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Johan Konings**
Resumo: lembrando que o Quarto Evangelho há muito foi relacionado à gnose, posi-
tiva ou negativamente, e considerando a tendência gnóstica como fenômeno
cultural mais do que como doutrina, lançamos a hipótese de que o campo lexi-
cológico do conhecimento, em João (evangelho e cartas), não apenas é muito
importante, mas veicula um aspecto prático: o conhecimento por participação
na prática (“caminho”) de Jesus de Nazaré. Sobretudo a mútua iluminação de
textos como Jo 14,6-9 e 1Jo 4,7-12 traz à luz essa dimensão. Conhece-se o amor
de Deus participando dele na prática da vida de Jesus, e essa é a revelação de
“como Deus é”: amor. No fim colocamos a pergunta da relevância dessa intui-
ção para nosso tempo que recoloca a pergunta do sentido de nosso agir e da
própria humanidade.
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* Recebido em: 03.11.2015. Aprovado em: 12.12.2015. N.d.E.: registramos, aqui, nossa
gratidão ao doutorando Danilo Dourado Guerra pela leitura atenta e formatação
** Doutor em Teologia pela Katholieke Universiteit Leuven. Professor de Novo Testamento
na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte-MG. Autor de várias
obras, membro da Society of New Testament Studies (SNTS) e da Associação Brasileira
de Pesquisa Bíblica (ABIB). E-mail: koningsj5@gmail.com
Temos indícios literário-textuais para ver a ligação entre ‘João’3 e essa tendência gnós-
tica no sentido amplo. Geralmente aponta-se como indício nesse sentido o
termo lógos usado no Prólogo, mas este uso é único e por isso foi considerado
como empréstimo de alguma fonte. Ultimamente, porém, se reconhece que
o termo lógos no Prólogo joanino deve ser entendido sobre o pano de fundo
veterotestamentário que está por trás do evangelho todo.
Mais importante para nossa abordagem é o uso abundante dos verbos “conhecer/saber”
(oîda/ginṓskō), tanto no evangelho como nas cartas4. João é também campeão
no uso de alēthḗs, alēthinós e alḗtheia. Por outro lado, ele evita cuidadosamente
o termo gnôsis (com também sophía). Supõe-se que ele não queria ser contado
entre os que exibem alguma iluminação ou conhecimento esotérico para se
separarem dos não esclarecidos. Há também termos da mais genuína tradição
escritural que ele parece evitar, por exemplo, “aliança”, embora sua descri-
ção do “amar” seja a melhor interpretação daquilo que os profetas quiseram
expressar com o tema da Aliança entre Deus e seu povo Israel. João é muito
circunspecto na escolha de seu vocabulário. Se João apresenta Jesus como
desconfiado a respeito daquilo que há no ser humano (Jo 2,25), é provável que
Se Jo 1,1-18 é uma síntese prévia do evangelho todo, a última frase é a síntese da sínte-
se6. O v. 18 contém duas proposições, uma negativa e outra, positiva. A primei-
ra exprime, com sóbrio realismo, a condição humana quanto ao conhecimento
de Deus: “a Deus ninguém nunca viu”. Em vista das alusões ao Êxodo no v.
14 do Prólogo, podemos pensar que o principal personagem a não ter visto
Deus foi Moisés; só pôde vê-lo pelas costas (Ex 33,23). Mas João estende seu
enunciado a todos os humanos: “A Deus ninguém nunca viu”7. O verbo “ver”
parece visar, aqui, ao conhecimento imediato de Deus (pois há muitas passa-
gens na Bíblia que falam de ver a Deus no sentido de experiência indireta, por
um sinal, uma inspiração...).
Na segunda proposição, positiva, em contraposição ao desconhecimento universal de
Deus, João diz quem o deu a conhecer, ou revelou. Para designar essa reve-
lação, João usa um verbo inesperado: exegḗsato. Este verbo ganhou sentido
predominantemente intelectual (“exegese”), embora suas raízes etimológicas
apontem para uma metáfora espacial: fazer sair, conduzir para fora, expor8.
Isso sirva de advertência para não reduzir a obra de quem nos faz conhecer
Deus a algo meramente intelectual, conceitual. A Vulgata e a Nova Vulgata
traduziram o termo por enarravit, o que sugere anúncio ou explicação nar-
rativa e parece apontar principalmente para os ensinamentos de Jesus. As
traduções atuais tendem a traduzir exegḗsato por “fazer (dar a/levar a) conhe-
cer”, o que não está errado, mas talvez seja um pouco fraco [Almeida revista
e corrigida (ARC), tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB)]. A Almeida revista e atualizada (ARA) e a Almeida Século XXI es-
crevem “revelou”, termo que sugere um conhecimento superior ou divino, mas
inclui o risco de remeter a conceitos teológicos posteriores. A Nova tradução
na linguagem de hoje (NTLH) prefere “mostrou”, o que ajuda a compreender
que o conhecimento proporcionado pelo revelador tem algo de concreto, visí-
vel. Depois de percorrer essas tentativas da tradução, o importante é entender
que a “visualização” do conhecimento desse Deus, que ninguém nunca viu, é
a própria vida do “revelador”. Ora, para saber o que isso implica é necessário
ler a narrativa dessa vida: a obra de Jesus. Não é por causa de um defeito re-
O conhecer Deus está ligado ao conhecimento da origem de quem fala em seu nome,
enviado como profeta ou mestre12. No Quarto Evangelho, para os discípulos,
Jesus é o mestre (1,38). O mesmo vale para Nicodemos (Jo 3,2). Para a mulher
samaritana, ele é um profeta, talvez o messias-profeta esperado pelos samari-
tanos (4,19). Também o cego de nascença reconhece nele um profeta (9,17).
A multidão saciada o vê como o messias-profeta que deve vir ao mundo (Jo
6,14). Já os que não acreditam em Jesus – aqueles que João, projetando a
situação de conflito com o judaísmo dominante, designa como “os judeus”
– parecem considerá-lo sobretudo à luz de conceitos messiânicos que não se
verificam em Jesus. Recusam-lhe a fé porque não é da linhagem davídica. Não
o aceitam como mestre e profeta, porque não se enquadra na tradição de apren-
dizagem e ensino deles. Jesus não é formado (7,15), seu ensino e sua prática
infringem a interpretação que eles têm da Torá.
A isso, o Jesus joanino opõe sutilmente o mistério de sua origem e destino: ele é o Fi-
lho do Homem que vem do alto (3,13!) e volta para o Pai (13,1). Só que este
percurso inclui um momento muito terrestre: o dom da própria vida pela vida
do mundo. Como já fez Marcos (8,31-33; 10,45), também João interpreta esse
momento “crucial” combinando as figuras do Filho do Homem e do Servo Pa-
decente de Isaías 52–5313. A origem deste Filho do Homem-Servo Padecente
está, desde sempre, na “glória”, o âmbito próprio de Deus14. Antes de Abraão,
ele já existia (Jo 8,58). Isaías já contemplou a glória dele (de Jesus!) no dia em
que achava estar vendo a glória de Deus e foi enviado ao povo incrédulo (Jo
12,39-41). O seu destino é o mesmo que sua origem: o Pai (13,1!). A oração
de Jo 17 está concebida totalmente segundo essa trajetória15.
O tema de origem e destino do revelador é amplo demais para ser desdobrado aqui, mas
vale a pena apontar uma linha que é pouco observada. Na primeira parte do
Portanto, para conhecer Deus e, assim, realizar a mais profunda aspiração humana, é
preciso contemplar a prática de Jesus e unir-se a ela pelo “co-nascimento”, o
conhecimento por participação, vivendo como ele viveu. Diz 1Jo 4,12: “Nin-
guém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em
nós, e o seu amor é realizado perfeitamente [ou consumado] em [ou entre]
nós18” (1Jo 4,12). Conhece-se Deus não por teoria, mas por participação. Por
Não digo que João era um gnóstico no sentido da acadêmica história da cultura e
menos ainda no sentido da heresiologia cristã. Quero apenas sugerir que
uma leitura de sua mensagem a partir das perguntas que também os gnósti-
cos faziam pode ser muito produtiva. Quem sabe se tal leitura dos escritos
joaninos não será muito proveitosa num tempo em que o impasse da civili-
zação dominante suscita as mesmas incertezas e o mesmo desencanto que
suscitava aquele outro período imperial, que desde seu início mostrou os
sintomas de sua insuficiência?
Abstract: noting that the Fourth Gospel has been related to Gnosis, positively or ne-
gatively, and considering the Gnostic tendency as cultural phenomenon more
than doctrine, we hypothesize that the word field of knowledge, in John (Gos-
pel and letters), is not only very important, but conveys a practical aspect:
knowledge by participating in the practice (“the way”) of Jesus of Nazareth.
Especially the mutual illumination of texts as Jn 14,6-9 and 1Jn 4,7-12 brings
to light this dimension. The love of God is known by participating in the prac-
tice of the life of Jesus, and this is the revelation of “how God is”: love. At the
end we put the question of the relevance of this intuition for our time, that puts
the question of the meaning of our action and of humanity itself.
Keywords: Participatory knowledge. Practice. John Gospel and Letters. Love. Gnosis.
Notas
1 Sobre o Logos e o mito do Revelador, cf. Bultmann (1957, p. 9-17).
2 Assim interpreta Hans Jonas (1978): Alexandre e depois dele o Império romano domina-
ram pelas armas, mas a percepção da vida dos vencidos se espalhou nas veias dos novos
impérios.
3 Entendo por ‘João’ o compositor (ou os compositores) dos atuais textos canônicos do
Evangelho segundo João e das Cartas Joaninas.
4 Frequência: oîda Jo 85, 1-3Jo 16, Paulo 103, NT 321; ginṓskō Jo 56, 1-3Jo 26, Paulo 50,
NT 221.
5 A respeito disso ver Konings (2005, p. 314).
6 Embora inserido no fim da redação, como a introdução de uma tese... Sem reconstituir a
cronologia da redação, percebemos coerência entre Jo 1,18; 14,9 e 17,3.
7 A mesma afirmação volta em 6,46; 1Jo 4,12.
8 Também o português “explicar” tem como base etimológica uma metáfora espacial: tirar
das pregas (latim plicae), das dobras, “desdobrar, desenvolver” (cf. o ingles “un-fold”).
9 Em 1,6-8 e 15 o assunto já é João Batista, e em 1,19 o autor continua com o mesmo assunto:
“E este é o testemunho de João”. Não convém separar 1,1-18 como “prólogo teológico” de
1,19-51 ou 1,19–2,11 como “prólogo narrativo”. Se há na atual composição do evangelho
Referências