesmo sentido em
nossa cultura. Esse ato não contém o mesmo simbolismo original. Mas será que não existe
um princípio a ser seguido que pode ter expressão cultural equivalente?
O princípio da subordinação (não inferioridade!) da esposa ao marido continua
válido, porque é uma verdade mencionada em vários textos bíblicos (ver Ef. 5:22-24; Cl.
3:18; 1 Pe. 3:1,2). Como alguns sugeriram, um equivalente moderno poderia ser o uso da
aliança por parte da esposa (e a incorporação do nome do marido ao sobrenome), pois isso
mostra que ela é casada e está, portanto, sujeita à autoridade do marido.
Os cristãos de hoje também não precisam tirar os sapatos quando comparecem
perante Deus na igreja ou quando oram em particular, mas devem mostrar reverência
diante do Senhor.
O discernimento espiritual e o estudo cuidadoso das Escrituras são elementos
importantes na análise do impacto dos aspectos culturais na interpretação da Bíblia.

PRINCÍPIOS PARA DESCOBRIR SE OS COSTUMES BÍBLICOS ESTÃO


RESTRITOS A CERTAS CULTURAS OU SE SÃO VÁLIDOS PARA NOSSA ÉPOCA

PRIMEIRO: Veja se o costume naquela cultura tem um significado diferente em


nossa cultura. Parece ser esse o caso no tocante ao uso do véu e ao beijo santo. Hoje em
dia, o uso do véu na igreja e o ato de cumprimentar os outros com um beijo têm
significados diferentes dos originais nos tempos bíblicos. É nessa etapa que se procura
saber se o hábito em questão foge completamente à nossa cultura. Para muitos, o lava-pés é
um exemplo disso.

SEGUNDO: Se o costume tem significado diferente para nós, descubra o princípio


permanente que o norteia.

TERCEIRO: Verifique como esse princípio pode ser expressado num equivalente
cultural. Paulo escreveu, em 1 Timóteo 2.1,2, que devemos orar pelos reis. Mas como
ficam os cristãos de países onde não há reis, como acontece com o Brasil? Essa passagem
não lhes diz respeito? A impressão é que o contexto cultural é pelo menos parcialmente
semelhante, o que permitiria aos cristãos seguir o princípio e orar pelos governantes.
17

IV. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO GRAMATICAL

De acordo com Zuck (1994: 113/114) um fato característico da Reforma foi o


retorno à interpretação histórica e gramatical das Escrituras. Esse método contrapunha-se
radicalmente ao esquema de interpretação bíblica que vinha sendo utilizado havia séculos:
a concepção que desprezava o sentido gramatical normal dos termos e permitia que os
leitores atribuíssem a palavras e frases o significado que desejassem.
As palavras, expressões e frases da Bíblia adquiriram muitos significados na Idade
Média, e a objetividade foi-se perdendo. “Então, como a Bíblia podia ser uma revelação
divina clara?”, perguntavam os reformadores.
Eles argumentavam que Deus havia transmitido sua verdade por escrito. Portanto,
quanto melhor estendermos a gramática bíblica e o contexto histórico em que aquelas
frases foram inicialmente comunicadas, tanto mais compreenderemos as verdades que
Deus quis transmitir-nos.
Os reformadores almejavam levar as pessoas a adotarem o mesmo tratamento que
dispensavam à Bíblia os pais da igreja primitiva, entre os quais Clemente de Roma, Inácio,
Policarpo e Irineu, e também os doutores da escola antioquina, entre eles Luciano,
Diodoro, Teodoro da Mopsuéstia, João Crisóstomo e Teodoreto.

POR QUE A INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL É IMPORTANTE?

Se cremos que a Bíblia foi verbalmente inspirada, então acreditamos que cada
palavra nela contida é importante. Talvez nem todas as palavras e frases tenham a mesma
importância, mas todas elas têm uma finalidade. A interpretação gramatical é o único
método que respeita integralmente a inspiração verbal das Escrituras.

QUE VEM A SER INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL?

Segundo Zuck (1994: 115), quando falamos de interpretação gramatical da Bíblia,


referimo-nos ao processo de tentar descobrir seu significado por meio da verificação de
quatro aspectos:

a) o significado das palavras (lexicologia);


b) a forma das palavras (morfologia);
c) a função das palavras (partes do discurso);
e) a relação entre as palavras (sintaxe).

Segundo Nicodemus (2012), em vídeo numa Conferência Teológica da Editora


Fiel, afirma que esse método de interpretação gramatical da Bíblia é denominado de
MÉTODO HISTÓRICO GRAMATICAL.
Exige do(a) interprete mais tempo para ORAR, porque parte do pressuposto que a
Bíblia é um livro DIVINO; e ESTUDAR porque também parte do pressuposto que a Bíblia
é um livro humano, tem que pesquisar.
O Método Histórica Gramatical requisita renúncia do caminho fácil. Obriga-nos a
encarar o que a Bíblia está realmente dizendo e a confrontarmos nossa tradição. Força as
igrejas e pastores a investirem na preparação de homens e mulheres vocacionados ao santo
Ministério Cristão. A buscarem formação e capacitação teológica em cursos de teologia
para serem competentes para interpretar as Sagradas Escrituras. Obriga a uma revisão do
papel do Espírito Santo na interpretação.
18

POR QUE O MÉTODO HISTÓRICO GRAMATICAL É UM MÉTODO


POR EXCELÊNCIA DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA?

1º) Mais Que Qualquer Outro Sistema Hermenêutico, Honra As Escrituras.

Uma das principais características dos evangélicos e do cristianismo histórico é o


alto apreço pelas Sagradas Escrituras e seus atributos, como inspiração, autoridade,
infabilidade, coerência e suficiência. O Método Histórico Gramatical parte desta alta
estima e apreço pelas Escrituras.

Portanto, para ser um autêntico interprete da Bíblia, é necessário ter a mesma


atitude que o cristianismo histórico tem para com as Escrituras: PALAVRA DE DEUS,
INSPIRADA E AUTORITATIVA, VERDADEIRA EM TUDO QUE AFIRMA, JUIZ
SUPREMO EM TODAS AS CONTROVÉRSIAS.

2º) Mantém em Equilíbrio a Tensão Entre Oração e Labuta no Estudo da


Bíblia

Os Reformados, os Evangélicos autênticos seguindo o Cristianismo histórico,


sempre procuraram manter em equilíbrio a espiritualidade e a erudição no labor teológico.

O Método Histórico Gramatical adota o binômio ORARE ET LABUTARE. (Esse


era o dístico de Calvino).

- ORARE, porque a Bíblia é DIVINA.

- LABUTARE, porque a Bíblia é HUMANA.

3º) Evita a Alegorização Desenfreada Que Tem se Tornado a Causa de


Doutrinas e Práticas Alheias ao Cristianismo Histórico.

De acordo com Nicodemus (2012), um sistema de interpretação muito popular em


nossos dias é a INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA neo-mística que descuida do
LABUTARE.

COMO É O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICO?

O adepto desse método não se preocupa com o que o texto está dizendo,
simplesmente procura COMPARAÇÕES ou SIMILARIDADES entre o EVENTO
BÍBLICO e uma DETERMINADA SITUAÇÃO.
A pessoa que é um(a) pregador(a) alegórico não está preocupado em estudar a
Bíblia com profundidade porque qualquer texto serve para pregar um sermão.

OBS.: Exemplo de uma Interpretação Alegórica: Parábola do Bom Samaritano em


Lucas 10.25-37 atribuída a Origenes.
19

Interpretação errada da Parábola do Bom Samaritano em Lucas 10.25-37

1. O homem que desceu de Jerusalém para Jericó representa Adão.

2. Jerusalém representa o paraíso, e Jericó o mundo.

3. Os ladrões representam as forças malignas. O fato de ele ter sido assaltado é uma
referência à Queda do Homem.

4. O sacerdote e o levita representam o sacrifício, a Lei e os profetas que não


podem salvar o homem.

5. Então o bom samaritano representa Jesus. Ele põe vinho e azeite no ferimento do
homem assaltado.

6. O azeite representa o conforto e o vinho uma indicação do sangue de Jesus


derramado na cruz.

7. Quando na parábola o bom samaritano levanta o homem caído, essa interpretação


diz que isso é uma figura do novo nascimento.

8. O animal que carrega o homem também é uma referência ao evangelista (ou ao


Corpo de Cristo).

9. A hospedaria representa a Igreja, e o hospedeiro representa o pastor.

10. Alguns intérpretes ainda dizem que essa antiga interpretação sugere que as duas
moedas deixadas pelo bom samaritano representam os dois sacramentos, Ceia e
Batismo.

11. Da mesma forma, a promessa do bom samaritano dizendo que voltaria, representa
a promessa da segunda vinda de Cristo.

Durante a Reforma, de acordo com Zuck (1994: 51/53), a Bíblia passou a ser a
única fonte legítima a nortear a fé e a prática. Lutero denunciou energicamente o método
alegórico de interpretação das Escrituras. “Alegorias são especulações vãs, são como que a
escória das Sagradas Escrituras.” “Alegorizar é manipular o texto bíblico.” “A
alegorização pode degenerar em mera fraude.” “As alegorias são coisas estranhas,
absurdas, fantasiosas e ultrapassadas que não valem um centavo.”
Lutero afirma, em sua obra Analogia Scripturae [Analogia da Fé] que as passagens
obscuras devem ser entendidas com base nas de sentido nítido. “O texto bíblico interpreta a
si própria.”
Na opinião de Lutero, qualquer cristão devoto pode entender a Bíblia. “Não existe
na terra livro mais esclarecido que as Sagradas Escrituras.” Com tal ênfase, ele estava
contrapondo-se à dependência que as pessoas comuns tinham da Igreja Católica Romana.
O fato de Lutero ter rejeitado a alegorização das Escrituras causou uma revolução.
O estilo alegórico estivera arraigado na igreja havia séculos.
A alegorização normalmente passa a ser arbitrária. É um processo que carece de
objetividade e que não refreia a imaginação. Ela encobre o verdadeiro sentido dos textos
20

bíblicos. Sua mensagem não se impõe, pois alguém pode dizer que certa passagem ensina
determinada verdade em termos alegóricos, ao passo que outra pessoa é capaz de enxergar
um significado completamente diferente. É uma forma de despojar as Escrituras de
qualquer autoridade. “A Bíblia analisada pelo aspecto alegórico torna-se massa de modelar
nas mãos do interprete.” A alegorização também pode provocar orgulho quando alguns
procuram enxergar nas Escrituras o que pensam ser um sentido espiritual, místico, mais
“profundo” do que aquele visto pelos outros.

Para Nicodemus (2012), a tarefa do(a) pregador(a) é responder a pergunta: “O QUE


É QUE A BÍBLIA ESTÁ DIZENDO?” “QUAL O SENTIDO DO TEXTO?” Para em cima
dele CONSTRUIR sua prática.

A INTEPRETAÇÃO ALEGÓRICA descuida do LABUTARE. Outrossim, a


INTERPRETAÇÃO DO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO tende a esquecer do ORARE.

As novas hermenêuticas tendem a esquecer as duas coisas. São relativistas, não


levam em consideração a autoridade das Sagradas Escrituras, muito menos a sua
inspiração.
Os adeptos dessas novas hermenêuticas advogam que a interpretação é uma coisa
do leitor que determina o sentido do texto, entretanto não a necessidade de LABUTAR,
muito menos de ORAR.

O Método Histórico Gramatical, obriga o(a) pregador(a), o crente, o pastor, o


ministro a ORAR, porque ele pressupõe que a Bíblia é um livro DIVINO, inspirado; e o
LABUTAR, porque também é um livro humano. Para entender o seu sentido tem que
entender também a intenção do autor.

OBS.: Significado da Parábola do Bom Samaritano

O Método Histórico Gramatical diz que o texto bíblico só tem um sentido que é
aquele pretendido pelo autor humano.

Como encontrar a interpretação correta? O Método Histórico Gramatical responde:

- O que Jesus quis dizer quando contou aquela parábola?


- O contexto explica: “Alguém perguntou para Jesus: “Quem é o meu próximo?”
- Jesus respondeu contando a parábola.

➢ - O SENTIDO DA PARÁBOLA É:

“O MEU PRÓXIMO É AQUELE QUE PRECISA DE MIM MESMO QUE


SEJA MEU INIMIGO JUDEU OU SAMARITANO.”

O Método Histórico Gramatical ensina que a verdade divina do texto bíblico


corresponde ao sentido único do texto, que é aquele pretendido pelo autor humano.
Rejeita o conceito de que cada texto tem múltiplos e vários sentidos, sendo o mais
importante aquele oculto e além da letra.
As doutrinas e práticas de seitas e de igrejas ditas evangélicas são hoje defendidas
com base na alegorização do texto bíblico.
21

V. A TRANSPOSIÇÃO DO ABISMO LITERÁRIO

Quanto mais você conhecer os modelos, os estilos e os formatos dos diversos


elementos de um livro bíblico, mais conhecerá seu objetivo e suas características
singulares, e melhor o compreenderá, é o que afirma Zuck (1994: 146/154) em sua obra.
Esse aspecto costuma ser esquecido no estudo e na interpretação bíblica.

A BÍBLIA APRESENTA BRILHO LITERÁRIO?

A resposta é afirmativa por duas razões;


Em Primeiro Lugar: A Bíblia fala de pessoas reais, vivas. Como literatura a
Bíblia traz o registro de experiências humanas. Ela fala de emoções e conflitos, vitórias e
derrotas, alegrias e tristezas, defeitos e pecados, prejuízos e benefícios espirituais. Intrigas,
suspense, emoções, fraquezas, desilusões, contratempos – essas e muitas outras
experiências do ser humano podem ser encontradas ali.
Em Segundo Lugar: A Bíblia foi escrita por autores capazes. Muitos pensam que
Amós foi uma pessoa primitiva, inculta, que mal sabia escrever. Contudo, quanto mais
você estuda o livro de Amós, mais constata sua grande qualidade literária.
Segundo Ryken, “a Bíblia contém uma “arte literária do mais alto grau.
Os autores bíblicos obedeceram a convenções literárias claras e tinham domínio
dos princípios literários. Eles sabiam contar histórias com um enredo bem elaborado.
Sabiam contar histórias que tinham em comum a tragédia ou a sátira. (…) Os poetas
bíblicos sabiam criar boas metáforas e fazer afirmações paralelas. (…) Em sua maioria,
eram mestres de estilo.
Peças, poemas, jornais, romances, contos, autobiografias, ficção científica,
documentários – esses tipos de literatura possuem várias características que influem em
nossa compreensão de seu contexto.
Da mesma forma, precisamos identificar os diferentes estilos literários que existem
na Bíblia, tais como história, leis, narrativa, poesia, profecia, evangelhos, epístolas,
literatura sapiencial, etc. É importante saber se estamos tratando de uma epístola ou de uma
narrativa, de poesia ou de escritos proféticos. “Como certas partes da Bíblia têm formato
literário, faz-se necessário uma abordagem literária para ENTENDER o que está sendo
dito.” A maestria bíblica, com relação tanto à forma quanto ao estilo, torna-a obra-prima da
literatura. Suas histórias e poemas são “frutos de riqueza de habilidade verbal e
imaginação”, o que a coloca na condição de livro de notável excelência literária.

OS GÊNEROS LITERÁRIOS DA BÍBLIA

Que são Gêneros Literários?

Gênero, palavra derivada do latim genus, significa estilo literário. “Gênero


literário” refere-se à categoria ou ao tipo de escrito caracterizado por determinada(s)
forma(s) e conteúdo ou um dos dois. A identificação dos diversos gêneros (tipos de
literatura) nas Escrituras ajuda-nos a interpretá-las com maior precisão. “Fazemos isso com
todo tipo de literatura. Fazemos distinção entre poesia lírica e súmulas jurídicas, entre
notícias atuais de um jornal e poemas épicos.
22

Exemplos de alguns gêneros literários na Bíblia

1. Jurídico. Embora o termo “jurídico” esteja mais associado aos cinco primeiros
livros da Bíblia, os textos jurídicos – que incluem os mandamentos para os israelitas –
compreendem Êxodo 20-40, Levítico, partes de Números (caps. 5, 6, 15, 18, 19, 28-30, 34,
35) e quase todo o Deuteronômio.

2. Narrativa. Uma narrativa é uma história, evidentemente, mas uma narrativa


bíblica é uma história relatada com o intuito de transmitir uma mensagem por meio das
pessoas e de seus problemas e circunstâncias. As narrativas bíblicas são seletivas e
ilustrativas. Seu objetivo não é compor biografias completas, repletas de detalhes sobre a
vida das pessoas; os autores selecionavam cuidadosamente o material que incluíam (é claro
que sob a inspiração do Espírito Santo) visando a propósitos determinados.
Geralmente, as narrativas obedecem a uma mesma sequencia: acontece um
problema logo no início, que traz complicações cada vez maiores, e chega-se ao clímax.
Daí em diante, a narrativa segue em direção a uma solução e termina com o problema
resolvido.
Segundo Cotterell e comum na narrativa a existência de um ápice na direção do
qual ela prossegue e a partir do qual descreve uma trajetória descendente abrupta.
Repare nessa sequência quando ler uma narrativa bíblica. Pode haver seis tipos de
narrativa:
a) Tragédia. A tragédia é a história da decadência de um indivíduo, do apogeu ao
desastre. As vidas de Sansão, Saul e Salomão são exemplos de tragédia.
b) Épico. Um épico é uma narrativa que contém uma série de episódios
centralizados numa pessoa ou num grupo de pessoas. Exemplo disso é a
peregrinação dos israelitas no deserto.
c) Romance. O romance é uma narrativa que aborda a relação romântica entre um
homem e uma mulher. Os livros de Rute e Cantares apresentam esse tipo de
narrativa.
d) Heróico. O estilo heroico consiste numa história tecida em torno da vida e dos
feitos de um herói ou protagonista, uma pessoa que por vezes representa outros
ou é um exemplo para outros. Abraão, Gideão, Davi, Daniel e Paulo
enquadram-se neste caso.
e) Sátira. Trata da exposição das falhas ou da loucura humanas por meio da
ridicularização ou da crítica. O livro de Jonas é uma sátira, visto que Jonas, na
qualidade de representante de Israel, é ridicularizado por rejeitar o amor
universal de Deus. Ironicamente, ele estava mais preocupado com uma planta
do que com os pagãos de Nínive.
f) Polêmica. É aquela que ataca agressivamente ou contesta as ideias de terceiros.
Temos exemplos desse estilo no episódio da “contenda” de Elias com os 450
profetas de Baal (1 Reis 18.16-46) e nas dez pragas contra os deuses e deusas
do Egito.

3. Poesia. Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiástes e Cantares são os cinco principais


livros poéticos do Antigo Testamento. Contudo, há poesia em muitos dos livros proféticos.
Existe poesia também em trechos da primeira parte do Antigo Testamento, como é o caso
de Êxodo 15, Juízes 5 e 1 Samuel 2. No Novo Testamento, o cântico de Maria foi escrito
em estilo poético (ver Lc. 1:46-55), o mesmo acontecendo com as palavras de Zacarias
(vv. 67-79). Uma característica singular da poesia bíblica é o paralelismo entre duas (e às
23

vezes três ou quatro) linhas. Essa é uma diferença da poesia ocidental, que normalmente é
caracterizado por métrica e rima, elementos esses que a poesia hebraica desconhece na
maioria dos casos.

4. Literatura Sapiencial. Os livros de sabedoria são Jó, Provérbios e Eclesiastes.


(Alguns incluem Cantares nesse grupo.) Toda literatura sapiencial tem caráter poético, mas
nem todo texto poético pertence à luteratura sapiencial. Podem-se ver dois tipos de
literatura sapiencial nesses livros. Um é a literatura proverbial, que é o caso do livro de
Provérbios. Os provérbios são verdades gerais fundamentadas na larga experiência e na
observação. São princípios que, em geral, mostram-se verdadeiros. Consistem em
diretrizes, não em garantias; preconceitos, não promessas. Por exemplo, embora seja
geralmente verdade que uma pessoa preguiçosa ficará pobre, podem-se constatar no
cotidiano algumas exceções a essa máxima. Outro exemplo é que a piedade normalmente
proporciona vida longa, como afirmam vários provérbios, mas já se constataram algumas
exceções.

5. Evangelhos. Algumas pessoas encaram os quatro evangelhos como narrativas


históricas, como livros que foram escritos simplesmente para registrar informações
biográficas sobre a vida de Cristo. É claro que não se trata de biografias no sentido comum
da palavra, pois excluem muitos aspectos da vida de Cristo que normalmente seriam
encontrados numa biografia histórica. Os evangelhos contêm uma boa quantidade de
material biográfico sobre Cristo, mas são mais do que biografias. São doutrinas e narrativa,
que visam a apresentar informações sobre a pessoa de Jesus Cristo.
“Os evangelhos são conjuntos de histórias com uma carga de ação bem maior do
que seria normal encontrar numa narrativa. O grande objetivo das histórias dos evangelhos
é explicar e louvar a Pessoa e a obra de Jesus [...] mediante seus atos, suas palavras e as
reações dos outros para com ele.”

6 . Discurso Lógico. Este gênero de literatura bíblica também é chamado de


literatura epistolar e refere-se às epístolas do Novo Testamento, de Romanos até Judas. As
epístolas normalmente incluem dois tipos de textos:
a) Discurso expositivo, que explica determinadas verdades ou doutrinas, quase
sempre apoiada na lógica, e
b) Discurso exortativo, que exorta a seguir determinados comportamentos ou à
aquisição e certas características em face das verdades expostas no texto.

VI. A PRIMEIRA TAREFA DO INTERPRETE: A EXEGESE

3.1. A Exegese – é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir o


significado original que foi pretendido. É a tentativa de escutar a Palavra conforme os
destinatários originais devem tê-la ouvido.
O objetivo da exegese bíblica nas palavras de Zuck (1994: 114 a XX), é descobrir o
que o texto diz e quer dizer, e não atribuir-lhe outro sentido. Como disse João Calvino: “A
primeira preocupação do intérprete é permitir que o autor diga o que ele realmente disse,
em vez de lhe impor o que acha que ele devia dizer”.
Os pensamentos são expressados por meio de palavras, e as palavras são os
elementos que constituem as frases. Assim sendo, para descobrir os pensamentos de Deus,
precisamos estudar suas palavras e como elas são combinadas nas frases. Se
24

negligenciarmos os significados das palavras e a maneira como são empregadas, não


teremos como saber quais interpretações são corretas.

São expressões exegéticas:

▪ “O que Jesus queria dizer com aquilo foi...”


▪ “Lá naqueles tempos, tinham o costume de...”?
▪ As expressões exegéticas são empregadas para explicar as diferenças entre “eles” e
“nós”.
▪ O problema com a exegese “seletiva” é que as pessoas frequentemente atribuirá
suas próprias ideias, completamente estranhas, a um texto e, assim, fará da palavra
de Deus algo diferente daquilo que Deus realmente disse.

Aprendendo a fazer exegese

No nível mais alto, a exegese requer o conhecimento: línguas bíblicas; as situações


históricas judaica, semítica e helenística; como determinar o texto original quando os
manuscritos têm textos variantes; o emprego de todos os tipos de fontes primárias e
ferramentas.

Há duas perguntas básicas que devemos fazer a cada


passagem bíblica:

O CONTEXTO HISTÓRICO – diferirá de livro para livro, tem a ver com várias
coisas: época e a cultura do autor e dos seus leitores. Os fatores geográficos, topográficos
e políticos que são relevantes ao âmbito do autor; e a ocasião do livro, carta, salmo,
oráculo profético, ou outro gênero todos são especialmente importante para a
compreensão. A questão mais importante do contexto histórico tem a ver com a ocasião e
o propósito de cada livro bíblico ou das suas várias partes.

O CONTEXTO LITERÁRIO – é a tarefa mais crucial na exegese, significa que as


palavras somente fazem sentido dentro de frases, e, na sua maior parte, as frases na Bíblia
somente têm significado em relação às frases anteriores e posteriores.
A pergunta contextual mais importante que você poderá fazer repetidas vezes
acerca de cada frase e parágrafo, é:
“Qual é a razão disto?” Devemos procurar descobrir a linha de pensamento do
autor.
“O que o autor está dizendo e por que o diz exatamente aqui?”
“Tendo ensinado esta lição, o que ele está dizendo em seguida, e por quê?”

As ferramentas para fazer boa exegese

◼ Um bom dicionário da Bíblia;


◼ Um bom Manual Bíblico (ou Introdução à Bíblia);
◼ Uma boa tradução;
◼ Novo e Velho Testamento Interlinear;
◼ Bons comentários;
◼ Léxicos;
◼ Chave Linguístia do Grego e Hebraico/Português.
25

VII. A SEGUNDA TAREFA DO INTERPRETE: A HERMENÊUTICA

“Hermenêutica” ordinariamente abrange o campo inteiro da interpretação,


inclusive a exegese.
É usada no sentido mais estreito de procurar a relevância contemporânea dos textos
antigos, para fazer as perguntas acerca do significado da Bíblia -“Aqui e Agora”.
Queremos saber o que a Bíblia significa para nós – e isso é certo. Não podemos, no
entanto, fazê-la significar qualquer coisa que nos agrada, e depois dar ao Espírito Santo o
“crédito”. O Espírito Santo não pode ser conclamado para contradizer a Si mesmo, e Ele é
Aquele que inspirou a intenção original.
Um texto não pode significar o que nunca significou. – O significado verdadeiro do
texto bíblico para nós é o que Deus originalmente pretendeu que significasse quando foi
falado/escrito pela primeira vez.

VIII. AS EPÍSTOLAS – APRENDENDO A PENSAR CONTEXTUALMENTE

As epístolas do N.T. parecem se de fácil interpretação. Afinal das contas, quem


precisa de ajuda especial para compreender que “todos pecaram” (ver Rm. 3:23), que “o
salário do pecado é a morte” (ver Rm. 6:23), e que “pela graça sois salvos, mediante a
fé” (ver Ef. 2:8), ou os imperativos “Andai no Espírito” (ver Gl. 5:16) “vivam uma vida de
amor” (ver Ef. 5:2)?
Para Gordon & Douglas (2008 p:29/32), a “facilidade” de interpretar as Epístolas
pode ser bem enganosa. Vejamos alguns exemplos das dificuldades: (Estudos em 1 Cor.)
“Como a opinião de Paulo (7:25) deve ser tomada como sendo a Palavra de Deus?
“Qual relacionamento há entre a excomunhão do irmão no capítulo 5 e a igreja
contemporânea, se o crente pode atravessar a rua para outra igreja?
“Qual é a razão de ser dos cap. 12-14 para quem está numa igreja local onde os
dons carismáticos não são aceitos como válidos para o séc. XXI?”
“Como evitar a clara implicação em 11:2-16 de que as mulheres devem ter a
cabeça coberta quando oram ou profetizam?”

8.1. AS EPÍSTOLAS – NATUREZA

Uma coisa que todas as Epístolas têm em comum, e é a coisa mais crucial a ser
notada na sua leitura e interpretação: todas são o que tecnicamente se chama de
documentos ocasionais (i. é, surgindo de uma ocasião específica e visando a mesma), e
são do séc. I. Embora sejam inspiradas pelo Espírito Santo, foram originalmente escritas no
contexto do autor para o contexto dos destinatários originais.
Acima de tudo o mais, sua natureza ocasional deve ser levada a sério. Significa que
foram ocasionadas por alguma circunstância especial ou do lado do leitor ou do lado do
autor. Usualmente a ocasião era algum tipo de comportamento que precisava de correção,
ou até mesmo um erro de doutrina que precisava ser endireitado, ou um mal-entendido que
precisava de mais luz.
A maior parte dos nossos problemas em interpretar as Epístolas deve-se ao fato de
serem ocasionais. Temos as respostas, mas nem sempre sabemos quais eram as perguntas
ou problemas, ou até mesmo se havia um problema. É semelhante a escutar um lado de
uma conversa telefônica e tentar descobrir quem está no outro lado e o que aquela pessoa
invisível está dizendo. É especialmente importante para nós a tentativa de escutar o outro
lado, a fim de sabermos o que é que nossa passagem está respondendo.
26

8.2. AS EPÍSTOLAS – AS QUESTÕES HERMENÊUTICAS

A grande questão entre os cristãos que aceitam a Escritura como a Palavra de Deus,
para Gordon & Douglas (2008 p:45/48), tem a ver com os problemas da relatividade
cultural: o que é cultural. Isto é, o que é cultural e pertence exclusivamente ao I século, e
aquilo que transcende a cultura e é uma Palavra para todos os tempos.

Nossa hermenêutica comum

O que é que fazemos ao lermos as Epístolas? Simplesmente trazemos nosso bom-


senso iluminado ao texto e aplicamos o que podemos à nossa própria situação. O que não
parece aplicável é simplesmente deixado no século I.
Ninguém entre nós, por exemplo, já se sentiu vocacionado pelo Espírito Santo para
fazer uma peregrinagem a Trôade a fim de levar a capa de Paulo da casa de Carpo para sua
prisão em Roma (ver 2 Tm. 4:13), embora a passagem seja claramente um mandamento
neste sentido. Mesmo assim, baseados nessa mesma carta a maioria dos cristãos acredita
que Deus lhe diz que em tempos de aflição deve “participar dos...sofrimentos, como bom
soldado de Cristo Jesus”(ver 2 Tm 2:3).
Deve ser ressaltado que a maioria das questões nas Epístolas encaixa-se muito bem
nesta hermenêutica do bom-senso. Para a maioria dos textos, não é questão de se alguém
deve fazer ou não; é mais uma questão de “despertar uns aos outros, visando a
lembrança” (ver 2 Pedro 1:15).
Nossos problemas – e nossas diferenças – são gerados por aqueles textos que se
acham nalguma posição entre essas duas passagens, onde alguns entre nós pensam que
devem obedecer exatamente àquilo que é declarado. Nossas dificuldades hermenêuticas
aqui são variadas, mas todas têm conexão com uma só coisa – nossa falta de firmeza,
estabilidade, solidez. Esta é a grande falha em nossa hermenêutica comum. Sem
pretendermos, trazemos nossa herança teológica, nossas tradições eclesiásticas, nossas
normas culturais, ou nossas preocupações existenciais ás Epístolas enquanto as lemos. E
isto resulta em muitos tipos de “seletividade,” ou nos faz “contornar” certos textos.

A Regra Básica

Um texto não pode significar aquilo que nunca poderia ter significado
para seu autor ou seus leitores.
A Segunda Regra

Sempre quando compartilhamos de circunstâncias comparáveis (i. e, situações de


vida específicas semelhantes) com o âmbito do século I, para Gordon & Douglas (2008 p:
49), a Palavra de Deus para nós é a mesma que Sua Palavra para eles. É esta regra que leva
a maioria dos textos teológicos e os imperativos éticos dirigidos à comunidade, que
existem nas Epístolas, a dar aos cristãos do século XXI um senso de comunhão imediata
com o século I.
Ainda é verdade que “todos pecamos” e que “pela graça somos salvos, mediante a
fé.” Revestir-nos “de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de
mansidão, de longanimidade” (ver Cl 3:12) ainda é a Palavra de Deus para os que são
crentes.
27

O Problema da Relatividade Cultural

De comum acordo, ambos Gordon & Douglas (2008 p:54/55), o problema tem os
seguintes passos:
(1) As Epístolas são documentos ocasionais do séc. I., condicionadas pela
linguagem e cultura do séc. I.
(2) Muitas das situações nas Epístolas são tão completamente condicionadas pelo
seu âmbito do séc. I que todos reconhecem que têm pouca ou nenhuma aplicação pessoal
como uma Palavra para hoje.
(3) Existem textos totalmente condicionados pelo seu pano de fundo do séc. I, mas
a Palavra para aquelas pessoas podem ser traduzida para âmbitos novos, porém
comparáveis.
(4) Outros textos, embora pareçam ter características diferentes, também são
condicionados pelo seu âmbito do século I e precisam ser traduzidos para novos âmbitos,
ou simplesmente deixados no século I.
Quase todos os cristãos realmente traduzem a Bíblia para novos contextos. “Não
insistem que as mulheres cubram a cabeça...e não praticam o ‘osculo santo’ etc.”

IX. AS NARRATIVAS DO A.T. – SEU EMPREGO APROPRIADO

Para Gordon & Douglas (2008 p:63/65), a Bíblia contém mais do tipo de literatura
chamado “narrativa” do que de qualquer outro tipo literário. Mais de 40 % do A.T. é
narrativa.
Os seguintes livros do A.T. são compostos, em grande medida de matéria narrativa:
Gênesis, Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Daniel, Jonas
e Ageu. Além disto, Êxodo, Números, Jeremias, Ezequiel, Isaías, e Jó;
No N.T. grandes porções dos 4 evangelhos e quase a totalidade de Atos são
narrativa.

9.1. A Natureza das Narrativas

O Que São as Narrativas – são histórias, preferimos a palavra narrativa, porque


história tem chegado a significar alguma coisa que é ficção, como no caso de uma “estória
na hora de dormir,” ou “um conto improvável,” ou uma “historinha.”
A Bíblia, contém o que frequentemente é chamado a história de Deus – uma
história que é totalmente verídica, crucialmente importante, e frequentemente complexa. É
uma história magnífica, mais grandiosa do que a maior epopéia, mais rica na sua trama e
mais significante nas suas personagens e descrições do que qualquer história humanamente
composta poderia vir a ser. Sendo assim, para aquelas porções desta grande história divina
que têm a forma de história, o termo narrativa é preferido no uso técnico visto ser ele um
termo mais objetivo, menos prejudicial.

As narrativas bíblicas nos contam acerca de coisas que aconteceram. O propósito


delas é mostrar-nos Deus operando na Sua criação e entre Seu povo. As narrativas O
glorificam, ajudam-nos a entendê-lo e dar o devido valor a Ele, e nos dão um quadro da
Sua providência e proteção. Fornecem ilustrações de muitas outras lições que são
importantes para nossas vidas.
28

Todas as narrativas tem um enredo, uma trama, e personagens (seja divinas,


humanas, animais, vegetais, etc.). As narrativas do A.T. têm enredos que fazem parte de
um enredo especial global, e que tem um elenco especial de personagens, dos quais o mais
especial é o próprio Deus.

9.2. Três Níveis de Narrativas

Ao ler e estudar as narrativas do A.T., ajudará você a reconhecer que a história está
sendo contada, com efeito, em três níveis:

1) Nível Superior – é aquele do plano universal inteiro de Deus, elaborado através


da Sua criação. Aspectos-chaves do enredo neste nível superior são: a própria criação
inicial; a queda da humanidade; o poder e a universalidade do pecado; a necessidade da
redenção; e a encarnação e sacrifício de Cristo.

2) Nível Intermediário – centralizam-se em Israel: a chamada de Abraão; o


estabelecimento da linhagem de Abraão através dos patriarcas; a escravidão de Israel no
Egito; o livramento da servidão, operado por Deus, e a conquista da terra prometida de
Canaã; os pecados frequentes de Israel e sua deslealdade cada vez maior; a proteção
paciente de Deus, que pleiteava com Seu povo; a destruição de Israel e depois de Judá; e a
restauração do povo santo depois do exílio.

3) Nível Inferior – todas as centenas de narrativas individuais que perfazem os


dois outros níveis: a narrativa de como os irmãos de José o vendem a uma caravana de
árabes indo para o Egito; a narrativa de como Gideão duvidou de Deus e O testou por meio
da porção de lã; a narrativa do adultério de Davi com Bete-Seba; e assim por diante.
Note: cada narrativa individual do A.T. (no nível inferior) é parte da narrativa
maior da história de Israel no mundo (no nível intermediário), que por sua vez faz parte da
narrativa ulterior da criação por Deus e da Sua redenção dela (no nível superior).
Quando Jesus ensinou que as Escrituras “...testificam de mim” (ver João 5:37-39),
obviamente não estava falando acerca de cada passagem curta e individual do A.T. Jesus
falava do nível superior da narrativa, em que Sua expiação era o ato central, e a sujeição de
toda a criação a Ele era o clímax do seu enredo. Desta maneira, ensinava que as Escrituras
na sua inteireza testificam dEle e focalizam-se em Seu senhorio amoroso.

9.3. O Que As Narrativas Não São

Para Gordon & Douglas (2008 p:66/69):


(1) As narrativas bíblicas não são apenas histórias acerca de pessoas que viviam
nos tempos do A.T. São, antes de tudo, histórias acerca daquilo que Deus fez para aquelas
pessoas e através delas. Em contraste com as narrativas humanas, a Bíblia é composta de
narrativas divinas. Deus é o herói da história. As personagens, os eventos, os
desenvolvimentos, o enredo e o clímax ocorrem, mas por detrás deles, Deus é o
“protagonista” supremo, ou o personagem decisivo principal em todas as narrativas.
(2) As narrativas do A.T. não são alegorias, ou histórias cheias de significados
ocultos. Frequentemente não somos informado exatamente de tudo quanto Deus fez numa
determinada situação e que levou-a a acontecer conforme o A.T. a relata. E mesmo quando
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somos informados sobre aquilo que Ele fez, nem sempre somos informados como ou que
Ele o fez.
(3) As narrativas do A.T. não respondem a todas as nossas perguntas acerca de
uma determinada questão. São limitadas no seu enfoque, e nos oferecem uma só parte do
quadro global daquilo que Deus está fazendo na história. Temos de aprender a ficar
satisfeitos com essa compreensão limitada, e a refrear nossas curiosidade em muitos
pontos; senão acabaremos procurando ler entre as linhas de tal maneira que no fim
estaremos colocando dentro das histórias coisas que não estão lá, fazendo alegorias com
relatos históricos fatuais.
(4) A própria Bíblia não diz como Deus operou a maioria das coisas milagrosas que
realizou. A curiosidade insaciável e o desejo de compreender aquilo que a Bíblia excluiu,
como tais coisas ocorreram, pode levar algumas pessoas a aceitarem explicações absurdas
e forçadas. As narrativas do A.T. nem sempre ensinam de modo direto.
(5) Enquanto você segue de perto a ação das narrativas do A.T., naturalmente fica
envolvido, assim como faz quando lê qualquer história, sem importar quão diferente de
você são os participantes e as circunstâncias deles. As narrativas, dão a você um tipo de
conhecimento mediante contato direto com a obra de Deus no Seu mundo, e embora este
conhecimento seja secundário ao invés de ser primário, não deixa de ser um conhecimento
que pode ajudar a moldar seu comportamento.
(6) Embora as narrativas do A.T. não ensinem necessariamente de modo direto,
frequentemente ilustram aquilo que é ensinado noutros trechos de modo direto e
categórico. Trata-se de um tipo implícito de ensino, que em combinação com os ensinos
explícitos correspondentes da Escritura, é altamente eficaz em gerar o tipo de experiência
de aprendizagem que o Espírito Santo pode usar de modo positivo.
(7) Na narrativa do adultério de Davi com Bete-Seba (2 Sm 11) você não achará
qualquer declaração como: “Ao adulterar e assassinar Davi fez o que era errado.” Espera-
se que você saiba que o adultério e o assassinato são errados, porque isto é ensinado na
Bíblia de modo explícito (ver Ex. 20:13-14). A narrativa ilustra seu dano para a vida
pessoal do rei Davi e para a sua capacidade de reinar.
(8) A narrativa não ensina sistematicamente acerca de adultério e não pode ser
usada como a base exclusiva para semelhante ensino. Como ilustração dos efeitos do
adultério num caso específico, transmite uma mensagem poderosa que pode imprimir-se na
mente do leitor cuidadoso de uma maneira que o ensino direto e categórico talvez não
faça.

DEZ PRINCÍPIOS PARA A INTERPRETAÇÃO DE NARRATIVAS

1. Geralmente, uma narrativa do A.T. não ensina diretamente uma doutrina;


2. Uma narrativa do A.T. usualmente ilustra uma(s) doutrina(s) de modo proporcional
noutros lugares;
3. As narrativas registram o que aconteceu – não necessariamente o que deveria ter
acontecido ou o que deve acontecer todas às vezes;
4. O que as pessoas fazem nas narrativas não é necessariamente um bom exemplo
para nós. Frequentemente, é exatamente o contrário.
5. A maior parte dos personagens nas narrativas do A.T. está longe de ser perfeita, e
suas ações, também;
6. Nem sempre somos informados no fim de uma narrativa se aquilo que aconteceu
foi bom ou mau. Obs.: Espera-se de nós que possamos julgar a história com base no
que Deus já nos ensinou na Escritura, de modo direto ou categórico;
30

7. Todas as narrativas são seletivas e incompletas. Nem sempre todos os pormenores


relevantes são dados (ver Jo. 21:25). O que realmente aparece na narrativa é tudo
quanto o autor inspirado considerava importante para nós sabermos;
8. As narrativas não são escritas para responderem a todas as nossas perguntas
teológicas. Têm propósitos limitados, específicos e particulares, e tratam de certas
questões, deixando as demais para serem tratadas noutros lugares, doutras
maneiras;
9. As narrativas podem ensinar explicitamente (ao declarar alguma coisa de modo
claro), ou implicitamente (ao subentender claramente alguma coisa sem chegar a
declará-la);
10. Deus é o herói de todas as narrativas bíblicas.

X. AS PARÁBOLAS – VOCÊ PERCEBE A LIÇÃO?

A razão pela longa história da interpretação errônea das parábolas de acordo com
Gordon & Douglas (2008 p:121), remonta a algo que o próprio Jesus disse (ver Mc. 4:10-
12).
Quando Lhe perguntaram do propósito das parábolas, Ele parece ter sugerido que
continham mistérios para os de dentro, ao passo que endureciam os de fora. As parábolas
eram consideradas simples estórias para aqueles que estavam de fora, para os quais os
“significados verdadeiros”, os “mistérios,” estavam ocultos; estes pertenciam somente à
igreja e podiam ser descobertos por meio da alegoria.
Conforme as palavras de Osborne (2009 p:376/377), parece claro que Jesus tinha,
de fato, um objetivo maior ao usar a parábola. As parábolas são um“mecanismo de
confrontação” e funcionam de modos diferentes dependendo do público. Nas
controvérsias com os líderes e com o Israel incrédulo, uma grande parte desse objetivo era
esconder a verdade deles. Esse era um julgamento divino sobre o Israel teimoso,
comparável ao julgamento do faraó e ao da nação apóstata no tempo de Isaías. Em
conseqüência à rejeição que dedicavam à mensagem de Jesus, Deus endureceria ainda mais
o coração deles por meio das parábolas. No entanto, tal sinal negativo era parte de um
objetivo maior, que tinha raízes no uso das parábolas na literatura da sabedoria divina do
A.T.: desafiar o povo e suscitar-lhe uma resposta (como a parábola de Nata para Davi em
ver 2 Sm 12).
As multidões são forçadas a tomar uma decisão pró ou contra Jesus, enquanto os
discípulos são desafiados e ensinados pelas parábolas. Cada grupo (líderes, multidões,
discípulos) é tocado de um modo diferente por essas histórias, o que fica evidente na
rejeição dos líderes, no desafio à multidão para que se decida e no empenho exigido aos
discípulos a pensar de forma mais profunda sobre a realidade do reino.

As parábolas encontram, interpretam e convidam o ouvinte/leitor a participar da


nova visão de mundo do reino de Jesus. Trata-se de um “acontecimento discursivo” que
jamais nos permite ficar neutros: elas prendem a nossa atenção e nos forçam a interagir
com a presença do reino em Jesus, seja de modo positivo (aqueles “em volta de” Jesus em
Mc. 4:10-12) ou negativo (os “de fora”).

Para aqueles que rejeitam a presença de Deus em Jesus (os líderes dos judeus), a
parábola se torna um sinal de julgamento soberano, além de endurecer seu coração. Para os
que são mais receptíveis (as multidões), a parábola os toca e os leva à decisão. Para os que
crêem (os discípulos), a parábola lhes ensina, ainda, as verdades do reino.
31

10.1. Uma chave para entender as parábolas é descobrir o auditório original

Se nós temos dificuldades às vezes em entender as parábolas, não é porque são


alegóricas para as quais precisamos dalgumas chaves interpretativas especiais. Uma das
chaves para entendê-la depende de descobrir o auditório original ao qual foram faladas.
As histórias rabínicas são didáticas, segundo Osborne (2009 p:381/383),
desenvolvendo um texto específico e ilustrando uma proposição dogmática. As parábolas
de Jesus vão direto ao ponto, e provocam uma resposta.
As parábolas eram endereçadas à situação histórica que estava em vigor, conforme
os diálogos de Jesus com três grupos concretos: as multidões, os escribas e fariseus, e os
seus discípulos. Em cada situação Jesus desafiava o seu público, enfatizando repetidas
vezes a urgência de arrependimento (ver Lc. 12:16-21; 13:1-9) e exigindo uma ação
“decisiva (ver Lc. 16:1-8), radical (ver Mt. 13:44-46), vigilante (ver Mt. 24:42-25:13),
porque o reino está próximo.”
A parábola é estruturada de modo a “interligar” o ouvinte à mensagem do
narrador. Isso ocorre pelo “oferecimento” de um ponto ao ouvinte, ao aproximá-lo de sua
própria experiência de mundo. A parábola então emprega um duplo sentido a fim de
transferir a experiência do ouvinte para a realidade mais abrangente das verdades do reino.
Ela “afirma tanto uma coisa como a outra”, fazendo uma comparação entre o ponto
principal da imagem da parábola e a realidade que o narrador (Jesus) deseja transmitir.
O propósito original de Jesus era desestabilizar a sua audiência, inverter o seu
sistema de valores e forçá-lo a repensar suas prioridades religiosas.
A reviravolta no enredo é bastante comum nas parábolas. O odiado samaritano, e
não o sacerdote ou levita, é quem vai curar os ferimentos da vítima do assalto (ver Lc.
10:30-37; normalmente os samaritanos eram os assaltantes, não os salvadores!); o filho
depravado é o que recebe o banquete (ver Lc. 14:15-24). Ao inverter os padrões normais,
Jesus força o ouvinte a ver com outros olhos as verdadeiras realidades do reino de Deus.
Somente aquele que possui a chave adequada pode destrancar o ministério do significado
da parábola, e a chave é a presença do reino. Sem a chave, os oponentes de Jesus persistem
na rejeição a seu ensino. Somente os que estão abertos ou já aceitaram o “ministério” do
reino em Jesus podem compreender por que Deus volta sua atenção para os “pecadores” e
marginalizados, e rejeita aqueles que a sociedade considera “justos”.

10.2. Como as Parábolas Funcionam

Nesta seção de sua obra, Gordon & Douglas (2008 p:124/126) afirmam que os
melhores indícios quanto à natureza das parábolas acham-se na “função”. Nem são
contadas como veículo para revelar a verdade – embora claramente acabem fazendo assim.
Mais do que isso, as parábolas com história funcionam com um meio de evocar uma
resposta por parte do ouvinte. A própria parábola é a mensagem. É contada para dirigir-se
aos ouvintes e cativá-los, a fim de fazê-los parar e pensar acerca das suas próprias ações,
ou de levá-los a dar alguma resposta a Jesus e ao Seu ministério.
É esta natureza da parábola, que “conclama uma resposta”. Dalguma maneira,
interpretar uma parábola é destruir o que era originalmente. É como interpretar uma piada.
A totalidade da razão de ser de uma piada, e aquilo que a torna divertida, é que o ouvinte
tem contato imediato com ela enquanto está sendo contada.
É divertida para o ouvinte exatamente porque fica “apanhado”. Mas somente pode
“apanhá-lo” se ele compreender os pontos de referência na piada. Se precisarmos
32

interpretar a piada por meio de explicar os pontos de referência, já não pega o ouvinte, e,
usualmente deixa de provocar a mesma qualidade de risadas. Quando a piada é
interpretada, passa a ser entendida sem dúvida, (pelo menos compreendemos aquilo que
deveria ter provocado nossos risos), mas deixa de ter o mesmo impacto, logo, já não
funcionam da mesma maneira.

10.3. Descobrindo os Pontos de Referência

No que se refere a “analogia da piada”, as duas coisas que prendem o ouvinte de


uma piada e que elicitam uma resposta de risos são as mesmas que cativaram os ouvintes
das parábolas de Jesus. As chaves à compreensão são os pontos de referência, aquelas
várias partes da história que as pessoas identificam enquanto está sendo contada. Se
alguém as perde numa piada, não pode haver nenhuma virada inesperada, porque são os
pontos de referência que criam as expectativas normais. Se alguém as perde numa
parábola, logo, o impacto e a lição daquilo que Jesus disse também serão perdidos.

10.4. As parábolas – A Questão Hermenêutica

A tarefa hermenêutica exigida pelas parábolas é sem igual. Tem a ver com o fato de
que, quando foram originalmente faladas, raras vezes precisavam de interpretação. Tinham
aplicação imediata para os ouvintes, em que parte do efeito de muitas delas era sua
capacidade de “pegar”. A nós, porém, chegam na forma escrita e necessitando de
interpretação, precisamente porque nos falta a compreensão imediata dos pontos de
referência que os ouvintes originais tinham.

Gordon & Douglas (2008 p:133/134) sugere duas coisas:

(1) As parábolas estão num contexto escrito e, através do processo exegético


podemos descobrir seu significado, sua LIÇÃO, com alto grau de exatidão. O que
precisamos fazer, pois, é aquilo que Mateus (e.g., 18:10-14; 20:1-16): traduzir essa mesma
lição para nosso próprio contexto.
No caso das parábolas em forma de história, podemos até experimentar narrar de
modo novo a história, com novos pontos de referência, de tal maneira que nossos próprios
ouvintes possam sentir a ira, ou a alegria, que os ouvintes originais experimentaram.
Exemplo: Uma versão atual da parábola do Bom Samaritano.
(2) Outra sugestão hermenêutica tem relacionamento com o fato de que todas as
parábolas de Jesus são, dalguma maneira, veículos que proclamam o reino. Logo, é
necessário imergir-se no significado do reino no ministério de Jesus.

XI. AS LEI(S) – AS ESTIPULAÇÕES DA ALIANÇA PARA ISRAEL

O A.T. contém mais de 600 mandamentos, que os israelitas deviam guardar como
evidência da sua lealdade a Deus, é o que afirma Gordon & Douglas (2008 p:138) em sua
obra. Apenas 4 dos 39 livros contêm essas leis: Êxodo, Levítico, Número e Deuteronômio.
Gênesis não contém qualquer mandamento que é considerado parte do sistema jurídico
israelita, também era tradicionalmente chamado um livro da lei.
No N.T., referência é feita “a lei” de uma maneira que torna claro que a referência
diz respeito à totalidade do A.T., visto que a função da maioria é ilustrar e aplicar a Lei que
se acha no Pentateuco (ver, e.g., Mt 5.17-18; Lc. 16:17; Tt. 3:9). O problema mais difícil
33

para a maioria dos cristãos no que diz respeito a estes mandamentos é o problema
hermenêutico. Como estas formulações legais se aplicam a nós, ou será que não se
aplicam?

11.1. OS CRISTÃOS E A LEI DO ANTIGO TESTAMENTO

Se você é cristão, espera-se de você que guarde a lei do A.T.?


Se é que você deve mesmo guardá-la, qual possibilidade tem de fazê-lo, visto já
não existir qualquer templo ou santuário central em cujo altar você pode oferecer coisas
tais como a carne de animais (ver Lv. 1 – 5)? Se você matasse e queimasse animais
conforme a descrição no A.T., você seria preso por crueldade aos animais.
Se você não precisa mais obedecer a lei do A.T., por que Jesus disse: “Porque em
verdade vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da
lei, até que tudo se cumpra” (Mt. 5:18)?
De que maneira a lei do A.T. ainda representa uma responsabilidade que incumbe
aos cristãos (i. é, as maneiras segundo as quais ainda estamos obrigados a obedecer a
alguns dos mandamentos em Êxodo 20 – Deuteronômio, ou a todos eles).
Gordon & Douglas (2008 p:138/152), sugere seis diretrizes iniciais para a
compreensão do relacionamento entre o cristão e a lei do Antigo Testamento.

1ª) A LEI DO A.T. É UMA ALIANÇA. Uma aliança é um contrato obrigatório entre
duas partes, sendo que as duas têm obrigações específicas na aliança.
Nos tempos do A.T., muitas alianças eram do tipo chamado aliança suserania.
Estas alianças eram generosamente outorgada por suserano com todos os poderes (o chefe
supremo) a um vassalo (servo) mais fraco e dependente. Garantia ao vassalo benefícios e
proteção, porém o vassalo era obrigado a ser leal somente ao suserano, com a advertência
de que qualquer deslealdade acarretaria castigos conforme as especificações na aliança.
O vassalo deveria demonstrar lealdade? Por meio de guardar as estipulações (regras
de conduta) especificadas na aliança. Enquanto o vassalo observava as estipulações, o
suserano sabia que o vassalo era leal. Quando as estipulações eram violadas, o suserano
tinha o dever, segundo a aliança, de empreender ações para castigo ao vassalo. Deus dispôs
a lei do A.T. segundo a analogia destas alianças antigas, e assim constitui um contrato
obrigatório entre Javé, o Senhor, e Seu vassalo, Israel.
Israel, em troca dos benefícios e da proteção, tinha de guardar mais do que 600
mandamentos contidas na lei da aliança (Êxodo 2 ; Deuteronômio 33).

2ª) O A.T. NÃO É NOSSO TESTAMENTO. Testamento é outra palavra para


“aliança”. O Antigo Testamento representa uma velha aliança, que já não estamos
obrigados a guardar. Devemos pressupor, que nenhuma das estipulações (leis) são
obrigatórias para nós a não ser que sejam renovadas na Nova Aliança. Ou seja: a não ser
que uma lei do Antigo Testamento seja dalguma forma reformulada ou reforçada no Novo
Testamento. (ver Rm. 6:14,15).

3ª) ALGUMAS ESTIPULAÇÕES DA ANTIGA ALIANÇA CLARAMENTE


NÃO FORAM RENOVADOS NA NOVA ALIANÇA. Embora um tratamento completo
das categorias da lei do Antigo Testamento demandassem um livro inteiro, não deixa de
ser possível agrupar a maior parte das leis pentateucais em duas categorias principais,
nenhuma das quais ainda se aplica aos cristãos. Estas são:
34

(1) As leis civis israelitas – São aquelas que especificam penalidades para vários
crimes (grandes e pequenos) por causa dos quais uma pessoa podia ser presa e processada
em Israel. Tais leis aplicam-se somente aos cidadãos do Israel antigo, e ninguém que vive
hoje é um cidadão de Israel antigo.

(2) As leis rituais israelitas – Constituem-se no maior bloco único de leis do Antigo
Testamento, e acham-se em Levítico, Êxodo, Número e Deuteronômio. Estas leis
informavam o povo de Israel como devia levar a efeito a prática da adoração, detalhando
tudo, desde o formato dos implementos da adoração, até às responsabilidades dos
sacerdotes, até quais tipos de animais podiam ser sacrificados, e como. O sacrifício
(cerimonialmente matar, cozer e comer) dos animais fazia parte central do modo vétero-
testamentário de adorar a Deus. Sem o derramamento de sangue, nenhum perdão dos
pecados era possível (ver Hb 9:22).
Quando foi feito o sacrifício de Jesus, de uma vez para sempre esta abordagem da
Velha Aliança ficou imediatamente em desuso. Já não figura na prática cristã, embora a
adoração – da maneira da Nova Aliança – continua.
Diante disto, alguém pode perguntar: “Jesus não disse que ainda estamos sob a
Lei, visto que nenhum iota ou til (nenhuma mínima marca de pena) viria a cair fora da
Lei? A resposta é, não, não disse isso. O que Ele disse (ver Lc. 16:16-17) era que a Lei não
pode ser alterada. A Lei e os profetas chegaram ao fim uma vez que João Batista começou
a pregar a Nova Aliança, e, portanto, Jesus enfatizou que as pessoas devem entrar
rapidamente no reino de Deus, senão, seriam obrigadas a guardar a velha lei, que não
oferecia a possibilidade de emendas. Jesus deu uma nova lei, que não abolia a velha, mas,
sim, a cumpria. A nova lei ou aliança podia dar àqueles que a guardavam uma justiça que
ultrapassava a dos escribas e fariseus, que observavam rigorosamente a Antiga Aliança.
Jesus cumpriu a totalidade da lei do Antigo Testamento e deu uma nova lei, a lei do amor.

4ª) PARTE DA VELHA ALIANÇA É RENOVADA NA NOVA ALIANÇA.


Alguns aspectos da lei ética do A.T. são reafirmados no N.T. como sendo aplicáveis aos
cristãos. Deus obviamente pretende que estes aspectos da velha lei continuem a aplicar-se
à totalidade do Seu povo, ainda na Nova Aliança que Ele haveria de estabelecer com ele.
Tais leis derivam sua continuada aplicabilidade pelo fato de que servem para apoiar as
duas leis básicas da Nova Aliança, das quais dependem a totalidade da Lei e dos profetas
(ver Mt. 22:40): “Amarás, pois, o SENHOR teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua
alma, e de toda a tua força” (ver Dt. 6:5) e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (ver
Lv. 19:18). Jesus tira seleções dalgumas leis do A.T., dando-lhes nova aplicabilidade (ver
Mt. 5:21-48), e redefinindo-as para incluírem mais do que seu escopo original.

5ª) A TOTALIDADE DA LEI DO A.T. AINDA É A PALAVRA DE DEUS PARA


NÓS, AINDA QUE NÃO CONTINUE SENDO O MANDAMENTO DE DEUS PARA
NÓS. A Bíblia contém muitos tipos de mandamentos acerca dos quais Deus quer que
saibamos, que não são dirigidos para nós pessoalmente. Um exemplo (Mt. 11:4, onde
Jesus ordena: “Ide, e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo”. O auditório original
deste mandamento consistia nos discípulos de João Batista; não é um mandamento dirigido
a nós. De modo semelhante, o auditório original da lei do Antigo Testamento é o Israel
antigo. Lemos acerca daquela lei; não é uma lei para nós.
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6ª) SOMENTE AQUILO QUE É EXPLICITAMENTE RENOVADO DA LEI DO


A.T. PODE SER CONSIDERADO PARTE DA “LEI DE CRISTO” NO N.T. (cf. Gl. 6:2).
Incluídos em tal categoria estariam os 10 Mandamentos, visto serem citados de várias
maneiras no N.T. como sendo ainda obrigatórios para os cristãos (ver Mt. 5:21-37; Jo.
7:23), bem como os dois grandes mandamentos em (ver Deut. 6:5 e Lev. 19:18.).
Não se pode comprovar que qualquer outra lei do A.T. é rigorosamente obrigatória
para os cristãos, por mais valioso que seja para os cristãos conhecerem todas as leis.

11.2. O PAPEL DA LEI EM ISRAEL E NA BÍBLIA

Seria um erro concluir que a Lei já não é uma parte valiosa da Bíblia. Funcionou na
história da salvação para ‘nos conduzir a Cristo’, conforme diz Paulo (ver Gl. 3:24), por
meio de demonstrar quão altos são os padrões da justiça de Deus e quão impossível é para
alguém realizar aqueles padrões à parte da ajuda divina.
A Lei funcionava exatamente desta maneira para os israelitas antigos também. Em
si mesma não os salvava. Somente Deus forneceu seu meio de salvamento da escravidão
do Egito, da conquista da terra de Canaã, e da prosperidade naquela terra prometida. A Lei
não fez nada disto. A lei simplesmente representava os termos do contrato da lealdade que
Israel tinha com Deus.
A Lei, naquele sentido, consta como um paradigma (modelo). Dificilmente poderia
ser uma lista completa de todas as coisas que uma pessoa poderia ou deveria fazer para
agradar a Deus no Israel antigo. A Lei representa, pelo contrário, exemplos ou amostras
daquilo que significa ser leal a Deus.

Vejamos (Lv. 19:9-14); mandamentos como estes, que começam com faça ou não
faça, são as chamadas:

Leis Apodítica

São mandamentos diretos, geralmente aplicáveis, contando aos israelitas os tipos de


coisas que devem fazer para cumprir sua parte da aliança com Deus. Fica bem óbvio que
tais leis não são exaustivas. Exemplo: As leis de bem-estar social na época da colheita, nos
vv. 9 e 10. Note que somente as colheitas do campo (trigo, cevada, etc.) e as uvas são
mencionadas especificamente. Isto quer dizer que se você criasse ovelhas ou colhesse figos
ou azeitonas, não teria obrigação alguma de compartilhar seus produtos com os pobres e
com os estrangeiros residentes? Outros carregariam o fardo de fazer o sistema de bem-estar
social do A.T., divinamente ordenado enquanto você ficaria sem despesa alguma? Claro
que não. A lei é paradigmática – estabelece um padrão por um exemplo, ao invés de
mencionar toda circunstância possível. As declarações na lei visavam ser uma
ORIENTAÇÃO com aplicabilidade geral – não uma declaração técnica de todas as
condições possíveis que alguém poderia imaginar.

Note que as leis apodíticas (gerais, não-qualificadas) do A.T. são paradigmáticas


(exemplos, ao invés de serem exaustiva) em nada ajuda a quem desejar tornar fácil a
obediência àquelas leis. Pelo contrário, estas leis, embora sejam limitadas na sua redação,
são muito abrangentes no seu espírito.

Se, alguém fosse empreender a tarefa de guardar o espírito da lei do A.T., decerto
acabaria fracassando. Nenhum ser humano pode agradar a Deus à luz de padrões tão altos e
36

abrangentes (ver Rm. 8:1-11). Somente a abordagem farisaica – que obedece à letra da Lei
ao invés de obedecer o espírito dela – tem algum tipo de garantia de sucesso, porém, um
sucesso mundano, e não um sucesso que resulta em realmente observa a Lei conforme
Deus pretende que seja observada (ver Mt. 23:23).

A Lei mostra-nos quão impossível é agradarmos a Deus com nossos próprios


esforços. (ver Rm. 3:20). Mas a lição é aplicável aos leitores da Lei, não apenas como uma
verdade teológica. Quando lemos a lei do A.T., devemos ficar humilhados e perceber quão
indignos somos de pertencermos a Deus. Devemos ser movidos ao louvor e às ações de
graças porque Ele proveu para nós uma maneira de sermos aceitáveis aos olhos dEle à
parte de cumprirmos humanamente a lei do A.T.! Doutra maneira, não teríamos a mínima
esperança de agradá-lo.

11.3. A LEI DO A.T. COMO BENEFÍCIO A ISRAEL

Em termos da sua capacidade de prover a vida eterna e a verdadeira justiça diante


de Deus, a Lei era totalmente inadequada. Não foi projetada com tais propósitos. Qualquer
pessoa que procurasse obter a salvação e a aceitação por Deus exclusivamente através da
Lei forçasamente fracassaria, porque a Lei não era passível de ser totalmente guardada –
pelo menos uma das regras seria quebrada durante a vida da pessoa (ver Rm. 2:17-27;
3:20). Quebrar até mesmo uma só lei faz da pessoa, por definição, um transgressor (cf. Tg.
2:10).

A LEI DO A.T. – As Leis do Alimento (ver Lv.11:7)

Nesse tipo de lei, quando seus propósitos são devidamente entendidos, a Lei pode
ser vista como benéfica aos israelitas. Ou seja, as leis do alimento denota restrições contra
a carne de porco, no entanto, não tem a pretensão da parte de Deus de representar
restrições arbitrárias aos gostos dos israelitas. Pelo contrário, têm um propósito protetor
sério.
A vasta maioria dos alimentos proibidos são aqueles que:
(1) Têm mais probabilidade de transmitir doenças no clima árido do deserto do Sinai
ou na terra de Canaã;
(2) São estultamente anti-econômicos para produzir no contexto agrário específico do
deserto do Sinai ou da terra de Canaã;
(3) São alimentos favorecidos para o sacrifício religioso por grupos cujas práticas os
israelitas não deviam imitar.

Além disto, à luz das pesquisas médicas recentes indicam que alergias aos
alimentos variam de acordo com as populações étnicas, as leis do alimento
indubitavelmente protegiam os israelitas de certas alergias. É especialmente interessante
notar que a fonte principal da carne em Israel – a das ovelhas – é a menos alérgica de todas
as carnes principais, de acordo com especialistas nas alergias aos alimentos.

A LEI DO A.T. – Proibições Incomuns

Exemplo: (Ver Dt. 14:21; Lv. 19:19).


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A respostas é que estas proibições e outras tantas, visavam proibir os israelitas de


participarem das práticas cultuais da fertilidade dos cananitas. Acreditavam na magia
simpática, e na idéia de que as ações simbólicas podem influenciar os deuses e a natureza.
Ou seja, pensava-se que misturar raças de animais, sementes ou tecidos os “acasalaria” de
modo que magicamente produziriam “rebentos”, ou seja, abundância agrícola no futuro.
Deus não podia abençoar Seu povo, nem o faria, se praticasse semelhante
insensatez. Saber a intenção de tais leis significava – conservar os israelitas de serem
levados para a religião onde a salvação não estava disponível – ajuda você a ver que não
são arbitrárias, mas, sim cruciais – e graciosamente benéficas.

A LEI DO A.T. – As Leis que Ortorgam Bênçãos Àqueles que as Guardam

Exemplo: (Dt. 14:18-19). Naturalmente todas as leis de Israel objetivavam ser um


meio de bênção para o povo de Deus (Lv. 26:3-13). Algumas delas, no entanto,
mencionam especificamente que guardá-las fornecerá bênçãos. A lei do dízimo do 3º ano,
segundo (Deut. 14:28-29) coloca a bênção como predicado da obediência. Se o povo não
cuidar dos necessitados no seu meio – os levitas, os órfãos, e as viúvas, Deus não pode dar
prosperidade. O dízimo pertence a Ele, e Ele deu ordens a respeito da maneira de usá-lo.
Se este mandamento for violado, seria um furto do dinheiro de Deus. Esta lei estipula
benefícios para os necessitados (o sistema de assistência social era bem estabelecido no
A.T.), e benefícios para os que beneficiam os necessitados.
Semelhante lei não é nem restritiva nem punitiva. Pelo contrário, é um veículo para a
boa prática, e, como tal, é instrutiva para nós como para os israelitas antigos.

Diretrizes Hermenêuticas Para a Lei do A.T.

1. Veja a lei do A.T. como a palavra plenamente inspirada de Deus para você. – Não
Veja a lei do A.T. como o mandamento direto de Deus dirigido a você.

2. Veja a lei do A.T. como a base da Antiga Aliança, e, portanto, da história de Israel.
– Não veja a lei do A.T. como obrigatória para os cristãos da Nova Aliança, a não
ser onde for especificamente renovada.

3. Veja a justiça, o amor e os altos padrões de Deus revelados na Lei do A.T. – Não se
esqueça de ver que a misericórdia de Deus é feita igual à severidade dos padrões.
4. Não veja a lei do A.T. como completa. – Não é tecnicamente abrangente. – Veja a
lei do A.T. como um paradigma que fornece exemplos para a gama inteira do
comportamento que se espera.

5. Não espere que a lei do A.T. seja frequentemente citada pelos profetas nem pelo
N.T. – Lembre-se de que a essência da Lei (os Dez Mandamentos e as duas leis
principais) é repetida pelos profetas e renovada no N.T.

6. Veja a lei do A.T. como uma dádiva generosa a Israel, trazendo muitas bênçãos
quando é obedecida. – Não veja a lei do A.T. como um agrupamento de
regulamentos arbitrários e irritantes que limitam a liberdade das pessoas.
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XII. OS SALMOS – AS ORAÇÕES DE ISRAEL E AS NOSSAS

O Livro dos Salmos, uma coletânea de orações e hinos inspirados hebraicos,


segundo Gordon & Douglas (2008 p:175), é provavelmente, para a maioria dos cristãos, a
porção mais conhecida e mais amada do Antigo Testamento. A despeito de tudo isto,
porém, os Salmos frequentemente são entendidos erroneamente e, portanto,
incansavelmente abusados.
O problema com a interpretação dos Salmos surge primariamente da sua natureza –
aquilo que são.
Porque a Bíblia é a Palavra de Deus, a maioria dos cristãos automaticamente toma
por certo que ela contém somente palavras da parte de Deus para as pessoas. Diante disso,
muitas pessoas deixam de reconhecer que a Bíblia também contém palavras faladas para
Deus ou acerca de Deus, e que estas palavras, também, são a Palavra de Deus.
Os Salmos são exatamente palavra assim. Ou seja: porque os salmos são
basicamente orações e hinos, pela sua própria natureza são dirigidos a Deus ou expressam
verdades acerca de Deus em cânticos. Como estas palavras faladas para Deus funcionam
como uma Palavra da parte de Deus para nós? Porque não são proposições, nem
imperativos, nem histórias que ilustram doutrinas, não funcionam primariamente para
ensinar a doutrina ou o comportamento moral. Não deixam, porém, de ser proveitosos
quando são empregados para os propósitos objetivados por Deus que os inspirou: para nos
ajudar (1) a nos expressarmos diante de Deus, e (2) a considerar Seus caminhos. Os
Salmos, portanto, são de grande benefício para o crente que deseja ter ajuda da Bíblia para
expressar alegrias e tristezas, sucessos e fracassos, esperanças e pesares.
Nem todos os salmos são fáceis de serem entendidos pela lógica, nem de serem
aplicados no século XXI, quanto o Salmo 23, por exemplo. No simbolismo deste Salmo,
Deus é retratado como sendo um Pastor, e o salmista (e, portanto, nós mesmos) como Suas
ovelhas. Sua disposição de cuidar de nós ao pastorear-nos nos lugares apropriados, i. é,
satisfazendo todas as nossas necessidades, dando-nos generosamente proteção e benefícios,
fica evidente para aqueles que têm familiaridade com o salmo.
Outros Salmos, no entanto, não revelam seu significado à primeira vista. Como
devemos empregar um Salmo que parece ser negativo do começo ao fim, e parece
expressar o desgosto de quem fala? É algo que possa ser usado num culto da igreja? Ou é
para o uso particular somente? E o que se diz de um Salmo que conta acerca da história de
Israel e das bênçãos de Deus sobre ele? Um cristão brasileiro pode fazer bom uso deste
tipo de Salmo? Ou é reservado somente para judeus? Ou o que se diz dos Salmos que
predizem a obra do Messias? E os vários Salmos que tratam da glória dos reis humanos de
Israel? Visto que bem poucas pessoas no mundo agora vivem sob o governo de uma
monarquia. O que se faz com o desejo de que as crianças babilônicas sejam esmagadas
contra as pedras (ver 137:8-9)?

12.1. ALGUMAS OBSERVAÇÕES HERMENÊUTICAS FINAIS

Devemos notar que o “instinto” (bom senso) cristão fornece a resposta básica às
perguntas: Como estas palavras faladas para Deus funcionam para nós como uma Palavra
da parte de Deus? A resposta? Exatamente como funcionavam para Israel em primeiro
lugar – como oportunidades para falar a Deus em palavras que Ele inspirou outras pessoas
a falar a Ele em tempos passados.
39

Três Benefícios Básicos dos Salmos

No uso dos Salmos pelo Israel antigo e pela igreja do Novo Testamento podemos
perceber três maneiras importantes para os cristãos usarem os Salmos.

Em primeiro lugar, deve ser lembrado que os Salmos são uma orientação para
adoração. Queremos dizer, com isto, que o adorador que procura louvar a Deus, ou apelar
a Deus, ou lembrar-se dos benefícios de Deus, pode usar os Salmos como um meio formal
de expressar seus pensamentos e sentimentos.

Em segundo lugar, os Salmos demonstram a nós como podemos ter um


relacionamento honesto com Deus. Embora não ofereçam tanta instrução doutrinária sobre
esta questão, realmente oferecem, pelo seu exemplo, um tipo verdadeiro de instrução.
Podemos aprender dos Salmos como sermos honestos e francos em expressarmos nossa
alegria, decepção, ira, ou outras emoções.

Em terceiro lugar, os Salmos demonstram a importância da reflexão e da


meditação sobre as coisas que Deus fez por nós. Convidam-nos à oração, ao pensar
controladamente acerca da Palavra de Deus (é o que significa a meditação), e à comunhão
refletida com outros crentes. Tais coisas ajudam a formar em nós uma vida de pureza e de
caridade. Os Salmos, como nenhuma outra literatura, nos elevam para uma posição em que
podemos ter comunhão com Deus, captando um conceito da grandeza do Seu reino e um
senso de como será viver com Ele durante toda a eternidade.

XIII. A SABEDORIA – ENTÃO E AGORA

A sabedoria hebraica é uma categoria de literatura que não é familiar à maioria dos
cristãos atuais, é o que apresenta em sua obra Gordon & Douglas (2008 p:196/197).

Embora uma porção significante da Bíblia seja dedicada aos escritos sapienciais, os
cristãos frequentemente entendem ou aplicam erroneamente esta matéria, perdendo
benefícios que Deus destinara para eles. Quando é devidamente compreendida e usada, a
sabedoria é um recurso útil para a vida cristã. Quando é abusada, pode fornecer uma base
para o comportamento egoísta, materialista, míope – exatamente o oposto da intenção de
Deus.
Três livros do A.T. são reconhecidos como livros de “sabedoria”: Eclesiastes,
Provérbios, e Jó.

A Natureza da Sabedoria

O que é sabedoria? É a disciplina de aplicar a verdade à vida, à luz da experiência.


O problema, no entanto, é que a matéria da sabedoria do A.T. parece, por demais
frequentemente, acabar sendo entendida erroneamente.

Tradicionalmente, os livros da sabedoria (“sapienciais”) têm sido abusados. As


pessoas frequentemente lêem estes livros apenas parcialmente. Pedacinhos avulsos do
ensino sapiencial, tirados do seu contexto, podem soar profundos e parecer práticos, mas
facilmente podem ser aplicados de modo errôneo.
40

Quem é Sábio?

Segundo Gordon & Douglas (2008 p:198), a sabedoria não é alguma coisa teórica e
abstrata – é algo que existe somente quando uma pessoa pensa e age de acordo com a
verdade conforme tem sido aprendida através da experiência.
Qualquer pessoa que procura diariamente aplicar a verdade de Deus e aprender da
sua experiência pode acabar ficando sábia. Há, porém, grande perigo em procurar a
sabedoria simplesmente para sua própria vantagem ou de uma maneira que não honra a
Deus acima de tudo; “Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes em seu
próprio conceito!” (Is. 5:21). Além disto, a sabedoria de Deus sempre ultrapassa a
sabedoria humana (Is. 29:13-14).

13.1 ALGUMAS DIRETRIZES HERMENÊUTICAS

Gordon & Douglas (2008 p:209/213) apresenta algumas diretrizes para


compreender a sabedoria na forma de provérbios.

Os Provérbios Não São Garantias Legais da Parte de Deus

Os provérbios declaram um modo sábio de abordar certos alvos práticos


selecionados, mas o fazem em termos que não podem ser tratados como uma garantia
divina de sucesso.

Em lugar algum, no entanto, Provérbios ensina o sucesso automático. Lembre-se de


que tanto Eclesiastes quanto Jó foram incluídos nas Escrituras por Deus, parcialmente para
lembra-nos de que há pouca coisa de automático nos eventos bons ou ruins que
aconteceram em nossas vidas. Considere o exemplo (Pv. 22:26-27) “Não estejas entre os
que se comprometem e ficam como fiadores de dívidas. Se não tens com que pagar, por
que deixarias levarem a cama onde te deitas?”

Se você dar o passo extremo de considerar que (Pv. 22:26-27) como sendo um
mandamento abrangente da parte de Deus, é bem possível que nunca compre uma casa,
para não contrair uma dívida na qual a casa entra como garantia. Você pode tomar por
certo que se você faltar nos seus pagamentos, finalmente perderá todas as suas possessões,
inclusive sua cama. Sua interpretação literal e extremista levaria você a perder a lição do
provérbio, que declara de modo poético e figurado que as dívidas devem ser assumidas
com cautela, porque a cobrança jurídica pode ser muito dolorosa.

Provérbios Deve Ser Lido Como Uma Coletânea

Cada provérbio inspirado deve ser equilibrado com outros e entendido em


comparação com o restante da Escritura.

Os Provérbios Têm Uma Redação Para Serem Memoráveis, Não Para Serem
Teoricamente Acurados

Nenhum provérbio é uma declaração completa da verdade. Nenhum provérbio tem


uma redação tão perfeita que possa resistir à exigência que seja aplicável a todas as
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situações em todas as ocasiões. Quanto mais breve e alegórico uma declaração de um


princípio, tanto mais bom senso e bom juízo é necessário para interpretá-la devidamente.

Alguns Provérbios Precisam Ser “Traduzidos” Para Serem Apreciados

Um bom número dos provérbios expressa suas verdades em conformidade com


práticas e instituições que já não existem, embora fossem comuns para os israelitas no
Antigo Testamento.
Considere o exemplo (Pv. 25:24) “É melhor morar num canto do eirado do que
dentro de casa com uma mulher briguenta.”
A maioria entre nós não vive em casas com telhados planos dos templos bíblicos,
onde alojar-se no eirado era não somente possível, como também comum (ver Js. 2:6).
O significado deste texto não é tão difícil de discernir se fizermos a “tradução”
necessária daquela cultura para a nossa. Podemos parafrasear: “É melhor morar numa
garagem do que numa casa espaçosa com uma mulher com quem nunca se deveria ter
casado.” O provérbio não pretende sugerir literalmente o que você deve fazer se você, um
homem, descobrir que sua esposa é rixosa. Objetiva aconselhar as pessoas a tomar cuidado
na seleção de um cônjuge.

Algumas Regras Para Ajudar a Fazermos Uso Apropriado dos Provérbios e a


Seguirmos Lealmente Sua Intenção Divinamente Inspirada

1. Os provérbios são frequentemente parabólicos, i.é, figurados, e apontam para além


de si mesmos.
2. Os provérbios são intensamente práticos, não teoricamente teológicos.
3. Os provérbios têm uma redação memorável, mas não tecnicamente precisa.
4. Os provérbios não objetivam apoiar o comportamento egoísta – muito pelo
contrário!
5. Os provérbios que refletem fortemente a cultura antiga podem precisar de uma
“tradução” sensata, para não perder sua relevância.
6. Os provérbios não são garantias da parte de Deus, mas, sim, diretrizes poéticas para
o bom comportamento.
7. Os provérbios podem empregar linguagem altamente específica, exagero, ou
qualquer uma de uma variedade de técnicas literárias para transmitir sua
mensagem.
8. Os provérbios dão bons conselhos para abordagens sábias de certos aspectos da
vida, mas não são exaustivos naquilo que abrangem.
9. Empregados erroneamente, os provérbios poderiam justificar um estilo de vida
grosseiro e materialista. Corretamente usados, os provérbios fornecerão conselhos
práticos para o viver de todos os dias.

VX. FIGURA DE LINGUAGEM

Na obra de Zuck (1994: 167/183), afirma que a Bíblia contém centenas de figuras
de linguagem. E. W. Bullinger agrupou as figuras de linguagem da Bíblia em mais de 200
categorias.
42

Que é uma figura de linguagem?

As regras gramaticais determinam a função habitual das palavras. Em alguns casos,


porém, o orador ou escritor põe essas regras de lado intencionalmente a fim de empregar
novas formas, as quais chamamos figuras de linguagem. Como escreveu Bullinger: “Uma
figura é meramente uma palavra ou frase colocada de forma diferente de seu emprego ou
sentido original e simples.” Quando dizemos: “Está chovendo forte”, trata-se de uma
afirmação normal, direta. Mas se dissermos: “Está chovendo canivete”, estaremos dizendo
a mesma coisa, só que de uma maneira diferente, mais ilustrativa.
Nas palavras de Sterrett: “Figura de linguagem é uma palavra ou frase utilizada
para comunicar um sentido diferente do literal, verdadeiro”.

Exemplos de expressões figuradas na linguagem moderna:

“Ninguém engole esse argumento”; “Apoie-se na Palavra de Deus” e “Morri de


rir”.

No primeiro exemplo, o argumento não é algo que se consiga mastigar e engolir. A


ideia é de que ele não convence.

O segundo exemplo, não está falando de usar a Bíblia fisicamente como ponto de
apoio, mas sim de firmar-se em suas verdades de modo que estejamos convictos daquilo
em que cremos.

No terceiro exemplo, a ideia comunicada é de intensa alegria.


Quando João Batista exclamou: “Eis o Cordeiro de Deus” (ver Jo 1:29), ele não
estava apontando para um animal, mas sim para Jesus, o qual ele estava comparando a um
cordeiro. As pessoas que ouviam aquelas palavras, assim como os leitores de hoje,
enfrentam o desafio de procurar entender em que sentido Jesus era como um cordeiro.
Como era costume dos judeus sacrificar cordeiros, sem a menor dúvida João estava
pensando na morte vicária de Cristo por causa das pessoas e em lugar delas.

POR QUE SE UTILIZAM FIGURAS DE LINGUAGEM?

As figuras de linguagem acrescentam cor e vida

“O SENHOR é a minha rocha” (ver Sl. 18:2) é uma forma colorida e viva de dizer
que eu posso depender do Senhor, pois ele é forte e inabalável.
As figuras de linguagem chamam a atenção

O interesse do ouvinte ou do leitor desperta rapidamente quando ele se depara com


a singularidade das figuras de linguagem. Isso é nítido, por exemplo, na advertência de
Paulo, “Acautelai-vos dos cães...” (ver Fl. 3:2).

As figuras de linguagem ficam mais bem registradas na memória

A afirmação de Oséias “Como vaca rebelde se rebelou Israel...” (ver Os. 4:16) é
mais fácil de lembrar do que se ele tivesse escrito: “Israel é extremamente teimoso”. Os
43

escribas e os fariseus dificilmente esqueceriam as palavras de Jesus: “...sois semelhantes


aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de
ossos de mortos, e de toda imundícia” (ver Mt. 23:27). As figuras de linguagem são usadas
em muitos idiomas pelo fato de serem facilmente lembradas e deixarem impressões
indestrutíveis.

COMO SABER SE UMA EXPRESSÃO APRESENTA SENTIDO


FIGURADO OU LITERAL?

Em geral, uma expressão está em sentido figurado quando destoa do assunto ou


quando difere dos fatos, da experiência ou da observação. Quando um comentarista
esportivo diz que os “Gaviões da fiel” derrotaram a “Raposa”, sabemos que ele está-se
referindo a dois times de futebol brasileiro, e não que aves da fauna brasileira estão
atacando raposa de verdade.

Vejamos algumas regras que podem ajudar a identificar figuras de linguagem:

1. Adote sempre o sentido literal de uma passagem, a menos que haja boas razões
para não fazê-lo. Por exemplo, em Ap. 7:.9 “...em pé diante do trono e diante do
Cordeiro,...” obviamente é uma referência a Jesus Cristo, não a um animal, como João
1:29 deixa claro.

2. O sentido é o figurado se o literal implicar uma impossibilidade. O Senhor não


tem asas (ver Sl. 57:1), nem a terra tem ouvidos (“...prestai atenção, ó terra...”, (ver Mq.
1:2).

3. O sentido é figurado se o literal for absurdo, como no caso de as árvores baterem


palmas (ver Is. 55:12).

4. Adote o sentido figurado se o literal sugerir imoralidade. Como seria um ato de


canibalismo comer a carne de Jesus e beber seu sangue, é evidente que ele estava usando
linguagem figurada (ver Jo. 6:53-58).

5. Repare se uma expressão figurada vem acompanhada de uma explicação literal.


Aqueles que “dormem” (ver 1 Ts. 4:13-15) logo em seguida são chamados de “os mortos”
(v. 16). Quando Paulo disse que os Efésios estavam “mortos” (ver Ef. 2:1), não quis dizer
que tinham morrido de verdade. O apóstolo explicou imediatamente que eles estavam
mortos em suas “transgressões e pecados”.

6. Às vezes uma figura é ressaltada por um adjetivo qualificativo, como “Pai


celeste” (ver Mt. 6:14), “o verdadeiro pão” (ver Jo. 6:32), “a pedra que vive” (ver 1 Pe.
2:4).

A LINGUAGEM FIGURADA É O OPOSTO DA INTERPRETAÇÃO


LITERAL?

O estilo figurado é uma forma colorida de comunicar a verdade literal. Como


explicou Mounce: “Um escritor pode transmitir seu pensamento por meio de palavras
empregadas em seu sentido denotativo direto, isto é, sentido próprio de uma palavra ou
44

frase, como pode também escolher um caminho mais agradável – o da linguagem figurada.
Mas uma coisa precisa ficar clara: em qualquer um dos casos, o sentido literal é o mesmo.
[...] Uma interpretação só é literal quando corresponde ao que o autor quis dizer”.
Quando Pedro escreveu: “O diabo [...] anda em derredor, como leão que ruge...” (1
Pe. 5:8), a legitimidade dessa analogia figurada depende de um mínimo de entendimento a
nosso respeito de leões. O mesmo se aplica a tipos, símbolos, parábolas, alegorias e
fábulas.

ALGUNS TIPOS DE FIGURAS DE LINGUAGEM

Muitas figuras de linguagem que encerram comparação são tiradas de elementos da


natureza (chuva, água, fogo, solo, flores, árvores, animais, etc.). Já outras falam de
utensílios humanos (cerâmica, túmulos, vestimentas) e outras ainda referem-se às
experiências do homem (nascimento, morte, guerra, música).

1. Simile. É uma comparação em que uma coisa lembra outra explicitamente


(usando como, assim como, tal qual, tal como). Pedro usou uma símile quando escreveu:
“...toda carne é como a erva...” (ver 1 Pe. 1:24). As palavras do Senhor em Lucas 10:3 são
uma símile: “...Eis que eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos”.

2. Metáfora. É uma comparação em que um elemento é, imita ou representa outro


(sendo que os dois são essencialmente diferentes). Numa metáfora, a comparação está
implícita, ao passo que num símile é visível. Uma pista para identificar uma metáfora é que
os verbos “ser” e “estar” sempre são empregados. Temos um exemplo disso em Isaías
40:6: “Toda a carne é erva”. Note que essa frase difere daquela de 1 Pedro 1:24: “...toda
carne é como a erva”.

3. Hipocatástase. Faz uma comparação em que a semelhança é indicada


diretamente. Quando Davi disse: “Cães me cercam...” (ver Sl. 22:16), estava referindo-se a
seus inimigo, chamando-os cães.

4. Metonímia. Consiste em substituir uma palavra por outra. Quando dizemos que
o Congresso tomou uma decisão, estamos referindo-nos a deputados e senadores.

Na Bíblia, alguns tipos de metonímia:

a) A causa é usada em lugar do efeito. Os opositores de Jeremias disseram:


“...Vinde, firamo-lo com a língua...” (ver Jr. 18:18). Como seria absurdo produzir
ferimentos com a língua, é óbvio que eles estavam referindo-se a palavras. A língua era a
causa, e as palavras, o efeito.

b) O objeto é empregado em lugar de outro semelhante ou que está a ele


relacionado. Quando o Senhor disse para Oséias que “a terra se prostituiu, desviando-se do
Senhor” (ver Os. 1:2), a menção da terra diz respeito à população. Quando Jesus disse: “se
uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir”. (ver Mc. 3:25), é
claro que ele não estava falando de uma casa de verdade; referia-se à família que mora na
casa.
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5. Sinédoque. É a substituição da parte pelo todo, ou do todo pela parte. A palavra


grego, em Romanos 1:16, diz respeito a todos os gentios. O Senhor disse: “eu chamo a
espada sobre todos os moradores da terra...” (ver Jr. 25:29). A espada é a parte que
representa o todo – uma catástrofe. Priscila e Áquila “arriscaram as suas próprias cabeças”
(ver Rm 16:4) por Paulo. Nesta sinédoque, “suas cabeças”, a parte representa suas vidas, o
todo.
6. Merisma. É um tipo de sinédoque em que a totalidade ou o todo é substituído por
duas partes contranstantes ou opostas. Quando o salmista escreveu: “Sabes quando me
assento e quando me levanto...” (ver Sl. 139:2), ele não estava limitando o conhecimento
do Senhor aos momentos em que ele se sentava e se levantava. Pelo contrário, estava
dizendo que o Senhor conhecia todos os seus movimentos.

7. Hendíade. Consiste na substituição de um único conceito por dois termos


coordenados (ligados por “e”) em que um dos elementos define o outro. “O sacrifício e
serviço”, de Filipenses 2:17, deve significar “serviço com sacrifício”. Da mesma forma,
quando os apóstolos falaram deste “ministério e apostolado”, estavam referindo-se a este
“ministério apostólico” (ver At. 1:25).

8. Personificação. O que ocorre aqui é a atribuição de características ou ações


humanas a objetos inanimados, a conceitos ou a animais. A alegria é uma emoção atribuída
ao deserto, em Isaías 35:1: “O deserto e a terra se alegrarão...” Isaías 55:12 fala de montes
e outeiros entoando cânticos e de árvores batendo palmas.

9. Antropomorfismo. Consiste na atribuição de qualidades ou ações humanas a


Deus, como ocorre nas referências aos dedos de Deus (ver Sl. 8:3), a seus ouvidos (ver
31:2) e a seus olhos (ver 2 Cr. 16:9).

10. Antropopatia. Esta figura de linguagem atribui emoções humanas a Deus, como
vemos em Zacarias 8:2: “...Tenho grandes zelos de Sião”.

11. Zoomorfismo. Se o antropomorfismo atribui características humanas a Deus, o


zoomorfismo atribui características animais a Deus (ou a outros). São maneiras expressivas
e originais de salientar certos atos e qualidades do Senhor. O salmista disse: “[Deus]
Cobrir-te-á com as suas penas, sob suas asas estarás seguro...” (ver Sl. 91:4). A imagem
que vem à mente dos leitores é de pintinhos ou passarinhos protegidos debaixo das asas da
galinha ou do pássaro-mãe.

12. Apóstrofe. Consiste numa referência direta a um objeto como se fosse uma
pessoa, ou a uma pessoa ausente ou imaginária como se estivesse presente. Quando o
salmista falou com o mar: “Que tens, ó mar, que assim foges?...” (ver Sl. 114:5). Miquéias
fala diretamente à terra, em Miquéias 1:2: “Ouvi, todos os povos, prestai atenção, ó
terra...”

13. Eufemismo. Consiste na substituição de uma expressão desagradável ou


injuriosa por outra inofensivo ou suave. Falamos da morte mediante eufemismo: “ele
passou para o outro lado”, “bateu as botas” ou “foi para uma melhor”. A Bíblia fala da
morte dos cristãos como um adormecimento (ver At. 7:60; 1 Ts. 4:13-15).
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Figuras de linguagem que encerram exageros ou atenuações

14. Hipérbole. É uma afirmação exagerada em que se diz mais do que o significado
literal com o objetivo de ênfase. O salmista valeu-se da hipérbole para acrescentar ênfase
quando escreveu: “...todas as noites faço nadar o meu leito, de minhas lágrimas o alago”
(ver Sl. 6:6). A Bíblia de Jerusalém expressa a ideia da hipérbole numa linguagem um
pouco mais literal: “...de noite eu choro na cama, banhando meu leito com lágrimas”. Davi
estava chorando muito, mas com certeza não a ponto de sua cama nadar ou ficar
encharcada. Em Salmos 119:136 acontece algo parecido: “Torrentes de água nascem dos
meus olhos...”. É claro que dos olhos dele não saía nenhuma torrente de água. Ele estava
tão triste que chorava muito.
Por acaso Jesus quis dizer que os escribas e fariseus realmente coavam mosquitos e
engoliam camelo? (ver Mt. 23:24) Não. A questão é a seguinte: enquanto os fariseus se
preocupavam com pormenores insignificantes da lei, à semelhança da retirada cuidadosa
de um mosquito de um líquido, eles negligenciavam aspectos muito maiores, bem mais
importantes da mesma lei (v. 23), como a justiça, a misericórdia e a fidelidade, como se
estivessem facilmente engolindo um camelo!

15. Litotes. Consiste numa frase suavizada ou negativa para expressar uma
afirmação. É o oposto da hipérbole. Quando dizemos “Ele não é um mau pregador”,
queremos dizer que ele é um pregador muito bom. A atenuação confere ênfase. Quando
Paulo disse: “...Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante...” (ver At.
21:39), quis dizer que Tarso era na realidade uma cidade importante. Paulo depreciou a si
mesmo com uma litotes, e 1 Cor. 15:9: “Porque eu sou o menor dos apóstolos...” . Essa
declaração de autêntica humildade foi feita para salientar a graça de Deus em sua vida,
como pecador que não a merecia (ver vs. 10).

16. Ironia. É uma forma de ridicularizar indiretamente sob a forma de elogio. Com
frequência vem marcada pelo tom de voz de quem fala, para que os ouvintes a percebam.
Por isso, às vezes é difícil saber se uma declaração escrita deve ser considerada ironia. Mas
normalmente o contexto ajuda a mostrar se é ou não uma ironia.
Quando Jesus disse aos fariseus e aos escribas “...Jeitosamente...” (ver Mc. 7:9),
parece que estava começando a fazer um elogio. Mas o resto da frase mostra que estava na
verdade ridicularizando-os. Assim, a frase inteira é uma ironia: “...Jeitosamente rejeitais o
preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos instrumentos acima apresentados, procuramos mostrar de uma forma


resumida o que está envolvido no estudo, aprofundamento e compreensão da Palavra de
Deus. Não há dúvida que o trabalho de intérprete da Bíblia requer paciência e consciência,
não menos que o ouro para ser extraído das profundezas do solo onde se encontra.
O conhecimento e domínio dos princípios, leis e métodos de interpretação da Bíblia
enunciados é naturalmente só um passo. Eles nos servem de ferramenta de trabalho. Agora,
o trabalho mesmo fica com você. Estamos convencidos de que nestes últimos tempos
estamos convivendo uma crise de liderança na igreja brasileira, e a maior necessidade da
igreja neste século XXI é um ministério profundamente bíblico.
Urge, portanto, que pessoas vocacionadas e chamadas pelo Senhor bem treinadas
no manejo e na aplicação das Escrituras saiam pelo mundo transmitindo essa mensagem
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poderosa, que contém em si o germe da nova vida, do tempo em que o Reino de Deus terá
sua manifestação plena. São essas as pessoas das quais a igreja tem maior necessidade
hoje. Num tempo em que se tem levantado muitos empresários da fé com um outro
evangelho denominado de evangelho mercadológico, tantas vozes se ouvem e se fazem
ouvir, é preciso fazer soar de novo a voz nítida e clara do Evangelho de Jesus Cristo, a
única possibilidade de salvação para a humanidade. Numa época de tantas e sutis filosofias
e ideologias, é urgente que se ensine com toda profundidade aquela mensagem que à todas
se sobrepõe, a todas julga, a todas questiona, estabelecendo critérios últimos de verdade e
de sentido para a vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GORDON, D. Free & DOUGRLAS, Stuart. Entendes o que lês. 14 ed. São Paulo:
Edições VIDA NOVA, 2008, 329 p.

ZUCK, Roy B. A interpretação Bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia. 11 ed. São
Paulo: Edições VIDA NOVA, 2013, 356 p.

OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação


bíblica. São Paulo: Edições VIDA NOVA, 2009, 767 p.

NICODEMUS, Augustu. Video: A Importância da Interpretação Bíblica. São Paulo:


Editora Fiel, 2012.

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