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CURSO FUNDAMENTOS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

AULA 02: A NECESSIDADE DA HERMENÊUTICA.

Prof. Rev. João França.

Introdução:

Nos dias atuais aquela velha pergunta continua na mente de muitas pessoas que
vivem no ambiente da igreja “quem realmente precisa de Hermenêutica?” Essa pergunta
é importante para cada pessoa que estuda a Palavra de Deus. Pessoas há que sustentam a
ideia de que a tarefa hermenêutica é algo restrito ao grupo de crentes seletos e
iluminados.

Uma das principais discussões em nosso tempo é a multiplicidade de sentido


aplicados aos textos bíblicos de modo indiscriminado se dá pela ausência de uma
compreensão da Hermenêutica. A pergunta persiste: quem precisa de hermenêutica?

Será que o simples membro de nossas igrejas locais precisa de hermenêutica?


Ou será que apenas os seminaristas e o iniciados nos estudos teológicos precisam
estuda-la? Para quem se destina a hermenêutica bíblica?

Esta é uma daquelas questões que não deveria ser suscitar debates. Uma vez que
todos nós, de modo ou de outro, somos intérpretes de tudo o que nos cerca. Mas,
interpretar a Bíblia? Ora, por que há essa necessidade de interpretar as Escrituras?
Muitos cristãos dizem que não precisam estudar hermenêutica, ou seja, julgam que não
precisam dela. Os que pensam na necessidade da disciplina hermenêutica argumentam
que a Bíblia é um livro divino, e assim, “exige de nós algum treinamento especial para
entendê-la”.1 Mas, tal resposta deixa-nos em uma situação paradoxal, conforme nos
lembra AlonsoSchökel: “Se alguém é capaz de falar de maneira absolutamente clara e
tornar-se compreensível com eficácia irresistível, esse tal é Deus; portanto, se há alguma
palavra que poderia não exigir hermenêutica, essa seria a palavra divina”2

Mas por que todos precisam de hermenêutica? Esta é fundamental pergunta que
precisa ser feita no estudo das escrituras! A Hermenêutica é importante para o pastor,

1
KAISER JR, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002, p. 14.
2
ALONSO-SCHÖKEL, Luis. Hermenéutica de la Palavra. Madrid: Cristandad, 1986, volume 1, p.83
professor, seminarista, membro da igreja local. Todos necessitam da hermenêutica em
maior o menor grau. Mas, por quê?

I – A HERMENÊUTICA É NECESSÁRIA PORQUE REALÇA A


PERSPICUIDADE DAS ESCRITURAS.

A Tradição Reformada Protestante sustenta a doutrina da Perspicuidade das


Escrituras. Isto significa que para os protestantes reformados as Escrituras são claras. E,
tem sido em uma falsa compreensão desta doutrina que muitos passaram a rejeitar o
estudo claro e laborioso da Palavra de Deus para considera-la.

E, é exatamente neste lado do pêndulo que muitos se agarram, especialmente


quando se conhece a doutrina protestante da perspicuidade das Escrituras [clareza das
Escrituras] e dizem que em si mesmas as Escrituras são claras. E o que decorre disso é a
negação da Hermenêutica Bíblica. Tal postura nega a importância da interpretação dos
textos sagrados. Osborne alerta:

A hermenêutica é importante porque capacita a pessoa a se movimentar do


texto para o contexto, para que o significado inspirado por Deus na Bíblia
fale hoje com uma relevância tão nova e dinâmica quanto em seu ambiente
original. Além disso, pregadores ou professores devem anunciar a Palavra de
Deus em vez de suas opiniões religiosas repletas de subjetividade. Só uma
hermenêutica bem definida pode manter alguém atrelado ao texto3

Mas, um ponto importante não é fato que as escrituras precisam ser interpretadas
por causa de sua natureza divina, mas exatamente por causa do seu lado humano. As
Escrituras são apropriadamente chamadas “palavra divina em palavras humanas” 4 Esta
necessidade interpretativa é necessária exatamente porque a linguagem humana é
“equivoca”5 A linguagem humana tem gerado muitos mal-entendidos, e por esta razão se
faz necessário o estudo da hermenêutica.

II – A HERMENÊUTICA É NECESSÁRIA PORQUE AS ESCRITURAS


APRESENTAM TRÊS DESAFIOS HERMENÊUTICOS:

Outra razão pela qual se deve empreender o estudo da Hermenêutica Bíblica está
no fato de que a Bíblia, como palavra de Deus, oferece três desafios importantes. Estes
desafios ou dificuldades precisam ser considerados durante todo processo hermenêutico.

1. O Abismo Cultural:
3
OSBORNE, Grant. R. A Espiral Hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 27.
4
DIAS. Cassio Murilo. Manual de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 11
5
KAISER JR, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002, p. 14.
A necessidade da interpretação bíblica se mostra quando observa-se o ambiente
histórico-cultural no qual a Bíblia foi escrita. “O mundo em que os escritores da
Bíblia viveram já não existe. Está num passado distante, com suas características,
cosmovisões, costumes, tradições e crenças”, isso é importante ser pensando,
também precisa-se ressaltar que os “intérpretes da Bíblia devem levar em conta o
jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as
verdades, para poder transpor a distância cultural”.6

Precisamos saber interpretar a Bíblia para superar o Abismo Cultural. A Bíblia


como livro vindo da lavra humana tem perspectivas culturais significativas.

Ler o livro de Gênesis e perceber fatos como no capítulo 15 - o dividir os animais ao


meio - e saber que culturalmente era assim que se processava na cultura de então ao
afirmar uma aliança; ajuda-nos a entender porque Deus não permitiu que o patriarca
passe no meio daqueles pedaços partidos.

Alguém já disse que cada “um de nós vê a realidade através dos olhos
condicionados pela cultura e por uma variedade de outras experiências.” 7

2. As Línguas Originais.

O distanciamento linguístico reclama a necessidade de interpretação da Bíblia


como Palavra de Deus. As línguas nas quais a Bíblia foi escrita originalmente não se usa
mais: Hebraico Bíblico, Aramaico Bíblico e Grego Bíblico. Este é certamente um
grande desafio! A Bíblia foi escrita em outra língua que não é a nossa. As Escrituras foram
redigidas em três idiomas diferentes e até desconhecido para a maioria de nós:

3. A Corrupção Natural do Homem.

6
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes – Uma Breve História da Interpretação.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.24
7
VIRKLEY, Henry. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p 12
Um dos aspectos fundamentais para a necessidade da interpretação é a condição
espiritual do homem. O homem depois da queda possui os “olhos do entendimento”
entenebrecido (Efésios 4.17-18) – observemos a expressão: “entenebrecido no
entendimento” [ ἐσκοτωμένοι τῇ διανοίᾳ- eskotômenoi tê dianoia] aponta para o fato de que
a mente do homem foi afetada pela queda. Logo, ele não consegue compreender
adequadamente a Palavra de Deus. A evidência textual desta necessidade é certamente 1ª
Coríntios 2.14-15 – o homem natural não pode entender as realidades espirituais.

O estado de queda do homem o inviabiliza uma correta compreensão da revelação


de Deus. Por isso, o estudo da Hermenêutica Bíblica tem sido um tema de urgente
necessidade para que o ser humano possa conhecer melhor a vontade revelada de Deus; isto
nos leva a pensar sobre a relação do Espírito Santo com a Interpretação das Escrituras; isto
porque ele é que esclarece e ilumina os olhos de nosso entendimento para compreendermos
a Palavra de Deus, visto que o homem natural não compreende as coisas espirituais,
conforme nos ensina Paulo.

III – A HERMENÊUTICA É NECESSÁRIA DEVIDO À SUA RELAÇÃO COM


OUTRAS ÁREAS DO SABER.

A necessidade da hermenêutica se mostra na dependência que outras áreas do


saber possuem desta disciplina. A Hermenêutica não deve ser estudada como um fim
em si mesma; mas, deve ser considerada conjuntamente com as outras áreas que dela
necessitam.

Henry Virkler apresenta uma relação interessante estabelecendo uma corrente de


relação entre as doutrinas prévias, ele diz: “A Hermenêutica não se encontra isolada de
outros campos de estudo bíblico”8 Neste processo observamos que a hermenêutica se
relaciona com a doutrina do Cânon das Escrituras. Seguindo sua relação com a Crítica
Textual onde se busca “averiguar o fraseado primitivo de um texto. Tal crítica é
necessária porque não possuímos os originais dos manuscritos”. 9 Bem como a crítica
histórica; dai, temos o relacionamento direto da exegese com a hermenêutica formando
assim uma construção da Teologia Bíblica e da Teologia Sistemática. Virkler apresenta
o seguinte diagrama da relação que ele propõe da hermenêutica com as disciplinas
bíblicas:

8
VIRKLEY, Henry. Hermenêutica Avançada. São Paulo: Vida, 1987, p.10
9
Idem.
Teologia Bíblica

Estudo do Crítica Crítica Hermenêutica


(exegese)
Teologia
Cânon Textual Histórica
Sistemática

**

Notamos que neste esquema a necessidade da hermenêutica é percebida na


relação prévia com o estudo canônico até a abordagem da crítica histórica e na relação
imediata da exegese, e como resultado constroem-se uma teologia bíblica e teologia
sistemática. O Dr. Paulo Anglada também oferece uma relação importante entre a
hermenêutica e as demais disciplinas10:

Notemos que neste diagrama observamos que a Hermenêutica se relaciona


diretamente com a exegese dessa relação colhemos os resultados da Teologia Bíblica,
Teologia Sistemática objetivando a pregação. O alvo do intérprete bíblico sempre é a
edificação do povo de Deus através do ensino e da pregação da Palavra de Deus.

O processo hermenêutico deve sempre considerar que o objetivo é a clareza da


comunicação visando a edificação da Igreja de Cristo Jesus, neste processo deve-se
objetivar a comunicação através da tarefa querigmática (pregação) buscando assim a
edificação do povo pactual do Senhor!

Vimos aqui como a Hermenêutica é necessária na vida da igreja como um todo,


possibilitando ao crente dialogar com várias áreas do saber teológico visando a
edificação da igreja e a glória de Deus; isto significa, que a igreja tem como alvo
sempre manifestação da grandeza de Deus.

**
Ibid, p.11.
10
ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Orare et labutare: A Hermenêutica Reformada das Escrituras.
São Paulo: Editora Mackenzie: CPAJ, In. Fides Reformata 2/1(1997), p.2.
IV – OS PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS E A NECESSIDADE DA
HERMENÊUTICA.

Outro aspecto importante em nosso estudo diz respeito a questão dos


pressupostos que temos em relação a Deus e a sua palavra; estes pressupostos ativam
nossa abordagem hermenêutica.

A grande pergunta que precisamos fazer ao estudar o tema da necessidade da


Interpretação Bíblica. É aquela que questiona: É possível interpretamos a Palavra de
Deus livre de pressupostos?

A resposta a esta indagação é negativa. Ainda que os adeptos da Escola


Racionalista de Interpretação (Método Histórico-crítico) cheguem a afirmar que “a
exegese bíblica deve ser praticada de modo neutro, isento de pressuposições teológicas
apriorísticas.”11 , entretanto, tal tese não se sustenta. Pois, as pressuposições ocupam um
lugar bastante importante no processo interpretativo.

(I) A Doutrina da Revelação: é o primeiro pressuposto para um bom processo


interpretativo seguro. A ideia de que Deus se revela nas obras da criação é o pressuposto
capital para o processo interpretativo das Escrituras (Salmos 19.1-4; Romanos 1.18-20),
neste aspecto podemos dizer que a criação é uma revelação natural de Deus o livro no
qual Deus revela como criador. Este aspecto da revelação não salva ninguém; mas,
aprove a Deus revelar-se diretamente, e a assim se procedeu por meio do Seu Espírito
Santo, por Revelação direta, por teofanias, por anjos, sonhos, visões, inspiração e Seu
Filho Jesus (Ex. 3. 16; Sl 147. 19, 20; Hb. 1. 1,2; Gl. 1. 11, 12). Deus não é o totalmente
oculto, mas é o que se revela nas obras da criação e da providência (veja-se a Confissão
de Fé de Westminster Capítulo 1.1).

(II) A Doutrina da Inspiração das Escrituras: Este pressuposto é fundamental


para se aproximar de forma adequada à Palavra de Deus. Outro pressuposto que
devemos ter antes de irmos ao processo interpretativo do texto das Escrituras; é aquele
que declara ser a Bíblia plenamente soprada pelo Espírito Santo. Paulo Anglada lembra-
nos que a “doutrina da inspiração é a pressuposição bibliológica fundamental da
hermenêutica reformada.”12 Esta doutrina é o “fundamento da hermenêutica e

11
ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Introdução à Hermenêutica Reformada. Anamindeua: Knox
Publicações, 2006, p.18.
12
ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Introdução à Hermenêutica Reformada. Anamindeua: Knox
Publicações, 2006, p.136.
exegese”13 da Reforma. A própria Escritura (Evidência Interna) dá testemunho de si
como inspirada por Deus (Ex. 4. 22; Jz 6. 8; Is 43. 14; ISm 15. 23; Jr. 1. 4; Mt 5. 17, 17;
Jo10. 35; Hb. 3. 7ss).

(III) A Doutrina da Autoridade das Escrituras:

Outro pressuposto importante é a compreensão de que as Escrituras possuem


plena autoridade sobre a vida da igreja e sobre aquele que interpreta a Bíblia Sagrada.
Esta doutrina é de fundamental importância para aqueles que pretendem estudar e
interpretar as Escrituras Sagradas.

Aquilo que nós compreendermos sobre a autoridade absoluta das Escrituras fará
toda diferença no estudo hermenêutico das Escrituras. Packer vai nos dizer que a
autoridade das Escrituras “repousa na inspiração”14 A Bíblia guia a nossa vida e dita a
forma como devemos ver e adorar a Deus naquilo que ele requer de nós. Cristo sempre
apelou para as Escrituras como a um tribunal supremo. Em qualquer controvérsia ele
usava a expressão “está escrito” indicando que a palavra final deve ser dada a Palavra
inspirada por Deus. Vejamos isso detalhadamente em Mateus 4.4,6,7,10. Cristo ao usar
a expressão “está escrito” usa a forma verbal em grego “ge,graptai” – gégraptai
–e um verbo no perfeito que indica uma ação continua, significando “permanece
escrito, então, o Senhor Jesus esta apelando para a autoridade da Bíblia como fonte
autorizada da verdade.

(IV) A doutrina da Suficiência das Escrituras:

Ao interpretarmos as Escrituras devemos considerar que elas são profundamente


suficientes para a vida e piedade do crente. O lema Sola Scriptura aponta para a
realidade de uma Bíblia suficiente.

Mas, o que é essa doutrina? A resposta mais simples e clara que podemos
oferecer a esta pergunta e que o “Sola Scriptura ensina que a Bíblia regula a vida em
sua totalidade15a Confissão de fé fala-nos do quanto as Escrituras são realmente suficientes
para a igreja. Os teólogos puritanos declaram: “Todo o conselho de Deus concernente a
todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é

13
Ibid, p.137.
14
PAKER, James I. Vocábulos de Deus. São Paulo: Fiel, 2002, p. 33.
15
SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos
Vasconcelos. São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p.1.
expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela.”
(CFW – capítulo 1. Seção 6) – veja-se: 2ª Tim.3.15-17.

Aqui nós temos um conceito subjacente ao Sola Scriptura [Somente a Escritura] que
é o de Toda Scriptura [ Toda Escritura], também desenvolvido na reforma protestante; e, de
Acordo com Fred Klooster, “este ponto de vista a respeito da Escritura como “única e
completa’ (sola e tota Scriptura) é exclusivamente reformado” 16

Então, ao interpretamos o texto sagrado devemos ir até uma Bíblia suficiente. Não
estamos interpretamos um documento incompleto, imperfeito que precisa ser adicionado
com outros ditos, ou com novas revelações; o estudo sério e laborioso das Escrituras se
torna compensador quando pressupomos que estamos diante da vontade suficiente de Deus
apresentada nas Escrituras.

16
Apud¸ BEEKE, Joel. R. Vivendo para a Glória de Deus – Uma Introdução à Fé Reformada.
Tradutor: Francisco Wellignton Ferreira. São Paulo: Editora Fiel, 2010, p. 150

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