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d«diálogo
I Itinerários
\ n te r -r e iig io s o s
I F a u s ü n o T e ix eira
1
Thomas Merton:
um itinerário dialogai
T h o m as M erton rev ela-se uma das figuras m ais im p ressio n an tes e in
flu entes na Ig re ja C ató lica romana do sécu lo X X . 1 Foram poucos os co n te m
plativos q u e provocaram tam anho im pacto no âm bito de sua O rdem re lig io
sa, com o ig u alm ente na Ig reja e na so cied ad e com o um todo. R e v e lo u -se
com o algu ém d esco n certa n te , polêm ico, provocador. Su a a tu a çã o dividiu
o p in iões. O seu itin erário esp iritu al rompe com os padrões h a b itu a is e nor
m alm ente a ce ito s: co n segu e a rticu la r a ex p e riê n cia rigorosa da T rap a com
o B ud ism o zen : sua ex p e riê n cia contem p lativa com a luta co n tra o ra cism o
e em favor da não v io lên cia. Su a reação é firme co n tra a guerra do \ ietn ã e
outras atro cid a d es de seu tempo. Toda a sua vida foi m arcad a p e la b u s c a da
a u ten ticid a d e e p e la sed e do M istério de D eu s.2
T h o m as M erton n a sce em P rad es, nos P irin eu s fra n c e s e s , em 3 1 d e j a
neiro d e 1 9 1 5 . Seu pai era da Nova Z elân d ia e su a m ãe. a m e ric a n a . A m bos
eram a rtista s. R e c e b e u sua form ação na F ra n ça . In g la terra e E sta d o s l nid os.
D ep o is d e u m a tem porad a no C ollege de C am brid ge. na In g la te rra . M erton
fix a -se na cid a d e d e Nova York, in scre v en d o -se aos v inte an o s n a C o lu m b ia
U niversity. N e ssa u n iv ersid ad e, situ ad a no co ra çã o d e N ova Aork. seg u irá
m uitos c u rso s: e sp a n h o l, alem ão , g eologia, d ireito c o n s titu c io n a l e lite ra tu ra
fra n c e s a . O b tém a li, em 1 9 3 8 . a iáu rea em lite ra tu ra in g le s a , co m um tra
b alh o so b re o p o eta e m ístico W illiam B la k e . A retom ad a do C ristia n ism o ,
após um p eríod o d e flerte com o com u nism o, a co n te c e u por volta d e 1 9 3 8 . A
le itu ra d e um livro de E tie n n e G ilso n so b re o espírito ria filoso fia m e d iev a l.
\ mais rlássica t* romplel.! Imigraíui de Merton foi esorita por Mieharl MOÍ 1. Thr .V \t
tains of Thomas Merton (RoMon: lloughlon MiíHin, 1084).
KARCKT. GiU*í>. Thomas Merton. un Irappi.sta pne <) / Ünent. l\m>: Vll»m Mu hrt. p 'l -
2.
:\
2s
Pl'SlAr>ORIS PO piktooo
5 MERTON, Ttuimiis. .1 montanha dos sele patamares. 6. ed. Sâo Paulo: Mérito. 1958. p. 226.
' Ibiil.. p. 214-219.
s lliid., p. 219.
“ A Ontem dos Cisletvienses, do estreita observ ância.
Rimpoebe é um tílulo de deferência no Budismo tihetano conferido a uni lama mais graduado
ou mestre espiritual.
MERTON, Tliomas. Diário da Ásia. Belo Horizonte: Vepa, 1078.
26
.' M '< M M /
Um buscador
Thomas Merton foi antes de tudo um buscador. Toda a sua vida foi mar
cada pela ideia da partida, da viagem para um rumo que só Deus conhece.
Este autor lembra, ao final de sua clássica obra 4 montanha (los sete patama
res: “Num certo sentido, estamos sempre viajando, e viajando como se não
soubéssemos para onde vamos [...]. Não podemos alcançar a posse perfeita
de Deus nesta vida e é por isso que estamos viajando, e no escuro"."1 Em
outra clássica oração, inserida na obra 4 liberdade da solidão. refiete:
Senhor, meu Deus, não sei para onde vou. Não vejo o caminho diante
de mim. Não posso saber com certeza onde terminará. Nem sequer,
em realidade, me conheço, e o fato de pensar que estou seguindo a tua
vontade não significa que, em verdade, o esteja fazendo. Mas creio que
o desejo de te agradar te agrada realmente. E espero ter esse desejo em
tudo que faço...11
J M l , p. 270-272.
1,1 UI., 1 montanha dos sele patamares, p. 8. lá. Diálogos tom o silêncio. Rio áe Janeiro: Fk-us.
2003. p. 13.
11 lá. Vo lihenlade da solidão. Petrópolis: Votes. 2001. p. 6o.
27
S .'.* !Y > ff< {V P ’*lOGC
Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha
esperança é simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar pro
veito. aprender, mudar, talvez encontrar alguma coisa ou alguém que
me ajude a avançar em minha própria busca espiritual. [...] Sinto que
HART. Patrick; MONTALDO. Jonathan iedí.<. Merton na intimidade. Rio de Janeiro: Fissus,
2001. p. 16.1
Ibid.. p. 244.
MERTt)N. Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Aozes, 1970. p. 213.
1<4—CARDENAL Emento. Correspondência 'J959-J96S;. Madrid: Trotta. 2003. p. 190 íearta
datada de 21 de julho de 1068».
FARCET. Thomas Merton, un trappista face à l 'Orient, p. 18.
28
‘Gv •-- 7 / r
0 apelo da contemplação
Thomas Merton teve em sua vida írê- apelos interior*^; o apelo da ron
templação. da convocação a compaixão e da alertara dialogai. *>ua voeacãr
mais forte foi sempre a monástica. A -ede de roniempiação traduz o toque
de sua personalidade. A oração e a -olidão constituíam ~eus dois amores
e foram ganhando consistência no engajamento crescente de Merton com a
vida eremítica. a partir de 1965. Relata em seu diário a grande -atisfação de
poder aprofundar sua experiência pes~oal e a relação com Deus na ermida
de Gethsemani. Im a experiência de "solidão sonora- , quando "as cordas
são largadas e 0 barco já não está mais preso a terra, mas avança para 0
mar sem amarras, sem restrições! Não 0 mar da paixão, pelo contrário, o
mar da pureza e do amor sem preocupações- . Esta experiência é vista por
ele como essencial para 0 despojamento interior e a afirmação de uma vida
autêntica. 0 desafio de viver a plenitude do silêncio e a paz verdadeira: "[...]
sair de mim pela porta do eu. não porque 0 queira, mas porque fui chamado
e devo atender \19 0 eremitério é fonte de perene alegria:
E uma delícia. Não posso imaginar outra alegria na Terra além de ter
um tal lugar e nele ficar em paz. viver em silêncio, pensar e escrever,
ouv ir 0 vento e todas as vozes da mata. viver à sombra da grande cruz de
cedro, preparar-me para minha morte e meu êxodo para 0 país celestial,
amar meus irmãos e todas as pessoas, rezar pelo mundo todo e pela paz
e o bom senso entre os homens.20
29
Pii>.i Aoo*rs no niAim.o
Minha solidão não é minha, pois vejo agora quanto ela lhes pertence - e
que tenho uma responsabilidade em relação a eles, e não apenas minha.
[...] Aconteceu, então, subitamente, como se eu visse a secreta beleza
de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado,
nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é. o cerne
da realidade de cada um. da pessoa de cada um aos olhos de Deus. Se
ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos
pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo. sempre. Não haveria
mais guerra, nem ódio. nem crueldade, nem ganância... Suponho que
o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns
aos outros.23
MERTON. Thomas. Poesia e contemphfõo. Rio de Janeiro: Agir. 1972. p. 22. Na visão At
Merton. “a verdadeira contemplação r imeparável da vida e do dinamismo da vida - que inclui
trahalho. criação, pnxhiçào. fecundidade e sobretudo amor. [...] A contemplação é a própna
plenitude de uma vida inteiramenie integrada": ibid- p. 154.
CARDEN AL Ernesto, lida perdida. V^nárias 1. Madrid: Trotta. 2005. p. 144 e 204.
MERTON. Rfiexòes de um espectador cJpado. p. 182-183.
UAfjMt'j E/f irrpn )M 01ALOCAL
loeíJulo f^-líi provocação flc viver o H^safio fia alííTKlad^/1 \ »i-u ver. urna *>o-
IifIão que não 6 animada pelo amor nada significa, pois é ele que dá sentido
a vida: |...| a verdadeira solidão abraça tudo. porque é a plenitude <lo amor
que não rechaça nada nem ninguém, e está aberta a Tudo ern Tudo”.2' Para
Merton, no íntimo do ser humano, ern seu centro, há um "ponto virgem” , urn
ponto como que vazio, de pura verdade, que favorece a ai>ertura das portas
da percepção do Real. írata-se de um ponto que pertence radicalmente a
Deus: “[...] esse pontinho de nada e de absoluta pobreza é a pura glória de
Deus em nós’ 2'' Em sua rica experiência na Trapa, Merton pôde sinalizar
essa presença do "ponto virgem" na aragem da aurora. 0 hábito de acordar
muito cedo, em torno das duas e quinze da madrugada, favoreceu o acom
panhamento do despertar misterioso do dia, da expectativa da "escuta do
inesperado”:
Há em Merton uma sede infinita pelo mistério que habita o recanto mais
secreto do ser humano e que brilha na criação. Trata-se de um mistério des
conhecido, que habita dimensões profundas e que é "eterno descobrimen
t o A natureza serve de inspiração para o místico perceber a importância do21
21 MERTON. Thomas. Nu liberdade da solidão. Petrópolis: Vozes. 2001. p. 92. B1ANCHI. Enzo.
Prefazione. In: ALLCHIN, D. et at. Thomas Merton. Solitudine e comunione. Magnano: Quiqa-
jon. 2006. p. 7.
2i> MONTAI.0 0 , Jonathan (ed.). iIn ano con Thomas Merton. Meditaciones de sus "Diários”. San
tander. Sal Terrae. 2006. p. 107 (14 de abril de 1966).
' MERTON, Reflexões de um espectador culpado, p. 183. Vale assinalar o influxo do suflsmo e
do pensamento de Louis Massignon nesta reflexão de Merton sobre o “ponto virgem": BAKER.
Rob; HENRY. Gray. Merton & Sufism. Louisville: Fons Vitae, 1999. p. 63-88. Ver ainda:
SHANNON. William H. et al. The Tomas Merton Enciclojjedia. Maryknoll: Orbís Books. 2002.
p. 363-364.
2T MERTON, Reflexões de um espectador culpado, p. 151.
31
nu'.CAPom^ »o diAiogo__________________________ ______________________________ _
A passividade vem aqui entendida num sentido técnico, o mesmo utilizado por Joflo du Cruz
na Subida ao Monte Carnuda, onde íaJa em “deixar a alma na quietação e repouso”, ou tam
bém na ’'atenção aroom>a em Drus. sem partirular consideração, em paz interior, quietação e
descanso” i> 2.12.t> e 2.13,4*. Nào se trata dr um eMado de inatividade, mas sim de abertura
.1 ume>tado de ‘'receptividade", onde >e renuiu ia u tudo o que dificulta o trabalho de Deus no
coração, de abertura do olhar para receber o dom do mi^téno maior.
MFRTON. Rrflnôn dr um espetador culftado. p. 158.
•* H\RT; M0N7MD0. Merton na intimidade. p. 281.
Rrblandoem seu diáno a experiênc ia no eremitério, assinala: “Aqui a di-traçáo é fatal - leva-
-no5 rx (oravehnentt ao abismo. Não v requer, porém. concentração, ajiena- estar presez ü
H^RT; MOMALPO, Merton rui intimidade, p. 291.
'rlQVAS METTON: >JM ITINESÁSIO D’AlOCAL
32 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. 2. ed. Rio de Janeiro: Fissus, 2001. p. 10. ,
HART: MONTAI.OO, ;Uerlon na intimidade, p. 276ss. SHANNON et al.. The Tomas Merton
Enciclopédia, p. 104-108. Ver tamhém o belo texto de Merton sobre a chuva e o rinoceronte:
MERTON, Thomas. Incursiones en lo indecible. Barcelona: Pomaire, 1967. p. 15-26.
1 HART; MONTALDO, Merton na intimidade, p. 284. Merton justificava em seu diário o ver
dadeiro significado de sua solidão: “Não venho à solidão para 'atingir os píncaros da contem
plação’, mas para descobrir penosamente, para mim mesmo e para meus irmãos, a verdadeira
dimensão escatológiea de nosso chamado" - ibid.. p. 299.
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. São Paulo: Duas Cidades, 1969. p. 69-71.
33
BuStAOORSS IX' PiAlOoO
Convocação à compaixão
A experiência contemplativa de Mellon eslava longe rle levar a um
quietismo. Em sua compreensão, a vida eremíliea introduz no mistério fun
damental da misericórdia de Deus: “Para poder viver ieliz em solidão, tenho
de ter um conhecimento cheio de compaixão a respeito da bondade dos ou
tros. um conhecimento reverente sobre a bondade da criação inteira, um co
nhecimento humilde da bondade de meu próprio corpo e de minha alma”. 16
Sua vida contemplativa envolvia um chamado da compaixão. Na introdução
japonesa de sua clássica obra .4 montanha dos sete patamares, assinalou que
0 mosteiro “não é um caminho de fuga do mundo”, mas um lugar onde se
assume verdadeiramente as “lutas e sofrimentos do mundo”.3738Foi animado
pela ecumene da compaixão que Merton se posicionou criticam ente'em face
das injustiças do mundo: contra 0 racismo, os campos de concentração, a
guerra nuclear, as tiranias econômicas, 0 conflito no Vietnã etc. A expres
são de seu pensamento a respeito foi traduzida em seu livro sobre a paz na
era pós-cristã,® que encontrou grandes dificuldades para sua publicação no
início da década de 1960. Alguns autores chegam a afirmar que esta obra
teve um importante influxo no Concílio Vaticano II e, em particular, na encí
clica Pacem in Terris, de João X X III, publicada em abril de 1 9 6 3 .39 0 modo
como Merton compreendia a vida contemplativa produzia irritação em mui
tos, sobretudo entre aqueles que excluíam de sua perspectiva 0 engajamento
concreto no mundo. Sob 0 influxo de Gandhi, Merton foi captando com cada
vez mais clareza a relação da vida espiritual com a presença ativa no mun
do, com a “contemplação num mundo de ação”. Em trabalho onde comenta
alguns textos seletos de Gandhi, Merton salienta qüe “a vida espiritual de
uma pessoa é simplesmente a vida de todos se manifestando nela” . E mostra
a dinâmica relacional que une a vida interior e 0 compromisso social:
34
ThQMAS MfPTQN iJM iTI>/çpá?;q Qia ^r£.
A abertura dialogai
Outro forte apelo na vida de Thomas Merton foi a abertura dialogai. A
profundidade e radicalidade de sua abertura às outras tradições religiosas
foi se firmando sobretudo nos últimos anos de sua vida.11 A sensibilidade
dialogai já havia nele se instalado havia anos. desde o primeiro encontro
com Bracham ari, a leitura das obras de D. T. Suzuki e a amizade duradoura
que se estabeleceu entre os dois, os contatos enriquecedores com a tradição
sufi,40414243a abertura ao Tao na receptividade aos textos de Chuang Tzu,u além
de tantas outras leituras e encontros dialogais. Mas a experiência da Asia
foi decisiva e única para Merton, pois instaurou em seu coração um "diálo
go de profundis ”, uma nova convicção, alimentada agora pela força de um
encontro vital com a alteridade. Afirmava-se com vigor a realidade de um
“autêntico ecumenismo transconfessional"’.44
40 MERTON, Thomas. Um manual de não violência. Revista de Cultura Jices, v. 89. n. 5. p. 3-29.
1995 (a citação está na páginall).
41 Ver, a respeito: SHANNON, William H. Silent Lamp. The Thomas Merton Story. New York:
Crossroad, 1992. MOTT, The Seven Montains o f Thomas Merton, p. 469-571.
4' BAKER; HENRY, Merton & Sufism. p. 40-162.
43 Chuang Tzu (séc. 111 a.C.) é reconhecido como um dos mais espirituais filósofos chineses e
maior representante do Taoísmo. O interesse e abertura de Merton para os textos deste filósofo
começam por volta de 1960. Por incentivo de um amigo. John Wu. Merton acabou reunindo
alguns textos de Chuang Tzu para publicação, resultando no belo livro .4 via de Chuang Tzu,
publicado em 1965 (e traduzido no Brasil pela editora Vozes).
44 LLAVADOR, Fernando Bèltrán. Thomas Merton y la identidad dei hombre nuevo. In: LÓPEZ-
- BAR ALT. Luce; PIETRA. Lorenzo. El sol a mediunoche. Madrid: Trotta. 1996. p. 120-121 Para
William U. Shannon, estudioso de Merton. foi com a obra 1 experiência interior, de 1959. que
Merton estabeleceu pela primeira vez um elo mais sistemático com o pensamento religioso orien
tal. Cf. MERTON, Thomas./I experiência interior. São Paulo: Martins Fontes. 2007. p. \I\-Y\.
35
tu W |H' p i A u v o
Posso. eulAo. aproximar-mo dos Iludas descalço e atento, meus pês pi
sando o capim molhado, a areia molhada. Súbito, o silên cio dos extraor
dinários rostos. Os largos sorrisos. Vastos, contudo sutis. Contendo todas
as possibilidades; nada indagando; tudo conhecendo; nada desprezan
do; a paz - não. a paz da resignação emocional, mas de M adhyamika,45
de suvata,"’ que tudo percebeu sem desacreditar ninguém ou nada -
sem refutação - sem afirmar qualquer outro argumento. [...] Fui inva
dido por uma torrente de alívio, de paz e de gratidão diante da pureza
óbvia dos rostos, da limpidez e a fluidez da forma e da linha, o desenho
dos corpos monumentais integrados na forma da rocha e da paisagem,
figura, rocha e árvore. l-..| De repente, enquanto olhava essas figuras,
fui completa e quase violentamente arrancado da m aneira habitual e
restrita de ver as coisas. E uma clareza interior, patente, como que ex
plodindo das próprias pedras, tornou-se evidente e óbvia. [...] Nunca
em minha vida tive tal senso de beleza e de força espiritual fluindo ju n
tas em uma iluminação estética. Com Mahabalipuram e Polonnaruwa,
a minha peregrinação pela Ásia de certo tornou-se clara e purificou-se.
Quero dizer; sei e vi aquilo que obscuramente eu procurava. Não sei o
que resta ainda, mas eu agora vi e penetrei através da su perfície e ul
trapassei a sombra e a aparência. Isto é a Ásia em sua pureza, sem estar
encoberta pelo lixo asiático, europeu ou americano; e ela é clara, pura,
completa. Ela tem tudo; e de nada ca re ce .17
Caminho do meio.
Vazio. \áeuo.
MERTON. Diário do Ásia. p. 181-182.
36
ÍHQMAS Ml I [ON , M ' NI li I
w Ibid., p. 119. Experiência igualmenle descrita no sétimo volume dos diários dé Merton: Other
Side o f the Mountain. New York: HarperSanFrancisco, 1998. p. 286. Ver ainda: THURSTON.
Bonnie Bowman (Ed.). Merlon & Buddhism. Louisville: Fons Vitae, 2007. p. 77-83 e 186-187.
4” MERTON, Diário da Ásia, p. 254.
37
Bi v&cvsis rc> r*taioüo
msala [Hir oito dias: lendo, meditando e conversando com o povo du região,
que definiu como “o povo mais rezador que já vi” . Nas intensas e longas
conversas que teve com o dalai lama. Merton concluiu que ele captou a rea
lidade da meditação, que “certam ente a peneirou de modo muito com pleto e
profundo". Revelou-se para Merton como “um liomeni de alta realização”.50
Esse reconhecimento foi recíproco. Dalai lama saiu igualm ente marcado
pela força da presença de Merton, no qual reconheceu um “ser humano ple
no de bondade”, marcado por uma profunda exp eriên cia interior.51 Thomas
Merton encontrou ainda outros tibetanos que muito o im pressionaram em
sua viagem, como o rimpoche Chatral. E stab eleceu -se entre os dois uma
"perfeita compreensão”, como dois contemplativos que se encontravam “à
beira da grande percepção do real”. Ficou comovido com o encontro, e em
particular com a “perfeita sim plicidade” e a “liberdade com p leta” do rim
poche tibetano. a ponto de declarar que, se tivesse de se esta b elecer com
algum guru tibetano, ele escolheria Chatral.52 Foi muito d ifícil para Merton
avaliar o que significou para ele essa exposição à Á sia. Em sua percepção, o
que houve de mais rico foi o grau de com unicação estab elecid o e a partilha
da “experiência essencialm ente espiritual do ‘budism o’” .53
38
Thomas Meitoh um rrinegjgio oialocal
56 Ibid., p. 44.
57 FARCETT, Thomas Merton. un trappista face à I'Orient, p. 132. Ver ainda: MERTON. Thomas.
II coraggio delia verità. Casale Monferrato: Piemme, 1997. p. 82-83.
58 Ver, a respeito: THURSTON, Merton & Buddhism, p. 145-147.
39 A propósito da relação entre os dois, cf. KING, Robert H. Thomas Merton and Tich Shat Hanh.
New York: Continuum, 2003.
60 Este encontro de 1968 foi precursor de uma série de outros encontros monásticos mter-religio-
sos. Para maiores detalhes, cf. THOLENS, Cornelius J. A. Inconlri di un monaco ira Oriente e
Ocidente. Milano: Ancora, 1991. p. 122-127.
39
Pl SCXCOStS DO DIALOGO_______ ___________________ _________ _______________________________ _
MERTOX. Diário da ásia. p. 245. 0 texto completo das notas de Merton encontra-se nas pági
nas 245-249. de onde foram retiradas as próximas citações.
,í; De acordo com David Tracy. Merton vivenciou em profundidade uma conversação com o zen,
disponibilizando-se ao "risco“ da abertura e transformação. Mediante sua experiência concreta
pôde verificar a existência real de profundas “semelhanças na diferença" entre as duas tradi
ções. Cf. TRACV David. Pluralidad i ambiguedad. Hermenêutica, religián. esperanza. Madrid:
Trotta. 1987. p. 143 e lambem p. 141.
MERTON. Diário da Ásia. p. 248. .Algo semelhante falou Paul Tillich: “[...] na profundidade de
toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde ^ua importância e o horizonte para
o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a a uma liberdade espiri
tual que possibilita um no\o olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido
último da vida humana" - TILLICH. Paul. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968.
p. 1.3. Trata-se. como se vê. de uma aproximação do outro pela dinâmica da profundidade.
40
Thomas M erton , um itinerário dialogai
41
2
Henri le Saux:
nas veredas do Real
O diálogo inter-religioso reveste-se de uma importância fundamental
neste século X X I. Não liá probabilidade de vislumbrar um horizonte dis
tinto para as nações sem o cuidado em favor de caminhos alternativos de
conversação e diálogo entre as distintas tradições religiosas. Uma das possi
bilidades de tocar o nervo desta questão é apresentar histórias de vida mar
cadas pela vocação dialogai. Dentre os exemplos de buscadores de diálogo
mais impressionantes que o século XX conheceu destaca-se Henri le Saux
(swãniíZ Ahhishiktãnanda), o monge beneditino francês que ousou dar o obs
tinado salto no mistério da alleridado vivendo uma experiência singular de
imersão como cristão no mundo espiritual indiano. Como bem definiu Marie-
Madeleine Davy, ele loi um “barqueiro entre duas margens” .1 alguém que
viveu como poucos a aventura da liminaridade. Para Raimon Panikkar, um
de seus grandes amigos e discípulos, Ahhishiktãnanda foi “um dos espíritos
‘ocidentais’ mais autênticos que aportaram em nossas costas para se expor à
verdadeira experiência ‘indiana’”.2 Os estudiosos do diálogo inter-religioso
sublinham, com acerto, que “a realidade da autoexposição ao outro é condi
ção para o diálogo autêntico em nossos dias”. 1
Na trilha aberta por místicos cristãos como Eckhart, Kuysbroek e Suso,
o swõinu beneditino loi envolvido pelo mistério da interioridade. () acesso â
dimensão de profundidade foi favorecido pela sedução da índia, que preen
cheu tfslas as dimensões de seu ser, abrindo portas e janelas para uma ex-
43
B U S C A D O m DO Dl Al o c o
44
H enri le Sau /, nas veredas do Peai
anos. Permaneceu filho único por mais sele anos, até a chegaria ria irmã
Louise e rios outros cinco irmãos que vieram para alegrar o círculo familiar.
Tornou-se urn exemplo para todos. Sua biógrafa, Shirley du Boulay, assinala
que ele sempre permaneceu francês, mesmo depois de toda a sua imersão
na índia. Nunca abandonou a Bretanha, com seu imenso mar, e suas águas
permaneceram tatuadas em seu coração.7*
Já na infância esteve motivado pela vida sacerdotal. Sob o incentivo
de seus pais, foi encaminhado ao Seminário Menor de Châteaugiron, no su
deste de Kennes, depois de seguir a primeira formação na escola local. Sua
permanência nesse seminário se estenderá de 1921 a 1926, quando passa a
frequentar o grande seminário de Kennes, aos 16 anos. A vocação monástica
nasce da amizade nutrida no seminário com um rapaz que manifestara o de
sejo de tornar-se beneditino, mas cuja morte prematura interrompeu o sonho
almejado. Henri herda a vocação monástica do amigo e entra no mosteiro be
neditino de Kergonan em outubro de I929.*1 A grande paixão pelo silêncio (
ali alimentada e reforçada, bem como o amor pela liturgia e pela leitura dos
Padres gregos e Padres do Deserto. Henri le Saux vai ocupar por doze anos
a função de bibliotecário de Kergonan. A profissão solene é feita ern maio de
1935. Alguns dos biógrafos do místico beneditino confirmam que Kergonan
favoreceu um importante b a c k g ro u n d para o desdobramento de sua vocação.
Durante sua presença no mosteiro nasce uma de suas amizades mais sólidas,
com Joseph Lemarié, que chega na abadia em 1936. Firma-se entre os dois
uma relação de profunda confiança, que será testemunhada na longa corres
pondência que dura até o final de sua vida.9
A Abadia Sainte Anne de Kergonan, nu cosla sul da Bretanha, foi fundada em 1010. O seu
funcionamento foi interrompido por certo tempo no final do século XVII cm razão do antieleri-
calismo francês, mas retoma fôlego no século XIX com u presença de Dom Prosper Guéranger
- DU BOULAY, Iái grolle du coeur... p. 51.
LE SAUX, H. Lettres d u n sannyâsï chrétien à Joseph b m a rié . Paris: Cerf, 1999. Ver, a propó
sito: STUART, J. b bénédictin et le grand éveil. Paris: J.Maisonneuve, 1999. p. 61.
45
Bl’SCADOIffS PO DIÀIOCO
111 Du Boulay indica que o desejo de ir à índia acompanhou Le Saux desde o ano de 1934, antes
mesmo de sua ordenação - DU BOULAY. La grolle du coeur..., p. 84 e 87.
11 STUART, Le bénédictin et le grand éveil, p. 24.
12 DU BOULAY. La grolle du coeur, p. 85.
1,1 0 Padte Jules Monchanin (1895-1957) tinha se ordenado em Lyon, cm 1922. e partido para a
India em 1939, para atuar pasloralmente junto aos tâmiles na Diocese de Tiruchirapalli. Era
um nome hem conhecido, “não somente por suas brilhantes qualidades intelectuais e a ampli
tude de seu campo de interesses, mas também por sua profundidade espiritual e sua maravilho
sa capacidade de simpatia e amizade com as pessoas dos mais diversos meios" - STL ART. Le
bénédictin et le grand ereil, p. 25.
" MONCHANIN. J. Lettres au Père Le Saux. Paris: Cerf. 1995. p. 31 (carta de 7 de agosto de
19171.
46
H enri ie Sau x : nas veredas dp Real
de ashram , seja a pagãos ou cristãos que venham buscar alimento para a sua
vida espiritual” . 15 De acordo com a tradição hindu, o termo sânscrito ashram
indica o lugar onde habita um “homem santo”, que dedica sua vida à busca
de Deus, na solidão, silêncio, pobreza e abstinência. É o lugar por excelên
cia dos “renunciantes” (sannyãsin ).
47
BuscADORts do diAiogo
até que em certo momento resolveu aceitar discípulos e ao seu redor nasceu
o asliram de Tiruvannamalai, aos pés de Arunãchala. Entre as característi
cas desse grande místico está a força e o potencial de sua experiência da não
dualidade (advaita). É alguém que fala muito mais pela sua presença e pela
“imperiosa fascinação”. Em obra sobre Arunãchala, recorda Le Saux: “As
palavras eram o que havia de menos importante entre os meios pelos quais o
Sábio transmitia a sua experiência”.22 Não deixou livro pessoal publicado. O
0 (lilírio de Henri le Saux começou a ser escrito no final de 1948, mas não havia a intenção de
ser publicado. Para Panikkar, autor do prefácio, o diário oferece “um exemplo fascinante da
evolução de um pensamento”. O livro foi publicado por decisão de um grupo de amigos de Le
Saux, e o título originul escolhido foi La montée <111 forni du coeur [A subida ao fu n do do cora
ção], com base em rellexão feita pelo próprio Abhishiklãnanda em seu grande retiro silencioso
de 1956: LE SAUX. Diário spiriluale..., p. 14 e 20.
LE SAUX, Diário spiriluale..., p. 52-56.
Um dos grandes deuses du Hinduísmo, identificado com o símbolo fálico linga, e modelo dos
ascetas e iogues.
48
Hen»! le Saux nas /eíedas do Real
que existe são registros feitos por seus discípulos das respostas dadas pelo
mestre na dinâmica de sua formação.23
2,1 A respeito de Ramana, ver: BRUNTON, P. A índia secreta. São Paulo: Pensamento. 1996. p.
125-152. GODMAN, D. (Ed.). Sii cià che sei. Ramana Maharshi e il sun insegnamento. Vi
cenza: Il Punto d'Incontro, 2007. L'INSEGNAMENTO spirituale di Ramana Maharshi Roma:
Méditerranée, 1992. ZIMMER, Heinrich. La via dei Sé. Insegnamento e vita de Shri Ramana
Maharshi. Roma/Bari: Laterza, 2007.
21 LE SAUX. Rirordi di Arunãchala, p. 70-71.
25 Como sublinhou Sonia Calza, Ramana não era senão “um dos rostos de Arunãchala" - CALZA,
S. Lu contemplazione. Via privilegiata al dialogo cristiano-imluista. Milano: Paoline. 2001. p.
103.
26 DU BOULAY, La grotte du coeur..., p. 170.
2 LE SAUX, Diario spirituale..., p. 249.
49
BUSCADORES [X) DIÁIOGO
Oh Arunãchala
Shiva. o benévolo e generoso
Santa, o pacífico,
Advaita, o Um-sem-segundo,
Piírna. plenitude
50
H enri ie Saux : nas veredas dp Reai
51
\ experiência ili \iim õehnlo significou Miiiisiuklnnnndn o ilrsa
tm de |u iicliai cm ãmliílns ilc maior profundidade da ex p eriên cia espiritual.
< oofidem ia a ri's|>i ilo cm caria a seu amigo l.emarié. dalada d c 2*) dc aliril
ili PCvt "( ada ve/ i|iic sc erê locai o iiindo: c ã medida (|iic se d esc e ao
limdc. dcscolnrm-se círculos cada ve/ mais profundos de profundidade” . "
( cm a inspirarão de Ivamana c I ninTiclwhi. Aliliisluklãnandn c o m e r a a re-
di|iu cm P».i2 i |95.’f os levlos que vão compor um de seus livros mais po
lêmicos. (.iilitinltirn 1 Iralava-se de um primeiro confronto do Cristianismo
com a experiência do a d ra ita . \ rearào de Monchunin ao ler o lexlo de
Miliisluklãiianda. em caria ao amigo Dnperray, ê de estupefarão: ”0 interior
da caverna eimideeeu-me profuudamenle. Creio que ninguém ainda linha
•do Ião longe na percepção espiritual do llindufsiuo'Vr> Não deixa, porém, de
la/ci reservas ao livro. Outras críticas vieram somar-se ao posicionamento
dc Moitcliamu: do censor eclesiástico do Paris c do Padre Bayard. Mas reee-
hc- ciiriosaniciile. a aprovação de I lenri de I ailiae. Aliliisliiklãnanda conclui
que a Igreja não eslava ainda preparada para a recepção da olira e que “séi
os contemplativos a poderiam compreender” . 1, 0 livro acaliou não sendo
piihlicado durante a vida dc A lihislnktãiw nda. Após sua morte, parle da olira
loi pulilicada cm dois volumes: In iciação <) esp iritu a lid ad e (los U pan ishad
I 1979) c Interioridade e rercln ção (1982)."'
I I SAl \. II Ininulion <) In .s/w i /mm/i M des (//wi/ii .\/iík /. 1'juíh: IVesenrr. I0 7 1). InlS n on té cl
icrclnlion; i *mníiÍh llirolu^i«|ii<*H. Sintemii iVoHrner, I0H2.
Njlt» lia iiiinliiK mloi ma^óes solue n inlíUinn v juventude tlr Sn ( »nananaiida. Ksprrnlu-st* tpio
hr,t iiaw iiiirult» neoiieu na priineiia metade tln htYnln \ l\ ninn vilarr|o próximo a MuU};alnrr
Passou iiimliiN anos «nino aseela iuih llimaluias, Inalo nu seguida nina vida itinerante Teve
i otilalos rum Sn \niolnialo e Haitiana Maliaisln. I.stalielereu-He, Imalmenlf. rin Tiniknyilur
(Tiiiinh.
___________________________________________________________ __ _____________ _ H R M R lL f jA U X NAS /PPÇOAS 0 0
53
F>.'$CAC>0«fS r>0 OiAlOCO
54
MENPi j A'JX Ut'3 /EPÇQAS DO
rido pela am izade do Reverendo Murray Roger; e seu grupo anglicano, hem
r orno Raim on P an ik k ar/ '
A ex p eriên cia mais estrita de vida eremítica começa em 1968. mas
vái ser um erem ita sem pre muito ativo. Dizia que '4a contemplação é [...]
perm anecer na P resen ça sem deixar de estar presente a cada um e cada
uma das co isas” .4950512*Sem perder sua dinâmica itinerante, passa a viver como
eremita em Gyansu, nas margens do rio Ganges. Chega o momento de uma
vida mais reservada, depois de um longo período de vida comunitária, ainda
que elá stica. Não deixa, porém, de participar de uma série de atividades re
lacionadas ao C hrista Prema Seva Ashram de Pona. um núcleo empenhado
no diálogo cristão-hind u .Dl
55
C'V. Vv *[V « a S P O P tM O G O
56
H e m p i le S a u x m a s v e r e d a s d o R e a l
de mim passou ad ian te, e eu não posso mais atingi-lo...” .60 Os dois partici
pam, porém , da vida que procede de uma mesma profundidade. Poucos dias
depois, em 14 de ju lh o , A bhishiktãnanda sofre um infarto do miorcádio. Os
prim eiros dias que se seguiram ao ataque cardíaco foram, paradoxalmente,
de grande ilum inação e felicid ad e para Svâm ljl. Em seu diário íntimo relata
a “ m aravilhosa aventura esp iritu al” da grande sem ana que vai fio dia 10 a
18 de ju lh o . E le su blinha:
57
B u s c a d o r e s d o d ia l o g o
I M .. p. 214.
11-ut . p. 2(VV
II.ui. p ü u
ll-i.l.. p. 218.
H e n r i le Sa u x : n a s v e r e d a s d o R ea l
0 termo adm ita vem do sânscrito, e pode ser entendido corno “não dualidade ou. ainda, “a-
-dualidade". Envolve uma intuirão de que a realidade não (■nem monista. nem dualista.
PANIKK AR, H. II dharma <1?U induUnui. Milano: lí LíK. 2006. p. 171.
59
p , s iA t V R is PO C U IC O O
lio Vaticano 11. Svãmíjl assinala que a teologia do acabam ento não consegue
fazer justiça ao pluralismo religioso. Num arligo sobre a questão dos “arqu é
tipos religiosos", eserito em 1970. mas só publicado após sua morte, levanta
sugestivas reflexões sobre o pluralismo religioso como valor irrevogável.0,1
Trata-se de uma reflexão pioneira para a teologia das religiões e que aborda
os limites de uma teologia do acabam ento. Como sublinhou Jam es Stuart,
em reflexão a propósito, "uma leologia do acabam ento, não som ente im plica
uma visão irrealista do futuro desenvolvimento da Igreja, mas, o que é mais
importante, deve ser radicalm ente modificada a partir do momento em que
o pluralismo religioso é tomado a sério, como o que ocorreu com o Vaticano
ir w
0 artigo, que trata do tema dos arquétipos religiosos, foi publicado no livro de Henri LE SAUX
Intériorité e révélation.: essais théologiques. p. 177-207. Sobre a defesa do pluralismo religioso,
ver em especial, as p. 192-195 e 197-198.
STI ART. Le bénédictin et le grand éveil, p. 241.1er. ainda: DU BOULAY. La grotte du coeur...,
p. 172-173 e 313.
6o
H e n r i le S a u x Nas / e r - d î s o o Pe a i
,0 LE SAUX, D iário spirituelle..., p. 281. Monchanin vai reagir permanentemente contra o desejo
de Abhishiktãnanda deixar Shantivanam. Ele o vai acusar de egoísmo e outras coisas mais. As
resistências virão também de outros amigos, como B. Griffits e F. Mahieu. Ver, a respeito; DU
BOULAY, La grotte du coeur..., p. 260-262; 167-168. E também: MONCHANIN, Lettres au Père
Le Saux, p. 114,149. 243-244. STUART. Le bénédictin et le grand éveil, p. 61 e 80.
71 STUART, Le bénédictin et le grand éveil, p. 73. MONCHANIN, Lettres au Père Le Saux, p. 227.
DU BOULAY, La grotte du coeur..., p. 223.
: DU BOULAY, La grotte du coeu r..., p. 14-15.
73 DUPUIS, J. Verso una teologia cristiana dei pluralismo religioso. Brescia: Queriniana. 1997. p.
510. E o exemplo que ele dá, em nota de rodapé, é o de Abhishiktãnanda, que bem conheceu
na índia.
6l
IH'SCAPORfS PO OlAlOOO
1,1 GEFFRÉ, G. Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin
Michel, 1999. p. 242. Ver, ainda: KNITTER, P. F. Inlroduzione a ile teologia delle religioni.
Brescia: Queriniana, 2005. p. 448-449 (tomando como exemplo o caso de Thomas Merton).
GEFFRÉ. C. Doublé appartenance et originalité du christianisme. In: GIRA, D.: SCHEUER,
,1. (Eds.). Tiere de plusieurs religions. Promesse ou illusion? Paris: L’Atelier, 2000. p. 122-143 -
aqui, p. 154.
1 AMA1.ADOSS. M. 1a double appartenance religieuse, ln: G1RA. D: SCHELER, J. (Eds.l. litre
de plusieurs religions. Promesse ou illusion? Paris: L’Atelier. 2000. p. 44-53 - aqui. p. 52.
TURNER, \. \\. O processo ritual. Estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes. 1974. p. 117.
62
H e n r i le Sa u x . n a s v e r e d a s do R e a l
A abertura inter-religiosa
O teólogo Paul Tillich, em clássico texto sobre a relação do Cristia
nismo com as outras religiões, assinalou que é no âmbito da profundidade
(idepth) que se ganha liberdade espiritual para poder perceber a "presença
do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”. F o i
essa a grande chave que Abhishiktãnanda captou em sua trajetória de vida
para o diálogo do Cristianismo com o Hinduísmo. 0 ponto de liberdade de
toda religião está no fundo, escondido na guha (gruta) do coração.80 Trata-se
do m istério de Deus ou do Real que habita o fundo do coração:
Ibid., p. 117 e 133. Ver também: CARRASCO, D. í)s que partem para uma jornada sagrada.
Concilium (Br) 266/4 (19%) 10-23.
n TILLICH, P. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968. p. 173.
1,1 LE SAIJX. Intériorité et révélation, p. 62. Diario spirituale..., p. 358. STUART. Le bénédictin et
le grand éveil, p. 299.
81 LE SAUX, Diario spirituale..., p. 129. Também p. 153.
63
j 'Shr/ivr. t,') w m w s j
( ) cristão náo precisa romper com Jesu s para viv er c -e m istério de pro-
limdidmle, mas necessita, sim. aprofundar sua nova pen peão rpie se oíere-
ee através do “mistério do m/ru/fo . 1 Na visão tie \bln liiklãn an d a, Jesu s
aparece como vm/guru, o mestre verdadeiro que aparece no tempo para co n
duzir o ser humano ao mistério que habita cm seu rnli rior. A parece igual-
menle como la m b i, ou seja, aquele que abre condições ji ira uma verdacleiru
passagem ao mundo do outro; aquele que permite a travessia ao m istério do
Pai.1“ I .ssu nov a percepção de Jesu s foi objeto de um longo aprendizado na
Ibid.. p. J*/>. Km farta a Marf Khaduc, de dezembro de 1071» dizia: “Lu pensava aqui esse*
dias que iJeiis revelou-nos o seu rosto em Jesus, de forma mais bela e pura; mas no Punufl dos
Lpanixade* revelou-no* sua interioridade única, que (• tarnblm de nús - Aptid STUAR I, //-
bénédirtin rt h' prurul Srril, p. 267.
Ibid., p. 160-161;
KL SAL X, Hitnrdi th Arunãthtthi, p. 203.
Id.. buiritj ipiritualr..., p. 120.
65
P l'S t» P O H S PO P1AIOOO
Deus não é mais aqui e menos lá; essas são ideias do homem míope e
suas distinções. Deus se faz presente tanto no voo do inseto como na
contemplação do teólogo ou no ato de amor m ístico. Deus não estava
menos em Yãjnãvalkya que em Isaías, não estava m enos em Sãkyamuni
(o Buda) que em Paulo de Tarso.l,:,
6 6
H jU P i Sa ij / w / E P E p t S 0 0 PfAL
dência Não liã por que entendê-las forno “sistemas paralelos" ou hierar-
quieametite distintos, como se só o Cristianismo fosse portador do "passo
definitivo''. Todas participam do '"‘darfana (visão) do mistério que advém" e
são “ verdadeiras em seu â m b ito ".'1
Traços biográfico s
A su a vida fa m ilia r já reflete uma dinâm ica dialogai e m ulticultural.
Nasce em B a rc e lo n a , em novembro de 1 9 1 8 , numa típica fam ília burgue-
TRACY, D. P lu ralidad > ambiguedad. Hermenêutica, religión, esperanza. Madrid: Trotta, 1997.
p. 142.
69
B u s c a d o r e s d o d iá l o g o
sa. Sua mãe, Carmen Alemany, era catalã e profundam ente cató lica. Uma
mulher marcada por grande abertura, que cu ltivav a a m ú sica e as artes;
seu pai, Ramun Panikkar,2 um hindu de origem a risto crá tic a e passaporte
britânico. 0 casal teve quatro filhos. P an ik kar fala dos p ais com carinho.
Recorda a gentileza de seu pai e o caráter d ecisivo de sua m ãe. É dela que
recebe uma singular educação cató lica, que o levou a enam orar-se, desde
cedo, da pessoa de Jesus Cristo. E ssa m arca m u lticu ltu ral de sua vida vai
ser por ele lembrada em passagens de sua reflexão: ’‘H avia uma harmonia
profunda entre meu pai e minha mãe. sendo de duas trad içõ es diferentes”.3*
No âmbito dessa experiência familiar, de com p reensão e respeito, é que se
gestou uma perspectiva distinta para o itinerário de P anikkar. E le assinala
que esse aprendizado vem do início de sua vida: “ A qu elas dim ensões da fé
cristã que me permitiam viver em paz com a outra parte de meu ser: a dis
creta influência de meu pai. que me cantava e ex p licav a o Bhagavad-Gita ,
que me fornecia os fundamentos do sânscrito e me en volvia numa não con
fessional atmosfera hindu*’. 1
70
Raimon Panikkar . a aventura no solo sagrado do outro
universid ad e, com uma tese sobre Alguns problemas limítrofes entre ciência
e filosofia. Sobre o sentido da ciência natural.7 Três anos depois, em Roma,
defende seu doutorado, na Universidade Lateranense, com uma tese que tra
tou o tem a do Cristo desconhecido do hinduísmo. 0 orientador inicial foi Pie-
tro P aren te, qu e deixou o trabalho para outro professor da Lateranense assim
que se tornou card eal. A lese foi convertida num dos livros mais traduzidos e
exitosos de P anik kar, publicado originalmente em inglês, em 1964.8
A tese foi publicada em Madri, em 1961, com o titulo Ontonomia de la ciência. Sobre el sentido
d e la c iên c ia y sus relaciones con la filo so fia (Madri: Gredos, 1961).
PANIKKAR, R. The Unknown Christ o f Hinduism. London: Darton Longman & Tod, 1%1 (com
posteriores edições em espanhol, francês, italiano, alemão e chinês),
ld.; GARRARA, P ellegrin aggio a l K ailâsa , p. 65.
71
^ APOR! v P P n iÀ lO o P
V-< uni período novo cm minha \ida. com a morte real de m inhas ilusões
e ideais assumidos alé agora...1"
72
»/ON & a /PM’ NQ 3Qi 0 3AÇ?A0 0 00 0 jTpQ
Na visão ele 1’ariikkar. viver ria Califórnia era "estar no centro vital", e
poder p a rticip a r de toda renovação espiritual que ali acontecia, e também
d eixa i-se e n riq u e c e r pela sua dinâm ica intercultural e inter-religiosa. de
particular ab ertu ra ao O riente. R econhece também o traço pioneiro das uni
versidades am e rican as no cam po do estudo das religiões:
73
B u s c a d o r e s d o d ia l o g o
Os apelos da índia
O traço inter-religioso já estava im presso no co ra çã o de P a n ik k ar. Não
foi d ifícil para ele m ergulhar co rajo sam en te no m istério da ín d ia. D esd e o
seu primeiro contato com a ín d ia, no final de 1 9 5 4 , foi tomado por uma p a i
xão avassaladora. R ecorda em seu s trabalhos que foi um dos períod os m ais
felizes de sua vida. Foi a oportunidade de viver a fundo a d in â m ica inter-
-religiosa e d esco brir a ideia de relação , que será tão im portante p ara ele
ao longo de sua trajetória. Em resposta às perguntas sobre o seu itin erário
humano, respondia com tranquilidade: “P arti cristão , me d esco b ri hindu e
retom ei budista, sem ja m a is ter deixado de se r cristã o ” . E com p lem entou
sua reflexão m ais tarde, dizendo que em seu retorno re co n h e c e u -se um “ m e
lhor cristão” .16
Não fui à ín d ia como um professor, m as com o alu n o ... com o aqu ele
que b u sca, como alguém que se senta sem d ificuld ad e aos pés de um
m estre, que aprendia a língua dos aborígenes e qu eria ser um d eles...
Isso não era uma tática, nem mesmo algo que havia p lan ejad o. E ra o
meu karm a. Ocorreu sim plesm ente assim ... Q ueria id en tificar-m e com
m inha identidade hindu, e para isso não havia o que fazer senão d eixá-
-la em ergir em m im .18
74
Raim on Pa n ikka r : a aventura no solo sagrado do outro
À tra d içã o hindu j á era um traço fam iliar, que retomou com alegria. A
abertu ra ao B u d ism o veio na seq u ê n cia, como desdobramento de um apro
fundam ento d e su a d in âm ica vital:
19 Ibid., p. 55-56.
20 PANIKKAR. R. L'esperienza della vita. La mCstica. Milano: Jaca Book, 2005. p. 184-185.
75
P u scA PPR IS PO P i Ai PGO
hilidadc, uma vez que experiências profundas nessa direção não são raras
nem desconhecidas.21
21 DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p.
518. KNITTER, P. K. Introdução à teologia das religiões. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 357-
358. GEFFRÉ, C. Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris:
Albin Michel, 1999. p. 242 (Entretiens avec Gwendoline Jarezvk).
22 PANIKKAR, R. Entre Dieu et le cosmos, p. 74 e 174.
21 Id. Religion (Dialogo inlrareligioso). In: FLORISTAN, C.; TA MAYO, J. J. (eds.). Conceplos
fondamentales dei cristianismo. Madrid: Trotta. 1993. p. 1148.
21 PANIKKAR. R. Il Cristo sconosciuto delPinduismo. Milano: Jaca Bock, 2008. p. 129. Na visão
de Panikkar, é na profundidade da experiência mística que se dá a possibilidade de harmoni/.ar
as diversas tradições religiosas, e não numa “abertura horizontal indiscriminada” - CALZA,
S. l/i conlemplazione. Via privilegia ta a l dialogo cristiano-induista. Milano: Paoline. 2001. p.
176-177. Ele tarnl»ém assinala que “só partindo do fundo mesmo do mistério, e não de suas ma
nifestações, poderemos dizer se as outras religiões são verdadeiras ou simplesmente aparências
ilusórias" - PANIKKAR. R. Ij i nuova innocenza 3. Sotto il Monte: Semtium, 19% . p. 142.
76
Raimqn Panikkar a aventura no solo sagrado do outro
ve aqui a d istin ção estab elecid a por Panikkar entre fé e crença. Enquanto
para e le a fé é sem pre transcendente e aberta, não podendo ser expressa
em fórm ulas u niversais, a cren ça é sempre particular. Ela busca traduzir
a fé no âm bito das estruturas relativas a uma dada tradição particular, mas
deve estar sem pre referendada ao horizonte transcendente mais amplo. A
fé tran scen d e as íorm ulações dogmáticas das diversas tradições religiosas,
mas está sem pre vinculad a a ideias e fórmulas, expressas nas crenças, sem,
porém, id en tificar-se com elas em momento algum. Na medida em que a fé
id en tifica-se ceg am en te com a cren ça, não deixando o horizonte aberto, o
diálogo é interrom pido e firm a-se a realidade de um exclusivismo problemá
tico e n ecrófilo.25
77
P t".* apoki «>p o n iA u x .o
railla por ram inhos inexplorados. Alguém que está aberto r disponível para
raptar a novidade do cotidiano, cm rada um de seus preciosos momentos, srm
deixai de lado a herança que traz em sua hagugem. TYaduz fielm ente a vocação
monástica que é a aspiração ao sim ples.2' O m istério, para e le , está em Ioda
parle, o que se requer é saber escutar o seu canto. Há que se d eixar abandonar
ao inesperado sopro da brisa, vencendo as barreiras impostas pela vontade. I lá
que viver, simplesmente, deixando flu ira vida em rad a instante.2*1
Ver. « respeito, o beto livro de R. PANIKKAR É loge du simple. Le m oine com m e archétype uni
versel (Paris: Albin Michel, 1995).
78
Pa i M O N PflN irrAP Æ A/EMTijgA MO 30LO SAG*ADO 00 OUTRO
livros rio m ístico catalão - Uma missa nas fontes (lo Canges - . cuja primeira
erlição ocorreu em J 9 6 7 . n A outra peregrinação ocorreu décadas depois, em
setem bro rle 19 9 4 , no monte K ailasa. considerado como o “templo do Absolu
to” , e venerado pela m aior parte das religiões do sul da Asia. A narrativa des
sa p eregrinação está registrada em outro livro de Panikkar. Peregrinação ao
K ailasa:'2 S u a com panheira de viagem. Milena Garrara, pergunta ao mestre,
a certa altu ra, qual a razão de considerarem alguns lugares mais sagrados, já
que Deus en co n tra -se em toda parte. E relata sua explicação:
31 LE SAUX. H.; BAUMER, 0 .; PANIKKAR, R. Alle sorgend dei Gonge. Pellegrirmggio spiritua
le. Milano: Cens, 1994.
32 PANIKKAR; CARRARA, PeUegrinaggio al KailAsa.
33 Ibid., p. 84.
79
B u s c a d o iu s n o d i A io c o
8O
Raim on Panikkar a aventura no solo sagrado do outro
8i
fm * tfij# viw -ifi a insegurança de p a r lu ip /n r ir um “ m u n d o conh m o c cheio
de jKf^Mfln|fr|/f#|r*H de ifite rp re ln ç n o ” .^ Vfttfl e riln ir lirHHf c a m in h o , /#-rjiir'f-
•' h h e rd a d e m lr t in t. Iw m corno a |<rrifliirf/irl#* de v iv e r um a je x p c r ih tc in de
p a rtilh a e liiiH ffi de urna I# -q ue 111 1 r i i f a co n s c iê n c ia possfvcl dos
p ré p n o lu tc rlo c u lo rr*, í,orno in d ic a f'u n ík k a r, o d iálo go v e rd a d e iro 0 “ um
alo rs s e n c ja lin rn lo religioso” , envo lvendo a e x p e riê n c ia da c o n tin g ê n c ia , da
confiança m fíluu o da busca enmtim de urn M íA lério q u e a lodos Iranshor-
d a .1 Ilá uma dírnensflo o x p e ríe n c ía l e m fslíoa do diálo go q u e n em sernpre
é levada r*rn ro risíderaçáo, mas quê é m u ílo im p o rtan te:
O enronlro das religiões lem urna indispensável dírnensflo exp erien eial
e rnístiea. Sem urna eerta experiência que Iranseeride o reino m ental,
sem urn eerlo elem ento míslíno na própria viria, nao se pode esperar
superar o parlietdarismo da prépria religiosidade, rrierios ain d a am pliá-
-la e aprofundá-la, ao ser defrontado com urna ex p eriên eia hum ana di
ferente.10
HKIIÍ/KH. I*. I..; I.UCKMANN.T. M odernidade, pluralism o e crise d e sentido. IVlrópolis: Vozes,
2004. p. 54.
PANIKKAIl, Entre Dieu et Ir cosmos, [>. 74, 150 r 172.
IO., h i nuova innoccnm d , p. 156.
Id.. II dialogo inlrareligioso, p. 114-115.
Id.. Entre Dicu et lc cosmos , p. 161. Algo semelhante disse Tliomus Mcrlon: “Sc cu mc afirmo
como calólico simplesmente negando ludo que ó muçulmano, judeu, protestante, hindu, budis-
la (Mc., no fim descobrirei que, em mim, nflo resta muita coisa com que mc possa ufirmur como
católico: e certamente nenhum sopro do Espírito com o quul possa aíimm-lo’* -MEIOON, T.
Reflexões de um espectador culfmdo. Pctrópolis: Vozes, 1070. p. 166.
84
W f >A*I / 'A > A /-/?•«' y*A *l'y V> 0 'M.>A VO y >
(^cscbé, a fé c ristã tem nccesftjdadc d'* uma *au*&ncia <n*tã . tant/; /liant/'
rjr |a corno /'rn seu próprio interior \ interface do outro ou um "lugar fora
l, nua res id é n c ía ” torna-se fundamental para a construisit /la prépna hlen-
ijdfldc. ^ grande risco é manter a tradição /m/’^rraila /'rn -i mesma,
j fi |crlo/;tição /•ri a /1o ra.
A cristofania
Em d iverso s m om entos de sua reflexão, Panikkar indicou que o indis
pensável en co n tro en tre as tradições religiosas envolve uma transformação
na au toeom p reensao das religiões. E le busca responder a tal desafio com1
11 GESCHÍ/, A. O sentido. Süo Paulo: Paul irias, 2005. p. 136 (tumbém p. 135).
PANIKKAR. m iom innocenza .3, p. 100-103. Uinconlroindispensabile;dialogoil/ille rcligio-
tii, p. 30 o 61.
85
P i n a p c t t i 0 0 OUlOGO
V1 lit.. II Cristo sconosciiitn dcWimlm$mo%j*. 10 (cm eonsidcruçflo frita por Pmiikkur no início cl«
nova rilo/rto ildliiinu, em 2007). Pura 1’unikkur, ohho6 o grande desafio teolrigieo d») terreiro mi-
tPiiio, ou Nejn. “Irvorrm eonsiderav/ln «hrulluras dos dois terços do minuto que nflo pertençam
ao lilAo eiiltunil greeo-Hemílieo e nflo veem a realidade sol) a mesma luz”. Trafn-se de levar a
si'rio a kénosis de Cristo, o que nflo signifie« romper eom «s precedentes iiitorprelnçftcH, mas
alinese para uma nova eoimciAneia «lo Mistério sempre maior («!«• Cristo) - ll>id., p. 7.1.
1 lil.. I I ilin lo ffo in lm rv lifíio s o , p. 112.
Id. C n s lo /a n io . Mologna: l\l)H , I9*M. p. 20.
86
_______________________________________________ -_____________ P A ‘ M C j N P A t i I If K A 8 H O SO lO > Ç F A p O P O O U T g Q
87
BUSCAPQKES PQ PIÁIOGO______________________________________________________________________________________________________
"acesso â completa realidade (cham e-a Deus, o Tudo, o Nada, o Ser, ou outra
coisa) que se nos apresenta na sua plenitude f...]” .60
8 8
RAtM O N PANIKKAR. A AVENTURA NO SOIO SAGRADO DO OüTRO
i s9
4
Louis Massignon:
a hospitalidade dialogai
TFJSSIKR, lí. 1'nsfazione. J»uis Mansignon nn precursore, uri artigiano r un teslimonf? <M
dialogo ifiN-j-n-ljf/joho. In: KKKYKLI., J. // ('iurdino di Üio. Con l/nds Massigmn innmtro
"Uutnm. Hol.,Kii!i: KMI, I W . jp. 10.
Aputl KMtVKI.I., //l ’ ia rd ih ii d i D i » . . . , |). 25.
91
Bu scad o res do d iá lo g o
9 2
Louis M a s s ig n o n -, a h o s p it a l id a d e d ia io g a l
Para o tema <la “visita do estrangeiro”, cl'.: MASSIGNON, L Parole donne. Paris: Seuil, 1983.
|). 283. M) sti/pir en dialogue-, Paris: Albin Michel, 1992, p. 6-8 (Question do, nombre 90.),
/.'hospitalité sacrée. Paris: Nouvelle Cité, 1987. p. 40-45. MASSIGNON, //•voyage en Mésopo
tam ie et la conversion de Imuís Massignon cm 19011, p. 58-59. Para os desdobramentos de lodo
o processo que resultou cm sua conversão, ver lumbdm: DESTREMEAU, Christian; M0NCE-
LO.N, Jean. M assignon. Paris; Plon, 1994.
MASSIGNON. !/h o sp ita lité sacrée, p. 40.
Massignon encontrou acolhida entre os Alussi, que responderam a «eu favor junto ils autorida
des turcas q u e o haviam condenado como espião. Na intercessão cm favor de Massignon, assi
nalam que ele d membro da família, um hóspede «agrado, que riflo pude ser eliminado. Assim,
ele foi salvo, em 1908, por ser hóspede, e isso marcou Massignon pelo resto de sua vida ter, a
respeito; IIASE I T I SANÍ, IsniLi Massignon, p. 241
MASS1GNON. I.'hospitalité sacrée, p. 204 (carta a A. M. N.mreddin lie</m - 26 de lever, im <!,
J 988i.
0}
B u s c a d o r e s d o d iá l o g o
9 4
i Qiji'. lA r-vec.iiou u H o sem uo u o ; w y ,(
kkHYf '1.1.. II if ia r d in o ili l) io , p. 53. Relata também o papel central de al-Hallaj em sua vida,
rm i trt.i ,i Mj ! niulli- r - t-f.: MASSICNON. I.Itospílaliti1saerée, p. 60. t ala a ela da mi|»irUncia
•Oi ini ij.-o fi.'Ki hii paru a afirmafplo <le «na personalidade cientifica e posição universitária, mas
l<mil«'m para -ou acolhida do mi.slérin de l)eus.
Vt< e foi pulile nia ern dois volumes pela editora Ccutliner. de Paria, em 1622. lima novaedi-
« o foi [lo-lenormente publicaria cm «piatro volumes pela Gallimard de Paris, cm I97.">. f.omo
le •• ,mp|einenl.jr. ele apresentou o Estai sur les origines du lexique technique de la mystique
m usulm ane, publicada inicial mente en» Paris ein 1022. pela editora (.eutliner, e reeditada pus-
tenormentc cm Paris p»»r Fiditions du Cerf ern 1099. Ainda sobre al-Hallaj, Massignon traduziu
para o fraricê» seu I/tuân , etm 1936, posteriormenle reeditado cm 1038, 1055 e 1081, Outras
conferência* e artigo» de Massignon foram publicados ern sua Opera minora, uma cole.tinca de
207 artigos publicado* ern tre, volume» e editado« por Youakin MOI BAHAC (Beyrouth: Oar
al-Maare|. 1963).
95
B u s c a d o « ' PO P lA lO Ü O
Esses "honrados hóspedes" de Abraão serão recordados lambem no livro do Corão (15:51 e
51:24).
\R\ VI DEZ. Sa spirilualità. p. 1Ü2.
trata-se da tríplice oração patriarcal de Abraão, baseada na experiência da aparição de lahweh
no carvalho de Mamhré, descrita no Li\ro do Gênesis 18,1-5. São as orações por Sodoma. Is
mael e tsaac. trabalhadas e desenvolvidas por Massignon em sua preciosa obra Les trois prières
ti V m h a m (Paris: Cerf. P>Q7t. (As duas primeiras orações tinham sido antes publicadas ã
parte, em ld30 e 1Ó35: a última, dedicada a tsaac, não ganhou publicação independente.)
98
L o u r , M a s s i g n o n a h o s p it a l id a d e d ia l o g a i
Ein intervençflo na Semana dos Intelectuais Católicos, em maio de 1940, em Paris (“La foi aux
dimensiona du monde”), Massignon assinala o significado de Abraão em sua vida, refazendo
como seu o itinerário de AbraSo. finalizado em Jerusalém. Sinaliza ler compreendido, com o
Pai de todos os crentes, que a Terra Santa não poderia ser um "monopólio de uma ruça, mas a
Terra prometida a todos os peregrinos como ele”. Cf. ROCALVK, Louis Massignon n 1’islam, p.
30-31.
MASSIGNON, Lcs trais prifires d A braham , p. 98. Por sua vez, a religião judaica enrafzu-sc. a
seu ver. na esperança e o Cristianismo, na caridade.
lbid.. p. 106.
CANCIANI, D. 1,’altro voltodelPislam. In: MASSIGNON. L. Im supremagurrrasantotltWidam,
Troina: Ciltà Aperta, 2003. p. 12. A propósito do método interiorisla, ver. ainda: MASSIGNON,
Pl'Sv. APOKt S DO PiMOuO
ria lio "critério de experim entação in terio r" para a p e rce p çã o d e uma oulra
tradição religiosa.31
\ hospitalidade é tam bém . para M assignon. um req u isito e s s e n c ia l para
a busca da verdade. Esta aco n tece no bojo de uma re la ç ã o e sp iritu a l seren a,
de acolhida mútua entre interlocutores que bu scam um horizonte fraterno.
Não há com o com preender o outro senão tornand o-se seu h ó sp ed e. E s s e é
um tema recorrente na reflexão da M assignon. 0 verdadeiro en co n tro com o
outro não aco n tece m ediante o cam inho de sua a n e x a ç ã o , m as do e x e rcício
autêntico de hospitalidade. É m ediante o trabalho de p artilh a do m esm o pão,
do mesmo trabalho e da mesm a vida que a verdade pode vir à lo n a .35
100
IO ' jig M a t ig n o n &h o sp i ^ udade di alocal
MASSIGNON, U h o s p ita lilá d i A bram o.... p. 20 (introduzione d e Domenico Canriani). Ver tam
bém: F IT Z G E R A L D , Michael L. D ialog o inter-religioso. 11 punto tli vista eattoliro. Cinisello
Balsamo: San Paolo, 2 0 0 7 . p. 106-107 e 113. Relações entre a> religiões abraâmicas. In: HIV
ZE, B. E . H erdeiros d e A b raão. Sâo Paulo: Paulus, 2007. p. 87-88.
Para uma reflexfio u respeito, ver: PÉREN N ÈS. J.-J. Georges Anawati (1905-1994 1. Un chrétien
égyptien d ev an t le m ystère d e l'islam . Paris: Cerf. 2008, Massignon - Abd-el-Jalil. Parain et
fille u l ( J 9 2 6 -1 9 0 2 ). C orrespondance. Paris: Cerf, 2007. BORRMANS, M. Orientamenti per an
d ia lo g o ir a c ris lia n i e m u su lm an i. Roma: Pontificia Université l'rbaniana. 1991. CASPAR, R.
P a ra u n a visiân c ris tia n a d e l islam . Santanden Sal Terrue. 1995. AVON, Dominique. Les frères
p rêch eu rs en Orient. L es dom in icain s du Caire. Paris: Cerf, 2005. DALLOGLiO, Paolo. Innamo-
ra to delPLslam , cre d en te in Cesù. Milano: Jaca Book, 2011. SEVENAER, Christian van Nispen
loi. C hrétien s et m u su lm an s. F rères devant Dieu? Paris: Éditions de 1Atelier, 2000.
101
B l 'Vi à PO U > I V P* AiOOO------------------- ---------- ------------------ --------------------------------------------- -— — _
sagrado na \nia social, nuis iilrnxés tir pessoas com o <òim llii poderemos
rccnconlra-lo 1
O- ideais de Gandin vão peneirando sua visão de mundo nid g anhar sua
marca d ee isn a nos anus posteriores a 1053. Na lasc d errad eira da vida de
Massignon. todas as suas ações e julgam entos serão insp irad os pelo pensa
mento de G andhi.10 \ noção mesma de hospitalidade c agora aprofundada
e envohida pela dinâm ica da compaixão pelo oulro. A ad m iração su scita
da por Gandhi em Massignon deve-se, sobretudo, ã sin to n ia das esco lh as
nos âmbitos moral e espiritual. Pode-se também a c re sc e n ta r o toque de sua
exemplaridade, bem como de sua reivindicação cív ica em favor do verdadei
ro {satyagraha). Há também comunhão no cam po da esp iritu alid ad e, funda
da em valores sem elhantes, como a oração, o je ju m e a p ereg rin ação , bem
como no âmbito da opção comum pelos pobres. Não há com o d esco n h e ce r a
presença de Gandhi na inspiração da dinâm ica de com p aixão-su bstitu ição
presente em Massignon, em particular na sua atenção para com os oprimidos
e na sua ampla solidariedade.11 Como assinala R oealve. M assignon sente-se
Em carta de abril de 1948. Massignon firma o seu com prom isso: “Estou
cada vez mais decidido a manter minha 'shahada’44 em favor da ju s tiç a até a
102
Louis M assiçhqh a -<ospitaudade dialogai
uiorD' 11 Gomo inrIir-a Erlward Saul. psla atuação prátira o humanista <*ra o
qtir- para rir* havia de melhor em Massignon. Ele
Estava sem pre antenado com os problemas de seu tempo. Aale lembrar
o seu papel na criação do Instituto Dar Es Saiam ía casa da paz), ocorrida
em 1 9 4 7 . no Cairo, e sua pre>ença nas obras de m isericórdia no núcleo dos
amigos de Gandhi
103
ocasião pelos dois na igreja hu neisrana de Ihinnrttr . local mulo Sào l'ran-
>iM*o apresentou-se ao sullào al-M ulik al kàiu il. d ecid em lazer o o le rcci-
menlo di' Mias \idas aos muçulmanos. Não para que st* co n v crlcsscm ao
i rwhanisnm. mas “para que a vontade do Deus pudesse s e r le ila para eles o
por eles". \ experiência da B adaliu t é assumida pelos dois com o um “ volo
do substituição" o um eonvile a \iver a santidade em m eio aos m uçulm anos.
Iradu/mdo ao Padre jesuíta Bonneville. no Cairo, a força da opção realizada
pelos dois. Man k aliil assim se expressa: “Q uerem os fazer nossas as suas
orações, nossas as suas vidas, apresentando-as ao Sen h o r” . ^ A p artir de
193-4. ano da fundação da B adaliya , M assignon vai se aproxim ando cada
\ez mais da comunidade católica m elquita. de rito bizantino, até fazer sua
translerência definitiva para ela em 1 949, sob autorização de Pio X II. Kra o
passo que faltava para sua maior com unhão, enquanto cristã o , com os ára
b e s . Km janeiro de 1950. é ordenado sacerdote na ig reja g reco-m elqu ita
Sainte-M arie-de-la-Paix.
com amor”. Os a b d â l sào corno que os sanlos muçulmanos. Ver: MONTJOU, Guyomie de. Un
monaslero, un itomo, un deserto. Milano: Paoline, 2008. p. 80-87 (a citação e.stá na p. 80).
MASSIGNON. L'hospitalité sacré, p. 101.
10 4
O U1 M a V j .GMON A HQ0P,r AL DA DE 0'ALQCAI
KOl tl.U 1.0. C. de. Oftere spiritualL Roma: Paoline. 1984. p. 722.
M VSSIGNOÍN, P arole dorme. p. (>.>-64 (Toule une \ie avee um frère parti au désert: Foucauld).
Rl/ZA RO l. /,. Massignon ( 1883-1^62), Un profilo delPorientalista cattolico, p. 60. Também: p.
91-132.
Ou lambém como o ••ponto de impacto dos acontecimentos espirituais**, o órgão e espelho "da
contemplação entre os profetas a quem Deus ‘abriu o peito’ (sharh al-sadr) (Cor 94.1)” -M A S-
SKíNON, L. Écrits m enwrables. Paris: Robert Lafonl. 2 0 0 9 .1 .11. p. 30 9 e 312.
i° 5
BUSCADOS! ^ 0 0 DIÀIOCO
io6
5
Simone Weil:
uma paixão sem fronteiras
PÉTREMENT, Simone. Vida de Simone Weil. Madrid: Trotta, 1997. p. 11 (o original francês é
de 1973, publicado em dois volumes).
W EIL, Simone. Attente de Dieu. Paris: Fayard. 1966 (a edição original é de 1950). Lettre à un
religieux. Paris: Gallimard, 1951. A obra completa de Simone Weil. ainda em curso de publica
ção, está prevista para sete tomos e dezesseis volumes pela editora Gallimard.
107
pü«.câ pom <•po piAioco_____ ____________________ __ __________
Em sua trajetória de vida. Simone Weil foi revelando aos poucos uma
capacidade intelectual singular. Terminou 0 seu baccalauréat aos 15 anos,
tendo em seguida ingressado no prestigiado Liceu Henri IV, em P aris. E sco -
PERR1N, Joseph-Marie. Mon dialogue avec Simone Weil. Paris: Nouvelle Cité, 1984. p. 29, 39
e 79.
PERRIN, Joseph-Marie: THIBON. Gustave. Simone Weil com e l'abbiam o conosciuta. Milano:
Ancora, 2000. p. 120 e 123. BARTHELET, Philippe. Enlretiens avec Gustave Thibon. Paris:
Édilions du Rochen 2001. p. 63-63. Lm testemunho semelhante foi dado por Simone Pétre-
menu sua fiel amiga, ao constatar que os seus mais simples escritos, nos últimos anos. são sufi
cientes para “mostraro que ela realmente era, revelam uma pureza, uma honestidade inflamada
e delicada que não encontra semelhança no nosso tempo*5 - Apud CANCIANI. Domenico. Tru
nenluza e helíezzo. Ríflessione religiosa e esperienza mistiça in Simone Weil. Roma: Lavoro,
1998. p. 96.
THIBON. Gustave. L ig n /jr a n c e éto ilé e . Apud í)\ MCOLA. Ciulia Paula; DANE.SE, Attilio.
ib u m o i e dpicet. São Paulo: b jy ola. 2003. p. 119.
io 8
jiMQPjf / / t|i i t f L ï f . /AO üfM *t
Não faz muito tempo [...] trabalhei como operária, ce rca de um ano, nas
fáb ricas m etalúrgicas da região p arisiense. A com binação da experiên
c ia pessoal e a sim patia pela miserável m assa humana que me rodeava
e com a qual me encontrava [...] indissociavelm ente confundida, fez
entrar tão profundamente no meu coração a desventura da degradação
B E A l’VOIR, Simome de. Mémoire d'une jeu n e fille rangée. Paris: Gallimard. 1958. p. 236-237.
BINGEM ER, Maria Clara 1» Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio dp Janeiro: Rocro,
2007. p. 20.
10 9
B uscad o res d o d iá lo g o
social que, desde então, passei a me sentir como uma escrav a, no sen
tido que esta palavra tinha para os romanos.“
Tal questão vai ocupar um lugar central na reflexão de Sim one Weil,
que não via outra condição para pensar a desventura senão “levando-a na
carne, gravada bem a fundo, como um cravo, e levá-la consigo por longo
tempo, de forma a facultar firmeza ao pensamento para poder m irá-la
Uma das razoes que motivaram Simone Weil a ser operária era poder
encontrar na fábrica uma “verdadeira fraternidade". Sua d ecepção loi gran
de. Encontrou ali uma experiência de viva opressão e consequente subm is
são desnlenladorn. Tudo isso só fez aumentar o seu pessimismo político. Em
seus relatos a propósito, sublinhou que a experiência nas fábricas foi para
ela “um verdadeiro martírio": a cruel fadiga, as normas de produtividade im
postas. a degradação das condições de trabalho, as terríveis dores de cab eça
ete. Chegou a pensar em suicídio.11 Na verdade, esse ano de experiência
operária provocou uma profunda transformação em Simone Weil, não só no
Âmbito das ideias, mas em sua visão das coisas, em seu sentimento de mun
do. E dessa
110
S im o n e W e i l u m a p a ix à o s e m f r o n t e i r a s
e x p e riê n cia profundam ente dolorosa e cansativa que ela extrai refle
xões d e extrem a lucidez sobre o trabalho operário e a tola pretensão
das ideologias m odernas, notadamente o socialism o real, de libertar os
op erários, quando na verdade estes vivem como cativos, escravos na
fá b ric a .12
M uitos dos sonhos nutridos por Simone Weil acabam naufragando dian
te da dura e triste realidade que encontra pelo caminho. Mas tudo isso ge
rou outras possibilid ad es, como um “percurso propedêutico” para uma nova
vida esp iritu al. Su b lin h a-se, com acerto, que o movimento que a levou à
vida o p erária “foi a obed iência a um movimento interior que ela ainda não
nom eava em termos espirituais. Tratava-se, no entanto, de um movimento
e x iste n cia l, vital, que ela não podia deixar de atender. E esse movimento,
n ela, era inseparável do amor que sem pre nutriu pelos seres humanos” . 13
Em outros dois momentos viverá uma sim ilar intensidade mística. Por
o casião de uma viagem a A ssis, na Itália, em 193 7 , e numa estadia em So
ltam os, em 1938. É sabida a grande admiração que Simone nutria por São
F ran cisco . Na sua cé le b re carta autobiográfica ao Padre Perrin. diz sentir-se
fascinada pelo m ístico franoiscano desde que teve notícia dele. Ao entrar
em A ssis, na pequena cap ela romana do século X II. Santa Maria degli An-
g eli , foi tomada de estupefação. R elata ao Padre Perrin que, diante daquela
111
P V ^ AP OÜ H I V PlAlOGO
18 “Le Christ lui-même est descendu et m'a prise" - WEIL, Attente de Dieu. p. 4-1-45. Sobre sua
experiência mística, ver. ainda: CANCIAM, Tra sventura e belleza.... p. 117-120.
ORTEGA, Carlos. Prólogo. In: WEIL. Simone. .4 la espera de Dios. 3. ed. Madrid: Trotta. 2000.
p. 10. Sobre essa mudança também fala o Padre Perrin. no prefácio de E spera d e Deus: "[...] na
experiência desse sentimento desconhecido, dirigiu um novo olhar sobre o mundo, sobre sua
poesia e suas tradições religiosas e sobretudo sobre a ação ao serv iço dos desventurados, campo
ao qual intensificou seus esforços" - WEIL, Attente de Dieu. p. 9.
112
S im o n e W e i l , u m a p a ix ã o s e m f p o n t e ip a s
Depois do período de M arselha, Sim one vai para Nova \ork, em 1942.
Sua vontade era p erm anecer na F ran ça, e só aceita a viagem como forma de
m anter a segurança dos pais. O período era com plicado para a família Weil,
com a crescen te am eaça hitlerista. A situ ação da guerra provoca uma pro
funda m utação no pensam ento de Sim one com respeito ao tema da violência.
Rom pe com sua anterior postura sobre o pacifism o e defende o direito da
reação francesa e do resto da Europa. E labora um projeto de criação de um
corpo de enferm eiras de prim eira linha e tenta divulgá-lo entre as autori
dades.23 Antes de partir para Londres, ainda em 1 9 4 2 , Sim one escreve a
fam osa Carta a um religioso, dirigida ao Pad re Coutorier, sob ind icação de
Ja cq u es M aritain. E ssa carta nunca receb erá resposta. Em Londres, Simone
Weil consegue um trabalho de redatora num escritório. O período londrino
20 Indagando sobre o fascínio exercido pelo B hagavad-G ita na vida de Simone Weil, Bingemer
sugere que o modo de desapego proposto pelo clássico poema místico, entendido como caminho
do ser humano para atingir a iluminação e a comunhão com Deus, expressava bem o ideai pro
posto pela buscadora francesa - BINGEMER, Maria Clara L. Simone Weil: pioneira do diálogo
inter-religioso. In: Id. (org.) Simone Weil e o encontro entre as culturas. São Paulo: PUC-Rio/
Paulinus, 2009. p. 258-259.
21 BARTHELET. Entretiens avec Gustave Thibon, p. 178.
113
A t V R t s I V O i A lO o O
■l \\ E IL Simone. L'enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l'être humain.
Part.«.: Gallimard, 1949.
\\ E IL Pem am ientus desordenados, p. 59.
2,1 ld.. Attente d e Dieu. p. 138.
PÉTRLMENT. \ida de Simone Weil. p. 587.
114
jiW O N E AJt l U V A PA /AO ; t V : P p rjTf PAj
llier sem lim ites ‘"os reflexo^ puro* e au tênticos dessa beleza na* arte< e na
ciê n c ia p abruç ar tantas outras c o isas que p|a p Deus amavam:
|...| Ioda a im ensa extensão rios sécu lo s passados, pxreto os vinte úl
tim os: lodos os p aíses habitados por raças de cor: toda a vida profana
nos países de raça branea: na história desse« países, todas as tradições
a cu sad as de h eresia, com o a tradição m aniqueí«ta e alb ig en se: todas as
co isa s surgidas do R en ascim en to , frequentem ente degradadas, porém
não co m p lelam en te sem valor.2*
união loi.il «|ti alma com Deus " bula a sua reflexão é no sen tid o do rr
conhecim ento de um n e o patrim ônio religioso qu e acom p anh a a história
<l,i hum anidade o «|ii«' deixa de s n valorizado em nizfm de p re co n ce ito s ou
superficialidade.
l*'in «In crsos passos de sua reflexão. Sim one su b lin h a não s e r possf-
\el abandonar seus sentim entos |>osilivos eom respeito As d iv ersas tradições
religiosas. Isso era. para (da. uma questão de honeslid ad e e honradez. Sua
aherlura A beleza do mundo (' A lolalidade da cria çã o en volvia a acolhid a
inter-religiosa. M anilesla firme re ticên cia eonlra o e sta b e le c im e n to de urna
lueran|uia entre as religiões, pois. para ela, as relig iõ es só podem se r co
nhecidas a partir de seu interior. De acordo com Sim o n e, se ó co rreto dizer
que a religião católica apresenta verdades que estão ap en as im p lícitas nas
outras religiões, o mesmo pode ser dito das outras religiões, qu e tam bém
contêm verdades que estão im plícitas no C ristianism o. A n tecipan d o refle
xões que estarão no cern e da d iscussão da teologia do pluralism o religioso,
Sim one indica que o C ristianism o tem muito o que ap ren d er das co isa s di
vinas presentes nas outras tradições religiosas. S e ria , para e la , uma “perda
irreparável*’ se essas tradições, em sua diversid ad e, tivessem de, um dia.
d esaparecer na história.32
Essa visão de Sim one Weil sobre as religiões encontrou re sistê n cia en
tre teólogos católicos in clu sivistas, como Je a n D aniélou e H enri de L ubac.
Na perspectiva desenvolvida por D aniélou, a posição de Sim o n e a respeito
das religiões, sobretudo em sua Carla a um religioso , co m b in a algum as “ in
tuições notáveis*’ com “d esconcertantes confusões” . Para e le , o que falta na
autora é a percepção de que o C ristianism o não pode se r co lo cad o no mesmo
plano das outras religiões có sm icas.33 Para esses teólogos do acab am en to,
não há como negar a “d iferença qualitativa” que sep ara o C ristian ism o das
dem ais religiões, bem como o “caráter rad icalm ente novo” da fé cristã . Na
abordagem que defendem , é o C ristianism o que dá rem ate, acab am en to e
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•*O H r / V t ,t /lAe, p A ./ Ã o ' t m f^ O N T fiíA S
ú n ica grande R ev ela çã o , são com o " ja n e la - para o infinito", na bela termino-
logia adotada por ^eu am igo Gu^tave Hiibon. Numa fias página- mais boni
tas de sua reflexão sobre o lem a. quando aborda as form a- de amor im plícito
a D eus. Sim o n e su b lin h a qu e uma determ inada religião só jxxle -e r co n h eci
da a partir de d entro, e isso requ er atitude*? fundam entais, como a -irnpatia.
a aten ção e a am izade. \ -eu ver. “o e-tu d o das d iferen te- religjõ e- não
conduz a um co n h ecim en to sen ão na m edida em que alguém entra temporal-
m ente, m ediante a fé, ao cen tro m esm o da religião que se e -ta estudando"*.
tem poralm ente. Há tam bém que d ed ica r ao outro uma verdadeira atenção.
Para Sim one W eil, este é um dom e s s e n c ia l, gratuito e generoso: “ \ atenção
é a forma mais rara e m ais pura da g e n e ro sid a d e ".J
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No umbral da Igreja
Simone Weil dizia que u cjue a mantinha deM inr ulada da adesão for
mal a Igreja era o amor que ela alimentava “|>elas <oisas que estão fora do
í aisiiartism o visível’ hra uma jh- mu <Hjsa<ia na sua paixão jw las grandes
tradições, <omo .1 ( ír íc ía , o Kgito. a h 1. a China. Toda a beleza do mundo
a encantava e seduzia. Não eonscgum * nlecder e aeeitar o p lonamen-
to !nulí< ional da Igreja qu e dearonh« < ia oa v a lo r e s das diversas tradições
religiosas e mantmh.i-se (errad a na visgo d t que “fora da Igreja nâo há
salvarão hram lem pei mais difi< ei* j . da refl* o teolágiea sobre
o tema, que sá seriam dobrados rjormenfe n u n o C on cílio Vaticano
II I l (Hi2‘ I ^ m ). Já em P M I. quando >m ontruu |*da prim eira ve/ o Pailre
IV m ii, definia <1 sua posição como a de alguém que se encontra no “umbral
da Igreja {ou %rud dr I h phsr). 1 F.ssj j*»siçgo é <onfumadii na Corto o urn
ea cn la ao Padre t <niioiK i * m íf.\ í-rr! ' le 1*M2 Dtx ali qu e aua
voeaçâo é a de ser “cristã lora da Ig re ja ". N esvj :rla N m one m n lIrma Mia
adesão aos m isléno* da fé cristã, mas taml»ém * 3 dd n i c de aí ferir ao
lirtíi. ft 1 7?
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tl*íJ ji aj (UlKj\ IN IIlO V W nr UrU(trntr I oUiuirni’ (itruiMiuiO; \<
^ i \ L U w r ü Uh t n lif t r u z |i 14
11S
S im o n e W e i l u m a p a ix ã o s e m fr o n t eir a s
corpo d e d ou trinas estab elecid o pela Igreja. Elenca uma série de dificulda
d es qu e para e la são irredutíveis e que a mantém distanciada de uma adesão
m ais form al. J á co m e ça a carta dizendo:
thid .p II
\pu»l P í T R E M K V T , Vidti </* Swutn<* P^r/. p. 003-064.
no
\.VV A
\\ww i si'i a \onlailt' ilc Deus. a ilc perm anecer lora. “ lam bem no liilum , sal
\o. qm ça. no momento tia m orto*V ’ O Padre Perrin, ao d ecid ir p u blicar, em
PM l). os texto* de Simone Weil que traduziam sua exp eriên cia m lonor. dá
a«' Iv\ix' o *ugesti\o iioiih' \ttcntc </«' Ihcu \h.s/Hlru tlc l)cus\. \ palavra csco -
lluda para o titulo ora uma das mais apreciadas por Sim one W eil, rollrlindo
bem sua situação com respeito ao (.ristianism o. \ expressão “esp ora” loi a
escolhida para espelhar o termo grego cn upomonc. utilizado no Evangelho
di' I ucas (B. lõ). Simone dizia que sem pre esteve no “umbral da Ig reja, sem
mo\or-so. quieta, cn upomonc (palavra muito mais bela que p a c iê n c ia !)” .
WE IL \ttente d e Dieu. p. 52-53. Simone Weil sempre recusou o Batismo, apesar dos esforços
feitos ncs-e sentido pelo amigo Padre Perrin. Em livro de biografia de Simone Weil, a autora
G. Houdin. contrariando a posição de outros tantos biógrafos, assinala que um testemunho de
Simone Deitz. a melhor amiga de Simone na ocasião, confirmaria o seu Batismo em Londres,
ao final da \ida. quando ainda estava hospitalizada - Apud Dl NICOLA: DANESE. Abismos e
á p ice s, p. 102-103 e 105.
\\ EIL. Attente de Dieu. p. 54. Id.. Pensamientos desordenados, p. 55. Ver. ainda: PERRIN. Mon
dialogue ai ec Simone Wez7. p. 80 e 125.
WEIL. Attente de Dieu. p. 250.
WEIL. Lettre ò un religieux. p.33-34.
Ibid.. p. 15
Como assinala Bingemer, mesmo sendo Simone de tradição judaica, não foi introduzida no es
tudo da Bíblia hebraic a na infância ou juventude. Ela fez essa leitura já adulta, tendo comprado
em Marxdha os dois \olume> da Bíblia do Rabinato Francês - BINGEMER. Sim one Weil. .4
força e a fraqueza do am or. p 142.
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_____________________________________________________________________________ SiMQNF W e il , u m a p a ix ã o s e .*/ f p q n t e ip a s
51 Pétrement comenta em sua biografia essa dificuldade de Simone com o "'Deus dos exércitos',
um Deus cruel que dá ordens de exterminar os cananeus etc." - PETREMEM. t ida de Simone
Weil, p. 634. FIORI, Sim one Weil, p. 274.
32 PERRIN. Mon d ialog u e avec Sim one Weil, p. 65.
33 PÉTREMENT, Vida d e Sim one Weil, p. 556.
31 BINGEMER, Sim one Weil. Afo r ç a e a fraqu eza do amor, p. 153. Em trabalho mais recente, essa
autora assinala que a relação de Simone Weil com o Judaísmo foi "bastante conflitiva". Inclina
va-se a entender que a violência era parte constitutiva da religião judaica. Para Bingemer. tal
perspectiva reflete uma “parcialidade de visão”, que talvez no aprofundamento do diálogo com
o Padre Perrin pudesse ganhar um matiz diferenciado. Mas isso não ocorreu. Ver, a respeito:
BINGEMER (org.), Sim one Weil e o encontro entre as culturas. p. 236-237.
” WEIL, Lettre à un religieux, p. 19. Pensamientos desordenados , p. 40.
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Mi a p i 'K’ 1 >. p o p iA im .o
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R eferências bibliográficas
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