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Encarnação1 – Gordon H.

Clark

Sumário
Encarnação – Gordon H. Clark .................................................................................. 1

Prefácio ....................................................................................................................... 2

1. Introdução ........................................................................................................ 6

2. As Heresias .................................................................................................... 15

3. A Falha Fatal ................................................................................................... 24

4. A Idade Média e a Reforma ............................................................................ 27

5. O Século Dezenove ........................................................................................ 34

6. Algumas Conclusões ..................................................................................... 68

7. Análise Resumida .......................................................................................... 75

8. Pessoa Divina e Humana ............................................................................... 86

9. A Conclusão ................................................................................................... 99

10. A doença final do autor. ................................................................................... 103

11. O Credo de Calcedônia..................................................................................... 104

12. Gordon Clark era Nestoriano? ......................................................................... 105

1 Tradução: Edu Marques. Edu Marques é cristão protestante, missionário e professor de


teologia e filosofia. Revisão: Dênio Barbosa.
Prefácio

Durante os séculos IV e V, a igreja foi conturbada por várias


controvérsias, mas a mais proeminente parece ter sido o debate a
respeito de Cristo. Quem, exatamente, foi Jesus Cristo? Cristo era
Deus e homem? Ele foi a primeira de todas as criaturas? Ele era
Deus em um corpo? Ele era um dos modos de Deus Pai? Ele foi
apenas um homem? Ele era duas pessoas, Jesus de Nazaré e a
segunda pessoa da Trindade? O debate foi animado e amargo.

Além de usar os poderes pacíficos de persuasão, alguns membros


da hierarquia da igreja também contaram com poderes persuasivos
de coerção. Os debates teológicos levaram a exílios, perseguições
e ao uso liberal de força política. Alguns escritores da história da
igreja querem que acreditemos que a formulação do Concílio de
Calcedônia em 451 d.C. sobre a Encarnação encerrou todo o
debate, mas isso não aconteceu. Uma fonte mais antiga nos
informa que “a decisão de Calcedônia não parou a controvérsia, e
exigia uma declaração suplementar com respeito às duas vontades
de Cristo, correspondentes às duas naturezas”. Essa declaração
suplementar foi formulada por outro concílio no sétimo século
depois de Cristo.

Agora, nos séculos XIX e XX, há um interesse renovado por Cristo,


e a formulação de Calcedônia está sob novo ataque. Em 1977, um
ataque frontal à Encarnação apareceu intitulado The Myth of God
Incarnate. Um dos contribuintes desse volume, John Hick, afirmou
em uma sequência, Incarnation and Myth: The Debate Continued,
que “certamente nenhuma escola de teologia cristã foi capaz de
explicá-la [a doutrina da Encarnação] coerentemente. Se Jesus
tinha duas naturezas completas, uma humana e outra divina, e
ainda assim era uma pessoa indivisa, como pode essa pessoa ser
considerada genuinamente humana?”2 Outro contribuinte, Frances
Young, atacou a utilidade da linguagem: “Em última instância, a
verdade sobre Deus não está aberta à análise e investigação da
mesma forma que os itens no universo criado. Os Pais que
insistiam que Deus é inexprimível e incompreensível, que todo
conhecimento de Deus e linguagem sobre ele é indireta, foram pelo
menos salvos do tipo de fundamentalismo teológico que imagina
que estamos lidando com verdades que podem ser declaradas com
precisão, com significados que podem ser plenamente elucidados.
Nessa área, a linguagem para a qual não podemos dar nenhum
conteúdo “literal” pode muito bem conter e transmitir uma verdade
de outra forma inexprimível... Estamos usando a linguagem do ‘mito
religioso’ que transmite uma verdade cujo mistério está além do
entendimento humano e incomunicável através de qualquer modo
de expressão que não o parabólico”. 3

As respostas da parte “ortodoxa” a esses argumentos têm sido


péssimas. Uma contestação típica é semelhante a esta: “A doutrina
da encarnação [é] paradoxal, e assim ela deve ser, se palavras
humanas hão de ser usadas... Os paradoxos são um sinal de que
devemos parar de pensar antropomorficamente; e eles são uma
ferramenta para pensar teologicamente sobre aquele que não pode

2 Michael Goulder, editor, Incarnation and Myth: The debate continued (Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1979), p.83.
3 Ibidem, p.62. A semelhança entre os pontos de vista dessa mulher que nega que Cristo era

Deus e os pontos de vista que emanam dos chamados seminários conservadores é mais do
que coincidência. Os professores do seminário, tanto “liberais” como “conservadores”,
juntaram-se no ataque à linguagem, à lógica, à precisão do pensamento e às definições.
ser ‘compreendido’ com termos unívocos bem definidos”.4 Outras
respostas “ortodoxas” sugerem que teremos de descartar nossa
noção de Deus como impassível, pois o autor argumenta que a
Segunda Pessoa da Trindade “sofre”. 5

Em contraste com essas respostas enganosas e antibíblicas e em


resposta ao desafio de apresentar uma doutrina coerente da
Encarnação, a reconstrução logicamente rigorosa de Gordon Clark
da doutrina da Encarnação está preocupada em defender ambas as
doutrinas da imutabilidade de Deus e da linguagem como um
veículo adequado para a revelação proposicional divina. Com base
na definição de Calcedônia, Clark meticulosamente classifica e
organiza a informação bíblica sobre Cristo. O resultado é uma
apresentação ainda mais coerente do ensino bíblico de que Cristo
era e é tanto Deus como homem, não Deus em um corpo, como
alguns modernos creem, nem uma figura meramente humana.

É de se lamentar que Clark não viveu para participar mais dos


debates cristológicos deste século. Na época em que ficou
mortalmente enfermo em fevereiro de 1985, ele estava escrevendo
o presente volume, o qual intitulou Concerning the Incarnation. Ele
não terminou o livro, pretendendo adicionar mais alguns parágrafos
reusmindo suas centenas de páginas de análise e argumentação,
então ele pediu a este escritor que o terminasse para ele. Embora
eu tenha ficado muito honrado com seu pedido, relutei em fazer
quaisquer acréscimos significativos; eu adicionei apenas dois

4Ibid., p.61.
5 Norman Anderson, The Mystery of the Encarnation (Downers Grove, Illinois: Intervarsity
Press, 1978), p.151. A ideia de que Deus sofre não é uma ideia nova; tem uma história longa e
herética. Mais recentemente, a Igreja de Unificação do Sol e da Lua foi construída sobre a ideia
de que o papel do homem é reduzir o sofrimento de Deus.
parágrafos às suas palavras. O argumento de Clark é claro e direto.
Ele elimina alguns dos problemas que têm atormentado a discussão
da Encarnação por séculos. Naturalmente, será impopular para
aqueles que desprezam a precisão na linguagem teológica e
angariam as maravilhas da ignorância. Mas para aqueles que
desejam conhecer a verdade, A Encarnação é um grande passo no
desenvolvimento da doutrina cristã.

John W. Robbins, 29 de abril de 1988.


1. Introdução

Quando paramos para pensar — embora nesta era decadente e


anti-intelectual poucos parem para considerar algo de importância
acadêmica e especialmente religiosa — a Encarnação da Segunda
Pessoa da Trindade foi um milagre estupendo, imponente e
enigmático, sobrepujando em muito a fuga de Moisés pelo Mar
Vermelho e até mesmo o caminhar de Cristo sobre o Lago da
Galileia. Alguém está interessado nisso?

A população desta era se divide em três grandes grupos. O maior


grupo contém aqueles que vivem para o esporte e lotam as
arquibancadas dos estádios com centenas de milhares nas tardes
de domingo. Entre eles há as mães que assassinaram seus bebês,
os viciados em drogas e uma multidão de pessoas mais ou menos
indescritíveis. A característica que os une é uma indiferença a
qualquer religião reconhecível. O segundo grupo, muito menos
numeroso, inclui os liberais religiosos, que com sua Neo-ortodoxia
controlam as grandes “principais” denominações. O primeiro grupo
nunca ouviu falar da Encarnação; este segundo tenta reduzi-la à
mitologia. Agora, ignorando os católicos romanos por ora, mas
somente por ora, o terceiro grupo, que iremos ignorar por completo,
é composto de secularistas explícitos, cujo cientificismo arrogante
— não ciência — os leva a não ter nenhum interesse, mas somente
ódio à Bíblia, a Cristo e à Encarnação. Dificilmente digno de contar
é um grupo de sete mil que não dobrou os joelhos diante de Baal, a
quem Cristo disse: “Não temas, ó pequeno rebanho, porque a vosso
Pai agradou dar-vos o Reino”.
Este pequeno grupo faz algumas publicações da melhor maneira
possível. Ocasionalmente, um deles é autor de um livro de valor
justo. Mas, em geral, uma comparação entre as publicações cristãs
dos séculos XVI e XVII (por exemplo, as de Lutero, Calvino,
Turretin, George Gillespie, John Gill, Owen, culminando na
Confissão de Fé de Westminster) com as do século XX, restringindo
nossa visão para os autores relativamente conversadores dos
nossos dias,6 indica de forma lamentável a ignorância,
incompetência e total falta de interesse em setenta e cinco por
cento da verdade bíblica. A evidência para apoiar esse comentário
cáustico é facilmente descoberta se alguém pesquisar as
publicações religiosas populares deste século e descobrir a
escassez de material sobre a doutrina da Encarnação.

Quanto aos secularistas arrogantes, além de vários cientistas


competentes que se desviam nessa direção, umas poucas
considerações podem ser permissíveis antes de despedi-los como
contribuindo em nada para o tópico principal. Eles são, em
essência, ateus e behavioristas.7

6 O cristianismo bíblico teve seus altos e baixos. Talvez sua era mais desoladora não seja a
neo-ortodoxia moderna, mas sim o século XVIII na Alemanha. Morto como sem influência
agora, ainda é mais do que simplesmente uma curiosidade. Esperamos que sua crueza nunca
mais se repita, mas sua devastação é um aviso desastroso para aqueles que a conhecem.
Reimarus (falecido em 1768) acusou Cristo de visões políticas rebeldes e ambiciosas. Vários
outros explicaram seus milagres como truques. Paulus explicou a ressurreição de Cristo com
base na teoria de que Jesus não morreu na cruz, mas apenas desmaiou. Rohr foi menos
impetuoso. Ele retrata Cristo como um homem com um grande fardo, com tato e sabedoria, e
elaborando a religião do Antigo Testamento, ele tentou produzir uma religião universal. Seus
alegados milagres de cura foram o resultado de um conhecimento de medicina mais completa
do que a dos médicos judeus. Mas mesmo esse julgamento gentil mantém o Cristianismo
ortodoxo apesar de tudo.
7 Compare Clark, Behaviorism and Christianity (Jefferson, Maryland: The Trinity Foundation),

1982.
Negando a alma e usando a palavra mente para designar algumas
atividades físicas mal definidas, eles naturalmente veem a
Encarnação como a superstição de uma era primitiva ignorante. Se
nosso interesse principal fosse refutar esse cientificismo, seria
necessário defender a existência da alma ou do espírito. Platão fez
isso muito bem em seu Fédon, Teeteto e outros diálogos. Ao que
tudo indica, Agostinho foi o primeiro cristão a escrever um tratado
com esse objetivo.8

Mas deixando de lado essas questões mais filosóficas, tomando por


certa a existência de Deus e da alma humana, de fato aceitando a
Bíblia como revelação inerrante da verdade divina, nos
aproximamos do tópico principal: a encarnação da segunda pessoa
da Trindade. A aproximação, contudo, requer o enunciado do
problema. Visto que Deus é onipotente, a questão não é como esse
evento tão estupendo poderia ser possível, mas, antes, o que
exatamente ele foi.

As afirmações da Escritura são claras o suficiente até o ponto em


que elas vão. No evangelho de João (1:14) lemos: “O Logos se fez
carne”. João também disse: “Jesus Cristo veio em carne [...] todo
espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de
Deus, mas este é o espírito do anticristo”. Paulo também, em 1
Timóteo 3:16, insiste que “Deus se manifestou em carne”. Quase
todos os versículos dos evangelhos pressupõem a encarnação. Da

8Agostinho defende a realidade da alma e sua superioridade sobre o corpo em A Magnitude da


Alma. Embora uma obra primitiva, com alguma dependência embaraçosa de uma teoria
peculiar dos estéticos, e, portanto, requerendo algumas correções em suas próximas
produções mais maduras, ela contém alguma argumentação valorosa. O Initiation à la
Philosophie de S. Augustin, de F. Cayre (Paris 1947) dá atenção insuficiente aos
desenvolvimentos posteriores, e, por exemplo, toma “De libero arbítrio” como a declaração
definitiva de Agostinho sobre o assunto.
mesma forma, as epístolas de Paulo: Filipenses 2:6-8; também 1
Pedro 1:19, e por clara inferência, dezenas de outros.

Mas, (você percebe?) embora a carne, ou o corpo de Jesus, seja


tão frequentemente mencionado, esses versículos não dizem nada
sobre sua mente ou alma. Que Deus quis nos impressionar com o
fato de que a segunda pessoa assumiu um corpo é incontestável;
mas ele também quis obscurecer o fato de que o Cristo encarnado
tinha uma mente humana? Cristo ter assumido um corpo não causa
nenhuma dificuldade para quem crê na Bíblia; mas entender como a
segunda pessoa pôde possuir uma alma humana e ser uma pessoa
humana (o que quase todos os cristãos ortodoxos negam), e como
essa mente ou alma estava relacionada com a pessoa divina seja,
talvez, o problema mais difícil de toda a teologia. Nenhum católico,
calvinista ou ateu pode negar que a Bíblia ensina a encarnação.
Mas essa “absorção” perturbou os pais da igreja por mais de
quatrocentos anos. Os resultados de seus trabalhos são, na melhor
das hipóteses, lamentavelmente incompletos. No entanto, não há
melhor maneira de começar o assunto do que traçando sua história.

A pregação do Evangelho requer algumas declarações de quem


Cristo foi. Os judeus tinham vários conceitos discordantes quanto à
natureza de seu Messias vindouro. O problema se tornou mais
crítico para eles acerca da conversão. Os gregos não tinham
qualquer conhecimento prévio sobre o assunto. Todavia, os
primeiros cristãos tinham de dizer algo, e a igreja, tão logo quanto
possível, tinha de responder algumas questões pertinentes. Várias
explicações foram tentadas, e hoje podemos fazer pouco progresso,
ou nenhum, sem considerar os resultados negativos provenientes
delas. Quem, então, ou o que, então, foi esse Cristo?

Mesmo antes da primeira e fundamental doutrina do cristianismo, a


Trindade, ter sido esclarecida por Atanásio no Credo Niceno de
325, com uma frase adicionada em 381, a controvérsia sobre a
pessoa de Cristo já começara.

Essa controvérsia, cujos principais detalhes serão descritos um


pouco mais tarde, foi esclarecida pelo Concílio de Calcedônia em
451. Embora cronologicamente a decisão do Concílio esteja fora do
lugar nesse ponto, pode ser mais fácil seguir a história se já se sabe
o resultado. Embora o texto do Credo possa ser facilmente
localizado em qualquer biblioteca de seminário, ele será citado aqui
na íntegra por uma questão de conveniência.

Todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve


confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
perfeito quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma
racional [psychēs logikēs] e de corpo; consubstancial ao Pai,
segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a
humanidade; “em todas as coisas semelhante a nós,
excetuando o pecado”, gerado segundo a divindade antes dos
séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para
nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus; um só
e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve
confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis,
inseparáveis e indivisíveis;9 a distinção das naturezas de modo
algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as
propriedades de cada natureza permanecem intactas,
concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência [en
prosopon kai mian hypostasin]; não dividido ou separado em
duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus
Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a
seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos
ensinou e o credo dos padres nos transmitiu.

Note aqui também que o credo do Sexto Concílio Ecumênico,


contra os monotelistas10, em 680 d.C., adicionou uma definição
dogmática da posse de Cristo de duas vontades distintas — na qual
a vontade foi considerada atributo da natureza, e não da pessoa.

O Credo de Calcedônia, no entanto, não foi citado apenas por uma


questão de conveniência. Ele é a fonte mais importante de
informação sobre as primeiras teorias heréticas. Seria de se esperar
que as obras frequentemente volumosas de Eusébio, Cassiano,
Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo, ou até mesmo Hilário de
Poitiers contivessem análises detalhadas das opiniões condenadas.
Mas esse não é o caso.

Qual é, então, a história da heresia que levou ao Credo de


Calcedônia?

9 O resto do Credo realmente contradiz esta última frase, por negar que Cristo era uma pessoa
humana. Obviamente, algo que não é absolutamente um ser humano, não pode ser “em todas
as coisas semelhante a nós”.
10 O monotelismo foi uma heresia surgida no cristianismo. Opôs-se ao nestorianismo. Eutiques,

arquimandrita de um mosteiro de Constantinopla, defendeu que, havendo uma só pessoa em


Jesus Cristo, também devia haver uma só natureza, admitindo que a humana fora absorvida
pela divina.
O Credo é um documento relativamente curto, do qual não se pode
esperar quaisquer explicações prolongadas. Mas se havemos de
entendê-lo, explicações prolongadas são necessárias. A maior
dificuldade é a imprecisão de termos como humanidade, alma
racional, consubstancial, natureza, pessoa e subsistência. Até
hoje os teólogos têm citado essas palavras sem explicá-las e,
suspeitamos, sem entendê-las. Ainda que cada uma deva ser
definida, caso alguém deseja usá-las, o termo mais importante é o
vocábulo pessoa. O que é uma pessoa? Como Cristo pode ser
perfeito em humanidade, com uma vontade humana diferente de
sua vontade divina, com uma alma racional “consubstancial”
conosco e verdadeiramente homem, sem ser uma pessoa humana?

Para entender a declaração do credo, deve-se começar de algum


lugar. Deve haver um pou sto, um point d’appui [ponto de apoio],
uma concordância básica sobre um termo fundamental. Caso
contrário, nos afogaremos em um oceano de ambiguidade.
Nenhuma escolha é melhor que o termo niceno hypostasis. O mais
antigo dos credos afirma que a Divindade é mia ousia e três
upostaseis. O termo ousia é um substantivo particípio do verbo
existir; a tradução comum é ser. O cachorro é um ser, a rocha é um
ser; mas se ousia significar simplesmente uma forma do verbo ser,
existir [sou, és, é, ser], então, visto existirem sonhos, os sonhos
são: eles são seres. Algumas vezes o termo realidade é usado. Mas
sonhos, especialmente sonhos ruins, são reais: eles são sonhos
ruins e reais. Platão afirmou que suas “Ideias” eram realidades: A
“Ideia da Justiça”, a “Ideia do Homem”, a “Ideia do Cavalo”, e a
“Ideia do Número” são realidades. Portanto, o termo ousia não é um
termo básico tão bom quanto hypostasis.

Outra forma do verbo “existir” é existência ou essência. O termo


pode ser útil, se definido. Para ilustrar: alguém vê uma nova
máquina, ou um animal nunca observado antes, e pergunta: “O que
é isso?”. Seu amigo responde: “É esse tipo de dispositivo ou esse
tipo de animal”. Nas conversas comuns a resposta geralmente é
incompleta, mas se o amigo for um pouco inteligente, fornecerá
parte da definição. A resposta completa para a pergunta “O que é
isso?” é uma definição. Agora, se os teólogos tivessem se
contentado ou sido capazes de usar os termos sem ambiguidades,
grande parte da confusão teria sido evitada. A essência é a
definição. A essência de um triângulo plano é uma área delimitada
por três linhas retas. A expressão “ele é da essência...” significa que
ele é parte da definição. Infelizmente, muitos teólogos não dizem
isso de forma explícita, mas o negam, não raro, mediante o uso. Em
um levantamento histórico, contudo, o autor deve reproduzir os
erros grosseiros das pessoas citadas.

Uma dificuldade, um erro grosseiro, advindo dessas discussões nas


igrejas ocidentais é a tradução latina de “uma ousia e três
upostaseis” como “uma substância e três pessoas”. Se os latinos
tivessem traduzido corretamente, nossos credos estariam agora
dizendo que Deus é uma essência e três substâncias. Dizer que
Deus é uma essência significaria que a Divindade, a despeito de
quantas pessoas haja nela, tem uma definição simples. Nessa
definição, ou sob essa definição, existem três “substâncias”, pois
upo é sub ou sob, e stasis é permanência ou posição. Por ora,
entretanto, e apesar do fato que upostasis no grego clássico ser
intoleravelmente ambíguo (como mostraremos um pouco mais
tarde), assumiremos que hypostasis seja o termo menos ambíguo
pelo qual começar. Seja qual for seu significado, há três deles na
Deidade.

Um dos problemas que teremos de enfrentar é se o Jesus humano


é ou não uma hypostasis. Um estudioso relativamente recente
argumenta que a personalidade individual é uma ideia alheia à
antiguidade e só fora inventada por Descartes, como um Ford
Modelo T que teve de se esforçar muito para se tornar um
Thunderbird respeitável. Isso significa que muitas de nossas
perguntas nunca passaram pela mente desses santos padres.

Mas antecipamos um futuro muito distante. Voltemos e vejamos as


heresias que demandaram a convocação do Concílio de
Calcedônia.
2. As Heresias

Se listarmos os movimentos heréticos em ordem cronológica, Paulo


de Samósata (c. 250) pode razoavelmente encabeçar a lista. O
volumoso autor Eusébio (265-340) menciona-o diversas vezes em
sua História Eclesiástica, mas ele nos diz mais sobre seu caráter
desagradável (Bk. VII, capítulo 30) do que sobre sua teologia. Ele
deixa evidente um ponto de maior importância: “Paulo de
Samósata... sustentava, contrário ao ensino da Igreja, visões baixas
e degradantes de Cristo, a saber, que em sua natureza ele era um
homem comum” (p. 312; VII, xxvii). Em V, xxviii (p. 246) há uma
menor ainda: “A heresia de Artemo, que Paulo de Samósata tentou
reviver... a heresia acima mencionada de que o Salvador era um
mero homem”. Que isso é uma negação da deidade de Cristo e
uma heresia a ser fortemente condenada é evidente; mas ela não
nos dá nenhuma pista de como esse Paulo expôs e defendeu sua
visão.11

Mais ou menos na mesma época, pois ele foi condenado em 263,


Sabélio propôs o que pode ser chamado de uma trindade modal:
isto é, há apenas uma Pessoa que é Deus. Quando ele se engaja
em certas ações, ele é chamado Pai; numa forma diferente de
atividade ele aparece sendo chamado de Filho; e similarmente para
o título Espírito Santo. Nos tempos modernos, Karl Barth tem sido
acusado de modalismo. Cornelius Van Til é um dos muitos que
fazem essa crítica. G. C. Berkouwer, por outro lado, em The

11Os textos desses teólogos primitivos foram traduzidos na série de Antes e depois dos Pais
Nicenos.
Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth (Eerdmans, 1956,
pp. 386-388), promove algumas possíveis defesas de Barth.

Um pouco antes, Horace Bushnell, de uma maneira estranha e


confusa, parece misturar Trinitarianismo e Sabelianismo. Pode
haver uma Trindade real, ele parece dizer, mas nós conhecemos
apenas uma trindade modal. O problema é que se podemos
conhecer somente uma trindade modal, não há razão para assumir
outra Trindade desconhecida. De qualquer forma, pode-se concluir
que as heresias antigas não são questões completamente mortas.

Apolinário (310-390) pode servir como o próximo heresiarca.


Influenciado, sem dúvida, por várias declarações do Novo
Testamento de que Jesus era Deus em carne, sem menção de uma
alma humana,12 e também pelo desejo louvável de promover o
conhecimento cristão, Apolinário concluiu que Jesus era um corpo
humano habitado pelo Logos divino. Essa visão é claramente
invulnerável contra qualquer acusação de Arianismo, o qual estava
sendo rejeitado pelo Concílio Niceno.

Embora o leitor já saiba que a igreja mais tarde condenou essa


teoria, não foi tão fácil, naquele tempo de confusão, fazer um caso
bem definido para a humanidade de Jesus. A confusão reversa
ocorre hoje. Tão acostumado é o nosso século em considerar Jesus
como um “verdadeiro homem”, bem como o Filho de Deus, que
alguns teólogos que escrevem sobre o assunto usam argumentos
irrelevantes e ilógicos. Por exemplo, Baker’s Dictionary of Theology

12 Mateus 26:38 e Marcos 13:34 registram Jesus como dizendo: “Minha alma está cheia de
tristeza até a morte”; mas Apolinário ainda podia argumentar que essa alma era divina.
(pub. 1960), tem um breve artigo sobre a “Humanidade de Cristo”,
escrito por Philip Edgcumbe Hughes. Quase todas as suas
referências se aplicam ao corpo de Jesus. Ele até menciona uma
ressurreição corporal (itálico dele) e um retorno corporal, nenhum
dos quais serve para mostrar que Jesus tinha uma mente, alma ou
vontade humana. Estranho como possa parecer, é difícil mostrar
que a Encarnação foi algo mais do que uma “en-carne-ação” [in-
carne-tion]. Hebreus 10:5 diz: “Um corpo me preparaste”. Onde no
Novo Testamento é dito: “Uma mente ou alma me preparaste”?

No entanto, a igreja achou essa teoria insatisfatória. Embora o Novo


Testamento mencione com mais frequência “a carne”, ele também
se refere ao “o homem, Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5). Da mesma
forma, Lucas 2:52 diz: “Jesus crescia em sabedoria...”. Se sua
mente fosse o Logos, sua sabedoria nunca poderia ter crescido. Por
tais razões, a Teoria do Logos de Apolinário foi condenada em 381.

A próxima heresia foi a de Nestório, que morreu um tempo depois


de 440 d.C. Mesmo que os registros se apliquem mais aos seus
discípulos do que a ele, sabemos mais sobre ele do que sobre os
outros hereges, pois Cassiano (360-432?) escreveu sessenta e
nove páginas de colunas duplas (no Pós Pais Nicenos) sob o título
Os Sete Livros de João Cassiano sobre a Encarnação do Senhor,
Contra Nestório. Mas embora endividados dessa forma para com
ele, não podemos confiar nele plenamente, pois, como os outros
Pais, ele usou muitas injúrias. No começo do seu tratado ele
descreve Nestório como uma hidra, que assobiava contra nós com
línguas mortais. Livro VI, Capítulo vi, começa com “ó seu herege...
seu louco miserável” e continua em V, ix com “O que você está
vomitando?” Ao qual adiciona: “sua criatura miserável, insana e
obstinada” (VI, xviii).

Há outra razão menos desonrosa para se ler Cassiano e os outros


Pais, com algumas suspeitas. Infelizmente, isso se aplica a todos os
autores. Mesmo quando estudiosos modernos documentam seus
estudos, é sempre possível que eles interpretem mal algumas das
citações. Mas esse perigo se torna ainda maior quando o assunto é
novo, não familiar e caótico. O presente escritor selecionará agora o
que ele pensa serem as referências mais importantes de Cassiano
à teologia de Nestório. Mas o que se segue não é fácil: irrelevâncias
e falácias nos cercam.

Nestório, então, ensinou que Cristo nasceu como um mero homem


(I, iii). Uma nota de rodapé em II, vi (p. 561, Pais Nicenos) diz:
“Nestório manteve que ‘aquele que nasceu no ventre de Maria não
era o próprio Deus’”. Mas isso não é heresia. A Segunda Pessoa da
Trindade não foi formada em Maria. O Logos nunca foi formado de
nenhuma maneira. Ele é eterno. Por conseguinte, o argumento
contra Nestório neste ponto é um fracasso. Até mesmo a frase de
I,iii não é questionável, embora talvez seja facilmente muito mal
compreendida.

Cristo de fato nasceu como meros homens nascem, se isso


significa a partir do ventre de uma mulher. Mas sua concepção não
foi a de um bebê humano comum. O problema é que a linguagem é
descuidada, e Cassiano decide com muita facilidade uma
interpretação. Não se deve se surpreender com isso. Quando um
grupo de homens começa a discutir um assunto extremamente
novo, a terminologia está fadada a ser imperfeita.

Cassiano continua: “Não foi Deus quem sofreu, mas Deus se uniu à
carne crucificada” (Fragmento em Marius Mercator, p. 789, ed.
Migne). Bem, isso não é heresia, pois as Pessoas imutáveis da
Trindade não podem sofrer. É pela seguinte declaração que
Nestório é comumente acusado de heresia: “Assim, ele fez com que
em Cristo houvesse duas Pessoas”.

Cassiano também registra (Pais Nicenos, p. 581) que Nestório


argumentou: “Nenhuma mulher jamais deu à luz alguém que existia
antes dela”. Essa declaração está sujeita a duas interpretações.
Assumindo que o Logos habitou a criança não nascida, Maria deu à
luz a combinação. Mas, estritamente, o Logos, sendo eterno, nunca
nasceu.

Defendendo o que mais tarde se tornou a doutrina ortodoxa,


Cassiano estabelece um bom ponto na p. 608, VII, vii, ao fazer um
apelo à Escritura: “Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem
por homem algum, mas por Jesus Cristo” (Gálatas 1:1). Certamente
Paulo não quis ensinar que Cristo não era um homem; na verdade,
ele deixou implícito que Cristo era Deus. Isso é ainda mais claro em
1 Coríntios 2:8, “o Senhor da Glória”; ao qual pode ser adicionado:
“a plenitude corporal da divindade” (Colossenses 2:9). E uma
consideração final do próprio Cassiano: “Pois Paulo não nega que
Jesus é homem, mas ainda confessa que o homem é Deus”. De
fato, o tratado é cheio de argumentos que provam a divindade de
Cristo, mas o propósito aqui foi apenas ilustrar sua descrição de
Nestório.

Nos relatos comuns do Nestorianismo dados na literatura pós-


Reforma, o ponto enfatizado é que essa heresia sustentava que
Cristo tinha duas pessoas. Os editores do Nicene Fathers
introduziram o Livro IV de Cassiano, capítulo vi, com o subtítulo
“Que há em Cristo apenas uma Hypostasis (isto é, um ser
pessoal)”. Um estudante deve ler nas entrelinhas para encontrar tal
argumento ali. O que os teólogos protestantes veem como o ponto
mais importante, Cassiano parece ignorar. De forma geral, mas não
inteiramente: em V, vii há uma consideração incomum: “Nenhum
tipo de paixão pode acontecer a uma natureza que é impassível,
nem pode o sangue de alguém senão de um homem ser
derramado, nem alguém senão um homem morrer; e, todavia, a
mesma Pessoa de quem se diz estar morta, foi chamada acima de
a imagem do Deus invisível... O apóstolo toma todas as
precauções... de que o Filho de Deus, estando unido ao Filho do
homem, poderia vir por interpretações loucas ser transformado em
duas Pessoas, e assim... ser transformado numa dupla Pessoa em
uma natureza”. A frase final dessa citação provavelmente deturpa
Nestório, mas pela primeira vez, Cassiano relata que Nestório
sustentava que Jesus Cristo era duas pessoas de qualquer
maneira.

Por algum tempo, o Nestorianismo teve um apelo considerável.


Seus missionários lideraram e organizaram igrejas orientais, até
mesmo na China, que duraram alguns séculos. Com o tempo,
entretanto, parece que sua teologia experimentou algumas
alterações. As duas Pessoas foram unidas numa personalidade
superior. Mas como pode o Logos, já divino, ser algo combinado
com algo maior? Esses desenvolvimentos pós-calcedônicos, difíceis
de se documentar com exatidão, não são particularmente
relevantes para a nossa teologia ocidental. De qualquer forma,
Nestório foi condenado em 431.

Uma heresia adicional completará a presente descrição. É uma


teoria de uma pessoa e, portanto, pode parecer mais plausível, pelo
menos a princípio, do que uma teoria de duas pessoas.

O último movimento herético que precisa ser discutido aqui é o de


Êutico, um estudioso da primeira metade do século V.
Reconhecendo que Cristo tinha que ser uma pessoa, ele tinha
poucas alternativas disponíveis. Mas se ele era uma pessoa, como
Cristo pôde às vezes parecer divino e às vezes humano? A solução
de Êutico, colocada de uma forma simples, caracterizou Jesus
como nem humano nem divino: a união da Segunda Pessoa da
Trindade com o Jesus humano resultou em algo diferente de
ambos.

Uma ilustração rude seria duas partes de gás hidrogênio e uma


parte de gás oxigênio resultando em um líquido. Agora,
presumivelmente, um ser humano poderia, pela onipotência de
Deus, ser transformado num anjo não humano; mas parece não ser
tanto uma impossibilidade física quanto uma impossibilidade lógica
a de Deus se desdivinizar. Ou, em outras palavras: uma mistura de
divindade e humanidade, de forma que Cristo não fosse nem Deus
nem homem, é autocontraditória. Ou a pessoa é onipotente ou não
é. Todavia, o eutiquianismo prosperou no Oriente por um tempo,
embora tenha desaparecido rapidamente no Ocidente.

O Concílio de Calcedônia condenou todas essas visões como


heréticas. Mas que possibilidade permanece após alguém rejeitar a
teoria das duas pessoas, e também rejeitar um tipo de mistura
“química” das duas “naturezas”? Essa pergunta foi respondida, mas
nunca por completo. O Concílio, reunido em 451 para determinar o
assunto, teve êxito apenas pela metade. Com razoável clareza, ele
conseguiu decidir o que a Encarnação não foi, mas em nenhum
lugar chegou perto de definir o que foi a Encarnação. A terminologia
positiva do Credo foi e permanece ambígua e sem sentido. O
louvável trabalho dos bispos, embora longe de ser exaustivo, foi tão
cansativo que poucos tentaram completá-lo.

A Reforma tinha a obrigação de dizer alguma coisa, e em seu


apêndice a Confissão de Westminster o fez de forma bastante
enfática, embora as definições necessárias estejam ausentes. Em
1880, o teólogo alemão I. A. Dorner publicou seu System of
Christian Doctrine, cujo terceiro volume fez uma boa tentativa.

De longe a discussão mais completa, repleta de várias definições, é


a de Charles Hodge (Systematic Theology, Vol. II, p. 378 e segs.).
Visto que as primeiras páginas desse tratado são apenas uma
análise histórica, a discussão séria vem mais tarde. A própria
análise termina com uma tentativa de B. B. Warfield. Embora sua
erudição cintile em sua discussão notável do Perfeccionismo, ela é
lamentavelmente fraca em seu artigo “As ‘Duas Naturezas’ e a
Especulação Cristológica Recente” (Christology and Criticism,
Oxford University Press, 1929, p. 259-310). Todavia, por tudo isso,
tentativas de desenvolver uma doutrina satisfatória da Encarnação
devem ser construídas sobre as conclusões inadequadas do
Concílio de Calcedônia.
3. A Falha Fatal

Está na hora de identificar a falha fatal no Concílio de Calcedônia,


ou, de forma mais ampla, enfrentar as próprias dificuldades reais na
formulação de uma teoria da Encarnação que seja tanto bíblica
como inteligível. O grande defeito no Credo é a ausência de
definições. Seus autores-bispos não explicam, e provavelmente
nem eles conhecem os significados de “alma racional”,
“consubstancial”, “natureza”, “subsistência” e, acima de tudo,
“pessoa”. Isso foi dito umas poucas páginas atrás, mas precisa de
ênfase constante.

Façamos uma comparação odiosa. Um dos termos acima é


natureza. No português moderno, natureza pode significar árvores,
montanhas e furacões. A linguagem popular se move de um
significado para outro. Mas filósofos competentes são mais
particulares. Na antiguidade, Aristóteles definiu o termo com grande
exatidão em seu Physics, II, 192b20-22: “A natureza é o princípio e
a causa do movimento e descanso naquele corpo no qual ele é
imanente per se e não per accidens”.

Ninguém, certamente, está forçado a se restringir a essa definição,


exceto o próprio Aristóteles. Assim, ao ler Aristóteles, sabemos o
que ele quer dizer. Mas os bispos não nos deram nenhuma pista do
que eles queriam dizer. Para traçar a história e comentar sobre ela,
seria necessário, contudo, ou pelo menos conveniente, utilizar o
termo. Mas o uso será apenas coloquial. Uma discussão de várias
visões sustentadas desde a antiguidade até o presente não pode
evitar o uso de tal termo antes que alguém possa discutir uma visão
mais inteligível que não use o termo ou que o defina de forma tão
minuciosa como Aristóteles o fez.

Natureza não é o único termo vago. Talvez o mais vago de todos


seja substância, usado sozinho ou no composto consubstancial. O
menos ambíguo, embora não muito, é hypostasis. Isso não é mera
questão de tradução. A tradução é baseada numa ignorância do
significado. Os latinos confundiram toda a teologia traduzindo
hypostasis como persona, quando ele deveria ter sido traduzido
como subposição. De qualquer forma, Liddell e Scott usam cinco ou
seis linhas de pormenores para explicar o uso da palavra no grego
clássico. Os significados são: “permanecer sob, suportar, entrar
numa cilada, sedimento, abscesso, sopa espessa ou gelada,
duração, origem, fundação, assunto, argumento, propósito,
confidência, coragem, promessa, substância, realidade, riqueza,
título de propriedade”. O inferior Arndt e Gingrich dá: “natureza
substancial, essência, ser real, realidade, confidência, convicção,
estabilidade”.

Isso não sugere que qualquer pessoa que use o termo, exceto
quando no desembaraço de conversações casuais, deve clarificar o
significado?

Outro dia um amigo me pediu que traduzisse algumas instruções


em alemão que estavam num equipamento que ele havia
importado. As poucas linhas continham a palavra Postfach. Em
Boon,13 uma senhora a quem fui apresentado, me perguntou: “Wass

13 Cidade localizada no oeste da Alemanha; antiga capital da Alemanha Ocidental.


ist Ihr Fach?”.14 Claro, eu respondi: “Filosofia Antiga”. Mas esse
significado certamente não tem nada a ver com as instruções que
vieram com o equipamento. O dicionário então me informou o que
eu não sabia: A palavra Fach pode significar uma gaveta, e a
instrução era para enviar dúvidas e reclamações para um número
de uma gaveta de correio ou caixa de correio como a chamaríamos.
Agora, o problema com o Credo não é que ele contenha uma
palavra ambígua. O problema é que há muitas delas. Se psychēs
logikēs causa dificuldade mínima, como traduziremos ommousion,
phuseon, a máscara latina teatral persona, e especialmente
prosopon? Nem é a tradução a dificuldade principal. Se hypostasis
ou persona significa pessoa, ainda devemos formar uma definição
de pessoa. Alguma pessoa pode ter duas vontades e dois
intelectos? Cristo é comumente dito ter tido duas vontades, embora
sua vontade humana não o tornasse uma pessoa. O que, em
adição à vontade e intelecto, é necessário para fazer de um corpo
humano uma pessoa humana? A “natureza” humana de Cristo é
suposta ter carecido de uma característica essencial de uma
pessoa. O que era isso que ele não tinha? Como ele pode ser um
homem verdadeiro sem ser uma pessoa humana? Merriam Webster
define pessoa como um caráter numa cena de ação, um tipo
especial de caráter individual, um ser caracterizado pela apreensão
racional, racionalidade e um senso moral, um ser humano
individual. Jesus era alguma dessas descrições, ou nenhuma? Não
é plausível que os pais da Igreja não entenderam o que eles
estavam dizendo? Não é desejável, portanto, dar algumas sérias
atenções à Encarnação? E embora nem todas as pessoas sejam
homens, todos os homens são pessoas.

14 Nota do tradutor: ‘Qual é a sua Especialidade?’ em alemão.


4. A Idade Média e a Reforma

Os historiadores costumam dividir o assunto escolhido em períodos


mais ou menos limitados. Certamente Henrique VII governou sobre
a Inglaterra em condições muito diferentes daquelas anteriores. E
esse é, sem dúvida, o caso de William e Mary. A história da Igreja
também pode ser dividida dessa maneira. Lutero e Calvino
iniciaram a Reforma. Com relação à Encarnação, no entanto, essas
divisões não funcionam muito bem. É de certa forma cômico ver I.
A. Dorner, após discutir o “Primeiro Período até 381 d.C.” (Vol. III, p.
199), datar o “Segundo Período, 381-1800”. Pelo menos ele poderia
tê-lo datado como 451-1800. Mesmo assim, reconhecendo 451
como uma data importante, é ridículo estender a nova era até 1800
como se nada tivesse acontecido no intervalo. Há outra declaração
confessional sobre a Encarnação em 681, mas nenhuma era foi
determinada através dela. Além disso, como uma informação quase
inútil, pode-se referir-se ao terceiro livro de Pedro Lombardo,
Sentences (século XII); mas Pedro mostra pouca originalidade,
embora, como livro-texto, seu uso tenha continuado até o final do
século XVI.

No entanto, Tomás de Aquino certamente iniciou uma nova era no


século XIII. Embora ele discuta a Encarnação em detalhe
considerável, a mudança teológica e filosófica foi muito maior. Até
Bonaventura (1217-1274), inclusive, o cristianismo foi
principalmente agostiniano e platônico. Tomás de Aquino foi capaz
de destruir tudo isso e substituir pelo Aristotelismo, que naqueles
dias caracterizava o Romanismo oficial e um grande segmento do
Protestantismo ortodoxo também.
A Reforma sob Lutero e Calvino marca outra era, embora nenhuma
grande mudança tenha ocorrido no Romanismo. Antes de discutir
as atitudes da Reforma com relação à Encarnação, podemos dizer
que essa era alcançou seu ápice com a formulação da Confissão de
Fé de Westminster em 1644-1647. Desde então, o Cristianismo tem
se deteriorado continuamente, de forma lenta no início, depois mais
rápida, até que no século XX apenas alguns sustentam a posição
oficial de Lutero ou Calvino.

Mas retornemos à doutrina da Encarnação. O ponto em questão era


a relação entre a natureza divina de Cristo e sua natureza humana.
Parece impossível que o divino e o humano possam existir num
único corpo, ou uma pessoa, sem um afetar o outro. O Credo de
Calcedônia, além das palavras imutavelmente, indivisivelmente, e
inseparavelmente, também disse inconfundivelmente. É esse último
termo que causou o problema.

Alguém pode simpatizar com a tentativa de preservar a natureza


divina de qualquer desdivinização. Nem pode um cristão negar,
para usar o exemplo frequente, que Jesus se emocionou, se cansou
e sentiu sede. Mas não havia conexão, influência, relação entre as
duas “naturezas”?

Durante os primeiros anos da Reforma, embora o problema tenha


sido reconhecido pelo próprio Lutero quanto a isso, havia muitas
outras preocupações imperativas. A perseguição cruel era uma.
Mas além de tal perigo físico, a reavaliação e reconstrução
completa de todas as doutrinas precisava de atenção imediata. A
segunda geração, contudo, desfrutou de maior liberdade de
escolha, e os Luteranos e Calvinistas se engajaram num vigoroso
debate sobre o nosso presente interesse. Os últimos sustentaram
firmemente uma posição. Os Luteranos, todos reconhecendo algum
tipo de relação íntima entre as duas naturezas, produziram duas
principais teorias, ou dois graus de consistência? Os teólogos
principais eram Brentz e Chemnitz. Pode ser grosseiro chamar o
primeiro de pugnaz (brigão), mas vigoroso é muito fraco também.
Para o seu crédito intelectual ele produziu, lógica e
consistentemente, as implicações da doutrina luterana da
communicatio idiomatum, que significa que os atributos divinos
estavam anexos às duas naturezas, e os atributos humanos da
mesma forma. Chemnitz foi um indivíduo muito gentil, disposto a
fazer concessões aos Calvinistas. De fato, ele fez tantas
concessões que por pouco não aceitou a posição completa deles.
Infelizmente, isto é, infelizmente para o Cristianismo, o interesse
intenso morreu e nunca mais foi renovado.

Até os dias de hoje, os luteranos nunca foram capazes de


concordar uns com os outros em todos os detalhes. Eles
certamente não pegam cada jota e til de Brentz. Nem estão muito
felizes com as concessões de Chemnitz aos calvinistas. Portanto,
para caracterizar a época de forma um tanto imprecisa,
consideraremos apenas Chemnitz.

Chemnitz foi um homem de caráter bondoso, grande conhecimento


e extrema sinceridade. Seus gestos conciliatórios não devem ser
entendidos como uma mancha em seu caráter. Seu problema não
era moral, mas em parte lógico e em parte um desejo sincero de
unidade. Mas essas virtudes estimáveis o levaram a confusões e
inconsistências. Seu estímulo original vem de sua convicção de que
a visão reformada da dupla natureza de Cristo era muito parecida
com duas coisas simplesmente colocadas juntas. Elas não
deveriam ser separadas de forma tão severa com base em apenas
uma palavra ambígua no Credo de Calcedônia. Como pode então
existir uma relação íntima entre as duas? Se a forma extrema do
communicatio idiomatum, pela qual todos os atributos de cada
natureza estão anexos à outra, é inaceitável, pelo menos deve
existir uma mistura mais íntima de naturezas do que os Calvinistas
permitem.

Chemnitz seguiu essa linha de raciocínio, embora com menos


plausibilidade, para o caso dos santos ressurretos na volta de
Cristo. Após a ressurreição de todos os cristãos, eles, como Cristo
em seu corpo ainda humano, terão corpos que, embora espirituais,
ainda serão materiais. Como algo pode ser tanto material como
espiritual é embaraçoso, pois parece impossível ocupar o espaço e
não ocupar o espaço ao mesmo tempo. A ilustração de Chemnitz
do fogo penetrando o ferro não ajuda em nada. Podemos pensar
bem dele por sua piedade e por sua esperança de entender os
enigmas incompreensíveis da Encarnação na vida futura. Mas na
vida presente, ele estava seriamente confuso.

Visto que o presente escritor é um Calvinista rigoroso inflexível, sem


nenhuma diluição pelo empirismo aristotélico, um leitor pode
suspeitar a partir deste material que o objetivo é depreciar os
Luteranos. Dificilmente: O material calvinista sobre a Encarnação é
tão ruim quanto, às vezes pior. Por exemplo, Peter van Mastricht
pontificou: a união hipostática “é nada mais do que uma certa
relação inefável da pessoa divina com a natureza humana, pela
qual essa natureza humana é peculiarmente a natureza humana da
segunda pessoa da Divindade”. Podem palavras serem mais sem
sentido?! Inefável indica um assunto ao qual nenhuma palavra se
aplica. Nem pensamento, sequer. Duvido que ele tenha qualquer
ideia de pessoa. Ele usa natureza três vezes, mas tudo que se pode
ter certeza é que ele não usa o significado de Aristóteles. E a única
palavra que não é peculiar é peculiarmente.

Para continuar a história agora, no que diz respeito à Encarnação, o


período de Chemnitz até Dorner nos oferece pouco. Alguém pode
ter dito que Dorner ressuscitou a doutrina e estimulou Powell a
escrever The Principle of the Incarnation e A. B. Bruce a escrever
The Humiliation of Christ (Segunda Edição, Hodder and Stoughton,
sem data). Ambos, sobretudo o último, tiverem outros estímulos
também, até mesmo entre os sete relativamente mais
conservadores, Dorner não pode ser chamado de o pai de uma
nova era. Todavia, ele merece atenção.

Dorner observa que o Credo de Calcedônia teve como seu ponto de


partida a suposição de que Cristo tinha duas naturezas, mas que
suas fórmulas com respeito à relação delas são todas negativas.

“Ele não diz que a natureza humana estava unida à pessoa do


Logos, ou unida à sua hypostasis... mas as duas naturezas... são
pensadas estarem em movimento uma para com a outra (não a
hypostasis divina meramente em movimento para com a natureza
humana) [uma frase que é até menos clara que o Credo]; mas com
suas idiotices é pensado estar incorporado na pessoa uma
completa, Jesus Cristo, o resultado da união, que é chamado
hypostasis ou prosopon”.

Todavia, o Credo de nenhuma forma clarifica a maneira da


unificação. “Nem ele diz que a hypostasis do Logos é o Ego dessa
pessoa. De fato, ele não dá um relato de como cada uma das duas
naturezas contribui para a unidade da pessoa” (Vol. III, p. 217).

Alguns desenvolvimentos se seguiram mais tarde, nos quais a


unidade da pessoa divino-humana foi enfatizada. A hypostasis do
Filho não produz apenas a unidade pessoal: Ela é a pessoa do
Deus-homem. O Logos é a pessoa. Isso requer dois pressupostos
não encontrados no Credo de Calcedônia. Primeiro, o Logos
assume o lugar do Ego para o lado humano de Cristo. Em segundo
lugar, pressupõe a humanidade de Jesus, mas nega a sua
personalidade. Caso contrário, se o Logos é uma pessoa e se o
Jesus humano é uma pessoa, o resultado é o Nestorianismo.
Portanto, a natureza humana de Cristo é impessoal.

Essa se tornou a visão comumente aceita, mas ela envolve uma


grande dificuldade. Fora o fato de que, para a maioria das pessoas
a ideia de "natureza humana impessoal" é uma esquisitice, para
dizer o mínimo, a visão oscila entre a sua tendência em se tornar
Nestoriana e sua tendência igualmente clara em se tornar
Apolinariana. Se a natureza humana não tem vontade humana, não
é de uma natureza humana e, portanto, a visão se reverte ao
Apolinarianismo. Mas se a humanidade de Jesus inclui uma
vontade humana e é, portanto, um ser humano completo, temos o
Nestorianismo novamente. Nem a Cristologia antiga e nem a
moderna escaparam desse dilema. Também pode-se ter em mente
que a Trindade tem três pessoas, mas apenas uma vontade.

Nem a igreja Católica Romana nem as igrejas Protestantes


resolveram o problema. A igreja Grega não é muito melhor. Por
conseguinte, a Cristologia foi abandonada por outros interesses.
5. O Século Dezenove

Dorner tinha apenas uma razão muito duvidosa para estender o


período Medieval para incluir o século dezoito. O período da
Reforma (1517-1647) estendeu e intensificou a discussão da
Encarnação. Após 1647, vários protestantes escreveram sobre o
assunto, mas eles foram amplamente repetitivos. O leitor pode
permitir que se diga que essa repetição culminou em Charles
Hodge e W. G. T. Shedd, ambos os quais serão inclusos nesta
seção. Contudo, embora isso possa violar a cronologia de certa
forma, H. C. Powell, Oriel College, Oxford, em 1896, publicou The
Principle of the Incarnation (Longmans, Green and Co., p. 483). Ele
não só se referia com frequência a Dorner, mas também analisou
as visões primitivas e, como resultado, tentou investigar e avaliar
os significados de pessoa e a história do Ego.

Há deveras uma grande quantidade de material escriturístico tanto


nos primeiros como nos últimos capítulos; mas aqui estamos
interessados em como ele usa a filosofia moderna para definir
pessoa. Uma falha, contudo, deve ser mantida em mente. Powell dá
a impressão de que os vários filósofos modernos produziram teorias
de personalidade, ponto final! Ele não considera o fato que
Descartes era um racionalista, Locke um empirista, e Kant um
kantiniano. Ele ignora o fato de que as epistemologias básicas deles
controlam os seus interesses subsidiários. Outro defeito é a
inexplicável omissão de qualquer referência a Leibniz, pois ele
certamente tinha algo a dizer sobre mônadas15 e pessoas. Qualquer

15Mónada ou mônada, é um conceito-chave na filosofia de Leibniz. No sistema filosófico deste


autor, significa substância "simples' - do grego μονάς, μόνος, que se traduz por "único",
pessoa que deseja usar as percepções brilhantes e interessantes
de Powell deve, portanto, ajustá-las para se adequar às suas
próprias pressuposições lógicas.

As páginas seguintes irão resumir, analisar e criticar o material de


Powell. O leitor pode não favorecer a crítica, mas o contraste
dificilmente pode deixar de ser instrutivo. Num assunto complicado
como esse, todas as interpretações (exceto as extremamente
estúpidas) têm algum valor.

Powell introduz seu assunto (Capítulo V, p. 139) afirmando que “o


saber de Deus e o conhecimento do homem são distintos por
diferenças não somente de grau, mas de tipo”. Note a peculiar
mudança de palavra de saber para conhecimento. Certamente o
saber de Deus, sua psicologia, se alguém ousa usar o termo com
referência a Deus, difere do saber do homem. Deus nunca aprende
algo. Se um homem nunca aprendeu as formas a priori da mente,
pelo menos ele tem que aprender algo mais. Mas esse não é o uso
de palavras de Powell. Alguém deve, portanto, perguntar: o
conhecimento de Deus difere do conhecimento do homem, não em
quantidade somente, mas em objeto e conteúdo? Deus sabe, sem
aprender, que Davi foi Rei de Israel. O homem sabe isso? Esse é
um pedaço de informação comum tanto à mente divina como à
humana? Se essa proposição, ou alguma outra, não é comum a
ambas as mentes, o homem não pode conhecer nada, pela simples
razão que Deus conhece tudo. Conquanto minúsculo seja a
quantidade de conhecimento do homem, ou até mesmo o máximo

"simples". Como tal, faz parte dos compostos, sendo ela própria sem partes e portanto,
indissolúvel e indestrutível.
possível, o objeto conhecido, uma proposição particular, deve ser
comum tanto a Deus como ao homem. Esse ponto também deve
ser mantido na discussão sobre a relação entre o conhecimento
humano de Jesus e o conhecimento divino do Logos.

As implicações não são triviais. O garoto Jesus deve ter sido


humano, pois ele não conhecia tudo. Lucas 2:52 diz que Jesus não
somente crescia em estatura — que é puramente físico — mas
também em sabedoria, que é intelectual. Uma pessoa pode também
lembrar sua discussão com os doutores em Lucas 2:46. Esses dois
versículos não afirmam qualquer onisciência: eles de fato a negam.
É totalmente humano adquirir conhecimento, mas adquirir sem os
efeitos devastadores do pecado sobre o uso da lógica e do
raciocínio. Portanto, de uma forma ou de outra, ele deve ter tido
duas consciências, estritamente separadas. Powell insiste sobre
esse ponto (pp. 141-142), mas com material adicional não
necessário no momento.

Mas como pode algum homem sano ter duas consciências? Há


casos de múltipla personalidade, mas esses não apenas são
anormais, eles não são simultâneos. Há, então, duas pessoas num
corpo? A pessoa ausente “existe” durante a amnésia? Se
soubéssemos, ainda seria de pouca ajuda na explicação da
personalidade do Deus-homem. O primeiro requerimento é definir
uma pessoa. O que é isso em virtude de que uma pessoa é uma
pessoa? Powell afirma que a igreja primitiva careceu da ideia de
uma personalidade individual ou Ego. Ele aponta que até mesmo
Aristóteles nunca tentou definir pessoa. É verdade que ele usa a
inutilidade da matéria para transmutar uma espécie mais baixa num
indivíduo físico desconhecido. Mas isso nos desvia do nosso
assunto principal.

Powell também sustenta que os judeus tinham um entendimento


melhor, ou uma insinuação melhor de individualidade do que os
pagãos tinham. Possivelmente isso é verdade, mas não muito útil.
De modo mais satisfatório, o Cristianismo, com sua forte ênfase na
salvação, traz indivíduos, se não a individualidade, para um foco
distinto. Mas ao tentar defini-la, os Pais da igreja enfatizaram o que
ela não é, em vez do que ela é. Uma certa quantia desse
conhecimento foi essencial para a formulação da doutrina da
Trindade. Mas naquela era primitiva a terminologia não era refinada
ou definida o suficiente. Devemos simpatizar com eles, pois ainda
hoje muitos teólogos repetem algumas distinções não explicadas
entre pessoa, natureza e essência. Na antiga terminologia havia
alguma diferença entre pessoa e natureza, pois se não houvesse
nenhuma, não haveria diferença entre a divindade de Cristo e sua
humanidade; e nesse caso ele não poderia ter sido um homem. Na
melhor das hipóteses, voltaríamos ao Apolinarianismo outra vez.
Mas o que são pessoa, natureza, essência, homem? Tudo isso
permanece obscuro.

Para lidar com esses antigos enigmas, Powell, não importa quão
atrapalhado possa parecer para nós, começa com Descartes, que
de acordo com ele foi a primeira pessoa a ter pelo menos uma
noção elementar de uma pessoa. À medida que a linha de
investigação prossegue para e além de David Hume, deve-se
sempre estar ciente da questão: “O Ego é o próprio fenômeno da
consciência ou não sabemos nada sobre o Ego?” Veremos um
pouco mais tarde que Charles Hodge opta por nada. Embora isso
possa parecer surpreendente à primeira vista, e embora a disjunção
entre fenômeno e nada possa parecer incompleta, logo se tornará
evidente se o Ego é ou não é ciente de si mesmo.

Embora Descartes tenha iniciado o estudo moderno do Ego ou


pessoa, Powell acha que ele não merece muita atenção. Pelo
contrário, John Locke foi o primeiro a fazer real progresso. Dele
Powell diz: “A primeira escola confunde o Ego, o Eu, o Ser Pessoal
com o fenômeno da percepção e da consciência. Locke decerto dá
o exemplo... Ele confunde identidade pessoal com a consciência
dela” (p. 158). Se essa declaração não for de todo falsa, é pelo
menos estranhamente confusa. Não se pode ver a visão de Locke
em sua inteireza sem levar em conta sua teoria de substância.

O termo substância tem desempenhado tal papel importante na


história da teologia que uma ou duas observações preliminares são
necessárias antes de se examinar o seu uso em Locke. Primeiro,
até onde o português ordinário vai, ela é uma palavra perfeitamente
boa e útil com um significado reconhecível. Por exemplo, um
Presidente recém-eleito profere o discurso inaugural e, de forma
amigável, os jornais dão a substância do discurso, se eles não
tentam imprimi-lo por completo. Isto é, eles reportarão as ideias
principais da mensagem. Mas isso está removido do uso filosófico e
teológico. Agora ouçam Locke.

“Mas por que ouvir Locke?”, alguém perguntará; estamos


interessados em teologia e nos Pais da Igreja, não em filosofia
britânica. Bem, há uma resposta simples para a questão natural, na
verdade duas. A primeira é que Locke estava interessado em
teologia e escreveu sobre o assunto. A segunda e mais importante
resposta é que Locke dá um relato detalhado do que é substância e
como os seres humanos chegaram ao seu conceito. Isso é o que os
Pais da Igreja deveriam ter feito, mas não fizeram.16 Portanto,
novamente, ouçamos Locke.

Uma das passagens mais pertinentes sobre substância ocorre no


Livro II, xxiii, 1-5 de seu Essay Concerning Human Understanding.
A passagem começa com as ideias simples de sensação (e
reflexão) tais como vermelho, ruidoso, áspero, etc., sobre as quais
todo o conhecimento está fundamentado. Para citar:

A mente sendo... fornecida com um grande número das ideias


simples [vermelho, verde, duro, suave, etc.] transmitida pelas
sensações, como elas são encontradas em coisas exteriores, ou pela
reflexão sobre suas próprias operações, observe, também, que
certo numero dessas ideias simples vão constantemente juntas; o
que é presumido pertencer a uma coisa... são chamadas... pelo
nome... porque... não imaginando como essas ideias simples
podem subsistir por si mesmas, somos acostumados a supor algum
substrato em que elas subsistem... que, portanto, chamamos de
substância.

[Se] alguém examinasse com respeito a sua noção de substância


pura em geral, descobriria que não possui dela nenhuma outra
ideia, excetuando apenas a suposição de não saber o que ... A
ideia... a qual damos o nome geral de substância [é] nada senão o

16Os Pais da Igreja não o fizeram; mas alguns filósofos do século quatroze sim, e.g., Nicholas
de Autrecourt. Veja Medieval Philosophy de F. C. Copleston (Methuen, 1952; Harper, 1961, pp.
141-145).
suposto, mas desconhecido, suporte daquelas qualidades que
descobrirmos existir, as quais imaginamos que não podemos
subsistir sine re substante, “sem algo para suportá-las...”

A mesma coisa acontece com respeito às operações da mente, isto


é, pensamento, raciocínio, medo, etc., as quais nós, concluindo não
subsistirem de si mesmas... somos aptos a pensar dessas ações de
[não corpos, mas] alguma outra substância, que chamamos
espírito... uma substância na qual o pensamento, o conhecimento, o
duvidar... subsiste, temos tão clara uma noção da substância como
temos do corpo... (com igual ignorância do que ele é) o substrato
daquelas operações que experimentamos dentro de nós mesmos.

Sem dúvida Locke era frequentemente inconsistente. Por


conseguinte, duas críticas podem ser corretas, embora seus relatos
sejam conflitantes. Se eles não podem escrever volumes extensos
discutindo cada detalhe menor, cada um deve, com
reconhecimentos apropriados, escolher a interpretação que ele
pensar ser melhor e não importunar seus alunos com material muito
difícil para estudantes graduados. Além do mais, não é o objetivo
deste estudo traçar a história da filosofia moderna. O objetivo é
reunir sugestões a partir de qualquer fonte, o bom Bispo Berkeley
ou o anti-cristão Hume, que ajudarão na formulação de uma
cristologia mais completa do que a igreja tem conhecido até aqui.
Uma conclusão já tem sido traçada, e será agarrada pelo material
roubado de Locke. A conclusão é: O termo substância deve ser
totalmente descartado.
Para um argumento menos erudito contra a substância, um que
possa ser utilizado com teólogos que conhecem pouca filosofia, ou
mais apropriadamente um que possa ser direcionado contra
aqueles que pararam de estudar quando deixaram o seminário, é
possível fazer umas poucas perguntar não muito profundas.
Qualquer objeto pequeno servirá como uma ilustração: uma bola de
baseball, um cachorro; um livro, ou um frasco de tinta. A questão é:
A substância de uma bola de baseball é esférica? A substância do
cachorro é latir? A substância de um livro é 6 x 11 x 2? A substância
da tinta é preta ou líquida? A resposta a essas perguntas, se
estamos falando de teologia e não do discurso inaugural, é a última
frase do parágrafo anterior: “O termo substância deve ser
totalmente descartado”.

Embora alguns historiadores, de modo mais específico, neguem


que o Ego de Locke fosse uma substância, poderia ser tanto uma
pessoa pequena sem uma substância espiritual como um objeto
estendido sem sua substância material. Alguma das fraseologias
em II, xxvii, 9 é:

Para descobrir do que as identidades pessoais consistem, devemos


considerar o que [a palavra] pessoa significa para... um ser
inteligente pensante... Por essas [nossas sensações presentes] todo
mundo é para si mesmo o que ele chama de eu, não sendo
considerado... se o mesmo eu é continuado na mesma ou diversas
substâncias... A consciência sempre acompanha o pensamento, e
ela é o que faz todo mundo ser o que ele chama de eu...

Essa página é tão confusa quanto qualquer outro autor poderia


produzir. Sua última frase não é o seu pior erro, mas é sintomática.
“A consciência sempre acompanha o pensamento”, ele diz. Ele fala
de duas coisas que se acompanham; mas elas não são duas
coisas, antes o pensamento é uma forma de consciência. Além do
mais, se esse par singular é o eu, a teoria se aproxima da de Hume,
que será discutida uma ou duas páginas mais adiante, a saber, o
‘eu’ é a coleção de ideias. A passagem citada também implica que
essa coleção de ideias pode saltar de uma substância para outra.
Para um empirista, isso é muito peculiar. Se a substância é
incognoscível, algo que sei que não é, como Locke sabe que seu
‘eu’ deu o salto?

O próximo parágrafo, contudo, Seção Dez, intitulado “A Consciência


faz a Identidade Pessoal”, modifica o precedente. Ele diz,

É adicionalmente inquirido se ele [o antecedente de ele tem


de ser o eu, a coleção de sensações, no parágrafo nove] é a
mesma substância idêntica. Isso, poucos pensariam que eles
tinham razões para duvidar, [embora o esquecimento e o
sono levantem dúvidas]... se somos a mesma coisa pensando,
isto é, a mesma substância, ou não... Pois é ser a mesma
consciência que faz com que um homem seja ele mesmo para
si mesmo, a identidade pessoal depende disso somente, seja
anexada somente a substância de um indivíduo, ou possa ser
continuada numa sucessão de substâncias diversas (II, xxvii,
10).

O que deveria ser claro, mas que Lock não ousa admitir, é que o
empirismo, se ele inclui substância, possivelmente não pode
responder essas questões. Se então alguém deseja permanecer um
empirista, deve se dirigir a Hume.
Contudo, antes de começarmos a examinar a visão de Hume de
que a mente, o Ego, ou pessoa é precisamente o complexo de
“impressões e ideias”, a conclusão dogmática brusca de Powell
deveria ser de algum pequeno interesse: “O veredito do senso
comum da humanidade é que dentro de nós existe um Ego, ou Eu,
ou Ser Pessoal distinguível de todas nossas percepções e
sentimentos” (p. 166). Alguém então pode se lembrar que o senso
comum da humanidade por séculos sustentou que a terra era
achatada. Para continuar: “As tentativas de destruir... esse veredito
geral simplesmente recua para aqueles que as fazem”.

O Dogmatismo! O próprio Powell é forçado a admitir, “A


Consciência testifica a existência de um Ego, um Eu, dentro de
nós”. Hume certamente insistira que a consciência não testifica.
Uma pessoa é consciente de percepções, ideias e conceitos. E até
mesmo Powell nessa próxima linha reconhece, “mas quando
perguntamos adicionalmente: O que é esse Eu? O que é
Personalidade? Nenhuma resposta se apresenta” (p. 169). Ao que
parece o senso comum (p. 166) e a consciência (p. 169)
contradizem um ao outro. Portanto, vamos acabar com o senso
comum e tentar usar a inteligência incomum.

A dificuldade mais penetrante e importuna que pragueja todo esse


assunto é a deficiência na definição. Os substantivos (não
conceitos) cruciais são ambíguos, ou realmente sem significado. Na
página 149 Powell declara: “O ponto principal que foi estabelecido
com respeito tanto ao Espírito Santo como a... Encarnação, foi que
uma diferença real tinha de ser reconhecida entre essência, ou
natureza, e personalidade. Se não há tal diferença real, então a
concepção sabeliana de Deus deve ser verdadeira”. O leitor deve
ser lembrar que o Sabelianismo é a teoria de uma trindade
Unitariana Modal.

Agora, se essência significa definição, que é o seu único significado


apropriado, é difícil ver como definir o Pai para incluir
personalidade, evita que alguém inclua personalidade numa
definição de certa forma diferente do Filho. O argumento de Powell
implica que todos os indivíduos humanos são um indivíduo porque
cada um deles é uma pessoa.

Powell vai mais adiante. Continuando na página 149 ele argumenta,


ou antes, afirma, “se não há distinção entre pessoa e natureza
[natureza, ele tinha previamente identificado com essência], parece
resultar que não poderia haver nenhuma separação em nosso
Senhor Encarnado entre sua Divindade e sua humanidade, em cujo
caso ele não poderia ter sido realmente homem, como nós somos”.

Em primeiro lugar, contudo, de acordo com a doutrina ortodoxa,


Cristo era de fato homem como nós somos, pois nós somos
pessoas e Cristo era apenas uma “natureza”. Em segundo lugar,
Powell quer definir pessoa duma forma e natureza de outra, embora
antes ele tivesse identificado natureza com essência, ou definição.
Como isso evita que separemos a divindade da humanidade, como
ele diz que o faz, não está de forma alguma claro. As definições são
explicitamente diferentes. Condense seu argumento: A menos que
pessoa e natureza sejam distintas, a definição de divindade é a
exata definição de humanidade.
Se o leitor está cansado de tais confusões, assim está também o
escritor. Retornaremos, portanto, como prometido, a David Hume.

Decerto, Hume foi um empirista britânico e, portanto, consideramos


sua filosofia inaceitável. Todavia, pode ser possível ajustar sua
visão do ‘eu’ para alguma forma de apriorismo. Se tivermos
sucesso, obteremos um grande ganho. Mas por ora, tomemos
Hume assim como ele é. Assim como ele é? Powell deseja
sustentar que Hume, em publicações posteriores, fez certas
retratações. A declaração é: “Ele escreveu, algum tempo depois da
publicação de seu Tratado da Natureza Humana [Treatise of Human
Nature] um apêndice para ele. Ele é da natureza de uma
retratação”. Isso, creio, é de certa forma um exagero.17

O Apêndice como um todo, e a última parte dele, à qual Powell se


refere, descreve várias dificuldades que Hume teve que enfrentar,
mas que naquele momento ele ainda não poderia explicar. Antes do
que uma retratação, ela é mais um programa para estudo adicional.
No caso, um leitor poderia concluir que todas as referências de
Hume causam e questionam sua teoria original. De fato, não há
razão para supor que Hume quer dizer causa em qualquer outro
lugar do que no anteriormente atribuído a ele.

O ponto de partida de Hume não é a mente branca imaginária de


Locke. São “impressões”, ou o que ordinariamente chamaríamos de
sensações simples. Essas são seguidas por “pensamentos ou

17 Compare Fuller e MacMurrin, A History of Philosophy, terceira edição, pp. 363, 364, ou
alguma outra história padrão de filosofia (moderna).
ideias”, a qual a psicologia moderna provavelmente chamaria de
imagens. As duas são distintas pela grande vivacidade da primeira.
Essa distinção, contudo, não é tão evidente porque “aquela ideia de
vermelho, que formamos no escuro, e cuja impressão, que ataca
nossos olhos na luz do sol, difere somente em grau, não em
natureza. [De fato,] quando fecho meus olhos e penso no meu
quarto, as ideias que formo são exatas [!] representações das
impressões que sinto; nem há qualquer circunstância de uma, que
não seja encontrada na outra” (Tratado da Natureza Humana, I, i,
1).

Esse não é o lugar mais conveniente para mencionar o gênio


psicologista, Francis Galton. Através de um extenso questionário,
enviado para um grande número de pessoas bem instruídas —
professores de universidades, homens letrados, homens com altas
posições no governo, cientistas — ele descobriu que muitos deles
não tinham memória de imagens de forma alguma. Um deles
relatou que ele sempre tinha considerado tal linguagem como
meramente figurativa. Assim, Galton coletou abundante evidência
empírica para mostrar a falsidade, não somente da reivindicação
extrema de Hume de imagens corretas, mas de todas as imagens.
Assim, a filosofia de Hume se desintegra numa refutação ad
hominem. Todavia, muitos, tais como Bertrand Russel, embora
empiristas, ainda insistem na universalidade das imagens. O
problema é que esses empiristas não têm para onde ir, exceto para
suas próprias experiências privadas.

Eles não têm nenhum conhecimento da mente de outra pessoa. A


indução empírica deles é: “Isso é como eu penso; portanto, todas as
outras pessoas pensam da mesma forma”. O presente escritor não
está ciente de quaisquer imagens de forma alguma, em especial de
um vermelho igualmente brilhante na luz do sol e na sombra escura.
Se Hume e Russel tentassem descrever minha mente por completo,
estaria disposto a admitir que eles têm imagens. Mas eu nego
vigorosamente que todo conhecimento dependa delas.

Agora, de acordo com Locke, após combinar várias impressões


simples numa coisa e de modo similar produzir outras coisas, a
mente começa a atividade de abstrair, pela qual são formadas
ideias gerais, e então mais gerais, até que o mais alto grau de
abstração seja alcançado em “algo que não sabemos o que é”.
Hume aboliu todas as ideias abstratas, mesmo as menores. Ele
estendeu seu argumento a uma extensão maior do que a citação
favorece; mas no Livro I, Seção vii, há frases tais como estas:

Em terceiro lugar, esse é um princípio geralmente aceito na


filosofia, que tudo na natureza é individual, e que é ridículo supor
um triângulo realmente existente [um grau menor de abstração]
que não tem proporção precisa de lados e ângulos... É impossível
formar uma ideia de um objeto, que é possuído de quantidade e
qualidade e, todavia, é possuído de nenhum grau preciso de
ambos... Ideias abstratas são, portanto, em si mesmas
individuais... A imagem na mente é somente aquela de um objeto
particular.

E não abstrata no sentido que Locke e outros tinham usado o


termo.
Obviamente isso se relaciona com a natureza do Eu. Mais uma vez
as citações devem ser resumidas, mas o estudante pode consultar
o Livro I, Parte iv, Seção vi.

Há alguns filósofos que imaginam que somos, a cada momento,


intimamente conscientes do que chamamos nosso ‘EU’... A
sensação mais forte, a paixão mais violenta, ... apenas a fixa com
mais intensidade... Por azar, todas essas afirmações positivas são
contrárias a essa própria experiência, que é defendida por eles,
nem temos qualquer ideia do ‘eu’ segundo a maneira que ela é
explicada aqui. De qual impressão essa ideia pode ser derivada? É
impossível responder essa questão sem uma manifesta contradição
e absurdo... Ela deve ser alguma impressão, que surge a cada ideia
real. Mas o ‘eu’ ou a ‘pessoa’ não é alguma impressão, mas aquilo
a que nossas diversas impressões e ideias deveriam ter uma
referência. Se alguma impressão suscita a ideia do eu, essa
impressão deve permanecer sempre a mesma... Mas não há
nenhuma impressão constante e invariável... Consequentemente,
essa ideia não existe.

Hume continua afirmando que percepções “não tem necessidade de


qualquer coisa para suportar sua existência”. Qualquer tentativa de
distinguir o ‘eu’ termina “sobre alguma percepção particular ou
outra... Eu nunca posso capturar o meu eu em qualquer momento
sem uma percepção, e nunca posso observar algo sem a
percepção”. Os seres humanos, portanto, “não são nada senão um
pacote ou coleção de diferentes percepções... A mente é um tipo de
teatro, onde várias percepções fazem sua aparição... A comparação
do teatro não deve nos enganar. Elas são percepções sucessivas
apenas, que constituem a mente...”.

Não importa quão convincente o argumentum ad hominem de


Galton possa ser, há outra refutação, absolutamente básica e fatal.
Hume, como Locke, devem combinar impressões, (sensações) e
suas imagens para produzir coisas. Uma árvore não é apenas
verde, ela é também marrom, dura, alta, e talvez com um odor
suave. Tudo isso deve ser combinado. Mas ao mesmo tempo
podemos também ter as impressões da umidade de Abril, uma
sensação fria do nordeste, e várias cinzas nebulosas numa
configuração semelhante à de uma ovelha. Com talvez duas ou três
dúzias de impressões ao mesmo tempo, como é possível selecionar
seis e chamá-la de árvore? Por que não selecionar o cinza, o duro,
o suave, e chamá-la de algum outro nome?

Agora, há duas formas de fazer isso. Nas ilustrações acima todas


as impressões da árvore e da umidade de Abril ocorreram ao
mesmo tempo. Algumas outras ilustrações envolveriam tempos
diferentes, mas pelo menos essa passa por ora. Além do mais, na
ilustração acima, todas as impressões são necessárias para compor
uma árvore e ocorrer praticamente no mesmo lugar. O cinza estava
a metros de distância. Agora, se o esquema de Hume falha nessa
simplicidade de situação, claramente ele não pode tratar com os
casos muito mais numerosos onde o espaço e o tempo são mais
distantes. De qualquer forma, para compor uma árvore, uma pessoa
deve fazer uso do tempo e espaço.
Mas tempo e espaço não podem ser vistos, cheirados ou tocados.
Eles não são impressões simples tais como verde e duro. Por essa
razão, tanto Berkeley com Hume falam nessas ideias como ideias
de comparação entre coisas. Mas se é assim, uma pessoa deve ter
as coisas antes que ela possa produzir a ideia da relação; e o
problema é que ela deve ter as relações antes que ela possa
produzir as coisas. O Empirismo falha no próprio princípio. Ele
clandestinamente fornece sua mente branca desmobiliada com
espaço e tempo para começar e então manufaturá-las num estágio
posterior no processo de aprendizagem. Conclusão: Insista sobre a
mente branca, e o aprendizado nunca começará.

Isso nos traz para o apriorismo de Immanuel Kant. Para tornar o


conhecimento possível, ele fornece a mente com duas séries de
fatores a priori. Uma série é as duas intuições de espaço e tempo
para tornar a percepção possível; a segunda é as doze categorias
do entendimento para tornar o pensamento possível.

Com o desastre de Hume diante de nós, é desnecessário dizer


muito sobre espaço e tempo. Citemos meramente duas das
sentenças de Kant: “O espaço é uma representação a priori
necessária que serve para o fundamento de todas as intuições
externas. O espaço não é nenhuma discussão ou... conceito geral
das relações de coisas, mas uma pura intuição” (Adicker, editor, pp.
72, 73).

É necessário ser dito mais sobre as Categorias ou Concepções


Puras do Entendimento, pois Hume nada oferece para antecipá-las.
Observando seu próprio processo mental, Kant percebe que está
usando formas lógicas que o empirismo não pode produzir. O
exame adicional lhe revelou uma lógica transcendental. Essa lógica
foi removida para ser baseada em suas doze categorias a priori,
das quais a unidade, pluralidade, causalidade e necessidade são
exemplos. Assim como as intenções puras tornam a percepção
impossível, assim somente por meio dessas categorias se pode
pensar.

Nem as intuições somente nem as categorias somente fornecem


conhecimento. Ambas são necessárias. As categorias sem
intuições necessárias são vazias, e intuições sem categorias são
cegas. Por esta razão, todos os argumentos para provar a
existência de Deus são falaciosos, porque eles não têm nenhum
conteúdo sensorial. Toda causa é o efeito de uma causa anterior.
Não pode haver uma causa primeira. É estranho como três
apologistas recentes propõem uma defesa kantiana, isto é, causal,
da existência de Deus. Impossível. Deus, liberdade e imortalidade
são apenas princípios heurísticos. O conhecimento sempre deve ter
um conteúdo sensorial e a natureza é completamente mecanicista.
Muito para Kant. Eu diria, em vista de sua grande importância, tão
pouco para Kant.

Para o alívio dos leitores esse sumário de filosofia terminará com


umas poucas linhas sobre Hegel. Após Hegel veio o positivismo
lógico, do qual nem a menor pista útil sobre teologia pode ser
encontrada. Quanto a Hegel, segundo Kant, podemos dizer que ele
reintegrou algum tipo de religião. Não que ela tenha sido de alguma
grande ajuda para o Cristianismo, pois ela foi a iniciação do
modernismo. Contudo, ele fez um bom parágrafo conclusivo, pois
como Platão, ele faz conceitos, não proposições, os objetos do
conhecimento. O presente tratado continuará com verdades, que
são proposições. Seis, justiça, gravidade, gato e beleza não
fornecem nenhum conhecimento. Mas “seis é mais do que cinco”, “a
gravidade foi inventada por Sir Issac Newton”, e “gatos são belos”
deve ser verdadeiro ou falso. Os objetos do conhecimento são
sempre proposições.18

O jovem teólogo, recém-graduado na faculdade, onde se


especializou em inglês — um assunto bom o suficiente para usar na
preparação de sermões — e talvez ainda mais do que o velho
professor de seminário agora coloca em seus caminhos, pode estar
convencido de que vagamos demais no assunto da Encarnação.
Cristo simplesmente se retirou da nossa visão. Para desiludir essas
almas atormentadas, algumas referências bíblicas muito explícitas
mostrarão quão próximas à teologia estão todas essas discussões.
Na verdade, isso foi evidenciado com muita clareza nas reações
sobre Hume e Kant.

Contudo há outros itens, de maior ou menor importância, onde a


filosofia e a teologia se sobrepõem. Ou talvez deveríamos dizer que
esses itens básicos aparecem nas formas menos técnicas, mais
populares, nos livros de postura menos acadêmica. Esses livros
podem ser romances ou devocionais. Um exemplo do último é o
Catecismo de Crianças. Em sua linguagem simples ele pergunta:
“Quem é Deus?”. A resposta é: “Deus é um espírito e não tem um
corpo como os homens”. Ele não tem olhos com retinas, embora a

18Aquilo que se propõe; sugestão que se faz acerca de alguma coisa; proposta: negamos a
proposição do juiz. O que se afirma, se diz, se escreve; afirmação. Ato de submeter a
apreciação ou a exame.
Bíblia entrega-se à linguagem figurativa de que os olhos do Senhor
estão de um lado para o outro em todo o mundo sobre pés de um
esquilo. Menos figurativa é a frase: “Tu, Deus, me vês”. Então
também Deus não tem tímpanos, mas ele “ouve” nossas orações.
Ele não tem nariz, embora ele “sinta” o odor suave dos sacrifícios
do Antigo Testamento. Ou, em geral, ele não tem percepção geral
de forma alguma. Agora, se a verdade consiste de combinações de
vermelho e azul, duro e suave, áspero e macio, Deus não pode
conhecer nenhuma verdade. Bem, ele pode conhecer geometria,
pois seus objetos são invisíveis. Mas como um humano empirista
poderia conhecer geometria? Um ponto não tem dimensões e uma
linha não tem largura. Se então Deus é onisciente, se ele conhece
tudo, então as experiências sensoriais não podem ser a base do
conhecimento. Deus conhece toda verdade, e nenhuma delas
depende de órgãos corporais. Ou esses empiristas e neo-kantianos
pensam que nós conhecemos muitas coisas das quais Deus é
ignorante?

Há outra referência bíblica pertinente. Moisés viveu


aproximadamente 1500 anos antes de Cristo. Ele morreu no topo
de uma montanha e Deus enterrou seu corpo. Mas ele foi para o
céu. Durante o tempo de vida de Cristo, Moisés apareceu no Monte
da Transfiguração e discutiu refulgente a doutrina da Expiação com
o Cristo. Cristo podia ter seu corpo normal, rodeado por luz. Mas
Moisés não tinha nenhum corpo, pois a ressureição do corpo ainda
é futura. Seu conhecimento dificilmente poderia ter sido o que ele
aprendeu 1500 anos antes. Sem um corpo ele tinha aprendido,
ninguém sabe quanto, mas muito mais do que ele previamente tinha
aprendido, sem pelo menos a mistura de olhos, ouvidos, nariz e
garganta.

Há outra passagem — sem dúvida há várias — que é digna de ser


inserida aqui. Numa ocasião Paulo foi levado ao terceiro céu. Ele
não sabe se ele estava em seu corpo ou fora de seu corpo. Afinal,
seu corpo era somente uma casa ou tabernáculo onde ele
usualmente vivia. Nesse terceiro céu Deus revelou certas coisas
para ele, que, apesar de tudo, Deus ordenou que ele não revelasse
às pessoas na terra. O próprio Paulo, portanto, era distinto de seu
corpo, e as verdades que ele aprendeu não tinham nenhuma base
em puro empirismo ou combinação kantiana.

Esse material escriturístico deveria ser suficiente para responder


àqueles que pensam que o tratado se afastou da esfera bíblica. O
objetivo em discutir Locke e Hume é aprender a partir de nossos
inimigos, e algumas vezes aprender lições valiosas. Deveria ser
claro que o presente escritor não tem intenção de construir uma
pessoa de Cristo, ou qualquer outra pessoa, a partir de sensações.
De fato, de certa forma guardando a visão de outro anti-cristão
vigoroso, o brilhante professor de Yale, Brand Blanshard, que
concedeu que bebês, pelo menos nos primeiros meses de suas
vidas, têm sensações, embora nenhum mais tarde, mas mais em
aguardando Agostinho,19 que negou que alguém em algum tempo

19Primeiro, veja meu artigo “Plotinus’ Theory of Sensation” (The Philosophical Review, Julho de
1942). Para Agostinho, que a modificou, a sensação não é uma ação do corpo e da alma, mas
antes uma modificação do corpo e da alma. A ação está inteiramente na alma. O corpo não
pode afetar a alma, pois nenhum objeto inferior pode afetar algum objeto superior. Um dos
exemplos de Agostinho é que o ar em movimento não produz nenhum efeito sobre a alma. A
sensação é, portanto, a atividade da alma em governar o corpo. De fato, a assim chamada
sensação já é um ato de pensamento. Agostinho interessantemente analisa nosso “ouvir” de
uma linha de música ou poesia. Essa não é tanto uma questão de ouvir quanto de memória.
Uma linha tem ritmo, para perceber o qual devemos lembrar a primeira barreira ou sílaba da
tenha uma sensação como a palavra é usada coloquialmente hoje,
esse tratado manterá que não existem tais coisas.

Essa seção cinco deveria descrever o século XIX, mas parece ter
recuado ao século V e tocado o XX. Nós repararemos isso, mas
talvez mais do que reparar, concluiremos o século XIX com um
relato de Charles Hodge.

Não é qualquer exagero dizer que a exposição e defesa de Charles


Hodge da teoria de Westminster sobre a Encarnação, no Volume II,
pp. 378 em diante de sua Teologia Sistemática (184), é a discussão
mais ponderada e mais vigorosamente expressa do assunto já
completada desde 451 d.C. Talvez um pouco contundente também.
Mas corrige a maioria dos defeitos evidentes nesses cerca de 1500
anos. Ele define seus termos. A definição não garante a
concordância. Contudo, se consistente, ela torna o assunto
compreensível.

Hodge começa definindo substância. Na história anterior, o termo


substância geralmente não tinha sentido. Locke o definiu como
“algo que eu não sei o que é”, pela qual somos advertidos que nem
todas as definições são úteis. A definição de Hodge pelo menos soa
melhor. Na página 378 ele afirma: “Por substância, entende-se
aquilo que existe... É aquilo que continua e permanece imutável sob
todos os diferentes fenômenos dos quais pode ser o sujeito... Esse

medida que o fim se aproxima. Não há nenhum ritmo num simples som. Até mesmo uma
simples sílaba toma tempo e, portanto, requer memória, e a memória é mais intelectual do que
a mera sensação. Supor que um corpo pode afetar a alma é como dizer que Aldebarã feriu o
Deus Sírio e o lançou em Las Vegas.
é o primeiro fato universalmente admitido com respeito à
constituição de nossa natureza”.

Essa tentativa de definir substância não é isenta de dificuldades. Se


a primeira frase citada tem algum status independente — como
parece ter — então um sonho é uma substância, pois um sonho é.
Mas se um sonho não é uma substância, a primeira frase de Hodge
é inútil. Isso se aplica não apenas a sonhos, mas ao teorema de
Pitágoras e um caso de difteria. Hodge cometeu o erro muito
comum de usar o verbo ser de outra forma que não uma ligação.

A segunda frase citada apresenta um problema diferente. Alguém


deve perguntar: “Existe alguma coisa — exceto Deus — que não
mude? Talvez o número dois nunca mude, embora o sistema de
números tenha frequentemente mudado. É o número dois, então,
uma realidade imutável incorporada numa matemática em
constante desenvolvimento? As palavras da definição são
facilmente entendidas, mas elas se aplicam a algo, e em particular a
algo no ‘ser’ nascido e em crescimento de Jesus?

A última frase citada é simplesmente falsa. Decerto Hodge não


poderia ter previsto o behaviorismo do século vinte, mas ele deveria
ter conhecido sobre Heráclito, Protágoras, e acima de tudo
Carneades, Arnesidemus e Sextus Empiricus.

Na mesma página Hodge adiciona: “Alma e corpo constituem um


indivíduo, ou pessoa humana”. Mas a Escritura contradiz essa frase
de forma explícita diversas vezes. Lembre-se que Paulo numa
ocasião deixou o corpo por um tempo, todavia, ele continuou sendo
o mesmo. Moisés, a pessoa, seu corpo desintegrado há 1500 anos,
falou com Cristo no Monte da Transfiguração. O próprio Jesus e o
ladrão na cruz, com seus corpos sepultados, entraram no paraíso
naquele anoitecer. Como Hodge pode ter esquecido tanto a
Escritura? A resposta a essa questão, como me parece, é que ele
foi controlado epistemologicamente pela filosofia escocesa do
“Senso Comum”. Ele se sentiu compelido a ajustar a revelação
divina a um dos tipos mais incompetentes de filosofia na história do
assunto.

Continuando a insistir que alma e corpo constituem um homem


individual, Hodge novamente contradiz as Escrituras ao adicionar
que “a união não é uma mera habitação... A alma não habita no
corpo como um homem habita numa casa...” (p.378-379). Essa
afirmação escapa da falsidade formal, pois ela é uma metáfora e
não uma explicação de como se aplica. Um leão, por exemplo, pode
representar beleza, força ou ferocidade. O Messias que viria foi
chamado de leão da tribo de Judá, e Satanás como um leão
procurando a quem pudesse devorar. Hodge rejeita a comparação
“como um homem habita numa casa”. Todavia, a comparação é
bíblica. Paulo usou a figura de linguagem de que este corpo era seu
tabernáculo, mas ele não disse que sua casa tinha uma cozinha,
sala de jantar e sala de estudo. Assim, em certos aspectos Hodge
pode dizer “a alma não habita no corpo como um homem habita
numa casa”. Mas em outro aspecto, Paulo em 2 Coríntios 5.1 diz:
“Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo
se desfizer... temos de Deus... uma casa... eterna, nos céus”. Paulo
então implica, e Agostinho enfatiza, a visão de que o corpo é uma
ferramenta que a alma usa. Mas, não iremos chamá-la de formão.
Chegando perto de uma descrição da Encarnação, Hodge na
página 381 diz: “Tais elementos, um verdadeiro corpo e uma alma
racional, constituem uma natureza humana perfeita, completa, e
assim fica demonstrado que ela faz parte da composição da pessoa
de Cristo”.

Agora, na minha opinião, deveria ser muito mais enfatizado do que


os teólogos estão acostumados a fazer, que Jesus tinha uma alma
racional. Como ele surpreendeu os sábios mestres quando tinha
doze anos de idade! Mas isso prova, como Hodge diz, que a
natureza humana completa de Jesus “entrou na composição da
pessoa de Cristo”? Definitivamente não. O Credo da Calcedônia diz
“inconfundivelmente, imutavelmente... o caráter próprio de cada
uma das naturezas foi preservado”. A pessoa de Cristo era divina, e
as limitações de um garoto de doze anos não podem ser elementos
que compõem a Segunda Pessoa da Trindade. A Segunda Pessoa,
sendo eterna e imutável, não mudou nem um pouco como resultado
da Encarnação. Isso é particularmente evidente na posição básica
de Hodge, pois ele insiste que há somente uma Pessoa, e ela é
Deus. Como pode o esforço de um garoto para aprender, não
importa o quão brilhante, ser um atributo ou atividade da Deidade?
Jesus era ignorante de muitas coisas quando ele questionou os
fariseus. Mas ignorância, repetindo, não é um atributo divino.

Hodge definiu substância na página 378. Então, na página 387, ele


adiciona “por natureza, neste contexto, se quer dizer substância...
onde os atributos são incompatíveis, as substâncias devem ser
diferentes e distintas”. Aqui, Hodge faz substância e natureza
idênticas. Um resultado disso é fazer Jesus Cristo duas
substâncias, e uma dessas substâncias é a natureza humana de
Cristo. Mas se isto é assim, o homem Cristo Jesus é tão humano
quanto qualquer pessoa é. A próxima frase corrobora isto: “atributos
não podem existir distintos e separados da substância”. Se é assim,
substância, natureza e atributos são idênticos em significado. Ele
baseia sua conclusão na premissa de que “caso contrário, poderia
haver extensão sem nada estendido”. Mas isto é precisamente o
que o espaço é. É claro, nos dias de Hodge, supunha-se que luz
era um movimento de onda de um meio universal. Mas agora, esse
meio evaporou e o espaço vazio permanece, deixando os cientistas
intrigados com o que a luz é. Se, agora, substância, natureza, e
atributos caracterizam o homem Cristo Jesus, diferentes
substâncias, natureza e atributos caracterizam o Logos. Quando ele
adiciona, na mesma página e a seguir, que o “seu Filho [foi]
revestido... com uma alma... ele era um homem verdadeiro”, é difícil
negar que ele era uma pessoa humana. Natureza, mais atributos,
mais substância, mais alma não fazem uma pessoa? Hodge parece
implicar isso, pois ele adiciona que Cristo era “não um complexo de
propriedades sem substância da humanidade”. Também: “duas
naturezas ou substâncias distintas”. Assumindo isso, que a Pessoa
que caminhou de Jerusalém à Galiléia eram duas substâncias,
como ele poderia ser somente uma pessoa, como Hodge sustentara
anteriormente?

Então Hodge continua na mesma linha: “Como a inteligência, a


sensibilidade e a vontade são propriedades da alma humana...
segue-se que a alma humana de Cristo reteve inteligência,
sensibilidade e vontade” (p.389). Além disso, uma vez que Jesus
tinha “duas vontades” (p.390), como ele não poderia ser uma
pessoa humana?

Mas, a despeito dessas implicações óbvias, de fato asserções


óbvias, como alguém pode de forma consistente continuar como se
segue? “Foi uma pessoa divina, não apenas uma natureza divina, a
que assumiu a humanidade, ou a que encarnou”. Sim, certamente,
de fato e repetido.

Portanto [supostamente uma conclusão lógica] segue-se que a


natureza humana [natureza e substância são sinônimos] de Cristo,
considerada à parte, é impessoal. [Jesus não era realmente um
homem porque todos os homens são pessoais.] A isso, aliás, se
objeta que a inteligência e a vontade constituem personalidade, e
que enquanto estas pertencem à natureza [e substância] humana
de Cristo, não se pode negar personalidade a ela. Não obstante,
uma pessoa é um suppositum intelligens [claro!], porém a natureza
humana de Cristo não é um suppositum ou subsistência [como todo
mundo sabe]... Portanto, a natureza humana, ainda que dotada de
inteligência e vontade, pode ser, e de fato o é na pessoa de Cristo,
impessoal.

Então, finalmente “a união das naturezas... não é uma habitação,


nem um simples controle da natureza divina sobre as operações da
humana, mas uma união pessoal” (p.391,392). Isto é, o Jesus
impessoal forma uma união pessoal como o Logos pessoal.

Este escritor não acha que estas críticas à Hodge sejam de forma
alguma exageradas, mas há mais para dizer. Hodge continua sua
exposição com uma extensa exegese das Escrituras. Seu uso do
material escriturístico é magistral, e muitas vezes, mas nem
sempre, são encontrados argumentos aparentemente
incontestáveis.

Ainda assim, um exame mais próximo revela certas falhas. Por


exemplo, na página 383 lemos que “a natureza humana nunca se
distingue da divina como pessoa distinta. O Filho de Deus nunca se
dirige ao Filho do Homem como uma pessoa diferente dele
mesmo”. Estas duas sentenças implicam que, se Cristo tivesse sido
duas pessoas, os Evangelhos teriam registrado conversações entre
elas. Nenhuma é registada, portanto a natureza humana de Cristo é
impessoal. Isto é um erro lógico embaraçoso. Primeiramente, o
apóstolo João conclui o seu Evangelho dizendo “Há, porém, ainda
muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse
escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros
que se escrevessem”. O argumento de Hodge é baseado no
silêncio. Por esta razão, podemos dizer que talvez o Logos e Jesus
tiveram algum tipo de conversação. Ou é possível que nenhuma
conversação fosse necessária: o Logos era onisciente e não era
prerrogativa de Jesus saber tudo – a data de sua volta, por
exemplo. Além disso, mesmo que não houve “conversação”, vieram
da boca de Jesus pelo menos algumas afirmações que o homem
Cristo Jesus por si mesmo nunca poderia ter dito. Portanto o
argumento de Hodge ignora a Escritura e viola a lógica.

Outro exemplo, seja de má lógica ou, o que é o mesmo, de omissão


de premissas, ocorre na página 384, em que Hodge enumera dez
pontos do primeiro capítulo de João e então retira uma conclusão
irrelevante. Em suma, (1) João ensina que o Logos existia na
eternidade; (3) que Ele era Deus; (9) Ele se fez carne, i.e., assumiu
nossa natureza... “Aqui temos toda a doutrina da encarnação,
ensinada nos termos mais explícitos”. Toda a doutrina? Em termos
explícitos? A doutrina toda da Encarnação não inclui o nascimento
virginal? E mais, se o ponto 9 pretende ser exaustivo, significando a
natureza como distinta da personalidade, insere uma ideia, que
mesmo sendo verdadeira, não pode ser derivada do texto.

Outro exemplo depende da tradução errônea do grego. Lê-se que


“Em Romanos 1.2-5, o Apóstolo diz que o Evangelho trata do...
nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no tocante à natureza divina,
kata sarka, é o Filho de Davi, porém, no tocante à natureza divina,
kata pneuma, é o Filho de Deus. Aqui também se anunciam
claramente as duas naturezas e personalidade única do Redentor”
(p.385). O problema é que sarka não quer dizer natureza, e nem
pneuma. O argumento de Hodge é, portanto, falho por um mau uso
do grego. Alguém também pode se perguntar, à medida que Hodge
claramente fracassa, se ele caiu na antiga falta de sentido de
natureza e se esqueceu de sua identificação com substância.

O relato da teologia do século XIX é longo, mas, primeiro, ele


merece uma delonga se alguém deseja estudar seriamente a
doutrina da Encarnação; e, segundo, seria uma desonra para um
grande homem se W. G. T. Shedd não fosse incluído. Seus dois
volumes intitulados Teologia Dogmática foram publicados em 1888,
quatorze anos depois dos três volumes de Hodge. As doutrinas ou
afirmações confessionais que Shedd defende são as mesmas de
Hodge; mas a filosofia por trás dos argumentos, na verdade
explícita nos argumentos, é tão diferente do Senso Comum
Escocês quanto possível. É uma forma extrema de Platonismo que,
eu suspeito, teria irritado Platão profundamente. Esta é nossa
vantagem, pois encontramos argumentos e interpretações que
Hodge nunca teria usado. Assim, vemos a Encarnação de um ponto
de vista muito diferente, e isso é instrutivo.

Devemos sempre ter em mente que a epistemologia de um teólogo


controla sua interpretação da Bíblia. Se sua epistemologia não é
cristã, sua exegese será distorcida de forma sistemática. Se ele não
tem epistemologia nenhuma, sua exegese será distorcida de forma
não-sistemática. Shedd é notavelmente consistente, e dele
podemos aprender muito.

O material de Shedd começa na página 278 do volume dois. Lá ele


diz “o Deus-homem era uma nova pessoa”. Uma vez que Shedd
negará que o homem Jesus era uma pessoa, essa asserção implica
em mudanças e alterações na Segunda Pessoa da Trindade. De
fato, ele é muito específico, pois na página 281 adiciona “A própria
Trindade não é alterada ou modificada pela Encarnação. Somente a
Segunda Pessoa é modificada”. Vindo de um cristão inteligente e
bem-educado, isso é espantoso. A Segunda Pessoa da Trindade é
tão imutável como as outras duas. Além disso, se a Segunda
Pessoa sofreu alteração, isso modificaria a Trindade como um todo.
A Trindade, se posso usar a linguagem, é um complexo de três
Pessoas. Obviamente, se um muda, o complexo muda. Terão
constituições diferentes. Sem dúvida isso viola a doutrina cristã
básica e destrói toda a confiança no que pode ser dito da
Encarnação.
De muito menos importância, mas prosseguindo página por página,
Shedd comete um erro encontrado anteriormente em outros.
Referindo-se a Hebreus 2.44, ele traduz sperma como natureza
(p.284), e na página 285 faz de natureza e substância sinônimos.
Então pessoa torna-se uma subsistência. Agora, termos técnicos
são uma necessidade. Não existe uma simples palavra na Bíblia
que signifique Trindade. O termo tinha de ser cunhado. Onipotente
ocorre uma única vez na Bíblia (KJV), e onipotência é facilmente
compreendido. Mas é melhor evitar o jargão escolástico. Não ajuda
em nada dizer que o General Grant e o Lord Mountbatten eram
subsistências e não substâncias. Bem, com certeza Shedd não é o
único culpado. Mas ele é um deles, pois as páginas 286-287 não
transmitem significado algum.

Visto que Shedd queria instruir seus estudantes na doutrina da


igreja, ninguém pode objetar à sua repetição dos temas tradicionais.
Por exemplo, “Wollebius (I, XVI) diz que ‘Cristo assumiu não o
homem, mas a humanidade’” (p. 289). Se ele deseja meramente
mostrar sua concordância com os teólogos anteriores, ele é bem
sucedido.

Mas então há suas próprias contribuições também. Considere


essas duas, das páginas 289 e 291. “Uma natureza humana [é]
uma substância real [com isso quero dizer uma Ideia Platônica]...
Como uma substância material pode existir sem ser moldada numa
maneira particular, assim uma natureza humana pode existir sem
ser individualizada”. Essa última frase é uma forma de Platonismo.
Em oposição ao materialismo e sofismo, Platão apresentou um
Mundo de Ideias, cujos itens eram verdadeiramente reais. Cubos ou
dados num reino sensorial eram cópias imperfeitas de um padrão
perfeito. Antes que o Demiurgo formasse um espaço caótico no
relativamente organizado mundo sensorial, o padrão ou Ideias
existiam, com Shedd diz, “sem ser individualizado. Assim, o Homem
existiu antes dos homens”. Mas a frase “capaz de se tornar uma
pessoa humana” estraga a teoria. A Ideia Homem nunca se torna
um homem ou diversos homens. A comparação de Shedd é
também defeituosa: “Como uma substância material pode existir
sem ser moldada numa maneira particular” é mais obscuro do que
explanatório. Nenhuma “substância” material pode existir sem
alguma forma ou outra. Quem já viu uma rocha que não tinha
nenhuma forma?

A página 294 cita outro item. “Visto meramente como a substância,


a ‘semente’ e o ‘sangue’ da Virgem anteriormente à sua concepção
era impessoal. Ele não poderia ser distinguido como esse homem
particular, Jesus de Nazaré, até que sua concepção miraculosa o
individualizasse. Como a mera semente da Virgem não tinha nada
que a distinguisse da substância ou semente de qualquer outro
homem, ou da própria Maria, que poderia ter concebido ainda
outros filhos por geração ordinária”.

Isso é muito surpreendente e obscuro. O sangue da Virgem — visto


que a semente é inapropriada — antes de sua concepção pelo
Espírito Santo era qualitativamente similar ao sangue de qualquer
mulher — ou homem, nesse caso. Sem dúvida meio litro de sangue
por si só é impessoal. Mas disso não se segue que a semente
implantada pelo Espírito Santo era impessoal. Em nossa luta do
século XX contra o aborto reivindicamos que a pessoa humana
começa na concepção. É claro que, no caso de Maria, ninguém
poderia olhar para o seu ventre e distinguir o bebê com Jesus de
Nazaré, mas até mesmo Shedd parece concordar que a concepção
miraculosa produziu uma não-pessoa individualizada. Por
conseguinte, a frase “anteriormente à sua concepção” é inaplicável.
Essa frase parece implicar que Maria de alguma forma concebeu e
um ou dois minutos depois o Espírito assumiu o controle do
embrião. Mas o Espírito não assumiu nada; ele produziu um bebê.

Agora, eu não tenho a menor intenção de deturpar Shedd. Estou


sendo o mais exato que posso. Mas sua linguagem parece tão vaga
que eu poderia muito bem tê-lo interpretado mal. Porque pode ser
digno, contudo, Shedd parece querer dizer que a não
individualizada Ideia Platônica do Homem foi implantada em Maria,
assim como a mesma Ideia é implantada em toda mãe, e
subsequente a isso, a Ideia universal torna-se um indivíduo. Isso
não é um bom Platonismo, para não dizer bíblico e cristão. Em
Platão, um objeto visível, um cubo, um cavalo, uma árvore são
resultados de um processo de moldagem pelo qual o Demiurgo
constrói objetos visíveis a partir do espaço caótico. Nenhum cubo
visível é realmente um cubo porque o espaço ou matéria não pode
suportar linhas retas matematicamente.

Um item final: Na página 305 ele diz: “Ela [Maria] foi a mãe de sua
alma humana assim como de seu corpo humano”. Muito bom. Mas
se Jesus tinha uma alma humana, derivada como o traducianismo
ensina,20 como Jesus poderia ter sido uma pessoa humana?

Não importa o quanto queiramos evitar o Nestorianismo, pelo


menos o último Nestorianismo, devemos insistir que Jesus era um
homem: “o homem Cristo Jesus”. Em nenhum lugar a Bíblia diz que
ele era somente uma “natureza”.

20 É sempre sábio, e nesse caso muito concordável, temperar a crítica com algumas
observações complementares. Quando chega à origem das almas humanas, o traducianismo
de Shedd se torna completamente o criacionismo de Hodge.
6. Algumas Conclusões

Leitores impacientes, como aqueles que começam na última página


de um romance policial para ver “quem fez aquilo”, se eles
sobreviveram aos detalhes anteriores deste estudo estão, sem
dúvida, se retorcendo de dor na ausência de conclusões. Aqueles
que são mais seguros nas ladeiras escorregadias do Monte Blanca
percebem que ninguém pode reunir coisas antes que ele tenha tais
coisas. Mas eventualmente algumas conclusões aparecerão.

Mesmo assim, o material precedente é tão complexo, cada parte


relacionada com outra parte de uma maneira mais intrínseca do que
um torneio de xadrez de campeonato mundial, que um arranjo
lógico de conclusões é quase impossível. Esse é o porquê, com a
notável exceção de Tomás de Aquino, quase nenhum teólogo
desde 700 d.C. a 1500 d.C. deu séria atenção à doutrina da
Encarnação.

Em todo assunto, em sociologia bem como em matemática, o


requisito básico é a consistência, ou seja, a ausência de
autocontradição. Felizmente — e este é quase o único ponto de
sorte em todo o complexo — os Pais da Igreja, e mesmo aqueles
teólogos conservadores contemporâneos que limitam suas
considerações a uma ou duas páginas, consideram esse requisito o
mais fácil de satisfazer. Talvez eles caiam em autocontradição de
vez em quando, especialmente se se tornam prolixos, mas seu real
problema reside em outro lugar.
O requisito mais intratável, mais exigente e também mais irritante é
substituir as expressões ininteligíveis e a terminologia indefinida por
pensamento claro. O Credo Niceno não é tão ruim; as declarações
negativas do Credo de Calcedônia são aceitáveis; mas desde
então, incluindo o Credo Atanasiano, as expressões ininteligíveis e
sem sentido têm caracterizado essas discussões até agora. Até
mesmo a De Trinitate de Agostinho poderia ser aprimorada aqui e
ali. Tão claramente necessária quanto é a inteligibilidade, os
teólogos parecem tê-la esquecido um-e-meio ou dois segundos
após reconhecê-la.

Por conseguinte, a primeira conclusão é a necessidade de excluir


termos sem sentido tais como substância e subsistência, e anular
ou definir essência, natureza, pessoa, ser e qualquer outro termo
ambíguo o qual submeteremos à definição. Por exemplo, se ser é
entendido como uma forma do verbo ser, existir, e se este for usado
propriamente como cópula (o gato é preto), a palavra estará livre de
toda ambiguidade.

O Breve Catecismo de Westminster merece congratulações por


nunca perguntar: “Deus existe?” ou “Há um Deus?”. A questão é: “O
que é Deus?”. A razão para evitar o verbo existir, ou a não-cópula é,
reside no fato que alucinações, falsidades, bem como a raiz
quadrada de menos um — tudo — “existe”. O verbo, e o substantivo
verbal ser, são sem sentido porque eles se encaixam em qualquer
sujeito. Agora, se o predicado é tão amplo que ele pode ser anexo a
qualquer substantivo no dicionário, ele não tem significado, pois ele
não distingue uma coisa da outra. Uma palavra que significa tudo
não significa nada. Portanto, neste ponto cumprimentamos o Breve
Catecismo de Westminster por evitar palavras sem sentido. A
primeira conclusão, consequentemente, é que as doutrinas bíblicas
não devem ser desfiguradas por palavras sem sentido.

Dois outros exemplos reforçam o ponto, a saber, substância e


pessoa. Mas elas não reforçam o ponto da mesma forma. Algumas
páginas atrás dispensamos, de uma vez por todas, a sílaba sem
sentido substância. Ela deve ser completamente banida da teologia.

O outro termo, pessoa, deve ser retido, mas apenas se for definido
de forma clara. Isto é, precisamente o que Hume fez.
Recomendamo-lo por abolir substância e por definir pessoa. Isso
não significa que sua definição de pessoa como um complexo de
sensações seja de alguma forma aceitável. É a tentativa que é
digna de louvor. Mas sua rejeição de substância, “algo que eu não
sei o que é”, uma palavra que não tem nenhum significado de forma
alguma, é uma lição que os teólogos cristãos não deveriam ignorar.
Postular um suporte incognoscível para algo, especialmente se o
objeto não precisa de suporte, é fantasia inútil.

Pelo menos um teólogo contemporâneo descobriu essa verdade.


Considere a seguinte citação de Carl Henry:

Eu rejeito a visão realística de que o ser humano é um substrato


no qual os atributos são inerentes, uma substância subjacente que
suporta suas qualidades ou predicados. Atanásio, no quarto
século, fez um ponto importante sobre substância. Tivessem os
filósofos e teólogos cristãos prestado atenção a isso, eles teriam
evitado muitas das dificuldades criadas pela orientação
aristotélica do termo, pelos acréscimos dos escolásticos, e pelas
modernas modificações lockeanas. Em sua Defense of Nicene
Council... e em sua epístola On the Synods of Arminum and
Seleucia... Atanásio declarou que a frase substância de Deus é
simplesmente uma forma enfática de dizer Deus. Ela não significa
um elemento ao qual são adicionadas as qualidades para formar
um composto.21

O outro termo causa maior dificuldade porque ele não deve ser
descartado. Ele deve ser definido. Colocado de uma forma simples,
a questão é: O que é uma Pessoa? Essa questão se levanta não
somente com respeito à Trindade, mas também com respeito à
psicologia ordinária. De fato, o público americano é tão depravado
que a questão agora diz respeito ao assassinato de bebês mortos
por suas mães cruéis. Eles dizem que os bebês não são pessoas.

Lembre-se da insistência de Powell de que ninguém antes de


Descartes teve qualquer ideia clara do que fosse uma pessoa
individual. Mas uma doutrina insistindo que Jesus Cristo foi uma
pessoa divina e de nenhuma forma uma pessoa humana falha sem
tal definição. Uma razão para incluir tanta filosofia secular nas
páginas anteriores foi a esperança de encontrar alguma ajuda para
esse termo essencial.

Esse autor suspeita que a maioria das pessoas esteja tão ocupada
com seus corpos que elas têm pouco ou nenhum entendimento do
espírito. Eles acham que pensam com seus cérebros, ou com todos

21 Carl F. H. Henry, God, Revelation, and Authority, (Waco, Texas: Word Books, 1982). Vol. V,
p. 119.
os seus músculos, como sustentava John Dewey.22 Algo invisível,
intangível, todavia inteligente, que não ocupa nenhum espaço está
além do seu poder de apreensão. O quão antibíblico esse
materialismo é, se vê claramente na conversação de Moisés com
Cristo no Monte da Transfiguração. E para generalizar, o que eles,
se são cristãos, supõem ir para o céu quando um cristão morre?
Lembre-se que Cristo disse ao ladrão sobre a cruz: “Hoje tu estarás
comigo no paraíso”. Anjos apareceram enganosamente para Balaão
em Números 22:22-35 e para Pedro em Atos 12:7-10. Por
enganosamente quero dizer que eles assumiram uma aparência
humana para o propósito imediato deles.

A menos que os cristãos rejeitem o secularismo contemporâneo,


estudem a Bíblia e desenvolvam algum senso de espiritualidade,
eles permanecerão incapazes de entender várias partes da Bíblia e,
acima de tudo, a Encarnação.

Portanto, visto que Deus é a Verdade, devemos definir pessoa não


como uma composição de impressões sensoriais, como Hume fez,
mas, rejeitando com ele o termo sem sentido substância,
definiremos pessoa como uma composição de verdades. Para ser
mais exato, visto que todos os homens cometem enganos e creem
em algumas falsidades, a definição deve ser uma composição de
proposições. Como um homem pensa em seu (figurado) coração,
assim ele é. Um homem é o que ele pensa.

22 Compare meu livro De Tales a Dewey (Nutley, New Jersey: Presbyterian and Reformed
Publishing Co., 1960), especialmente página 53 em diante; e Behaviorism and Christianity
(Jefferson, Maryland: The Trinity Foundation, 1982), especialmente pp. 79-106.
Visto que os termos técnicos são usados para evitar ambiguidade, e
visto que a Trindade consiste de três Pessoas, as definições falham
se não forem aplicadas a Deus. Que ela se aplica aparece de forma
mais ou menos clara nos versículos que chamam Deus de a
Verdade.

Deuteronômio 32:4, “um Deus de verdade”. Salmo 25:5,10, “Guia-


me na tua verdade... Todas as veredas do SENHOR são
misericórdia e verdade”. Salmo 31:5, “SENHOR, Deus da verdade”.
Salmo 108:4, “A tua verdade ultrapassa as mais altas nuvens”.
Isaías 25:1, “Os teus conselhos antigos são verdade e firmeza”.
Isaías 65:16, “o Deus da verdade... o Deus da verdade”. João 1:14,
“...cheio de graça e de verdade”. João 4:23-24, “adorarão o Pai em
espírito e em verdade... importa que os que o adoram o adorem em
espírito e em verdade”. João 14:6, “Eu sou ... a verdade”. João
15:26, “O Espírito da verdade”. João 16:13, “O Espírito da verdade”.
1 João 5:6, “O Espírito é a verdade”.

Fora as objeções que imediatamente se levantarão contra essa


conclusão incomum, os teólogos irão se queixar que isso reduz a
Trindade a uma Pessoa pois, sendo onisciente, eles todos têm, ou
são, o mesmo complexo. Essa objeção é baseada numa cegueira
para com certa informação escriturística definida. No momento não
me refiro somente à eterna geração do Filho e a eterna processão
do Espírito. Refiro-me ao complexo de verdades que constituem as
Três Pessoas. Embora sejam igualmente oniscientes, elas não
conhecem as mesmas verdades. Nem o complexo de verdades que
chamamos de Pai nem aqueles que chamamos de Espírito, tem a
proposição: “Eu estava encarnado”. Essa proposição ocorre
somente no complexo do Filho. Outros exemplos estão implicados.
O Pai não pode dizer: “Eu andei de Jerusalém até Jericó”. Nem o
Espírito pode dizer: “Eu gerei o Filho”. Por conseguinte, a Divindade
consiste de três Pessoas, cada uma onisciente sem ter
precisamente o mesmo conteúdo. Se isso for assim, nenhuma
dificuldade pode ser levantar quanto a distintividade das pessoas
humanas. Cada uma é um complexo individual. Cada um é sua
mente ou alma. Quer as proposições sejam verdadeiras ou falsas,
uma pessoa é as proposições que ela pensa. Eu espero que alguns
pensem ser a substância um subterfúgio.

Essa então é a primeira conclusão deste estudo: substância e


alguns outros termos são sem sentido, e mui poucos podem ser
salvos pela definição. O slogan é: Descarte ou Defina!
7. Análise Resumida

Isso é o máximo que poderia ser concluído de maneira racional e


compreensível a partir dos dados precedentes. Conclusões
adicionais devem esperar uma análise adicional. A discussão, com
suficiente exegese da Escritura, considerará agora um termo que
não é uma sílaba sem sentido. A questão é mais substantiva; é a
questão se certo termo bem-entendido pode ser apropriadamente
aplicado a Deus. Visto que a Encarnação pressupõe a doutrina da
Trindade, ela deve fazer uso de alguns dos seus termos. Um
desses termos é infinito. Se Deus é infinito, o Logos Encarnado
deve ser. Mas para deixar o problema complicado tão simples
quanto possível, consideraremos primeiro Deus, não como Três
Pessoas, mas como simpliciter.

Tem sido um longo costume falar de Deus como infinito. Estranho


como possa parecer para os teólogos contemporâneos, o
Cristianismo primitivo não fez essa afirmação. Tomás de Aquino, no
século XIII, parece ter sido o primeiro cristão a chamar Deus de
infinito. Em sua Suma Theologica, Parte I, Questão 7, Primeiro
Artigo (Pegis edition, 1944, pp. 52 ff.), ele defende a atribuição com
um argumento muito complexo para ser examinado aqui. Alguns
jesuítas sem dúvida o estudaram, mas eu suspeito que muitos
bispos, incluindo o Bispo de Roma, não o fizeram.

Depois de Tomás de Aquino houve vários filófosos-teólogos que


avançaram a discussão. Presumivelmente, o mais competente
desses foi Nicolau de Cusa (falecido em 1464). Sua obra pode ser
descrita como uma combinação de escolasticismo e misticismo.23

A princípio a Reforma não aceitou essa novidade, mas a razão


pode ter sido a necessidade de fazer outras coisas primeiro, tal
como pregar a justificação pela fé somente — para não mencionar
sobreviver à perseguição. De qualquer forma, a Confissão de
Augsburgo (1530) tem a frase “de infinito poder, sabedoria,
bondade”, que fica apenas levemente longe de infinidade absoluta.
O termo é ausente da Fórmula de Concórdia. Pelo contrário, ela se
queixa da ambiguidade generalizada. O Artigo I, seção xii (Philip
Schaff, Creeds of Christendom, p. 104) refere-se a “vários
significados da palavra natureza”, detalhando alguns. Infinidade não
parece ser mencionado, mas podemos suspeitar que os autores
poderiam inclui-lo numa lista mais longa. Zuínglio também, em seus
Sessenta e Sete Artigos, parece ter evitado infinidade.

Calvino foi um autor infatigável, e a maioria dos leitores me


escusará por não ter lido todos os seus muitos volumes apenas
para ver se a palavra infinito está lá. O máximo que eu posso dizer
é que embora as Institutas, I, xiii, 1-5 discuta uma grande
quantidade de terminologia ambígua, eu não encontrei nenhuma
ocorrência do neologismo Católico Romano. O termo não ocorre na
Primeira Confissão Helvética de 1536 d.C., nem na Segunda, 1566,
a menos que immensum seja assim traduzido. Todavia, essa
palavra significa com maior probabilidade imensurável do que

23Compare F. C. Copleton, Medieval Philosophy (Harper Torchbooks, 1952, 1961), pp. 159-
165.
infinito, como uma referência à inabilidade humana de alcançar o
conhecimento e poder de Deus.

O primeiro uso protestante do termo infinito, até onde eu saiba,


ocorre na Confissão Francesa de 1559: “Un seul Dieu qui est…
infinie” [sic]. As Confissões Belgas (1561, 1619) também têm o
termo infini, citando Isaías 34:6, que não contém nenhuma menção
de infinidade. A Confissão Escocesa de 1560 tem infinito [sic].
Tanto Os Trinta e Nove Artigos como os Artigos Irlandeses da
Religião têm “de infinito poder”.

A Confissão de Fé de Westminster, e seus dois catecismos,


abandonaram todo comedimento. Em seu segundo capítulo a
Confissão afirma que “Há apenas um Deus vivo e verdadeiro, que é
infinito em ser e perfeição”. O Catecismo Maior responde a questão
7 declarando que “Deus é espírito, em si e por si infinito em seu
ser”. Naturalmente o Breve Catecismo diz a mesma coisa, embora
as questões sejam mais breves para o benefício dos adolescentes.
Devemos repetir que o termo ser é sem sentido? Infinito não é.

O Catecismo de Fisher (1753) também tem esse propósito mais


elementar em vista. Não deixando nada para a hipótese não-
instruída, ele pergunta de quinze a cinquenta sub-questões, de fato
às vezes mais de cem, em cada questão no Breve Catecismo. A
resposta inicial à sua questão, “O que é ser infinito para Deus?” é “É
ser absolutamente destituído de todas as fronteiras e limites em seu
ser e perfeição, Jó xi, 7-9”.24

24 Mais tarde se tornará mais claro que Fisher et. al. não entende a Bíblia tão bem como seu
inimigo Spinoza.
A atenção deve ser agora direcionada para o texto-prova, Jó 11:7-9,
pois a Confissão e o Catecismo usam-no, bem como Fisher. Esses
versículos são palavras de Zofar, que tinha acabado de chamar Jó
de mentiroso no versículo 3. Mas mesmo que esse falso amigo, a
quem Deus condena em 42:7, tivesse falado a verdade uma vez, os
versículos não dizem nada sobre infinidade. O ponto é que uma
pesquisa empírica não pode contribuir muito para a teologia.

É inexplicável como os homens da Assembleia de Westminster,


devotados e instruídos como eram, puderam ter deliberadamente
escolhido esses versículos em Jó para apoiar sua adição tomista à
Confissão. Sua ação aqui foi tão leiga e enganosa quanto qualquer
outra coisa pode ser.25

Impregnada, como a doutrina da infinidade de Deus tem se tornado


agora, sua base bíblica é precária ou pior. A versão King James usa
a palavra infinito [infinite] precisamente três vezes; duas dessas
traduções de uma palavra hebraica, e a outra de uma diferente
palavra hebraica, nenhuma das quais significa infinito. Jó 22:5 relata
Elifaz fatigando Jó ao lhe fazer perguntas retóricas: “Porventura,
não é grande a tua malícia, e infinitas, as tuas iniqüidades?”. Agora,
mesmo que Elifaz tivesse avaliado corretamente o caráter de Jó, ele
não poderia ter contado como infinidade; nem Jó tinha vivido o

25 Circunstâncias extenuantes podem requerer de nós que suavizemos nossas críticas a esses
teólogos. Eles não eram matemáticos e não sabiam o que estavam falando. Mesmo assim,
eles conheciam ou deveriam conhecer os argumentos de Zenão de Eleia. Mas eles não
reconheceram que quando x = ∞, 2x = ∞ também? Eles poderiam ter aprendido de Galileu que
a aceleração é proporcional à distância percorrida — isto é, um corpo caindo livremente cai
cada vez mais rápido — sua velocidade seria infinita de forma que ele poderia estar num ponto
x e abaixo no ponto y simultaneamente. Mas se eles conhecessem um pouco sobre física, eles
seriam experts em interpretação bíblica. Eles saberiam hebraico, grego e latim de trás para
frente. Todavia, eles estavam rudemente enganados no uso deles de Jó 11.
suficiente para ter agido de modo justo, iníquo, ou ambos, um
número infinito de vezes. De qualquer forma, o termo não é
aplicado a Deus.

A segunda ocorrência da palavra infinito no inglês é Salmo 147:5:


“Grande é o nosso SENHOR... seu entendimento é infinito” (ARC).
Essa não é a mesma palavra hebraica usada em Jó. Ela, contudo,
se aplica a Deus, e os tradicionalistas são aptos para exclamar:
“Veja, Deus é infinito!”. À essa objeção duas respostas são
pertinentes.

Primeiro, é uma regra padrão da teologia nunca basear uma


doutrina num único versículo. Teólogos não são infalíveis; eles de
certa forma se equivocam com frequência; e, por conseguinte, para
uma doutrina ser incluída num credo oficial, ou mesmo num tratado
teológico, ela deve ser sustentada por vários versículos. Visto que
esse versículo é o único na Bíblia que parece atribuir infinidade a
Deus, a ideia não merece mais do que uma breve nota de rodapé.
Mas, em segundo lugar, a breve nota de rodapé na margem
corretamente traduz o versículo assim: “o seu entendimento não se
pode medir” (ARA). A palavra mispar não tem o significado de
infinito, mas de numerar.

Possivelmente o versículo significa que um ser humano no tempo


de uma vida não pode contar o número de proposições que Deus
conhece (assumindo, é claro, que ele tenha acesso a todas elas, o
que Deuteronômio 29:29 nega). Mas isso é um assunto secundário.
O ponto principal é que Salmo 147:5 não atribui infinidade a Deus.
A terceira das referências da King James é Naum 3:9. Ela é a
mesma palavra que ocorre em Jó. Lemos no versículo: “Etiópia e
Egito eram a sua força, e esta era infinita”. Se essa fosse a
tradução correta e se fosse verdadeira, Egito e Etiópia teriam sido
tão poderosas quanto Deus. Obviamente isso é impossível. Visto
então que a palavra não significa infinito, nem a palavra de fato,
Deus não é infinito, ou pelo menos a Bíblia não diz que ele é.

A presente seção deste tratado, seção 7, “Análise Resumida”, não


está incluída em “Algumas Conclusões”, uma vez que dados
adicionais foram necessários primeiro. Esses dados em sua análise
agora permitem uma conclusão adicional. Mas ao invés de ser
“Deus não é infinito, ou pelo menos a Bíblia não diz que ele é”, a
conclusão completa é que a Bíblia definitivamente diz que ele não
é.

Spinoza apresenta não apenas uma informação adicional


interessante, mas o argumento incontestável. Ele deseja distinguir
seu Deus do Deus cristão. A sexta definição em sua Ethics é: “Por
Deus, eu quero dizer um ser absolutamente infinito — que é um ser
consistindo de atributos infinitos”. Na nota sobre a Proposição X ele
adiciona: “um ser absolutamente infinito deve por necessidade ser
definido como consistindo de atributos infinitos”. Spinoza reconhece
que podemos conhecer somente dois desses, a saber, pensamento
e extensão. Mas o Deus cristão, Spinoza insiste, é infinito, não
absolutamente, mas apenas “segundo seu tipo, pois, de uma coisa
infinita apenas segundo seu tipo, atributos infinitos podem ser
negados”. É óbvio, pois o Cristianismo nega extensão a Deus.
Provavelmente, se conhecêssemos o que são os outros atributos
espinosistas desconhecidos, encontraríamos vários outros
inaplicáveis a Jeová.

Nenhuma universidade americana, até onde eu saiba, está sem um


Departamento de Religião. Eles são principalmente devotados à
destruição do Cristianismo bíblico.26 Apenas ocasionalmente o
estudo das várias visões da universidade pode fornecer material de
grande ajuda para o mesmo interesse em uma publicação como
esta. Contudo, de vez em quando há uma exceção. Uma seção
dessa filosofia da religião moderna tem apoiado nosso argumento.
Essa seção sustenta que Deus não pode ser uma pessoa porque
Deus é infinito e uma pessoa, por definição, deve ser finita. Que
seja. O Deus da Bíblia consiste em três Pessoas, e nem de forma
individual ou coletiva elas são infinitas.

Uma razão pela qual os calvinistas dos séculos XIX e XX afirmam a


infinitude de Deus é que eles conhecem muito pouco sobre
infinidade. Provavelmente B. B. Warfield teria bufado se alguém lhe
dissesse que existem tantos números primos quanto existem
números. Pouquíssimos desses teólogos, eu suponho que nenhum,
já ouviu falar do Alef-nulo.2728

Talvez um ou dois contemporâneos estão começando a reconhecer


as dificuldades. Carl F. H. Henry, God, Revelation and Authority,
Vol. V, pp. 220 ff., tem diversas páginas defendendo a atribuição de
infinidade à Deus. No entanto, parece-me que em vez de atribuir

26 O adjetivo é inserido porque uma parte notável da sociedade pensa que o Cristianismo pode
descartar um pouco, muito, ou quase tudo da Bíblia.
27 Compare The World Of Mathematics editado por James R. Newman (Simon and Schuster,

1956), Vol. III, p. 1594, ou qualquer outra declaração elementar.


28 Nota do tradutor: O menor número transfinito cardinal. Também chamado de alef-zero.
infinidade a Deus, ele está alterando o significado de infinito para
algo que não é infinito. Por exemplo: “O infinito conhecido na
religião bíblica não é uma abrangência completa de todas as
finitudes” (p. 225). Esta frase e seu contexto realmente afirmam que
Deus não é infinito.

Deve-se reconhecer, entretanto, que quando negamos a infinitude a


Deus, não negamos, mas de fato afirmamos que ele é onisciente.
Ele é a verdade. Não há verdade senão aquela que constitui a
mente de Deus. Esse é um tema frequente nas Escrituras, várias
facetas brilhando com as cores do arco-íris. Êxodo 34:6, “O Senhor
Deus... abundante em bondade e verdade”. Deuteronômio 32:4,
“Um Deus da verdade”. Salmo 31:5, “Ó Senhor Deus da verdade”.
João 14:7, “O Espírito da verdade”.29

Alguém pode se perguntar se as verdades da matemática,


diferentemente das verdades da história, são infinitas em número.
Cada ano algum professor brilhante adiciona mais uma ou duas. Os
teoremas parecem ser possíveis sem fim. Então a onisciência não
faria Deus ser infinito? Há duas réplicas. Primeiro, se os teoremas
são infinitos em número, nem Deus nem o homem podem conhecer
todos eles, pois com respeito à infinidade não há um “tudo” para ser
conhecido. A infinidade não tem um termo final, e o conhecimento
de Deus seria tão incompleto quanto o do homem. Sombras de
Zeus! Mas, ainda mais, se todos os teoremas possíveis da
matemática puderem ser conhecidos, o conhecimento de Deus

29Outros versículos são Salmo 25:5, 10; 43:3; 100:5; 108:4; 117:2; João 1:14; 4:23; 15:26;
16:13; Efésios 5:9, I Timóteo 3:15; I João 4:6; 5:6.
deles não o torna mais infinito do que tornaria um matemático
humano infinito. Além da matemática há botânica e xadrez.

Assim como a onisciência, a negação da infinidade a Deus está


longe de negar sua onipotência. Nós desdenhamos responder a tola
e autocontraditória questão: “Deus pode criar uma pedra tão pesada
que ele não possa levantar?” Então há o barbeiro que barbeia todos
aqueles, mas somente aqueles, que não barbeiam a si mesmos.
Tais paradoxos são bons para incitar uns poucos estudantes que
caem no solo na aula de lógica elementar.

Com relação à onipotência, o Catecismo de Crianças tem uma


resposta interessante. A questão é: “Deus pode fazer todas as
coisas?”. A resposta foge um pouco fazendo uma declaração
perfeitamente verdadeira: “Deus pode fazer toda a sua santa
vontade”. Mas talvez o Catecismo não fuja. Suponha que
perguntemos: “Deus poderia ter criado um número maior ou menor
de mosquitos que este mundo possa conter de maneira importuna?
Seu plano eterno para o universo especifica um número fixo total
das coisas incômodas. Esse número é um elemento da onisciência
de Deus. Para algumas almas devotas um argumento sobre
mosquitos parece uma instrução indigna e irreverente em assuntos
sagrados. Mas se a Bíblia pode inserir um versículo sobre o número
de cabelos sobre a cabeça de um homem, mosquitos não podem
ser irrelevantes. De fato, o princípio, se não o exemplo, é um dos
pontos teológicos mais importantes que alguém pode encontrar.
Esqueça o cabelo e os mosquitos e pergunte se Deus pode mudar
o número dos eleitos. Ele pode predestinar um pouco mais ou um
pouco menos de pessoas do que ele decidiu no começo? Mas até
mesmo o termo no começo representa Deus erroneamente. Sobre
essa base, portanto, Deus teria que alterar seu caráter para criar
algo que ele nunca intentou criar. Mas onipotência não inclui mais
poder de auto-alteração do que inclui a capacidade de criar uma
pedra pesada demais para Deus levantar. A Escritura ensina com
clareza que Deus é eterno e imutável.30

As últimas poucas páginas discutiram a alegada infinitude de Deus,


e visto que o Cristianismo é um sistema lógico — não um arranjo
desconexo de proposições não relacionadas — seria necessário
incluir material que algumas pessoas não perceberiam. Houve a
distinção nítida de Spinoza entre seu Deus verdadeiramente infinito
e a negação escriturística de tal. Houve a contenção filosófica
menor de que um infinito não pode ser pessoal. Então por causa da
confusão com respeito à infinidade, pareceu necessário apontar que
uma negação de infinidade a Deus não é uma negação de sua
onisciência ou onipotência. Para enfatizar a importância de tudo
isso, com os mosquitos zumbindo em nossos ouvidos, a seção se
encerrou com uma afirmação da eleição e predestinação. Poderia
ser bom repetir e enfatizar o ponto de Spinoza de que a alegada
infinidade de Deus necessita sua extensão num espaço
tridimensional.

30 Sobre imutabilidade, considere I Samuel 15:29, onde o escritor diz que Deus nunca muda
sua mente: nunca se arrepende. Salmo 102:27, “Eles mudarão, mas tu és o mesmo”.
Malaquias 3:6, “Eu sou o Senhor, eu não mudo”. Compare Romanos 11:29 e Hebreus 1:10-12.
Sobre a eternidade de Deus considere Deuteronômio 32:40, “Eu vivo para sempre”, e 33:27, “o
Deus eterno”. Salmo 90:2, “de eternidade a eternidade tu és Deus”. Salmo 102:12, 27, “Tu, Ó
Senhor, permanecerá para sempre... tu és o mesmo [imutabilidade] e teus anos não têm fim”.
Compare Isaías 41:4, João 17:24, I Timóteo 6:16, I Timóteo 1:9, Apocalipse 4:8-10, e
especialmente Judas 25, “ao único Deus, Salvador nosso, por Jesus Cristo, nosso Senhor, seja
glória e majestade, domínio e poder, antes de todos os séculos, agora e para todo o sempre.
Amém!”.
Talvez esse sumário permita a inserção de uma consideração
subsidiária sobre os atributos divinos que seria mais estranha em
outro lugar do que aqui. É a visão honrosa de que todos os atributos
são idênticos em Deus, e às vezes tão visíveis na história; pois
quando Deus demoliu os muros de Jericó, a simples ação foi tanto
um exemplo de graça como de ira. De maneira mais geral,
conhecimento é poder, onipresença é onisciência, misericórdia e
verdade se encontram, e justiça e paz se beijam.
8. Pessoa Divina e Humana

Algumas páginas atrás, o termo pessoa foi definido como um


complexo de proposições. Um homem é o que ele pensa, pois
como um homem pensa em seu coração, assim ele é. Essa
definição também permitiu que a Trindade consistisse em três
pessoas diferentes, embora muito mais intimamente relacionadas
do que quaisquer três pessoas humanas, todavia, totalmente
distintas, ao contrário da heresia do Patripassianismo.

Como isso estabelecido, a pergunta se torna: Jesus era uma


pessoa humana ou divina, ou talvez ambas? Quando a Segunda
Pessoa se tornou homem, ela reteve sua mente e atividades
divinas, ou ela se tornou uma pessoa diferente, deixando de lado
algumas de suas prerrogativas? Eu não gastarei tempo sobre os
extremos da teoria da Kenosis; mas alguns dos teólogos mais
ortodoxos sustentam que Cristo deixou de lado várias de suas
atividades trinitárias. Se esse fosse o caso, teríamos dificuldade em
pensar que ele era a mesma pessoa. Mas pior do que isso, haveria
repercussões cósmicas. Não somente João diz que Cristo criou o
universo, mas Hebreus 1:3 declara que Cristo sustenta todas as
coisas pela palavra do seu poder. Se ele cessasse de assim o
fazer, o mundo teria entrado em colapso no dia do seu nascimento.
Teria ele o recriado trinta anos depois? Nessa programação, ele
não poderia ter encontrado a mulher samaritana no poço. Na
verdade, não haveria madeira para uma cruz sobre a qual crucificá-
lo. Colossenses 1:17 reforça esse ponto: “por ele todas as coisas
subsistem”, o sistema solar e até mesmo o Império Romano.
Um ou mais teólogos tentam evitar essas conclusões com a frase
peculiar de que Cristo na terra deixou de lado o “uso independente”
dos seus atributos divinos. Mas isso destrói a doutrina ortodoxa da
Trindade porque, à parte das impossibilidades anteriores, nunca
houve qualquer uso independente de seus atributos divinos. Cristo
como a Segunda Pessoa, antes da sua Encarnação, nunca fez algo
independentemente do seu Pai. João 1:13 declara que Cristo criou
todas as coisas sem exceção. Mas assim o fez o Pai. A criação é
atribuída a ambos. Primeira Coríntios 8:6 diz: “Um Deus, o Pai, de
quem são todas as coisas”. Efésios 3:9: “Deus, que criou todas as
coisas por Jesus Cristo”. Presumo que Apocalipse 4:8,11 também
seja pertinente: “Santo, santo, santo, Senhor Deus Todo-
poderoso... tu és digno, ó Deus... pois Tu criastes todas as coisas”.
Compare com Apocalipse 10:6.

Embora a Trindade esteja mormente oculta no Antigo Testamento,


ainda assim há indícios. Jó 26:13 sugere que o Espírito cooperou
na criação. Salmo 104:30 faz a mesma sugestão: “Envias o teu
Espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra”. E embora
os judeus nunca tenham suposto, todas as três Pessoas são
mencionadas no Salmo 33:6: “Pela Palavra do SENHOR foram
feitos os céus; e todo o exército deles, pelo Sopro da sua boca”. A
última palavra hebraica é Ruach;31 também Jó 33:4: “O Espírito de
Deus me fez; e a inspiração do Todo-Poderoso me deu vida”.

Uma declaração considerável da cooperação entre as três pessoas


aparece em 1 Pedro 1:2: “Eleitos segundo a presciência de Deus

31Compare Harris, Archer, Waltke, Theological Wordbook of the Old Testament (Chicago:
Moody Press, 1980), Vol. II, pp. 836-837, especially p. 837, Col. 1.
Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do
sangue de Jesus Cristo”. Há outras referências, mas essas
deveriam ser suficientes para descartar aqueles teólogos que falam
sobre o exercício independente dos atributos de Cristo.

Ninguém pode questionar o fato de que a Bíblia ensina a


Encarnação de Deus o Filho. Todas as tentativas de fazer uma
exegese da Escritura de outra forma, se é que alguém tem se
aventurado a fazer, são fracassos evidentes. Mas a divindade do
Filho Encarnado é precisamente o que nos coloca em problema.
Não devemos afirmar que a Segunda Pessoa foi desprovida de sua
onipotência, embora possamos imaginar algum tipo de localização
no corpo de Jesus. Mas quanto mais enfatizamos a divindade, mais
ficamos intrigados com o “homem Cristo Jesus”.

Uma explicação parcial de nossa perplexidade é o fato de que nós,


como seres humanos, somos criaturas de espaço e tempo; então,
em segundo lugar, nessa era atual, as escolas públicas e a
sociedade em geral — livros, revistas, televisão — nos doutrinaram
tanto no behaviorismo que podemos somente com grande
dificuldade conceber seres espirituais como Deus e anjos. O
empirismo predominante que baseia todo conhecimento na
experiência sensorial protege até mesmo nós, cristãos, de
demônios, fantasmas e Deus. Um filósofo solitário aqui e ali pode
crer nas Ideias Platônicas ou nas de Plotino, mas tais colegas
inofensivos nunca são encontrados em jogos de futebol. Esta
sociedade secularizada opera contra toda espiritualidade. Todavia,
essa não é a única ou a principal razão do por que os cristãos têm
problemas com a Encarnação. A verdadeira dificuldade com a
Encarnação é sua dificuldade real.

Os credos e os volumes sobre teologia, atentos às heresias


anteriores a 451 d.C., negam que Cristo foi uma pessoa humana.
Eles usam a frase “duas naturezas distintas e uma Pessoa para
sempre”. Com grande uniformidade eles se recusam a definir
natureza. Agora, isso leva a dificuldades extremas.

Se Jesus não era uma pessoa humana, quem ou o que sofreu na


cruz? A Segunda Pessoa não poderia ter sofrido, pois a Deidade é
impassível. Uma das heresias dos primeiros tempos, como
mencionado antes, era o Patripassianismo. Subsistindo em uma
trindade modal para as três Pessoas distintas, a teoria requer que o
Pai tenha sido crucificado. Mas requerer que a Segunda Pessoa,
como tal, sofra, é igualmente impossível. A Confissão de
Westminster a descreve como “um espírito puríssimo, invisível, sem
corpo, membros ou paixões” (II, 1). Se então a Segunda Pessoa
não podia sofrer, poderia uma “natureza” sofrer? Talvez alguns
poucos leitores tenham ouvido o hino não tão popular de Isaac
Watts com sua inferência a respeito das crianças. Suas duas
primeiras linhas são:

Os cães adoram latir e morder


Pois é de sua natureza.

Se, então, a natureza teologicamente indefinida consiste em certas


qualidades ou características, tais como suscetibilidade ao cansaço,
aptidão para aprender, alegria, tristeza, ou, para estender a lista
além da vida de Cristo, inveja, irascibilidade, mau humor — se a
natureza é tais qualidades, alguma delas pode sofrer dor? Se esse
é o caso, um cadáver pode sofrer. Pelo contrário, somente um
espírito, uma alma (incluindo as almas dos animais), ou uma
pessoa pode sofrer. Aparentemente, os demônios podem sofrer
(Lucas 8:31; Mateus 8:29, onde deve-se notar a palavra tormento),
mas eles não têm corpos.32

Para repetir a pergunta então: Se meras qualidades não podem


sofrer e morrer, e se o Logos é eternamente imutável, de quem foi a
morte que o Pai propiciou, ao sofrer a pena que merecíamos sofrer?
As Escrituras dizem que foi a morte do homem Cristo Jesus. Os
credos da Reforma e os teólogos que os aceitam dizem que ele foi
um homem. Quando John Gill (Body of Divinity, V, 1, Sovereign
Grace ed., p. 382, col. 1) diz: “Não tivesse ele uma alma humana,
ele não seria um homem perfeito”, ele implica que Jesus era um
homem perfeito. A. A. Hodge (Outlines of Theology, p. 380, #7)
primeiro diz que “Ele também é verdadeiro homem” e algumas
linhas abaixo ele torna isso impossível acrescentando: “Cristo
possui ao mesmo tempo na unidade de sua Pessoa dois espíritos
com todos os seus atributos essenciais, uma consciência, mente,
coração e vontade humanas”. Perguntamos: Como pode uma

32 Para contra-atacar a influência materialista das escolas públicas e as pressões de uma


sociedade secularista, o leitor deve considerar o seguinte. Primeiro, o relato famoso da
contestação de Cristo ao diabo (Mateus 4:1-11). Depois, Mateus 15:22-25, onde uma garota foi
“dolorosamente atormentada” por um demônio. Um “espírito impuro” estava atormentando um
homem em Marcos 1:23-27. Lucas 11:14-26 descreve um evento e adiciona dezenas de
versículos nos quais está a explicação de Cristo. Em 1 Coríntios 10:20 Paulo afirma que os
sacrifícios pagãos são feitos aos demônios. Então, também, os demônios ensinam suas
próprias doutrinas (1 Timóteo 4:1). Para que o raio de luz possa brilhar através da escuridão do
secularismo, lembre-se que “orou Eliseu e disse: SENHOR, peço-te que lhe abras os olhos
para que veja. O SENHOR abriu os olhos do moço, e ele viu que o monte estava cheio de
cavalos e carros de fogo, em redor de Eliseu”. Quanto tempo faz que um visitante regular da
igreja não ouve um sermão sobre anjos? Todavia, os ministros do Evangelho devem
supostamente declarar “todo o conselho de Deus”.
consciência, mente, coração e vontade não ser uma pessoa
humana? Tudo o que Hodge pode responder é: “Não cabe a nós
tentar explicar” tudo isso. Em outras palavras, a doutrina é baseada
na ignorância. Os credos e os teólogos afirmam “um verdadeiro
homem” e suas explicações o negam.

Isso se torna ainda mais evidente porque os teólogos ortodoxos


geralmente chamam a natureza humana de Cristo de “impessoal”.
Como um X com uma vontade humana e um intelecto humano, o
qual cresce em sabedoria, pode ser destituído de personalidade,
requer algumas explicações inexistentes. Atormentando por tal
absurdo, um dos teólogos mais ortodoxos, um verdadeiro
perscrutador de cada detalhe, insiste que a natureza humana de
Cristo não é impessoal porque está ligada à sua natureza divina.
Em outras palavras, a Segunda Pessoa da Trindade é ignorante de
algo, a Pessoa se cansa, e a Pessoa morre na cruz! Em contraste
com essas impossibilidades, a Escritura, como observado
anteriormente, fala do “homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5). Como
pode um homem ser um homem sem ser uma pessoa humana?

Visto que as dificuldades são enormes, é necessário ver o problema


a partir de diferentes ângulos, mesmo sob o risco de alguma
repetição. Tomemos como certo que Deus não pode morrer. Agora,
se Cristo fosse uma pessoa divina, nenhuma pessoa foi crucificada
e morreu. O que morreu na cruz então? Uma “natureza”? Até este
ponto o autor achou conveniente usar o termo natureza numa forma
descuidada e popular. Contudo, se desejamos explicar a
Encarnação, os termos técnicos devem ser usados, isto é, termos
cuidadosamente definidos. Mas nenhum credo, nem qualquer
grande teólogo até onde eu saiba, jamais a definiu. Sem dúvida
Hodge tentou fazê-lo, mas não é suficiente apenas dizer que
natureza e substância são sinônimos. Se a pessoa, sendo o Logos,
não podia ser crucificada, nossa salvação foi realizada pela suposta
morte de uma natureza impessoal? Pois vimos, apenas alguns
parágrafos atrás, que qualidades humanas não podem ser atributos
de Deus.

Por causa do anti-intelectualismo contemporâneo e de uma religião


de emoção e experiência, com pouca ou nenhuma verdade
envolvida, e visto que desejamos olhar para o problema de todos os
ângulos, o próximo parágrafo ou dois irão divergir do argumento
teológico — muito menos do que alguns suporiam — e
estudaremos alguns do material bíblico. Afinal, o material bíblico é a
nossa única autoridade. Embora isso possa ser mais facilmente
compreendido do que um jargão teológico, seu significado às vezes
requer atenção considerável.

Atos 2:27, citando Salmos 16:8-11, declara que Deus “não deixará
minha alma no inferno”. A palavra não é Gehenna, mas Hades. Isso
deveria trazer à mente a promessa de Cristo ao ladrão na cruz:
“Hoje estarás comigo no paraíso”. Mas a palavra para a qual a
atenção é direcionada agora é alma. Parece absurdo que a
Segunda Pessoa da Trindade fosse para o Gehenna, e certamente
peculiar se fosse para o Hades,33 este último porque a Segunda
Pessoa não pode morrer. Ele era o eterno e imutável Filho de Deus.

33 Visto que o Cristianismo é um sistema de doutrina e não um agregado aleatório de


proposições não- relacionadas, uma determinada doutrina sempre lança mais ou menos luz
sobre outra. Portanto, uma nota de rodapé é pelo menos apropriada, e deveras quase
necessária para aqueles que no culto do Dia do Senhor repetem “ele desceu ao inferno”. A
Por conseguinte, visto que “o homem Cristo Jesus” é a única outra
possibilidade, aquele que morreu sobre a cruz era um homem, ele
tinha ou era uma alma, ele era um ser humano, uma pessoa.

Mateus 27:46 e Marcos 15:34 apoiam essa visão: “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?” Visto que uma divisão dentro das
eternas e imutáveis Pessoas da Trindade é absolutamente
impossível, Jesus está falando aqui como um homem. Uma
“natureza” humana impessoal não pode falar. Nem há muita
inteligibilidade em se supor que o Pai poderia abandonar uma
“natureza”. Aquelas palavras de Salmos 22:1 eram as palavras de
um verdadeiro homem, um ser humano real, a quem o Pai
abandonou, impondo assim a pena da propiciação pela qual somos
redimidos.

Outro evento pertinente apoia essa posição geral. Na epístola de


Tiago (1:13) aprendemos que “Deus não pode ser tentado pelo mal
e ele mesmo a ninguém tenta”. Mas Jesus foi tentado. Visto que o
indefinido e portanto sem significado termo natureza não pode ser
tentado, Jesus deve ter sido um homem. P. C. Johnson, em seu
artigo “Temptation of Christ” (Zondervan Pictoral Encyclopedia of
the Bible, Vol. V, p. 671), faz uma observação muito digna de ser
citada:

grande maioria das pessoas que recitam o Credo dos Apóstolos não estão cientes de que ele
não é o credo oficial de nenhuma igreja (até onde eu saiba); nem eles estão cientes do fato que
ele foi recitado em quatro formas diferentes, sendo que pelo menos duas delas estão em uso
hoje. A primeira forma inclui, a outra exclui, “ele desceu ao inferno”. A inclusão depende de
uma interpretação indefensável de 1 Pedro 3:18-20, “... vivificado pelo Espírito, pelo qual ele foi
e pregou aos espíritos em prisão... nos dias de Noé”. A forma comum do Credo dos Apóstolos
assume que “em prisão” significa “no inferno”. Essa suposição não tem nenhuma base. Além
do mais, a pregação ocorreu nos dias de Noé, não em 33 d.C.. Para uma exegese mais
completa, veja meu livro Peter Speaks Today.
A primeira tentação foi no nível de sua natureza física, um apelo
para transformar as pedras em pão em vista de sua óbvia fome
após quarenta dias de jejum (Mateus 4:1-4). Esse foi um teste
básico... da realidade da encarnação... Ele apenas parecia ser um
homem...? Ele tinha se tornado total e completamente homem.

Antes, obviamente a Segunda Pessoa nunca tinha sentido fome,


sendo um espírito puro e assim por diante, e nunca poderia ser
tentada em transformar pedras em pães. Então, para reforçar o
ponto, alguém pode adicionar Hebreus 4:15: “porém, como nós, em
tudo foi tentado”

Embora a grande batalha contra a incredulidade se centre na


divindade de Cristo, a humanidade de Cristo também é essencial no
plano da salvação. Não se deve supor por um momento que a
ênfase sobre Cristo ser um homem enfraqueça de alguma forma a
afirmação de sua divindade. Quando dizemos, Deus se tornou
carne, tanto Deus como o homem são essenciais.

Portanto, para continuar com a evidência bíblica, pode-se, em


adição aos poucos parágrafos anteriores, citar João 8:40: “Mas,
agora, procurais matar-me a mim, homem que vos tem dito a
verdade”. Ao que podemos adicionar: “Jesus, o Nazareno, homem
aprovado por Deus” (Atos 2:2). Note especialmente 1 Timóteo 2:5:
“e um só Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo
Jesus”. Que Jesus tinha ou era uma alma, anteriormente
mencionado, é sustentado também por Mateus 26:38: “A minha
alma está profundamente triste”. Não “minha natureza” está
profundamente triste. Note também: “Agora, está angustiada a
minha alma” (João 12:27). Essa tinha que ser uma alma humana, já
que nada perturba o Deus imutável. E no final, sobre a cruz,
“inclinando a cabeça, entregou o seu espírito” (João 19:30). Como
isso pode se ajustar com uma natureza humana impessoal é um
enigma insolúvel que a maioria dos teólogos se recusam a discutir
ou sepultam em seis pés de caprichos sem sentido. De qualquer
forma, passagens suficientes da Escritura já foram dadas para
afastar um anti-intelectual contemporâneo de seu preconceito
contra a teologia formal. Precisamos mais dela, não menos.

A lista de dificuldades ainda não está completa. Quer se aceite a


visão comum de que Jesus não era um ser humano, quer se insista
que Jesus era verdadeiramente um homem, deve-se dizer algo
sobre o relacionamento entre o divino e o humano. A onisciência de
um estava relacionada à ignorância real do outro essencialmente da
mesma forma que a onisciência divina está relacionada com a
ignorância de qualquer pessoa? Se não, isso foi devido inteiramente
à impecabilidade de Jesus contrastada com nossa depravação, ou
de alguma outra forma mais profunda? É difícil crer que o
conhecimento divino do Filho encarnado não tivesse nenhum efeito
ou relação com o conhecimento humano de Jesus; mas é
igualmente difícil decidir o que era essa relação. De fato, é difícil
determinar quando, se é que alguma vez, a onisciência foi
exemplificada nas palavras de Jesus.

É Claro que ele sempre falou a verdade. Mas um profeta


meramente humano, Elias ou Isaías, por revelação divina, não
poderia ter dito tudo o que Jesus disse? Bem, não exatamente: há
algumas coisas que Elias não poderia ter dito, como: “Eu e o Pai
somos um”. Mas por outro lado, Jesus não poderia ter dito isso
através de sua “natureza” humana? Provavelmente não, mas é
muito difícil determinar com clareza quais declarações vieram
através de qual natureza. Visto que os profetas em algumas
ocasiões produziam milagres (Josué 3:13-17, a travessia do Jordão;
Josué 6:6-20, o muro de Jericó; A comida de Eliseu e o azeite
multiplicado, 1 Reis 17:14-16), o acalmar da tempestade por Cristo
poderia ter sido produzido através de sua natureza humana. Uma
das declarações mais claras de Cristo que não poderia ter vindo
através de sua natureza humana é Mateus 11:27: “Ninguém
conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o
Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Isso, é claro, exclui
Moisés, Elias e o resto de nós. Mas, mesmo assim, não está claro
como isso nos ajuda a entender a relação entre as duas naturezas.

Há uma declaração que com certeza não é uma afirmação do


Logos. Na cruz Jesus disse: “Tenho sede”. Nenhuma Pessoa
trinitária poderia ter dito isso, pois as Três Pessoas são espíritos
incorpóreos puros e a sede é um fenômeno de um corpo. Há outra
razão pela qual o Logos não poderia ter sentido sede, uma razão
que teólogos tradicionais têm esquecido. Experimentar sede é,
entre outras coisas, uma mudança de uma condição de não sentir
sede. Mas o Logos, a Segunda Pessoa da Trindade, é tão imutável
quanto o Pai. Por outro lado, nem uma natureza impessoal poderia
sentir sede. Seres humanos reais — pode-se acrescentar plantas e
animais — sentem sede. Quem então, ou o que, sentiu sede na
cruz?
Uma segunda declaração, tão claramente identificável como uma
declaração do Logos como foi Mateus 11:27, é João 17:5: “Agora,
glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que
tinha contigo antes que o mundo existisse”. É muito provável que
esse também seja o caso com João 15:26: “Quando, porém, vier o
Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai...”. No entanto,
muitas das declarações que vieram dos lábios de Jesus, excluindo
aquelas sobre a fome, o cansaço e a sede, podem ser classificadas
de qualquer maneira. Tais são os dados que nos dificultam formular
uma visão detalhada — uma visão geral já é difícil o suficiente — da
relação entre as duas “naturezas”. Mas quando um concílio, ou um
papa, ou um teólogo usa os termos natureza, pessoa, substância, e
se senta de braços cruzados, com uma sensação dogmática de
satisfação, isso me lembra de um time de futebol que reivindica um
touchdown quando a bola ainda está na décima-terceira ou
trigésima jarda. Mas os times de futebol geralmente não são tão
cegos.

As complicações continuam. Com base no fato de que o Logos é


onisciente, e, portanto, não somente conhece tudo o que a pessoa
humana conhece, e sabe que isso é conhecimento humano, esse
fato não pode explicar a relação entre as duas “naturezas” de
Cristo? O conhecimento de um inclui o outro. Infelizmente, essa
consideração não tem valor porque se aplica a Cristo e todo ser
humano. Cristo conhece completamente o que você e eu sabemos
ou pensamos. O que precisamos é de uma relação que não existe
em nenhum outro lugar senão entre a Divindade de Cristo e sua
humanidade. Isso não é fácil de determinar. Contudo, uma
conclusão deve aparecer algum dia, e penso que todos os fatores
necessários para uma conclusão foram examinados, mesmo os
itens menos pertinentes das últimas páginas. Ela não pode,
portanto, ser prorrogada.
9. A Conclusão

Alguns críticos hostis instantaneamente estigmatizarão a seguinte


defesa da humanidade de Cristo como a heresia do Nestorianismo.
Nestório, lembre-se das primeiras páginas desse estudo, ensinou,
ou supostamente teria ensinado, que a Encarnação do Logos
resultou em duas pessoas. Essa visão de Nestório, com sua
condenação seguinte, não pode ser sustentada nem lógica nem
historicamente.

Quanto à história, vários estudiosos assinaram a visão herética dos


seus seguidores, que supostamente desenvolveram suas sugestões
além de sua aprovação. Nem pode a acusação de heresia ser
logicamente justificada. A razão deveria ter se tornado óbvia várias
páginas atrás. Nem Nestório nem seus oponentes tinham qualquer
ideia clara do que uma pessoa é. Eles usaram a palavra, mas não
atribuíram nenhum significado a ela. Na discussão e nos escritos
deles o termo foi tão sem sentido quanto as sílabas substância e
natureza. Não importa quão desagradável isso possa ser para
aqueles estudantes cujo conhecimento está confinado a cinqüenta
minutos de uma palestra ampla de Teologia Sistemática — e mais
desagradável ainda ao professor que conhece pouco mais do que
aqueles cinqüenta minutos — eles devem ser forçados a
reconhecer que os bispos de Calcedônia, e os teólogos posteriores
estavam falando coisas sem sentido, pois os termos deles não
tinham nenhum sentido.

Para remediar essa situação desagradável, eu não somente


denunciei e expurguei o uso do termo substância, mas numa
tentativa de ser ocasionalmente positivo, ofereci uma definição do
termo pessoa. A maioria das pessoas achará isso esquisito. A
maioria dos teólogos a acharão inaceitável. Muito bem, que eles
formulem e proponham uma definição diferente. Essa é a coisa
honesta e lógica a se fazer. Então haverá um assunto inteligível de
discussão. Uma pessoa pode razoavelmente supor que poderia
existir uma definição melhor do que a minha. Mas mesmo que não
haja, ela não pode se estigmatizada como absurdo sem sentido.

Porque quinhentos anos de recitação sem sentido produz um hábito


impregnado, uma nova ideia tem um tempo difícil para fazer
progresso. Uma das objeções mais comuns contra se definir uma
pessoa como um complexo de pensamentos ou proposições34
parece imediatamente fluir como um gêiser. Quantas vezes eu ouvi
isso! Isso, eles dizem, faz de sua esposa apenas uma proposição.
Isso, suponho, é esperado me causar vergonha. Realmente é difícil
pensar numa refutação mais estúpida.

Certamente os misóginos, que pensam que a tagarelice das


mulheres não tem fim, ficariam felizes em encontrar tal definição de
uma mulher, se não do homem.

Mais substancial é a consideração, que parece nunca ter ocorrido


para os meus críticos, que se eu mesmo sou um complexo de
pensamentos, não estou em momento algum grandemente

34Uma proposição não é precisamente uma sentença declarativa. “O garoto chutou a bola” e “a
bola foi chutada pelo garoto” são duas sentenças distintas. Os seus sujeitos são diferentes;
seus versos não estão na mesma voz, e a frase preposicional está ausente de um deles. Mas
elas são as mesmas proposições, pois uma proposição é o significado de uma sentença
declarativa.
perturbado em ter uma esposa que se pareça tanto comigo. Seria o
caso deles não desejaram que suas esposas pensassem?

Algumas páginas atrás, as implicações dessa definição de pessoa


foram aplicadas à Trindade. Isso parece justificar a unidade da
Deidade e as distinções entre as Pessoas. Se esse é o caso, seu
uso para resolver o problema da Encarnação se torna muito mais
plausível e não pode ser descartado como patentemente ridículo.

O tratamento usual do problema é tão auto-contraditório que quase


todo escape parece promissor. Após declarar que Jesus foi um
homem, um homem “verdadeiro”, os teólogos continuam
argumentando que ele não foi um homem de forma alguma — ele
foi apenas uma “natureza”. Para eles o garoto no templo e o
ajudante de carpinteiro em Nazaré era algumas séries de
qualidades anexadas à Segunda Pessoa. Ele é tanto onipotente
como frágil; ele é tanto onipresente como localizado; ele é
onisciente, mas ele é ignorante de algumas coisas. Em segundo
lugar, intimamente relacionado com o primeiro, as características de
um homem ordinário não podem possivelmente ser anexa à
divindade.

O Logos nunca ficou cansado ou teve sede; o Logos nunca cresceu


em estatura ou sabedoria. O Logos é eterno e imutável. Como
podem então essas características humanas serem possivelmente
características de Deus? Mas por irresponsavelmente atribuir tais
qualidades a Deus, os teólogos contradizem suas outras
declarações de que Jesus foi um homem verdadeiro. Até mesmo a
palavra verdadeiro traí a fraqueza da posição deles. Que o vosso
sim seja sim e que o vosso não seja não. A Escritura simples e
claramente diz: “O Homem Cristo Jesus”.
G.H.C.
10. A doença final do autor.

A relação que existe entre o Logos, a Segunda Pessoa da Trindade


e Jesus é única, ao contrário daquela entre o Logos e todo outro
homem que vem ao mundo (veja João 1:9). O Logos não apenas
iluminou a mente de Cristo; o próprio Logos estava plenamente em
Cristo. Cristo pôde, portanto, dizer: “Eu sou o Caminho, a Verdade,
e a Vida”. Nenhum mero profeta poderia ter feito tal reivindicação
impressionante. Os profetas, inspirados por Deus, possuem
algumas das proposições divinas. Cristo, contudo, possui todas
elas, como o autor de Hebreus argumenta em seu primeiro capítulo.
Todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão em
Cristo, pois nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade.

Se, como parece ser o caso, temos agora uma solução para os
enigmas da Encarnação, uma solução que evita as contradições e
as palavras sem sentido das formulações tradicionais, uma solução
que é sustentada pela própria Escritura, nós somos obrigados a
aceitá-la. Jesus Cristo foi e é tanto Deus como homem, uma pessoa
divina e uma pessoa humana. Negar qualquer delas é incorrer no
erro. Uma vez que os termos-chave estão definidos e claramente
entendidos, a Encarnação é um milagre ainda mais estupendo e
imponente do que a igreja tem imaginado até agora.
John W. Robbins
11. O Credo de Calcedônia

(...) Todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve


confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
perfeito quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma racional
e de corpo; consubstancial [hommoysios] ao Pai, segundo a
divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; “em
todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado”, gerado
segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a
humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem
Maria, mãe de Deus [Theotókos];

Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve


confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis,
inseparáveis e indivisíveis; a distinção da naturezas de modo
algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades
de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar
uma só pessoa e subsistência [hypóstasis]; não dividido ou
separado em duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito,
Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a
seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou
e o credo dos padres nos transmitiu.
12. Gordon Clark era Nestoriano?

Uma série de pessoas, tendo lido A Encarnação, de Gordon Clark,


têm chegado à conclusão de que o Dr. Clark era um nestoriano. Isto
é, no final do seu livro, Clark teria ensinado que Jesus Cristo não
era uma pessoa com duas naturezas, mas que Ele era, na verdade,
duas pessoas “separadas”. Os escritores atuais discordam dessa
conclusão, e o Dr. Clark não se afastou da visão ortodoxa de Jesus
Cristo; ele apenas tentou afirmá-la de forma mais convincente. Com
isso, queremos dizer que o Dr. Clark estava fazendo o que um
teólogo normalmente busca ao esclarecer questões importantes
quanto à história e formação da doutrina ortodoxa. O dever de um
filósofo teológico é expressar a verdade com maior especificidade
sem anular o seu motivo principal. O objetivo deste artigo é rever e
analisar A Encarnação para apoiar essa posição.

No prefácio deste livro, John Robbins escreve:

Durante os séculos IV e V, a igreja foi conturbada por várias


controvérsias, mas a mais proeminente parece ter sido o debate a
respeito de Cristo. Quem, exatamente, foi Jesus Cristo? Cristo era
Deus e homem? Ele foi a primeira de todas as criaturas? Ele era
Deus em um corpo? Ele era um dos modos de Deus Pai? Ele foi
apenas um homem? Ele era duas pessoas, Jesus de Nazaré e a
segunda pessoa da Trindade? O debate foi animado e amargo.
O resultado foi a formulação do Concílio de Calcedônia (451 d.C.),
que declarou que Cristo é:

Verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, com alma


racional e com corpo; consubstancial com o Pai segundo a
divindade, e consubstancial a nós segundo a humanidade; em
todas as coisas, semelhante a nós, menos no pecado; gerado antes
de todas as eras pelo Pai segundo a divindade e, nestes últimos
dias, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, a
mãe de Deus, segundo a humanidade; Um só e o mesmo Cristo,
Filho, Senhor, Unigênito, a ser reconhecido em duas naturezas sem
confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação; a distinção
das naturezas não sendo de forma alguma anulada pela união, mas
antes as propriedades de cada natureza sendo preservadas, e
concordando em uma pessoa e uma substância, não separada ou
dividida em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho,
Unigênito, Deus, o Verbo, o Senhor Jesus Cristo.

Quem é Jesus Cristo? Seguindo o Concílio de Calcedônia, a


principal linha do Cristianismo ortodoxo sustenta que Ele é o Deus-
homem. Ele é uma pessoa divina com duas naturezas “distintas”.
Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem e, ainda
assim, não há nenhuma fusão das naturezas.

Os teólogos chamam a união das naturezas divina e humana de


Jesus Cristo em uma pessoa de união hipostática. Na encarnação,
o eterno Filho de Deus tomou sobre si não uma pessoa humana,
mas uma verdadeira natureza humana (a natureza humana de
Cristo é claro, não sendo uma parte da Trindade). Desde então,
afirmam os teólogos, Jesus Cristo é (e sempre será) uma pessoa
divina e autoconsciente, com duas naturezas: uma divina e uma
humana.

A formulação de Calcedônia, entretanto, não resolveu essa


questão, nem encerrou o debate. Há um problema que existe desde
os séculos IV e V, e que ressurgiu nos séculos XIX e XX. O
pluralista do século XX John Hicks declara-o da seguinte maneira:
“Se Jesus tem duas naturezas completas, uma humana e uma
divina, e ainda assim era uma pessoa indivisa [conforme
Calcedônia], como pode essa pessoa ser considerada
genuinamente humana?”.

Quer dizer, se Jesus Cristo é, como ensinado em Hebreus 2:17, e


afirmado pela declaração do Credo de Calcedônia, “em todas as
coisas semelhante a nós”, como é que Ele não é uma pessoa
humana? Se Ele, como Calcedônia afirma corretamente, tomou
sobre si mesmo uma natureza humana, de modo que, “de acordo
com a humanidade”, Ele é “em todas as coisas, semelhante a nós”,
então Ele tinha um corpo humano e uma alma humana. Não seria
Ele, assim, uma pessoa humana? Afinal, a Bíblia afirma repetidas
vezes que Ele não é apenas uma natureza humana; Ele é “o
homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5). Sendo assim, parece que o
saldo do Credo de Calcedônia contradiz sua própria fraseologia,
“em todas as coisas, semelhante a nós”, porque nega que Cristo
era uma pessoa humana. Obviamente, algo que não é uma pessoa
humana em tudo não pode ser “em todas as coisas, semelhante a
nós”.
Além disso, se a pessoa autoconsciente do Deus-homem é a
Segunda pessoa da Trindade, como afirma a ortodoxia tradicional,
então a natureza humana não seria autoconsciente. No entanto, em
Lucas 2:52 lemos que Jesus crescia, não só em “estatura” (isto é,
fisicamente), mas também “em sabedoria” (isto é, mentalmente),
mostrando, assim, que a natureza humana de Jesus (pois a
natureza divina, sendo onisciente, não pode crescer) tem uma
consciência. Mas se o Deus-homem tem duas consciências, então
parece que Ele é duas pessoas: uma divina e uma humana.

As respostas da Igreja cristã para esse problema têm sido terríveis.


Infelizmente, uma forma típica de aliviar a dificuldade tem sido a
abordagem Kierkegaardiana: colocá-la no reino do paradoxo lógico.
Outra solução é descartar o ensino bíblico de que Deus é
impassível, e sugerir que a segunda pessoa da Trindade de fato
sofreu na cruz.

Essas, é claro, não são soluções reais. No último livro que


escreveu, A Encarnação, Gordon Clark corajosamente tenta
resolver esse dilema, o qual ele chama de "talvez o problema mais
difícil em toda a teologia".

Na seção um (1-8), o autor introduz o tema difícil da Cristologia. Em


seguida, na seção dois (8-15) Clark traça a história das primeiras
heresias cristológicas. No terceiro século Paulo de Samósata
ensinou o que às vezes é chamado de “Monarquianismo dinâmico”:
Jesus era um mero homem que entrou progressivamente em um
relacionamento com Deus no qual foi cada vez mais penetrado com
o ser divino, até que finalmente se tornou Deus. O terceiro século
também testemunhou a heresia do Sabelianismo ou
“Monarquianismo Modalista”. Sabélio afirmava que havia apenas
uma pessoa na Divindade que se manifesta em três “modos”
diferentes: Às vezes ele é conhecido como o Pai, por vezes, como o
Filho, e às vezes, como o Espírito Santo.

O próximo heresiarca é Apolinário do século IV. Ele concluiu que


Jesus não era plenamente Deus, nem plenamente homem. Em vez
disso, ele era um ser humano (com um corpo humano e uma alma
humana), que foi habitado de tal forma pelo Logos divino que deve
ser reconhecido como uma combinação ou como uma mistura das
duas naturezas. Nessa combinação, Jesus era dois terços humano
e um terço divino. No século V, temos Eutiques, o Monofisita. Ele
alegou que o Cristo encarnado tinha apenas uma única natureza
divina revestida de carne humana. Ele, portanto, concebeu Jesus
como uma mistura das duas naturezas, tornando-o uma terceira
natureza, um tertium quid (terceiro elemento).

O quinto século também trouxe o Nestorianismo. Nestório


reconheceu as deficiências dessas outras heresias. Mas ele
também viu a dificuldade de manter que Cristo era totalmente Deus
e totalmente homem, enquanto ao mesmo tempo ensinava que ele
era apenas uma pessoa. Isso, disse Nestório, é irracional. Como
Thomas Morris apontou, outros pensadores cristãos, como Gregório
de Nissa (c. 330-395), Gregório de Nazianzo (329-389) e Cirilo de
Alexandria (d. 444), também tinham visto este problema. Eles não
foram tão longe como Nestório em concluir que Cristo deveria ter
sido duas pessoas distintas, mas pelo visto eles abraçaram o que
Morris chama de “o ponto de vista das duas mentes de Cristo”. Não
é racional para esses pensadores manterem que o Deus-homem
tem apenas uma autoconsciência. Se assim fosse, ele não poderia
ser plenamente homem.

Nestório, que teve grande número de seguidores, foi tachado de


herege, junto com os outros listados acima. Mas por que ele foi tão
marcado? O que alguns dos primeiros líderes da igreja tiveram
contra este homem? Como citado pelo Dr. Clark, o historiador João
Cassiano escreveu volumosamente contra Nestório. Cassiano diz:
“Nestório sustentou que o que foi formado no ventre de Maria não
era o próprio Deus”, e que “ninguém nunca deu à luz a um que era
antes dela” (11-12). Mas qual é o problema com isso? Não é óbvio
que a eterna segunda pessoa da Trindade não poderia ser formada
no ventre? O Logos divino, sendo eterno, nunca poderia nascer.

Foi por esta razão que Nestório se recusou a chamar Maria, mãe de
Jesus, de Theotókos (“mãe de Deus” ou “portadora de Deus”),
como lemos no Credo de Calcedônia. Nestório explica: “Em todos
os lugares, a Escritura de Deus, quando faz menção da encarnação
do Senhor, transmite-nos um nascimento e um sofrimento não da
divindade, mas da humanidade do Ungido [i. e., Cristo], de modo
que a santa virgem deve ser chamada pela denominação mais
precisa ‘portadora do Ungido’; e não ‘portadora de Deus’. Mais uma
vez, isso está longe de ser herético. Isso é uma verdade bíblica
quando devidamente formulada. No entanto, este problema era
mais controverso do que a relação entre as duas naturezas. Mesmo
Agostinho realizava e praticava a Mariologia. Maria já estava
elevada na Igreja como sendo a Mãe de Deus e essa doutrina
estabelecia a sua veneração. Mas será que Nestório acreditava
mesmo no que seus acusadores alegaram? O Dr. Charles Hodge,
professor de Teologia no Seminário Teológico de Princeton,
escreveu sobre a história dessa questão ao lidar com Nestório,
dizendo que:

Tendo a integridade das duas naturezas em Cristo sido assim


afirmada e declarada como sendo a fé da Igreja, a próxima questão
que surgiu se referia às relações das duas naturezas, uma com a
outra, na única pessoa de Cristo. Nestorianismo é a designação
adotada na história da igreja para a doutrina que afirma ou implica
uma personalidade dupla em nosso Senhor. O Logos divino era
representado como habitando no homem Cristo Jesus, de modo
que a união entre as duas naturezas era um tanto análoga à
habitação do Espírito. A verdadeira divindade de Cristo estava
assim ameaçada. Ele se distinguia de outros homens nos quais
Deus habitava apenas pela plenitude da presença divina e pelo
controle absoluto do divino sobre o humano. Essa não era a
doutrina real ou declarada de Nestório, mas foi a doutrina imputada
a ele, e era a conclusão à qual seus princípios supostamente
levavam. Nestório foi um homem de grande excelência e eminência;
primeiro um presbítero em Antioquia, e depois Patriarca de
Constantinopla. A controvérsia sobre este assunto se levantou da
defesa de um de seus presbíteros que negava que a Virgem Maria
poderia ser adequadamente chamada de ‘Mãe de Deus’. Como esta
designação da bem-aventurada Virgem já tinha recebido a sanção
da Igreja e era familiar e querida pelo povo, a objeção de Nestório
ao seu uso incitou oposição geral e violenta. Ele foi acusado de
heresia apenas por causa disso. Como, no entanto, há um sentido
em que Maria era a Mãe de Deus e um sentido em que tal
designação é blasfema, tudo depende do real significado atribuído
aos termos. O que Nestório quis dizer, de acordo com sua própria
afirmação, era simplesmente que Deus, a natureza divina, não
poderia nem nascer nem morrer.

Há duas coisas às quais o leitor deve prestar atenção nessa


declaração de Hodge. Primeiro, Hodge ressalta que “Esta não era a
doutrina declarada ou real de Nestório, mas foi a doutrina imputada
a ele e era a conclusão à qual seus princípios supostamente
levavam”. Agora, o que torna isso interessante é que o Dr. Hodge é
um dos teólogos mais reconhecidos e respeitados na história da
Igreja Cristã (que passou a ser um dos teólogos favoritos do Dr.
Clark). Hodge sustenta que Nestório foi acusado de forma injusta e
que seus ensinamentos foram forçados a uma conclusão que ele
não havia feito. Isto é muito importante na nossa análise. Porque os
escritores acreditam que é exatamente o que ocorreu com as falsas
acusações contra o Dr. Gordon Clark. Em segundo lugar, ele
observa que “há um sentido em que Maria pode ser chamada de
Mãe de Deus e outro sentido em que tal designação é uma
blasfêmia”. Hodge então aponta: “O que Nestório quis dizer, de
acordo com sua própria afirmação, era simplesmente que Deus, a
natureza divina, não poderia nascer nem morrer”. Por que isso é
importante? Hodge sustenta que a chave para responder à questão
Theotokos foi, em princípio, respondida na formulação de
Calcedônia. Hodge primeiro nos diz que Nestório não era um
Nestoriano, e depois ele aponta que Maria só dá à luz a natureza
humana, corpo e alma, e a Segunda Pessoa da Trindade é
colocada naquele útero. Devemos retornar à própria tentativa do Dr.
Hodge de resolver as questões que ainda não foram explicadas
com clareza em Calcedônia quanto ao que constitui uma “pessoa
humana” ou uma “natureza humana”.

Portanto, não deveria ser surpresa que Cassiano também acusou


Nestório de ter ensinado que não foi Deus o Filho que sofreu na
cruz (11). Isso não é heresia. Deus é impassível e não pode sofrer.
O Cristianismo Ortodoxo sustenta que Cristo sofreu na cruz no
tocante à Sua humanidade, não Sua divindade. Até agora, parece
que Nestório é culpado apenas por afirmar que Jesus Cristo era
plenamente Deus (uma pessoa divina) e plenamente homem (uma
pessoa humana), e por separar indevidamente as duas pessoas.

Na seção três (15-17) o Dr. Clark discute “a falha fatal” nesta


matéria, ou seja, a ausência de definições. Como é que o Credo, e
como outros, definiram “pessoa”? Qual seria a definição de
“subsistência” e “natureza”? Aqui está a dificuldade. O autor sugere
a definição de uma “pessoa” como um “complexo de pensamentos
ou proposições” (54-55, 64, 76). Como ensinado em Provérbios
23:7: “como ele [uma pessoa] pensa em seu coração, assim ele é”.
Uma pessoa é o que ela pensa. O autor volta a esta definição mais
tarde em seu livro.

A seção quatro (17-22) cobre “a Idade Média e a Reforma”,


incluindo parte do século XVII também. Durante este período de
tempo, entre outras coisas, a unidade da pessoa divina e humana
foi enfatizada. O Dr. Clark explica o que ocorreu da seguinte forma:

A hipóstase do Filho não produz apenas a unidade pessoal: É a


pessoa do Deus-homem. O Logos é a pessoa. Isso requer dois
pressupostos não encontrados no Credo de Calcedônia. Primeiro, o
Logos assume o lugar do Ego para o lado humano de Cristo. Em
segundo lugar, pressupõe a humanidade de Jesus, mas nega a sua
personalidade. Caso contrário, se o Logos é uma pessoa e se o
Jesus humano é uma pessoa, o resultado é o Nestorianismo.
Portanto, a natureza humana de Cristo é impessoal. Essa se tornou
a visão comumente aceita, mas ela envolve uma grande dificuldade.
Fora o fato de que, para a maioria das pessoas a ideia de "natureza
humana impessoal" é uma esquisitice, para dizer o mínimo, a visão
oscila entre a sua tendência em se tornar Nestoriana e sua
tendência igualmente clara em se tornar Apolinariana. Se a
natureza humana não tem vontade humana, não é de uma natureza
humana e, portanto, a visão se reverte ao Apolinarianismo. Mas se
a humanidade de Jesus inclui uma vontade humana e é, portanto,
um ser humano completo, temos o Nestorianismo novamente. Nem
a Cristologia antiga e nem a moderna escaparam desse dilema.
Também pode-se ter em mente que a Trindade tem três pessoas,
mas apenas uma vontade.

O autor conclui essa seção dizendo que “nem a Igreja Católica


Romana nem as igrejas protestantes resolveram esse problema; a
Igreja Grega não é muito melhor” (22).

Os últimos cento e cinquenta anos viram um ressurgimento no


estudo da doutrina da encarnação. Portanto, na seção cinco (22-
50), o Dr. Clark nos leva ao século XIX. Ele primeiro cita a obra de
H. C. Powell, que afirma “que a igreja primitiva não tinha ideia de
uma personalidade individual ou ego”. Powell prossegue, dizendo
que o primeiro estudioso a tentar definir uma pessoa foi o
racionalista do século XVI Descartes. Outros, é claro, seguiram-no.
Mas o cerne da questão é que, quando os primeiros teólogos foram
formular a doutrina da encarnação, os termos utilizados eram, pelo
menos, um tanto ambíguos. Talvez esta seja uma das razões pelas
quais tal confusão é proeminente nesta área da Cristologia.

Pulando neste parágrafo para a seção seis (50-55) por um breve


momento, o Dr. Clark retorna às “definições”. Ele cita Provérbios 23:
7 como a melhor maneira de descrever uma pessoa, ou seja, ela é
“um composto de proposições”; “como um homem pensa em seu
coração, assim ele é. Um homem é o que ele pensa... Se as
proposições forem verdadeiras ou falsas, uma pessoa é as
proposições que ele pensa”. Se esta definição for usada, então
Cristo deve ser uma pessoa humana, porque Ele tinha
pensamentos humanos, e sendo onisciente, Ele também deve ser
uma pessoa divina.

Voltando à seção cinco, destacamos que o Dr. Clark cita a obra de


dois outros teólogos do século XIX: Charles Hodge e W. G. T.
Shedd. Suas tentativas de resolver o problema da união hipostática
são altamente problemáticas. Hodge afirma que “a natureza [de
Cristo] nunca é distinguida da outra como uma pessoa distinta. O
Filho nunca aborda o Filho do homem como uma pessoa diferente
de si mesmo” (45). Hodge parece concluir que, se Cristo tivesse
sido duas pessoas, então algum tipo de conversa seria registrada
entre as duas. Como o Dr. Clark aponta, isso é um erro lógico. Em
primeiro lugar, até mesmo como João declara no final do seu
Evangelho (João 21:25), há muitas coisas que Jesus fez que não
estão registrados na Bíblia. Talvez as duas pessoas tenham tido
conversas das quais não nos é dito. Em segundo lugar, talvez
nenhuma conversa foi necessária. O Logos, sendo onisciente, teria
conhecido todas as coisas que a pessoa humana estava pensando
mesmo antes de falar. Em todo o caso, o argumento de Hodge é
baseado no silêncio, e um argumento do silêncio é sempre uma
falácia.

Em sua Teologia Sistemática, Hodge afirma que o “Jesus Cristo


homem” tinha uma substância, natureza, atributos e uma alma ou
uma mente, todos os quais eram diferentes do Logos. Mas, como o
Dr. Clark escreve: “natureza, mais atributos, mais substância, mais
alma, não formam uma pessoa?” (43).

Shedd simplifica toda a questão. Em sua Teologia Dogmática ele


simplesmente afirma que “o Deus-homem era uma nova pessoa”
(47). Agora, uma vez que Shedd nega que Jesus era uma pessoa
humana, nesta declaração ele está dando a entender que a
Segunda pessoa da Trindade mudou, ou seja, ocorreram
alterações. Mas ele deixa isso ainda mais explícito quando escreve:
“A própria Trindade não é alterada ou modificada pela encarnação.
Apenas a Segunda Pessoa é modificada”. Esta é uma declaração
realmente espantosa vinda de um teólogo da estatura de Shedd. De
alguma forma ele diz que o Filho imutável de Deus tornou-se
mutável.

Os atuais escritores acrescentariam que a confusão continua no


século XX. Louis Berkhof, por exemplo, escreve:
Só há uma pessoa no Mediador, e essa pessoa é o imutável Filho
de Deus. Na encarnação Ele não se transformou em uma pessoa
humana, nem adotou uma pessoa humana; Ele simplesmente
assumiu uma natureza humana, que não se desenvolveu em uma
personalidade humana, mas tornou-se pessoal na pessoa do Filho.
A única pessoa divina, que possuía uma natureza divina desde a
eternidade, assumiu uma natureza humana e agora possui ambas.

Aqui Berkhof declarou corretamente a posição da ortodoxia


tradicional. Mas, no mesmo parágrafo, ele prossegue dizendo:
“Após assumir uma natureza humana a pessoa do Mediador não é
apenas divina, mas sim divino-humana... Embora Ele tenha apenas
uma única autoconsciência, ele tem tanto uma consciência divina
quanto humana, bem como uma vontade divina e humana”.

Nestas últimas frases, Berkhof contradiz o que afirmara


anteriormente. A imutável Segunda Pessoa da Trindade, de fato,
mudou. Ele já não é somente divino; Ele agora é “divino-humano”.
Segundo, a pergunta precisa ser feita: “Como pode haver apenas
uma autoconsciência e, ao mesmo tempo, duas consciências?” O
que, ou quem, pode ser consciente, exceto uma autoconsciência?

Depois, há Morton Smith. Em concordância com a formulação de


Calcedônia, ele sustenta a visão tradicional. No volume um de sua
Teologia Sistemática, o Dr. Smith escreve: “Não há duas
personalidades em Cristo, mas duas naturezas em uma pessoa”.
Além disso, ele afirma que, no tocante à sua natureza humana,
“Cristo era verdadeiramente homem”. Mas em seguida o Dr. Smith
acrescenta: “Foi a pessoa divina que assumiu uma natureza
humana impessoal. Em outras palavras, ele não se uniu a uma
pessoa humana, mas a uma natureza humana”. É de se perguntar
não apenas o que é “uma natureza humana impessoal”, mas
também como Cristo pode ser considerado “verdadeiramente
homem” e não ser uma pessoa humana.

Também é desconcertante quando lemos a declaração do Dr. Smith


de que “a pessoa de Cristo pode ser descrita como teantrópica, mas
não as suas naturezas”, pouco antes da alegação de que “foi a
Pessoa divina quem assumiu uma natureza humana impessoal”.
Como é possível para a segunda pessoa divina, que é imutável,
passar a ser “teantrópica”?

Como observado acima, as respostas dos teólogos ortodoxos à


questão levantada por John Hick foram terríveis. Nas duas seções
finais de seu livro, entretanto, o muito ortodoxo Gordon Clark nos dá
algumas respostas. O Dr. Clark, após retomar sua análise na Seção
sete (55-64), na Seção oito (64-74) discute o assunto “Pessoas
Divinas e Humanas”. “Se Jesus não era uma pessoa humana”,
pergunta Clark, “quem ou o que sofreu na cruz? A Segunda Pessoa
não poderia ter sofrido, pois a Deidade é impassível... Se, então, a
Segunda Pessoa não poderia sofrer, poderia a natureza [um
humano impessoal] sofrer?” (67).

Dr. Clark continua: “Pelo contrário, apenas... uma pessoa pode


sofrer”. Além do mais, pergunta o autor, “como pode uma
consciência humana, com mente, coração e vontade, ainda não ser
uma pessoa humana?” Além disso, se a Bíblia ensina, como o faz,
que ele é “Jesus Cristo Homem” (1 Timóteo 2: 5), como, podemos
perguntar, “pode um homem ser um homem sem ser uma pessoa
humana?” A salvação dos eleitos é realizada “pela suposta morte
de uma natureza [humana] impessoal?” Não, se a Bíblia ensina que
era “Jesus Cristo Homem”, que foi para a cruz em favor de
pecadores eleitos, então “aquele que morreu na cruz foi um homem,
ele tinha ou era uma alma, ele era um ser humano, uma pessoa”.

John Murray, um defensor da visão de Calcedônia, no entanto,


também viu a dificuldade de “definições”, como ele escreve:

Pode ser que o termo "pessoa" receba uma conotação em nosso


contexto moderno e seja aplicado à natureza humana de Cristo,
sem interferir, assim, sobre a unidade da sua Pessoa divino-
humana. Em outras palavras, o termo "natureza" pode ser muito
abstrato para expressar tudo o que pertence à Sua humanidade e o
termo "pessoa" se torna necessário para expressar a humanidade
que é verdadeira e propriamente Sua.

Os escritores atuais estão de acordo com Clark e Murray neste


ponto. Parece melhor, se quisermos manter a linguagem clássica
sobre este assunto (isto é, pessoa e natureza), dizer com a
Confissão de Westminster (8.2) que Jesus Cristo possui “duas
naturezas inteiras, perfeitas e distintas, a Divindade e a
humanidade”, isto é, que Ele é totalmente Deus e totalmente
homem. E que na encarnação essas duas naturezas “foram
inseparavelmente unidas em uma Pessoa, sem conversão,
composição ou confusão. Pessoa que é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, porém um só Cristo, o único Mediador entre
Deus e o homem”.
Ou seja, há um só Senhor Jesus Cristo, um Deus-homem (ou seja,
uma única Pessoa), que possui duas naturezas distintas e
inseparáveis, ambas as quais devem ser consideradas “pessoais”,
no sentido de que ele é plenamente divino e plenamente humano.
Não há nada impessoal nas naturezas divina ou humana. Do
contrário, Jesus Cristo não poderia ser totalmente Deus ou
totalmente homem. No tocante à Sua humanidade, Cristo tem uma
mente ou alma humana e um corpo humano. Ele é “Jesus Cristo
Homem” (1 Timóteo 2:5).

Na seção nove (75-78) o Dr. Clark alcança “A Conclusão”. Ele


ofereceu uma definição de uma pessoa. Isso é algo que a igreja
primitiva e muitos outros depois dela não conseguiram fazer. Como
observado, de acordo com o Dr. Clark uma pessoa é “uma
composição de proposições”. Sendo este o caso, Jesus Cristo é o
único Deus-homem, que é tanto uma pessoa divina (natureza)
como uma pessoa humana (natureza). Ele é “um Jesus Cristo”,
plenamente divino e plenamente humano. Ambas as naturezas
divina e humana (pessoas) são composições de proposições.

Deve notar-se que Gordon Clark não separa as duas pessoas de


Cristo, como os nestorianos fazem; em vez disso, ele “distingue”
entre elas. É importante compreender a diferença entre “separação”
e “distinção”. No entanto, muitos podem amortizar a conclusão de
Clark denominando-a como “Nestorianismo”. Mas esse é apenas
um caso de argumentação abusiva ad hominem. Deixe-os mostrar
onde é que o Dr. Clark errou. Ele tentou o que poucos tentaram -
definir uma pessoa para que o significado possa ser atribuído a
"uma pessoa". Na opinião destes colaboradores, A Encarnação é
um importante passo à frente nas discussões cristológicas.

Infelizmente, o Dr. Clark morreu antes de terminar seu manuscrito.


Mas acreditando que só precisava de mais alguns parágrafos, ele
pediu a John Robbins que o completasse para ele. As palavras
finais do Dr. Robbins resumem adequadamente os pensamentos de
Clark sobre o assunto:

Se, como parece ser o caso, temos agora uma solução para os
enigmas da Encarnação, uma solução que evita as contradições e
as palavras sem sentido das formulações tradicionais, uma solução
que é sustentada pela própria Escritura, nós somos obrigados a
aceitá-la. Jesus Cristo foi e é tanto Deus como homem, uma pessoa
divina e uma pessoa humana. Negar qualquer delas é incorrer no
erro. Uma vez que os termos-chave estão definidos e claramente
entendidos, a Encarnação é um milagre ainda mais estupendo e
imponente do que a igreja tem imaginado até agora.

Este é um resumo adequado dos ensinamentos do Dr. Clark em A


Encarnação, se entendermos o que ele quer dizer com “uma
pessoa”. Se perdermos esse ponto, vamos perder o que o Dr. Clark
está dizendo nesta monografia. Queremos agora olhar mais
especificamente para a unidade da pessoa de Cristo.

Mais um ponto deve ser esclarecido. O Dr. Clark endossou a


posição da Confissão de Westminster sobre a encarnação e sua
importância na compreensão adequada tanto do ofício mediador de
Cristo quanto do nascimento virginal, conforme manifestado pelo
credo de Calcedônia. Clark escreve:

Esta doutrina de Calcedônia é necessária para sustentar a função


do ofício Mediador de Cristo. A razão é que, se Cristo fosse um
mero homem, ele não poderia funcionar como mediador; nem
poderia se ele também fosse simplesmente Deus. Em ambos os
casos ele estaria confinado a um extremo e não conseguiria unir os
dois. Se Cristo não fosse nem Deus nem homem, mas um anjo ou
qualquer outra coisa, ele seria uma barreira entre Deus e o homem,
em vez de ser um mediador. Mas, como Deus e homem, tão
verdadeiramente Deus, como homem e tão verdadeiramente
homem, como Deus, Cristo pode ser o Mediador e unir Deus e os
homens.

O Dr. Clark prossegue afirmando: “No meio da seção dois a


Confissão afirma o método que Deus escolheu para realizar a
encarnação. Cristo tornou-se homem pelo nascimento virginal”.

O Dr. Clark não estava tentando contradizer a doutrina de


Calcedônia que historicamente havia sido formulada e aceita na
Igreja de Jesus Cristo. Em vez disso, como qualquer bom teólogo
filósofo, ele estava buscando dar maior especificidade na
compreensão de uma doutrina que tem causado questões
preocupantes relativos à doutrina da Encarnação. Ele tentou
colaborar, como outros antes dele fizeram e aqueles depois de sua
morte tentaram.
O ponto do Dr. Clark, como o de Murray, vai ao problema real: o
que significam os termos? Como os definimos? Definição, ensinou o
Dr. Clark, é essencial para qualquer discussão teológica ou
filosófica. Em suma, a formulação de Calcedônia é mantida e
defendida pelo Dr. Gordon Clark.

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