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d«diálogo
I Itinerários
\ n te r -r e iig io s o s

I F a u s ü n o T e ix eira
1

Thomas Merton:
um itinerário dialogai
T h o m as M erton rev ela-se uma das figuras m ais im p ressio n an tes e in ­
flu entes na Ig re ja C ató lica romana do sécu lo X X . 1 Foram poucos os co n te m ­
plativos q u e provocaram tam anho im pacto no âm bito de sua O rdem re lig io ­
sa, com o ig u alm ente na Ig reja e na so cied ad e com o um todo. R e v e lo u -se
com o algu ém d esco n certa n te , polêm ico, provocador. Su a a tu a çã o dividiu
o p in iões. O seu itin erário esp iritu al rompe com os padrões h a b itu a is e nor­
m alm ente a ce ito s: co n segu e a rticu la r a ex p e riê n cia rigorosa da T rap a com
o B ud ism o zen : sua ex p e riê n cia contem p lativa com a luta co n tra o ra cism o
e em favor da não v io lên cia. Su a reação é firme co n tra a guerra do \ ietn ã e
outras atro cid a d es de seu tempo. Toda a sua vida foi m arcad a p e la b u s c a da
a u ten ticid a d e e p e la sed e do M istério de D eu s.2
T h o m as M erton n a sce em P rad es, nos P irin eu s fra n c e s e s , em 3 1 d e j a ­
neiro d e 1 9 1 5 . Seu pai era da Nova Z elân d ia e su a m ãe. a m e ric a n a . A m bos
eram a rtista s. R e c e b e u sua form ação na F ra n ça . In g la terra e E sta d o s l nid os.
D ep o is d e u m a tem porad a no C ollege de C am brid ge. na In g la te rra . M erton
fix a -se na cid a d e d e Nova York, in scre v en d o -se aos v inte an o s n a C o lu m b ia
U niversity. N e ssa u n iv ersid ad e, situ ad a no co ra çã o d e N ova Aork. seg u irá
m uitos c u rso s: e sp a n h o l, alem ão , g eologia, d ireito c o n s titu c io n a l e lite ra tu ra
fra n c e s a . O b tém a li, em 1 9 3 8 . a iáu rea em lite ra tu ra in g le s a , co m um tra­
b alh o so b re o p o eta e m ístico W illiam B la k e . A retom ad a do C ristia n ism o ,
após um p eríod o d e flerte com o com u nism o, a co n te c e u por volta d e 1 9 3 8 . A
le itu ra d e um livro de E tie n n e G ilso n so b re o espírito ria filoso fia m e d iev a l.

\ mais rlássica t* romplel.! Imigraíui de Merton foi esorita por Mieharl MOÍ 1. Thr .V \t
tains of Thomas Merton (RoMon: lloughlon MiíHin, 1084).
KARCKT. GiU*í>. Thomas Merton. un Irappi.sta pne <) / Ünent. l\m>: Vll»m Mu hrt. p 'l -
2.
:\

2s
Pl'SlAr>ORIS PO piktooo

realirmln um p u ro antes, desperta o seu olhar para o Oisliimimuo místico


e. sobretudo, para o Deus misericordioso. Aeoiulo-so em Merlon a vontade
de completar o trabalho de conversiío. de união c de paz: “ Desejei logo dedi­
car minha vida a Deus. ao seu serviço"/1 Será iguulmentc importante o seu
encontro com o monge hindu Bramaehari, em 19,'18, ao qual dedica algumas
páginas de seu diário.4 Algo de comum os unia, sobretudo a busca de um
gênero de vida no qual Deus pudesse ocupar um lugar central. Do guru
indiano Merton receberá um conselho desconcertante: “Existem belíssimos
livros místicos escritos pelos cristãos. Você devia ler as Confissões de Santo
Agostinho e A imitação de Cristo".5*Curiosamente, a atenção de Merton para
o Oriente provocava, como retomo, um convite ao maior aprofundamento da
tradição mística ocidental. A decisão de Merton pelo sacerdócio aconteceu
simultaneamente ao processo do aprofundamento de sua vida religiosa. De­
pois de tomar conhecimento das várias Ordens religiosas, optou pelos fran-
ciscanos. Esse projeto não teve, porém, continuidade. Sua vocação religiosa
acabou encontrando guarita entre os trapistas0 em Kentucky, na Abadia de
Nossa Senhora de Gethsemani. Ali chega no ano de 1941, permanecendo na
comunidade até 1968, sendo que os últimos três anos como eremita.

Durante os vinte e seis anos em que permaneceu vinculado aos trapis­


tas. foram raras as ocasiões em que conseguiu permissão para sair da abadia.
Já nos últimos anos de sua vida, no ano de 1968, consegue autorização para
fazer uma viagem ao Extremo Oriente. Passa por Bangcoc, Calcutá, Nova
Déli, até chegar aos Himalaias, objeto maior de seu desejo espiritual. Na
ocasião, visita vários mosteiros da tradição budista, entra em contato por
mais de uma vez com o dalai lama e outros grandes rimpoches,' fala para
representantes de outras tradições religiosas etc. Toda a riqueza da viagem
enrontra-se descrita na última obra de Merton - Diário da Ásia - , publica­
da após seu falecimento.8 Merton encontrou a morte, de forma repentina e

5 MERTON, Ttuimiis. .1 montanha dos sele patamares. 6. ed. Sâo Paulo: Mérito. 1958. p. 226.
' Ibiil.. p. 214-219.
s lliid., p. 219.
“ A Ontem dos Cisletvienses, do estreita observ ância.
Rimpoebe é um tílulo de deferência no Budismo tihetano conferido a uni lama mais graduado
ou mestre espiritual.
MERTON, Tliomas. Diário da Ásia. Belo Horizonte: Vepa, 1078.

26
.' M '< M M /

inesperada. no dia 10 de dezembro de l*W> Kle estava em Bangeoc. onde


proferira uma conferência sobre o tema marxismo e persp#»rtivas monástica«
durante a manhã. Durante o descanso. após o almoço. morreu eletrocutado
por um ventilarlor elétrico em <eu quarto.'

Um buscador
Thomas Merton foi antes de tudo um buscador. Toda a sua vida foi mar­
cada pela ideia da partida, da viagem para um rumo que só Deus conhece.
Este autor lembra, ao final de sua clássica obra 4 montanha (los sete patama­
res: “Num certo sentido, estamos sempre viajando, e viajando como se não
soubéssemos para onde vamos [...]. Não podemos alcançar a posse perfeita
de Deus nesta vida e é por isso que estamos viajando, e no escuro"."1 Em
outra clássica oração, inserida na obra 4 liberdade da solidão. refiete:

Senhor, meu Deus, não sei para onde vou. Não vejo o caminho diante
de mim. Não posso saber com certeza onde terminará. Nem sequer,
em realidade, me conheço, e o fato de pensar que estou seguindo a tua
vontade não significa que, em verdade, o esteja fazendo. Mas creio que
o desejo de te agradar te agrada realmente. E espero ter esse desejo em
tudo que faço...11

Foi também um místico ousado, que se deixou impulsionar pela vo­


cação de “seguir adiante", de "alargar cordas" e ultrapassar fronteiras. Na
sua visão, apegar-se ao passado, entendido como um momento desligado da
vitalidade que o liga ao tempo, era algo problemático. 0 desafio maior era
saber ouvir com sensibilidade e atenção os sinais dos tempos, mas sempre
acompanhando essa vocação com uma vida interior verdadeira e profunda.
Diz em seu diário, em setembro de 1959: "Minha obrigação é não parar
de avançar, crescer interiormente, rezar, livrar-me dos apegos e desafiar os
medos, aumentar minha fé. que tem sua própria solidão, procurar uma pers-

J M l , p. 270-272.
1,1 UI., 1 montanha dos sele patamares, p. 8. lá. Diálogos tom o silêncio. Rio áe Janeiro: Fk-us.
2003. p. 13.
11 lá. Vo lihenlade da solidão. Petrópolis: Votes. 2001. p. 6o.

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S .'.* !Y > ff< {V P ’*lOGC

ppriiva intciramenle nova e uma nova dimensão cm m inha vida ■u .Suas


íWeia< i*'la>am sempre em gestação contínua.11sendo o* moles de «ua vida a
autnnevisào e o crescimento. E o olhar sempre »oliado para o Kcal. ou «eja#
o centro que da» a sentido à sua »ida.
Para Merton. a tentação mais problemática presente na vida monástica,
que ele rechaçou todo o tempo, é a de "desistir de indagar e procurar”. \
força de sua trajetória foi sempre lutar contra a "recusa de viver". Seu recor­
rente empenho foi contra a resignação e a obediência passivas, em favor da
liberdade e do exercício do amor desimpedido. \ada mais distante do Cris­
tianismo. para ele. do que “desesperar do presente" e adiar a esperança para
um futuro incógnito. Como bem sublinhou, "existe também uma esperança
muito essencial que pertence ao presente e está baseada na proximidade do
Deus oculto e do seu Espírito no presente“.14*
Nas vésperas de sua »dagem à .Ásia. cinco meses antes de sua prematura
morte. Merton escreve em carta a Ernesto Caidenal: ’Tenho uma sensação pre­
cisa de que se está abrindo um novo horizonte e não sei bem o que é. Se é algo na
Ásia. então necessitarei de uma graça muito especial"".13Foi uma viagem decisi­
va para Thoroas Merton. mas que terminou de forma muito inesperada. Nela se
desvelaram traços significativos de sua abertura dialogai. Isso se deu em razão
da disponibilidade com que o místico se entregou a esse novo momento em sua
»ida e. sobretudo, à sede de aprendizado que mareou essa sua peregrinação. Ele
sabia que tinha algo a oferecer, mas muito mais a aprender com os orientais.16Ao
partir para a .Ásia. em setembro de 1968. relata em seu diário:

Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha
esperança é simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar pro­
veito. aprender, mudar, talvez encontrar alguma coisa ou alguém que
me ajude a avançar em minha própria busca espiritual. [...] Sinto que

HART. Patrick; MONTALDO. Jonathan iedí.<. Merton na intimidade. Rio de Janeiro: Fissus,
2001. p. 16.1
Ibid.. p. 244.
MERTt)N. Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Aozes, 1970. p. 213.
1<4—CARDENAL Emento. Correspondência 'J959-J96S;. Madrid: Trotta. 2003. p. 190 íearta
datada de 21 de julho de 1068».
FARCET. Thomas Merton, un trappista face à l 'Orient, p. 18.

28
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aqui não há muito f»ara mim no mnnvnto r qu#> ;,rr, U( ^ ,


um monte de rima“ po«*ibí//dade*. í grande r , , , . . z
perfe/famenle a Vontade d*- Uru- nr—4 >* 4 -tiopr ,-, ;í^ n, _1
-}* 0 'fjr
for que ela fraga.*1'

0 apelo da contemplação
Thomas Merton teve em sua vida írê- apelos interior*^; o apelo da ron
templação. da convocação a compaixão e da alertara dialogai. *>ua voeacãr
mais forte foi sempre a monástica. A -ede de roniempiação traduz o toque
de sua personalidade. A oração e a -olidão constituíam ~eus dois amores
e foram ganhando consistência no engajamento crescente de Merton com a
vida eremítica. a partir de 1965. Relata em seu diário a grande -atisfação de
poder aprofundar sua experiência pes~oal e a relação com Deus na ermida
de Gethsemani. Im a experiência de "solidão sonora- , quando "as cordas
são largadas e 0 barco já não está mais preso a terra, mas avança para 0
mar sem amarras, sem restrições! Não 0 mar da paixão, pelo contrário, o
mar da pureza e do amor sem preocupações- . Esta experiência é vista por
ele como essencial para 0 despojamento interior e a afirmação de uma vida
autêntica. 0 desafio de viver a plenitude do silêncio e a paz verdadeira: "[...]
sair de mim pela porta do eu. não porque 0 queira, mas porque fui chamado
e devo atender \19 0 eremitério é fonte de perene alegria:

E uma delícia. Não posso imaginar outra alegria na Terra além de ter
um tal lugar e nele ficar em paz. viver em silêncio, pensar e escrever,
ouv ir 0 vento e todas as vozes da mata. viver à sombra da grande cruz de
cedro, preparar-me para minha morte e meu êxodo para 0 país celestial,
amar meus irmãos e todas as pessoas, rezar pelo mundo todo e pela paz
e o bom senso entre os homens.20

HART; MONTALDO, Merton na intimidade, p. 386.


18 lbid., p. 270.
9 Ibid., p. 274. Ver também: MERTON, Thomas. Semi de contemplazione. Milano: Garzanti,
1991. p. 26.
1 HART: MONTALDO, Merton na intimidade, p. 272.

29
Pii>.i Aoo*rs no niAim.o

Nu visilo dr Merlon, o contemplativo (\ nlgiiéni que busca entender 0


sentido da vida com a inlcgralidadc de lodo o seu ser.21 e.seulando as pn,.
íundidades mais secretas de seu inundo interior, também alguém t|iie esl/j
com a mento alerta, atento aos pequenos sinais do cotidiano, agudizando os
sentidos para perceber o canto do universo e a cenlralidade do Heal. Como
mestre de noviços na Trapa, tendo entre seus orienlandos o poeta e místico
Ernesto Cardenal. Merton buscava mostrar que a vida contemplativa não
era nada mais do que a “experiência da vida", a integração do humano à
experiência do Real. Algo muito simples, sem complicações: “[...] a vida do
contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água”.22 Para Mer­
ton. a vida espiritual estava integrada no tempo. E essa foi uma percepção
que foi crescendo em sua consciência, tendo como marco a experiência de
Louisville (1958). em pleno centro comercial, quando se deu conta de que a
experiência contemplativa implica o amor a todas as pessoas:

Minha solidão não é minha, pois vejo agora quanto ela lhes pertence - e
que tenho uma responsabilidade em relação a eles, e não apenas minha.
[...] Aconteceu, então, subitamente, como se eu visse a secreta beleza
de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado,
nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é. o cerne
da realidade de cada um. da pessoa de cada um aos olhos de Deus. Se
ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos
pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo. sempre. Não haveria
mais guerra, nem ódio. nem crueldade, nem ganância... Suponho que
o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns
aos outros.23

Curiosaniente. quanto mais Merton adentrava na \ida eremítica e soli­


tária mais dilatava sua percepção da "bondade de todas as coisas”, sendo

MERTON. Thomas. Poesia e contemphfõo. Rio de Janeiro: Agir. 1972. p. 22. Na visão At
Merton. “a verdadeira contemplação r imeparável da vida e do dinamismo da vida - que inclui
trahalho. criação, pnxhiçào. fecundidade e sobretudo amor. [...] A contemplação é a própna
plenitude de uma vida inteiramenie integrada": ibid- p. 154.
CARDEN AL Ernesto, lida perdida. V^nárias 1. Madrid: Trotta. 2005. p. 144 e 204.
MERTON. Rfiexòes de um espectador cJpado. p. 182-183.
UAfjMt'j E/f irrpn )M 01ALOCAL

loeíJulo f^-líi provocação flc viver o H^safio fia alííTKlad^/1 \ »i-u ver. urna *>o-
IifIão que não 6 animada pelo amor nada significa, pois é ele que dá sentido
a vida: |...| a verdadeira solidão abraça tudo. porque é a plenitude <lo amor
que não rechaça nada nem ninguém, e está aberta a Tudo ern Tudo”.2' Para
Merton, no íntimo do ser humano, ern seu centro, há um "ponto virgem” , urn
ponto como que vazio, de pura verdade, que favorece a ai>ertura das portas
da percepção do Real. írata-se de um ponto que pertence radicalmente a
Deus: “[...] esse pontinho de nada e de absoluta pobreza é a pura glória de
Deus em nós’ 2'' Em sua rica experiência na Trapa, Merton pôde sinalizar
essa presença do "ponto virgem" na aragem da aurora. 0 hábito de acordar
muito cedo, em torno das duas e quinze da madrugada, favoreceu o acom­
panhamento do despertar misterioso do dia, da expectativa da "escuta do
inesperado”:

Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point-vierge


da aurora sob um céu ainda desprovido de luz real. É um momento de
temor reverente e de inexprimível inocência, quando o Pai. em perfeito
silêncio, lhes abre os olhos. [...] 0 momento mais maravilhoso do dia é
aquele em que a criação, em sua inocência, pede licença para "ser” de
novo, como foi na primeira manhã que uma vez existiu. Toda sabedoria
procura preparar-se e manifestar-se neste ponto cego e suave.2

Há em Merton uma sede infinita pelo mistério que habita o recanto mais
secreto do ser humano e que brilha na criação. Trata-se de um mistério des­
conhecido, que habita dimensões profundas e que é "eterno descobrimen­
t o A natureza serve de inspiração para o místico perceber a importância do21

21 MERTON. Thomas. Nu liberdade da solidão. Petrópolis: Vozes. 2001. p. 92. B1ANCHI. Enzo.
Prefazione. In: ALLCHIN, D. et at. Thomas Merton. Solitudine e comunione. Magnano: Quiqa-
jon. 2006. p. 7.
2i> MONTAI.0 0 , Jonathan (ed.). iIn ano con Thomas Merton. Meditaciones de sus "Diários”. San­
tander. Sal Terrae. 2006. p. 107 (14 de abril de 1966).
' MERTON, Reflexões de um espectador culpado, p. 183. Vale assinalar o influxo do suflsmo e
do pensamento de Louis Massignon nesta reflexão de Merton sobre o “ponto virgem": BAKER.
Rob; HENRY. Gray. Merton & Sufism. Louisville: Fons Vitae, 1999. p. 63-88. Ver ainda:
SHANNON. William H. et al. The Tomas Merton Enciclojjedia. Maryknoll: Orbís Books. 2002.
p. 363-364.
2T MERTON, Reflexões de um espectador culpado, p. 151.

31
nu'.CAPom^ »o diAiogo__________________________ ______________________________ _

silfiiu-io c do repouso puhi a aventura essencial cio encontro do humano com


o seu centro. Assim como as árvores e as montanhas precisam do repouso
do noite paru recuperar suas forças e ressurgir renovadas na aurora, assim
também o ser humano nçcessila do “espírito da noite” , da passividade28 e do
repouso para retomar a dignidade de sua natureza essencial.2'’ No segredo
do silPncip e na força de suas vozes é que Mellon encontrou a razão mais
profunda de seu ser:

Poder-se-ia dizer que me casei com o silêncio du floresta. A quentura


escura e doce do mundo terá de ser minha esposa. Do coração dessa
quentura escura vem o segredo que só se ouve em silêncio, mas que
está nu raiz de lodos os segredos sussurrados na cama, em todo o mun­
do, por todos que estão se amando. Assim, tenho talvez obrigação de
preservar a quietude, o silêncio, a pobreza, o ponto virginal de puro
nada que está no centro de todos os demais amores. Tento cultivar essa
planta, sem comentários, no meio da noite, e rego-a com salmos e pro­
fecias em silêncio.30

Assim como o mistério brilha no "centro do nosso nada”, transparece


também em toda a maravilha da criação. 0 contemplativo capta essa beleza,
pois tem os sentidos afinados com o tempo, e sabe reconhecer a presença
da realidade (pie está por detrás de todas as luzes e cores, envolvida no
silêncio.11 Para Merton. a contemplação está em plena sintonia com Iodas
as coisas, sendo sua “mais alta realização”. Ela é. sobretudo, dom, “uma
tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que
existe dentro de tudo o que é real. I ma coasciência viva do Ser infinito nas

A passividade vem aqui entendida num sentido técnico, o mesmo utilizado por Joflo du Cruz
na Subida ao Monte Carnuda, onde íaJa em “deixar a alma na quietação e repouso”, ou tam­
bém na ’'atenção aroom>a em Drus. sem partirular consideração, em paz interior, quietação e
descanso” i> 2.12.t> e 2.13,4*. Nào se trata dr um eMado de inatividade, mas sim de abertura
.1 ume>tado de ‘'receptividade", onde >e renuiu ia u tudo o que dificulta o trabalho de Deus no
coração, de abertura do olhar para receber o dom do mi^téno maior.
MFRTON. Rrflnôn dr um espetador culftado. p. 158.
•* H\RT; M0N7MD0. Merton na intimidade. p. 281.
Rrblandoem seu diáno a experiênc ia no eremitério, assinala: “Aqui a di-traçáo é fatal - leva-
-no5 rx (oravehnentt ao abismo. Não v requer, porém. concentração, ajiena- estar presez ü
H^RT; MOMALPO, Merton rui intimidade, p. 291.
'rlQVAS METTON: >JM ITINESÁSIO D’AlOCAL

raízes de nosso próprio ser limitado".32 0 contemplativo é capaz de partilhar


o “segredo inefável” da presença do paraíso por toda parte: “[...] o paraíso
nos envolve e não o sabemos”. A bela reflexão de Merton sobre o "ponto
virgem” traz consigo uma advertência ao caminho trilhado pelos seres hu­
manos, incapazes e surdos para captaras melodias do real. Foi um dado que
captou com clareza em sua experiência de eremita, relatada no seu breve
e belo texto sobre “o dia de um estranho”, escrito em 1965. Ali expressou
sua revolta contra a insensibilidade dos humanos, desatentos à voz de Deus:
“Quando vemos quão pouco nós ouvimos, e quão obstinados e grosseiros são
os nossos corações”. Revela sua “estranheza” em face dos ruídos da cidade,
do zumbido das máquinas que devoram a noite. Sonha com uma perspectiva
diferente, marcada pela comunhão com a natureza e a compaixão e solida­
riedade com os humanos.33
Em seu entendimento, o “trabalho de cela” traduz o exercício essencial
do monge enj manter acesa a atenção, não deixando que nenhum dos sons
que procedem do Mistério passem desapercebidos ou se percam no vazio:
“No silêncio da tarde, tudo está presente e tudo é inescrutável numa nota
tônica central para qual os demais sons ascendem, ou da qual descendem, à
qual todos os outros significados aspiram, para que encontrem sua realização
verdadeira”.34

Esse perigo da desatenção foi também percebido pelo filósofo Martin


Heidegger, quando mencionou a incapacidade de o ser humano ouvir a lin­
guagem do que é Simples em razão de estar distraído pelo "fragor das má­
quinas que chega a tomar pela voz de Deus”. Para Heidegger, é o Simples
que “guarda o enigma do que permanece e do que é grande” e a “serenidade
que sabe é uma porta abrindo para o eterno” .35*1

32 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. 2. ed. Rio de Janeiro: Fissus, 2001. p. 10. ,
HART: MONTAI.OO, ;Uerlon na intimidade, p. 276ss. SHANNON et al.. The Tomas Merton
Enciclopédia, p. 104-108. Ver tamhém o belo texto de Merton sobre a chuva e o rinoceronte:
MERTON, Thomas. Incursiones en lo indecible. Barcelona: Pomaire, 1967. p. 15-26.
1 HART; MONTALDO, Merton na intimidade, p. 284. Merton justificava em seu diário o ver­
dadeiro significado de sua solidão: “Não venho à solidão para 'atingir os píncaros da contem­
plação’, mas para descobrir penosamente, para mim mesmo e para meus irmãos, a verdadeira
dimensão escatológiea de nosso chamado" - ibid.. p. 299.
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. São Paulo: Duas Cidades, 1969. p. 69-71.

33
BuStAOORSS IX' PiAlOoO

Convocação à compaixão
A experiência contemplativa de Mellon eslava longe rle levar a um
quietismo. Em sua compreensão, a vida eremíliea introduz no mistério fun­
damental da misericórdia de Deus: “Para poder viver ieliz em solidão, tenho
de ter um conhecimento cheio de compaixão a respeito da bondade dos ou­
tros. um conhecimento reverente sobre a bondade da criação inteira, um co­
nhecimento humilde da bondade de meu próprio corpo e de minha alma”. 16
Sua vida contemplativa envolvia um chamado da compaixão. Na introdução
japonesa de sua clássica obra .4 montanha dos sete patamares, assinalou que
0 mosteiro “não é um caminho de fuga do mundo”, mas um lugar onde se
assume verdadeiramente as “lutas e sofrimentos do mundo”.3738Foi animado
pela ecumene da compaixão que Merton se posicionou criticam ente'em face
das injustiças do mundo: contra 0 racismo, os campos de concentração, a
guerra nuclear, as tiranias econômicas, 0 conflito no Vietnã etc. A expres­
são de seu pensamento a respeito foi traduzida em seu livro sobre a paz na
era pós-cristã,® que encontrou grandes dificuldades para sua publicação no
início da década de 1960. Alguns autores chegam a afirmar que esta obra
teve um importante influxo no Concílio Vaticano II e, em particular, na encí­
clica Pacem in Terris, de João X X III, publicada em abril de 1 9 6 3 .39 0 modo
como Merton compreendia a vida contemplativa produzia irritação em mui­
tos, sobretudo entre aqueles que excluíam de sua perspectiva 0 engajamento
concreto no mundo. Sob 0 influxo de Gandhi, Merton foi captando com cada
vez mais clareza a relação da vida espiritual com a presença ativa no mun­
do, com a “contemplação num mundo de ação”. Em trabalho onde comenta
alguns textos seletos de Gandhi, Merton salienta qüe “a vida espiritual de
uma pessoa é simplesmente a vida de todos se manifestando nela” . E mostra
a dinâmica relacional que une a vida interior e 0 compromisso social:

% MERTON, /Va liberdade da solidão, p. 92.


s‘ ALLCHIN el al.. Thomas Merlon. Solitudine e comuninone. p. 85.
38 MERTON. Thomas. Peace in lhe Pos-Christian Era. Maryknoll: Orbis Books. 2004. Também
publicado no Brasil: A p a: na era pós-crislâ. Aparecida: Santuário, 2004.
v< ALLCHIN et ab. Thomas Merlon. Solitudine e comuninone. p. 45-62.

34
ThQMAS MfPTQN iJM iTI>/çpá?;q Qia ^r£.

Kmbora seja necessário ressaltar a verdade de que à mediria que a pes­


soa aprofunda seu próprio pensamento em silêneio ela entra em en­
tendimento mais profundo e em romunhão eom o espírito de seu povo
inteiro (ou de sua igreja), também é importante lembrar que à mediria
que se empenha nas lutas cruciais de seu povo. em busca da justiça e
da verdade junto com seu irmão, tende a libertar a verdade em si mes­
mo ao procurar a verdadeira liberdade para todos.M
l

A abertura dialogai
Outro forte apelo na vida de Thomas Merton foi a abertura dialogai. A
profundidade e radicalidade de sua abertura às outras tradições religiosas
foi se firmando sobretudo nos últimos anos de sua vida.11 A sensibilidade
dialogai já havia nele se instalado havia anos. desde o primeiro encontro
com Bracham ari, a leitura das obras de D. T. Suzuki e a amizade duradoura
que se estabeleceu entre os dois, os contatos enriquecedores com a tradição
sufi,40414243a abertura ao Tao na receptividade aos textos de Chuang Tzu,u além
de tantas outras leituras e encontros dialogais. Mas a experiência da Asia
foi decisiva e única para Merton, pois instaurou em seu coração um "diálo­
go de profundis ”, uma nova convicção, alimentada agora pela força de um
encontro vital com a alteridade. Afirmava-se com vigor a realidade de um
“autêntico ecumenismo transconfessional"’.44

40 MERTON, Thomas. Um manual de não violência. Revista de Cultura Jices, v. 89. n. 5. p. 3-29.
1995 (a citação está na páginall).
41 Ver, a respeito: SHANNON, William H. Silent Lamp. The Thomas Merton Story. New York:
Crossroad, 1992. MOTT, The Seven Montains o f Thomas Merton, p. 469-571.
4' BAKER; HENRY, Merton & Sufism. p. 40-162.
43 Chuang Tzu (séc. 111 a.C.) é reconhecido como um dos mais espirituais filósofos chineses e
maior representante do Taoísmo. O interesse e abertura de Merton para os textos deste filósofo
começam por volta de 1960. Por incentivo de um amigo. John Wu. Merton acabou reunindo
alguns textos de Chuang Tzu para publicação, resultando no belo livro .4 via de Chuang Tzu,
publicado em 1965 (e traduzido no Brasil pela editora Vozes).
44 LLAVADOR, Fernando Bèltrán. Thomas Merton y la identidad dei hombre nuevo. In: LÓPEZ-
- BAR ALT. Luce; PIETRA. Lorenzo. El sol a mediunoche. Madrid: Trotta. 1996. p. 120-121 Para
William U. Shannon, estudioso de Merton. foi com a obra 1 experiência interior, de 1959. que
Merton estabeleceu pela primeira vez um elo mais sistemático com o pensamento religioso orien­
tal. Cf. MERTON, Thomas./I experiência interior. São Paulo: Martins Fontes. 2007. p. \I\-Y\.

35
tu W |H' p i A u v o

IVnltv as exporiênrim» realizadas cm sua viagem h Á hhi. destaca-se stin


\, I,sila a Poloniianiwa. cm sua passagem pelo Sri I .anka (<leilão). no mino <lr
de/omlm* do |%H. I'. I>clu o relato de sua visila ííh ruínas da antiga cidade,
e o impado causado pela imanem do dois enormes Imdas. um reclinado e
oulro sentado. acompanhados pela imanem do discípulo predileto de Iluda,
\uanda. \ descrição que Mellon faz dessa experiência é impressionante, e
vale destaeá-la quase integralmonlo:

Posso. eulAo. aproximar-mo dos Iludas descalço e atento, meus pês pi­
sando o capim molhado, a areia molhada. Súbito, o silên cio dos extraor­
dinários rostos. Os largos sorrisos. Vastos, contudo sutis. Contendo todas
as possibilidades; nada indagando; tudo conhecendo; nada desprezan­
do; a paz - não. a paz da resignação emocional, mas de M adhyamika,45
de suvata,"’ que tudo percebeu sem desacreditar ninguém ou nada -
sem refutação - sem afirmar qualquer outro argumento. [...] Fui inva­
dido por uma torrente de alívio, de paz e de gratidão diante da pureza
óbvia dos rostos, da limpidez e a fluidez da forma e da linha, o desenho
dos corpos monumentais integrados na forma da rocha e da paisagem,
figura, rocha e árvore. l-..| De repente, enquanto olhava essas figuras,
fui completa e quase violentamente arrancado da m aneira habitual e
restrita de ver as coisas. E uma clareza interior, patente, como que ex­
plodindo das próprias pedras, tornou-se evidente e óbvia. [...] Nunca
em minha vida tive tal senso de beleza e de força espiritual fluindo ju n ­
tas em uma iluminação estética. Com Mahabalipuram e Polonnaruwa,
a minha peregrinação pela Ásia de certo tornou-se clara e purificou-se.
Quero dizer; sei e vi aquilo que obscuramente eu procurava. Não sei o
que resta ainda, mas eu agora vi e penetrei através da su perfície e ul­
trapassei a sombra e a aparência. Isto é a Ásia em sua pureza, sem estar
encoberta pelo lixo asiático, europeu ou americano; e ela é clara, pura,
completa. Ela tem tudo; e de nada ca re ce .17

Caminho do meio.
Vazio. \áeuo.
MERTON. Diário do Ásia. p. 181-182.

36
ÍHQMAS Ml I [ON , M ' NI li I

Igiiiilrnenle significativa hm;i experiência mística diante da montanha


Ktinclirnjuntfa, descrita no Ifirírio da \ún. Despertado por urn sonho revela­
dor, Merton é atraído pelo “outro larlo da monlanha". aquele que escapa ao
olhar HUperíieial do fotógrafo e não aparece nos postais. Mas é o único lado
“que vale a pena ver” . Diante ria lenta e silenciosa "dança” da montanha
sagrada, Merton relata:

() Mãe tünlrica Montanha! Palácio de yin-yang, oposto na unidade! Pa­


lácio de an icca , impermanência e paciência, solidez e não ser, exis­
tência e sabedoria. Grande acordo do ser e do não ser. convenção que
não ilude a quem não quer ser iludido. A total beleza da montanha só
aparece quando se concorda com o “paradoxo impossível": ela é e não
é. Quando nada mais é preciso dizer, a fumaça das ideias se desvanece
e a montanha é V ISTA .48

A visita de Merton aos mosteiros budistas e o seu encontro com grandes


personalidades religiosas desta tradição exerceram sobre ele um grande im­
pacto transformador. Sublinhou em seu último diáno a riqueza dos encontros
realizados com os monges da tradição budista tibetana:

São gente maravilhosa. Muitos dos mosteiros, tailandeses e tibetanos,


parecem ter a mesma vida que foi vivida, por exemplo, em Cluny, na
Idade Média: erudição, bom treinamento, com muita liturgia e ritual.
Mas também são especialistas em meditação e contemplação. Isto é o
que mais me atrai. Não se pode calcular o valor do contato direto com
gente que, na realidade, trabalhou durante a vida inteira treinando a
mente e se libertando da paixão e da ilusão.4g

Com o dalai lama teve três longos encontros, realizados em Dharamsala,


no alto dos Him alaias. Os dois falaram quase exclusivamente sobre a vida de
meditação. Tratou-se também das formas superiores de oração no misticismo
tibetano. Para Merton, foi um grande aprendizado. Permaneceu em Dhara-*4

w Ibid., p. 119. Experiência igualmenle descrita no sétimo volume dos diários dé Merton: Other
Side o f the Mountain. New York: HarperSanFrancisco, 1998. p. 286. Ver ainda: THURSTON.
Bonnie Bowman (Ed.). Merlon & Buddhism. Louisville: Fons Vitae, 2007. p. 77-83 e 186-187.
4” MERTON, Diário da Ásia, p. 254.

37
Bi v&cvsis rc> r*taioüo

msala [Hir oito dias: lendo, meditando e conversando com o povo du região,
que definiu como “o povo mais rezador que já vi” . Nas intensas e longas
conversas que teve com o dalai lama. Merton concluiu que ele captou a rea­
lidade da meditação, que “certam ente a peneirou de modo muito com pleto e
profundo". Revelou-se para Merton como “um liomeni de alta realização”.50
Esse reconhecimento foi recíproco. Dalai lama saiu igualm ente marcado
pela força da presença de Merton, no qual reconheceu um “ser humano ple­
no de bondade”, marcado por uma profunda exp eriên cia interior.51 Thomas
Merton encontrou ainda outros tibetanos que muito o im pressionaram em
sua viagem, como o rimpoche Chatral. E stab eleceu -se entre os dois uma
"perfeita compreensão”, como dois contemplativos que se encontravam “à
beira da grande percepção do real”. Ficou comovido com o encontro, e em
particular com a “perfeita sim plicidade” e a “liberdade com p leta” do rim­
poche tibetano. a ponto de declarar que, se tivesse de se esta b elecer com
algum guru tibetano, ele escolheria Chatral.52 Foi muito d ifícil para Merton
avaliar o que significou para ele essa exposição à Á sia. Em sua percepção, o
que houve de mais rico foi o grau de com unicação estab elecid o e a partilha
da “experiência essencialm ente espiritual do ‘budism o’” .53

I 0 interesse de Merton estendia-se igualmente ao Budism o zen. Sobre o


tema escreveu dois importantes livros,54 onde fala sobre as liçõ es do zen-Bu-
dismo para o misticismo cristão. Merton acreditava que o zen tinha muito a
dizer não somente aos cristãos, mas ao mundo moderno. Os seus traços con­
cretos, diretos e existenciais seriam importantes instrum entos para o enfren-
tamento da vida em seu próprio âmago.55 Mesmo reconhecendo a im possibi­
lidade de colocar o Cristianismo e o zen-Budismo lado a lado, e sem negar a
peculiaridade e irredutibilidade de cada um, Merton sublinhou a presença

30 Ibid., p. 253. Ver também: THURSTON, Merton & Buddhism, p. 66-73.


al Datai lama afirmou, ao saber da morte de Merton, que havia perdido um de seus melhores ami­
gos. Cf. FARCET, Thomas Merton, un trappista fa c e à l'Orient, p. 151. Ver ainda: O d a la i lam a
f a l a de Jesus. Rio de Janeiro: Fissus. 1999. p. 6-7, 52-53.
32 MERTON, Diário da Asia. p. 111.
35 HART; MONTALDO, Merton na intimidade, p. 409.
14 MERTON. Thomas. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. Id.
Místicos e mestres zen. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
55 MERTON, Zen e as ates de rapina, p. 34.

38
Thomas Meitoh um rrinegjgio oialocal

fie analogias e correspondências entre os dois sistemas de espiritualidade,


que indicam cam inhos possíveis para uma “melhor compreensão mútua".v’
A relação estabelecid a entre Merton e D. T. Suzuki, uma das maiores autori­
dades mundiais do zen-Budismo. foi um importante fator para o incentivo e o
aprofundamento feitos por Merton nesta área. As primeiras leituras de Mer­
ton sobre a obra de Suzuki remontam à década de 1956. A correspondência
entre os dois iniciou-se três anos depois, selando uma amizade duradoura.
Merton solicitou a Suzuki, em 1959, a redação de um prefácio ao seu livro
sobre os Padres do Deserto. 0 mestre zen aceitou, mas os censores da Ordem
C istercien se impediram a publicação. 0 clima ainda fechado do período
interdita o processo relacional.’' Mediante uma autorização especial. Mer­
ton conseguiu encontrar-se com Suzuki em Nova York em 1964. 0 mestre
zen estava na ocasião com 94 anos de idade, e Merton não podia perder a
ocasião de ver e tocar alguém que considerava extraordinário e ao mesmo
tempo marcado por grande simplicidade.565758*60Merton teve ainda outro encontro
im portante, três anos depois, com o monge e poeta zen-budista Thich Nhat
Hanh, que marcou uma presença de resistência crítica no Vietnã. 0 monge
passa dois dias na abadia do Kentucky e entre ele e Merton ocorre uma no­
tável sem elhança espiritual.’9

Uma visão sintética da visão dialogai de Merton pode ser encontrada


nas notas que tinha preparado para uma conferência que daria em Calcu­
tá, no mês de outubro de 1968. por ocasião de um encontro de monjas e
monges beneditinos e trapistas dos mosteiros asiáticos.^' Para Merton. em
razão do clim a de abertura facultado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965),
o monacato católico estaria em boa posição para dialogar com a Asia. 0 seu
maior interesse reside no diálogo da experiência religiosa, onde pessoas de

56 Ibid., p. 44.
57 FARCETT, Thomas Merton. un trappista face à I'Orient, p. 132. Ver ainda: MERTON. Thomas.
II coraggio delia verità. Casale Monferrato: Piemme, 1997. p. 82-83.
58 Ver, a respeito: THURSTON, Merton & Buddhism, p. 145-147.
39 A propósito da relação entre os dois, cf. KING, Robert H. Thomas Merton and Tich Shat Hanh.
New York: Continuum, 2003.
60 Este encontro de 1968 foi precursor de uma série de outros encontros monásticos mter-religio-
sos. Para maiores detalhes, cf. THOLENS, Cornelius J. A. Inconlri di un monaco ira Oriente e
Ocidente. Milano: Ancora, 1991. p. 122-127.

39
Pl SCXCOStS DO DIALOGO_______ ___________________ _________ _______________________________ _

Inuliçòcs diversas Imseain “penetrar o terreno funtlamenlul d«' suas eren-


^•;is através de uma transformação da eonseiêneia religiosa 1,1 Verifica (|iie
neste uivei existem "grandes semelhanças e analogias", uma “sem elhança
existencial"."* Acredita na possibilidade efetiva de realização neste campo
de contatos reais e significativos. Sublinha em suas notas que veio à Asia
não como um pesquisador, mas como “peregrino ansioso” em b u sca das an­
tigas fontes ile visão e experiência monásticas. Acredita firm em ente na pos­
sibilidade de uma "comunicação em profundidade" entre contem plativos de
tradições diferentes. A seu ver. a abertura dialogai não significa uma ruptura
com o compromisso monástico cristão, mas uma am pliação de seu leque, um
aperfeiçoamento da disciplina e da experiência da própria vida monástica.
Trata-se de uma abertura que acaba favorecendo a renovação m onástica em
âmbito ocidental. 0 diálogo verdadeiro não resulta num “sincretism o fá­
cil". e o seu exercício só pode ocorrer no respeito profundo às diferenças
que pontuam cada tradição religiosa. 0 diálogo im plica, sim ultaneam ente,
o empenho com a própria tradição e a disponibilidade de abertura. Para
Merton, o diálogo contemplativo não se resume a uma conversação vazia,
mas envolve partilha de dons. 0 encontro autêntico pressupõe que os seus
interlocutores tenham, de fato. “penetrado com a máxima seriedad e em sua
própria tradição monástica", facultando, assim, a tranquilidade necessária
para a requerida abertura ao outro. E indo ainda mais fundo, assin ala Merton
que o monge, enquanto “exemplo vivo da realização tradicional e interior”,
deve “estar completamente aberto à vida e à nova exp eriên cia por ter utili­
zado integralmente sua própria tradição e a ter ultrapassado"/’1

MERTOX. Diário da ásia. p. 245. 0 texto completo das notas de Merton encontra-se nas pági­
nas 245-249. de onde foram retiradas as próximas citações.
,í; De acordo com David Tracy. Merton vivenciou em profundidade uma conversação com o zen,
disponibilizando-se ao "risco“ da abertura e transformação. Mediante sua experiência concreta
pôde verificar a existência real de profundas “semelhanças na diferença" entre as duas tradi­
ções. Cf. TRACV David. Pluralidad i ambiguedad. Hermenêutica, religián. esperanza. Madrid:
Trotta. 1987. p. 143 e lambem p. 141.
MERTON. Diário da Ásia. p. 248. .Algo semelhante falou Paul Tillich: “[...] na profundidade de
toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde ^ua importância e o horizonte para
o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a a uma liberdade espiri­
tual que possibilita um no\o olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido
último da vida humana" - TILLICH. Paul. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968.
p. 1.3. Trata-se. como se vê. de uma aproximação do outro pela dinâmica da profundidade.

40
Thomas M erton , um itinerário dialogai

Não há melhor caminho para mostrar a riqueza fio fliálogo inter-reli-


gioso cio que o relato ria experiência viva fie peregrinos que viveram a ra-
(licalidacle rle uma busca autêntica e de uma abertura ao outro gratuita e
desarmada. São “amigos fie Deus” , na bela expressão de Simone Weil, que
ajudam a manter sempre acesa a mirada para o mistério do Real. Às outras
tradições religiosas, como bem lembrou Merton, apresentam para os cristãos
a possibilidade efetiva e maravilhosa de um aprendizado único sobre suas
próprias potencialidades, muitas vezes escondidas, abafadas ou mesmo des­
conhecidas. Nada mais nobre do que o aprimoramento da hospitalidade, da
cortesia e da acolhida ao outro. Isso se toma ainda mais profundo no âmbito
do diálogo espiritual, quando se revela de forma refinada a dinâm ica de en ­
riquecim ento recíproco e cooperação fecunda entre as religiões.

41
2
Henri le Saux:
nas veredas do Real
O diálogo inter-religioso reveste-se de uma importância fundamental
neste século X X I. Não liá probabilidade de vislumbrar um horizonte dis­
tinto para as nações sem o cuidado em favor de caminhos alternativos de
conversação e diálogo entre as distintas tradições religiosas. Uma das possi­
bilidades de tocar o nervo desta questão é apresentar histórias de vida mar­
cadas pela vocação dialogai. Dentre os exemplos de buscadores de diálogo
mais impressionantes que o século XX conheceu destaca-se Henri le Saux
(swãniíZ Ahhishiktãnanda), o monge beneditino francês que ousou dar o obs­
tinado salto no mistério da alleridado vivendo uma experiência singular de
imersão como cristão no mundo espiritual indiano. Como bem definiu Marie-
Madeleine Davy, ele loi um “barqueiro entre duas margens” .1 alguém que
viveu como poucos a aventura da liminaridade. Para Raimon Panikkar, um
de seus grandes amigos e discípulos, Ahhishiktãnanda foi “um dos espíritos
‘ocidentais’ mais autênticos que aportaram em nossas costas para se expor à
verdadeira experiência ‘indiana’”.2 Os estudiosos do diálogo inter-religioso
sublinham, com acerto, que “a realidade da autoexposição ao outro é condi­
ção para o diálogo autêntico em nossos dias”. 1
Na trilha aberta por místicos cristãos como Eckhart, Kuysbroek e Suso,
o swõinu beneditino loi envolvido pelo mistério da interioridade. () acesso â
dimensão de profundidade foi favorecido pela sedução da índia, que preen­
cheu tfslas as dimensões de seu ser, abrindo portas e janelas para uma ex-

I M M tlmri lr Suu\ Ir lumnir rntrr ilrm ritm. l'ari*. Alliiu


l’\ 'IKK Mi. li Ullrm it<{ \|i|iÍ*ltiLlan.illil<l In I I*. SAI X, II rl il Alt*1Uiffffllll ilrl (ttinfp.
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I li M * I ^ I u u > t il I tfulotfiii <fistd »■u t u llufn ilo lilu fiili'liiii. SAi» I/‘0|Hililn
I «Jitnra I niMiUM, i> A\l

43
B U S C A D O m DO Dl Al o c o

periêneia inusitada de um despertar religioso para além dos nomes e formas


tradicionais. Foi alguém que nao recusou viver a provocação dos grandes
abismos e dos limites extremos, com todos os perigos que uma tal aventura
comporta. Dizia em seu diário que tuis vocações süo necessárias e trazem
consigo a força do Espírito. Süo pessoas que suscitam a explosão dos signos,
pois süo animadas por mirada mais ampla de um Real que é novidadeiro e
fulminante.1 0 que faz de llenri le Saux um personagem instiganle é o fato
de ele não ter em momento algum largado suas convicções cristãs. Dentre os
inúmeros ocidentais que viveram a experiência de urna conversão profunda,
seja ao Hinduísmo, seja ao Budismo, Abliishiktãnanda foi um dos poucos
que não romperam com suas precedentes convicções. Como um autêntico
contemplativo, demonstrou com sua vida que só aquele que consegue assi­
milar de forma autêntica sua tradição é capaz de dar urn salto mais arrojado
no enigma da alleridade/'
Foi também um grande precursor e pioneiro do diálogo inter-religioso.
0 início de sua experiência na índia precede em quinze anos o Concílio Va­
ticano II (1962-1965), ganhando, assim, contornos singulares e de vanguar­
da no processo de abertura dialogai que/será deslanchado posteriormente. 0
clima do período, como indica Jacques Dupuis, era ainda muito reticente na
questão do diálogo com outras tradições religiosas. Não havia, na ocasião,
nenhum movimento lítúrgico na índia nem se pensava na possibilidade de
adaptação da liturgia cristã h cultura do país. Os residuais esforços dialogais
concentravam-se na esfera intelectual, sem repercussão positiva no âmbito
da experiência religiosa/'

Etapas de um itinerário dialogai


Henri le Saux nasceu em Saint-Briac, um pequeno vilarejo na costa
norte da Bretanha (França) em 1910. 0 seu nascimento foi urn evento impor­
tante ria vida de Alfred e Louise, seus pais, que o aguardavam havia cinco

LE SAUX. H. Dum o spirituale di un m onaco cristiano-sam nyãsin hindã. Milano: Mundadori,


2001. p. 356-357.
Il)i(l., p. 15 (prefácio de Panikkar). PANIKKAR. R. Lettera ad Abhishiktãnanda, p. 109.
Dl Pl IS, J. Gesú Cristo incontro alle religion i Assisi: Ciltadella Editrice, 1991. p. 93.

44
H enri le Sau /, nas veredas do Peai

anos. Permaneceu filho único por mais sele anos, até a chegaria ria irmã
Louise e rios outros cinco irmãos que vieram para alegrar o círculo familiar.
Tornou-se urn exemplo para todos. Sua biógrafa, Shirley du Boulay, assinala
que ele sempre permaneceu francês, mesmo depois de toda a sua imersão
na índia. Nunca abandonou a Bretanha, com seu imenso mar, e suas águas
permaneceram tatuadas em seu coração.7*
Já na infância esteve motivado pela vida sacerdotal. Sob o incentivo
de seus pais, foi encaminhado ao Seminário Menor de Châteaugiron, no su­
deste de Kennes, depois de seguir a primeira formação na escola local. Sua
permanência nesse seminário se estenderá de 1921 a 1926, quando passa a
frequentar o grande seminário de Kennes, aos 16 anos. A vocação monástica
nasce da amizade nutrida no seminário com um rapaz que manifestara o de­
sejo de tornar-se beneditino, mas cuja morte prematura interrompeu o sonho
almejado. Henri herda a vocação monástica do amigo e entra no mosteiro be­
neditino de Kergonan em outubro de I929.*1 A grande paixão pelo silêncio (
ali alimentada e reforçada, bem como o amor pela liturgia e pela leitura dos
Padres gregos e Padres do Deserto. Henri le Saux vai ocupar por doze anos
a função de bibliotecário de Kergonan. A profissão solene é feita ern maio de
1935. Alguns dos biógrafos do místico beneditino confirmam que Kergonan
favoreceu um importante b a c k g ro u n d para o desdobramento de sua vocação.
Durante sua presença no mosteiro nasce uma de suas amizades mais sólidas,
com Joseph Lemarié, que chega na abadia em 1936. Firma-se entre os dois
uma relação de profunda confiança, que será testemunhada na longa corres­
pondência que dura até o final de sua vida.9

DU BOULAY. S. Im grolle du coeur. La vie de Swami Abhishiktanunda (Henri le S ain ). Paris:


Cerf, 2007. p. 27 e 33-34.

A Abadia Sainte Anne de Kergonan, nu cosla sul da Bretanha, foi fundada em 1010. O seu
funcionamento foi interrompido por certo tempo no final do século XVII cm razão do antieleri-
calismo francês, mas retoma fôlego no século XIX com u presença de Dom Prosper Guéranger
- DU BOULAY, Iái grolle du coeur... p. 51.

LE SAUX, H. Lettres d u n sannyâsï chrétien à Joseph b m a rié . Paris: Cerf, 1999. Ver, a propó­
sito: STUART, J. b bénédictin et le grand éveil. Paris: J.Maisonneuve, 1999. p. 61.

45
Bl’SCADOIffS PO DIÀIOCO

0 apelo da índia nasce, provavelmente, em 1934, nos prim eiros anos


de sua esladia em Kergonan.101Mas há ainda muito mistério em torno dessa
questão, pois Le Saux foi sempre muito reservado a respeito. São raras as
manifestações de sua insatisfação quanto às possibilidades de o mosteiro
realizar plenamente suas aspirações mais profundas.11 Nem o amigo mais
próximo, o Padre Lemarié, tomou ciência desse apelo antes de 1 9 4 6 .12 Por
dez anos o místico beneditino guardou silêncio sobre sua paixão pela índia.
A difícil decisão precisou ser longamente amadurecida, sendo revelada à
irmã em 1944. seis meses após a morte da mãe. As d ifíceis negociações
em tomo da acolhida de seu projeto ganham luz em 1 9 4 7 , com a resposta
positiva de uma carta enviada ao Bispo Mendonça, de Tiruehirappalli. A
mediação entre o Bispo Mendonça e Le Saux foi realizada pelo Padre Ju les
Monchanin,13 que traduziu para o bispo a carta escrita em francês. Mon-
chanin logo se identifica com a carta de Le Saux, reconhecendo ali uma
resposta ao seu mais profundo desejo de assumir um novo projeto de vida na
índia. A resposta a Le Saux segue no mesmo ano, no início de agosto, onde
assinala que a carta enviada ao Bispo Mendonça chega como uma “resposta
de Deus”. Indica, ainda, que o seu verdadeiro desejo não era o de seguir
a vida missionária ordinária, mas o “caminho contemplativo sob a forma
indiana”.14 A vinda de um novo companheiro para o projeto vinha a calhar.
Em entusiasmada carta de resposta a Monchanin, no mesmo m ês, Le Saux
fala de seu sonho guardado no coração por mais de treze anos e da força do
apelo da índia. Expressa sua vontade de “desenvolver uma adaptação bem
hindu da vida oblata beneditina e da hospitalidade beneditina, sob a forma

111 Du Boulay indica que o desejo de ir à índia acompanhou Le Saux desde o ano de 1934, antes
mesmo de sua ordenação - DU BOULAY. La grolle du coeur..., p. 84 e 87.
11 STUART, Le bénédictin et le grand éveil, p. 24.
12 DU BOULAY. La grolle du coeur, p. 85.
1,1 0 Padte Jules Monchanin (1895-1957) tinha se ordenado em Lyon, cm 1922. e partido para a
India em 1939, para atuar pasloralmente junto aos tâmiles na Diocese de Tiruchirapalli. Era
um nome hem conhecido, “não somente por suas brilhantes qualidades intelectuais e a ampli­
tude de seu campo de interesses, mas também por sua profundidade espiritual e sua maravilho­
sa capacidade de simpatia e amizade com as pessoas dos mais diversos meios" - STL ART. Le
bénédictin et le grand ereil, p. 25.
" MONCHANIN. J. Lettres au Père Le Saux. Paris: Cerf. 1995. p. 31 (carta de 7 de agosto de
19171.

46
H enri ie Sau x : nas veredas dp Real

de ashram , seja a pagãos ou cristãos que venham buscar alimento para a sua
vida espiritual” . 15 De acordo com a tradição hindu, o termo sânscrito ashram
indica o lugar onde habita um “homem santo”, que dedica sua vida à busca
de Deus, na solidão, silêncio, pobreza e abstinência. É o lugar por excelên­
cia dos “renunciantes” (sannyãsin ).

A biógrafa Shirley du Boulay fala sobre o traço pioneiro da reflexão de


Le Saux, numa época em que o Cristianismo permanecia fechado aos apelos
do tempo e deslocado da provocação inter-religiosa. A carta de Le Saux a
M onchanin, com data de 18 agosto de 1947, revela um conteúdo antecipador
das mudanças que entrarão em cena no pensamento da Igreja C atólica por
ocasião do Concílio Vaticano II .16*

Com a autorização de seu abade de Kergonan, Le Saux desem barca


em terra indiana no dia 15 de agosto de 1948. A data marca um ponto de
mudança d ecisiva na vida do monge de Kergonan. E le não mais retom ará à
França, assumindo em 1 9 6 0 a cidadania indiana. 0 processo de iniciação
hindu com eça desde cedo, quando Le Saux e Monchanin unem as forças
para erguer, em 1 9 5 0 , o saccidãnanda 11 ashram, que ficou mais conhecido
como Shantivanam (a floresta da paz). A dinâmica de inserção no novo país
implicou um amplo processo de aprendizagem dos hábitos, costumes e reli­
giosidade indianos. Henri le Saux busca logo adotar o estilo de vida indiano
e dedica-se com afinco ao estudo do sânscrito, do tâmil e das Escrituras
hindus. Poucas sem anas depois de sua chegada, busca os primeiros contatos
com os ashrams hindus. Visita junto com Monchanin o ashram Ramalcrishna
e também o ashram de Ramana Maharshi, em Tiruvannãmalai, aos pés da
montanha sagrada de Aruriãchala .l8

O encontro de Henri le Saux com Ramana Maharshi, em 19 4 9 . foi de


influência d ecisiva em todo o seu processo de transformação interior. Foi

15 Ibid., p. 33-41 - aqui, p. 37.


16 D l BOULAY. Lu grotte d u co eu r ..., p. UH).
'' A expressão saccidãn an da significa: Sat (ser), cií (pensamento/inleligência), ananda (alegria
perfeita).
18 Esta montanha, dedicada a Shiva (que é fogo e ílama), fica situada a 150 quilômetros ao sudes-
de de Madras. dominando a cidade de Tiruvannamalai. Em seu diário, Henri le Saux reverencia
sua condição sagrada: “Ela é Shiva mesma sob forma de linga, o lugar ruais santo do mundo
- LE SAUX. D iário s/nrituale..., p. 52.

47
BuscADORts do diAiogo

uni breve contato, mas tlc intensidade kairológica. Km imagem registrada


em seu diário.1" Le Saux fala do inesquecível “sorriso pleno de bondade”
do mestre hindu.*20 Mas não pôde aproveitar toda a riqueza do encontro, pois
era ainda "muito noviço na ciência da interioridade”. Não só desconhecia a
língua lâmil. como estava ainda muito apegado aos condicionamentos de sua
formação pregressa: da hereditariedade cristã, da linguagem, dos hábitos,
dos “nós do coração” e dos vínculos que o atavam à dinâmica exclusivamen-
le cristã.

E com Ramana Maharshi (1879-1950) que se dá a verdadeira inicia­


ção de Henri le Saux à espiritualidade hindu. Trata-se de um dos rhaiores
mestres espirituais da índia moderna, por muitos considerado um homem
santo e encarnação de Shiva.21 Sua vida espiritual esteve sempre ligada à
montanha sagrada de Arunãchala, onde encontrou sua realização pessoal.
0 amor pela montanha foi fulminante, desde o primeiro encontro em 1896,
quando saiu de casa, aos 17 anos, movido por um apelo que não conseguiu
resistir. Permanece junto à montanha sagrada até sua morte, em 1950. Ali
ficou solitário e em silêncio por muitos anos, entre as grutas de Arun-chala,
\

até que em certo momento resolveu aceitar discípulos e ao seu redor nasceu
o asliram de Tiruvannamalai, aos pés de Arunãchala. Entre as característi­
cas desse grande místico está a força e o potencial de sua experiência da não
dualidade (advaita). É alguém que fala muito mais pela sua presença e pela
“imperiosa fascinação”. Em obra sobre Arunãchala, recorda Le Saux: “As
palavras eram o que havia de menos importante entre os meios pelos quais o
Sábio transmitia a sua experiência”.22 Não deixou livro pessoal publicado. O

0 (lilírio de Henri le Saux começou a ser escrito no final de 1948, mas não havia a intenção de
ser publicado. Para Panikkar, autor do prefácio, o diário oferece “um exemplo fascinante da
evolução de um pensamento”. O livro foi publicado por decisão de um grupo de amigos de Le
Saux, e o título originul escolhido foi La montée <111 forni du coeur [A subida ao fu n do do cora­
ção], com base em rellexão feita pelo próprio Abhishiklãnanda em seu grande retiro silencioso
de 1956: LE SAUX. Diário spiriluale..., p. 14 e 20.
LE SAUX, Diário spiriluale..., p. 52-56.

Um dos grandes deuses du Hinduísmo, identificado com o símbolo fálico linga, e modelo dos
ascetas e iogues.

1 I. SAI \, Kwordi di Arunachala. Padova: Messaggero Padova. 2004. p. 59.

48
Hen»! le Saux nas /eíedas do Real

que existe são registros feitos por seus discípulos das respostas dadas pelo
mestre na dinâmica de sua formação.23

Além do primeiro encontro com Ramana, no início de sua jornada na


índia, Le Saux encontrou-se novamente com o mestre indiano seis meses
depois, em agosto de 1949, mas ele já estava bem doente. Já mais preparado
espiritualmente, Le Saux buscou neste novo encontro romper com as barrei­
ras racionalistas para beber a gratuidade de seu "influxo secreto’’.2125Nessa
sua nova visita ao ashram de Tiruvannamalai. tomou consciência de que o
lugar guardava não apenas um mestre, Ramana. mas também uma monta­
nha sagrada, Arunãchala.20 Tomou-se de encanto pelos dois. Na verdade,
Le Saux “tinha vindo à índia para fundar um ashram. mas. em lugar disso,
encontrou Ramana Maharshi e Arunãchala".26 Com o mestre Ramana, Le
Saux viveu a experiência de uma "comunhão misteriosa” e a iniciação no
mais puro advaita. É um encontro que marca uma virada decisiva em sua
vida. Em página de seu diário, em novembro de 1956. Le Saux reafirma o
vínculo essencial que estabeléceu com o guru e a montanha: “Se para retor­
nar cristão tivesse de deixar-te, oh Arunãchala, tivesse de abandonar-te, oh
Ramana, enjão não poderia mais retomar cristão, pois entraram na minha
carne e estão ligados nas fibras de meu coração”.27

A inauguração do ashram de Shantivanam aconteceu em março de 1950,


por ocasião da Festa de São Bento. Seguindo a tradição indiana, Henri le
Saux e Monchanin receberam novos nomes. O primeiro foi nomeado como
Abhishikteshvarãnanda (aquele cuja alegria é a unção do Senhor), reduzido
posteriormente para Abhishiktãnanda. O segundo recebeu o nome de Par
rama Arãbi Ananda (aquele cuja alegria é o Supremo sem forma). Os dois

2,1 A respeito de Ramana, ver: BRUNTON, P. A índia secreta. São Paulo: Pensamento. 1996. p.
125-152. GODMAN, D. (Ed.). Sii cià che sei. Ramana Maharshi e il sun insegnamento. Vi­
cenza: Il Punto d'Incontro, 2007. L'INSEGNAMENTO spirituale di Ramana Maharshi Roma:
Méditerranée, 1992. ZIMMER, Heinrich. La via dei Sé. Insegnamento e vita de Shri Ramana
Maharshi. Roma/Bari: Laterza, 2007.
21 LE SAUX. Rirordi di Arunãchala, p. 70-71.
25 Como sublinhou Sonia Calza, Ramana não era senão “um dos rostos de Arunãchala" - CALZA,
S. Lu contemplazione. Via privilegiata al dialogo cristiano-imluista. Milano: Paoline. 2001. p.
103.
26 DU BOULAY, La grotte du coeur..., p. 170.
2 LE SAUX, Diario spirituale..., p. 249.

49
BUSCADORES [X) DIÁIOGO

passam a adotar a veste tradicional hindu, de cor açafrão, dos samnyãsin


(ascetas renunciantes). Como marca da nova vida, adotam a cruz de São Bento
marcada em seu centro com o símbolo sagrado “Om”.28 Na visão de Le Saux e
Monchanin, na ocasião, esse mantra seria “mais apto que nenhum outro a uma
reinterpretação cristã”. Um símbolo “audível e pronunciável, mais etéreo,
mais despojado, último esteio do ‘verbo’ humano em sua ascensão para o Ab­
soluto e. por isso, particularmente apto a exprimir, evocar pelo menos, o inex­
primível kevala, Deus em sua Solidão, em sua Aseidade, em sua D eidade”.29

Para os dois fundadores de Shantivanam, o ashram vinha responder


a um desejo bem definido: “[...] nada mais do que estar em p resen ça de
Deus”. Abhishiktãnanda permaneceu ali por vinte e cin co anos, e o novo
espaço fornecia a ele a necessária credibilidade aos olhos dos amigos e da
hierarquia católica. Mas nunca esteve plenam ente à vontade n esse ashram ,
e o seu mal-estar com a fundação vai se ampliando ao longo do tempo, na
medida em que aprofunda o seu mergulho no Hinduísmo. Um mergulho que
vai provocar crescente inquietação em M onchanin.10

A grande paixão de Abhishiktãnanda estava, porém, m ais além , esco n ­


dida na montanha sagrada de Arunãchala. Passa longos períodos nas grutas
,da montanha entre os anos de 1952 e 1953. Aprofunda ali sua reflexão sobre
a nova identidade a ser assumida e vislumbra novos cam inhos de inserção
religiosa. 0 apelo da experiência do advaita com eça a tocar m ais forte o seu
coração. A montanha sagrada começa a revelar para ele sua tôn ica sedutora,
e ali experimenta um verdadeiro “banho de silên cio “. Em m agnífico poema
de abril de 1952. descreve como foi capturado por Arunãchala:

Oh Arunãchala
Shiva. o benévolo e generoso
Santa, o pacífico,
Advaita, o Um-sem-segundo,
Piírna. plenitude

Trata-se de uni mantra védiro que simboliza o inefável mistério de Deus.


MONCHANIN. J.: LE S A IX . H. Eremitas do saccidàn an da. Belo Horizonte: Itatiaia. 1959. p.
205.

MONCHANIN. Lettres uu Père Le Saux. p. 215 e 149.

50
H enri ie Saux : nas veredas dp Reai

Anancla, bem -aventurança.


Tu não terás paz senão quando também me levares
aos teus pés de loto,
e me fizer penetrar na caverna de teu coração. [...]
Consum a-m e, queima em mim tudo o que não é Ti.
Oh coluna de fogo, Oh coluna de Amor.
Oh Tejo linga, Oh esperma de fogo.
Que de teu Fogo eu renasça Tu. [...]
0 teu sussurro há tempos me chamava,
os m ares me fizeste atravessar,
e, tendo entrado em Teu seio, senti uma paz
que ja m a is havia provado,
paz, plenitude, alegria,
shãnti, pum a, ãnanda [...].31

Sobre o apelo de Arunãchala volta a falar em novembro de 1956, com


uma interrogação precisa feita ao mistério que o convocou:

Se verdadeiramente é a Igreja que tem palavras de vida eterna, e é a única


que as possui, por que então, oh meu Deus, me conduziste a Arunãcha­
la e brincaste comigo abrindo no fundo do meu coração as cavernas de
Arunãchala? [...] Agora tenho medo, tenho medo, um oceano de angústia
para onde quer que me mova. Tu me chamas sob o nome de Arunãchala,
e como resistir aos teus braços que me apertam, aos teus lábios que se co­
lam aos meus? Mas se fosse apenas um jogo Teu, porque a Igreja me grita
que não és Tu esta forma? Tenho medo, veja, de renegar, permanecendo
ligado à Igreja, este mistério interior onde não há mais nem Tu nem Eu,
e que Tu me revelaste em Arunãchala [...]. Contudo não, Tu não és uma
miragem, oh Arunãchala. Tu és a montanha que é feita de granito sólido
e que não vacila, acala. É s a aurora, arunã, que se levantou inflamada ao
cum e do meu coração, não é irreal.3212

1 LE SAUX. D iário spirituale..., p. 89-90.


2 Ibid., p. 25 4 . Em página do mesmo diário, em abril de 1964, dirá: “É necessário viver sobre
a montanha o parto da Igreja, a passagem do confortável ventre materno ao dia pleno do Real
[...]”.Ver, ainda: Id., Ricordi di Arunãchala, p. 85-195.

51
\ experiência ili \iim õehnlo significou Miiiisiuklnnnndn o ilrsa
tm de |u iicliai cm ãmliílns ilc maior profundidade da ex p eriên cia espiritual.
< oofidem ia a ri's|>i ilo cm caria a seu amigo l.emarié. dalada d c 2*) dc aliril
ili PCvt "( ada ve/ i|iic sc erê locai o iiindo: c ã medida (|iic se d esc e ao
limdc. dcscolnrm-se círculos cada ve/ mais profundos de profundidade” . "
( cm a inspirarão de Ivamana c I ninTiclwhi. Aliliisluklãnandn c o m e r a a re-
di|iu cm P».i2 i |95.’f os levlos que vão compor um de seus livros mais po­
lêmicos. (.iilitinltirn 1 Iralava-se de um primeiro confronto do Cristianismo
com a experiência do a d ra ita . \ rearào de Monchunin ao ler o lexlo de
Miliisluklãiianda. em caria ao amigo Dnperray, ê de estupefarão: ”0 interior
da caverna eimideeeu-me profuudamenle. Creio que ninguém ainda linha
•do Ião longe na percepção espiritual do llindufsiuo'Vr> Não deixa, porém, de
la/ci reservas ao livro. Outras críticas vieram somar-se ao posicionamento
dc Moitcliamu: do censor eclesiástico do Paris c do Padre Bayard. Mas reee-
hc- ciiriosaniciile. a aprovação de I lenri de I ailiae. Aliliisliiklãnanda conclui
que a Igreja não eslava ainda preparada para a recepção da olira e que “séi
os contemplativos a poderiam compreender” . 1, 0 livro acaliou não sendo
piihlicado durante a vida dc A lihislnktãiw nda. Após sua morte, parle da olira
loi pulilicada cm dois volumes: In iciação <) esp iritu a lid ad e (los U pan ishad
I 1979) c Interioridade e rercln ção (1982)."'

fhilro mestre da tradição indiana com o qual Aliliisliiklãnanda de­


senvolveu sua experiência espiritual foi Srl C n ã n ã n a n d a .1'1 do Taponuvam
nslirtim. cm Iiriikoyilur, em dezemliro de 1955, na primavera de 1 9 5 6 e
março de 1957. I*oi um importante iogue que deslanchou o processo de

I I M l V Irllrrs d iin sannyãsi dirchcn.. . p 70


" l.uja liailiitjdu pnilnia sei "entrada no ínterim da nivm ia".
MOM 11 WIN. I r t l i r s nu /V/r /r S i i i i x , p. I2H.
Ul II...I, p. 21.1
S l l \U I I a’ lnW iluim cl lc nm m l lUril, p M.'1-Hó n«|in%p }{(>

I I SAl \. II Ininulion <) In .s/w i /mm/i M des (//wi/ii .\/iík /. 1'juíh: IVesenrr. I0 7 1). InlS n on té cl
icrclnlion; i *mníiÍh llirolu^i«|ii<*H. Sintemii iVoHrner, I0H2.

Njlt» lia iiiinliiK mloi ma^óes solue n inlíUinn v juventude tlr Sn ( »nananaiida. Ksprrnlu-st* tpio
hr,t iiaw iiiirult» neoiieu na priineiia metade tln htYnln \ l\ ninn vilarr|o próximo a MuU};alnrr
Passou iiimliiN anos «nino aseela iuih llimaluias, Inalo nu seguida nina vida itinerante Teve
i otilalos rum Sn \niolnialo e Haitiana Maliaisln. I.stalielereu-He, Imalmenlf. rin Tiniknyilur
(Tiiiinh.
___________________________________________________________ __ _____________ _ H R M R lL f jA U X NAS /PPÇOAS 0 0

in leriorização d e \bhishiklãnand a. »- » »»m o qual viveu uma singular rela­


ção cie d iseipu lad o. Sobre esse me»lrc- indiano. que faleceu em |07 I. Le
Siiiix publicou um livro cm I 0 c f) ." ‘ >obre o encontro <le quinze dias r c>m o
giiru indiano. com entou em carta c|c- mare e» ele 1056 para o amige» Lemarié:
“ Nele senti a verdade elo mlroitn Lie go»tana <|ue eu pu<le~-e consagrar
lodo o meu tem po vindouro a meelitação sem pensamentos, deixando tuelo
ele lado. não som ente as di»trações e conversações inúteis. ma> igualmente
Ioda leitura . 11 C oslum a-se elizer. na tradição hindu. e]iie. quando o dis» ípulo
está pronto, o guru logo se ap resen ta.12 0 sábio Gnãnãnanela foi alguém e|iie
entrou no cam inho ele A bhishiktãnanda para manter acesa em sua mente a
atenção para a profundidade elo coração. 0 guni é aquele que "viveu a e x ­
p eriên cia do K spírito, da Realielaele suprema, e conhee e em primeira pessoa
o cam inho q u e tal exp eriên cia co n d u z".1 F. alguém que fala diretamente ao
coração, sen d o cap az ele in iciar o discípulo no caminho espiritual a partir elo
núcleo m esm o de sua profundidade, e partilhar com ele a inetável experiên­
cia que viveu em âm bito pessoal. 0 guru é simplesmente “um iniciador, sua
única tarefa c tornar a alm a disponível para o E s p í r i t o " . 1'1

Em sua rica trajetória espiritual. Vbhishiktãnanda estabeleceu impor­


tantes laços <le amizade. \ale destacar a relação de proximidade que mante­
ve até o final cia vida com Ruimon Panikkar. outro grande buscador do diálo­
go. Como assinala Shirley Du Boiilay. “era a única pessoa com a cjual podia
partilhar plenamente suas ideias", estando em plena sintonia intelectual.*’
Panikkar esteve ao lado de Abhishiktãnanda em momentos decisiv os de sua
vida, com sua presença e apoio, como na difícil decisão de deixar Shanti-

1 1 : s \ r \ . ti (àían an an d a. un niait w spirituel du p a \< tamoul. Paris: INvmmuc. l ‘>70. E a


odi^Ao ilaliana: Cinunuuinda. I u maestro spirituale délia lern Tamil. Raceonti de larna. Sotto
il Monlo: Son ilium, 1ÎIHR
ld.. I a'tires </ un sa n m d si chrétien.... p. 1 l">
0 ^uni o aqurlo que desldoqueia os eumuiho* e lorneee a ujiula noeoMsaria para manier aoesa
n eliama »la le c o t aminlio du devo^Ao. E alguém que omu >outpre ali para manier \i\o o apelo
do Sciiliot que liulo poilu LE S U \. Gnanânanda. I n maestro spirituale délia terra Tamil, p.
'2X\'2:\\
( ONIO, l \hlu>luktananda sutle frontière dell ineontro eristnmo-indii. \»i>c i iltadella Edi-
Hue, |W|. p I.Y
1 T S U \ II. R isreglio a se risivglio u Iho. Soiio il Moule: Son ilium, p- 11-

IM 1101 I W /a grotte du coeur __ p. 2(*0.

53
F>.'$CAC>0«fS r>0 OiAlOCO

tonam, na defesa da obra Guhaniara . na decisão de avançar na experiência


de interioridade hindu elr. Os dois sempre estiveram muito próximos, numa
relação de escuta mútua e aprendizado perm anente.4* Fizeram jun tos uma
rica |>eregrinação espiritual, nas fontes do rio C anges, que está registrada
em publicação específica.4, Panikkar escreveu o prefácio do diário espiritual
de Abhishiktãnanda, e foi quem deu o belo título de sua ed ição original: La
montée au fonddu coeur. Escreveu também uma linda carta ao amigo Svãm ijl,
depois de sua morte, que é também um referencial para o conhecim ento de
seu itinerário interior.w

A grande crise espiritual vivida por Abhishiktãnanda nos anos de 1955


e 1956 vai sendo aos poucos apaziguada, na medida em que aprofunda sua
vida interior em contato com a grande tradição hindu, e em particular com os
Upanixades. Com o avançar dos anos, o ritmo de sim plicidade e gratuidade
vai envolvendo todo o seu ser, de forma a favorecer uma serenidade singular.
A meta essencial de sua vida vai também ganhando uma clareza única: de
união profunda com Deus e os irmãos. Firm a-se em sua co n sciên cia a ideia
de que a revelação cristã e a experiência hindu podem ser recon ciliad as em
nível de profundidade, sem com isso romper os traços distintos e irredutíveis
que as separam.

Em novembro de 1955, Abhishiktãnanda confidencia a seu amigo Le-


marié que a experiência de Aruriãchala deixou m arcas de grande profundi­
dade em sua vida. Sua aspiração mais arraigada era mesmo a solidão. Vai
amadurecendo nele a decisão de deixar Shantivanam para ded icar-se mais
a fundo à vida eremítica. Mas isso-só vai ocorrer em 1 9 6 8 , quando a res­
ponsabilidade do ashram passa a ser assumida por Bede Griffiths e Francis
Mahieu. Em 1959, faz sua primeira viagem aos H im alaias e fica fascinado
pela beleza do lugar. É o início de seu itinerário para o norte, que foi favore-

LE SAUX, Lellres d'un sannyãsi chretien .... p. 216 e 310.


Id. e! al.. Alie sorgenti del Gauge.
Svãmijl era a forma carinhosa como Panikkar tralava o amigo A bhishiktãnanda. É um termo
que deriva de Svãmi, cujo significado é Senhor, mestre. Trata-se de um título de samnyãsin
(renunciante). A mencionada carta de Panikkar foi publicada no livro Alie sorgenti del Gauge
(LE SAUX et al., p. 105-152). E dá continuidade à carta, trinta anos depois, no prefácio do já
citado livro de Shirley du Boulay, La grotte du coeur , p. 11-16.

54
MENPi j A'JX Ut'3 /EPÇQAS DO

rido pela am izade do Reverendo Murray Roger; e seu grupo anglicano, hem
r orno Raim on P an ik k ar/ '
A ex p eriên cia mais estrita de vida eremítica começa em 1968. mas
vái ser um erem ita sem pre muito ativo. Dizia que '4a contemplação é [...]
perm anecer na P resen ça sem deixar de estar presente a cada um e cada
uma das co isas” .4950512*Sem perder sua dinâmica itinerante, passa a viver como
eremita em Gyansu, nas margens do rio Ganges. Chega o momento de uma
vida mais reservada, depois de um longo período de vida comunitária, ainda
que elá stica. Não deixa, porém, de participar de uma série de atividades re­
lacionadas ao C hrista Prema Seva Ashram de Pona. um núcleo empenhado
no diálogo cristão-hind u .Dl

N esse período d ed ica-se também à orientação espiritual de dois discí­


pulos fran ceses: a Irm ã Thérèse, proveniente do Carmelo de Lisieux,°2 e o
jovem sem inarista de Bourg en Bresse Marc Chaduc, com o qual vai esta­
belecer um profundo intercâmbio desde maio de 1 969.57 Os dois discípulos
chegam à índia em 1 971. Abhishiktãnanda vê em Marc uma vocação muito
especial e com ele estabelece uma íntima relação de guru e discípulo.54*
Marc revelava ser alguém de uma excepcional profundidade espiritual, e as
cartas enviadas por Abhishiktãnanda ao discípulo são testemunhas dessa
qualidade singular. 0 encontro com Marc Chaduc, em especial, suscita nova
reviravolta na vida de seu guru. Era tal o nível de profundidade entre os dois
que A bhishiktãnanda chegou a pensar num movimento de mudança mais
radica] em sua vida, como relatou a seu amigo Lemarié: "S e tivesse força
psíquica, eu me libertaria ainda mais rápido de todos os meus engajamen­
tos, como M arc, e partiria para outras veredas ou pelo menos para a floresta

49 Alle sorgend d el Gange (LE SAUX et al.).


50 DU BOULAY, La grotte du coeu r..., p. 277.
51 CALZA, La contem plazione ..., p. 89.
52 Henri le Saux já se correspondia com a Irmã Thérèse desde 1959. Ela chega à índia, para a
experiência eremítica, em novembro de 1971.
0 O biógrafo James Stuart fala, ainda, de dois outros discípulos hindus de Abhishiktãnanda:
Ramessh e I>alit -STUART, Le bénédictin et le grand éveil, p. 262.
11 James Stuart sublinha que este tipo de relação, guni-discípulo, “não tem paralelo na cultura
ocidental”, sendo difícil para os ocidentais sua compreensão, que é muitas vezes deturpada
-STUART, Le bénédictin et le grand éveil , p. 261.

55
C'V. Vv *[V « a S P O P tM O G O

As margens do Ganges. sem sequer um livro, senão os U pan ixarles e o Novo


Testam ento"." Com Marc. Abhishiktãnanda d ecid e aprofundar o seu con-
tato e estudo dos Upanixades. Os dois passam três sem an as d ed ica d a s inte-
gralmenle ao seu estudo, em 1972. no ashram de P h u leh atti. Foi um período
de grande inspiração, do qual nasceram as bases para a red ação de um .lon­
go ensaio de Abhishiktãnanda de introdução aos U panixades. E m cartas a
amigos, em 1972. sublinha a importância e o significado do estudo feito com
Marc sobre o tema. Assinala, entre outras coisas, a “ m u tação’ ' provocada
pela experiência: a “impressão indelével’' deixada e a in sp ira çã o para fun­
damentais mudanças a serem realizadas na Igreja e nas outras re lig iõ e s.56

Em junho de 1973, o discípulo Marc receb e a in icia çã o (dlksha) de


sannyãsin. nas margens do rio Ganges. Numa cerim ôn ia sim p les e b ela, o
discípulo recebe do próprio mestre sua iniciação, receb en d o o novo nome:
Ajãtãnanda (bem-aventurança do não nascido). Segundo P a n ik k ar, o amigo
Svãmijl encontrou em Marc o discípulo que buscava, e com e le , a experiên ­
cia da "plenitude humana da paternidade” .3' Em ju lho do m esm o ano, mes­
tre e discípulo passam juntos três dias de intensa vida esp iritu a l, no pequeno
templo de Ranagal, nas proximidades do G anges.58 Em ca rta dirigid a à sua
irmã Marie-Thérèse le Saux, em agosto de 1 9 7 3 , A bhish ik tãn an d a assinala
que a experiência interior foi tão forte que o corpo teve dificuld ad e de a
suportar.39 0 mestre reconhece que o discípulo realizou p len am ente o ideal
do sannyãsa, dando um passo ainda mais radical: “ A qu ele que estava atrás

B LE SAUX. Lettres d u n sannyãsl chretien.... p. 417.


36 STUART, Ije bénédictin et le grand éveil, p. 279.
LE SAUX. Diário spirituale.... p. 30 (prefazione).
Oulras experiências espirituais entre os dois tinham acontecido antes, como em novembro de
19 1 1 (em caminhada com Marc junto ao Ganges, perto do ashram de Phulehatti), na festa de
ascensão, em maio de 1972, no Shivananda ashram (Rishikesh), e na experiência conhecida
como o “Upanixades de fogo . ainda no mês de maio, no terraço do mesmo ashram . A propósito,
ver: LE SAUX, Diário spirituale..., p. 443-448. Ver, ainda: VALERA, L. A pon te entre as duas
margens. A experiência inter-religiosa de Henri le Saux. Dissertação de mestrado apresentada
no PPCIR da UFJF, 2007. p. 95-98.
LE SAUX. Ricordi di Arunachulu. p. 26. Ele diz. em carta a outros amigos, que a experiência
de contato com os Upanixades quase o destruiu: “[...) é lodo o fundo da alma que se eleva, as­
sim como as ondas do fundo oceânico elevam e agitam as águas do mar... É muito forte sentir a
presença do Verdadeiro. É alguma coisa que queima...*' - COMO, Abhisiklãnanda..., p . 81.

56
H e m p i le S a u x m a s v e r e d a s d o R e a l

de mim passou ad ian te, e eu não posso mais atingi-lo...” .60 Os dois partici­
pam, porém , da vida que procede de uma mesma profundidade. Poucos dias
depois, em 14 de ju lh o , A bhishiktãnanda sofre um infarto do miorcádio. Os
prim eiros dias que se seguiram ao ataque cardíaco foram, paradoxalmente,
de grande ilum inação e felicid ad e para Svâm ljl. Em seu diário íntimo relata
a “ m aravilhosa aventura esp iritu al” da grande sem ana que vai fio dia 10 a
18 de ju lh o . E le su blinha:

D epois de alguns dias me vem. por assim dizer, a solução maravilhosa


de uma eq u ação: descobri o G raal. E isto digo e escrevo a quem quer
que s e ja capaz de aferrar a imagem. A busca do Graal não é senão a
b u sca de S i. [...] E nesta busca corre-se para todo lado. enquanto o Gra­
al está aqu i, bem próximo, basta abrir os olhos.*61

Para alguém que já havia atravessado a ’’morte” do esvaziamento de si,


não foi d ifícil afrontar a “pequena morte” , ocorrida no dia 7 de dezembro de
1 9 7 3 . Os grandes m ísticos, das mais diversas tradições, afirmam que a tarefa
mais árida e com p lexa é “ morrer antes de morrer” .

Entre dois am ores


Em toda a sua trajetória de vida na índia. Abhishiktãnanda partilhou a
presença de dois am ores: o Cristianism o e o Hinduísmo. Conseguiu trilhar
o seu cam inho participando intensam ente desses dois “ mundos” , sobretudo
em razão de um cham ado que sem pre foi muito mais forte em sua vicja: o ape­
lo do R eal. Foi um buscad or singular, que não se poupou a disponibilizar-se
para viver o desafio de duas grande tradições religiosas, a duas espirituali­
dades d istintas e com plexas. Sua grande virtude foi ter conseguido manter
sua fidelidade à tradição cristã sem romper com a abertura ao mistério do
advaita hindu.
Não foi, porém , uma aventura espiritual desprovida de tensão e angus­
tia. O diário de A bhishiktãnanda é permeado pela presença de uma *fcluta
interior” la cera n te, e que foi mais intensa entre os anos de 1953 e 1956.

w LE SAUX, Diário spiritualc.... p. 485.


61 Ilíid., p. ‘188.

57
B u s c a d o r e s d o d ia l o g o

Trata-se do período em que viveu a experiência de A runãchala. com seus


desdobramentos espirituais. Ali encontrou algo m ais. uma vida interior fas­
cinante. desveladora da giiha (gruta) do coração. A angústia de AbhishiktÊP
nanda estava justam ente no delicado processo de manter o eq u ilíb rio entre
os dois amores, de não romper com nenhum dos vínculos que o dom iciliavam
no mistério maior. Em página de seu diário, em fevereiro de 1 9 5 6 . relata
essa tensão:

A angústia essencial de não conseguir encontrar repouso e alegria em


nada daquilo que sempre me deu alegria e repouso. No meu 'p en sam en ­
to' de Deus e na minha ’relação- com Deus. qualquer que tenha sido...
Porque lá onde quero ou me disponho a fixar-m e. um neti. neti im perio­
so e sem misericórdia surge da profundidade de meu ser: não pare. não
pare... E uma outra voz rne diz: se não parar, corre para o abism o, para
o abismo essencial.62

A raiz de todo o sofrimento estava na tensão de qu erer co n c ilia r o a d ­


mita com o Cristianismo. Dizia que a fonte de toda a sua angústia estava no
querer "perm anecer cristão". Acreditava que. se tivesse a coragem de "d ar
um decisivo passo adiante para aceitar sinceram ente o adi aita com todas as
suas possíveis consequências, incluindo a de ‘deixar" o C ristianism o, tudo
leva a crer que estaria em paz V’2 Mas não era essa a paz que ele queria,
nem o movimento de vida que fez. Mesmo tendo encontrado no Hinduísmo
a alegria e a paz. como disse em vários momentos, o C ristianism o pulsava
forte em seu mundo interior: “[...] há no fundo de mim um adhisthãnanda
(fundamento) cristão dificilm ente elim inável".64 0 tormento de viver essas
duas existências provoca nele um tal oceano de angústia que ch eg a mesmo a
pensar em morrer: "[...) não posso mais \iver aqui como monge cristão; e não
posso mais viver como monge hindu. Que o Senhor tenha piedade de mim e
tire a minha vida! Não mais resisto..."'.10

I M .. p. 214.
11-ut . p. 2(VV
II.ui. p ü u
ll-i.l.. p. 218.
H e n r i le Sa u x : n a s v e r e d a s d o R ea l

O apelo do ad v aila 60 tem a ver, sobretudo, com o âmbito da experiên­


cia. Com o am adurecer do tempo, Abhishiktãnanda vai percebendo que o
encontro verdadeiro entre o Cristianismo e o Hinduísmo deve se operar no
seu mundo interior, no nível da experiência. A espiritualidade advaila , como
mostra P anjkkar, envolve uma dialógica da meta-noia, ou seja, um processo
que rompe toda dualidade e escapa de urrla inteligilidade estritamente racio­
nal. Não se trata sim plesm ente de negar a dualidade, mas de não se deixar
fixar-se nela:

A intuição advaita não consiste em afirmar a unidade ou negar a dua­


lidade, mas precisam ente, com uma visão que transcende o intelecto,
saber reco n h ecer a ausência de dualidade na base de uma realidade
que em si mesma carece de dualidade, que não pode ser expressa nu­
m ericam ente, uma vez que não há um dois.67

Não há como captar o significado do advaita senão através do “olho


da fé”, ou se ja , de um terceiro olho que envolve a experiência da realidade
(anubhãva). A tensão espiritual de Abhishiktãnanda vai se arrefecendo na
medida em que aprofunda a verdade advaita e sua dinâmica existencial, que
tem proximidade maior com o shivaísmo. Mas a intuição que acompanha sua
nova co n sc iê n cia im plica um desafio de ir sempre além, de avançar com ou­
sadia no âm bito da experiência, de um desnudamento cada vez mais radical
visando à cap tação do R eal. Nos últimos cinco anos de sua vida, Abhishiktã^
nanda vive com intensidade a experiência advaita, concebendo-a como algo
fundamental para a integração do ser humano e sua relação com o contexto
mais amplo. Para ele, a nova intuição revelava uma essencial importância
para o mundo e para a Igreja.

íi interessante constatar como, na medida em que Abhishiktãnanda


descobre a intuição advaita, ele rompe com sua anterior visão teológica,
identificada com a teologia do acabamento, segundo a qual todas as demais
tradições religiosas encontram no Cristianismo o seu remate e realização.
Antecipando uma importante discussão teológica que se dará no pós-Concí-

0 termo adm ita vem do sânscrito, e pode ser entendido corno “não dualidade ou. ainda, “a-
-dualidade". Envolve uma intuirão de que a realidade não (■nem monista. nem dualista.
PANIKK AR, H. II dharma <1?U induUnui. Milano: lí LíK. 2006. p. 171.

59
p , s iA t V R is PO C U IC O O

lio Vaticano 11. Svãmíjl assinala que a teologia do acabam ento não consegue
fazer justiça ao pluralismo religioso. Num arligo sobre a questão dos “arqu é­
tipos religiosos", eserito em 1970. mas só publicado após sua morte, levanta
sugestivas reflexões sobre o pluralismo religioso como valor irrevogável.0,1
Trata-se de uma reflexão pioneira para a teologia das religiões e que aborda
os limites de uma teologia do acabam ento. Como sublinhou Jam es Stuart,
em reflexão a propósito, "uma leologia do acabam ento, não som ente im plica
uma visão irrealista do futuro desenvolvimento da Igreja, mas, o que é mais
importante, deve ser radicalm ente modificada a partir do momento em que
o pluralismo religioso é tomado a sério, como o que ocorreu com o Vaticano
ir w

Com o aprofundamento de soa imersão no advaita hindu, Abhishiktã^ -


nanda vai tomando distância não só de sua experiência em Shantivanam,
mas também de seu companheiro Monchanin. A diferença entre os dois am i­
gos foi se evidenciando ao longo do tempo. Enquanto M onchanin não co n se­
guia vislumbrar uma saída possível para o profundo abismo que, a seu ver,
separar a o Hinduísmo do Cristianismo, A bhishiktãnanda via nesse abismo
um desafio ainda maior para acreditar num encontro que deveria acontecer
no âmbito da profundidade. 0 primeiro era essencialm ente um pensador,
enquanto o segundo era alguém seduzido pela experiência e decidido a levá-
-la adiante. Monchanin pressentia na ousadia do amigo o risco maior de
uma perda de identidade. E le se inquieta com o curso tomado pela vida do
amigo. Sentia-se, de certa forma, responsável pelo com panheiro que fora à
índia por sua interlocução. Para Abhishiktãnanda, havia um obstáculo inte­
lectual impedindo o parceiro de ir mais a fundo na experiência do vedanta.
Ele o achava muito grego para tal alcance. E-sofria com os questionam entos
sofridos, tendo dificuldade de reagir ao amigo, com o qual se sentia unido
por laços de profundo apreço. Lamenta em seu diário: “É d ifícil com bater
aqueles que não vos amam. Mas contra aqueles que vos amam, que se opõem
a vós por razões do dharma (religião)! Esta é a minha situação com Padre

0 artigo, que trata do tema dos arquétipos religiosos, foi publicado no livro de Henri LE SAUX
Intériorité e révélation.: essais théologiques. p. 177-207. Sobre a defesa do pluralismo religioso,
ver em especial, as p. 192-195 e 197-198.
STI ART. Le bénédictin et le grand éveil, p. 241.1er. ainda: DU BOULAY. La grotte du coeur...,
p. 172-173 e 313.

6o
H e n r i le S a u x Nas / e r - d î s o o Pe a i

M onchanin e com os meus amigos da Igreja".'" É curioso observar que Mon­


ch an in , ap e sa r rio grande apreço que nutre pelo amigo bretão, busca restrin­
gir o seu voo reagindo aos toques de ousadia de sua reflexão. Isso vai ocorrer
na sua re sistê n cia a certas passagens do livro feito em comum - Eremitas
do saccidãn an du - , sobre a conveniência da publicação do livro Guhantara.
bem com o à d in âm ica de envolvimento de Abhishiktãnanda com o seu guru
G n ã n ãn an d a.'1 São reações que expressam o temor de um mergulho roais
fundo no mundo da alteridade.

O engajam ento espiritual de Abhishiktãnanda em dois mundos religiosos


distintos co lo ca a com plexa questão de sua dupla pertença. Se mesmo hoje
a questão é mal digerida, na década de 1950 era ainda muito mais. podendo
passar quase que por heresia naquele contexto da tradição cristã. Não é de
estranhar que a dupla pertença do buscador bretão vai deixá-lo meio isolado,
mesmo entre os amigos mais próximos, como Monchanin. I m dos poucos que
o apoiaram na época foi Panikkar, para quem a lealdade de Abhiahiktãnanda
a duas visões de mundo não implicava um problema ou contradição.'2 O que
estava em curso, e que não pode ser confinado numa racionalidade estreita,
era a fidelidade de um buscador ao mistério do Real. Mais do que uma questão
de ideias, estava em jogo um testemunho autêntico de vida.

Em âm bito da reflexão teológica contemporânea. Jaeques Dupuis le­


vanta a d iscu ssão sobre a plausibilidade de uma partilha de experiências
de fé d iferen tes. Argumenta que, se de um ponto de vista absoluto é algo
problem ático, dado o caráter de envolvimento integral que cada fé religiosa
im plica, não se pode, por outro lado, excluir tal possibilidade, em razão de
exp eriên cias significativas e positivas que confirmam a hipótese.’3 O teólogo*713

,0 LE SAUX, D iário spirituelle..., p. 281. Monchanin vai reagir permanentemente contra o desejo
de Abhishiktãnanda deixar Shantivanam. Ele o vai acusar de egoísmo e outras coisas mais. As
resistências virão também de outros amigos, como B. Griffits e F. Mahieu. Ver, a respeito; DU
BOULAY, La grotte du coeur..., p. 260-262; 167-168. E também: MONCHANIN, Lettres au Père
Le Saux, p. 114,149. 243-244. STUART. Le bénédictin et le grand éveil, p. 61 e 80.
71 STUART, Le bénédictin et le grand éveil, p. 73. MONCHANIN, Lettres au Père Le Saux, p. 227.
DU BOULAY, La grotte du coeur..., p. 223.
: DU BOULAY, La grotte du coeu r..., p. 14-15.
73 DUPUIS, J. Verso una teologia cristiana dei pluralismo religioso. Brescia: Queriniana. 1997. p.
510. E o exemplo que ele dá, em nota de rodapé, é o de Abhishiktãnanda, que bem conheceu
na índia.

6l
IH'SCAPORfS PO OlAlOOO

Claude Geffró tambêrn admite 11 viabilidade de uma dupla pertença no Ambi-


lo da experiência religioso. Considera legítimo e viável a assunção feita por
cristãos de elementos “estranhos” á própria tradição como fator de enrique­
cimento da própria religião. Ele não só reconhece essa possibilidade como
nela desoculta traços que são “prometedores de novas figuras históricas do
Cristianismo”.74 Em outro artigo sobre a questão, Geffré assin ala a impossi­
bilidade de admissão de uma dupla pertença quando se aborda a questão da
“religião como sistema”, mas, no caso de tratar a religião como “experiência
interior e como entrega total de si a um Absoluto” que ultrapassa o sujeito,
considera possível afirmar uma “continuidade” entre experiên cias religiosas
distintas.75

Não se pode brandir tais experiências como relativistas assim como se


tende a fazer em determinadas situações, de forma superficial e dogmática.
Há que avaliar seriamente cada caso, com espírito de abertura e acolhida.
Aqueles que vivem uma semelhante experiência podem ser reconhecidos
como “pessoas liminares”, para utilizar um jargão da antropologia. São pes­
soas singulares que se sentem chamadas a partilhar duas tradições religio­
sas distintas, vivendo “na fronteira de duas comunidades e seus universos
simbólicos e se sentem à vontade entre os dois” .'6 Em seu clá ssico estudo
sobre o processo ritual, o antropólogo Victor Turner tratou a questão da li-
minaridade nos ritos de passagem. Sinaliza em sua obra que os “atributos
da liminaridade, ou de personne (pessoas) lim inares são necessariam ente
ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam -se ou esca­
pam á rede de classificações que normalmente determinam a localização de
estados e posições num espaço cultural” . “ São entidades que não podem
ser fixadas aqui ou ali, mas que se encontram “ no meio” , e o fato de esta- *1

1,1 GEFFRÉ, G. Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin
Michel, 1999. p. 242. Ver, ainda: KNITTER, P. F. Inlroduzione a ile teologia delle religioni.
Brescia: Queriniana, 2005. p. 448-449 (tomando como exemplo o caso de Thomas Merton).
GEFFRÉ. C. Doublé appartenance et originalité du christianisme. In: GIRA, D.: SCHEUER,
,1. (Eds.). Tiere de plusieurs religions. Promesse ou illusion? Paris: L’Atelier, 2000. p. 122-143 -
aqui, p. 154.
1 AMA1.ADOSS. M. 1a double appartenance religieuse, ln: G1RA. D: SCHELER, J. (Eds.l. litre
de plusieurs religions. Promesse ou illusion? Paris: L’Atelier. 2000. p. 44-53 - aqui. p. 52.
TURNER, \. \\. O processo ritual. Estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes. 1974. p. 117.

62
H e n r i le Sa u x . n a s v e r e d a s do R e a l

rem numa situação fronteiriça provoca, muitas vezes, resistência e oposição,


dada a sua “ invisibilidade” e seu poder “contaminador” e “perigoso”.'“

A abertura inter-religiosa
O teólogo Paul Tillich, em clássico texto sobre a relação do Cristia­
nismo com as outras religiões, assinalou que é no âmbito da profundidade
(idepth) que se ganha liberdade espiritual para poder perceber a "presença
do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”. F o i
essa a grande chave que Abhishiktãnanda captou em sua trajetória de vida
para o diálogo do Cristianismo com o Hinduísmo. 0 ponto de liberdade de
toda religião está no fundo, escondido na guha (gruta) do coração.80 Trata-se
do m istério de Deus ou do Real que habita o fundo do coração:

Deus está dentro, no mais profundo, no mais íntimo, no mais si de si.


Não se trata de sair de si, de buscar fora para encontrar Deus, como
uma pessoa que viaja em direção ao Norte, percorrendo um grande cír­
culo, para encontrar seu irmão no Sul, não se dando conta de que estão
separados apenas por uma porta... Trata-se de sair de si mesmo através
de um cam inho interior, para atingir o Si.81

E ssa percepção não é nova na tradição cristã, estando em linha de con­


tinuidade com grandes místicos como Eckhart, Tauler e Ruysbroek. Mas
também com a tradição advaita hindu. Na dinâmica de sua experiência es­
piritual, A bhishiktãnanda pôde perceber que no “mistério do fundo”, para
além de todos os conceitos, estava a solução de sua dolorosa angústia. Passa
a viver como um “ hóspede da interioridade”, trilhando com ousadia e cora­
gem os círcu lo s cada vez mais profundos do caminho interior, em direção ao
m istério que habita o fundo da gruta (guhãntara). E aconselha igualmente a
seu d iscípulo, Marc Chaduc, trilhar um semelhante caminho:

Ibid., p. 117 e 133. Ver também: CARRASCO, D. í)s que partem para uma jornada sagrada.
Concilium (Br) 266/4 (19%) 10-23.
n TILLICH, P. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968. p. 173.
1,1 LE SAIJX. Intériorité et révélation, p. 62. Diario spirituale..., p. 358. STUART. Le bénédictin et
le grand éveil, p. 299.
81 LE SAUX, Diario spirituale..., p. 129. Também p. 153.

63
j 'Shr/ivr. t,') w m w s j

0 essencial é penetrar no mistério interior quo a india testem unha tão


inlerwameole. ijtue voce o irradie mais larde no seio da Ig reja do O ei-
denle ou da Igreja da índia é secundário. Sem um ‘sen so’ con tem p lati­
vo, sua vinda ã índia é absolulamente inútil. Venha para re ceb er: não
busque nada mais a d ard o que a rosa ou o lírio. Sua interioridade irra­
diará por si, seja o meio eríslão ou hindu. P reocupe-se em se r e náo de
apenas fazer [...|, nem mesmo de com preender in leleelu alm erile |...|.í!2

Para Abhisbiklãnanda, a necessidade desla dim ensão de fundo. Ião


essencial para o ser humano, era também um desaíio paru a Igreja eríslã.
Náo via outra possibilidade de ela se aproximar do m istério da índia senão
mediante um mergulho triais furulo 110 mistério da interioridade. Km carta
dirigida a sua irmã, pondera:

A salvação da Igreja e do mundo não está em circu n stâ n cia s apocalíp­


ticas extraordinárias, mas no sim ple- aprofundamento do sentido da
Presença íntima de Itens. |. .. | Não de m issões, nem paluvras ou lormus
de vida, mas somente de uma presença incoercível, abrasuntc e trans­
formante; e esta eoiiiunicaçáo se la/ diretamonte. de esp írito a espírito,
no silêncio do Kspírilo. A v e r d a d e está na hum ildade e no não extraor­
dinário. 1,1

( ) cristão náo precisa romper com Jesu s para viv er c -e m istério de pro-
limdidmle, mas necessita, sim. aprofundar sua nova pen peão rpie se oíere-
ee através do “mistério do m/ru/fo . 1 Na visão tie \bln liiklãn an d a, Jesu s
aparece como vm/guru, o mestre verdadeiro que aparece no tempo para co n ­
duzir o ser humano ao mistério que habita cm seu rnli rior. A parece igual-
menle como la m b i, ou seja, aquele que abre condições ji ira uma verdacleiru
passagem ao mundo do outro; aquele que permite a travessia ao m istério do
Pai.1“ I .ssu nov a percepção de Jesu s foi objeto de um longo aprendizado na

\g>iiit STI VKl. //■fx’Firdii tin rl Ir fira ml rim!. ; 227


" Ihiil.. |i. 271
m I t s A l \ . I lu t r v i ip u iu u d r . .. | 1 227
Hull., |. 392.
* Ihiil . p 148-149 r 19S
HW LE / MAS /EPÉDAS 0 0 ?EA t

índia. Hm seu d iário, SvãmljT recorda que chegou inicialmente ao ambiente


hindu com o intuito de anunciar a Igreja e o Cristo, e pôde descobrir que a
índia fav oreceu -lhe penetrar “muito mais profundamente” o mistério de que
acreditava ser o portador/57

Para alguns m estres ou amigos que encontrou em sua experiência in­


diana, a so lu ção para o mergulho mais fundo no advaita puro era romper com
Cristo ou o C ristianism o. Era o que lhe aconselhavam tanto o doutor Mehta
como H arilal. O prim eiro dizia que ele deveria abandonar a fé cristã para
vencer a angústia que o dominava no período.88 0 segundo ímpulsionava-o
para uma ex p e riê n cia mais radical do advaita. Ele dizia: “ Não te resta senão
uma co isa: rompe com os últimos vínculos que ainda te mantém aprisiona­
do. E stás pronto para fazê-lo. Abandona tuas orações, a tua devoção, a tua
contem plação disto ou daquilo. Compreendes que lu iís,,.w Havia, entretan­
to, em A bhishiktãnand a um fundamento (adhisthãnandá) cristão vigoroso,
que o m antinha vinculado, mas sempre mantendo uma liberdade singular. 0
amor que o m antinha ligado a Jesu s era muito forte:

Q uer q u e ira , qu er não, eu sou profundamente ligado a Jesu s Cristo e


tam bém à koin on ia da Igreja, f. nele que o ‘mistério’ se revelou para
mim, d esd e o momento de meu despertar a mim mesmo e ao mundo. É
sob a sua im agem , sob o seu símbolo, que eu conheço a Deus e também
a mim m esm o e o mundo dos homens. Desde o momento em que rne
d esp ertei para novas profundidades em mim (profundidade do si, do
ritmem), e ste sím bolo desenvolveu-se maravilhosamente. Já a teologia
cristã me havia favorecido descobrir a eternidade do mistério de Jesus,
in itnu Hntris. M ais tarde a índia revelou-me a dimensão cósmica deste
m istério, uma rev elação , uma vyahli (manifestação total) do mistério, na
qual in se re -se a revelação ju d aica.0"

Ibid.. p. J*/>. Km farta a Marf Khaduc, de dezembro de 1071» dizia: “Lu pensava aqui esse*
dias que iJeiis revelou-nos o seu rosto em Jesus, de forma mais bela e pura; mas no Punufl dos
Lpanixade* revelou-no* sua interioridade única, que (• tarnblm de nús - Aptid STUAR I, //-
bénédirtin rt h' prurul Srril, p. 267.
Ibid., p. 160-161;
KL SAL X, Hitnrdi th Arunãthtthi, p. 203.
Id.. buiritj ipiritualr..., p. 120.

65
P l'S t» P O H S PO P1AIOOO

O grande desafio dialogai intuído por Ahhishiklãiianda relaciona-se


com .i “subida ao fundo do coração l m processo com plexo o d ifícil, <|ue
implica dcspojamcnlo radical c a ruptura dos “nós ’ do coração. Como sina­
lizou Panikkar. ocorro a “subida" quando liá um d csp ojam cn lo verdadeiro;
alcança-se o fundo quando se atinge o centro, que c o coração. " No Livro
dos l panixades fala-se em “nós do coração", e do n ecessário desatam ento
dos nós. da superação dos nãmarüpa (nomes e formas) e do ah a m k ãra (ego­
ísmo). para se alcançar o "E u " fundamental ( aliam ).'12

Se Deus está no fundo do coração, sua presen ça é universal e seu mis­


tério revelador é inusitado. Em página de seu diário, A b hishiktãnand a reco­
nhece isso com clareza:

Deus não é mais aqui e menos lá; essas são ideias do homem míope e
suas distinções. Deus se faz presente tanto no voo do inseto como na
contemplação do teólogo ou no ato de amor m ístico. Deus não estava
menos em Yãjnãvalkya que em Isaías, não estava m enos em Sãkyamuni
(o Buda) que em Paulo de Tarso.l,:,

Há um incontornável pluralismo religioso, e A bhishiktãnand a tem ple­


na consciência disso. 0 desafio que bu sca responder em sua vida e em sua
prática espiritual é o de um encontro das religiões em nível de m aior pro­
fundidade, é o de buscar a Fonte comum que as irm ana. A grande pista está
no mistério do ad m ita, presente no recinto mais íntimo s e ja do Hinduísmo,
seja do Cristianismo. É na dimensão de profundidade que essa s duas tradi­
ções podem encontrar a “não dualidade" que as preside. E isso vale também
para o diálogo com as outras religiões. Para A bhishiktãnand a, “ não é na
redução de suas crenças e práticas que as religiões revelam sua unidade
[...]. mas em algo de mais profundo, de inexprim ível e ind izível, avyakta, e
que não pode jam ais tornar-se vyakta, essen cialm en te não m anifesto e não
m anifestável”.*01 Há entre as diversas religiões uma “ m isteriosa correspon-

llml.. |>. 20 (prefazione).


Ilmt. p. 135 c 147 Risveglia a sé risvegliu u Dio. p. 101. \ menção aos "nrts <lo coraçao”, nos
l panixades, encontra-se em Mumlaka-up. 11.2 8 e 0.
1(1.. Diário spiritiwlc..., p. 222.
Apuil DAYY. Henri /<»Siw.x. I s passear entre flcu.x rires, p. 17.3.

6 6
H jU P i Sa ij / w / E P E p t S 0 0 PfAL

dência Não liã por que entendê-las forno “sistemas paralelos" ou hierar-
quieametite distintos, como se só o Cristianismo fosse portador do "passo
definitivo''. Todas participam do '"‘darfana (visão) do mistério que advém" e
são “ verdadeiras em seu â m b ito ".'1

O clássic o documento Diálogo e Missão, do então Secretariado para os


Não Cristãos, identificou o diálogo da experiência religiosa como aquele que
se dá em nível de maior profundidade.”"1 0 itinerário de buscadores como
A bhishiktãnanda (Henri le Saux). Panikkar. Thomas VIerton. Louis Massig-
non e tantos outros, expressa a riqueza de uma tal experiência e o seu grande
potencial dialogai. São figuras humanas excepcionais que se dispuseram ao
exercício de “autoexposição ao outro" sem romperem com o "autorrespeito
genuíno” , ou s e ja , o respeito à particularidade da própria tradição religiosa.
No caso esp ecífico de Abhishiktãnanda. há que reconhecer sua extraordi­
nária generosidade e ousadia dialogai. Trata-se de alguém que viveu em
profundidade a exp eriência do encontro com a alteridade. Não se restringiu
a viver o diálogo como um exercício de assimilação de elementos de exterio­
ridade da outra tradição, mas movido por sede mais intensa, buscou arrojar-
-se numa d inâm ica de aprendizado ainda mais radical, vivendo a autentici­
dade do advaita. Foi um peregrino que assumiu o "risco" de uma travessia
novidadeira, m arcada pelo encontro criador de uma experiência religiosa
pontuada por duas tradições distintas. Longe de significar uma experiência
relativizadora da tradição, o seu itinerário revela, antes, a densidade e a
riqueza de uma exp eriên cia espiritual e de uma "comunicação em profundi­
dade” que não se detém diante das diferenças.

I K SAI X. Diário sinrituale.... p. 155.


SECRETARIADO PARA OS NÀO CRISTÃOS. A Igreja e as outras religiões. Diálogo e Missão.
São Paulo: Puulinus. 2001 n. 25.
3
Raimon Panikkar:
a aventura no solo sagrado
do outro

Raim on P an ik k ar ( 1 9 1 8 -2 0 1 0 ) foi um cios mais ousados e singulares


buscaclores do diálogo. Sem dúvida alguma, um pioneiro no campo do diálo­
go das relig iõ es, qu e abriu pistas e cam inhos novidadeiros para a reflexão e
exercício de uma d in âm ica inovadora na relação do Cristianism o com as d i­
versas trad içõ es re lig io sas, em particular com o Hinduísmo. Sua longa vida
foi m arcada pelo dom da abertura e do aprendizado com o outro. I ma vida
“ca leid o s có p ica '’, com o assinalou o amigo M iquel Siguan. também estudioso
do m ístico ca ta lã o . Um traço pecu liar de Panikkar. enquanto pensador, é a
criatividade e o m an ejo original de lidar com as palavras. Com seu singu­
lar jargão, P a n ik k a r fav orece a viagem ao mundo sagrado do outro, desven­
dando cam in h o s, qu ebrand o preconceitos e suscitando uma adm iração que
transforma o horizonte da autocom preensão. Vale bem para Panikkar o que
David T racy falou so b re a d ifícil arte da conversação inter-religiosa, esse
“inquietante lu gar” qu e provoca m udanças na autocom preensão do sujeito
ao levar realm en te a sério as posições do outro.1

Traços biográfico s
A su a vida fa m ilia r já reflete uma dinâm ica dialogai e m ulticultural.
Nasce em B a rc e lo n a , em novembro de 1 9 1 8 , numa típica fam ília burgue-

TRACY, D. P lu ralidad > ambiguedad. Hermenêutica, religión, esperanza. Madrid: Trotta, 1997.
p. 142.

69
B u s c a d o r e s d o d iá l o g o

sa. Sua mãe, Carmen Alemany, era catalã e profundam ente cató lica. Uma
mulher marcada por grande abertura, que cu ltivav a a m ú sica e as artes;
seu pai, Ramun Panikkar,2 um hindu de origem a risto crá tic a e passaporte
britânico. 0 casal teve quatro filhos. P an ik kar fala dos p ais com carinho.
Recorda a gentileza de seu pai e o caráter d ecisivo de sua m ãe. É dela que
recebe uma singular educação cató lica, que o levou a enam orar-se, desde
cedo, da pessoa de Jesus Cristo. E ssa m arca m u lticu ltu ral de sua vida vai
ser por ele lembrada em passagens de sua reflexão: ’‘H avia uma harmonia
profunda entre meu pai e minha mãe. sendo de duas trad içõ es diferentes”.3*
No âmbito dessa experiência familiar, de com p reensão e respeito, é que se
gestou uma perspectiva distinta para o itinerário de P anikkar. E le assinala
que esse aprendizado vem do início de sua vida: “ A qu elas dim ensões da fé
cristã que me permitiam viver em paz com a outra parte de meu ser: a dis­
creta influência de meu pai. que me cantava e ex p licav a o Bhagavad-Gita ,
que me fornecia os fundamentos do sânscrito e me en volvia numa não con­
fessional atmosfera hindu*’. 1

A questão religiosa foi m arcante na vida de P an ik kar. Admite, em en­


trevista concedida a Gwendoline Jarczyk, que estev e sem pre ’’preocupado
por aquilo que hoje se define como o problem a religioso” .5 Sua formação
inicial aconteceu com os jesu ítas de B arcelo n a, no C olégio Santo Inácio de
Sarriá. Os estudos universitários foram realizados nas u niversidades de Bar­
celona. Bonn e Madri. Em 1946. ano de sua ord enação sacerd otal, doutorou-
-se em Filosofia e Letras na Univenddade de M adri, com uma tese sobre 0
conceito de natureza. Análise histórica e m etafísica d e um conceito /* 0 se­
gundo doutorado veio em 1 9 5 8 . em C iências Q u ím icas, defendido na mesma

0 nome Panikkar era um titulo nobiliário malabar.


PRIETO. V P. \t(is dllá de lafragm ent a r ión de la teologia. E l saber y la l i d a ; Raimon Panikkar.
Valência: Tirant lo Blanch. 2008. p. 41.
Ibid., p. 41. Em reflexão expressa em 2001. lembra Panikkar “Fui educado no Catolicismo de
minha mãe espanhola, ma? sem jamais 1er deixado de permanecer unido a tolerante e generosa
religião de meu pai hindu” - PANIKKAR. R. Non devo difendere la mia verilà. ma viveria.
Misswne Oggi 4 (20011. Ver. ainda: ld.; CARRARA, M. Pellegrinaggio a l Kailâsa. Troina:
Servitium. 10%. p. 63-64.
PANIKKAR. R. Entre Dieu et le cosmos. Pari*: Albin Michel. 1998. p. 19 (Entretiens avec
Owendoline Jarm k I.
\ tese foi publicada em Madri, em 1931. com posterior edição revidada em 1972.

70
Raimon Panikkar . a aventura no solo sagrado do outro

universid ad e, com uma tese sobre Alguns problemas limítrofes entre ciência
e filosofia. Sobre o sentido da ciência natural.7 Três anos depois, em Roma,
defende seu doutorado, na Universidade Lateranense, com uma tese que tra­
tou o tem a do Cristo desconhecido do hinduísmo. 0 orientador inicial foi Pie-
tro P aren te, qu e deixou o trabalho para outro professor da Lateranense assim
que se tornou card eal. A lese foi convertida num dos livros mais traduzidos e
exitosos de P anik kar, publicado originalmente em inglês, em 1964.8

D urante parte de seu processo de formação Panikkar esteve ligado à


Opus Dei. E n tra na organização disposto “a colaborar com todo o seu ser
para a ed ificação do R eino de Deus na terra, com o entusiasmo dos jovens
em sua reação ao esfacelam ento da sociedade. A ceita o rigorismo da organi­
zação com o um dever para modelar o próprio caráter e tornar-se um perfeito
cristão ” .9 P erm an ece ligado à organização por mais de duas décadas, dos
anos 1 9 4 0 a 1 9 6 4 , mas sua relação com a Opus Dei foi ficando aos pou­
cos m ais d ifícil à m edida que avançava em sua reflexão e compromisso de
vida. P a ssa por momentos de incompreensão e animosidade, encontrando
re sistên cia s lo calizad as. Sua presença torna-se causa de incômodo. Então,
é d isp ensad o can o n icam en te de seus compromissos com a organização e
in card in a-se na D io cese de Varanasi (índia).

Q uando P an ik k ar doutorou-se em Teologia, em 19 6 1 , já tinha feito sua


prim eira viagem à índ ia, terra de seu pai, e isso ocorreu no final de 1954,
numa m issão ap o stó lica. Passa um ano no Sul da índia, eslabelecendo-se em
Varanasi. J á tin h a certo domínio do sânscrito, que aprendera em Barcelona.
Com 3 6 anos de idade vislumbrava com essa viagem o nascimento de um
novo e d ecisiv o período em sua vida e o relata de forma viva num testamento:

P a re c e -m e n ecessário falar de mim uma última vez para cancelar um


período de m inha vida, que quase com toda certeza abarca mais da me­
tade cron o lóg ica de minha existência terrestre... Posso dizer que come-

A tese foi publicada em Madri, em 1961, com o titulo Ontonomia de la ciência. Sobre el sentido
d e la c iên c ia y sus relaciones con la filo so fia (Madri: Gredos, 1961).
PANIKKAR, R. The Unknown Christ o f Hinduism. London: Darton Longman & Tod, 1%1 (com
posteriores edições em espanhol, francês, italiano, alemão e chinês),
ld.; GARRARA, P ellegrin aggio a l K ailâsa , p. 65.

71
^ APOR! v P P n iÀ lO o P

V-< uni período novo cm minha \ida. com a morte real de m inhas ilusões
e ideais assumidos alé agora...1"

I m \aumasi le\a uma vida "qu ase m onástica . esludando. m edilaiido


e esereveudo. Ocorre que um de seus textos é deseoherlo por um (irolessor
de Harvard, que o eouvida para ser professor visilaule na prestigiosa uni­
versidade l'.stimulodn pelo hispo de Varanasi. Panikkar aceita o convite e
ministra o curso em 11arv ard. f oi tal o sucesso alcançad o que ele é nomeado
pm lessor por mais eineo anos. Homo l’am kkar não d esejava d eixar a índia,
aealiou la/eudo um contrato de perm anência sem estra l.11 Por m ais de vinte
anos Panikkar divide o seu tempo entre a índia e os Estados Unidos. Para
tecer o lio dessa complexa convivência entre cid ad es Ião d íspares com o Sa n ­
ta Bárbara e \aranasi. Ião distantes quanto ao índ ice de desenvolvim ento
humano, só mesmo uma vida interior de profundidade. E P a n ik k a r relata a
respeito: "E u me descobri, desse modo, não entre, mas no meio do O riente
e do Ocidente, em suas respectivas versões hindu-budista e cristã-secu lar,
que se tornaram parte do meu universo pessoal” . 12

Homo professor visitante, ministra cursos de religiões com paradas nas


universidades Harvard e da Califórnia, mas também atua nas universidades
de Cambridge (Inglaterra) e de Montreal (Canadá). íi nomeado, em seguida,
pm lessor catedrático de Filosofia Comparada das R elig iõ es e H istória das
Religiões na Universidade da C alifórnia-Sanla B árbara, onde se e sta b e le ­
cerá entre os anos de 1971 e 1987. íi com gosto que P a n ik k a r trabalha na
l niversidade da California, numa década particularm ente favorável para o
exercício crítico e a criatividade. Ele relata a respeito:

A Califórnia é a terra do mais forte espírito crítico n o rte-am erican o ; em


lace do conservadorismo de Boston (U niversidade H arvard), a C alifór­
nia teve sempre uma larga tradição de abertura. Foi nela qu e brotou a
cultura de protesto e a contracultura nos anos 6 0 - 7 0 , os movim entos

1’ANlkkAlt. li Mi leslumenlo. Apud PKIKTO. \l<ís alta de In frngmenlnción de In teologia...,


p. ã:t.
1 l<l„ Entre D ieu et le ensinos, p. 21.
1(1.; CAKRAKA. 1‘ellegrinaggio ul Kailâsa, p. 69.

72
»/ON & a /PM’ NQ 3Qi 0 3AÇ?A0 0 00 0 jTpQ

inoonform islas u nivcrsilários. o movimento hippie. movimentei antimi-


lila risla s o outros movimentos radicais.

Na visão ele 1’ariikkar. viver ria Califórnia era "estar no centro vital", e
poder p a rticip a r de toda renovação espiritual que ali acontecia, e também
d eixa i-se e n riq u e c e r pela sua dinâm ica intercultural e inter-religiosa. de
particular ab ertu ra ao O riente. R econhece também o traço pioneiro das uni­
versidades am e rican as no cam po do estudo das religiões:

A u niversid ad e norte-am ericana é. possivelmente, a primeira no 'cn ti-


do de lev ar a sério , acad êm ica e cientificam ente, o problema religioso,
na segu nd a m etade do século X X . 0 estudo acadêm ico das religiões
deu um p asso g igantesco com o aporte da universidade norte-ameri­
ca n a. D ifere n tem en te das universidades europeias, onde o estudo das
relig iões passou qu ase que por esquecido.11

Em 1 9 8 7 , P a n ik k a r retom a às suas raízes na Catalunha. Deixa a Uni­


versidade de S a n ta B á rb a ra , agora como professor emérito, e passa a viver
em T av ertet, um p equeno povoado da província de Barcelona (comarca de
Osona). Sem rom per com suas atividades (cursos, seminários e encontros!,
passa a ter u m a vida m ais concentrada, voltada, sobretudo, para a meditação.
E nesse v ila re jo m ontanhoso, "envolvido por silêncio e b eleza", que vive sua
últim a etap a da vida, vindo a falecer em agosto de 2 0 1 0 , aos 91 anos de
idade. D eixou um a vasta obra publicada, que agora está sendo recolhida de
forma s is te m á tic a p ela editora Ja c a Book (Itália), sob a organização de Mi-
lena C a ria ra P avan . E stão previstos dezoito volumes, tratando os seguintes
tem as: M ístic a e E sp iritu alid ad e (dois tomos). Religião e religiões. Cristia­
nism o, H in d u ísm o (dois tomos). Budism o, Culturas e religiões em diálogo
(dois tom os), H ind u ísm o e C ristianism o. Visão trinitária e cosmoteândrica:
D eu s-H om em -C o sm o , M istério e herm enêutica (dois tomos), Filosofia e te­
ologia, se e u la rid a d e sagrad a. E sp aço , tempo e ciên cia, M iseelânia (reunião
de texto s), F rag m e n to s de um d iá rio .'1

I Apud 1’ RIKTO . Más a llá d e la fragm en tación de la teologia..., p. 62.


II lliitl., p. 0M.
b Sáo volumes que cobrem um grande itinerário de vida, em torno de setenta anos. Aos volumes
citados vem lambem acrescentado um livro que expressa a síntese de seu pensamento, onde se

73
B u s c a d o r e s d o d ia l o g o

Os apelos da índia
O traço inter-religioso já estava im presso no co ra çã o de P a n ik k ar. Não
foi d ifícil para ele m ergulhar co rajo sam en te no m istério da ín d ia. D esd e o
seu primeiro contato com a ín d ia, no final de 1 9 5 4 , foi tomado por uma p a i­
xão avassaladora. R ecorda em seu s trabalhos que foi um dos períod os m ais
felizes de sua vida. Foi a oportunidade de viver a fundo a d in â m ica inter-
-religiosa e d esco brir a ideia de relação , que será tão im portante p ara ele
ao longo de sua trajetória. Em resposta às perguntas sobre o seu itin erário
humano, respondia com tranquilidade: “P arti cristão , me d esco b ri hindu e
retom ei budista, sem ja m a is ter deixado de se r cristã o ” . E com p lem entou
sua reflexão m ais tarde, dizendo que em seu retorno re co n h e c e u -se um “ m e­
lhor cristão” .16

Foi no desvelam ento de seu itinerário de b u sca que P a n ik k a r encontrou


o Hinduísm o e o Budism o, e isso ocorreu de form a natural e sem a n g ú stia .17
R eco n h ece que foi à índ ia como um aprendiz que indaga, com o alguém que
se achega aos pés de um m estre:

Não fui à ín d ia como um professor, m as com o alu n o ... com o aqu ele
que b u sca, como alguém que se senta sem d ificuld ad e aos pés de um
m estre, que aprendia a língua dos aborígenes e qu eria ser um d eles...
Isso não era uma tática, nem mesmo algo que havia p lan ejad o. E ra o
meu karm a. Ocorreu sim plesm ente assim ... Q ueria id en tificar-m e com
m inha identidade hindu, e para isso não havia o que fazer senão d eixá-
-la em ergir em m im .18

recolhem as introduções de lodos os volumes de sua obra completa (opera om n ia ): PANIKKAR,


R. Yita e p arola. La m ia opera. Milano: Jaca Book. 2010.
PANIKKAR. R. II d ialog o intrareligioso. Assisi: Cittadella, 1988. p. 60. Entre D ieu et le cos­
m os , p. 84.
Diferentemenle de outro buscador. Henri le Saux (Abhishiktãnanda). a comunhão de Panikkar
com o Hinduísmo não foi motivo de angústia. Ele reconhece que o simultâneo sentir-se cristão
e hindu, monoteísta e advaitin . não foi para ele um problema. Cf. D l BOILAY. S. D. La grotte
du cocur. La vie d e Swami A bhishiktan an da IHenri le Saux). Paris: Cerf. 2007. p. 14.
Apud PR1ETO, Más a llá de la fra g m en lación de la teolog ia, p. 55.

74
Raim on Pa n ikka r : a aventura no solo sagrado do outro

À tra d içã o hindu j á era um traço fam iliar, que retomou com alegria. A
abertu ra ao B u d ism o veio na seq u ê n cia, como desdobramento de um apro­
fundam ento d e su a d in âm ica vital:

M in h a id e n tid a d e bu dista desenvolveu-se de outra m aneira, uma vez


qu e não h av ia n ascid o com ela. M inhas iniciações no Budismo chega­
ram , tam b ém , de form a natural, mas foram resultado do trabalho inte­
rior, q u e com m u ita p a c iê n c ia e humildade assem elhava-se minutis mi -
nuendis ao B u d a: a rad ical sensibilid ad e humana, ou uma experiência
co m p aráv el à q u e os hindus e cristãos fazem do nada.19

P a n ik k a r tem p len a co n sc iê n cia do caráter inefável de uma experiên­


cia re lig io sa , de seu traço único e singular, que não pode ser comparável a
outra. H á n e la um m istério que é intransponível. Mesmo assim , reconhece
a p o ssib ilid ad e de alguém falar duas linguagens experienciais, e ele mesmo
é um ex em p lo vivo d isso . A cred ita ser possível alguém penetrar de modo
“e x iste n cia l e v ita l” em outras cosm ovisões, de encam ar-se numa outra cu l­
tura, de p e n e tra r su a linguagem e partilhar o seu mundo. Tudo isso de for­
ma n atu ral, d esd e q u e e ss a relação não comprometa as “próprias intuições
fun d am entais” .20

A ssim com o P a n ik k a r, tem os outros exemplos de m ísticos cristãos que


am pliaram su a form a de com preender a identidade cristã, enriquecendo-a
com outras p e rsp e c tiv a s religiosas, como é o caso de Henri le Saux, Thomas
Merton e L o u is M assignon. Alguns falam em linguagem “híbrida” , outros em
“b ilin g u ism o ” ou “ dupla p erten ça” . As expressões nem sempre conseguem
traduzir de form a c la ra o que se dá na experiência viva, de cristãos que se
dão co n ta, no e x e r c íc io relacio n al, que a realidade do Mistério não consegue
esgotar-se num a ú n ica tradição religiosa. Há, de fato, aspectos novidadei-
ros e in u sitad o s n as m ú ltiplas formas de aproximação e entendimento com
Deus, qu e tran sb ord am a ex p eriên cia esp ecífica do Cristianismo. Teólogos
cristãos, co m o J a c q u e s D upuis, reconhecem que, apesar da dificuldade real
em p a rtilh ar d u as fés religiosas diversas, não se pode omitir uma tal possi-

19 Ibid., p. 55-56.
20 PANIKKAR. R. L'esperienza della vita. La mCstica. Milano: Jaca Book, 2005. p. 184-185.

75
P u scA PPR IS PO P i Ai PGO

hilidadc, uma vez que experiências profundas nessa direção não são raras
nem desconhecidas.21

A relacional idade é um traço Ião rotineiro na vida de Punikkar que


acreditar na possibilidade de uma experiência profunda e partilhada com
tradições religiosas distintas é para ele algo natural e inquestionável. Vai
ainda mais longe ao sustentar que aquele que não consegue fazer uma tal
experiência inter-religiosa, brotando do íntimo do coração, ainda que de for­
ma ineoativa. corre o risco de tornar-se um fanático. 0 cam inho da au tenti­
cidade passa, necessariam ente, pela abertura radical do coração ao mundo
da diferença e da diversidade. Trata-se de uma experiên cia que é ú nica e
preciosa para a afirmação da identidade. Na visão de Panikkar, “aqu ele que
não conhece senão sua religião não a conhece verdadeiram ente” ,22 d aí a im­
portância essencial do diálogo inter-religioso. É insuficiente con sid erar que
basta fixar-se na própria tradição religiosa, aprofundando-a, para encontrar
o Mistério sempre maior, que está na fonte de toda busca. Para Panikkar, tal
solução é insuficiente e não convincente: “Sem um diálogo externo, ou seja,
sem um intercâmbio constante com outras pessoas, as religiões afogam -se
[...]. Dificilmente alguém [...] poderá entender a fundo sua religião sem ter
uma ideia da existência e legitimidade de outros universos religiosos” .2'*

A pista para o encontro verdadeiro está na direção da profundidade.


Não é fruto exclusivo de um trabalho racional: “ É na profundidade do co ­
nhecimento obscuro da fé que as duas espiritualidades podem encontrar-se
e é ali que pode ocorrer, para as duas partes, uma real conversão” .24 Ser-

21 DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p.
518. KNITTER, P. K. Introdução à teologia das religiões. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 357-
358. GEFFRÉ, C. Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris:
Albin Michel, 1999. p. 242 (Entretiens avec Gwendoline Jarezvk).
22 PANIKKAR, R. Entre Dieu et le cosmos, p. 74 e 174.
21 Id. Religion (Dialogo inlrareligioso). In: FLORISTAN, C.; TA MAYO, J. J. (eds.). Conceplos
fondamentales dei cristianismo. Madrid: Trotta. 1993. p. 1148.
21 PANIKKAR. R. Il Cristo sconosciuto delPinduismo. Milano: Jaca Bock, 2008. p. 129. Na visão
de Panikkar, é na profundidade da experiência mística que se dá a possibilidade de harmoni/.ar
as diversas tradições religiosas, e não numa “abertura horizontal indiscriminada” - CALZA,
S. l/i conlemplazione. Via privilegia ta a l dialogo cristiano-induista. Milano: Paoline. 2001. p.
176-177. Ele tarnl»ém assinala que “só partindo do fundo mesmo do mistério, e não de suas ma­
nifestações, poderemos dizer se as outras religiões são verdadeiras ou simplesmente aparências
ilusórias" - PANIKKAR. R. Ij i nuova innocenza 3. Sotto il Monte: Semtium, 19% . p. 142.

76
Raimqn Panikkar a aventura no solo sagrado do outro

ve aqui a d istin ção estab elecid a por Panikkar entre fé e crença. Enquanto
para e le a fé é sem pre transcendente e aberta, não podendo ser expressa
em fórm ulas u niversais, a cren ça é sempre particular. Ela busca traduzir
a fé no âm bito das estruturas relativas a uma dada tradição particular, mas
deve estar sem pre referendada ao horizonte transcendente mais amplo. A
fé tran scen d e as íorm ulações dogmáticas das diversas tradições religiosas,
mas está sem pre vinculad a a ideias e fórmulas, expressas nas crenças, sem,
porém, id en tificar-se com elas em momento algum. Na medida em que a fé
id en tifica-se ceg am en te com a cren ça, não deixando o horizonte aberto, o
diálogo é interrom pido e firm a-se a realidade de um exclusivismo problemá­
tico e n ecrófilo.25

Em su a p erm an ên cia na índ ia, foram decisivos os encontros com Jules


M onchanin ( 1 8 9 5 - 1 9 5 7 ) , B ed e Griffiths (1 9 0 6 -1 9 9 3 ) e em particular Henri
le Saux ( 1 9 1 0 - 1 9 7 3 ) . O exem plo de Abhishiktãnanda, como Le Saux é no­
meado, m arcou profundam ente Panikkar. E le o via como um dos “espíritos
ocidentais m ais au tên tico s” no que toca ao mergulho na experiência indiana.
Foi no en co n tro e co n vivên cia com ele que soube aprofundar-se no cam i­
nho do ad v aita (a-d u alid ad e) e na experiência do diálogo com o Hinduísmo,
aproxim ando-se da “ natureza abissal do encontro” . Naquele final da década
de 1 9 5 0 e in íc io s d a de 1 9 6 0 , um período marcado por tantas dificuldades e
in com preensões, P a n ik k a r e Abhishiktãnanda partilharam uma grande ami­
zade e, so bretu d o , com unhão. Em carta de Panikkar ao amigo falecido, na
Quaresm a d e 2 0 0 5 , ex p ressa que o distanciar do tempo o fez perceber me­
lhor o sig n ificad o d e su a “obstinada existência” em busca do apelo interior
do atm an.2('

Um b u scado r perm anente


Um dos traços que m elhor define Raimon Panikkar é o de buscador per­
manente e apaixonad o. C onjuga com sabedoria o amor à vida, a atenção ao cos­
mos e a abertu ra ao outro. E n caix a-se bem na definição que ele mesmo cunhou
para o se r hum ano religioso: um buscador e peregrino que caminha com segu-

PA NIKK AH, II d ia lo g o inlrareligioso, p. 76, 85-87 o 110.


26
I<J. Préface. In: D l BOULAY, In grolle du ccnur..., p. 13.

77
P t".* apoki «>p o n iA u x .o

railla por ram inhos inexplorados. Alguém que está aberto r disponível para
raptar a novidade do cotidiano, cm rada um de seus preciosos momentos, srm
deixai de lado a herança que traz em sua hagugem. TYaduz fielm ente a vocação
monástica que é a aspiração ao sim ples.2' O m istério, para e le , está em Ioda
parle, o que se requer é saber escutar o seu canto. Há que se d eixar abandonar
ao inesperado sopro da brisa, vencendo as barreiras impostas pela vontade. I lá
que viver, simplesmente, deixando flu ira vida em rad a instante.2*1

() peregrino é alguém que se dispõe a “expor-se a novas p aisagen s” , a


perigos e incertezas. 0 mergulho no mundo do outro, na realid ad e d istin ta, é
sem pre arriscado. Panikkar fala em “salto mortal” , pois envolve a totalidade
da pessoa, com am eaças precisas para a sua autocom preensão. E s s e cam i­
nhar faz parle da dinâm ica humana:

|...] o senso da peregrinação parece resp o n d era uma profunda n e c e ssi­


dade que o ser humano sente de ir além dos lim ites da ex p e riê n cia ordi­
nária e entrar no misterioso reino do além ; e os lugares de peregrinação
parecem 1er a força de um ímã biológico-espiritual geográfico que atrai
os peregrinos para o campo de seu m istério doador de v ida.29

A peregrinação verdadeira, como indica Panikkar, traduz o cam inho para


o núcleo da pessoa, para o seu centro. E só está preparado para realizá-la
aquele que morreu para o seu “pequeno eu " e está sintonizado com o tempo e
aberto para a união com o Si universal.30 Em sua presença na ín d ia, Panikkar
realizou duas importantes peregrinações espirituais: às fontes do C anges e ao
monte Kailasa. Retoma, assim , o movimento que o povo indiano faz, a cada
ano, aos seus lugares sagrados. Trata-se do deslocam ento de retorno às fontes,
de onde proveem todas as águas, capazes de restaurar as forças e a dinâm ica
vital. A peregrinação às fontes do Canges ocorreu em junho de 1 9 6 4 e Panik­
kar esteve acompanhado por Henri le Saux. Essa experiên cia inspirou um dos

Ver. « respeito, o beto livro de R. PANIKKAR É loge du simple. Le m oine com m e archétype uni­
versel (Paris: Albin Michel, 1995).

PANIKKAR: CARRARA, P ellegrin aggio a l K ailû sa , p. 61.


IH'QUOC. C.: KLIZONDO, \. PeregrinavAo: ritual permanente du humanidade. C onciliam (Rr)
260(1996) 8.
PANIKKAR: CARRARA. P ellegrinaggio a l K ailû sa . p. 6 1.

78
Pa i M O N PflN irrAP Æ A/EMTijgA MO 30LO SAG*ADO 00 OUTRO

livros rio m ístico catalão - Uma missa nas fontes (lo Canges - . cuja primeira
erlição ocorreu em J 9 6 7 . n A outra peregrinação ocorreu décadas depois, em
setem bro rle 19 9 4 , no monte K ailasa. considerado como o “templo do Absolu­
to” , e venerado pela m aior parte das religiões do sul da Asia. A narrativa des­
sa p eregrinação está registrada em outro livro de Panikkar. Peregrinação ao
K ailasa:'2 S u a com panheira de viagem. Milena Garrara, pergunta ao mestre,
a certa altu ra, qual a razão de considerarem alguns lugares mais sagrados, já
que Deus en co n tra -se em toda parte. E relata sua explicação:

E le me ex p lica que Deus manifesta-se mais vivamente naqueles lugares


que foram carregados pela espiritualidade das grandes almas que ali vive­
ram a sua união com Deus; estes ascetas puderam perceber em seu tempo
a atração por aqu eles lugares, em geral distantes, solitários, desertos, onde
a sua sen sibilid ad e soube colher vibrações particulares ou simplesmente
onde o silê n cio é mais absoluto, d u m ia , de q u e fala Elias na Bíblia.13

A intuição cosm oteândrica e a percepção do advaita


Em re la to so b re a su a biografia. Panikkar assinala que nunca viveu uma
ex p e riê n cia sem e lh a n te à de Paulo na estrada de Damasco, que assinalaria
um ponto p re c iso de conversão. Sua vida desenvolveu-se de fonna intensa
e c re sc e n te . H á. porém , um momento em que se dá conta de uma intuição
co sm o teân d rica, relacio n ad a à sua experiência da Trindade. Percebe com
clareza q u e tod a a realid ad e é uma cristofania e que a Trindade constitui a
resposta v erd a d e ira d e sua bu sca. Ao fajar de intuição cosmoteândrica, re­
corre ao tean d rism o da tradição ortodoxa, acrescentando toda a sua reflexão
original so b re o co sm o s, tão negligenciado nas espiritualidades cristãs. Na
visão de P a n ik k a r, os três elem entos que compõem a visão cosmoteândrica
ou teo a n tro p o có sm ica - D eu s, Homem e Matéria - traduzem três "dimensões
co n stitutivas d a re a lid a d e” . Não há como escapar da presença envolvente de

31 LE SAUX. H.; BAUMER, 0 .; PANIKKAR, R. Alle sorgend dei Gonge. Pellegrirmggio spiritua­
le. Milano: Cens, 1994.
32 PANIKKAR; CARRARA, PeUegrinaggio al KailAsa.
33 Ibid., p. 84.

79
B u s c a d o iu s n o d i A io c o

Deus ou do divino. E le es lá em lodo lugar. Isso não significa, porém, assu­


mir um panteísmo. 0 que ocorre é uma identificação tópica, mas o mistério
transborda infinilamenle tudo o que se pode pensar, ver ou imaginar.

Cosmoleãndrica será, pois, esta visão, esla experiência, de que somos


uma parte da Trindade, e que há três dimensões do real: uma dimen­
são de infinito e de liberdade, que chamamos divina; uma dimensão
de consciência, que chamamos humana; e uma dim ensão corporal ou
material, que chamamos cosmos. Todos participamos desta aventura da
realidade.34

Essas três dimensões do real estão em profunda interpenetração, ex­


pressão que traduz para hoje a ideia clássica de perichôrêsis ou circumin-
cessio. Trata-se de uma interpenetração recíproca que não coloca em causa
nenhuma das particularidades das dimensões em questão. 0 que vigora é a
ideia de relação. Na linha dessa perspectiva indivisa da realidade, Deus não
pode ser captado como puramente transcendente ou exclusivam ente ima­
nente. Ele é simultaneamente transcendente e im anente, é “relacionalidade
pura”.35 A experiência de Deus acontece no dinamismo vivo que entrelaça
o humano com toda a realidade:

A experiência de Deus é a raiz de toda experiência. É a exp eriên cia em


profundidade de todas e cada uma das experiências hum anas: do am i­
go. da palavra, da conversa. É a experiência su b jacen te a tocfa experi­
ência humana: dor. beleza, prazer, bondade, angústia, frio... su b jacen te
a toda experiência no tanto que nos descobre uma dimensão de infinito,
não finito, m -acabado.36

Para acessar a imagem mais profunda da Trindade, P an ik kar recorre


a uma intuição hindu, que supera as tentações da unidade ou dualidade.

PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, p. 135.


Para Panikkar. a Trindade expressa uma "concepção propriamente revolucionária, na medida
em que se cessa de considerar Deus como uma substância. Deus.é relacionalidade pura. ou
melhor, ele é uma das dimensões da relacionalidade de todo o real. É nisto que consiste, preci­
samente. a \isão cosmoleãndrica" - PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, p. 122.
Id. ícones do mistério. .4 experiência de Deus. São Paulo: Paulina*. 2007. p. 77.

8O
Raim on Panikkar a aventura no solo sagrado do outro

Trata-se cia p ersp ectiv a ad v aita , da a-dualidade, que indica a ausência de


dualidade na estru k ira própria da realidade.37 Na linha dessa reflexão, “a
divindade não e stá individualm ente separada do resto da realidade, nem é
tolalm enle id ê n tica a e la '’.38 A intuição advaita traduz o Mistério que pre­
side a relação co sm o teân d rica. Lm mistério que não pode ser reduzido nem
ao “um” ou ao “ d ois” . É , an tes, “a-dual” , possibilitando a dinâmica viva do
pluralismo. O s cristã o s acessam esse Mistério através de Jesus Cristo, mas
outras vias p o ssib ilita m igualm ente sua acolhida.39

A p e rsp ectiv a advaita envolve também uma singular espiritualidade.


A divindade d eix a de ser p ercebid a como um objeto, ou como um Outro,
porque não há m ais su je ito a fazer uma tal experiência. Para o advaitin, a
divindade não é “ algo” que se p ercebe em si ou fora de si, mas “uma luz
na qual o R e a l é ilum inad o e d escoberto” . A contemplação emerge como “a
visão da' R e a lid a d e total na qual o ego (eu psicológico) enquanto lai não tem
mais nenhum lu g ar; é a ex p eriên cia do Absoluto na sua simplicidade e na
sua com p lexid ad e, ale g ria perfeita alcançada na en-stasi da união” .10

0 cam inho do diálogo dialogai


As re lig iõ e s são tam bém provocadas para viverem uma “interpenetra­
ção recip ro ca” . E um dos tem as m ais presentes na reflexão de Raimon Pa-

37 Id. II dharm a dell'induismo. Milano: BUR, 2006. p. 171-173.


w Id., ícones do mistério..., p. 110. O que predomina é a “inter-relação mútua entre imanência e
transcendência [...]. A divindade é, precisamente, esta imanência e transcendência inserida no
coração de cada ser” - Ibid., p. 72-73.
z' Id., Cristo sconosciuto deWinduismo, p. 54-55.
Vl Id. Trinilà ed esperienia religioso delVuomo. Assisi: Cittadella F.ditrire. 1989. p. 70. É inte­
ressante constatar a sintonia dessa reflexão de Panikkar com a tradição místico-especulativa
alemã, em particular com as reflexões de Margherite Porete. Mestre Eckhart e Angelus Silesius.
Para esses místicos da tradição cristã, Deus não pode ser pensado como objeto, daí a dificulda­
de de falar em “alteridade”, pois nesse caso cai-se na determinação, e Deus não pode ser deter­
minado, pois 6 infinito. Deus ê visto como ‘'propriamente nada1* e para que a alma humana dele
se aproxime ê necessário que “perca seu prõprio nome", que desapareça enquanto determinada
e desapegue-se radicalmente a ponto de transformar-se naquilo que ama. Ver, a respeito, as re­
flexões de Marco Varmini em M. PORF.TE, Iã) sprccfiw delle anime semplice (Cinisello BaLamo:
San Paolo, 1994. p. 208, n. 104), e A. SILESIUS, II pellegrino cherubico (Cinisello BaLamo:
San Paolo, J9 8 9 . p. 36).

8i
fm * tfij# viw -ifi a insegurança de p a r lu ip /n r ir um “ m u n d o conh m o c cheio
de jKf^Mfln|fr|/f#|r*H de ifite rp re ln ç n o ” .^ Vfttfl e riln ir lirHHf c a m in h o , /#-rjiir'f-
•' h h e rd a d e m lr t in t. Iw m corno a |<rrifliirf/irl#* de v iv e r um a je x p c r ih tc in de
p a rtilh a e liiiH ffi de urna I# -q ue 111 1 r i i f a co n s c iê n c ia possfvcl dos
p ré p n o lu tc rlo c u lo rr*, í,orno in d ic a f'u n ík k a r, o d iálo go v e rd a d e iro 0 “ um
alo rs s e n c ja lin rn lo religioso” , envo lvendo a e x p e riê n c ia da c o n tin g ê n c ia , da
confiança m fíluu o da busca enmtim de urn M íA lério q u e a lodos Iranshor-
d a .1 Ilá uma dírnensflo o x p e ríe n c ía l e m fslíoa do diálo go q u e n em sernpre
é levada r*rn ro risíderaçáo, mas quê é m u ílo im p o rtan te:

O enronlro das religiões lem urna indispensável dírnensflo exp erien eial
e rnístiea. Sem urna eerta experiência que Iranseeride o reino m ental,
sem urn eerlo elem ento míslíno na própria viria, nao se pode esperar
superar o parlietdarismo da prépria religiosidade, rrierios ain d a am pliá-
-la e aprofundá-la, ao ser defrontado com urna ex p eriên eia hum ana di­
ferente.10

0 diálogo ínter-religioso pressupõe o diálogo in lrarreligioso. fí outra


das leses defendidas por Panikkar. E sse diálogo irilra ocorre no interior m es­
mo rias eonííssoes religiosas. Traia-se da lomada d e c o n sc iê n cia ria própria
corilírigência, relatividade e vulnerabilidade. fl o e ss en cia l “co lo ra r-s e em
qucslflo”, o que é 13o bem acentuado por Agoslinho: Q uaesiio rnihi faclu s
surn (“ Fiz de mim mesmo um problem a”) .10 () diálogo a u tên tico requ er esse
pormanerilr espírilo de au locrílica: “S e nao d escubro em mim m esm o o c é ­
lico, o incrédulo, o muçulmano e lariias outras realidad es, sin to -m e incapaz
de entrar em diálogo com os outros”/*0 Como moslrou com a ce rto Adolphe

HKIIÍ/KH. I*. I..; I.UCKMANN.T. M odernidade, pluralism o e crise d e sentido. IVlrópolis: Vozes,
2004. p. 54.
PANIKKAIl, Entre Dieu et Ir cosmos, [>. 74, 150 r 172.
IO., h i nuova innoccnm d , p. 156.
Id.. II dialogo inlrareligioso, p. 114-115.
Id.. Entre Dicu et lc cosmos , p. 161. Algo semelhante disse Tliomus Mcrlon: “Sc cu mc afirmo
como calólico simplesmente negando ludo que ó muçulmano, judeu, protestante, hindu, budis-
la (Mc., no fim descobrirei que, em mim, nflo resta muita coisa com que mc possa ufirmur como
católico: e certamente nenhum sopro do Espírito com o quul possa aíimm-lo’* -MEIOON, T.
Reflexões de um espectador culfmdo. Pctrópolis: Vozes, 1070. p. 166.

84
W f >A*I / 'A > A /-/?•«' y*A *l'y V> 0 'M.>A VO y >

(^cscbé, a fé c ristã tem nccesftjdadc d'* uma *au*&ncia <n*tã . tant/; /liant/'
rjr |a corno /'rn seu próprio interior \ interface do outro ou um "lugar fora
l, nua res id é n c ía ” torna-se fundamental para a construisit /la prépna hlen-
ijdfldc. ^ grande risco é manter a tradição /m/’^rraila /'rn -i mesma,
j fi |crlo/;tição /•ri a /1o ra.

6 ev id en te qu e é preciso ao cristianism o o sensus fulrlium. o sentido /la


fé qu e os creri.les lém , mas é preciso, ígualmente. aquilo que chamaria
de sensu* injidelium , o sentido que os não crentes lérn dah coi*as /leste
rriunrlo (o menino das coisas /la fé. pelo espírito crítico que possuem).
em a pars pagan oru m , essa parte de paganidade a/; la/lo dãpars naîtra,
essa part/! exterior, essa “ impureza” - no sentido estabelecido anterior-
m ente - , e ss a im pureza da sabedoria que vern ern síx.orro /la pureza
de seu p rofelism o, para que este não se tome paroxístico, destruidor,
a lu c in a tó rio .'1

O diálogo é sem p re uma “aventura arriscada”, mas revela-se uma exi­


gência e ss e n cia l no tem po atual, condição imprescindível para a paz entre
as nações. Com o su sten ta Panikkar, ele é um fato importante, inevitável e
urgente, m as tam bém desconcertante e perigoso, pois coloca em questão o
fundamento m esm o das próprias convicções. 0 risco maior é o de perder-se
ou afogar-se, “ p ois, literalm ente, nesse encontro tocamos o fundo”. Mas há
que se jogar na água e nadar, ainda que as pernas estremeçam e o coração
vacile. D esse en co n tro todos saem purificados, pois ele possibilita compre­
ender a inexau rível profundidade do ser humano c deparar-se com o miste­
rioso enigm a qu e pontua o mundo das diferenças.52

A cristofania
Em d iverso s m om entos de sua reflexão, Panikkar indicou que o indis­
pensável en co n tro en tre as tradições religiosas envolve uma transformação
na au toeom p reensao das religiões. E le busca responder a tal desafio com1

11 GESCHÍ/, A. O sentido. Süo Paulo: Paul irias, 2005. p. 136 (tumbém p. 135).
PANIKKAR. m iom innocenza .3, p. 100-103. Uinconlroindispensabile;dialogoil/ille rcligio-
tii, p. 30 o 61.

85
P i n a p c t t i 0 0 OUlOGO

propostas *iiMlm*M*síis nu campo da hrrm rnêiiliea cristã para o Icrrriro ini-


lênio. IV nliv <is pistas por ele abertas, insere-se a original reflexão nobre a
rrislnhmía. \rgumrnla que a eristnlogin vigente nos últimos vinte séculos é
maivadamenle ocidental, nascida da fé cristã em dirilogo com o Judaísm o,
com o mundo greeo-romano r. posteriormonte, com a tradição germ ânica r
a cultura islâmica. Sun propos!« é no sentido do um/i maior uni versa li/ação
dessa perspectiva:

Depois de eslar historicamente ancorado por qu ase dois m ilênios nas


tradições monolcfslas originadas de Abraão, o C ristianism o, caso pre-
tenda ser católico, deve meditar profundamente sobre a kénosis de
Cristo e ter a coragem, como no primeiro C oncílio de Jeru sa lé m , de
desvincular-se da tradição hebraica (cujo sím bolo era a circu n cisão ) e
das tradições romanas (cujo símbolo é a cultura ocidental) sem com elas
romper, deixando-se fecundar pelas outras tradições da hum anidade.53

Segundo Panikkar, a experiência de Cristo feita pelos cristãos não esgo­


ta a riqueza mesma da realidade do Cristo, que na verdade é um “sím bolo -
que os cristãos designam com esse nome - do M istério sem pre transcenden­
te. mas também sempre humanamenle im anente”.54 A pu blicação da tese
doutoral de Panikkar, em 1964, sobre 0 Cristo desconhecido do hinduCsmo,
suscitou mal-entendidos, facultando uma interpretação lim itada e inclu si-
vista de seu pensamento. Em edição posterior, o autor escla receu que, em
verdade, o Cristo desconhecido do Hinduísmo era também desconhecido do
Cristianismo histórico.55 Na linha dessa reflexão, P anikkar b u sca acentuar
a realidade de Cristo como um Mistério que envolve as duas tradições reli­
giosas. Enquanto alguns autores utilizam expressões como “Cristo cósm ico”
ou “Cristo total’*, Panikkar prefere falar em “Cristo cosm oteândrico”, ou1

V1 lit.. II Cristo sconosciiitn dcWimlm$mo%j*. 10 (cm eonsidcruçflo frita por Pmiikkur no início cl«
nova rilo/rto ildliiinu, em 2007). Pura 1’unikkur, ohho6 o grande desafio teolrigieo d») terreiro mi-
tPiiio, ou Nejn. “Irvorrm eonsiderav/ln «hrulluras dos dois terços do minuto que nflo pertençam
ao lilAo eiiltunil greeo-Hemílieo e nflo veem a realidade sol) a mesma luz”. Trafn-se de levar a
si'rio a kénosis de Cristo, o que nflo signifie« romper eom «s precedentes iiitorprelnçftcH, mas
alinese para uma nova eoimciAneia «lo Mistério sempre maior («!«• Cristo) - ll>id., p. 7.1.
1 lil.. I I ilin lo ffo in lm rv lifíio s o , p. 112.
Id. C n s lo /a n io . Mologna: l\l)H , I9*M. p. 20.

86
_______________________________________________ -_____________ P A ‘ M C j N P A t i I If K A 8 H O SO lO > Ç F A p O P O O U T g Q

sim p lesm en te C risto. P ara ele. Cristo e o “símbolo de M a a rpalidade", e


nele e n c o n tra m -se contid os todos os “tesouros fia divindade”. os "mistérios
rio homem e a “d en sid ad e do universo*’. y'

A cristo fa n ia envolve, assim , uma abertura à realidade mai- ampla do


E spírito, o q u e im p lica uma abertura genuína ao diálogo com outras religiões.
A confissão c r is tã qu e ind ica que "Jesu s £ o Cristo” é pertinente e legíti­
ma. D e fato. £ atrav és fie Je su s que os cristãos podem encontrar o Cristo. É
uma co n fissão q u e reflete uma “afirmação existencial”, mas que não pode
ser entend id a em sen tid o o b je tivante e universal. Na verdade, como mostra
Panikkar, " J e s u s é o C risto, mas o Cristo não pode ser completamente iden­
tificado com J e s u s V ’ Isso significa q u e os cristãos não têm o monopólio do
Cristo, que p e rm a n e c e , também para eles. como Mistério que sempre ad­
vém. Um M istério qu e se m anifesta igualmente. sob outras form as, em todas
as religiões a u tê n tic a s .58

A m ística com o experiência da vida


Um dos d esafio s esse n cia is do tempo atual é responder a um apelo que
brota de todas a s p artes e que se relaciona com a sede radical pela transfor­
m ação do sig n ificad o m esmo da vida. Em seus últimos trabalhos, Panikkar
d ed ico u -se d e form a intensiva a essa reHexão. dando um espaço significativo
ao tema da m ís tic a e da espiritualidade. Identificou na “mística cosmoteân-
d rica”, qu e en v o lv e D eus, Homem e Mundo, o novum do terceiro milênio.
Na visão de P a n ik k a r, a ex p eriên cia m ística envolve toda a realidade, man­
tendo-se a b erta a todos os problemas humanos. É, por excelência, a "expe­
riência do tot urn \ a “ex p eriên cia integral da realidade”. Ele faz opção pela
expressão “re a lid a d e ” por consid erá-la menos problemática e mais neutra,
com uma m ais d e c isiv a densidade ecum ênica. A mística faculta, assim, um

Id. I ài p len itu d e d e l'hom m e. Aries: Arles Sud, 2007. p. 10«.


M Id.. C ristofan ia , p. 17 (ver também p. 16). //Cristo sconosciuto deU'induismo, p. 94 e 201.
M ldMIai nuova in n ocen ta J , p. 139 e 1 12. Assinala Panikkar “Embora os cristãos nàn possam
chamar Cristo rom outros nomes, permanecem aspectos ou dimensões ainda de>conheeidos aos
erislüos, que nilo estilo incluídos no nome de Cristo, embora a ele relacionados" - Ibid., p. 1II.
Id. Mística pienezza d i vila. Milano: Jaru II,«>k. 2(X)8. p. 12 (Múlica e spiriliulilà. I. 1: Optra
Ornnia.)

87
BUSCAPQKES PQ PIÁIOGO______________________________________________________________________________________________________

"acesso â completa realidade (cham e-a Deus, o Tudo, o Nada, o Ser, ou outra
coisa) que se nos apresenta na sua plenitude f...]” .60

Panikkar sublinha que, infelizmente, o tempo contem porâneo perdeu


esse senso místico da existência, íixando-se na “epidem ia reinante da super­
ficialidade". Urge recuperá-lo. para que se faculte a essen cial harmonização
das energias humanas em torno de valores como o Bem , a Beleza e a Verdade.
A mística não implica uma fuga do mundo, ou desprezo das realidades terres­
tres. mas um mergulho ainda mais fundo nas entranhas do real e na tessitura
do tempo. Trata-se de uma experiência pessoal, mas não individualista, cujas
repercussões são vivas, propagando-se como ondas que se espalham sem ces­
sar por todo canto. Enquanto a mística é a “experiência suprema da realida­
d e", a espiritualidade é o “caminho para se atingir tal exp eriên cia” .61

A espiritualidade é como uma "carta de navegação” no m ar da vida


do homem: a soma dos princípios que dirigem o seu dinam ism o para
“ Deus”, dizem alguns: para uma sociedade m ais ju s ta ou para a supe­
ração do sofrimento, dizem outros. Podemos, pois, falar de esp iritu ali­
dade budista, embora os budistas não falem de D eus; e tam bém de uma
espiritualidade marxista, ainda que sejam eles alérg icos à linguagem
religiosa. Em seu conceito amplo, a palavra esp iritu alid ade expressa
sobretudo uma qualidade de vida. de ação, de pensam ento e tc., não
ligada a uma doutrina, confissão ou religião determ inadas, ainda que
seus pressupostos sejam facilm ente reco n h ecív eis.62

O verdadeiro contemplativo, como mostra Panikkar, é alguém marcado


por intensa liberdade e pureza de coração. Está voltado aten lam en te para
o tempo, vivendo, sim plesm ente, inserido na “ tem piternidade” , ou s e ja , na
eternidade que se capta em cada momento temporal ria e x istê n cia .63 Sua

Id., Lrspcnenzn deliu nla. L i mística, p. 50.


Iii. Vila c parola, h i nua opera. Milano: Jacu Houk. 2010. p. 21
Ibid., p. 24.
Comn ussinala Panikkar. **nflo ê fugindo do tempo - uma vez admitido que isso seria possível
- que o contemplativo descobre a dimensão tempitema. Mas integrando-o roniplelamente na
dimensão vertical que constantemenle entrecorta a linha horizontal do tempo. A tempitemida-
de não c a ausência. ma> a plenitude do tempo, e esta plenitude nào ê. certamente. só o futuro'*
PAMK KAM. Mislua pienezza di n ia. p. 57.

8 8
RAtM O N PANIKKAR. A AVENTURA NO SOIO SAGRADO DO OüTRO

linguagem lem afin id ad e com a linguagem poética, sendo capaz de favorecer


um olhar d istin to so b re o real, captando o que escapa ao olhar superficial.
Ele traz co n sig o um a fragrân cia contagiante, que traduz “o respiro mesmo
da vida” . E todo o s e r é envolvido: “S e o teu olho é simples, todo o teu corpo
será lum inoso” .
P a n ik k a r foi um dos grandes precursores do diálogo inter-religioso en­
tre os au tores c ristã o s. Talvez a contribuição mais decisiva que deixou como
legado foi d e afro u xar os nós do etnocentrismo cristão e favorecer uma nova
atitude para com as outras tradições religiosas: de abertura, hospitalidade
e acolhida. M ostrou com vitalidade e vigor que o verdadeiro diálogo requer
dos in terlo cu to res um profundo respeito e cuidado com o enigma do outro.
No diálogo c a m in h a -se so bre um “solo sagrado”, e os interlocutores devem
estar d esarm ados p ara viver a dinâm ica de reciprocidade de dons que esse
encontro re v ela e traduz. Foi um grande “virtuoso do pluralismo religioso” ,
um assíduo d efen so r da diversidade irredutível e irrevogável que marca o
mundo d as re lig iõ e s. Pontuou igualmente a centralidade da dimensão espi­
ritual para o e x e r c íc io d ialo gai, enfatizando a importância da humildade, do
despojam ento e d a pu reza de coração para a afirmação de uma nova dispo­
nibilidade d e en co n tro au tên tico com o diferente.

i s9
4
Louis Massignon:
a hospitalidade dialogai

Louis M assignon (1 8 8 3 -1 9 6 2 ) foi um grande bu.scador no c ampo do


diálogo iriter-relig ioso, corri sua particular vocação de abertura ao Islã. É re­
conhecido corno um dos singu lares conhecedores do Islã e dos árabes, sendo
responsável p ela ren ovação dos estudos de mística muçulmana e também
pela m udança da p ersp ectiv a m issiológioa católica com respeito ao murido
muçulmano. Na visão de Heriri Teissier, ele representou para a Igreja Ca­
tólica o papel de “ p recu rso r incontestável, artesão incansável e testemunho
extraordinário do em p en h o evangélico em favor da solidariedade espiritual
corri o Islã e m ais em geral com todos aqueles que buscam o absoluto no
nosso tem po” . 1 Um traço original de sua vida foi a capacidade de conju­
gar p esquisa e vida, em penho académ ico e desvelo espiritual. Trata-se de
alguém m aread o por grande sensibilid ad e e entranhas de compaixão. Ao
testemunhar so b re o am igo M assignon, depois de sua morte, Jacques Mari-
tairi sublinhou corno traço de sua herança a unidade radical entre a ciência
mais erud ita, a “ d evorad ora sed e m ística de ju stiça e de absoluto” , e a “fé
extraordinariam ente reta e pura” .2

0 cam inho da conversão


Louis M assignon n a sce no dia 2 5 de julho de 1883, na cidade de No-
gent-sur-M arne (F ra n ç a ), sendo filho de um conhecido escultor agnóstico e

TFJSSIKR, lí. 1'nsfazione. J»uis Mansignon nn precursore, uri artigiano r un teslimonf? <M
dialogo ifiN-j-n-ljf/joho. In: KKKYKLI., J. // ('iurdino di Üio. Con l/nds Massigmn innmtro
"Uutnm. Hol.,Kii!i: KMI, I W . jp. 10.
Aputl KMtVKI.I., //l ’ ia rd ih ii d i D i » . . . , |). 25.

91
Bu scad o res do d iá lo g o

de uma m ãe'católica praticante. R e ce b e sua ed u ca ç ã o re lig io sa em Paris,


mas num ambiente marcado pela laicid ad e. 0 in te re sse p elo O rien te nasce
por ocasião de seus estudos secund ários nos lic e u s M on taig n e e L ouis-le-
-Grand, quando, então, faz contato com H enri M asperò e a b ib lio te c a de seu
pai. o conhecido egiplólogo Gaston M asperò. A s p rim eira s a n gú stias meta­
físicas o acompanham desde esse período. T ra ço s sig n ifica tiv o s da perso­
nalidade de Massignon são revelados em sua co rre sp o n d ê n cia com o amigo
Henri Masperò. Nas prim eiras cartas, datad as de 1 9 0 1 , já s e cap ta a sua
“insaciável curiosidade de esp írito".'1 Term ina o b a c h a re la d o em 1 9 0 0 e
inscreve-se na universidade, onde faz seu s estu d o s d e le tra s e h istó ria. Sua
primeira viagem a terras m uçulm anas (A rgélia) a c o n te c e em 1 9 0 1 . quando
tinha 17 anos. A escolha do tema de seu s estu d o s na u n iv ersid a d e' cria as
condições para outras viagens aos p aíses m u çu lm an o s. D u ran te o período
em que faz o serviço militar, nos anos 1 9 0 2 e 1 9 0 3 . em R o u en . perde a lé
cristã de sua infância. Em 1 9 0 6 . d iplom a-se em á ra b e na E s c o la de Línguas
O rientais, sendo igualm enle nomeado no m esm o a n o m em bro do Instituto
F ran cês de Arqueologia O riental no Cai to. o q u e fa v o receu su a d ed icação
em tempo integral ao estudo da arte e da civ iliz a ç ã o á r a b e .’ D urante uma
m issão arqu eológica na M esopolâm ia. nos a n o - 1 9 0 7 - 1 9 0 8 . é aprision ad o no
rio Tigre p e la p olícia turca e acusado de esp iã o . \ e x p e riê n c ia su scita uma
forte crise religiosa, que culm inou em tentativa d e s u ic íd io , em 3 de maio de
1 9 08. Foram feitas na ocasião inúm eras e.-p<-<ul a ç õ e s -o b r e sua suúde/' É
no contexto d essa dolorosa ex p eriên cia que se dá o p ro c e s s o d e conversão

HASETT1 SAMI, G. I/mis Massigium. lirrnzr: Alima. I1*,', j>. 50.


0 Irma esrolhido fui "lali Irail gt-ogranqur du Marne d'apr. - 1/-on 1”Africain”. Aprrsrnla o -cu
trahalho no ano dr ]00|. -endo rlr puMirado rm 1*<06 n.i \rgrlia. U -eu tralialho chega ao
conhcrimrnto dr Charles de Kmicauld. rrri -eu rrrmilrrio itr Hern Al>bê». na ArgZ-lia, aforindo
r-paço para uma amizndr que « aeompanhara rm toda lida.
Aille- dos rsludo- dr àratie, Ma—iguon dedieou-se ao e-ludo do -an-enlti sob a uncntacao de
Silian Lrvj (1863-10.551. rt-ronlircido indiani-U francos.
1 .ilou—e rm luriiamrnlo dr rolls! irm la. eri-r dr detnfcncia. eri-r agaida dr malaria e ronerstâo
errr leal (X KERVK 11. II iiuinkruj dt D io..., p. 80. 63. 100- III] m 1(AON. 1). I s u,\aer
en We-opnrarur rf la airuiernon dt- Ixmis Wasstunort en DMIII |'an. Crrf. 2tXi! p. 10.28-30.
5 3 -,

9 2
Louis M a s s ig n o n -, a h o s p it a l id a d e d ia io g a l

de M assignon, id en tificad a pelo evento da “visita do Estrangeiro” .7 Sobre


esse ep isó d io , M assignon guardou segredo por muito tempo, só revelando o
seu significad o em texto pu blicad o sete anos antes de sua morte: “Ele acen­
deu um fogo no m eu co ração onde a faca havia falhado, cicatrizando o meu
desespero q u e E le havia lacerad o , como a fosforescência de umjieixe res­
surgido do fundo d as águas ab issais” .8 Esse evento transfigura o universo
para M assignon, proporcionando-lhe novo alento vital. Para a retomada de
sua fé, foi de fu n d am en tal im portância a hospitalidade que encontrou junto
a alguns am igos m u çu lm anos.9 Em carta de 1938, assinala o lugar que leve
o Islã em su a co n v ersão :

E bem verd ad e q u e sou cren te, profundamente cristão, católico. E não


é m enos verd ad e q u e, se retornei à minha crença, há trinta anos, depois
de c in c o an o s de incred u lid ade, deve-se aos amigos muçulmanos de
B agd á, os A lussy [...]. E eni árabe que falaram de mim a Deus, suplican­
d o -lh e. e de D eu s a m im ; é em árabe que pensei e vivi minha conversão,
em m a io -ju n h o de 1 9 0 8 [...]. Daí o meu profundo reconhecimento ao
Islã. do q u al dou testem unho em lodos os meus trabalhos científicos.10

Q uem aco m p an h o u bem de perto todo esse processo de conversão de


M assignon foi o am igo Paul Claudel (1868-19 5 5 ). São inúmeras as cartas
que, n esse p erío d o , traduzem a grande amizade espiritual que se firmou en­
tre os dois co m p a n h e iro s. Paul Claudel foi não só o confidente próximo como
também o g ra n d e in terlo cu to r de Massignon após o evento de sua conversão.

Para o tema <la “visita do estrangeiro”, cl'.: MASSIGNON, L Parole donne. Paris: Seuil, 1983.
|). 283. M) sti/pir en dialogue-, Paris: Albin Michel, 1992, p. 6-8 (Question do, nombre 90.),
/.'hospitalité sacrée. Paris: Nouvelle Cité, 1987. p. 40-45. MASSIGNON, //•voyage en Mésopo­
tam ie et la conversion de Imuís Massignon cm 19011, p. 58-59. Para os desdobramentos de lodo
o processo que resultou cm sua conversão, ver lumbdm: DESTREMEAU, Christian; M0NCE-
LO.N, Jean. M assignon. Paris; Plon, 1994.
MASSIGNON. !/h o sp ita lité sacrée, p. 40.
Massignon encontrou acolhida entre os Alussi, que responderam a «eu favor junto ils autorida­
des turcas q u e o haviam condenado como espião. Na intercessão cm favor de Massignon, assi­
nalam que ele d membro da família, um hóspede «agrado, que riflo pude ser eliminado. Assim,
ele foi salvo, em 1908, por ser hóspede, e isso marcou Massignon pelo resto de sua vida ter, a
respeito; IIASE I T I SANÍ, IsniLi Massignon, p. 241
MASS1GNON. I.'hospitalité sacrée, p. 204 (carta a A. M. N.mreddin lie</m - 26 de lever, im <!,
J 988i.

0}
B u s c a d o r e s d o d iá l o g o

Em carta dirigida a Claudel em fevereiro de 1 9 1 1 , M assignon assin a la a


presença dos árabes em sua conversão e a im p ortân cia de su a ex p eriên cia
na Mesopotâmia, em 1 9 0 8 , quando, então, ca u te riz a -se o seu agnosticism o.
R eco n h ece que é ali na M esopotâm ia que aco n tecem as m ais rica s ocasiões
para o decisivo aprendizado de que é no sa c rifício integral qu e se am plia a
potencialidade do am or.11

É significativo p erceb er como foi m ediante a h o sp italid ad e islâm ica


que Massignon descobriu o sentido do sagrado. Em sin g u la r passagem de
seu diário, Paul Claudel relata com cores vivas o p ro cesso de con versão de
M assignon, que a ele foi relatado pelo amigo em co n fid ê n cia e segredo. Ao
final de um longo e doloroso cam inho, que esbarrou na sed u çã o do suicídio,
Massignon foi tocado por teofanias singu lares: a visita do estran g eiro e o
encontro com o Deus de Abraão, a revelação da verdade ( h a q q ) no b ater das
asas das pom bas no hospital m uçulm ano de B agd á, e a profunda sen sa çã o da
p resença de Deus como o Pai que acolhe o filho prõdigo.'-

0 estudioso Guy Harpigny assin ala a p resen ça de três c ic lo s no itine­


rário de vida de Louis M assignon: o c ic lo de H a lla j. o c ic lo de Abraão e o
ciclo de G a n d h i." 0 prim eiro c ic lo c o n c lu i-se com a re a liz a çã o da grande
pesquisa de M assignon sobre o m ístico persa m uçulm ano a l- lla lla j (8 5 8 -
9 2 2 ) ." que resultou em sua tese doutoral, d efend id a em 1 9 2 2 . O segundo
ciclo envolve as novas pesquisas de M assignon qu e avan çam a tê sua orde­
nação sacerd otal, em 1 9 5 0 . O terceiro ciclo a< < -m h a período final da
\ida de M assignon. m arcado por -eu engajam ento ! ’ rn|>oral e sua com paixão
universal.

\pud Kl IO M -L II fruirrlifw dt lh o .. . p. 57 LimU-m. p. 70-71


Ibtd .p. 09-104
H A R P IG N Y , G le ia m >i ( k r u t u m u m t Lou ’* 1981 Ver
la m l^ m . a rr^ p rilo . R O C A I A F7, P. Ijhjls \faxugru>r, rl l l tl Dar j- I ‘ M u i fr u u U6 tir
Dam«>, 1993. p. 15.
Para maior*-*- d rudhr> < it -ua a »tia. r í M \ » l < >V ) Y 1 ( irn< tu Iu rom/»o.*-. >n. M adnd: Trol-
la, 1999 p 39-74 i M -lia llâ j m K titn dei i^-lam r \ ida d r H a lj f r .is n :. m u ru K !r\ P jn « ' H<>-
U rl lâdont. 2009 1 I, p. 381*516 (Ijt tlmoin ri«<“n tirl: Al Haliâj». ‘"‘H IM M f L A. /✓ •sa u fis m e
iimmuons ■ de Pulam, r '-l 16. Rl SPOLI. ív Lr o
de HullÁi l e x p a in é . F’a n v ( a - tÍ . 2005. p 15-53.

9 4
i Qiji'. lA r-vec.iiou u H o sem uo u o ; w y ,(

0 ciclo de H allaj: um outro olhar sobre o Islã


Louis M assignon p ercebe no caminho rJo Oriente a possibilidade de
retomada do co ração . Não m ais lhe satisfaz o deserto frio e estéril do ra-
cionalism o, m as a riqueza viva e emotiva do universo simbólico do Islã. 0
con hecim ento do á rab e favoreceu-lhe o acesso aos escritores, poetas, filóso­
fos e, sobretu d o, os m ísticos sufis (persas e árabes). Mediante a leitura do
Memorial dos Santos, do grande místico persa Faríd ud dín Attarísóc. XII;,
toma co n h e cim en to d e outro grande nome do sufismo, Hussayn Mansural-
-H allaj, qu e se tornará seu grande objeto de reflexão e estudo. Assim que
tomou co n h e cim en to da obra de al-H allaj, em 24 de março de 1907, no Cai­
ro. M assignon d ecid iu d ed icar seu doutorado em letras ao estudo do graride
rnártir m ístico fio Islã. Com unica sua decisão ao pai em abril do mesmo ano.
em carta onde fala do en can to que lhe produzem a cor intensa e o andamento
trágico do m artírio d e a l-H a lla j.1'

Sua le se foi co n clu íd a em 1914, mas em razão da guerra só pôde ser


apresentada na So rb o n n e em 2 4 de maio de 1922. Uma parte do manuscrito,
consignado na tipografia de Louvain, foi destruída pelo fogo dos primeiros
bom bardeam entos da cid ad e, em 1914. A volumosa tese teve como título La
passion de Husayn Um M ansâr llallaj: marlyr mysíu/ue de 1’islam exéculé à
B agdad le 2 6 rnars 9 2 2 .u‘
Louis M assignon foi profundamente marcado pela experiência vital de
a l-H allaj. uma d as m ais extraordinárias figuras da mística muçulmana. Tra­
tava—e, a seu ver. fie um grande “amante de Deus”, que conseguiu alcançar

kkHYf '1.1.. II if ia r d in o ili l) io , p. 53. Relata também o papel central de al-Hallaj em sua vida,
rm i trt.i ,i Mj ! niulli- r - t-f.: MASSICNON. I.Itospílaliti1saerée, p. 60. t ala a ela da mi|»irUncia
•Oi ini ij.-o fi.'Ki hii paru a afirmafplo <le «na personalidade cientifica e posição universitária, mas
l<mil«'m para -ou acolhida do mi.slérin de l)eus.
Vt< e foi pulile nia ern dois volumes pela editora Ccutliner. de Paria, em 1622. lima novaedi-
« o foi [lo-lenormente publicaria cm «piatro volumes pela Gallimard de Paris, cm I97.">. f.omo
le •• ,mp|einenl.jr. ele apresentou o Estai sur les origines du lexique technique de la mystique
m usulm ane, publicada inicial mente en» Paris ein 1022. pela editora (.eutliner, e reeditada pus-
tenormentc cm Paris p»»r Fiditions du Cerf ern 1099. Ainda sobre al-Hallaj, Massignon traduziu
para o fraricê» seu I/tuân , etm 1936, posteriormenle reeditado cm 1038, 1055 e 1081, Outras
conferência* e artigo» de Massignon foram publicados ern sua Opera minora, uma cole.tinca de
207 artigos publicado* ern tre, volume» e editado« por Youakin MOI BAHAC (Beyrouth: Oar
al-Maare|. 1963).

95
B u s c a d o « ' PO P lA lO Ü O

Iranianos. Teve um papel im portante na d ireção da Revue du M onde Mitsul-


man , eom a produção de inúm eros artigos. Atuou ig u alm e n te no Arm uairc du
Monde Muaulman, respondendo pelas ed içõ es d e 1 9 2 0 , 1 9 2 9 e 1 9 5 4 . Aluou,
ainda, em prestigiosas instituições a rad êm ieas e c ie n tífic a s , tanto no mundo
ocidental como do mundo árabe-m uçulm ano. Foram tam b ém in ú m ero s os
convites para professor visitante nos Estad os U nid os, C a n a d á , E g ito e Irá.

0 ciclo de Abraão: o desafio da h o sp italid a d e


A visão dialogai de M assignon está toda ela lu nd ad a na im p o rtan te no­
ção de hospitalidade. Trata-se de uma p alav ra-ch av e na co m p ree n s ã o da
personalidade de Massignon. A hospitalidade (diyâfa) é p a ra e le um dever
sagrado que deve estender-se a todos os d om ínios, in c lu in d o o relig io so e
místico. E sse apelo da hospitalidade foi fruto de seu ap ren d izad o co m os á ra­
bes. que lhe ensinaram que o dever do h o sp italid ad e é e x e rc ita d o em nome
de Deus: um apelo que se enraíza no projeto d e A braão , o g ran d e p recu rso r
das tradições religiosas sem íticas, que instaura a h o sp ita lid a d e ce le b ra d a
na acolhida do estrangeiro (Gn 1 8 .1 -1 6 27). Com os m u çu lm an o s M assignon
conseguiu captar o m istério essen cial de um D eus de h o s p ita lid a d e .2“

A reflexão em torno de Abraão será cen tral na vida d e M assig n o n , en ­


volvendo o coração mesmo de sua aventura esp iritu al e in form and o u novida­
de de sua visão sobre o Islã. E ssa p resença ganha v ita lid a d e em su a e s p iri­
tualidade cotidiana, eom as três orações de A braão re c ita d a s a c a d a Angelus
após julho de 1 9 2 0 .2" Será também fundam ental no en g a ja m e n to político
de Massignon em lavor da P alestina, na se q u ê n cia dos a co n te c im e n to s de

Esses "honrados hóspedes" de Abraão serão recordados lambem no livro do Corão (15:51 e
51:24).
\R\ VI DEZ. Sa spirilualità. p. 1Ü2.
trata-se da tríplice oração patriarcal de Abraão, baseada na experiência da aparição de lahweh
no carvalho de Mamhré, descrita no Li\ro do Gênesis 18,1-5. São as orações por Sodoma. Is­
mael e tsaac. trabalhadas e desenvolvidas por Massignon em sua preciosa obra Les trois prières
ti V m h a m (Paris: Cerf. P>Q7t. (As duas primeiras orações tinham sido antes publicadas ã
parte, em ld30 e 1Ó35: a última, dedicada a tsaac, não ganhou publicação independente.)

98
L o u r , M a s s i g n o n a h o s p it a l id a d e d ia l o g a i

1947: a retom ada do a p e lo d e Abruão em lavor rie fje n m lé m como a cidade


de e le iç ã o d e Iod os o s c r e n t e s .1"

Km su a c l á s s i c a re flex ã o so b re as Ires orações de Abraão, reunidas cm


obra de 1 9 9 7 , M a ssic n o n tr a ta ria legitim id ad e do Islã, entendido como urna
religião “ c e n lru d a na Té” .* 1 K sse lem a foi particularm erite desenvolvido na
parte d e d ica d a ã lié g ira d e Ism a e l, (pie traduz a reflexão mais articulada e
ampla do livro . K ss e au to r fala do Islã com o um “ bloco espiritual autêntico
e h om ogêneo” , já q u e c im e n ta d o na “ fé do verdadeiro Deus, que provém de
Abraão” .'12

O a p e lo d a h o sp ita lid a d e em M assignon abre um esp aço singular para


a aco lh id a do o u tro em su a e sp e c ific id a d e , enquanto “ proprium” , enquanto
“alter” (e não “ a liu d ” ), e n q u a n to alguém que é m istério im penetrável e ir-
repetível. Não é p o ssív e l para e le c a p ta r o seu significado senão mediante o
gesto da a p ro x im a ç ã o d esa rm a d a de p reco n ceito s. K xige-se para tanto mais
do que s im p le s b o a v o n tad e, mus o gesto ousado de “penetrar através do
logos no m ilh os do o u tro ” , h o sp ed an d o -se no seu interior, lodo o trabalho
de p e sq u isa e , so b re tu d o , o e stilo d e sua vida espiritual estará marcado por
esse “ m étod o in te r io r is la ” , q u e in d ica qu e uma tradição religiosa sé pode
ser v e rd a d e ira m e n te c o n h e c id a a p artir de dentro: “ Kntrando na casa do
Islã p ela p o rta p riv ile g ia d a d a m ístic a , conseguiu co n h ecer inlim am ente a
religião dos filh o s d e Is m a e l; do alto da santid ad e, en carn ad a sobretudo por
H allaj, p ô d e e s te n d e r o se u olhar, tornado agudo e penetrante pela própria
ex p e riê n cia r e lig io s a , p ara a im en sa e co n trastan te terra do Islã, oferecendo
dela um im p o rta n te a fre s c o em se u s e sc rito s” . 1,1 A p resen ça de al-H allaj na
vida de M a ssig n o n foi um fato r d ecisiv o para a sua p ercepção da importãn-

Ein intervençflo na Semana dos Intelectuais Católicos, em maio de 1940, em Paris (“La foi aux
dimensiona du monde”), Massignon assinala o significado de Abraão em sua vida, refazendo
como seu o itinerário de AbraSo. finalizado em Jerusalém. Sinaliza ler compreendido, com o
Pai de todos os crentes, que a Terra Santa não poderia ser um "monopólio de uma ruça, mas a
Terra prometida a todos os peregrinos como ele”. Cf. ROCALVK, Louis Massignon n 1’islam, p.
30-31.
MASSIGNON, Lcs trais prifires d A braham , p. 98. Por sua vez, a religião judaica enrafzu-sc. a
seu ver. na esperança e o Cristianismo, na caridade.
lbid.. p. 106.
CANCIANI, D. 1,’altro voltodelPislam. In: MASSIGNON. L. Im supremagurrrasantotltWidam,
Troina: Ciltà Aperta, 2003. p. 12. A propósito do método interiorisla, ver. ainda: MASSIGNON,
Pl'Sv. APOKt S DO PiMOuO

ria lio "critério de experim entação in terio r" para a p e rce p çã o d e uma oulra
tradição religiosa.31
\ hospitalidade é tam bém . para M assignon. um req u isito e s s e n c ia l para
a busca da verdade. Esta aco n tece no bojo de uma re la ç ã o e sp iritu a l seren a,
de acolhida mútua entre interlocutores que bu scam um horizonte fraterno.
Não há com o com preender o outro senão tornand o-se seu h ó sp ed e. E s s e é
um tema recorrente na reflexão da M assignon. 0 verdadeiro en co n tro com o
outro não aco n tece m ediante o cam inho de sua a n e x a ç ã o , m as do e x e rcício
autêntico de hospitalidade. É m ediante o trabalho de p artilh a do m esm o pão,
do mesmo trabalho e da mesm a vida que a verdade pode vir à lo n a .35

A abertura ao Islã possibilitou a M assignon d esc o b rir com m aior pro­


fundidade algumas dim ensões inusitadas do m istério divino. O seu C atoli­
cism o não ficou enfraquecido com o diálogo, m as en riq u e c id o com a nova
visão: tom ou-se mais exigente. Ao o ferecer uma visão m ais am orosa e inter­
na do Islã. contribuiu d ecisivam ente para uma m u d an ça de p e rsp ectiv a na
visão católico-rom ana sobre o tema. abrindo o cam in h o para a co lab o ração
e o diálogo islâm ico-cristão. Há, h o je, um re co n h ecim e n to e x p líc ito sobre
o influxo exercid o por M assignon em textos d ecisiv o s do C o n c ílio Vaticano
II que tratam das religiões não cristãs, em e sp e c ia l do Isla m ism o . Tanto o
número 16 da constituição dogm ática Lumen Gentium , so b re a Ig re ja , como
o texto da d eclaração sobre as religiões não c ristã s, N ostra A etate , refletem
essa influência. Há que recordar os laço s de grande am izad e q u e u nia M as­
signon a Paulo V I.y> Na visão de R obert Gaspar, qu e foi perito no C on cílio 1

1 l'o*i>Ualiià de Abram//. AU angiru* dt ebraisnto, rristiunesimo o Islam. Milano: Medusa, 2002.


p. 14 Onlroduzione de Domenico Canciuni). r
MASSfOMON. L b i fm ium de Husayn ibn Mansfir Ualláj. Parí»: Gallirnard, J075. i. JII, p.
10-Vi Ver, a propõ*ito; KOCAJ.Vh, lyjuis Maitigrum et ln la rn , p. J02. Vale também registrar
a imporlám m dada por MaMiígnon ao coração corno “õrgão preparado por Deus fiara a contem­
plação” Ibid., p. 26. Ver também; MA.SSfCNON. 1« II “cuorty*Íal-t/allj) nella pregbiera enella
medita/io/ie mimul/nam*. ín: //wj/to 'ularn. í/i mislua urubu c la lclleralu.ru occidenlule.
Vfifaoo; Me#liiufi, 2000. p. I 10-120.
lif lH I M.. 1' I L h o /fiiu ltiS \a /rS c m ir e l r \ religion*'. Paris: Albíri Michel, 2007. p. 136-137
e 203. P A S K Í 11 S A M . b u iu Mukkifttum, p , 7 4 ,

MASSIGNON, Lluujulatil/' u u tíc, p. Ml. 0 ictiria de la (orn/unidn, . p. 40, n. 3 (cm nolu de


Moreno San/;. Krn sua viagem a Terra Santa, em 1064, o Papa Paulo VI aeo/fieu, em âm­
bito da icllrxfyt mugi*lena), cm »mlonia eorn Ma**ignon, a ideia de trén religiões abra/lmieiin.
»«a a i< |#e|fo P \ - | 1 I I SANI, b u a i \lusM guau, p. 70 .

100
IO ' jig M a t ig n o n &h o sp i ^ udade di alocal

Vul inano II e c o n s u lto r ju n to ao Secretariad o para os Não Cristãos. Vfassig-


non co n trib u iu d e form a d ecisiv a para a mudança de perspectiva na Igreja
C atólica ro m an a co m resp eito ao Islã. Abriu-se com ele uma "brecha signi­
ficativa no co m p a cto m uro de d esconfiança e incompreensão que separava o
Islã do C ristia n ism o a té a prim eira metade do século X X V ’

Na trillh a a b e r ta por M assignon surgiram novos pensadores e teólogos


cató lico s d e d ica d o s ao tem a do diálogo com o Islã. entre os quais podem ser
citados: G eo rg es A naw ati, Ja c q u e s Jom ier, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil.
Serge de B e a u r e c u e il, M au rice Borrm ans, Robert Caspar. Paolo dalEOglio.
Christian van N isp en , en tre outros.38

0 ciclo de G andhi: a dinâm ica da compaixão


Na p e rs p e c tiv a a b e rta por M assignon, a compaixão é um alargamento
da h o sp italid ad e. N a ú ltim a etapa de sua vida, esse tema da compaixão será
para e le d e c isiv o . T en d o s e aposentado em 19.34. firma->e seu compromisso
social e p o lític o , j á pontu ad o pelo engajam ento em favor dos palestinos. É
onde en tra a in s p ira ç ã o de G and hi. 0 primeiro contato com Gandhi deu-
-se em 1 9 1 2 , por o c a s iã o de sua breve passagem por Paris, tendo-o reen­
contrado ali em 1 9 3 1 . N ele M assignon encontrava algo de precioso e um
fermento novo p a ra su a vida esp iritu al: ‘Talvez pela primeira vez no mundo
um hom em tev e ta m an h a in flu ên cia sobre os povos de outras religiões com
resultados im p o rta n tes na ordem so cial. Na Europa, perdemos o senso do

MASSIGNON, U h o s p ita lilá d i A bram o.... p. 20 (introduzione d e Domenico Canriani). Ver tam­
bém: F IT Z G E R A L D , Michael L. D ialog o inter-religioso. 11 punto tli vista eattoliro. Cinisello
Balsamo: San Paolo, 2 0 0 7 . p. 106-107 e 113. Relações entre a> religiões abraâmicas. In: HIV
ZE, B. E . H erdeiros d e A b raão. Sâo Paulo: Paulus, 2007. p. 87-88.

Para uma reflexfio u respeito, ver: PÉREN N ÈS. J.-J. Georges Anawati (1905-1994 1. Un chrétien
égyptien d ev an t le m ystère d e l'islam . Paris: Cerf. 2008, Massignon - Abd-el-Jalil. Parain et
fille u l ( J 9 2 6 -1 9 0 2 ). C orrespondance. Paris: Cerf, 2007. BORRMANS, M. Orientamenti per an
d ia lo g o ir a c ris lia n i e m u su lm an i. Roma: Pontificia Université l'rbaniana. 1991. CASPAR, R.
P a ra u n a visiân c ris tia n a d e l islam . Santanden Sal Terrue. 1995. AVON, Dominique. Les frères
p rêch eu rs en Orient. L es dom in icain s du Caire. Paris: Cerf, 2005. DALLOGLiO, Paolo. Innamo-
ra to delPLslam , cre d en te in Cesù. Milano: Jaca Book, 2011. SEVENAER, Christian van Nispen
loi. C hrétien s et m u su lm an s. F rères devant Dieu? Paris: Éditions de 1Atelier, 2000.

101
B l 'Vi à PO U > I V P* AiOOO------------------- ---------- ------------------ --------------------------------------------- -— — _

sagrado na \nia social, nuis iilrnxés tir pessoas com o <òim llii poderemos

rccnconlra-lo 1
O- ideais de Gandin vão peneirando sua visão de mundo nid g anhar sua
marca d ee isn a nos anus posteriores a 1053. Na lasc d errad eira da vida de
Massignon. todas as suas ações e julgam entos serão insp irad os pelo pensa­
mento de G andhi.10 \ noção mesma de hospitalidade c agora aprofundada
e envohida pela dinâm ica da compaixão pelo oulro. A ad m iração su scita ­
da por Gandhi em Massignon deve-se, sobretudo, ã sin to n ia das esco lh as
nos âmbitos moral e espiritual. Pode-se também a c re sc e n ta r o toque de sua
exemplaridade, bem como de sua reivindicação cív ica em favor do verdadei­
ro {satyagraha). Há também comunhão no cam po da esp iritu alid ad e, funda­
da em valores sem elhantes, como a oração, o je ju m e a p ereg rin ação , bem
como no âmbito da opção comum pelos pobres. Não há com o d esco n h e ce r a
presença de Gandhi na inspiração da dinâm ica de com p aixão-su bstitu ição
presente em Massignon, em particular na sua atenção para com os oprimidos
e na sua ampla solidariedade.11 Como assinala R oealve. M assignon sente-se

envolvido na política da França com respeito aos povos muçulmanos.


Sua carreira de islamólogo e seu d esejo pessoal de recon h ecim en to do
Islã. de hospitalidade do Islã, convergem no serviço a todos os m uçul­
manos golpeados pela injustiça na P alestina, no M aghreb, na metrópole
(visitas aos prisioneiros, acorrida aos operários arg elin os).*4243 ,

Em carta de abril de 1948. Massignon firma o seu com prom isso: “Estou
cada vez mais decidido a manter minha 'shahada’44 em favor da ju s tiç a até a

m Intervenção de Massignon sobre Gandhi em seminário organizado pela Gnesco em janeiro de


1953. In: DREVET. Massignon e Gamttxi. La conlagion de la vérilé, p. 112.
* Ibid., p. 44.
11 RIZZARDI, G. L. Massignon (1883-1962). Un profilo de.lforientalista eattolieo. Milano: Glos-
sa. 1996. p. 60-61. É conhecido o texto de Massignon em que ele apresenta a exemplaridade
singular de Gandhi: MASSIGNON. Parole donne, p. 130-139.
42 ROCALVE, Louis Massignon et 1'islam, p. 140.
43 Profissão de fé ou testemunho.

102
Louis M assiçhqh a -<ospitaudade dialogai

uiorD' 11 Gomo inrIir-a Erlward Saul. psla atuação prátira o humanista <*ra o
qtir- para rir* havia de melhor em Massignon. Ele

era um lutador inc ansável em d efe-a ria c ivilização muçulmana e. como


dem onstram seus numerosos ensaios e cartas após 1948. em defesa dos
d ireitos dos árabes muçulmanos e cristãos na Pale~tma contra o Sio­
nismo. contra aquilo que. em referência a alguma coisa dita por Abba
E ban . ele chamou severam ente de "colonialism o burguês" israelen se.1’

Estava sem pre antenado com os problemas de seu tempo. Aale lembrar
o seu papel na criação do Instituto Dar Es Saiam ía casa da paz), ocorrida
em 1 9 4 7 . no Cairo, e sua pre>ença nas obras de m isericórdia no núcleo dos
amigos de Gandhi

Caminhos de vida interior


M assignon deixa rastros importantes também no âmbito da vida es­
piritual. Juntam enfe com Mary Kahil.**1 funda, em fevereiro de 1 9 34. a
B ad aliy a ,47 um espaço garantido para a vida de oração e a hospitalidade
do coração. Tratava-se de um lugar de acolhida do outro, do estrangeiro. Na
B ad a liy a , “toma forma um modelo de espiritualidade interconfessional que
su scita uma concepção teológica-m ística do ’diálogo' para além dos modelos
socioculturais evocados pela cultura hu m anista".w Em pacto concluído na

MASSIGNON. L'hospitalité sacrée, p. 250. E continua, na sequência: "Notre vocation c’est de


justifier Dieu, de le faire aimer par ceux-là mêmes à qui II manque et qui semblent abandonnés:
les pauvres, les exclus, les inconsolés. C’est cela que Jésus a fait en venanti ici-bas à l'appel de
Marie”.
SAID, E. Orientalismo. O Oriente com o intenção do Ocidente. Sào Paulo: Companhia das Le­
tras, 2001. p. 27-1-275.
Tendo conhecido Massignon em 1912-1913, Mary Kahil (1889-1979) viverá uma experiência
de intensa comunhão espiritual com Massignon. Os dois exerceram grande influência no diálo­
go islâmico-cristão. Para maiores detalhes, cf.: MASSIGNON. L'hospitalité sacrée, p. 77ss.
Seu significado em árabe é "substituição’’.
RIZZARD1, L Massignon 1 1883-1962). Un profilo dell'orientalista cattolieo. p. 150. A ex­
pressão bad aliy a é derivada do termo árabe abdâl. cujo plural é hadal. Como assinala Paulo
DalíOglio. os ab d âl "são escolhidos por Deus para cicatrizar as feridas do mundo mediante o
dom de si mesmos, através da paciência, da humildade, do silêncio e tia pequenez assumida

103
ocasião pelos dois na igreja hu neisrana de Ihinnrttr . local mulo Sào l'ran-
>iM*o apresentou-se ao sullào al-M ulik al kàiu il. d ecid em lazer o o le rcci-
menlo di' Mias \idas aos muçulmanos. Não para que st* co n v crlcsscm ao
i rwhanisnm. mas “para que a vontade do Deus pudesse s e r le ila para eles o
por eles". \ experiência da B adaliu t é assumida pelos dois com o um “ volo
do substituição" o um eonvile a \iver a santidade em m eio aos m uçulm anos.
Iradu/mdo ao Padre jesuíta Bonneville. no Cairo, a força da opção realizada
pelos dois. Man k aliil assim se expressa: “Q uerem os fazer nossas as suas
orações, nossas as suas vidas, apresentando-as ao Sen h o r” . ^ A p artir de
193-4. ano da fundação da B adaliya , M assignon vai se aproxim ando cada
\ez mais da comunidade católica m elquita. de rito bizantino, até fazer sua
translerência definitiva para ela em 1 949, sob autorização de Pio X II. Kra o
passo que faltava para sua maior com unhão, enquanto cristã o , com os ára­
b e s . Km janeiro de 1950. é ordenado sacerdote na ig reja g reco-m elqu ita
Sainte-M arie-de-la-Paix.

Para o crescim ento espiritual de Massignon foi muito im portante a pre­


sença de Charles de Foueauld (1 8 5 8 -1 9 1 6 ). Foi alguém d ecisiv o no p ro ces­
so pessoal de afirmação da vocação espiritual e solid ária de M assignon em
favor do Islã. Os dois sem pre estiveram unidos por uma grande e profun­
da amizade, apesar da diferença de idade de vinte e c in co anos. Foueauld
torna-se. para Massignon. um intercessor, confidente e am igo: um autêntico
"diretor espiritual“ . A intimidade espiritual entre os dois está registrad a na
correspondência regular mútua que se in icia em novem bro de 1 9 0 8 , e que
soma cerca de oitenta cartas. Em clara proposta de vida m o n ástica, Fou­
eauld faz, em setembro de 1 909. um convite a M assignon para prosseguir
seus estudos teológicos junto a ele no deserto. A inda qu e seduzido pela
proposta, Massignon acaba optando pelo matrim ônio, que veio a realizar-se
em 2 7 de janeiro de 191 4 , em Bruxelas. O cam inho esco lh id o por M assignon
ganha a acolhida carinhosa de Foueauld. No mesmo m ês do ca sa m en to , uma
bela carta de Foueauld a Massignon expressava o valor da nova e m aravilho-

com amor”. Os a b d â l sào corno que os sanlos muçulmanos. Ver: MONTJOU, Guyomie de. Un
monaslero, un itomo, un deserto. Milano: Paoline, 2008. p. 80-87 (a citação e.stá na p. 80).
MASSIGNON. L'hospitalité sacré, p. 101.

10 4
O U1 M a V j .GMON A HQ0P,r AL DA DE 0'ALQCAI

s íi n p ç tio r e a li/ n d a j m •Ir » a rn ig o . d e u m a v o c a ç ã o d a d a p o r D e u - p a ra v iv e r a


s a n l id a d e d o m a tr im o n io n o m u n d o . 1

ra m M assignon. c, amigo Foucauld representava um " a n o c-tendidu


para um \bsolulo. fiara a Verdade’*. Tornou-se um discípulo dele ao longo (la
cam in h ad a, buscando beber intensam ente s y j "exp eriên cia vital do sagra­
do ju n to aos outros . c também o desafio essen cial do com prom isso corn o**
irm ãos m ais pobre-. \ ia a necessid ad e de intensificar seu contato espiritual
com o m estre para poder cap tar **.-ua in iciação experim ental a com preensão
verdadeira da cond ição humana, -ma ciên cia experim ental da cornpaixao
O qu e p ressentia por exp eriên cia pessoal viu realizado na prática vital de
Fou cau ld : a im portância de optar pelos m uçulm anos, enquanto filhos de
Vhraão, esses ‘’m isteriosos excluídos das p re fe rên cia - divinas na h i-tó ria” .
Aprendeu tam bém a centralid ad e do anúncio do Evangelho pela via da hu­
m ildade, do ex e rcício da hospitalidade, entendido como "verd adeiro pão
esp iritu al*'.’ 1 São, portanto, três os asp ectos que unem o pensam ento de
M assignon a C harles de Foucauld: a visão comum -o b re a responsabilidade
da F ran ça com respeito aos países colonizados; a partilha da hospitalidade,
entendida como valor sagrado: a p ercep ção da dignidade única de cad a ser
hum ano, sobretudo dos m ais abandonados e ex clu íd o s, no- quais pulsa uma
ex p e riê n cia vital do sagrado.52

0 grande legado de Louis M assignon in sere-se no cam po do diálogo


do C ristianism o com o Islã. E le favoreceu, sem dúvida alguma, urna nova
visão sobre essa tradição religiosa qu e. para o O cid en te, representou um
“ traum a duradouro". Apontou cam inhos singu lares para uma percepção do
Islã a p artir de dentro, buscando d iscern ir o "sopro do Is lã ", sobretudo a
p artir da con tribu ição dos grandes m ísticos da tradição sufi, em particu­
lar a l-H a lla j. Privilegiou o cam inho do coração como lugar privilegiado de
a ce sso cio “segredo divino".** D efendia a e acreditava com vigor na ideia de

KOl tl.U 1.0. C. de. Oftere spiritualL Roma: Paoline. 1984. p. 722.
M VSSIGNOÍN, P arole dorme. p. (>.>-64 (Toule une \ie avee um frère parti au désert: Foucauld).
Rl/ZA RO l. /,. Massignon ( 1883-1^62), Un profilo delPorientalista cattolico, p. 60. Também: p.
91-132.
Ou lambém como o ••ponto de impacto dos acontecimentos espirituais**, o órgão e espelho "da
contemplação entre os profetas a quem Deus ‘abriu o peito’ (sharh al-sadr) (Cor 94.1)” -M A S-
SKíNON, L. Écrits m enwrables. Paris: Robert Lafonl. 2 0 0 9 .1 .11. p. 30 9 e 312.

i° 5
BUSCADOS! ^ 0 0 DIÀIOCO

que o melhor euminlio de acesso ao outro é m ediante a em patia, a sim patia


e a hospitalidade. Foi um pioneiro do diálogo inter-religioso, abrindo canais
alvissareiros para a abertura do Cristianismo ao Islã. Como bem sinalizou
Édouard-Martin Sabanegh. um de seus discípulos, M assignon foi o grande
artesão na mudança de perspectiva do mundo cristão com respeito ao Islã ,54
com um substantivo influxo no Concílio Vaticano II. No mundo cató lico , foi
ele um dos pioneiros no reconhecimento do Islã como religião abraâm ica.
Os testemunhos sobre eles são diversificados. 0 Papa Pio X I referiu -se a
ele como um “muçulmano católico” . 0 grande orientalista Ja cq u e s Berque
identificava-o como um “sheikh admirável”. 0 irmãozinho de Je su s R ené
Voillaume encontrou nele “um tesfemunho privilegiado da h eran ça esp iri­
tual de Charles de Foucauld”. E sse reconhecim ento aconteceu também no
mundo muçulmano, onde é reverenciado ainda hoje com reconhecim ento e
respeito. Insere-se no amplo leque dos buscadores do diálogo, que fizeram
de sua trajetória de vida uma aventura arriscada e exigente de deixar-se
envolver pelo enigma do outro.

VI PÉRENNÈS, Georges Anawali (1905-1994). Un chrétien égyptien devant le mystère de l’islam,


p. 84.

io6
5
Simone Weil:
uma paixão sem fronteiras

Não é tarefa fácil tentar descrever a vida da grande pensadora e mística


que foi Sim one Weil (1 9 0 9 -1 9 4 3 ). Como mostrou com acerto sua biógrafa e
amiga, Simone Pétrem ent, querer apresentar uma imagem mais ou menos
fiel da autora é tarefa “d esesp erad a".1 Só um “excepcional biógrafo” é c a ­
paz de desocultar com autenticidade a riqueza e os segredos de sua vida e
desvendar seu enigma. R evelam -se sem pre fragm entárias as tentativas de
selecionar os aspectos mais fundamentais da sua vida. envolvida por nuan-
ces m ultifacetadas. O objetivo deste capítulo é bu scar cap tar o traço de S i­
mone Weil como buscadora do diálogo e apaixonada pelo mistério de Deus e
do mundo, tendo como base de referência algumas biografias sobre a autora
e, sobretudo, dois livros de sua vasta bibliografia: Espera de Deus e Carta a
um religioso.2.
No testemunho de dois amigos queridos de Sim one Weil, revela-se com
muita clareza a figura de Simone ^ e il. Em sua convivência com Simone no
período em que viveu em M arselha, entre os anos de 1941 e 1 9 4 2 , o Padre
dom inicano Joseph-M arie Perrin a definiu muito bem , como uma mulher
m arcada pela “sede do absoluto ’. Com base numa afirmação da própria S i­
mone, o Padre Perrin indica que ela foi como “a clorofila que se alimenta

PÉTREMENT, Simone. Vida de Simone Weil. Madrid: Trotta, 1997. p. 11 (o original francês é
de 1973, publicado em dois volumes).
W EIL, Simone. Attente de Dieu. Paris: Fayard. 1966 (a edição original é de 1950). Lettre à un
religieux. Paris: Gallimard, 1951. A obra completa de Simone Weil. ainda em curso de publica­
ção, está prevista para sete tomos e dezesseis volumes pela editora Gallimard.

107
pü«.câ pom <•po piAioco_____ ____________________ __ __________

, 1.1 lu 7“ : uma presença misteriosa r “atorm entada" prln amnr de D eu s.' í)


oiiin» testemunho é dr fm stave Thibon. em ru ja fazenda ela trabalhou romo
operária agrícola em F M I. Kle menc iona que eom Sim one d eu -se o grande
rnronlro de sua vida. Foi aos poucos sendo seduzido pela beleza interior
dessa mística “selvagem ". pela sua pureza, transparência, au ten ticid ad e,
e pela sua capacidade única dc abertura sem lim ites à re a lid a d e .1 Fhibon
reconhece que “todos os homens geniais são m ensageiros do divino e do
eterno. Mas poucos suo verdadeiramente suas testem unhas na profundidade
de seu ser“. '

Passos de uma vida singular


Simone Weil nasceu em Paris no dia 3 de fevereiro de 1 9 0 9 , numa
família de tradição judaica, marcada por clim a de refinamento cultural, ge­
nerosidade e afeto. Seu pai. Bernard (1 8 7 2 -1 9 5 5 ), era m édico e agnóstico
convicto. Sua mãe. Selma Reinherz (1 8 7 9 -1 9 6 5 ), uma m ulher dedicada aos
filhos. Foi nesse clima que cresceu Simone, sem aderir a nenhum credo
preciso. 0 ambiente familiar foi favorecido pelos sólidos vínculos afetivos e
Simone recebeu dos pais um importante impulso para 0 crescim ento in telec­
tual e a ampliação das possibilidades de ação no mundo. Herdou de sua mãe
a alegria e a paixão pela vida, bem como 0 desejo de felicid ad e.

Em sua trajetória de vida. Simone Weil foi revelando aos poucos uma
capacidade intelectual singular. Terminou 0 seu baccalauréat aos 15 anos,
tendo em seguida ingressado no prestigiado Liceu Henri IV, em P aris. E sco -

PERR1N, Joseph-Marie. Mon dialogue avec Simone Weil. Paris: Nouvelle Cité, 1984. p. 29, 39
e 79.
PERRIN, Joseph-Marie: THIBON. Gustave. Simone Weil com e l'abbiam o conosciuta. Milano:
Ancora, 2000. p. 120 e 123. BARTHELET, Philippe. Enlretiens avec Gustave Thibon. Paris:
Édilions du Rochen 2001. p. 63-63. Lm testemunho semelhante foi dado por Simone Pétre-
menu sua fiel amiga, ao constatar que os seus mais simples escritos, nos últimos anos. são sufi­
cientes para “mostraro que ela realmente era, revelam uma pureza, uma honestidade inflamada
e delicada que não encontra semelhança no nosso tempo*5 - Apud CANCIANI. Domenico. Tru
nenluza e helíezzo. Ríflessione religiosa e esperienza mistiça in Simone Weil. Roma: Lavoro,
1998. p. 96.
THIBON. Gustave. L ig n /jr a n c e éto ilé e . Apud í)\ MCOLA. Ciulia Paula; DANE.SE, Attilio.
ib u m o i e dpicet. São Paulo: b jy ola. 2003. p. 119.

io 8
jiMQPjf / / t|i i t f L ï f . /AO üfM *t

lheii a filosofia rom o cam po de sua formação teórica, tendo encontrado em


A hiin um dos m estres cju#- mais favoreceram o seu desenvolvimento in teler-
tuul. í» n esse período do Liceu que com eça a acon tecer o seu engajamento
p olítico m ais decisivo. Sua presença irradiadora propagava-se entre os alu­
nos. hm passagem de um de seu* livros de memória. Sim one de Beauvoir
relata sua adm iração por Sim one Weil: "E u invejava um coração rapaz de
l)ater através rio universo inteiro**/’ \ continuidade de seu aperfeiçoam ento
teórico vai aco n tecer na E scola Normal Superior, de 1 928 a 1931. \ trajetó­
ria intelectu al de Sim one foi um "e x e rcíc io rio intelecto com todo o seu rigor
e exig ên cia, unido a uma paixão pelo mundo e o ser humano**.

Sim one Weil é contratada em setem bro d e 1931 com o professora de


Füosofia em Le Puy. 0 exercício do m agistério é acom panhado de intensa
m ilitância no movimento sind ical. Firm a-se nela o sonho de tornar-se ope­
rária. A atuação com o docente tem continuidade em \uxerre <1 9 3 2 -1 9 3 3 ) e
Roanne (1 9 3 3 -1 9 3 4 ). Sua m ilitância política em Roanne vai cad a vez mais
inviabilizando sua profissão de professora. 0 tema do trabalho sem pre e s ­
teve no centro de suas atenções durante sua form ação filosófica, e o sonho
de tornar-se operária é acalentado desde 1 9 2 1. A creditava que só mediante
um conhecim ento direto da vida na fábrica teria acesso à com preensão cia
relação entre os trabalhadores e o trabalho. Em dezem bro de 1 9 3 4 . inicia
sua atividade como operária na fábrica Alsthom , depois de pedir licen ça
por um ano do cargo de ensino. Terá. ainda, outras duas exp eriên cias como
operária, na Cam aud e na R enault, quando pede dem issão em 1935. Sobre
sua ex p eriên cia como operária, relata em carta ao amigo Jo é Rousquet, em
12 de maio de 1 9 4 2 :

Não faz muito tempo [...] trabalhei como operária, ce rca de um ano, nas
fáb ricas m etalúrgicas da região p arisiense. A com binação da experiên­
c ia pessoal e a sim patia pela miserável m assa humana que me rodeava
e com a qual me encontrava [...] indissociavelm ente confundida, fez
entrar tão profundamente no meu coração a desventura da degradação

B E A l’VOIR, Simome de. Mémoire d'une jeu n e fille rangée. Paris: Gallimard. 1958. p. 236-237.
BINGEM ER, Maria Clara 1» Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio dp Janeiro: Rocro,
2007. p. 20.

10 9
B uscad o res d o d iá lo g o

social que, desde então, passei a me sentir como uma escrav a, no sen ­
tido que esta palavra tinha para os romanos.“

O tema da desventura é novamente lembrado na carta autobiográfica


que Simone escreve ao Padre Perrin, dois dias depois:

Estando na fábrica, confundida aos olhos de todos e aos meus próprios


com a massa anônima, a desgraça dos outros entrou em m inha carn e e
em minha alma. Nada me separava disto, porque havia esquecido real-
mente meu passado e não esperava nenhum porvir, e dificilm ente podia
imaginar a possibilidade de sobreviver àquelas fadigas. [...] R ece b i ali,
para sempre, a marca da escravidão, como a marca a ferro em brasa que
os romanos punham na fronte de seus escravos mais menosprezados.
Depois, passei a ver-me sempre como uma escrava.*'

Tal questão vai ocupar um lugar central na reflexão de Sim one Weil,
que não via outra condição para pensar a desventura senão “levando-a na
carne, gravada bem a fundo, como um cravo, e levá-la consigo por longo
tempo, de forma a facultar firmeza ao pensamento para poder m irá-la

Uma das razoes que motivaram Simone Weil a ser operária era poder
encontrar na fábrica uma “verdadeira fraternidade". Sua d ecepção loi gran­
de. Encontrou ali uma experiência de viva opressão e consequente subm is­
são desnlenladorn. Tudo isso só fez aumentar o seu pessimismo político. Em
seus relatos a propósito, sublinhou que a experiência nas fábricas foi para
ela “um verdadeiro martírio": a cruel fadiga, as normas de produtividade im­
postas. a degradação das condições de trabalho, as terríveis dores de cab eça
ete. Chegou a pensar em suicídio.11 Na verdade, esse ano de experiência
operária provocou uma profunda transformação em Simone Weil, não só no
Âmbito das ideias, mas em sua visão das coisas, em seu sentimento de mun­
do. E dessa

\\I II , Simone*. PnisunncnUvi (Irsonirnndns. Mmlrnl: lrnii.i. |OO.Y p *>7


l«l. Utrntcilc Ihru . |i. 12 (na lratliu;Ao Inasilnru: fcsftrrn iir llrus. SAn Paul»»: I ( l\. 101J7. p- tã).
O iiailulor Imisilnm prrfrriu Iradimr a Aifíul rxpivssAo Iraiuv^a nmlhrur por “elespavn". No
pirsrnlr Irxlo, aelolamou oiilra IrunuvAo: *\lr>v»*nlura*’.
M , /*rnsamiciitos dr\inilrtunlus%p. .”>1
1*1 nu MI NI. I uiti </»•Simonr IIr*/. p. I. iCíT. I7<» «• 17o

110
S im o n e W e i l u m a p a ix à o s e m f r o n t e i r a s

e x p e riê n cia profundam ente dolorosa e cansativa que ela extrai refle­
xões d e extrem a lucidez sobre o trabalho operário e a tola pretensão
das ideologias m odernas, notadamente o socialism o real, de libertar os
op erários, quando na verdade estes vivem como cativos, escravos na
fá b ric a .12

M uitos dos sonhos nutridos por Simone Weil acabam naufragando dian­
te da dura e triste realidade que encontra pelo caminho. Mas tudo isso ge­
rou outras possibilid ad es, como um “percurso propedêutico” para uma nova
vida esp iritu al. Su b lin h a-se, com acerto, que o movimento que a levou à
vida o p erária “foi a obed iência a um movimento interior que ela ainda não
nom eava em termos espirituais. Tratava-se, no entanto, de um movimento
e x iste n cia l, vital, que ela não podia deixar de atender. E esse movimento,
n ela, era inseparável do amor que sem pre nutriu pelos seres humanos” . 13

Após sua saída da R enault, em agosto de 193 5 , Simone Weil acompa­


nha os pais numa viagem a Portugal, e ali vive uma primeira experiência
m ística, ao tomar contato com um Cristianismo aceso e pulsante. Isso ocorre
em m eados de setem bro do mesmo ano em Póvoa do Yarzim.11 ao se deparar
com uma b ela procissão marítima, por ocasião da festa patronal de Nossa S e­
nhora das S e te Dores. O canto triste das mulheres dos pescadores provoca a
sen sib ilid ad e daquela jovem que “tinha a alma e o corpo em pedaços”, e ali
toma, de im proviso, a co n sciên cia de que “o Cristianismo é por excelência a
religião dos escravos” . 15

Em outros dois momentos viverá uma sim ilar intensidade mística. Por
o casião de uma viagem a A ssis, na Itália, em 193 7 , e numa estadia em So­
ltam os, em 1938. É sabida a grande admiração que Simone nutria por São
F ran cisco . Na sua cé le b re carta autobiográfica ao Padre Perrin. diz sentir-se
fascinada pelo m ístico franoiscano desde que teve notícia dele. Ao entrar
em A ssis, na pequena cap ela romana do século X II. Santa Maria degli An-
g eli , foi tomada de estupefação. R elata ao Padre Perrin que, diante daquela

MN<;KMEK, Sim one Weil, p. 39.


n lliiil.. p. 4 5 .
11 lim vilarejo nas proximidades da cidade do Porto.
\\ K||„ Attente d e D ien. p. 12-13. PFHIUN, Mon dialogue ater Simone Weil, p. II 12.

111
P V ^ AP OÜ H I V PlAlOGO

“incomparável maravilha de pureza, onde Silo Francisco orou Ião am iúde”,


algo "mais forte" aconteceu em sen interior. (|ne a obrigou, pela primeira
\ez. a píir-se de jo e l h o s . A paisagem da Umbria encantou Sim on e, com
sua doçura e serenidade. Seu relato a propósito é em ocionante: “|...| nunca
sonhei que pudesse existir um campo sem elhante, uma raça de hom ens tão
esplêndida e capelas tão em ocionantes".1,

V terceira experiência mística cristã m arcante aco n tece numa visita


de dez dias ã abadia beneditina de Solesm es, na França. Foi um momento
forte e datado, durante a Semana Santa e as festas p ascais. A beleza do canto
gregoriano e das palavras do ofício amenizavam as intensas dores de ca b eça
que a atormentavam na ocasião. A experiência, segundo o seu relato, per­
mitiu-lhe “compreender melhor a possibilidade de saborear o am or divino
através da desventura”. Foi durante aqueles ofícios que o “pensam ento da
Paixão de Cristo” entrou de vez na sua vida. R ecebeu em So lesm es, de um
jovem católico inglês, um poema do século X V II que se intitulava “Amor”,
que aprendeu de memória e o recitava nos momentos m ais violentos de suas
dores de cabeça. Foi durante uma dessas recitações que ela sen tiu -se apo­
derada por Cristo: ”[...] o Cristo mesmo desceu e tomou-me” . 18

Durante anos e ísa experiência m ística de Sim one foi guardada em s i­


lêncio. tendo sido revelada só em maio de 1 9 4 2 , nas cartas a Jo ê B ousqu et e
Padre Perrin. Com o amadurecimento do tempo, resolveu revelar a público o
que viveu na intimidade do encontro com o Mistério. Segundo Carlos Ortega,
que fez o prólogo da edição espanhola da Espera de Deus. as três exp eriên ­
cias místicas provocam “seu abandono do ensino e assinalam o ponto de *1
inflexão a partir do qual seu olhar sobre o mundo receb e uma d ecisiv a co n ­
formidade sobrenatural”. ,<) As transformações interiores vividas por Sim one

WEIL. Attente d e Dieu. p. 43.


1 PÉTREMENT. \ida de Simone IVeil. p. 452.

18 “Le Christ lui-même est descendu et m'a prise" - WEIL, Attente de Dieu. p. 4-1-45. Sobre sua
experiência mística, ver. ainda: CANCIAM, Tra sventura e belleza.... p. 117-120.
ORTEGA, Carlos. Prólogo. In: WEIL. Simone. .4 la espera de Dios. 3. ed. Madrid: Trotta. 2000.
p. 10. Sobre essa mudança também fala o Padre Perrin. no prefácio de E spera d e Deus: "[...] na
experiência desse sentimento desconhecido, dirigiu um novo olhar sobre o mundo, sobre sua
poesia e suas tradições religiosas e sobretudo sobre a ação ao serv iço dos desventurados, campo
ao qual intensificou seus esforços" - WEIL, Attente de Dieu. p. 9.

112
S im o n e W e i l , u m a p a ix ã o s e m f p o n t e ip a s

no final da décad a de 193 0 vão repercutir no novo interesse pela religião.


Passa a dar maior atenção às leituras que envolvem a história fias religiões e
ao estudo comparado das religiões. Capta a im portância e singularidade da
adesão à verdade religiosa em sua leitura do Bhagavad-G ita, realizada na
prim avera de 1940, e retomaria diretam ente em sânscrito, em 1 9 41.20 Nessa
ocasião toma também contato com a apaixonante obra de João da Cruz. que
lê no original com grande entusiasm o. Na visão do amigo Thibon. que favo­
receu esse contato, Sim one “pôde d escobrir João da Cruz com uma profunda
adm iração e uma adesão não menos profunda". Em sua opinião, dentre todos
os m ísticos era aqu ele que m elhor correspondia à sua espiritualidade.21 Na
carta biográfica a Jo ê B ousquet, assin ala não mais poder rech açar a presen­
ça de Deus: “[...] uma p resen ça m ais pessoal, mais certa, mais real que a de
um ser humano, in acessív el tanto aos sentidos como à im aginação, análoga
ao amor que transparece no m ais terno sorriso de um ser amado’ .22

Depois do período de M arselha, Sim one vai para Nova \ork, em 1942.
Sua vontade era p erm anecer na F ran ça, e só aceita a viagem como forma de
m anter a segurança dos pais. O período era com plicado para a família Weil,
com a crescen te am eaça hitlerista. A situ ação da guerra provoca uma pro­
funda m utação no pensam ento de Sim one com respeito ao tema da violência.
Rom pe com sua anterior postura sobre o pacifism o e defende o direito da
reação francesa e do resto da Europa. E labora um projeto de criação de um
corpo de enferm eiras de prim eira linha e tenta divulgá-lo entre as autori­
dades.23 Antes de partir para Londres, ainda em 1 9 4 2 , Sim one escreve a
fam osa Carta a um religioso, dirigida ao Pad re Coutorier, sob ind icação de
Ja cq u es M aritain. E ssa carta nunca receb erá resposta. Em Londres, Simone
Weil consegue um trabalho de redatora num escritório. O período londrino

20 Indagando sobre o fascínio exercido pelo B hagavad-G ita na vida de Simone Weil, Bingemer
sugere que o modo de desapego proposto pelo clássico poema místico, entendido como caminho
do ser humano para atingir a iluminação e a comunhão com Deus, expressava bem o ideai pro­
posto pela buscadora francesa - BINGEMER, Maria Clara L. Simone Weil: pioneira do diálogo
inter-religioso. In: Id. (org.) Simone Weil e o encontro entre as culturas. São Paulo: PUC-Rio/
Paulinus, 2009. p. 258-259.
21 BARTHELET. Entretiens avec Gustave Thibon, p. 178.

22 W EIL, Pensam icntos desordenados, p. 58.


23 PÉTREMENT, Vida de Simone Weil, p.654-655.

113
A t V R t s I V O i A lO o O

lei de intensa produção lileraria para Sinioue. I ma de suas o b ras m ais im ­


portantes nasceu nossa ocasião: I rnnu incnirnt Mas p erm an ecia in leliz,
apesar da positixa acolhida no país estrangeiro. 1\ se ab o rrecia lam bem com
as diheuldades im poslas aos projetos de vida. As tem íveis d ores d e c a b e ç a
retornam, c Sintone alim enta-se cada vez m enos. No dia 15 d e ab ril de 1 9 4 3 ,
e internada, depois de ser encontrada desacordada em ca s a . Tem ce rta m e­
lhora no hospital de M iddlesex. mas sua resistên cia a a lim en ta r-se d ificulta
o tratamento. Dizia que nfio podia s a n a r sua lome eiU|uaulo seu povo pad e­
cia. \eaha laleeendo no dia 2 4 de acosto de 19 13. aos 3 4 anos.

A paixão pelos outros e pelo mundo


Dois traços fundam entais marcam a sen sib ilid ad e de Sim o n e W eil: a
paixão pelos outros e pelas coisas do mundo. Dizia estar co n v en cid a de qu e a
conjunção da co n sciên cia da desventura com o sentim ento de a le g ria , en ten ­
dido como adesão integral à perfeita beleza, era a porta de en trad a ao “ país
puro. ao país respirável, ao país do real” .25 Há que situar, prim eiram en te,
o extraordinário caráter de sua com paixão, sua so lid aried ad e com a cau sa
dos oprimidos e infelizes. E essa com paixão ganhava contornos de um a au­
têntica virtude teologal: “ No amor verdadeiro não som os nós qu e am am os os
desventurados em Deus. mas é Deus que em nós am a aos d esven tu rad os” .26
Sua veia profética vibra e reage prontam ente contra a v io lên cia qu e sufoca
os seres humanos. 0 sentim ento de com paixão acom p anha Sim on e d esde
sua infância e vai alargando-se, sem fronteiras, até envolver o m undo in tei­
ro. Ao lado dessa capacidade de “sim patia pela m iserável m assa hum ana” ,
pelos desventurados, situa-se também uma grande paixão p elas c o isa s do
mundo e por sua beleza. 0 que mais amava na natureza era “a pureza dos
m inerais, o vazio do silên cio , do im enso e lum inoso esp aço , ou o d istan te e
alheio esplendor dos astros” .2, Sim one via no am or à beleza do m undo uma
das formas im plícitas de amor a Deus. Seu co ração estava aberto para aco -

■l \\ E IL Simone. L'enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l'être humain.
Part.«.: Gallimard, 1949.
\\ E IL Pem am ientus desordenados, p. 59.
2,1 ld.. Attente d e Dieu. p. 138.
PÉTRLMENT. \ida de Simone Weil. p. 587.

114
jiW O N E AJt l U V A PA /AO ; t V : P p rjTf PAj

llier sem lim ites ‘"os reflexo^ puro* e au tênticos dessa beleza na* arte< e na
ciê n c ia p abruç ar tantas outras c o isas que p|a p Deus amavam:

|...| Ioda a im ensa extensão rios sécu lo s passados, pxreto os vinte úl­
tim os: lodos os p aíses habitados por raças de cor: toda a vida profana
nos países de raça branea: na história desse« países, todas as tradições
a cu sad as de h eresia, com o a tradição m aniqueí«ta e alb ig en se: todas as
co isa s surgidas do R en ascim en to , frequentem ente degradadas, porém
não co m p lelam en te sem valor.2*

Sim one ponderava qu e um dos em pecilhos que a impediam de abraçar


a Igreja era ju stam en te o fato de essas belezas estarem fora do âm bito de
aco lh id a do C ristian ism o com o tal. Para ela. na d efinição mesma do C ristia­
nism o. a d im ensão c a tó lic a , da u niversalidad e, não poderia estar excluída.
De acordo com S im o n e, o am or verdadeiro im plica uni\er>alidade, deve >er
um am or cap az de envolver a totalidade do universo e da criação. E la dizia:
"N osso am or deve le r a m esm a exten são através de todo o esp aço, a mesma
igualdade em todas as p o rções do esp aço que a da luz do sol**."'

A sim patia in ter-relig io sa


Sobretudo após o período de M arselha (1 0 4 0 -1 9 4 1 ). cre s c e o interesse
e o aprofundam ento de Sim o n e W eil no estudo da história das religiões e das
religiões com paradas. Em texto produzido em Londres, sinaliza essa aten ­
ção , de bu sca da verdade qu e h ab ita cad a tradição religiosa e as relações
das religiões com as form as profanas de b u sca da verdade.30 Suas leituras
são d iversificad as: o L ivro dos M ortos e outros textos das tradições egípcias,
o Antigo Testam ento, o B h ag a cad -G ita etc*. Sin aliza qu e textos anteriores à
era com um , como alguns e scrito s hind u s, “contêm os m ais extraordinários
pensam entos de m ísticos com o Su so ou São Jo ã o da Cruz. Em particular,
sobre o 'nada*, o 'não ser\ o co n h ecim en to negativo de Deus e o estado de

2M \\ Kl L. Utente de Dieu. p. 53-53 e 76.


ll)i(l., p. 76 .
«1 Id.. l*en$(uniento$ desordenados, p. 66-100.
S l ' H AI VS I s PO PlAlOl.O

união loi.il «|ti alma com Deus " bula a sua reflexão é no sen tid o do rr
conhecim ento de um n e o patrim ônio religioso qu e acom p anh a a história
<l,i hum anidade o «|ii«' deixa de s n valorizado em nizfm de p re co n ce ito s ou
superficialidade.

l*'in «In crsos passos de sua reflexão. Sim one su b lin h a não s e r possf-
\el abandonar seus sentim entos |>osilivos eom respeito As d iv ersas tradições
religiosas. Isso era. para (da. uma questão de honeslid ad e e honradez. Sua
aherlura A beleza do mundo (' A lolalidade da cria çã o en volvia a acolhid a
inter-religiosa. M anilesla firme re ticên cia eonlra o e sta b e le c im e n to de urna
lueran|uia entre as religiões, pois. para ela, as relig iõ es só podem se r co ­
nhecidas a partir de seu interior. De acordo com Sim o n e, se ó co rreto dizer
que a religião católica apresenta verdades que estão ap en as im p lícitas nas
outras religiões, o mesmo pode ser dito das outras religiões, qu e tam bém
contêm verdades que estão im plícitas no C ristianism o. A n tecipan d o refle­
xões que estarão no cern e da d iscussão da teologia do pluralism o religioso,
Sim one indica que o C ristianism o tem muito o que ap ren d er das co isa s di­
vinas presentes nas outras tradições religiosas. S e ria , para e la , uma “perda
irreparável*’ se essas tradições, em sua diversid ad e, tivessem de, um dia.
d esaparecer na história.32

Essa visão de Sim one Weil sobre as religiões encontrou re sistê n cia en ­
tre teólogos católicos in clu sivistas, como Je a n D aniélou e H enri de L ubac.
Na perspectiva desenvolvida por D aniélou, a posição de Sim o n e a respeito
das religiões, sobretudo em sua Carla a um religioso , co m b in a algum as “ in­
tuições notáveis*’ com “d esconcertantes confusões” . Para e le , o que falta na
autora é a percepção de que o C ristianism o não pode se r co lo cad o no mesmo
plano das outras religiões có sm icas.33 Para esses teólogos do acab am en to,
não há como negar a “d iferença qualitativa” que sep ara o C ristian ism o das
dem ais religiões, bem como o “caráter rad icalm ente novo” da fé cristã . Na
abordagem que defendem , é o C ristianism o que dá rem ate, acab am en to e

Ibid.. p. 44. FIORI. Gabriela. S im o n e Vieil. Milano: Garzanti, 2006. p. 273-274.


\\ E IL I s t t r e à un r e lig ie u x . p. 38-39.
DANIÉLOU. Jean. Hellénisme, judaïsme, chrislianisme. In: PERRIN. J.-M. el al. R ép o n se s
o u s q u estio n s d e S im o n e W eil. Paris: Aubier, 1964. p. 19 e 26. Ver. ainda: DANIÉLOU. Jean.
S o b re o m isté rio d o h is tó ria . São Paulo: Herder. 1964. p. 104. I)F. I.UBAC. Henri. Preía/.ione.
In: P A\ 1ER. André (Ed.J. I m m isù c n e le m islic h e . Cinisello Balsamo: San Paolo. 19% . p. 22.

1l6
•*O H r / V t ,t /lAe, p A ./ Ã o ' t m f^ O N T fiíA S

I;k I»-h •im p.-rfcii.js" nau tnj<Jiçi>s rc-


llv', l;i ;i ilnenrrlanriü r|<- Simont- W«-il <<,m r e b i t o a
Km tfs|(-mii,ihí) 'o b re a autora. OuMave Tbibon fala -obre
sua iifT .sp ffliv a f-n im é n ira . q u f não porlc sor confundida cr,m a afirmação

ú n ica grande R ev ela çã o , são com o " ja n e la - para o infinito", na bela termino-
logia adotada por ^eu am igo Gu^tave Hiibon. Numa fias página- mais boni­
tas de sua reflexão sobre o lem a. quando aborda as form a- de amor im plícito
a D eus. Sim o n e su b lin h a qu e uma determ inada religião só jxxle -e r co n h eci­
da a partir de d entro, e isso requ er atitude*? fundam entais, como a -irnpatia.
a aten ção e a am izade. \ -eu ver. “o e-tu d o das d iferen te- religjõ e- não
conduz a um co n h ecim en to sen ão na m edida em que alguém entra temporal-
m ente, m ediante a fé, ao cen tro m esm o da religião que se e -ta estudando"*.

tem poralm ente. Há tam bém que d ed ica r ao outro uma verdadeira atenção.
Para Sim one W eil, este é um dom e s s e n c ia l, gratuito e generoso: “ \ atenção
é a forma mais rara e m ais pura da g e n e ro sid a d e ".J

A atenção requer um esforço p articu lar de suspensão do pensam ento,


de esvaziam ento da m ente, de modo a d eixar o su jeito disponível ao m istério
que advém: a m ente deve esta r vazia, à espera, >em b u scar nada. mas
disposta a re ce b e r em su a verdade desnu d a o objeto que nela vai p e n e tra r".;
A am izade vem com p letar e sse quadro. Para Sim one, aqu eles que são cap a­
zes de am izade conseguem com todo o seu co ração in teressar-se pela “sorte
de um d esco n h ecid o ". E isto vale tam bém para as outras religiões.

“ Apud t)l MCOLA; DANESE. \bismos e ápices, p. 21 1.


W Eli., Wtente de Ik e u , p. 178.
Em carta a Joe Bousquet. com data de 13 de abril de 1042 - MARCHETO. Adriano (Ed.i.
Sim one Weil- J o e Bousquet. Corrispondenza. Milano: >E SRL. 1994. p. 13.

* W EIL t ttente d e Dieu, p. 93.

H7
'í •///-'//*' 1/ j 0 t- '/;

As diversas tradições religiosas, segundo Sim one. são en trela ça d a s por


“equivalências ocultas*" que delineiam a possibilid ad e de uma verdadeira
simpatia ínter-religiosa. Mas para eaptar essas eq u iv a lên cia s é necessário
trilhar o cam inho da profundidade. Não há corno p e rce b er a riqueza fia al-
lerídade sen/io através de um estreito contato. Sim one dizia qu e é “difícil
apreciar pelo olhar o sal>or e o valor nutritivo de um alim ento que nunca se
provouV" Ibrna-se imperativo para qualquer diálogo verdadeiro uma apro­
xim arão marcada pela disj>onibilidade de aprendizado: “|...| apropriar-se de
outras p o ssibilid ad es’. 0 encontro autêntico com o outro nfio se dá no árnhi-
lo da superfície, rrias da profundidade: -/» “aquele que rn n h c rc o segredo dos
eoracòes conheee também o segredo das d iferentes formas de fé” .

No umbral da Igreja
Simone Weil dizia que u cjue a mantinha deM inr ulada da adesão for­
mal a Igreja era o amor que ela alimentava “|>elas <oisas que estão fora do
í aisiiartism o visível’ hra uma jh- mu <Hjsa<ia na sua paixão jw las grandes
tradições, <omo .1 ( ír íc ía , o Kgito. a h 1. a China. Toda a beleza do mundo
a encantava e seduzia. Não eonscgum * nlecder e aeeitar o p lonamen-
to !nulí< ional da Igreja qu e dearonh« < ia oa v a lo r e s das diversas tradições
religiosas e mantmh.i-se (errad a na visgo d t que “fora da Igreja nâo há
salvarão hram lem pei mais difi< ei* j . da refl* o teolágiea sobre
o tema, que sá seriam dobrados rjormenfe n u n o C on cílio Vaticano
II I l (Hi2‘ I ^ m ). Já em P M I. quando >m ontruu |*da prim eira ve/ o Pailre
IV m ii, definia <1 sua posição como a de alguém que se encontra no “umbral
da Igreja {ou %rud dr I h phsr). 1 F.ssj j*»siçgo é <onfumadii na Corto o urn
ea cn la ao Padre t <niioiK i * m íf.\ í-rr! ' le 1*M2 Dtx ali qu e aua
voeaçâo é a de ser “cristã lora da Ig re ja ". N esvj :rla N m one m n lIrma Mia
adesão aos m isléno* da fé cristã, mas taml»ém * 3 dd n i c de aí ferir ao

lirtíi. ft 1 7?
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tl*íJ ji aj (UlKj\ IN IIlO V W nr UrU(trntr I oUiuirni’ (itruiMiuiO; \<
^ i \ L U w r ü Uh t n lif t r u z |i 14

11S
S im o n e W e i l u m a p a ix ã o s e m fr o n t eir a s

corpo d e d ou trinas estab elecid o pela Igreja. Elenca uma série de dificulda­
d es qu e para e la são irredutíveis e que a mantém distanciada de uma adesão
m ais form al. J á co m e ça a carta dizendo:

(...) Q uando leio o catecism o do concílio de Trento, dá-me a impressão


de qu e não tenho nada em comum com a religião ali exposta. Quando
leio o Novo Testam ento, os m ísticos, a liturgia, quando vejo celebrar
a m issa, sin to com alguma forma de certeza que essa fé é a minha ou,
m ais ex atam en te, que seria a minha sem a distância interposta entre ela
e mim p ela m inha im perfeição.w

Sim o n e retom a a mesma distinção entre a adesão aos mistérios da fé


cristã e a re cu sa a uma adesão formal â instituição Igreja em carta dirigida
a M. Sch u m an n cm 1942. Assevera que não estaria mentindo ao dizer que
no sentid o propriam ente etimológico afirma-se como católica, uma vez que
partilha rad icalm en te a ideia de um amor que preenche o universo e abraça
a totalidad e da criação . Diz ria carta:

D eclaro -m e totalm ente de acordo com os mistérios da fé cristã, com


uma e s p é c ie de adesão que, penso, convém só aos mistérios; adesão
qu e é amor, não afirmação. Pertenço certam ente a Cristo. Ou pelo me­
nos isso é o qu e quero crer. Permaneço, porém, fora da Igreja por difi­
cu ld ad es qu e temo irredutíveis, de ordem filosófica, concernentes não
aos próprios m istérios, mas às precisões com que ao longo dos séculos
a Ig reja acred itou dever circundar-lhes, sobretudo, nesse sentido, a uti­
liz a rã o das palavras an alhem a sit...4'1

Na visão de Sim one, a catolieidade do Cristianismo era só de direito e


n.lo de fato, uma vez que muita coisa dele estava excluído, como a vida que
pulsava em toda a im ensidão dos séculos passados, em tantos povos, raças
cu ltu ras, bem com o o dinamismo da vida profana. Argumenta que, assim
f*ortio tao C ristian ism o é católico de direito e não de fato”, prefere ser “mem­
bro da Ig reja d e d ireito e não de fato". Avança ainda mais, dizendo que essa

thid .p II
\pu»l P í T R E M K V T , Vidti </* Swutn<* P^r/. p. 003-064.

no
\.VV A

\\ww i si'i a \onlailt' ilc Deus. a ilc perm anecer lora. “ lam bem no liilum , sal
\o. qm ça. no momento tia m orto*V ’ O Padre Perrin, ao d ecid ir p u blicar, em
PM l). os texto* de Simone Weil que traduziam sua exp eriên cia m lonor. dá
a«' Iv\ix' o *ugesti\o iioiih' \ttcntc </«' Ihcu \h.s/Hlru tlc l)cus\. \ palavra csco -
lluda para o titulo ora uma das mais apreciadas por Sim one W eil, rollrlindo
bem sua situação com respeito ao (.ristianism o. \ expressão “esp ora” loi a
escolhida para espelhar o termo grego cn upomonc. utilizado no Evangelho
di' I ucas (B. lõ). Simone dizia que sem pre esteve no “umbral da Ig reja, sem
mo\or-so. quieta, cn upomonc (palavra muito mais bela que p a c iê n c ia !)” .

Desde o período de Marselha. a questão da p ossibilid ad e da salvação


tora da Igreja torna-se. para Sim one. uma questào cru cia l. Ponderava, em
carta ao Padre Perrin. que a atitude tradicional da Ig reja com respeito às
religiões rebaixava nào apenas as outras religiões, mas tam bém a própria
religião ca tó lica .1 Nada mais importante para ela do que a pureza de um
coração que invoca a Deus. independentem ente de filiação religiosa. Dizia
que. “sempre que um homem invocou com um coração puro a O síris. Dio-
nísio. krishna. Buda. o Tao etc., o Filho de Deus respondeu enviando-lhe o
Espírito Santo *.w Essa té de Simone tem respaldo em sua com preensão de
um Deus que é. sobretudo, amor. Em sua perspectiva, “a verdade essen cial
relativa a Deus é que ele é bom” .4<) E é bom muito antes de se r “ poderoso*’.
Daí também sua dificuldade com alguns textos do Antigo Testam ento, que
lera integralm ente já adulta em Paris e M arselha.50 A leitura da B íb lia pro-

WE IL \ttente d e Dieu. p. 52-53. Simone Weil sempre recusou o Batismo, apesar dos esforços
feitos ncs-e sentido pelo amigo Padre Perrin. Em livro de biografia de Simone Weil, a autora
G. Houdin. contrariando a posição de outros tantos biógrafos, assinala que um testemunho de
Simone Deitz. a melhor amiga de Simone na ocasião, confirmaria o seu Batismo em Londres,
ao final da \ida. quando ainda estava hospitalizada - Apud Dl NICOLA: DANESE. Abismos e
á p ice s, p. 102-103 e 105.

\\ EIL. Attente de Dieu. p. 54. Id.. Pensamientos desordenados, p. 55. Ver. ainda: PERRIN. Mon
dialogue ai ec Simone Wez7. p. 80 e 125.
WEIL. Attente de Dieu. p. 250.
WEIL. Lettre ò un religieux. p.33-34.
Ibid.. p. 15
Como assinala Bingemer, mesmo sendo Simone de tradição judaica, não foi introduzida no es­
tudo da Bíblia hebraic a na infância ou juventude. Ela fez essa leitura já adulta, tendo comprado
em Marxdha os dois \olume> da Bíblia do Rabinato Francês - BINGEMER. Sim one Weil. .4
força e a fraqueza do am or. p 142.

120
_____________________________________________________________________________ SiMQNF W e il , u m a p a ix ã o s e .*/ f p q n t e ip a s

v o co ii um 1111[ ><ic*I o negai i vo cm Simone. sobretudo em razão de passagens


do Anli^o leslam erilo que vinham acompanhadas de violênc ia: os massa­
cres c exterm ínios recorrentes, alguns fielen relacionados com a vontade de
I)eiis. * Mas havia lambam textos rio \ntigo testamento que ela admirava,
como alguns salm os, certas passagen> rio Livro de Isaías. o Cântico cJo-* Cân­
ticos e, sobretudo, o Livro de J ó .'2

A relação tensa de Sim one Weil com o JudaLm o é um tema complexo e


d elicad o, motivo de muita reflexão entre seus biografeis. Segundo Pétrement.
Sim one "n u n c a se sentiu atraída pelo Judaísm o". Ao reagir, em carta ao mi­
nistro da E d u cação , a um texto sobre o "Estatuto dos judeus", publicado em
outubro de 1 9 4 0 , ponderou: ” A tradição enstã. francesa, helénica. cs>a é a
minha tradição; a tradição ju d a ica me é estranha: nenhum texto legal pode
mudar is so ".'’3 Na visão de Bingemer. o repúdio à violência é o que melhor
traduz fc‘o sentim ento que está na base de todo o pensamento de Simone Weil
sobre o Ju d aísm o ” .54 Em seus escritos, Simone menciona o risco de idolatria
que acom panha a noção ju d a ica de "povo eleito *. Trata-se. a seu ver. de uma
noção que reitera a força de uma raça e nação, contrariando o conhecimento
verdadeiro de D eus e de sua universalidade.

A au ten ticid ad e, firmeza, paixão e abertura são traços que pontuam o


perfil profético de Sim one W eil. Nem todos, inielizmente. souberam captar
o a lc a n ce de sua ousadia vital e de seu impressionante testemunho. Morreu
muito jovem , aos 3 4 anos. tendo ainda um belo futuro no horizonte. Foi uma
pioneira em várias frentes. São alvissareiras suas reflexões sobre a com­
paixão ao outro, o com prom isso com os desventurados e a simpatia inter-

51 Pétrement comenta em sua biografia essa dificuldade de Simone com o "'Deus dos exércitos',
um Deus cruel que dá ordens de exterminar os cananeus etc." - PETREMEM. t ida de Simone
Weil, p. 634. FIORI, Sim one Weil, p. 274.
32 PERRIN. Mon d ialog u e avec Sim one Weil, p. 65.
33 PÉTREMENT, Vida d e Sim one Weil, p. 556.
31 BINGEMER, Sim one Weil. Afo r ç a e a fraqu eza do amor, p. 153. Em trabalho mais recente, essa
autora assinala que a relação de Simone Weil com o Judaísmo foi "bastante conflitiva". Inclina­
va-se a entender que a violência era parte constitutiva da religião judaica. Para Bingemer. tal
perspectiva reflete uma “parcialidade de visão”, que talvez no aprofundamento do diálogo com
o Padre Perrin pudesse ganhar um matiz diferenciado. Mas isso não ocorreu. Ver, a respeito:
BINGEMER (org.), Sim one Weil e o encontro entre as culturas. p. 236-237.
” WEIL, Lettre à un religieux, p. 19. Pensamientos desordenados , p. 40.

121
Mi a p i 'K’ 1 >. p o p iA im .o

re lig io s a . V n tccip o u m in im 's fu n d a m e n ta is q u r s o m e n te s e ia o ill»rn^viclnM


p ela Ig re ja t .« ilo lit'ii m m lo s m in s d e p o is . IM uilos d r sens la m p e jo s p r r in n iie -
iv in iiiiu lii out a h c rlo , d esa fian d o o tem po. () g e n e ro s o a m o r q u r r la .souhr
rx p iv s s a r Iflo hem no longo da \ ida fez d e la lim a a u lfm lir a “ a m ig a d r I ) m s M
S r u a m o r a Dens lo i lao p m lu n d o q u e s<‘ irra d io u p e la to ta lid a d e da e riu c fio
S im one d i/ ia q u e a m ira d a ú o q u o r r l l r l r urna das v e rd a d e s m a is c a p ita is do
(.ris tia n is m o . S onho, com o poucos, d ir ig ir sua m ira d a p a ra a “ p u re z a p e rfe i­
ta Isso se deve ao la to de e sta r se m p re a n im a d a p o r a m ig o s d e D e u s verda­
d e iro s . com o os m ístico s e os santos. N ada m a is im p o rta n te p a ra e la d o que
t'ssa am iza de g ra tu ita com os am ig os de D eus, os ú n ic o s a fa c u lta re m esse
e x e rc íc io a u te n tic o de m a n u te n çã o do o lh a r fix a d o in le n s a m e n le e m D e u s .5(1

Id.. A ite n le d e D ie u . p. 51.

122
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