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1. OBJETIVOS
• Situar, historicamente, os livros de Jó e Qohélet.
• Identificar a proximidade teológica desses livros.
• Analisar as linhas históricas e teológicas que deram ori-
gem a esses livros.
2. CONTEÚDOS
• Questões introdutórias: título, data e autoria.
• Estrutura e conteúdo teológico.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, estudamos os livros de Provérbios e Si-
rácida. Nesta unidade, daremos mais um passo em nossos estu-
dos, pois conheceremos os livros de Jó e Qohélet.
5. O LIVRO DE JÓ
O livro de Jó aborda as "questões-limite" da vida humana:
por que o justo sofre? Onde está Deus? Por que ele permite o so-
frimento do justo? Que Deus é esse? A tais perguntas, o autor res-
ponde com a palavra divina em meio a uma teofania e com a pre-
sença de Deus nos momentos do sofrimento humano. Acima de
tudo, não basta ouvir a resposta dos outros, mas encontrar Deus
pessoalmente: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos
te veem" (Jó 42,5). As perguntas de Jó são as mesmas de todos os
homens: por que há o sofrimento? Por que há o mal? Como encon-
trar Deus no meio da falência? Isso tudo, porque a pessoa humana
tem dificuldade em dialogar com a justiça salvífica de Deus.
A tentativa do livro de Jó para responder a essas questões-
limite não é algo inédito; antes, encontramos paralelos em prati-
camente todo o Antigo Oriente Próximo.
No Egito, um poema datado em torno de 2190-2040 a.C. in-
titula-se Diálogo do desesperado com sua alma. Esse poema traz
uma contestação das convicções tradicionais, segundo as quais os
ricos tinham a vida garantida após a morte. Para o pobre que sofre,
o melhor ainda é o suicídio. Eis um breve trecho, muito semelhan-
te a Jó 3:
A morte me parece hoje
como o lugar de repouso para um enfermo,
como sair para o ar livre depois de estar encarcerado.
A morte é hoje para mim
como o odor da mirra,
como sentar-se debaixo de um toldo num dia de brisa.
A morte é hoje para mim
como o odor das flores do lótus
como sentar-se na beira do País da Embriaguez.
A morte é hoje para mim
como um caminho plano
como a volta para casa depois de uma viagem (ALONSO SCHÖKEL;
SICRE DIAZ, 1983, p. 24).
Título
Jó não é o nome do autor, mas do personagem principal. No
entanto, esse nome não corresponde a uma raiz de origem hebrai-
ca; antes, trata-se de um nome comum em todo o Antigo Oriente
Próximo. De fato, ele é encontrado em manuscritos egípcios e acá-
dicos do 2º milênio a.C.
Segundo os especialistas, o nome "Jó" pode derivar de duas
raízes semitas: 'yb e 'wb. Da primeira raiz ('yb), derivaria 'iyyob e o
sentido seria "inimigo, rival, opositor". Seria, portanto, uma desig-
nação para a atitude rebelde de Jó diante de Deus. Em contrapar-
tida, se 'iyyob for um passivo, Jó seria a vítima da aposta de Deus.
Já a segunda raiz ('wb) provém do árabe e corresponde ao hebrai-
co swb, que significa "voltar/arrepender-se": corresponderia ao Jó
arrependido ou penitente do final do livro (cf. MORLA ASENSSIO,
1997, p. 125-126).
Afinal, quem é Jó? Como já dissemos, Jó não é o autor do
livro, mas o personagem principal. Nomes de pessoas e lugares in-
dicam a região de Edom ou da Transjordânia. Pelo relato, trata-se,
pois, de alguém que viveu no período dos patriarcas, pois não há
santuário central nem sacerdote; as funções sacerdotais são reali-
zadas pelo pai (1,5; 42,8; cf. Gn 17,23.) e as riquezas eram avalia-
das por rebanhos e escravos (1,3; 42,12).
Data
A datação do conjunto do livro é difícil e existe uma diver-
sidade de opiniões, uma vez que há muitos dados a serem consi-
derados: o vocabulário é rico e variado; além do vocabulário, as
circunstâncias históricas e culturais refletem o período persa. Isso
tudo faz supor que parte do livro tenha surgido no século 5 a.C.,
após o exílio babilônico. Em contrapartida, foram feitos acréscimos
posteriores, talvez no século 3 a.C. Em outras palavras, o estilo e o
ambiente cultural e religioso dão a entender que o livro foi escrito
por etapas:
Autor
O livro de Jó, que temos em nossas Bíblias, é o resultado da
sobreposição de várias camadas. O redator final ainda permanece
anônimo. Todavia, podemos fazer algumas afirmações a respeito
do autor que reuniu e organizou a parte poética central do livro.
Provavelmente, era um israelita, conhecedor da obra profé-
tica e dos ensinamentos dos sábios. Alguém erudito, sensibilizado
com o sofrimento dos pobres; um intelectual que:
Discute os problemas mais diversos, interessa-se por tudo e inves-
tiga as relações do homem com Deus. A evolução do protagonista
reflete provavelmente sua vida pessoal e sua experiência de Deus.
Desde o Deus conhecido, amado e aceito, até o mistério impene-
trável que provoca rebeldia e logo a seguir submissão (cf. ALONSO
SCHÖKEL, 1983, p. 77-79).
6. QUEM É JÓ?
Como já dissemos, Jó não é o autor, mas o personagem prin-
cipal. O nome "Jó" não é judaico. Antes, é comum em todo o Anti-
go Oriente Próximo no segundo milênio a.C.
Os dados oferecidos pelo livro permitem construir a seguinte
figura de Jó: é um homem semissedentário, contemporâneo aos
patriarcas. Os nomes dos personagens e dos lugares indicam que
ele morava em Edom ou na Transjordânia. Sua religião é primitiva:
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7. ESTRUTURA
A história da composição do livro é complexa. Igualmente
complexa é a sua estrutura. Neste estudo, tomaremos por base a
seguinte organização do livro:
Quadro 2 Organização do livro de Jó.
1,1-2,13 prólogo
3,1-26 monólogo de Jó
4,1-27,23 diálogo com os três amigos: Elifaz, Bildad e Sofar
28,1-28 poema sobre a Sabedoria
29,1-31,40 monólogo de Jó
32,1-37,24 diálogo com o quarto amigo: Eliú
38,1-42,6 teofania
42,7-17 epílogo (com o prólogo, forma a moldura no livro)
9. CONTEÚDO TEOLÓGICO
O prólogo (1,1-2,13) e o epílogo (42,7-17) do livro de Jó for-
mam uma história completa: é o mito primitivo de Jó, um homem
saudável e rico que perde tudo e fica muito doente. A causa dessa
desgraça é uma aposta entre Deus e um de seus conselheiros, Sa-
tan, que exerce a função de acusador. Mesmo sem saber o porquê,
Jó perde tudo, mas não se rebela. Antes, torna-se o modelo de pie-
dade, paciência e perseverança. Por esse motivo, Deus restituiu-
lhe tudo em dobro.
Essa é a história mais conhecida de Jó. Trata-se da reformula-
ção literária de um conto didático da tradição oral de Israel, conhe-
cido já por Ezequiel (Ez 14,12-23), que viveu e atuou no período do
exílio na Babilônia no século 6 a.C.
O prólogo é composto por narrativas didáticas, cujo tema
principal é a busca de um justo desinteressado. Só Jó age desse
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modo e Satan quer pô-lo à prova. São três cenas terrestres (1,1-5-
.13-22; 2,7-10) e duas cenas celestes (1,6-12; 2,1-6). O sofrimento
é a primeira prova para que Jó dê testemunho de sua adesão a
Deus. Para superar a prova, é necessária a perseverança.
No epílogo do livro, Jó recebe a retribuição por sua fideli-
dade. Poderíamos dizer que há uma contradição nisso tudo: Jó
passou o livro todo questionando a Teologia da Retribuição (o
sofrimento do justo é algo injusto) e, como ele se manteve fiel,
Deus retribuiu. Mas, talvez, devamos levar em consideração que
Jó já não era mais o mesmo: antes ele conhecia Deus "só de ou-
vir falar", ou seja, seu conhecimento era indireto, baseado nas
experiências dos outros; agora, ele "viu" Deus, de forma que seu
conhecimento passou a ser direto, fundamentado nas próprias
experiências.
A Teologia da Retribuição, cheia de medos, deixou espaço
para a absoluta liberdade diante de Deus.
saltaria de contente na minha dor, que ele não poupa; porque não
tenho negado as palavras do Santo (6,8-10).
A verdadeira Sabedoria
A poesia sapiencial do capítulo 28 prepara o desafio dos ca-
pítulos 29-31. Até o capítulo 27, Jó e seus amigos defendem a pró-
pria sabedoria e criticam-se mutuamente. Quem tem razão?
O capítulo 28 apresenta a verdadeira sabedoria: ela é inaces-
sível ao homem, seja neste mundo, seja nas sombras da morte:
Está oculta aos olhos dos mortais e até às aves do céu está escondida. A
perdição e a morte confessam: 'O rumo de sua fama chegou até nós’. Só
Deus conhece o caminho para ela, só ele sabe o seu lugar (28,21-23).
Título
Em nossas Bíblias, o livro de Qohélet, normalmente, é cha-
mado de Eclesiastes. Mas é muito fácil confundir com o Eclesiás-
tico, isto é, o Sirácida. Para evitar qualquer possível confusão, uti-
lizaremos o título da Bíblia hebraica, Qohélet, cuja abreviatura é
"Qo" (para Sirácida, utilizaremos "Sir").
Data
Segundo José Líndez (1999), o livro foi escrito entre os sé-
culos 3º e 2º a.C. Observe, a seguir, alguns argumentos em favor
dessa data:
• A língua usada é um "hebraico coloquial", que alguns
autores consideram dialeto hebraico surgido graças à in-
fluência de outras línguas durante o período persa (538-
333a.C.), e que teria durado até a segunda guerra judaica
(132-135 d.C).
• Foram encontrados fragmentos de Qohélet em Qumran.
Esses fragmentos foram datados do ano de 150 a.C.
• Jesus Ben Sira (autor do Sirácida/Eclesiástico, em torno de
180 a.C.) conhece e cita Qohélet.
Autor
Em Qo 1,1, lemos: "Palavra de Qohélet, filho de Davi, rei de
Jerusalém". Mas... quem é Qohélet? Talvez, seja melhor perguntar
"o que é um Qohélet"?
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Local de composição
Tudo indica que Qo foi escrito na Palestina, mais especifica-
mente em Jerusalém:
• Claras referências ao culto praticado em Jerusalém: tem-
plo, sacrifícios, oração e votos: 4,17-5,4.
• Referências diretas à cidade de Jerusalém: 1,12; 2,7.9.
• Fenômenos naturais que indicam o clima e as estações da
Palestina: vento, chuva, nuvens: 1,4-7; 11,3-4.
Fontes inspiradoras
Muito foi falado acerca das influências que Qohélet teria re-
cebido das culturas dos povos vizinhos (Egito, Mesopotâmia, Gré-
cia). Todavia, como acontece hoje, as ideias circulavam livremente
e é difícil afirmar uma dependência direta. No máximo, podemos
falar em termos genéricos e em contatos ocasionais.
De particular interesse é a "dependência" da cultura grega,
visto que o livro é influenciado pelo helenismo, mas isso acontece
porque o pensamento grego fazia parte do ambiente cultural de
Jerusalém. Com efeito, no século 3, as escolas de cultura helenísti-
ca penetraram na Palestina. Um exemplo disso é a visão cíclica da
história: "O que foi será; o que se fez se tornará a fazer. Nada há de
novo debaixo do sol" (1,9).
Em contrapartida, é necessário não perder de vista que Qo-
hélet se apoia muito mais no Antigo Testamento do que nos filó-
sofos do Antigo Oriente Próximo: Qo 4,13-16 relaciona-se com Ex
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12. ESTRUTURA
Qohélet não deixou marcas claras de como organizou seu li-
vro. Os estudiosos também não conseguiram entrar num acordo
sobre isso. As várias tentativas (insuficientes) de explicação: folhas
soltas que tiveram sua ordem trocada; intervenção e acréscimos
feitos por vários revisores; justaposição de sentenças isoladas, de
acordo com temas, palavras-chave e estilo; plena unidade e coe-
rência lógica do pensamento; amontoado de anotações que Qo-
hélet fazia dia após dia e que nunca agrupou de modo sistemático,
não por preguiça, mas intencionalmente.
Em contrapartida, se intencional, a falta de sistematização
do livro talvez possa ser assim explicada: visto que Qohélet quer
Teologia da Retribuição
Na perspectiva de Qohélet, o cumprimento da retribuição
deve se dar ainda antes da morte, pois não existe vida além desta.
Nisso, Qohélet e a Teologia da Retribuição concordam. Mas esse
acordo não continuará por muito tempo.
Em primeiro lugar, Qohélet afirma que a morte iguala a todos;
portanto, a retribuição não é tão justa assim. Eis seus argumentos:
2) Na música Aqui se faz aqui se paga, Sá, Rodrix e Guarabyra defendem a ideia
de que a doutrina da retribuição funciona:
Aqui se faz, aqui se paga
Você atira e a bala volta a seu peito
Cada mentira tem seu preço na vida
E a verdade é como fêmea ferida
Que ataca na calada...
Aqui se faz, aqui se paga
Quem rouba o doce leva a praga da bruxa
Às vezes nem todo o dinheiro do mundo
Vale a revelação da triste certeza
De estar sozinho à mesa
Hoje você tem o mundo inteiro
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3) Como vimos nesta unidade, para as mesmas situações descritas nesta músi-
ca, Qohélet tem uma opinião totalmente diferente. Encontre no livro de Qo-
hélet/Eclesiastes versículos em que, para essas mesmas situações, o sábio
nega que a retribuição funcione.
15. CONSIDERAÇÕES
Retomemos um pouco o outro livro que estudamos nesta uni-
dade, o de Qohélet, que, normalmente, é considerado um pessimista.
Mas será mesmo? Não seria ele um realista, embora extremado?
Sem dúvida, Qohélet é um cético, isto é, alguém que acredi-
ta pouco (ou nada) em discursos e explicações teóricas da realida-
de. Mas seu ceticismo também é teórico e sua atitude não chega a
ser profética. Antes, parece demonstrar até certo conformismo, e
a causa pode ser simples: sua vida era tolerável e ele jamais afirma
ter sido vítima de alguma injustiça.
Aliás, ele jamais fala do que chamaríamos hoje de "injustiça
social". Os injustos são sempre os indivíduos, não o sistema (o dis-
curso dos profetas é diferente).
Em outras palavras, embora Qohélet rompa com a Teologia
da retribuição, ele permanece um conservador: não nas ideias,
mas na ação.