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DE JÓ NA PERSPECTIVA
DA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA *
Resumo: o artigo apresenta uma releitura do livro de Jó, visto que tal obra não é um
livro histórico ou literário apenas, mas também uma obra mística e existencial, que tem
a relação da opressão e da sabedoria como pano de fundo, que é tido neste artigo como
fonte de fé e luta para Jó. Este enfrenta diversas adversidades, tristezas e sofrimentos,
porém o que mais o consome não é o sofrimento em si, mas o sentimento de abandono,
de aparente solidão e opressão em que se encontra, na qual se sente abandonado por
Deus. O livro de Jó não é um livro de História, mas de Sabedoria, pertencente à área da
poesia hebraica, é um dos mais interessantes quanto ao aspecto literário e teológico, uma
vez que aproxima alguns princípios teológicos, bem como existenciais. Neste sentido,
procuramos desenvolver uma releitura desta obra, destacando o sofrimento humano em
Jó num olhar antropológico teológico.
D
os livros que compõem a literatura sapiencial, o livro de Jó, é sem dúvida um
dos mais debatidos entre os exegetas, pois suscita inúmeras polêmicas quanto
sua origem, autoria e mensagem. Não há muitos consensos acerca de tais obras,
a não ser quando se trata de um escrito pós-exílico que tem como personagem principal
um estrangeiro, Edomita, temente a Deus.
O referido livro apresenta uma narrativa história de um povo que é representa-
do por um personagem conhecido por Jó. Este enfrenta diversas adversidades, tristezas e
sofrimentos frente as questões econômicas, familiares e efemeridades por conta da própria
CONTEXTO HISTÓRICO
Tal livro é uma meditação de um sábio sobre o sofrimento. O que mais consome
Jó não é o sofrimento em si, mas é o sentimento de abandono, de aparente solidão em que se
encontra, a opressão que vive. Nesse interregno, onde Deus está? Por que não se mexe? Por
que razão não sai ao seu encontro? Por que não põe fim ao seu sofrimento?
Segundo Leite (2011) a literatura sapiencial é uma tradição intelectual que trans-
cende a experiência de Jó, e igualmente do povo judeu, e gravita em torno de certos conceitos,
presentes tanto no pensamento mesopotâmico quanto no egípcio. Sua força intelectual foi
grande na antiguidade oriental e gerou expressiva produção literária e mítica.
Considerado uma unidade, o livro se esforça para registrar o drama contido no aba-
timento de Jó, hipoteticamente uma invenção literária, que narra a Epopéia vivida por um tal
de Jó, que ao vislumbrar o seu flagelo, acena para uma representação mais ampla, uma carga
dramática vivenciada pelo povo judeu no pós-exílio. Jó é apresentado como homem extrema-
mente correto, inculpável, íntegro, irrepreensível, justo, precavido.
Segundo Tünnermann (2001), uma das políticas persa que deu certo foi a de to-
lerância religiosa, que favorecia a aproximação e a cumplicidade dos líderes religiosos das
nações subjugadas, isso levou um significativo número de pessoas da população à pobreza, à
miséria, à opressão e à escravidão.
Rossi (2008) corrobora com este pensamento e afirma que o império persa sugava
a vida do povo e mais, apresenta que o próprio sistema educacional era instrumentalizado
para a propagação desta ideologia de dominação e para a manutenção do status quo vigente
da época, onde uma minoria controlava a maioria oprimida.
Assim sendo, este sistema de dominação tinha que ser sustentado por uma ideologia
para manter o status quo e evitar as revoltas dos explorados e oprimidos. Os líderes do dogma da
retribuição participavam do sistema, eram além de cúmplices, executores desta política de morte.
Não é surpreendente que uma grande parte do livro de Jó esteja na forma de poesia hebraica. A po-
esia tem sido descrita como a linguagem do coração e o livro evidencia uma personagem que está
em grande angústia, tanto pelo sofrimento real como pela ignorância da razão do seu sofrimento.
Deus me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos, desde a eternidade
fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra. Quando os abismos não
existiam, eu fui gerada, quando não existiam os mananciais de água (Pv 8, 22-23).
Mas a Sabedoria, hahokmah, de onde provém ela? Onde está o lugar da inteligência,
binah? O homem não lhe conhece o caminho nem se encontra na terra dos mortais. Diz
o abismo: “não está em mim”. Responde o mar: ‘não está comigo”. Não se compra com
o ouro mais fino nem se troca a peso de prata. De onde vem, pois, a Sabedoria? Onde
está o lugar da inteligência? Está oculta dos olhos dos mortais e até das aves do céu está
escondida... E disse ao homem: o temor, yirat, de Deus, eis a Sabedoria; fugir do mal,
merah, eis a Inteligência (Jó 28,12-28).
A absoluta compreensão das coisas do universo é impossível, e por isso Deus ad-
verte que o Misterium Tremendum é a fonte da Sabedoria, o temer, o enigma e a realidade,
ou experimentar, a humildade aterrorizada diante das coisas, são pontos que estruturam e
norteiam as atitudes superiores.
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A SABEDORIA NUM OLHAR ANTROPOLÓGICO TEOLÓGICO
A questão da Sabedoria é apresentada por Jó no capítulo 28, que pode ter sido obra
corrida do autor, posterior inserção deste ou ainda de outro (STORNIOLO, 2008, p. 47).
Ele se constitui um todo unitário e aborda de forma peculiar a questão da sabedoria, aliando
esta ao discurso de Jó na contraposição a teologia presente no discurso de seus amigos.
Neste ponto poder-se-ia questionar: de que forma a sabedoria é apresentada no
livro de Jó? Cabe ressaltar que a temática é referida diversas vezes em diferentes discursos,
possuindo variadas abordagens, por exemplo: A sabedoria entendida como a recorrência à
experiência dos antepassados (Jó 8,8-10), o silêncio e a seriedade como uma característica do
sábio (Jó 11,2; 13, 5), a condenação da “falsa” sabedoria (Jó 15,2-8).
Contudo, é uma passagem posterior que incita toda a argumentação do capítulo
28, na boca de Jó são colocadas as seguintes palavras: “Eu vos ensinarei o proceder de Deus,
não vos ocultarei os desígnios do todo poderoso” (Jó 27,11). O personagem coloca-se como
sábio, como aquele que pode revelar o plano de Deus.
O capítulo se inicia (Jó 28,1-13) fazendo um elogio ao ser humano, demonstrando
como este é, qualitativamente, superior a qualquer outro ser criado, pois unindo sua inteli-
gência, perspicácia e coragem, consegue por meio da tecnologia o domínio de muitas reali-
dades como: a retirada da prata e a apuração do ouro (Jó 28,1), a extração de minerais (Jó
28,2), adaptação da natureza às necessidades humanas (Jó 28,4.10) e explora o desconhecido
revelando o escondido (Jó 28,11).
Apesar disto o ser humano falha na busca pela sabedoria, a sua tecnologia não o
auxilia em tal empreitada. O autor bíblico afirma: “Mas a sabedoria, de onde sai ela? Onde
está o jazigo da inteligência? O homem ignora o caminho dela”. (Jó 28,11-12a).
O autor distingue bem entre o poder do homem sobre a natureza e a sua incapacidade
moral de se comportar à altura da sua tecnologia: o homem sabe produzir coisas, mas
não é capaz de descobrir o sentido da realidade e da vida (STORNIOLO, 2008, p. 48).
Numa segunda parte do capítulo (Jó 28,13-22) autor sacro procurará demonstrar
os lugares nos quais pode ser encontrada a sabedoria. O primeiro postulado é que possa o ser
no mundo dos vivos, na Criação Divina à qual o homem tem acesso.
Em outras passagens da literatura sapiencial afirma-se que ela era a grande companheira
e a reveladora do Criador. Contudo, o texto em questão afirma: “ninguém a encontra na terra dos
vivos” (Jó 28,13b). Uma outra possibilidade seria o abismo, forma de indicar o mundo dos mor-
tos, mas: “O abismo diz: Ela não está em mim” (Jó 28,14). Ela também, não pode ser adquirida,
não há ouro e prata ou qualquer coisa que possa comprá-la. Então, poder-se-ia questionar: onde
está a sabedoria, como ter acesso a ela? O autor afirma que, somente Deus pode ter acesso a ela:
Deus conhece o caminho para encontrá-la, é ele quem sabe o seu lugar, porque ele vê até
os confins da terra e enxerga tudo o que há debaixo do céu (...) então a viu e a descreveu
penetrou-a e escrutou-a. (Jó 28,23-24. 27).
Isto se deve, como reza a passagem, devido à visão global que o criador tem, abrangen-
do todas as realidades no tempo e no espaço. Uma experiência disto é descrita no Salmo 139,
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quando o salmista, conta a visão privilegiada que Deus possui, Ele pode vislumbrar o todo da
vida do ser humano: os movimentos, pensamentos, intenções; como também da Criação: os
céus, a região dos mortos, a aurora, os confins do mar.
A sabedoria seria a visão de Deus do mundo. “Em outras palavras, ela é o seu proje-
to eterno, manifestando-se estruturalmente no espaço e dinamicamente no tempo” (STOR-
NIOLO, 2008, p. 49). Ao homem, portanto, fica vedada a possibilidade de compreender o
projeto de Deus, da justiça social e do projeto de Reino de Deus, pois este é fruto da história,
criatura, contingente.
Poder-se-ia perguntar: o homem está fadado a isto, ou há o que fazer? Esta questão
é respondida pelo próprio Salmo 139, que concluindo a dimensão da finitude humana su-
plica a Deus que se revele: “Perscrutai-me, Senhor, para conhecer meu coração; provai-me e
conhecei meus pensamentos. Vede se ando na senda do mal, e conduzi-me pelo caminho da
eternidade” (Sl 139,23-24).
Portanto, é possível alcançar a sabedoria, mas por meio de qual caminho? Este nos
é apresentado no último versículo do capítulo 28: “O temor ao Senhor, eis a sabedoria; fugir
do mal, eis a inteligência” (Jó 28,28).
O temor de Deus constitui-se o reconhecimento da grandeza infinita Dele, de sua
onipotência e da condição finita do ser humano. Afastar-se do mal indica uma abertura ao
discernimento da Vontade de Deus, em perceber que os projetos humanos são falhos. Mas,
qual é o projeto do Reino de Deus?
Liberdade e vida para todos – o que supõe fraternidade e partilha. Somente os que aderem
ao projeto de Deus são capazes de perceber que ele produz a harmonia do mundo humano
em consonância com a harmonia do mundo universal. Ou seja, é pela fraternidade e pela
partilha que as pessoas descobrem a justiça e o amor, que são o meio e o fim de tosa a
busca da sabedoria (STORNIOLO, 2008, 49).
Havia na terra de Hus, um homem chamado Jó, integro, reto, que temia a Deus e fugia
do mal (Jó 1,1). Notaste meu servo Jó? Não há ninguém igual a ele na terra: íntegro,
reto, temente a Deus, afastado do mal (Jó 1,8; 2,3).
Pode-se inferir desta maneira que Jó possui as qualidades que lhe dão acesso à
sabedoria de Deus, confirmando, portanto, a afirmação feita anteriormente de que poderia
revelar esta. Portanto, a contraposição que Jó faz ao discurso de seus amigos – a Teologia da
Retribuição – é caracterizado como denúncia a uma anti-teologia, que não percebe as diversas
situações da vida humana que envolvem sofrimento e que também esquecem da dimensão da
misericórdia Divina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abstract: this paper presents a book of Job rereading, since this work is not a historical or literary
book only, but also a mystical and existential work, which has the relationship of oppression and
wisdom as a backdrop, which comes to be reflected in this article as a source of faith and struggle to
Job, who faces various hardships, sorrows and suffering, but what else consumes is not the suffering
itself, but it is the feeling of abandonment, of apparent loneliness and oppression that is, in which
feels abandoned by God. The book of Job is not a history book, but of Wisdom, belonging to the
area of Hebrew poetry, is one of the most interesting about the literary and theological aspect as it
approaches some theological principles, as well as existential. In this sense we develop an essay, a
rereading of this work on human suffering in Job a theological anthropological look.
Referências
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