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EAD

Estudo dos livros de Jó e


Qohélet

3
1. OBJETIVOS
• Situar, historicamente, os livros de Jó e Qohélet.
• Identificar a proximidade teológica desses livros.
• Analisar as linhas históricas e teológicas que deram ori-
gem a esses livros.

2. CONTEÚDOS
• Questões introdutórias: título, data e autoria.
• Estrutura e conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Utilize o Esquema de Conceitos-chave para o estudo de
todas as unidades deste Caderno de Referência de Con-
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teúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu de-


sempenho.
2) Ao estudar esta disciplina, confira sempre as referências
com as explicações dadas.
3) Faça anotações de todas as suas dúvidas, não deixan-
do nenhuma para trás. Tente solucioná-las por meio do
nosso sistema de interatividade ou diretamente com o
seu tutor.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, estudamos os livros de Provérbios e Si-
rácida. Nesta unidade, daremos mais um passo em nossos estu-
dos, pois conheceremos os livros de Jó e Qohélet.

5. O LIVRO DE JÓ
O livro de Jó aborda as "questões-limite" da vida humana:
por que o justo sofre? Onde está Deus? Por que ele permite o so-
frimento do justo? Que Deus é esse? A tais perguntas, o autor res-
ponde com a palavra divina em meio a uma teofania e com a pre-
sença de Deus nos momentos do sofrimento humano. Acima de
tudo, não basta ouvir a resposta dos outros, mas encontrar Deus
pessoalmente: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos
te veem" (Jó 42,5). As perguntas de Jó são as mesmas de todos os
homens: por que há o sofrimento? Por que há o mal? Como encon-
trar Deus no meio da falência? Isso tudo, porque a pessoa humana
tem dificuldade em dialogar com a justiça salvífica de Deus.
A tentativa do livro de Jó para responder a essas questões-
limite não é algo inédito; antes, encontramos paralelos em prati-
camente todo o Antigo Oriente Próximo.
No Egito, um poema datado em torno de 2190-2040 a.C. in-
titula-se Diálogo do desesperado com sua alma. Esse poema traz
uma contestação das convicções tradicionais, segundo as quais os

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ricos tinham a vida garantida após a morte. Para o pobre que sofre,
o melhor ainda é o suicídio. Eis um breve trecho, muito semelhan-
te a Jó 3:
A morte me parece hoje
como o lugar de repouso para um enfermo,
como sair para o ar livre depois de estar encarcerado.
A morte é hoje para mim
como o odor da mirra,
como sentar-se debaixo de um toldo num dia de brisa.
A morte é hoje para mim
como o odor das flores do lótus
como sentar-se na beira do País da Embriaguez.
A morte é hoje para mim
como um caminho plano
como a volta para casa depois de uma viagem (ALONSO SCHÖKEL;
SICRE DIAZ, 1983, p. 24).

O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu,


minha deusa foi-se embora e permanece distante,
o espírito benevolente que sempre estava junto do mim retirou-se
(I 43-45) (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p.24).

Observe, a seguir, outros textos babilônicos:


1) Diálogo do sofredor com seu amigo piedoso (também
chamado de Teodiceia babilônica, cerca de 1000 a.C.).
2) Poema do justo que sofre (entre 1500 e 1200 a.C.).
3) Diálogo do amo pessimista e seu criado (cerca de 1000
a.C.).
4) Ugarit: o diálogo de um suicida com sua alma (cerca de
2200 a.C.).
5) Grécia: o célebre Prometeu acorrentado, de Ésquilo (cer-
ca de 460 a.C.), é uma tragédia na qual o herói (Prome-
teu) é acorrentado a uma rocha por ter dado o fogo aos
homens.
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Título
Jó não é o nome do autor, mas do personagem principal. No
entanto, esse nome não corresponde a uma raiz de origem hebrai-
ca; antes, trata-se de um nome comum em todo o Antigo Oriente
Próximo. De fato, ele é encontrado em manuscritos egípcios e acá-
dicos do 2º milênio a.C.
Segundo os especialistas, o nome "Jó" pode derivar de duas
raízes semitas: 'yb e 'wb. Da primeira raiz ('yb), derivaria 'iyyob e o
sentido seria "inimigo, rival, opositor". Seria, portanto, uma desig-
nação para a atitude rebelde de Jó diante de Deus. Em contrapar-
tida, se 'iyyob for um passivo, Jó seria a vítima da aposta de Deus.
Já a segunda raiz ('wb) provém do árabe e corresponde ao hebrai-
co swb, que significa "voltar/arrepender-se": corresponderia ao Jó
arrependido ou penitente do final do livro (cf. MORLA ASENSSIO,
1997, p. 125-126).
Afinal, quem é Jó? Como já dissemos, Jó não é o autor do
livro, mas o personagem principal. Nomes de pessoas e lugares in-
dicam a região de Edom ou da Transjordânia. Pelo relato, trata-se,
pois, de alguém que viveu no período dos patriarcas, pois não há
santuário central nem sacerdote; as funções sacerdotais são reali-
zadas pelo pai (1,5; 42,8; cf. Gn 17,23.) e as riquezas eram avalia-
das por rebanhos e escravos (1,3; 42,12).

Data
A datação do conjunto do livro é difícil e existe uma diver-
sidade de opiniões, uma vez que há muitos dados a serem consi-
derados: o vocabulário é rico e variado; além do vocabulário, as
circunstâncias históricas e culturais refletem o período persa. Isso
tudo faz supor que parte do livro tenha surgido no século 5 a.C.,
após o exílio babilônico. Em contrapartida, foram feitos acréscimos
posteriores, talvez no século 3 a.C. Em outras palavras, o estilo e o
ambiente cultural e religioso dão a entender que o livro foi escrito
por etapas:

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Quadro 1 Etapas do livro de Jó.


1,1 – 2,13 + 42,7-17 prólogo e epílogo séculos X-IX a.C
3,1-26 monólogo de Jó
4,1-27,23 diálogo com os três amigos primeira metade do
29,1-31,40 monólogo de Jó século V a.C
38,1-42,6 teofania
32,1-37,24 diálogo com o quarto amigo metade do século V a.C
28,1-28 poema sobre a Sabedoria séculos IV-III a.C
Fonte: Leveque (1987, p. 9).

Autor
O livro de Jó, que temos em nossas Bíblias, é o resultado da
sobreposição de várias camadas. O redator final ainda permanece
anônimo. Todavia, podemos fazer algumas afirmações a respeito
do autor que reuniu e organizou a parte poética central do livro.
Provavelmente, era um israelita, conhecedor da obra profé-
tica e dos ensinamentos dos sábios. Alguém erudito, sensibilizado
com o sofrimento dos pobres; um intelectual que:
Discute os problemas mais diversos, interessa-se por tudo e inves-
tiga as relações do homem com Deus. A evolução do protagonista
reflete provavelmente sua vida pessoal e sua experiência de Deus.
Desde o Deus conhecido, amado e aceito, até o mistério impene-
trável que provoca rebeldia e logo a seguir submissão (cf. ALONSO
SCHÖKEL, 1983, p. 77-79).

6. QUEM É JÓ?
Como já dissemos, Jó não é o autor, mas o personagem prin-
cipal. O nome "Jó" não é judaico. Antes, é comum em todo o Anti-
go Oriente Próximo no segundo milênio a.C.
Os dados oferecidos pelo livro permitem construir a seguinte
figura de Jó: é um homem semissedentário, contemporâneo aos
patriarcas. Os nomes dos personagens e dos lugares indicam que
ele morava em Edom ou na Transjordânia. Sua religião é primitiva:
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a ira divina é aplacada por sacrifícios. Não se fala de um santuário


central, nem de sacerdotes (cf. 1,5; 42,8). Em seu tempo e em sua
sociedade, a riqueza de um homem é avaliada pela grandeza de
seus rebanhos e pela quantidade de seus escravos (1,3; 42,12).

7. ESTRUTURA
A história da composição do livro é complexa. Igualmente
complexa é a sua estrutura. Neste estudo, tomaremos por base a
seguinte organização do livro:
Quadro 2 Organização do livro de Jó.
1,1-2,13 prólogo
3,1-26 monólogo de Jó
4,1-27,23 diálogo com os três amigos: Elifaz, Bildad e Sofar
28,1-28 poema sobre a Sabedoria
29,1-31,40 monólogo de Jó
32,1-37,24 diálogo com o quarto amigo: Eliú
38,1-42,6 teofania
42,7-17 epílogo (com o prólogo, forma a moldura no livro)

8. GÊNERO LITERÁRIO DO LIVRO


A questão acerca do gênero literário do livro de Jó provoca
animadas discussões entre os especialistas e ainda não se chegou
a um consenso. Dizer que Jó é um livro "sapiencial" é fazer uma
afirmação genérica demais que não significa nada.
As opiniões variam muito:
1) uma peça de teatro (mas fica a questão: trata-se de uma
tragédia ou de uma comédia?);
2) uma disputa entre sábios, na qual alguns defendem uma
tese, outros questionam-na;
3) uma lamentação dramatizada, isto é, uma lamentação
(dirigida a Deus) em forma de drama;

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4) uma disputa processual, com as várias fases do proces-


so: preliminares, tentativa de conciliação, retomada do
litígio, julgamento divino, renúncia de Jó.
Todas essas opiniões, contudo, são unilaterais, e o livro pare-
ce ter um pouco de tudo e nada de completo. Em resumo, o livro
de Jó apresenta uma mescla de vários gêneros literários, perten-
centes a vários estilos. Por isso, é mais proveitoso estudar unida-
des menores e blocos de texto.
Nele, encontramos prosa, poesia, lamentações, hinos e vá-
rios tipos de debates: filosófico, teológico e judicial. Para se ter
uma ideia dessa diversidade, basta ler os capítulos 3-10: em Jó 3,
encontramos salmos e hinos; nos capítulos 4-5, argumentação sa-
piencial e salmo; nos capítulos 6-7, salmo e debate jurídico; no ca-
pítulo 8, a típica argumentação sapiencial, salmo e debate jurídico;
e, nos capítulos 9-10, debate jurídico e salmo.

9. CONTEÚDO TEOLÓGICO
O prólogo (1,1-2,13) e o epílogo (42,7-17) do livro de Jó for-
mam uma história completa: é o mito primitivo de Jó, um homem
saudável e rico que perde tudo e fica muito doente. A causa dessa
desgraça é uma aposta entre Deus e um de seus conselheiros, Sa-
tan, que exerce a função de acusador. Mesmo sem saber o porquê,
Jó perde tudo, mas não se rebela. Antes, torna-se o modelo de pie-
dade, paciência e perseverança. Por esse motivo, Deus restituiu-
lhe tudo em dobro.
Essa é a história mais conhecida de Jó. Trata-se da reformula-
ção literária de um conto didático da tradição oral de Israel, conhe-
cido já por Ezequiel (Ez 14,12-23), que viveu e atuou no período do
exílio na Babilônia no século 6 a.C.
O prólogo é composto por narrativas didáticas, cujo tema
principal é a busca de um justo desinteressado. Só Jó age desse
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modo e Satan quer pô-lo à prova. São três cenas terrestres (1,1-5-
.13-22; 2,7-10) e duas cenas celestes (1,6-12; 2,1-6). O sofrimento
é a primeira prova para que Jó dê testemunho de sua adesão a
Deus. Para superar a prova, é necessária a perseverança.
No epílogo do livro, Jó recebe a retribuição por sua fideli-
dade. Poderíamos dizer que há uma contradição nisso tudo: Jó
passou o livro todo questionando a Teologia da Retribuição (o
sofrimento do justo é algo injusto) e, como ele se manteve fiel,
Deus retribuiu. Mas, talvez, devamos levar em consideração que
Jó já não era mais o mesmo: antes ele conhecia Deus "só de ou-
vir falar", ou seja, seu conhecimento era indireto, baseado nas
experiências dos outros; agora, ele "viu" Deus, de forma que seu
conhecimento passou a ser direto, fundamentado nas próprias
experiências.
A Teologia da Retribuição, cheia de medos, deixou espaço
para a absoluta liberdade diante de Deus.

Os três amigos: o destino do malvado e a justiça de Deus


Os capítulos 4-27 reproduzem o diálogo entre Jó e três de
seus amigos, cujos nomes indicam serem provenientes da região
de Edom. Tais nomes aparecem nas genealogias de Gn 25,2 e
36,11. Temã era uma região de Edom e seus habitantes tinham
fama de cultivar a sabedoria: Jr 49,7; Br 3,22.

Em hebraico, "Edom" significa "vermelho" e designa um povo e


um território citados no Antigo Testamento. Trata-se de uma região
com terreno avermelhado, que vai do sul do Mar Morto até o golfo
de Ácaba, no que hoje é o território da Jordânia (McKENZIE, 1984,
p. 250-251). Veja o mapa em que está situada a região do Edom,
no site disponível em: <http://www.bible.ca/maps/maps-divided-
kingdom.htm>. Acesso em: 05 jan. 2011.

O conjunto está organizado em três ciclos, cada um dos quais


com um discurso de cada amigo.

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Quadro 3 Amigos de Jó.


AMIGOS: CAPÍTULOS:
Elifaz, de Temã 4-5. 15. 22 entre um discurso e outro, as respostas
Bildad, de Suás 8. 18. 25 de Jó.
Sofar, de Naamat 11.20

Os três amigos apresentam os argumentos da Teologia tradi-


cional, isto é, a Teologia da Retribuição:
• Elifaz argumenta a favor do bom, do destino do justo, mas
acaba por contradizer-se: "Recordas-te de algum inocen-
te que tenha perecido?" (4,7). Todavia, a retidão do ho-
mem não é uma vantagem diante de Deus: "Que importa
a Deus que sejas justo?" (22,3).
• Bildad discorre sobre o destino trágico do homem mal-
vado. O homem é mau por natureza e, por isso, Bildad
diz a Jó para não se justificar. Agindo assim, Jó condena a
Deus, pois dá a entender que Ele é injusto, uma vez que o
castigou sem culpa (Jó 8).
• Sofar também aborda o destino trágico do malvado (Jó
11,13-20). O homem é incapaz de dialogar com Deus e é
seu inimigo pessoal. Isso porque não conhece si mesmo
e, muito menos, os desígnios de Deus. Só há uma saída
para Jó: reconhecer-se pecador e não insistir na sua ino-
cência. O arrependimento pode mudar o destino.
Jó responde a seus amigos, criticando a Teologia da Retribui-
ção: ele quer discutir com o próprio Deus. Enquanto Deus não lhe
responder, Jó considerará seu sofrimento sempre injusto: ele tem
certeza de sua inocência (21,4; 23,2). Por isso, o pano de fundo e o
escopo de todo o livro é "ver Deus" (42,5), não o Deus da Teologia
da Retribuição pregado pelos amigos, mas o verdadeiro Deus, ex-
perimentado pessoalmente. Em outras palavras, trata-se de con-
templar o mistério divino. Para isso, porém, é necessário, antes,
experimentar o mistério humano, o mistério do mal.
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O livro de Jó traz a história de um homem, de um fiel e de


um sofredor. Em outras palavras, a história dos limites humanos:
"O homem, nascido de mulher, vive breve tempo, cheio de inquie-
tação. Nasce como a flor e murcha; foge como a sombra e não
permanece" (14,1-2); "Quanto mais aqueles que habitam em ca-
sas de barro, cujo fundamento está no pó, e são esmagados como
a traça" (4,19). Limites não só metafísicos, mas também morais:
"Seria, porventura, o mortal justo diante de Deus? Seria, acaso, o
homem puro diante do seu Criador?" (4,17; cf. 14,4; 15,16).
O livro traz, também, a história de um homem fiel, que busca
a Deus, sem os atalhos da Teologia oficial, codificada e simplista.
Por isso, no final do livro, Deus, ignorando as blasfêmias e os pro-
testos, prefere a fé nua de Jó à religiosidade dos amigos teólogos:
"Tendo o Senhor falado estas palavras a Jó, disse também a Elifaz
de Temã: 'Estou indignado contra ti e contra os teus dois amigos;
porque não falastes corretamente de mim, como fez o meu servo
Jó’." (42,7). Disso nasce um forte sentido da imagem e presença de
Deus na criação: "Na sua mão está a alma de todo ser vivente e o
espírito de todo o gênero humano" (12,10.14-15).
O caminho de Jó é o caminho do fiel que, no meio da noite, na
desgraça sem motivo, alcança a luz. Não se trata de mera resignação
ante o poder transcendente de Deus, mas plena aceitação do mistério e
confiante entrega de seu próprio destino nas mãos de Deus (40,4-5).
Além disso, o livro traz a história de um homem sofredor.
Trata-se de uma teologia madura, na qual o sofrimento comprova
a fidelidade a Deus e à vida. Jó escolhe o caminho mais difícil para
falar de fé, para exaltar a necessidade da fé. A descrição dos sofri-
mentos conduz ao mistério de Deus.
Assim, Jó passa o livro todo desafiando Deus e, não obstan-
te, suas atitudes não são de um infiel, mas de um fiel sofredor:
1) Jó reconhece a transcendência e a onipotência de
Deus: "Deus não é homem como eu..." (9,32; cf. 10,5;
12,10.14.22-23; 23,13).

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2) Jó reconhece sua condição de criatura: "Tuas mão me


formaram e me modelaram [...]" (10,8; cf. 10,3.8-12, pa-
ralelo a Gn 2,7).
3) Jó acusa Deus: ele é a causa de sua ruína:
Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia, se fosse ínte-
gro, declarar-me-ia culpado... Por isso eu digo: é a mesma coisa! Ele
extermina o íntegro e o ímpio! (9,20-22; cf. 10,16-22; 7,19-20; 14,3).
4) Segundo Jó, Deus persegue-o como se fosse seu inimigo:
Por que escondes o rosto e me tens por teu inimigo? Queres aterrorizar
uma folha levada pelo vento? E perseguirás a palha seca? Pois decretas
contra mim coisas amargas e me atribuis as culpas da minha mocidade.
Também prendes os meus pés no cepo, vigias todos os meus passos e
examinas as minhas pegadas (13,24-27; cf. 16,9-14; 19,6-12.22).
5) Jó pede e espera um juízo justo: "Mas é a Shaddai que eu
falo, a Deus eu quero apresentar minhas queixas" (13,3;
cf. 9,3.32; 23,3-4.7). Apesar de todo o sofrimento, ele
acredita na justiça de Deus:
Os meus pés seguiram as suas pisadas; guardei o seu caminho e não
me desviei dele. Do mandamento de seus lábios nunca me apartei,
escondi no meu íntimo as palavras da sua boca (23,11-12).
6) Por isso, ele entrega sua causa nas mãos de Deus: "To-
davia, o meu caminho ele o conhece! Que me ponha no
crisol, dele sairei como ouro puro" (23,10).
7) Jó está no limite e não vê mais sentido na sua vida. Ele
amaldiçoa sua própria existência:
Pereça o dia em que nasci e a noite em que se disse: 'Foi concebido
um homem!’ Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima,
não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz. Recla-
mem-no as trevas e a sombra de morte; habitem sobre ele nuvens;
espante-o tudo o que pode enegrecer o dia (3,1-10).

O momento presente é horroroso (cf.3,24-26) e Jó perdeu


o gosto pela vida (10,1); o futuro é pior, pois Deus fechou-lhe as
saídas (3,23).
Além disso, Jó anseia pela morte:
Quem dera que se cumprisse o meu pedido, e que Deus me conce-
desse o que anelo! Que se dignasse a esmagar-me, que soltasse a
sua mão e acabasse comigo! Isto ainda seria a minha consolação, e
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saltaria de contente na minha dor, que ele não poupa; porque não
tenho negado as palavras do Santo (6,8-10).

No entanto, renova sua esperança em seu vingador: o mes-


mo Deus que chama de seu inimigo:
Eis que meu vingador está vivo e que no fim se levantará do pó:
depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha
carne verei a Deus. Aquele que eu vir será para mim, aquele que
meus olhos contemplarem não será um estranho. Dentro de mim
consomem-se meus rins (19,25-27).

O mistério de Deus e a verdadeira religião


Deus responde a Jó no meio da tempestade; todo o livro
preparava a teofania. Depois de ser tantas vezes desafiado, Deus
responde a ele nos capítulos 38-41.
Deus faz dois discursos que deixam Jó calado. Na verdade, não
é Deus, mas o autor que põe na boca de Deus suas próprias pala-
vras, ideias e convicções, para responder às perguntas do livro:
• Primeiro discurso (capítulos 38-39): Deus responde às
perguntas com outras perguntas, que fazem Jó percorrer
a criação para constatar que ele tem uma sabedoria limi-
tada. Diante da sabedoria de Deus, Jó deve se calar.
• Segundo discurso (capítulos 40-41): Deus demonstra a Jó
como é difícil governar o cosmo. O homem não pode se
salvar nem se justificar, pois não é Deus. E Jó, novamente,
reconhece sua ignorância.

A verdadeira Sabedoria
A poesia sapiencial do capítulo 28 prepara o desafio dos ca-
pítulos 29-31. Até o capítulo 27, Jó e seus amigos defendem a pró-
pria sabedoria e criticam-se mutuamente. Quem tem razão?
O capítulo 28 apresenta a verdadeira sabedoria: ela é inaces-
sível ao homem, seja neste mundo, seja nas sombras da morte:
Está oculta aos olhos dos mortais e até às aves do céu está escondida. A
perdição e a morte confessam: 'O rumo de sua fama chegou até nós’. Só
Deus conhece o caminho para ela, só ele sabe o seu lugar (28,21-23).

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 91

Portanto, só Deus é sábio!

O quarto amigo: alguém em cima do muro


Surge, então, um novo personagem, sem apresentação pré-
via: Eliú. Ele fala nos capítulos 32-37, mas parece que nem Deus
nem Jó dão muita importância à sua fala. Acredita-se que um re-
dator tardio tenha introduzido esse quarto amigo para fazer um
pouco de média e aliviar a tensão.
Seguindo esse raciocínio, Eliú não está contra nem a favor de
Jó; também não está contra nem a favor dos três amigos. Ele quer
repropor a Teologia da retribuição: o sofrimento é uma estratégia
educativa que Deus usa para tornar o homem melhor. O ser huma-
no tem duas escolhas: aceitar a correção, isto é, converter-se, ou
morrer.
Tem-se, pois, a impressão de que o autor dos capítulos 32-37
não entendeu nada da discussão.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE JÓ


No livro de Jó, articulam-se, continuamente, dois aspectos
da vida humana: o desespero e a esperança. Jó é o personagem
no qual esses dois sentimentos se misturam. Pode-se dizer, então,
que são dois "Jós".
Quadro 4 O personagem Jó.
Mito primitivo Jó paciente esperança e louvor predomina a fé
Poema Jó rebelde desespero e blasfêmia predomina a razão

Ao analisar o quadro 4, podemos notar que, no mito primi-


tivo, encontramos um Jó paciente, cheio de esperança e louvor;
nesse primeiro Jó, predomina a fé. Já no poema, deparamo-nos
com o segundo Jó, rebelde, cheio de desespero e de blasfêmia, no
qual predomina a razão. O livro leva-nos, pois, a descobrir o verda-
deiro rosto de Deus. Para tanto, é preciso uma fé pura. Deus não se
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enquadra nos esquemas humanos, nem é prisioneiro da Teologia


da Retribuição.
Infelizmente, a concepção popular conhece somente o Jó
paciente. E, mesmo quando lê o poema, enxerga o Jó paciente,
capaz de tudo suportar.
Na verdade, o livro discute as questões-limite da vida huma-
na para responder a uma pergunta de fundo: em meio ao absurdo
da vida, como crer em Deus e em qual Deus crer? Em outras pala-
vras: você continuaria fiel a Deus, mesmo que não ganhasse nada
com isso?
Contra os raciocínios esquematizados de seus amigos, Jó
responde: "É necessário crer em Deus por nada, isto é, gratuita-
mente, sem interesse". Para ver o rosto de Deus, é necessário uma
autêntica experiência de fé.

11. O LIVRO DE QOHÉLET (ECLESIASTES)


O livro de Qohélet (Eclesiastes) questiona e critica a Teologia
da retribuição, tomando como base as contradições da vida.
Na Bíblia hebraica, o livro de Qohélet pertence ao conjun-
to dos "Cinco pequenos livros" (em hebraico, meguillot) lidos nas
cinco grandes festas da nação judaica: Cântico (lido na festa da
Páscoa), Rute (em Pentecostes), Ester (em Purim, uma espécie de
carnaval), Lamentações (na recordação da queda de Jerusalém sob
os babilônios) e Qohélet (na festa das Tendas).

Título
Em nossas Bíblias, o livro de Qohélet, normalmente, é cha-
mado de Eclesiastes. Mas é muito fácil confundir com o Eclesiás-
tico, isto é, o Sirácida. Para evitar qualquer possível confusão, uti-
lizaremos o título da Bíblia hebraica, Qohélet, cuja abreviatura é
"Qo" (para Sirácida, utilizaremos "Sir").

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 93

Na Bíblia hebraica, portanto, o livro de que falamos nesta


unidade se intitula Qohélet. Todavia, quando foi traduzido para o
grego, o livro passou a ser denominado "Eclesiastes". Essa passa-
gem é fácil de entender: "qohélet" deriva do verbo "qahal", que
significa "reunir a assembleia, falar a uma assembleia" (em grego,
"assembleia" diz-se "ecclesia"). O termo "qohélet" indica alguém
que tem a capacidade de falar para a assembleia e de convencê-la
com a sua pregação. Ou seja, é o apelido de um pregador tão elo-
quente que chega a ser a retórica em pessoa.

Em nosso estudo, quando nos referirmos ao autor do livro, usare-


mos "Qohélet" (forma completa); diferentemente, quando estiver-
mos falando o livro, usaremos "Qo" (abrevitatura).

Data
Segundo José Líndez (1999), o livro foi escrito entre os sé-
culos 3º e 2º a.C. Observe, a seguir, alguns argumentos em favor
dessa data:
• A língua usada é um "hebraico coloquial", que alguns
autores consideram dialeto hebraico surgido graças à in-
fluência de outras línguas durante o período persa (538-
333a.C.), e que teria durado até a segunda guerra judaica
(132-135 d.C).
• Foram encontrados fragmentos de Qohélet em Qumran.
Esses fragmentos foram datados do ano de 150 a.C.
• Jesus Ben Sira (autor do Sirácida/Eclesiástico, em torno de
180 a.C.) conhece e cita Qohélet.

Autor
Em Qo 1,1, lemos: "Palavra de Qohélet, filho de Davi, rei de
Jerusalém". Mas... quem é Qohélet? Talvez, seja melhor perguntar
"o que é um Qohélet"?
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Como já dissemos, Qohélet é um apelido, não o verdadeiro


nome de uma pessoa. Por isso, quando nos perguntamos sobre
quem escreveu Qo, queremos saber, na verdade, quem tinha o
apelido de "Qohélet".
O nome de Salomão não aparece ao longo do livro, embora
as indicações sejam claras: "Eu, Qohélet, fui rei em Israel em Je-
rusalém" (1,12; cf. 1,13-2,11;). Todavia, vários fatores derrubam a
possibilidade de Salomão ter escrito esse livro. Em primeiro lugar,
podemos mencionar a data de composição do livro (séculos 3-2
a.C.), a língua usada (o hebraico coloquial do período persa) e a
postura pessimista do autor diante da vida (algo que não combina
com a imagem que temos de Salomão). Além disso, o livro critica a
tirania dos reis, a corrupção dos magistrados, a opressão do povo
e a consequente miséria (Qo 3,16; 4,1; 5,7; 8,9; 10,5-7; 10,16-17),
coisas que o rei Salomão jamais denunciou.
Em contrapartida, a tradição salomônica serviu para garantir
a Qohélet um lugar no cânon das Escrituras.
Cabe, portanto, a pergunta: quem é esse que se esconde
atrás do nome fictício de "Qohélet"?
Uma primeira informação é-nos dada pelo discípulo de Qo-
hélet, que, provavelmente, editou o livro e escreveu algumas li-
nhas à guisa de epílogo:
Além de ter sido sábio, Qohélet também ensinou o conhecimento
ao povo; ele ponderou, examinou e corrigiu muitos provérbios. Qo-
hélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever com pro-
priedade palavras verdadeiras (12,9-10).

Qohélet, portanto, era um mestre de sabedoria, um pedago-


go interessado em educar o povo.
Encontramos, também, outras características suas ao longo
do livro: ele é alguém da aristocracia, provavelmente de Jerusa-
lém; é um intelectual que conhece bem a filosofia grega; para che-
gar a esse conhecimento, Qohélet recebeu uma sólida formação
intelectual, religiosa e profissional e tornou-se aquilo que hoje

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 95

nós chamaríamos de "intelectual orgânico", isto é, um mestre da


sabedoria que investiga, constantemente, a realidade e transmite
ao povo suas conclusões (cf. 1,13.14; 3,10; 4,1.4; 7,15.23; 8,16).
É bem possível que, em Jerusalém, esteja à frente de uma escola
para a formação de jovens da classe alta (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999;
MORLA ASENSIO, 1997).

Local de composição
Tudo indica que Qo foi escrito na Palestina, mais especifica-
mente em Jerusalém:
• Claras referências ao culto praticado em Jerusalém: tem-
plo, sacrifícios, oração e votos: 4,17-5,4.
• Referências diretas à cidade de Jerusalém: 1,12; 2,7.9.
• Fenômenos naturais que indicam o clima e as estações da
Palestina: vento, chuva, nuvens: 1,4-7; 11,3-4.

Fontes inspiradoras
Muito foi falado acerca das influências que Qohélet teria re-
cebido das culturas dos povos vizinhos (Egito, Mesopotâmia, Gré-
cia). Todavia, como acontece hoje, as ideias circulavam livremente
e é difícil afirmar uma dependência direta. No máximo, podemos
falar em termos genéricos e em contatos ocasionais.
De particular interesse é a "dependência" da cultura grega,
visto que o livro é influenciado pelo helenismo, mas isso acontece
porque o pensamento grego fazia parte do ambiente cultural de
Jerusalém. Com efeito, no século 3, as escolas de cultura helenísti-
ca penetraram na Palestina. Um exemplo disso é a visão cíclica da
história: "O que foi será; o que se fez se tornará a fazer. Nada há de
novo debaixo do sol" (1,9).
Em contrapartida, é necessário não perder de vista que Qo-
hélet se apoia muito mais no Antigo Testamento do que nos filó-
sofos do Antigo Oriente Próximo: Qo 4,13-16 relaciona-se com Ex
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1,8-2,22; Qo 7,7 com Ex 23,8 e Dt 16,19; Qo 5,3-6 com Lv 5,4, Dt


23,21-23 e Nm 15,25; e Qo 3,14 com Dt 4,2 e 13,1.
Embora não se possam estabelecer dependências literárias
nem referências de vocabulário, o livro de Qohélet partilha alguns
temas com o livro de Jó:
1) a desvalia do homem ao nascer: "Como sai do ventre
materno, assim voltará, nu como veio: nada retirou do
seu trabalho que possa levar nas mãos" (Qo 5,14 e Jó
1,21).
2) a sorte do aborto: "Pois eu digo que um aborto é mais
feliz que eu" (6,3-5 e 3,11-16).
3) a concepção do sheol (a morada dos mortos), em que
toda lembrança é apagada: "Os vivos sabem pelo menos
que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem
terão recompensa, porque sua memória cairá no esque-
cimento [...]" (Qo 9,5-7 e Jó 14,13-21).
4) a incerteza humana sobre a obra de Deus: "Assim como
não conheces o caminho do vento ou do embrião no
seio da mulher, também não conheces a obra de Deus,
que faz todas as coisas" (Qo 11,5 e Jó 38,2-4; cf. Qo 12,7
e Jó 34,14).

12. ESTRUTURA
Qohélet não deixou marcas claras de como organizou seu li-
vro. Os estudiosos também não conseguiram entrar num acordo
sobre isso. As várias tentativas (insuficientes) de explicação: folhas
soltas que tiveram sua ordem trocada; intervenção e acréscimos
feitos por vários revisores; justaposição de sentenças isoladas, de
acordo com temas, palavras-chave e estilo; plena unidade e coe-
rência lógica do pensamento; amontoado de anotações que Qo-
hélet fazia dia após dia e que nunca agrupou de modo sistemático,
não por preguiça, mas intencionalmente.
Em contrapartida, se intencional, a falta de sistematização
do livro talvez possa ser assim explicada: visto que Qohélet quer

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 97

criticar uma estrutura de pensamento, a Teologia da retribuição,


e demonstrar que a vida não se encaixa em um esquema rígido e
infalível, ele, propositadamente, escreve um livro que também es-
capa a qualquer tentativa de esquematização. E devemos admitir
que Qohélet conseguiu: até agora, nenhum especialista foi capaz
de encontrar a lógica de Qo.

13. CONTEÚDO TEOLÓGICO


Se, por um lado, o livro resiste a qualquer tentativa de se esta-
belecer uma estrutura do conjunto, por outro, é fácil perceber que
todas as questões discutidas por Qohélet podem ser agrupadas em
dois grandes temas interligados: hébel e a Teologia da retribuição.

Tese fundamental e método de pesquisa


Em 1,2, Qohélet expõe a tese fundamental de todo o livro:
"tudo é hébel". Mas o que significa essa palavra? Vejamos.
A palavra hebraica "hébel", a princípio, indica "o vapor que
se dissolve, o vento impalpável, a névoa, a fumaça, o nada", ou
seja, algo enganoso, insubstancial, vazio e passageiro. No grego,
"hébel" foi traduzido por "mataiótes", que, em latim, equivale a
"vanitas", isto é, "vaidade".
A frase "vaidade das vaidades" é um superlativo hebraico e
pode ser entendida como "a suprema vaidade", "a maior vaidade
que existe" e, portanto, "o pior dos enganos", "a coisa mais absur-
da, sem sentido e sem a menor possibilidade de ser verdadeira",
"algo que não vale a pena lutar para conseguir". De modo mais
radical, podemos dizer: "Mentira das mentiras, é tudo mentira!".
Qohélet toma como base, pois, sua própria experiência e,
também, a dos outros. Em outras palavras, ele faz uma pesqui-
sa de campo (cf. 2,12-17: "vi, examinei, poderei, entendi, refleti,
odiei"). Ele aplica os esquemas ditos por todos que dizem que fun-
cionam e avalia os resultados, que são decepcionantes: nada acon-
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tece como se esperaria. Eis porque, em sua opinião, "tudo é hébel


(vapor, névoa, engano, vaidade etc.)".
As riquezas são hébel
Em 5,6-6,9, Qohélet contrasta riqueza e pobreza, satisfação
e insatisfação, fugacidades e vantagens: "Coma muito ou coma
pouco, o sono do operário é gostoso; mas o rico saciado nem con-
segue adormecer" (Qo 5,11).
Portanto, ser rico é hébel, principalmente quando se pensa
no herdeiro das riquezas:
Observo ainda outra vaidade debaixo do sol: alguém sozinho, sem
companheiro, sem filho ou irmão; todo seu trabalho não tem fim, e
seus olhos não se saciam de riquezas: 'Para quem trabalho e me privo
da felicidade?’ Isso também é vaidade e um penoso trabalho (4,7-8).

Qohélet apresenta o homem solitário, ganancioso, sem des-


frutar de descanso. A pergunta retórica: "Para quem trabalho e me
privo da felicidade?" traz implícita a resposta: para nada. Esse é o
comportamento próprio do insensato (cf. 1,3).
As ações humanas são hébel
Segundo Qohélet, a atividade humana, principalmente a que
fatiga o homem, é hébel, é "correr atrás do vento". Até mesmo
aquela que obtém êxito:
Coloquei todo o coração em investigar e em explorar com a sabe-
doria tudo o que se faz debaixo do sol. É uma tarefa ingrata que
Deus deu aos homens para com ela se atarefarem. Examinei todas
as obras que se faz debaixo do sol. Pois bem, tudo é vaidade e cor-
rer atrás do vento! (1,13-14).
Todo o trabalho do homem é para sua boca e, no entanto, seu apetite
nunca está satisfeito. Que vantagem tem o sábio sobre o insensato,
ou sobre o pobre aquele que sabe conduzir-se diante dos vivos. [...]
também é vaidade e correr atrás do vento (6,7-9; cf. 4,7-8).

Tudo quanto se pode desfrutar é hébel


Travestido de Salomão, o autor fala de suas riquezas, de seu
poder e de sua glória (2,3-11), e termina fazendo uma confissão:

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Ao que os olhos me pediam nada recusei, nem privei meu coração


de alegria alguma; sabia desfrutar de todo o meu trabalho, e esta
foi minha porção em todo o meu trabalho. Então examinei todas as
obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las,
e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de
proveitoso debaixo do sol (2,10-11).

Qohélet não nega ter experimentado alegria e gozo como


"porção/paga do trabalho", mas não deixa de perguntar: "Com-
pensa trabalhar tanto?". E a resposta que dá a si mesmo é: "Eis
que tudo era vaidade!".
A sabedoria e a nescidade são hébel
Qohélet fala da decepção de ter buscado a sabedoria:
Pensei comigo: aqui estou com tanta sabedoria acumulada [...];
minha mente alcançou muita sabedoria e conhecimento. Coloquei
todo o coração em compreender a sabedoria e o conhecimento, a
tolice e a loucura, e compreendi que tudo isso é também procura
do vento. Muita sabedoria, muito desgosto; quanto mais conheci-
mento, mais sofrimento (1,16-18).

Em 2,12-15, Qohélet pergunta-se: "O que diferencia o sábio


do néscio, uma vez que os dois têm o mesmo fim?". Mais adiante,
porém, em 7,5-6, voltando a esse confronto, Qohélet tem uma vi-
são um pouco mais positiva do sábio: o riso do insensato é como
os gravetos crepitando debaixo de um caldeirão, ou seja, muito
barulho, mas pouco efeito.
O poder e o seu contexto são hébel
Em 9,13-16, encontramos uma parábola cuja finalidade é
mostrar que, sem o apoio do poder do rei, a sabedoria e os sábios
são ineficazes:
Também vi essa sabedoria debaixo do sol, e ela me parece impor-
tante: Havia uma cidade pequena com poucos habitantes. Um
grande rei veio contra ela, cercou-a, levantou contra ela obras de
assédio. Nela encontrou um homem pobre e sábio, que salvou a
cidade com sua sabedoria, mas ninguém se lembrou deste homem
pobre. Eu digo: Mais vale a sabedoria que a força, mas a sabedoria
do pobre é desprezada e ninguém dá ouvido às suas palavras.
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Observemos os detalhes dessa parábola: grande rei versus pe-


quena cidade; poucos habitantes versus muitos soldados; poder real
versus homem pobre. A moral da parábola está no v. 16: "Mais vale
a sabedoria que a força", que equivale ao que disse Jesus Ben Sira:
"Quando um rico fala, todos se calam e elevam até às nuvens a sua
palavra. Quando o pobre fala, dizem: 'Quem é este?’" (Sir 13,23).

Sobre o poder, confira, também, Qo 4,13-16.

A vida humana é hébel


Qohélet ressalta a brevidade da vida do homem, a fragilida-
de e a futilidade de sua efêmera vida: "Quem sabe o que convém
ao homem durante a sua vida, ao longo dos dias contados de sua
vida de vaidade, que passam como sombra?" (6,12a; cf. 2,23-24).
Ora, se tudo é hébel (cf. 1,2; 12,8), é inevitável perguntar: que
vantagem há para o homem? Pode ele ter alguma alegria nesta vida?
Qohélet indica três coisas:
1) Ver o bom resultado do próprio esforço: 2,24; 5,17-18.
2) O gozo que deriva de tudo o que lhe dá prazer: amor,
boa comida etc.: 3,12-13; 9,9.
3) As coisas belas da criação e a alegria de estar vivo: 11,7; 9,4.
Mas tudo isso é dom de Deus, ou seja, não existe a retribui-
ção automática nem uma receita automática para felicidade.

Teologia da Retribuição
Na perspectiva de Qohélet, o cumprimento da retribuição
deve se dar ainda antes da morte, pois não existe vida além desta.
Nisso, Qohélet e a Teologia da Retribuição concordam. Mas esse
acordo não continuará por muito tempo.
Em primeiro lugar, Qohélet afirma que a morte iguala a todos;
portanto, a retribuição não é tão justa assim. Eis seus argumentos:

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 101

1) Sábio e insensato têm o mesmo destino (2,14-16): am-


bos não só morrerão, mas também serão totalmente es-
quecidos. Então, por que ser sábio?
2) Homens e animais têm a mesma sorte (3,18-21): "Todos
caminham para o mesmo lugar" (3,20) ecoam "Todos os
rios correm para o mar" (1,7). Por sua vez, 3,21 não se
refere ao céu e ao inferno, mas ao melhor (subir) e ao
pior (descer). O homem não é melhor que os animais.
3) Justos e injustos têm um destino comum (9,2-3): nem
mesmo as qualidades morais servem para um destino
melhor. Em cinco pares de antítese de cunho religioso
– justo  /  injusto; puro  /  impuro; quem oferece sacrifí-
cio / quem não oferece sacrifício; bom / pecador; quem
faz juramento / quem não faz juramento –, Qohélet quer
provar que não existe retribuição alguma. A pergunta
subjacente é: que comportamento seguir, se dá tudo na
mesma?
4) O destino definitivo do homem é a aniquilação total
(9,4-6.10): embora seja melhor estar vivo que morto (v.
4), isso não é uma grande vantagem. Se nos tempos de
Qohélet já se falava de uma retribuição após a morte,
ele nega-a veementemente. Como Qohélet sabe que os
mortos não sabem nada? Por experiência, não pode ser.
Mas é o que ele crê: a morte é o negativo da vida presen-
te, e ninguém se lembrará dos que morreram: eles estão
mortos na vida e também na memória.
Qohélet afirma que não há retribuição na vida futura, mes-
mo porque ela não existe. E nesta vida há retribuição? A resposta
de Qohélet: "Absolutamente não!".
Ele conhece a tradição sapiencial de Israel (8,12a-13), mas,
contemplando o dia a dia, constatou o contrário do que ela ensina:
"Já vi de tudo em minha vida de vaidade: o justo perece na sua
justiça, e o ímpio sobrevive na sua impiedade" (7,15; cf. 8,14). E
arremata: "tudo é hébel".
As injustiças imperantes fazem que seja preferível estar mor-
to, e não vivo (4,1-3). Nisso, ele se parece com Jó e Jeremias. Cla-
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ro que Deus julgará justo e ímpio (3,16-17), mas quando? E qual


a vantagem de quem está vivo sobre quem está morto? Melhor
morrer que viver, e mais feliz ainda é quem nunca nasceu.
Diante desse quadro, devemos perguntar: qual o fundamento
da vida moral? A tradição de Israel apresenta Deus como garantia
da Teologia da Retribuição e, portanto, são válidos os valores supre-
mos: a própria vida, a justiça, a busca do bem e a fuga do mal.
Mas, que valor tem tudo isso se nenhum desses valores ga-
rante ao justo qualquer vantagem, seja aqui ("debaixo do sol"),
seja no além-morte? Para Qohélet, não há distinção entre justos e
injustos: todos têm a mesma sorte. Por isso, não há "nada de novo
debaixo do sol" (1,9;2,12;3,15).

A doutrina da retribuição e o hébel de Qohélet


Como vimos, a afirmação "Mentira das mentiras, é tudo
mentira!" (Qo 1,2; 12,8) constitui a "tese fundamental" e o resu-
mo de todo o livro de Qohélet. Não obstante a enorme dispari-
dade dos assuntos e, por vezes, as contradições no pensamento,
há uma constante no livro: Qohélet critica intensamente a crença
segundo a qual "aqui se faz, aqui se paga". Por isso, juntando es-
sas duas peças – a "mentira das mentiras" e a crítica à Teologia da
Retribuição –, podemos perceber a que Qohélet se refere quando
diz "é tudo mentira (hébel): a doutrina pregada pela Teologia da
Retribuição".
Tal como o autor de Jó, Qohélet passa ponto por ponto
da doutrina da retribuição, mas não só o sofrimento (Jó), como
também o sucesso, a fortuna, a riqueza. Qohélet avalia com sua
experiência pessoal tudo o que lhe foi ensinado sobre o suces-
so do justo e a desgraça do ímpio, sobre o destino do sábio e
o destino do tonto, sobre a ação de Deus para garantir que a
retribuição funcione, e sua conclusão é lapidar: "é tudo hébel, é
tudo mentira".

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 103

A riqueza não traz satisfação nem paz (5,9-11), não livra da


angústia da morte (6,3-6) e ainda traz outras preocupações (2,15-
18; 6,1-2), sem falar que o justo pode morrer cedo e o ímpio viver
longamente (8,11-13). No fim, nem tudo dá certo (4,7-8), e malva-
dos podem ter a sorte dos justos, e vice-versa (7,15; 8,14). A morte
iguala todos (2,15) e todos serão esquecidos (2,16-17).
Em outras palavras, a retribuição é infalível só na teoria.
Como diríamos hoje, a retribuição acontece só no mundo virtual.
No mundo real, a iniquidade esmaga a justiça e o direito (3,16), e
as muitas injustiças fazem preferir estar morto, e não vivo (4,1-3).
Sem dúvida, Deus julgará o justo e o injusto (3,17), mas quando?
Onde? Por isso, essa história de que "aqui se faz, aqui se paga" é
"mentira das mentiras... é tudo mentira!"

14. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade,
que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo des-
ta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta
unidade.
1) Leia Jó 24,1-12 e atualize esse texto, comparando-o ao que anda acontecen-
do nos dias de hoje, principalmente no Brasil.

2) Na música Aqui se faz aqui se paga, Sá, Rodrix e Guarabyra defendem a ideia
de que a doutrina da retribuição funciona:
Aqui se faz, aqui se paga
Você atira e a bala volta a seu peito
Cada mentira tem seu preço na vida
E a verdade é como fêmea ferida
Que ataca na calada...
Aqui se faz, aqui se paga
Quem rouba o doce leva a praga da bruxa
Às vezes nem todo o dinheiro do mundo
Vale a revelação da triste certeza
De estar sozinho à mesa
Hoje você tem o mundo inteiro
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Hoje você pode mais


Hoje você tem tempo e dinheiro
Hoje é você quem faz
De repente, você não é mais inocente
O mundo te bate de frente
E a vida te pega por trás
Aqui se faz, aqui se paga
Você jurava que não tinha perigo
Mas o castigo sempre vem a cavalo
E o xerife sempre acorda mais cedo
Você tem medo e finalmente naufraga
Aqui se faz, aqui se paga

3) Como vimos nesta unidade, para as mesmas situações descritas nesta músi-
ca, Qohélet tem uma opinião totalmente diferente. Encontre no livro de Qo-
hélet/Eclesiastes versículos em que, para essas mesmas situações, o sábio
nega que a retribuição funcione.

15. CONSIDERAÇÕES
Retomemos um pouco o outro livro que estudamos nesta uni-
dade, o de Qohélet, que, normalmente, é considerado um pessimista.
Mas será mesmo? Não seria ele um realista, embora extremado?
Sem dúvida, Qohélet é um cético, isto é, alguém que acredi-
ta pouco (ou nada) em discursos e explicações teóricas da realida-
de. Mas seu ceticismo também é teórico e sua atitude não chega a
ser profética. Antes, parece demonstrar até certo conformismo, e
a causa pode ser simples: sua vida era tolerável e ele jamais afirma
ter sido vítima de alguma injustiça.
Aliás, ele jamais fala do que chamaríamos hoje de "injustiça
social". Os injustos são sempre os indivíduos, não o sistema (o dis-
curso dos profetas é diferente).
Em outras palavras, embora Qohélet rompa com a Teologia
da retribuição, ele permanece um conservador: não nas ideias,
mas na ação.

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© Estudo dos livros de Jó e Qohélet 105

Dessa forma, chegamos ao término de nossa terceira unida-


de. Na próxima unidade, estudaremos o livro dos Salmos.

16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Job. Madrid: Cristiandad, 1983. (Nueva Biblia
Española).
ARTUSO, V. Anotações para curso de literatura sapiencial. Ponta Grossa, 2000. (texto não
publicado).
CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4).
DIAS DA SILVA, C. M. Universos virtuais bíblicos. Estudos bíblicos. 107 (2010).
LEVEQUE, J. Jó: o livro e a mensagem. São Paulo: Paulinas, 1987. (Cadernos bíblicos, 42).
McKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1984.
MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997.
(Introdução ao Estudo da Bíblia, 5).
STORNIOLO, I. Como ler o livro de Jó. São Paulo: Paulinas, 1992. (Como ler).
TERNAY, H. de. O livro de Jó. São Paulo: Vozes, 2001. (Comentário Bíblico AT).
VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Eclesiastes ou Qohélet. São Paulo: Paulus, 1999. (Grande Comentário
Bíblico).
______. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25).
WRIGHT, A. G. Eclesiastes. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Eds.).
Novo comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã/
Paulus, 2007.
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