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O livro de Jó

[Esta apostila é para o uso exclusivo dos estudantes da disciplina “Livros Sapienciais”. Em boa parte, ela resume
as pesquisas de Henri de Tournay. O livro de Jó: da provação à conversão, um longo processo. Petrópolis:
Vozes, 2001 (Comentário Bíblico AT)].

O livro de Jó é composto por 42 capítulos. No início e no final, encontram-se as duas


partes de uma narrativa poética (1,1-2,13; 42,7-17), a qual estabelece a trama para a história.
No meio, tem-se um longo diálogo poético, do qual participam Jó, Elifaz de Temã, Baldad de
Suás e Bofar de Naamat, os três amigos de Jó, Eliú, um quarto amigo de Jó (cap. 32-37),
assim como Iahweh (cap. 38-41).

Jól

Jó, personagem principal do livro com o mesmo nome, é uma figura de perfil lendário:
trata-se de um dono de imensos rebanhos e de um pai de muitos filhos, vistos, na cultura do
Antigo Israel, como herança de Iahweh (cf. SI 127,3). Além do mais, Jó é um estrangeiro de
Hus, do sul de Edom (cf. Gn 36,28; Lm 4,21). O nome Jó, em hebraico, talvez indique a
palavra inimigo, ou tenha haver com a palavra “convertido” (cf. awab em árabe).
Jò é um homem exemplar; ele é íntegro, ou seja, trata-se uma pessoa perfeita em si;
ele é reto, quer dizer, perfeito niun contexto relacional; ele teme a Deus e, com isso, é sábio;
e, sendo inteligente, ele afasta-se do mal |(cf. Jó 28,28). Mais ainda: Jó não aceita falhas em
sua casa, estando preocupado com a pureza ritual de seus filhos.
Capítulo 1 estabelece a trama do livro: cria-se uma oposição entre o elogio de Jó feito
por Deus e a dúvida do acusador que insinua que a famosa perfeição de Jó poderia significar
a falta de uma real gratuidade, pois, conforme o pensamento da retribuição, os benefícios de
Deus seriam a recompensa dos atos virtuosos do homem. Dessa forma, o homem pode deixar-
se conduzir por interesses próprios: pois, se fizer o bem, receberá a felicidade; se praticar o
mal, a infelicidade será a consequência. Ou seja, nasce a idéia do salário merecido. Deus
seria, então, um negociante, a fé uma simples relação comercial e a moral interesseira.
A palavra hebraica satã indica o adversário jurídico, respectivamente, o acusador. $
raiz verbal desta palavra significa ter rancor ou alimentar animosidade. A partir do século IV
a.C., a palavra toma-se um nome próprio. Na obra de Jô, o satã fica sujeito a Deus, fazendo
parte da corte celeste sendo ele um dos filhos de Deus. Deus, por sua vez, conserva a
iniciativa das coisas no processo de provação à qual Jó será submetido. O Satã não dispõe _de
nenhum poder autônomo. Ele só age no contexto de uma ação projetada ou permitida por
Deus. Não se fala mais dele nos diálogos (3,1-42,6) ou no epílogo (42,7-17). Com outras
palavras: Deus fica responsável em todo processo de provação de Jó.
A reação de Jó é surpreendente: como um sábio, reconhece que voltará nu à terra. Na
compreensão mitológica, a terra é comparada ao seio materno.

Jó 2

Deus triunfa pelo desempenho de seu servo, aproveitando tal sucesso para provocar
novamente seu adversário: Jó resistiu e saiu mais forte da provação à qual foi submetida. Ele
parece mais do que nunca o modelo de um homem religioso e virtuoso. Segue-se a aposta de
Satã: será que a fé de Jó dá lugar a mais radical gratuidade? Ele é capaz de despojar-se de sua
vida como aceitou perder seus bens?
Jó parece sofrer de uma inflamação: ele deixa sua tenda e instala-se fora do campo ou
da aldeia, sobre um montão de lixo. Resiste até mesmo às sugestões de sua mulher. De fato,
não diz que ela é uma doida, mas compara a linguagem dela àquela dos homens cujos
sofrimentos os torna loucos (cf. SI 14,1). O poeta parece querer retratar a agonia pela qual
passa a mulher de Jó,
Os três amigos de Jô, futuros interlocutores, mantêm, no início, um silencio admirável.
Diante do sofrimento do outro, de fato, não há outra coisa a fazer senão fechar a boca e saber
calar-se. Forma-se um contraste em relação à ilusão deles mesmo, quando se põem a falar.
Contudo, o drama ganhou em intensidade com o reforço da intriga.

Jó 2,12: Os três amigos de Jó espalharam pó sobre a cabeça.

Mulheres de luto em uma pintura de um túmulo egípcios


da 19. dinastia (1345-1200 a.C.).

Jó 3

Jó começa abrir a boca. Amaldiçoa o dia de seu nascimento. Não é mais paciente. Não
acredita mais que se deve aceitar de Deus os males como os bens. Grita de forma desesperada.
Pergunta radicalmente e deseja que pereça, de uma vez, o dia em que nasceu.
Jó 3 é um monólogo, pois Jó não faz nenhuma alusão aos amigos, os quais estão na
sua frente. Também pouco evoca Deus, nomeando-o apenas nos v. 4.23. Reforça-se, portanto,
a solidão de Jó.
O capítulo divide-se em três estrofes: v. 3-10 (inclusão = o momento de nascimento).
11-19 (início com a pergunta “por quê?”). 20-26 (outro reinicio com o pronome interrogativo
“por quê?”).
Na segunda estrofe, Jó contempla o mundo do sheol. Ali escaparia da agitação do
mundo presente para partilhar a calma com todos os mortos. No lugar dos mortos todos são
iguais. Portanto, Jó começa comungar, em seu grito, com o sofrimento do povo e a aflição da
humanidade, em especial, com os mais sofridos. Jó começa colocar seu caso em relação ao
sofrimento dos outros. Sua linguagem tomar-se-á, cada vez mais, profética.
Na terceira estrofe, após estender sua queixa à situação da humanidade, Jó volta a seu
próprio caso.

Jó 4-5

Elifaz de Temã é digno e doutoral, chefe de fila e porta-voz do grupo dos três amigos.
Afirma com insistência a doutrina da justiça retributiva.
Jó era o modelo de um homem piedoso e virtuoso. Isso serve a Elifaz de pretexto a
convidar Jó a se lembrar da tese essencial da justiça retributiva. Não é porque está deprimido,
ou seja, esgotado física e moralmente, que deve perder a cabeça, mas lembrar-se com que
força sabia ajudar os outros.
Sua retidão deveria ajudá-lo a lembrar-se da mais importante doutrina da teologia:
qual é o inocente que pereceu? Poderia ser que Jó não seja tão inocente assim? Elifaz
apresenta o princípio da justiça retributiva de um modo tão universal que ele se aplica até ao

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mundo dos animais. Além do mais, Elifaz apressa-se em fundamentar a doutrina da
retribuição numa revelação que ele teve numa noite (4,12-16).
A intervenção de Elifaz junta três argumentos complementares: a má sorte dos ímpios;
a felicidade dos justos; o fato de que nada é puro diante de Deus. Conforme essas normas da
doutrina da retribuição, tenta convencer Jó de sua culpabilidade.
[Veja como, em 4,17, “ser justo” na conduta corresponde ao “ser puro” ritual e moralmente].
Talvez Jó não tenha falta alguma segundo as normas humanas, mas, em comparação
com a santidade divina, nenhum homem pode pretender-se inocente. Deus nem confia nos
“anjos”, muita menos estaria disposto a considerar os homens inocentes. Essa opinião de
Elifaz, porém, contradiz o que foi dito por Deus no prólogo (cap. 1-2).
Elifaz aplica a Jó o essencial da teologia da retribuição, mas sem nomeá-lo
diretamente. Para isso, baseia-se em sua própria experiência, a fim de explicar a Jó de onde
vem o mal. Na verdade, Deus garantiria o processo de a insensatez e a imbecilidade não
chegar a um bom fim. Por mais que um insensato assuma importância, olhando para o futuro,
ele é amaldiçoado. Dessa forma, é o homem que gera sua própria pena.
Segue-se o conselho que Jó deve apelar a Deus. Compondo um hino maravilhoso (5,8-
17), Elifaz destaca o ideal sapiencial, no qual Deus é profundamente ligado à salvação dos
injustiçados e sofridos. Nesse sentido, quem é repreendido por Deus deve achar-se feliz.
Afinal, trata-se de uma provação provisória e transitória. Ela deve servir para melhorar o
servo de Deus.
No fim (5,18-27), vem a promessa universal do bem para todos os j ustos, a qual se
estende mesmo à natureza. Agora Elifaz fala diretamente a Jó, multiplicando as promessas em
favor deste último. A fórmula em v. 27 revela que tudo é fruto da experiência de. vida de
Elifaz e de suas pesquisas, o que indica uma certa auto-suficiência.

Jó 6-7

Estabelece-se um contraste entre a fria doutrina de Elifaz e o novo grito patético de Jó,
o qual já não agüenta mais.
Primeiramente (6,2-7), Jó explica por que sua aflição está sem medida e por que suas
palavras são descontroladas: é por que ps terrores de Deus o assediam. E a imensidade de sua
dor que legitima sua queixa. É nesse sentido que tudo se tomou insípido para o homem tão
aflito, a começar pelas palavras de Elifaz. ✓
Em 6,8-13, o tom volta a ser semelhante aofd§logo de Jó no capítulo 3: encontram-se
aqui o mesmo combate com o reino das trevas, os mesmos apelos e o mesmo desejo de morte
diante do vazio das consolações dos “amigos”. Se tudo terminasse agora, Jó teria ao menos o
consolo de não ter renegado as palavras de Deus (6,10). Jó insiste em dizer que está sem
força. O único apoio que pode encontrar é o nada. Cresce a irritação do protagonista.
Em seguida (6,14-21), Jó exprime energicamente sua decepção de não ter achado em
seus amigos a solidariedade que esperava. Nasce a idéia da traição. Aqui se usa uma imagem
bem oriental: confira as torrentes, ou seja, os wadis secos no deserto. Enfim, os amigos
estariam cheios de medo ao ver o sofrimento do companheiro (6,21), o que os leva a pensar na
culpa dele.
Com isso (6,22-30), explica-se agora a sensação de abandono de Jó: ele entende que
seus consoladores tentam aplicar a seu caso a doutrina da retribuição. Por isso, Jó pergunta:
Em que me equivoquei / pequei (6,24). Jô sente-se atingido em sua integridade, mas ele está
pronto a defendê-la a qualquer custo. Os amigos, por sua vez, teriam extrapolado os limites.
A trama do drama atinge assim um ponto forte. Por isso, a agitação cede agora lugar a
uma longa meditação (cap. 7). Jô começa a entender seu caso de aflição à situação de todo
homem que vive uma vida de corvéia ou que vive como bóia-fria (diarista) ou como escravo.

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Evocando a perspectiva da morte. Jó dirige-se agora diretamente a Deus (cf. 7,7-8: a
queixa trabalha com a segunda pessoa do singular!). De fato, a meditação de Jó (7,9-15)
elabora um pensamento sobre a condição .humana em geral que vai progressivamente tomar
forma de queixa. No entanto, mesmo com o fôlego entrecortado, Jó quer falar e lamentar-se.
No meio de suas palavras, Jó faz alusão ao antigo mito das forças dq caos domadas pelo deus
da ordem (cf. 7,12).
Após ter chegado ao cume do discurso (7,15), Jó volta a pedir a Deus que lhe deixe
pelo menos um momento de descanso, pois os dias do homem são poucos. Ele quer, pelo
menos agora, fazer umas perguntas essenciais a Deus. Para isso, promove uma paródia
retomando Salmo 8,5ss. No fim (7,21), Jó volta à idéia de sua exterminação próxima e
continua queixando-se diretamente com Deus.

Jó 8

Baldad toma menos precauções do que Elifaz para responder a Jó. Trata-se de um
homem severo e de um grande defensor da tradição. Em parte, parece ser menos agressivo do
que os outros dois interlocutores.
Baldad insiste no pensamento de que a justiça de Deus é implacável. Em seu discurso,
escolhe um exemplo que atinge Jó diretamente em sua aflição, justificando a morte dos filhos
deste último com uma suposta culpa deles contra Deus (com isso, faz-se uma referência ao
prólogo). Assim, retomando o ensino de Elifaz sobre a doutrina da retribuição, Baldad adota
uma linguagem terrível.
Somente via conversão, Jó pode ter esperança de escapar de seu destino.Dessa forma,
Baldad convida Jó a aproveitar o ensino da tradição para reconhecer a verdade da doutrina da
retribuição. Os velhos têm boas palavras em forma de provérbios (cf. v. 11-12), dos quais Jó
poderia tirar proveito.
Uma vez aplicado o ensino do provérbio, chega a seguinte verdade: os que esquecem a
Deus não têm mais futuro do que o papiro ou o junco. Assim desvanece a esperança do ímpio.
Contudo, as comparações de Baldad não param (cf. v. 14b-19). Ele quer inculcar a Jó
a doutrina da retribuição com todo o brilho de sua ciência.
Enfim, a exigência de que Jó se aproxime de Deus parece paradoxal, pois Jó continua
se julgando justo,. Dessa forma, o discurso de Baldad (v. 20-22) é contundente e desprovido
de tato para os ouvidos de um aflito inocente. Chega-se, cada vez mais, a uma defesa inumana
de uma determinada doutrina.

Jó 9-10

Nessa sua fala, Jó faz um grande passo em seu amadurecimento: ele chega
progressivamente a pretender uma confrontação com Deus. Exprime seu desejo de encontrar
em Deus um árbitro ou consolador.
Na primeira estrofe (9,2-13), Jó começa a reconhecer a alta superioridade de Deus.
Através de um hino, louva o poder de Deus na criação. Mostra que sabe, assim como Elifaz
(5,9 - 9,10), compor uma doxologia. Jó, porém, acrescenta uma dose de sarcasmo.
Introduzindo o motivo do Criador fiel, lembra, por um lado, que está bem de acordo com a
doutrina oficial. Mas, por outro lado, deixa pressentir a questão de como um tal Deus pode ser
tão hostil para com ele? No primeiro momento, Deus parece ser tão soberano e poderoso que
possa fazer tudo o que quer, sem precisar respeitar as possibilidades limitadas do ser humano.
A questão é: até onde vai o poder de Deus, o qual pegou Jó como uma presa?
Na segunda estrofe (9,14-24), a ironia e o sarcasmo de Jó crescem. Jó reprova agora
diretamente a Deus o fato de tê-lo colocado nessa situação insuportável. Além do mais, fica

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claro para Jó que não adianta recorrer à força, pois ele experimenta, em seu corpo, que Deus é
mais forte. Nem é possível recorrer ao tribunal, pois ninguém tem como convocar Deus. As
cartas parecem de estar lançadas de antemão. No entanto, Jó insiste na sua integridade e na
sua justiça, embora já esteja muito perturbado. De qualquer forma, porém, a violência de seu
sentimento de injustiça leva Jó a acusar Deus fortemente, arriscando sua própria vida. Em
contrapartida, Jó nunca termina o diálogo com Deus. Não obstante, Deus seria, então,
desumano, rindo do desespero do inocente. Com essas palavras, Jó rejeita radicalmente a
doutrina da retribuição, acusando a Deus de que tome partido dos juízes corruptos e dos
homens interessados na defesa de uma determinada doutrina, uma vez que a doutrina lhes é
útil para defender suas propriedades.
Nos v. 25-35, Jó queixa-se, outra vez, da brevidade de seus dias. Ele parece passar
agora pelo medo da morte. Revela-se toda a confusão pela qual passa Jó em seu sofrimento:
ele tenta esquecer seu sofrimento, mas apavora-se com os tormentos. Seu maior conflito é a
dúvida de Deus talvez não inocentá-lo, uma vez que continua mais certo do que nunca de sua
integridade.
Como não cair num profundo ceticismo? Aparentemente, existe uma irreversibilidade
da situação. Porém, no meio da crise mais forte, Jó chega a formular o desejo de encontrar um
juiz e conciliador (talvez o próprio Deus?). Assim Jó progride na direção da esperança.
Jó continua insistindo (10,1-12). Formula a esperança de que Deus não possa querer
perder uma criação sua. Se isso fosse o caso, Deus seria humano a ponto de ser capaz de
desprezar uma criação. Com isso, revela-se uma verdade paradoxal: Jó está na mão de Deus e
ninguém o tirará de lá. Mas Jó tenta atrair a atenção de Deus. Lembra-o que é sua criatura.
Deus o teria criado de forma genial e com muito carinho. Como Deus pode querer destruí-lo
agora sob pretexto de um pretenso pecado? Com isso, Jó insiste em perguntar como uma obra
de morte de sua parte poderia colocar em questão o grande plano de vida e de amor de Deus?
Em 10,13-22, percebe-se uma mudança de tom. A confusão infiltra-se no espírito de
Jó. Com uma boa dose de ironia, descreve o mesmo Deus como caçador em busca de sua
presa. Ressentido, chega a imaginar que Deus tramou contra ele e que o Deus criador se teria
transformado em alguém obcecado pelo pecado do homem e dele, em específico.
Portanto, a conjunção do sofrimento com a insinuação de culpabilidade por parte de
seus amigos levaram Jó a este ponto crítico. Assim lhe resta apenas pedir, novamente, um
pouco de tranqüilidade antes da morte (compare cap. 3).

Jóll
Sofar aparece como homem do povo, rústico e insolente. Além do mais, também ele é
um pregador da doutrina oficial.
Sofar chega a ser agressivo (11,1-5). Se Jó precisava um momento de tranqüilidade,
Sofar vem bloqueá-la. Com sarcasmo, ridiculariza a oração de Jó (v. 4). O pretenso
consolador de Jó transforma o desejo deste último de ter um árbitro em ameaça de uma
intervenção direta por parte de Deus, que chega a pedir conta das faltas de Jó.
Conforme os v. 7-12, faz parte da doutrina reconhecer a perfeição do Poderoso: ela é
mais alta, mais profunda, mais larga e mais longa. Assim fica claro que o Poderoso conhece
os homens falsos, sem ele precisar fazer esforço para discernir a iniqüidade. Jó deveria
aproveitar esse ensino, mas vale para=$ o dito formulado pelo V. 12: “É mais fácil uma mula
nascer de homem do que um tolo criar juízo”.
O jeito, por sua vez, q converter-se | ^ a não expor-se à justiça do Poderoso (v. 13-20).
Ainda que Jó não saiba exatamente qual foi seu pecado, ele deve reconhecer-se como
culpado. Assim reencontrará, em pouco tempo, sua felicidade.
Sofar retoma os argumentos de Elifaz e de Bildad, mas insiste mais sobre a
necessidade da retratação e da conversão.

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Jó 12 14

Com tom irônico e sarcástico, Jó^compara a opinião dos três amigos como o consenso
universal. Com isso, manifesta-se como um dissidente solitário, que tem coragem de .assumir
o que pensa.
Contra a doutrina da retribuição individual, ele tem um único argumento: sua própria
experiência e sua observação da história, na qual a injustiça, aparentemente, fica impune.
Trata-se de um desmentido forte contra a doutrina oficial.
Tem pessoas (12,5) que..pensam ter Deus em suas mãos, como prova seu mote
ridículo. Acham Deus suscetível ao uso mágico da idolatria. A isso, Jó responde com uma
paródia da harmonia natural (12,7-8) e, em seguinte, da história (12,17-25). Jó até parodia a
habilidade de seus amigos em louvar as. qualidades.de Deus. Deus, de fato, governa tudo e
tem a força de realizar o que decide. Mas o tremendo poder de Deus se manifesta tanto em sua
capacidade de construir quanto na sua capacidade de destruir.
Historicamente, parece nascer, nesse momento, um paralelismo entre a crise de. Jó e as
derrotas de Israel, a queda de Jerusalém e o exílio. Jó desafia seus amigos passando de sua
situação pessoal ao quadro sombrio dos acontecimentos da história. Afinal, ninguém fica
poupado do poder arbitrário de Deus?
Em capítulo 13, muda o rumo da fala de Jó. Ele ousa agora.desafiar Deus, correndo o
risco mortal de abrir um processo contra ele, sem intermediários, a fim de defender sua
integridade. Pois os amigos são para Jó apenas puros charlatões. Antes, porém, de dirigir-se a
Deus,_Jó incrimina seus pretensos consoladores: aquele do qual reconhecem, com razão, a
majestade é bem capaz de reprová-los com sinceridade (13,6-12).
Enfim, Jó exige silêncio (13,13), pois está com pressa de falar imediatamente com
Deus, assumindo o risco de. perder a. vida. Não obstante, Jó não quer morrer sem que sua
integridade seja reconhecida por Deus. Jó é tão perturbado que passa, sem mais nem menos,
da imagem de um Deus majestoso à imagem de.um Deus assassino (13,15). Deus pode querer
matá-lo, mas Jó está disposto a defender sua causa. É um momento crucial! Jó abriu um
processo e não tem medo, porque tem consciência. de_ seu direito: como íntegro pode ir ao
encontro de Deus.
Em 13,20-28, a dimensão jurídica do contexto fica bem visível. Jó pede a Deus que
este processo não chegue a arrasá-lo. Pede que Deus lhe poupe duas coisas: da tortura que está
sofrendo e do terror com que este julgamento se lhe apresenta. Supondo-se sempre, de forma
implícita, a doutrina da retribuição, Jó tenta, desesperadamente, descobrir a causa de sua
infelicidade, agarrando-se, mais do que nunca, à defesa de sua integridade. Que Deus seria
este, se realmente tivesse necessidade de assustar um ser tão inofensivo como ele?
Novamente, Jó retoma o argumento de sua fraqueza em seu favor.
No capítulo 14, Jó chega a meditar sobre a precariedade da vida e a inevitabilidade da
morte. A vida é curta e cheia de penas. Paradoxalmente, o homem foi criado com a missão de
reinar sobre a natureza, mas ele tem menos recursos de renová-se do que uma simples árvore.
O homem morre e fica inerte. Da irrevogabilidade da morte nasce., porém, mna esperança:
será que .a. comunhão com Deus será, definitivamente, rompida? O homem, simplesmente,
enfrentará o nada após sua morte? O texto hebraico de 14,12 pode ser traduzido da seguinte
forma: “Os que jazem não se levantarão, até os céus desaparecerem não se erguerão, até que
seu dono se lembra deles!”
No meio de sua aflição, Jó aventura-se ainda pensando num Deus que ama o homem
(14,13-17). Chega à convicção de que a comunhão com Deus não pode ser interrompida para
sempre. O amor mútuo teria por conseqüência o perdão do pecado, qualquer que este fosse.
No final (14,18-22), porém, Jó volta, por sua vez, seu pessimismo é forte.
Subitamente, predomina de novo q enigma do nada. É a alternância entre a esperança, a
confusão e a agitação que marca a pessoa aflita. Que luta para Jó.

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Jó 15

O tom de Elifaz agrava-se. Agora dispensa as fórmulas de cortesia de seu primeiro


discurso. Ridiculariza as falas de Jó: tudo não passaria de razões sem consistência (15,3) ou
de vento leste (15,2). O vento que vem do leste é quente e seca tudo. O discurso de Jó seria
uma palavra sem proveito. Mais grave ainda é que Jó rompe com o temor de Deus (15,4a). Jó
teria adotado a linguagem dos astutos (15,5).
Em 15,7-11, Elifaz insiste no pensamento que é difícil atingir a sabedoria, pois ela
vem de Deus. Este último, por sua vez, é grande e inacçessível. No outro lado, Jó não teria o
monopólio da sabedoria, em vez que Elifaz se associa ao ensinamento dos companheiros.
Enfim, Elifaz não sente vergonha de declarar seus argumentos moderados e não hesita em
dizer que suas palavras são consolações divinas (15,11). A doutrina defendida por ele teria a
sabedoria de Deus e a tradição de seu lado. Parece estar toda a autoridade do lado de Elifaz!
Segue, em 15,12-16, mais uma violenta acusação: Jó seria passional e guardaria
rancores contra Deus. Em vez disso, deveria aceitar seu destino como justa vontade de Deus,
mesmo resignando. Aliás, para Elifaz, a aflição de Jó deve vir de algum mal secreto, pois
ninguém é puro diante de Deus.
Baseando-se naquilo que viu nas tradições dos sábios, Elifaz retoma agora uma longa
exposição da doutrina tradicional acerca do destino infeliz dos ímpios, a qual não traz
novidades (15,17-30). É a teoria dos anciãos que o malvado será castigado nessa terra. Elifaz
refere-se até aos pais de Israel, ou seja, aos primeiros ocupantes da terra de Canaã (15,18s). A
teoria do destino infeliz vale até para o tirano (15,20-30): comportou-se como um herói
militar, desafiando a Deus. Mas, como conseqüência de seu orgulho, encontrar-se-á, mais
tarde, sozinho, pois criou o vazio em tomo de si. Resumindo: o homem ocasiona sua
infelicidade pelo seu pecado.
Em seu discurso, Elifaz é muito vivo, mas oferece poucas novidades. Procura fazer
entrar, à força, na cabeça de Jó uma doutrina bem tradicional, em vez de se preocupar com a
situação de extremo sofrimento de seu amigo (15,31-35). No fundo, a preocupação com a
doutrina abafa qualquer forma de compaixão.

Jó 16-17

Por primeiro, Jó dirige algumas palavras de reprovação a seus interlocutores (16,2-5).


São consoladores miseráveis (16,2b). Jó saberia falar de modo igual, se eles estivessem em
seu lugar.
Em seguida, Jó dirige uma queixa a Deus, embora esteja falado com os amigos (16,6-
17). Trata-se de palavras fortes de Jó. Ele compara Deus a uma fera que dilacera uma presa
sua. Em seu drama pessoal, Jó vê Deus como um verdadeiro caluniador (16,7) que está
pronto para acusá-lo, mentindo contra ele no processo. Se não for diretamente Deus, então é
algum inimigo de Jó. No entanto, em meio de sua aflição, Jó parece atribuir este papel a Deus,
o qual o teria escolhido como alvo. Mais ainda: Jó conta como foi surpreso pelo ataque
(16,12). Deus teria agido como um arqueiro, respectivamente, como um guerreiro agressivo.
A atitude de Jó frente a tantas tribulações foi pôr um saco como vestido de luto (cf.
lRs 21,27). Assim se vestia nas grandes tristezas. Também afundou sua fronte no pó. Mas
estes gestos de luto não abalaram sua convicção mais profunda: para ele, não existe uma
relação entre os males que está sofrendo e sua conduta.
Contudo, Jó chega a fazer um passo importante agora (16,18-22): no auge de sua
aflição, chega a clamar pelo auxílio de seu defensor (sua testemunha) nos céus. Sempre
quando passa pelos momentos mais cruciais de sua provação, ressurge em Jó o sentimento
que Deus não pode tê-lo abandonado. A testemunha é Deus? Deus proclamará sua inocência?
Então seria Deus, o defensor, contra Deus, o juiz? Os amigos vão achar tudo isso absurdo. De

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toda forma, encontra-se^ó uma atitude desmedida, a qual excede os limites da razão,
suscitada pelo intenso grau de sua aflição.
O grito de Jó é cada vez mais agudo, mas ele continua se dirigindo a Deus (17,1-5).
Novamente, o atingem uma profunda crise e desesperos dramáticos. A beira da morte, Jó está
num estado de profunda exaustão. Somente Deus ainda pode tomar sua defesa. Deus virou sua
única testemunha possível (17,3). Não há outro a quem recorrer, pois nenhum de seus amigos
quer se comprometer a ser seu fiador ou seu defensor. A situação é dramática.
Nessa situação tão aguda, Jó pensa que já tenha se tornado a fábula dos povos ou um
objeto de.sátira (17,6-10). Uns se assustarão ao vê-lo, mas o justo persistirá em seu caminho.
Jó, por sua vez, volta a sua queixa (17,11-16): manifesta como seus sofrimentos o
aproximam do mundo da morte. Está à beira do desespero, ou seja, às portas do túmulo. Não
espera mais nada da vida. Já sente o Sheol. Mas Jó não deixa de ter humor prngMt, quando
imagina sua convivência com os vermes na casa do pó. Jó está agitado. No entanto, Jó chegou
da acusação proferida contra Deus à imploração e da agressividade ao apelo. Trata-se de
alguém quejtenta conviver com suas infelicidades, enumerando-as uma por uma.

Jó 18

A reação de Baldad é violenta: revela o imobilismo de alguém que se contenta em


repetir uma doutrina tradicional contra um Jó que adentrajnoyqs caminhos teológicos. Baldad
toma o público como testemunha contra a insolência de Jó (18,1), pois Jó permitiria a
contestar a teologia sadia da doutrina da retribuição.
A preocupação imediata de Baldad é retomar o tema geral sobre a infelicidade dos
ímpios e dos maus (18,5-21), a qual Jó teria contestado com demasiada facilidade. Para
Baldad, é Jó - e não Deus! - que provoca a ruína dele. Os seus próprios projetos o fizeram
tropeçar. Sua prosperidade no passado deve esconderterrores, os quais agora o roem.
Baldad, sem nenhuma compaixão pela aflição tão profunda de Jó, continua
desenvolver impassivelmente o quadro correspondente à tese da infelicidade do injusto. E a
descrição toma-se, cada vez mais, sombria. O primogênito da morte (talvez a peste, cf. v. 14)
e o rei dos terrores, ou seja, o chefe do mundo infernal (o Nergal dos babilônios ou o Moloc
dos cananeus), entram em cena. Trata-se da morte do maldoso: quando desaparecer, não
ficará nenhum vestígio de sua presença. Um outro ocupará seu lugar, após este ter sido
desinfetado com enxofre.

Jó 19

Surpreendentemente, Jó ainda tem forças para pensar novos caminhos para o futuro
dos justos, enquanto seus interlocutores manifestam sempre mais obstinação em defender uma
determinada doutrina.
Jó queixa-se, por primeiro, da dor que sente por causa das palavras de seus amigos
(19,2-5), tocando sem mias nem menos no ponto nevrálgico da questão: Se eu errei, o. erro é
meu. Ou seja, os outros não podem pretender crescer às custas dele. E mais uma vez com
Deus que Jó quer discutir seu direito, pois, supostamente, Deus violentou seu direito (19,6).
Essa acusação Deus responderá em 40,8.
Jó continua lamentando-se (19,7-12). Sente-se abandonado por Deus, pois não
consegue obter uma resposta. Mais ainda: sente-se vítima de um movimento de agressão
muito forte da parte de Deus, pois este último estaria assaltando-o.
O assalto divino toma progressivamente a forma de um isolamento e de um abandono
insuportável (19,13-20). Jó dá uma lista impressionante de pessoas que Deus eliminou de sua
companhia. De fato, quando os íntimos e confidentes se transformam em adversários, atinge-

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se o auge da aflição. A esta perda junta-se ainda o efeito físico de uma doença que rói a
pessoa por dentro. Os ossos de Jó aparecem sob sua pele.
Nesse desespero todo, Jó, por sua vez, dirige aos amigos uma súplica.patética, ou seja,
um grito trágico de socorro (19,21-22). E, de forma paradoxal, no momento em,que está no
chão, Jó tem força para fazer ouvir suas mais fortes palavras de esperança (19,23-29). Sabe
que alguém está pronto para tomar sua defesa. Espera no apoio de um defensor nos céus.
Declara que Deus defenderia sua honra. Jó já tinha pensado na figura de um árbitro (9,33) ou,
mais tarde, numa testemunha nos céus (16,19). Agora pensa num defensor vivo (19,25). Este
deve ser Deus. Jó encontra, dessa forma, no meio de sua tribulação, sua fé no Deus vivo.
Todavia, oparadoxo permanece total: para Jó, Deus é simultaneamente testemunha a
favor dele e testemunha contra ele, ou seja, seu perseguidor e seu defensor. Jó vai a Deus
apesar de Deus. O caminho ainda será longo. Decisivo, porém, é saber qual será a última
palavra de Deus.

Jó 20

Parece que Sofer.se. sinta insultado pelo o fato de Jó pôr em questão a doutrina da
retribuição, tão defendida por ele e seus dois amigos (20,2-3).
O essencial dessa doutrina se resume na4'felicidade dos ímpios. E curioso que Sofar
julgue necessário desenvolverj} tema novamente, criando contrastes impressionantes: tudo
para marcar a diferença enorme entre o sucesso atual dos malvados e a sorte fatal que estes
conhecerão dentro de muito pouco tempo. No entanto, 19,10.15.18-21 trazem um argumento
novo: o malvado é descrito como alguém que pratica a injustiça, na esperança de aumentar
âM'fortuna. Trata-se da injustiça^soçiai, quando o rico explora, com toda a força, o pobre.
Prevê-se que há de se restituir os bens dos despojados à sociedade e, particularmente, aos
pobres. O malvado, por sua vez, será apanhado na armadilha de uma verocidade sempre
maior, a qual ele consegue controlar sempre menos.
Percebe-se aonde Sofar quer chegar: em réplica à pretensão de Jó de tomar a terra
como aliada e de reivindicar por testemunha os céus, Sofar conclui que terra e céus se unem
contra os ímpios, representando a vontade de Deus. Outra vez, Sofar está preocupado apenas
com sua doutrina e seus interesses próprios. Não permite que Jó o questione com sua
experiência de vida.

Jó 21

Jó desmonta, mais uma vez, as pretensas consolações dos amigos, mostrando o lado
inaceitável de seus argumentos. Em vez de se queixar de sua.própria aflição, Jó ainda tem
força de restabelecer a verdade. Em vez de falar de sua própria integridade, acha agora mais
importante clamar com os pobres contra a felicidade insolente e insultante dos maus, que não
é de tão breve duração como querem dizer os defensores da doutrina de retribuição, uma vez
que estes últimos, muitas vezes, estão atados com os maldosos querendo a permanência da
estrutura atual. Jó comunga, a partir de agora, com a sorte dos explorados, ganhando seu
discurso q tom dos.profetas.
Jó promove agora uma descrição da felicidade dos maus (21,7), que se toma uma
antítese à tese defendida pelos amigos. Se a tese dos amigos fosse a verdade, os ímpios não
deveriam nem mesmo viver. No entanto, eles envelhecem e até crescem em seu poder. A
felicidade dos maus verifica-se ainda mais no fato de que eles julgam inútil a oração ou a
dependência em relação a Deus (21,14-15). Baldad tinha afirmado que a luz dos ímpios se
apagará (18,5-6). Jó, por sua vez, pergunta com ironia: “Quantas vezes isso acontece?”
(21,17).

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Mais ainda: Jó ataca o princípio da hereditariedade (21,19-22), pois os amigos
recorrem a tal argumento quando são obrigados a constatar que o mau, muitas vezes, prospera
em sua vida. Para Jó, a justiça divina deveria atingir o próprio culpado. Pois o que importa ao
mau a sorte de sua posteridade?
Para completar a contestação da doutrina dos amigos, Jó introduz o tema da morte
(21,23-26). A morte não gratifica necessariamente mais a uns do que a outros, dando mais ou
menos tempo de vida, mas a morte atinge indistintamente todos os seres humanos.
A partir de 21,27, Jó retoma o contato direto com seus interlocutores. Para eles, Jó é
um nobre que enriqueceu na base da injustiça. Conforme sua doutrina, perderá sua casa.
Assim podem pegá-la para si (21,28). Jó faz referência à experiência dos viajantes (21,29): a
sabedoria deles talvez seja mais rica do que a doutrina tradicional dos amigos. Pois também
os viajantes demonstrariam rapidamente que a má sorte não está automaticamente com os
maus e a felicidade com os justos.
Resultado: a experiência de vida parece desmentir a doutrina sólida da retribuição.
Fica a seguinte pergunta: até que ponto Deus garante realmente o funcionamento da justiça?

Jó 22

Elifaz traz uma intervenção com muito sarcasmo. Faz perguntas terríveis, acusando Jó
agora diretamente de determinados crimes.
Em „22,2-4, Elifaz insiste, por primeiro, no pensamento de que Deus não precise do
herói cheio de força nem do sábio dotado de prudência. Deus nãi tira nenhuma vantagem da
conduta do homem. Assim Elifaz acentua o abismo que separa o homem de Deus. Portanto,
seria melhor para Jó não atribuir a Deus a responsabilidade da felicidade dos malvados e o
sofrimento dos inocentes. Deus ordena ao homem ser virtuoso, mas Deus não busca seu
próprio interesse: trata-se apenas do interesse do homem (moral utilitarista!).
Mas talvez Deus não chame Jó para um julgamento por causa de sua piedade, porém,
por causa de seus crimes (22,5-11). Pois Deus não o castigaria por suas virtudes! Jó sofre,
porque é culpado! O amigo não hesita nem mesmo em contar mentiras grosseiras para acusar
Jó de crimes que não cometeu. É uma tática perversa por parte de Elifaz, a fim de defender
sua doutrina.
Segundo Elifaz (22,12-20), Jó projetou sobre Deus uma cegueira. No entanto, elçe
mesmo é agora vítima da cegueira (cf. 22,11). Elifaz põe na boca de Jó a linguagem dos maus,
os quais acham que Deus não saberia de nada. Além do mais, Elifaz permite-se a convidar a
Jó a não pegar a estrada dos antigos ímpios, já que poderia se lembrar das catástrofes das
quais foram vítimas.
Como Jó, para Elifaz, manifesta que é culpado através das aflições que sofre (22,21-
30), ele terá de se converter e reconciliar com Deus, se quiser gozar de novo da felicidade (=
teologia da retribuição). Contudo, essa maneira de pensar faz de Deus um negociante e faz da
espiritualidade uma relação comercial. Trata-se da religião da prosperidade dos justos. Resta
saber quem são! Como se Jó não estivesse já bastante humilhado no fundo da provação de
onde ele se debate com Deus!
A distância tomou-se imensa entre o doutor da moral utilitária, a qual se contenta em
lembrar certos princípios de uma determinada doutrina, e a experiência pessoal de Jó, o qual
se sente injustiçado.

Jó 23-24

Jó não responde diretamente a seu amigo grosseiro, o qual o acusa falsamente, mas vai
à pergunta que mexe mais fortemente com ele: por que Deus parece se tomar ausente no

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momento da provação? Logo em seguida, Jó estenderá seu caso à situação gritante dos outros
oprimidos ao lado dele (cap. 24). Não quer parar de protestar contra um Deus que o coloca ou
permite esta crise dele e, ao mesmo tempo, fica ausente e impassível diante da aflição dele!
O desejo de Jó é, portanto, ir ao encontro de Deus (23,2-9) e mostrar a Deus seus
argumentos. Para Jó, essa audiência não exigiria muitos esforços por parte de Deus, pois Deus
somente teria que escuta-lo. Deus reconheceria em seu adversário um homem reto. No
entanto, ao menos, por enquanto, Jó sente apenas a ausência de Deus. E isso é extremamente
trágico para Jó que precisa tanto de um juiz que possa reconhecer sua integridade.
Contudo, Jó continua marcando sua incompreensão frente à ausência de Deus, uma
vez que sempre amou o projeto dele (Elifaz tinha afirmado o contrário em 22,5-11!). Enfim,
Jó revela o espanto que a falta de mais palavras por parte de Deus lhe causa.
O capítulo 24 traz agora uma abrangente análise poética da sociedade. Jó descreve,
detalhadamente, o destino dos mais pobres, os quais estão sofrendo, assim como ele, um fim
trágico e irônico.

[Infelizmente, a Bíblia de Jerusalém não guarda a seqüência original dos versículos e não insiste numa tradução
mais literal. Portanto, apresento aqui minha própria tradução, a qual será publicada, em breve, em meu novo
livro: Grenzer, Matthias, Análise poética da sociedade. Um estudo de Jó 24. São Paulo: Paulinas, 2005.]

V. la Por que não foram guardados tempos pelo Todo-Poderoso,


V. lb e (por que) seus conhecedores não contemplaram seus dias?

Jó lamenta a ausência de Deus, ou seja, a falta da intervenção dele como juiz. Como se vê
logo em seguida, Jó afirma isso em relação à realidade dos pobres.
V. 2a Limites (de terrenos) movem,
V. 2b o rebanho roubaram e apascentaram.
V. 3a O jumento dos órfãos j\&xLQra*y\.
V. 3b e penhoram o boi da viúva.
V. 4a desviam os pobres do caminho,
V. 4b juntamente, os oprimidos da teira foram escondidos.

Tem-se aqui uma lista de atos violentos contra os pobres. Estes últimos perdem seus bens, ou
seja, suas terras e seus rebanhos (v. 2). Os que mereceriam a proteção de toda a sociedade,
são roubados até perder seus últimos pertences (v. 3). Mais ainda, os pobres parecem ser
afastados do caminho rumo ao tribunal (?), pois o verbo “empurrar” (v. 4a), em hebraico,
pode significar também “infringir”, no sentido da “infração do direito”. Assim o verbo é
usado em diversos textos jurídicos. Enfim, os oprimidos chegam a ser escondidos. São tirados
e afastados da vida pública.
V. 5a Eis, igual aos asnos selvagens no deserto
saíram, ao trabalho deles, como os que procuram por alimento,
V. 5b a estepe é para cada um pão para osjovens.
V. 6a Ceifam num campo, sem que este pertença àquele,
V. 6b na vinha do ímpio colhem o tardio.
V. 7a Dormem nus, sem roupa,
V. 7b não há um cobertor contra o frio.
V. 8a Com chuva das montanhas molham-se,
V. 8b sem proteção, abraçaram a rocha.
V. 9a Roubam o órfão do peito materno
V. 9b e a criancinha do oprimido penhoram.
V. 10a Andaram nus, sem roupa,
V. 10b e famintos carregaram o feixe.
V. 11a Entre os muros, espremem (o azeite),
V. 1lb pisaram os largares eficaram sedentos.
V. 12a Longe da cidade, gemem os mortos,
V. 12b e a vida dos feridos grita por socorro.

V. 12c Deus, porém, na coloca o chocante (em seu coração).

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O segundo trecho de Jó 24 descreve a luta dos pobres por sua sobrevivência. Trabalhando em
terras que não são mais deles, nus, famintos e sedentos, até chegando a serem violentos (V. 9),
eles gritam por socorro, porém, sentindo a ausência de Deus em suas vidas (V. 12c).

V. 13a Aqueles estão entre os opositores da luz!


V. 13b Não se familiarizaram com seus caminhos,
V. 13c nem ficaram em seus trilhos.
V. 14a Durante a alvorada, levanta o assassino,
V. 14b ele mata o oprimido e o pobre.
V. 14c Durante a noite, toma-se ladrão.
V. 15a O olho do adúltero observa o crepúsculo,
V. 15b dizendo: “Ninguém me verá! ”. wu. j
V. 15c Ele cobre o rosto com uma máscara.
V. 16a As escuras, arrombou as casas,
V. 16b durante o dia, esconderam-se,
V. 16c não conheceram a luz.
V. 17a Para eles, a manhã é igual à escuridão,
V. 17b pois se familiarizaram com a escuridão.

Nesse terceiro trecho de Jó 24, os violentos são descritos como desconhecedores da ordem de
Deus e infratores do decálogo, pois são assassinos, ladrões e adúlteros.

V. 1Ba Ele é rápido sobre as águas.


V. 1Bb Amaldiçoada é sua parcela na terra.
V. 18c Não toma mais o caminho das vinhas.
V. 19a Terra seca e calor roubam as águas da neve,
V. 19b o sheol os que pecaram.
V. 20a O ventre materno o esquece.
V. 20b O verme o achou doce.
V. 20c Ele não é mais lembrado.
V. 20d E a maldade é quebrada como uma árvore.
V. 21a Aquele que pastoreia a estéril que não dá ã luz,
e a viúva que ninguém trata bondosamente.
V. 22a que arrebata os fortes com sua força,
V. 22b levanta-se e na confia nos vivos.
V. 23 a Mesmo que alguém lhe dê algo por segurança e queira apoiar-sê,
V. 23b seus olhos estão sobre os caminhos deles.
V. 24a Quando se ergueram um pouco, ele não está mais.
V. 24b Foram abaixados como todos que se fecham.
V. 24c São cortados como a cabeça da espiga.

V. 25a Não é assim?


V. 25b Quem me desmentirá e coloca ao nada minha fala?

Para a interpretação desse último trecho, leia: Matthias Grenzer, A ironia do fim (Jó 24,18-
24). Em: Revista de Cultura Teológica, n. 26,1999, p. 45-58.

Jó 25

Jó acaba de queixar-se da ausência de Deus em relação a ele e aos pobres e Baldad


celebra as perfeições de Deus, cantando um hino no estilo clássico da doxologia. Em vez de
opor-se aos argumentos de Jó ou, simplesmente, levá-lo ao sério, julga necessário elevar o
nível. Se contenta em insistir nas perfeições divinas que são insondáveis: A Deus todo
domínio! (V. 2). Assim Deus é elevado ao máximo para que o homem seja tanto mais
rebaixado. Como essa teologia tão ambígua poderia ajudar a Jó e aos pobres que se debatem
para encontrar uma saída para a sua situação de desespero?

12
Jó 26-28

Jó queixa-se agora da falta de sensibilidade de seus amigos (26,2-4). Embora Jó não


tenha nada contra as celebrações piedosas da soberania e grandeza de Deus - também ele o
fará em breve (cap. 28) -, ele pergunta o que isso ajuda a uma pessoa aflita que precisaria, por
primeiro, de alguma expressão de solidariedade humana.
Se Baldad olhou para a majestade de Deus nos céus, Jó tematiza a força de Deus no
Sheol. Depois reconhece também que Deus reina nos céus. Além do mais, dominaria as forças
caóticas, assim como Raab, o dragão do abismo. O homem, porém, apenas parece chegar a
um conhecimento periférico de Deus (26,14). Com isso, Jó expressa sua saudade e
necessidade de conhecer Deus por mais perto.
Contudo, Jó recusa radicalmente as acusações de seus amigos, proferindo uma
afirmação solene de sua inocência (27,2-6). Jó já tinha convocado Deus para um debate sobre
sua justiça, mas Deus se subtraiu a este pedido até agora. Todavia, lhe conservou a vida.
Portanto, com novo alento, dirige-se a seus amigos para firmar e agarrar-se, mais do que
nunca, a sua inocência e justiça. Jó vê-se provado e afligido, mas ele teria ficado firme. Assim
é o verdadeiro servo de Deus.
Segue a declaração de maldição contra o adversário para mostrar de qual lado ele
está (27,7-10). Quer dizer, Jó declara-se pessoalmente oposto ao malvado, pois como tinha
afirmado antes (13,16), o ímpio não ousaria comparecer diante de Deus. Portanto, de jeito
nenhum pode identificar-se com os criminosos. Indiretamente, Jó parece desmentir os amigos,
os quais pedem de Jó uma aproximação a Deus. Isso somente é possível ao justo. Eles, porém,
acham Jó culpado.
Dirigindo-se ao público (27,11-12), Jó parece citar agora a doutrina sobre a má sorte
dos malfeitores, tão defendida pelos amigos. Também ele partilha a esperança de que Deus
garanta a justiça e, com isso, a ordem nesse mundo. Justamente na base dessa fé, ele espera
também a salvação para si, uma vez que defende sua inocência e se vê entre os justos.
No capítulo 28, Jó louva a soberania de Deus, assim como os amigos já o tinham
feito várias vezes. No final, define a sabedoria como temor de Deus e a inteligência como
saber manter se longe do mal (28,28).

Jó 29-31

Jó 29-31 desempenham uma importante função de transição, pois são um longo


monólogo que forma simetria com Jó 3. Jó não se dirige mais aos interlocutores, mas abre
perspectiva em direção a seu encontro com Deus. Esse monólogo em que Jó desafia Deus a
dar-lhe uma resposta devolve à trama narrativa do livro toda sua intensidade.
É interessante ver como Jó ainda encontra forças para cantar a beleza de seu passado
(29,2-6). Trata-se, de fato, de um paraíso perdido. Mais ainda: a felicidade do passado é capaz
de. aumentar em dobre qs males dq presente.
Segue uma bela descrição da aprovação dos homens que Jó conhecia (29,7-11).
Realça-se a qualidade de Jó como juiz, pois na porta da cidade se tratavam os assuntos
cívicos. Lá se estabelecia o tribunal. Jó gozava de alta consideração Idosos e altos dignitários
testemunham seu respeito por ele.
Jó chega a opor-se às acusações feitas por Elifaz (29,12-17; cf. 22,5-9). Se todos
podiam ouvir a homenagem que a sociedade prestava a Jó, então é porque, na prática, ele se
conformava às exigências do direito e da.justiça para as pessoas mais necessitadas ao redor
dele. Ou seja: ele vestiu uma qualidade (v. 14: o direito e a justiça) e foi vestida por ela.
Enfim, a felicidade de Jó suscitava as bênçãos {a bênção do moribundol), porque ele se
conciliava com a beneficência e a solidariedade.

13
Como um homem justo, Jó esperava, conforme a doutrina da retribuição, viver até
uma idade avançada, no meio de seus filhos (29,18-20). Será que Jó estava seguro demais em
relação a sua própria integridade?
Em 29,21-25, descreve-se, outra vez, o respeito com que Jó foi honrado. Era o chefe
incontestado de sua comunidade. Dessa forma, a trama do livro entende-se melhor: a defesa
da própria integridade, de fato, tinha que ter muita importância para Jó.

Após ter lembrado o passado feliz, Jó expõe agora a desolação e a aflição presentes
(veja a palavra agora [v. 1.9.16] que marca o ritmo de Jó 30). No tempo da prosperidade, Jó
esperava atingir a maturidade em plena posse de suas faculdades e sendo respeitado por todos
(30,1-8). Mas agora homens mais jovens do que ele e de origem mais do que duvidosa
zombam dele em sua queda. De uma certa forma, o trecho parece harmonizar-se mal com a
delicadeza de sentimentos de que Jó dá provas em relação aos pobres. Será que se trata de
jovens (30,1) recentemente enrequecidos?
Contudo, os homens fazem de Jó seu alvo (30,9-15), pois eles se julgam do lado de
Deus, interpretando a miséria do herói como um resultado da maldição divina.
O tom cresce! A moral de Jó está abatida. Deus parece agarrar Jó com violência
(30,16-31). Jó passa da lamentação sobre Deus à lamentação a Deus. Se queixa,diretamente a
Deus. No sofrimento extremo, Jó se ressente de que Deus fique mudo. Parece até que Deus
esteja brincando com Jó (30,22).
Diante do risco de morte, Jó tenta buscar os motivos de sua aflição (30,24ss). Mas a
resposta é negativa, para ele. Ele que tratou os pobres com compaixão. A boa conduta de Jó
permitia esperar uma sorte melhor. De qualquer forma, os instrumentos de alegria foram
trocados pelos instrumentos de luto (30,31). Jó foi até o fim de sua queixa.

A trama narrativa da integridade continua tendo sua função importante na obra. Jó


obstina-se em defender sua inocência (cap. 31). Ele está convencido de que pode pedir uma
audiência a seu juiz, na certeza de que sua causa está ganha. O texto é marcado pelo seguinte
ritmo: Se fiz isso (...), que aconteça tal coisa comigol
Jó declara que evitou mesmo a oportunidade de pecar, mas Deus parece ignorar suas
boas ações. O justo tomou-se vítima (31 «1-4). Jó pede que Deus avalie com justiça sua
conduta, pois ele teria ficado no caminho que Deus indicou aos homens (31,5-8; cf. Dt
9,12.16).
No exame de consciência, Jó entra na questão do adultério (31,9-12). Fala-se da
esposa do próximo. Na moralidade antiga, considera-se o adultério, especialmente, como uma
infração ao direito da propriedade. Jó reclama para si o direito da talião.
Jó tem a idéia de que os direitos do escravo e da serva (31,13-15) estão baseados em
uma teologia da criação. O escravo e seu dono são iguais na concepção e nq nascimento. Jó
coloca assim a fraternidade humana sobre uma base mais ampla e lhe descobre uma dimensão
universal.Além do mais, Jó praticou a justiça também em sua casa (31,16-22). Jó diz nem ter
esperado a idade madura para ajudar o órfão e a viúva. Novamente, se fala da benção dos
pobres (v. 20).
A consciência social de Jó é constantemente despertada por sua preocupação de
conformar-se com a vontade de Deus (cf. 31,14.23ss). É reaímente o temor de Deus e não o
amor às riquezas que dita a conduta de Jó. Ele sabe que o ouro é divinizado quando representa
para homem sua última esperança. Jó é um rico justo! Entra o tema da idolatria (31,26-28): Jó
defende a exclusividade do Deus de Israel. Mais ainda: Jó distingue-se ao recusar-se a sentir
alegria com a infelicidade dos malvados (31,29-30), pois as leis mosaicas exigem até ajudar o
inimigo (cf. Ex 23,4s). Enfim, Jó não desejou a morte a ninguém. Além disso, Jó honrou o
compromisso da hospitalidade (31,31-32). Não só as pessoas que viveram perto de Jó, mas
também os estrangeiros gozaram_.de sua ajuda. Contudo, Jó não se deixou influenciar pela
opinião pública (31,33-34).

14
Jó formula agora seu último desejo: pede a Deus que lhe responda! Pois Jó está certo
do caráter injustificado das acusações que as pessoas poderiam escrever contra ele (31,35-40).
Com isso, o leitor ouviu as palavras de um grande sofredor: intempestivas e dignas, potadoras
de sua esperança paradoxal. São, porventura, as palavras de um justo? Somente Deus poderá
dizê-lo!

Jó 31-37

De repente, entra na discussão alguém desconhecido: Eliú! Esse se apresenta como


um amigo mais jovem, que, até agora, não tinha coragem de participar do diálogo. Entretanto,
Eliú não traz uma colaboração essencialmente nova. Apenas repete, com muita veemência, a
doutrina tão defendida pelos outros amigos de Jó. Jó não responde mais a Eliú, mas será Deus
quem pegará, após o longo monólogo desse novo interlocutor, a palavra, a fim de dar a
resposta esperada, após as últimas palavras de Jó.

Jó 38-41

Antes de iniciar a interpretação da resposta de Deus a Jó, precisa ser dito que,
humanamente falando - ou seja, a partir da razão era impossível dar uma resposta lógica a
Jó. Isso vale para o autor do livro. Pois uma resposta plenamente satisfatória transcendería a
capacidade do pensamento humano. O irracional (= o sofrimento do justo) não pode ser
explicado de forma racional. De fato, o que se dá como resposta no final do livro de Jó é um
conjunto de imagens. A compreensão dessas imagens, por sua vez, é decisiva.
As perguntas de Iahweh levam a uma disputa, favorecendo uma controvérsia. A fala
de Deus critica, por primeiro (38,2-3), a competência de Jó em criticar o plano do soberano
para o mundo. Jó negou a existência de um plano para esse mundo, o qual faça sentido. A fala
de Iahweh tenta corrigir essa impressão de Jó. O mundo como um todo não seria apenas um
caos.
Assim Deus convida Jó (38,4-7), através de perguntas retóricas, a contemplar a
maravilha do momento em que foi fixada a terra. Em seguida (38,8-11), Iahweh anuncia a
domesticação do mar como sua obra. No mundo antigo, o mar simboliza o caos. Deus lhe
colocou uma fronteira. Portanto, Deus não apenas fundou o cosmos, mas também limitou o
caos.
Mais ainda: no Antigo Oriente, o deus do sol empurra as forças caóticas, a cada
manhã, para voltarem aos seus lugares. Pois é a durante a noite que atuam os assassinos, os
ladrões e os adúlteros. O livro de Jó não contesta essa impressão do mundo, mas pede ver
também que a ordem está sendo restabelecida a todo dia (38,12-15). E isso não é a obra de Jó.
Trata-se de uma visão muito dinâmica do mundo.
Para Jó, os espaços debaixo da terra e nos céus são desconhecidos (cf. 38,16-24).
Mesmo assim, as saídas ordenadas e organizadas de luzes e trevas, chuva e neve, mostram que
existe uma ordem no universo. Em 38,25-27, o texto volta à descrição de como Deus cuida do
mundo em que vivemos. A imagem da irrigação do deserto indica que é Deus quem consegue
transformar o caos (= o deserto seco) em terra cultivável. Depois (38,28-30), mais uma vez,
acentua-se o milagre da origem da chuva, o qual permite a vida.
Em 38,31-35, o texto insiste, novamente, na refutação da competência de Jó em
avaliar e negar o plano de Deus para o universo. Iahweh é apresentado como pastor das
estrelas, sendo ele o soberano nos céus. A mesma coisa vale em relação aos raios. E outra vez
apresenta-se a sabedoria do criador (38,36-38). O íbis anuncia, no Egito, o início das
enchentes com a sua chegada no mês de outubro. O galo, por sua vez, parece ter a função de
anunciar a chuva em Israel.

15
Também em 38,39-39,30, Deus explica a Jó seu plano para esse mundo. Acontece
uma assembléia estranha reunindo dez animais. A maioria deles faz parte dos animais
selvagens (= “feras do campo”), com os quais o homem vive num constante conflito, pois eles
ameaçam a vida do homem na terra cultivada (cf. Ex 23,29-30; Dt 7,22; Gn 1,26). No outro
lado, todos esses animais fazem parte dos animais preferidos da caça do rei. O rei, com sua
tarefa de preservar a integridade do país, tem que proteger seu povo contra os inimigos
humanos (= a tarefa da guerra) e contra os inimigos do mundo animal (= tarefa da caça). De
fato, a caça e a guerra têm o mesmo valor.
As perguntas retóricas indicam o domínio de Deus sobre esses animais que
representam o mundo caótico. Por exemplo: Deus alimenta o leão e o corvo (38,39-41), a
primeira dupla de animais lembrada nessa lista, mostrando-se assim o senhor deles. Na
realidade, o leão é o animal mais temido e o corvo o explorador mais fraco dos cadáveres em
decomposição.
A segunda dupla é formada pela camurça e pela corça (39,1-4), dois animais muito
tímidos. Deus, porém, conhece até o momento delicado de os dois darem à luz.
O asno e o búfalo selvagens formam um contraste em relação ao jumento e ao boi
domesticados (39,5-12). Foi Deus quem lhes deu sua liberdade.
Avestruz e cavalo são dois corredores rápidos (39,13-25). O aspecto que liga ainda
mais os dois é a sua despreocupação com os perigos existentes. No entanto, sua força
aparentemente desorganizada - compreendida pelo sábio como algo anárquico - vem de
Deus.
O final da lista que envolve dez animais coloca, outra vez, o assunto da sabedoria de
Deus, o qual garante a qualidade de seu plano para este mundo: veja a migração das aves no
caso do falcão ou o voo altíssimo da águia (39,26-30). A visão panorâmica dos dois simboliza
a perspicácia (cf. Pr 30,18-19).
Resumindo: fazem parte do mundo elementos caóticos, os quais o homem não
consegue domesticar ou integrar em sua ordem. Pelo contrário, onde a ordem humana não
funciona mais, esses animais tomam posse. Deus, por sua vez, domina também o mundo não
controlável ao homem. Os animais selvagens são inimigos do homem, mas a sabedoria divina
não encontra neles seus limites. Para o homem são caóticos, embora estejam seguros nas
mãos de Deus.

Em relação ao pensamento do primeiro discurso de Iahweh, Jó não pretende


acrescentar nada (veja 40,1-5).

Enquanto a primeira fala de Iahweh criticou Jó em sua postura de afirmar que Deus
não tenha plano nenhum para esse mundo, o segundo discurso de Iahweh faz referência à
acusação mais dura de Jó de que Deus teria entregue a terra nas mãos dos ímpios (cf. 9,24).
Até que Iahweh pergunta em 40,8: Quer me declarar culpado? De toda forma, uma série de
perguntas confronta Jó com a dificuldade da tarefa e com sua própria incompetência de levar
todos os malfeitores ao sheol (40,7-14).
O texto chega a trabalhar com dois animais, os quais representam, simbolicamente,
as forças do mal. Por primeiro (40,15-24), entra o hipopótamo (em hebraico: beemof). O
hipopótamo serviu, no Antigo Egito, como símbolo do mal. A caça do hipopótamo fazia parte
das tarefas do faraó. Em muitas imagens, o hipopótamo representa os poderes maléficos e
demoníacos.
Em seguida (40,25-41,26), trabalha-se a imagem do crocodilo (em hebraico:
leviatã). Também o crocodilo é símbolo do mal, sendo ele o monstro do caos (além do Egito,
isso também é documentado nos textos de Ugarit). Embora o leviatã tenha sido superado no
início da criação, ele precisa ser vencido sempre de novo (compare os textos Is 27,1; SI 74,14;
104,26; Jó 3,8).

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Resultado: Jó declarou Deus culpado e si mesmo justo. A isso Deus responde: se Jó
representar a justiça e Deus a injustiça, então Jó deve mandar os malfeitores para o sheol e
destruir os poderes do mal, representados no hipopótamo e no crocodilo.
Com outras palavras: na primeira fala de Deus, Iahweh se defende contra a acusação
de Jó que o mundo seja um puro caos, sem plano e sem ordem. Deus tenta indicar pontos
onde realiza a ordem. Por mais que certas realidades apareçam, ao ser humano, como
caóticas, elas fazem parte do plano de Deus.
Em seu segundo discurso, Iahweh defende-se contra a acusação que Ele mesmo e o
mundo seriam simplesmente maus. Em oposição a isso, aponta para a idéia que Ele é capaz de
superai* os seres diabólicos como o hipopótamo ou o crocodilo, algo que Jó jamais
conseguiria. Mas Iahweh é quem vence as feras. Assim fica visível que o mundo não foi
entregue às forças do mal de forma definitiva. Ou seja: há lugares e elementos caóticos neste
mundo, mas estes não estão fora do controle, do plano e do domínio de Deus. No entanto, o
poderio de Deus não seria tão tranqüilo como Jó o imagina, pois o mundo é muito vital,
obstinado e rebelde.

Jó 42
A segunda resposta de Jó (42,1-6) é uma declaração gratuita dele. Não foi interpelado ou
provocado como a primeira vez (cf. 40,1-2). Agora o grito de Jó transforma-se em um verdadeiro hino
de louvor. Jó parece ter descoberto outro rosto de Deus. A teologia de seus amigos e as dores de sua
aflição tinham causado nele uma determinada imagem de Deus, a qual, aparentemente, foi modificada
agora com o encontro de Deus.
E interessante observar que Deus, em suas falas, não faz referência à suspeita dos amigos de
que Jó estaria sofrendo por causa de seu próprio pecado. Deus não fala disso! Com isso, Deus rejeita a
reflexão teológica dos amigos de Jó. Mais ainda: em 42,7-10, a teologia dos amigos é expressamente
condenada.
As falas de Deus também não se ligam ao sofrimento de Jó. Apenas insistem no fato de que
Deus teria um plano para esse mundo e que ele teria força e soberania para dominar as realidades
caóticas que fazem parte do mundo.
Dessa forma, a perspectiva de Jó muda. Em vez de olhar somente para si (= um
antropocentrismo), Jó chega a contemplar o mundo (= um cosmocentrismo) e Deus (= um
teocentrismo). Os discursos de Deus apresentam a criação contendo um lado caótico, o qual, por sua
vez, seria domado por Deus. A ordem, sempre restabelecida por Deus, não tem como ser feita pelo
homem. O homem nem a compreende totalmente. E essa ordem é maravilhosa e assustadora ao
mesmo tempo. De certa forma, as falas de Deus oferecem a Jó o mistério da criação como metáfora
para seu próprio sofrimento. Enfim, as perguntas de Jó são respondidas por Deus no sentido que este
último reafirma, de forma misteriosa, sua presença em sua criacão.
is K #
Resultado: O livro de Jó ...
- não responde, de forma definitiva, a questão sobre a origem do mal (atribuindo o mal a Deus [=
opinião de Jó], tem-se a dificuldade de atribuir coisas negativas a Deus; atribuindo o mal ao homem [=
opinião dos amigos de Jó], tem-se a dificuldade que nem todos os males nascem da vontade do
homem; atribuindo o mal às forças caóticas e opostas a Deus [= opinião dos discursos de Iahweh em
Jó 38-41 e do autor do livro], tem-se a dificuldade de definir a origem do poder dessas forças
caóticas). O mal em si continua sendo incompreensível.
- critica todo tipo de teologia que não deixa espaço para o ser humano enquanto está sofrendo, para a
dor dessas pessoas e suas perguntas em relação a Deus;
- lembra que a salvação ainda não foi concluída:
- indica, na crítica aos três amigos de Jó, a solidariedade com quem está sofrendo: em vez de
compreender o sofrimento, é mais importante enfrentá-lo da melhor forma possível;
- articula a esperança que Deus seia quem não deixa a pessoa para sempre no sofrimento, mas quem
quer transformar a dor de quem sofre em vida plena. N a obra de Jó, o protagonista do livro é
restaurado no final (42,7-16), e isso justam ente por Deus!

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