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JOÃO:

UMA GNOSE PRÁTICA?*

Johan Konings**

Resumo: lembrando que o Quarto Evangelho há muito foi relacionado à gnose, posi-
tiva ou negativamente, e considerando a tendência gnóstica como fenômeno
cultural mais do que como doutrina, lançamos a hipótese de que o campo lexi-
cológico do conhecimento, em João (evangelho e cartas), não apenas é muito
importante, mas veicula um aspecto prático: o conhecimento por participação
na prática (“caminho”) de Jesus de Nazaré. Sobretudo a mútua iluminação de
textos como Jo 14,6-9 e 1Jo 4,7-12 traz à luz essa dimensão. Conhece-se o amor
de Deus participando dele na prática da vida de Jesus, e essa é a revelação de
“como Deus é”: amor. No fim colocamos a pergunta da relevância dessa intui-
ção para nosso tempo que recoloca a pergunta do sentido de nosso agir e da
própria humanidade.

Palavras-chave: Conhecimento participativo. Prática. João evangelho e cartas. Amor.


Gnose.

Αὕτη δέ ἐστιν ἡ αἰώνιος ζωὴ


ἵνα γινώσκωσιν σὲ τὸν μόνον ἀληθινὸν θεὸν
καὶ ὃν ἀπέστειλας Ἰησοῦν Χριστόν. (Jo 17,3)

–––––––––––––––––
* Recebido em: 03.11.2015. Aprovado em: 12.12.2015. N.d.E.: registramos, aqui, nossa
gratidão ao doutorando Danilo Dourado Guerra pela leitura atenta e formatação
** Doutor em Teologia pela Katholieke Universiteit Leuven. Professor de Novo Testamento
na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte-MG. Autor de várias
obras, membro da Society of New Testament Studies (SNTS) e da Associação Brasileira
de Pesquisa Bíblica (ABIB). E-mail: koningsj5@gmail.com

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A
 o pôr no tear, como Freundesgabe ao amigo Haroldo, estes primeiros fios de um
desenho ainda incompleto, pareço estar lançando uma provocação, ao tirar do
baú a tese do João gnóstico. Mas esta provocação, hoje, pode ser considerada
com outros olhos que do que no tempo da “Escola da História da Religião” ou,
mesmo, de Bultmann1. Sabemos agora que o gnosticismo corresponde a um traço
cultural generalizado desde que o Império persa estendeu suas asas sobre a região
mediterrânea oriental. E quando os exércitos romanos conquistaram essa região,
esse traço cultural, qual vitória do vencido sobre o vencedor2 (JONAS, 1978),
invadiu, do nascente ao poente, o novo Império. Foi nesse contexto que viveram
Jesus e seus discípulos, entre os quais o autor do Quarto Evangelho.
Não estou falando da gnose dualista e esotérica retratada por Ireneu e pela ortodoxia
da Grande Igreja, embora os textos destes antignósticos continuem sendo im-
portantes fontes de documentação. Estou pensando, antes, na sede de conhecer
e de compreender, que se alastrava, às vezes por caminhos esotéricos, naque-
les tempos em que as tradições tribais ou nacionais, bem como as ideologias
imperiais, se derretiam como a cera diante do sol do meio-dia. E esta sede de
conhecer alastrava-se, não em último lugar, em torno dos migrantes de extra-
ção oriental, semita, persa, egípcia, siro-fenícia ou judaica que se espalhavam
pelo mundo mediterrâneo. Seria certamente um erro opor a tendência gnóstica
como “pensamento grego” ao “pensamento semítico”.

Temos indícios literário-textuais para ver a ligação entre ‘João’3 e essa tendência gnós-
tica no sentido amplo. Geralmente aponta-se como indício nesse sentido o
termo lógos usado no Prólogo, mas este uso é único e por isso foi considerado
como empréstimo de alguma fonte. Ultimamente, porém, se reconhece que
o termo lógos no Prólogo joanino deve ser entendido sobre o pano de fundo
veterotestamentário que está por trás do evangelho todo.
Mais importante para nossa abordagem é o uso abundante dos verbos “conhecer/saber”
(oîda/ginṓskō), tanto no evangelho como nas cartas4. João é também campeão
no uso de alēthḗs, alēthinós e alḗtheia. Por outro lado, ele evita cuidadosamente
o termo gnôsis (com também sophía). Supõe-se que ele não queria ser contado
entre os que exibem alguma iluminação ou conhecimento esotérico para se
separarem dos não esclarecidos. Há também termos da mais genuína tradição
escritural que ele parece evitar, por exemplo, “aliança”, embora sua descri-
ção do “amar” seja a melhor interpretação daquilo que os profetas quiseram
expressar com o tema da Aliança entre Deus e seu povo Israel. João é muito
circunspecto na escolha de seu vocabulário. Se João apresenta Jesus como
desconfiado a respeito daquilo que há no ser humano (Jo 2,25), é provável que

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também ele mesmo desconfie das palavras humanas. O que talvez explique a
sobriedade de seu vocabulário.
Sem me pronunciar sobre as questões em torno da autoria, incluo na minha abordagem
as cartas joaninas. Muitas vezes o Evangelho segundo João parece mais com-
preensível quando lido através da lente das cartas. As cartas nos fazem com-
preender melhor, por exemplo, que o “conhecer” está intimamente relacionado
com a práxis, o que vale também para o conceito de “verdade”.
“Conhecedores” sempre existiram na tradição bíblica. Até Eva, no paraíso, queria– por
transgressão – apropriar-se do conhecimento, para ser igual a Deus (Gn 3,5-
6). Adão também. Em Daniel (Dn 11,3) encontramos a bem-aventurança dos
maskilim, os que entendem a sabedoria e as visões apocalípticas e as ensinam
aos outros. Poderíamos prolongar a lista: Jó, Eclesiastes, Sira, Sabedoria de
Salomão...
‘João’ situa-se na tradição sapiencial do mundo escritural de Israel. Mas não só. Sua
atenção a samaritanos e gregos e o protagonismo que ele atribui aos discípulos
de nome grego (Andreas e Filipe) sugerem que seu ambiente sócio-histórico
não se limitou a Sião e à terra de origem de Jesus, mas se estendia à “diáspora
entre os gregos” (Jo 7,35). E por mais que se saiba que a literatura gnóstica
no sentido estreito é ulterior ao Quarto Evangelho, ninguém duvida que o am-
biente contemporâneo estivesse cheio de “conhecedores” ao gosto do mundo
helenista e médio-oriental, cujas raízes remontam ao tempo de Alexandre e,
mesmo, ao Império persa que o precedeu.
Enfim, abstração feita da questão histórica da autoria, o autor que transparece no evan-
gelho e nas cartas tem muito dos sábios judeus e parece estar ao mesmo tempo
discutindo com o judaísmo protorrabínico e dialogando com a sabedoria de
cunho filosófico-místico do mundo helenista, não alheio aos judeus!
Entre aqueles que reconhecem a proximidade entre ‘João’ e os “conhecedores” reinam
dois conceitos opostos. Uns veem mais a continuidade – ainda que através de
certos desvios, como na teoria de Bultmann, que vê a tendência gnosticizante
nas fontes do Quarto Evangelho, corrigidas, porém, pelo “evangelista”. Outros,
aproximando ‘João’ de Ireneu, veem-no como antitético ao gnosticismo. Mas
todos têm de reconhecer que seu evangelho se tornou logo um best-seller entre
os gnósticos alexandrinos (Heracleão, valentinianos, Evangelho da Verdade...).
Inegável também é que tanto o evangelho como as cartas acentuam o tema da Encarna-
ção, não muito gnóstico segundo o conceito corriqueiro que os teólogos têm da
gnose (sobretudo na sua forma docetista). O tom entoado pelo Prólogo do evan-
gelho e o critério do discernimento dos espíritos nas cartas é a vinda de Jesus
na humana carne: “O Logos se fez (ou aconteceu como) carne” (Jo 1,14), e
espírito de Deus na comunidade é o que confessa “Jesus Cristo que veio na
carne” (1Jo 4,2).

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Essa entoação é fundamental para a compreensão dos escritos joaninos. A tendência da
gnose dualista é pensar num Revelador extraterrestre que vem tirar o gnóstico
das trevas ou das sombras para levá-lo ao reino da Luz. Para João, porém,
aquele que nos faz conhecer Deus, sendo por isso a Luz do mundo, não apenas
se “encarna”, mas até se “enterra” para, no seu amor fecundo, revelar o Deus
-Amor. É o que significa a “parábola” do grão de trigo, Jo 12,245.

Se Jo 1,1-18 é uma síntese prévia do evangelho todo, a última frase é a síntese da sínte-
se6. O v. 18 contém duas proposições, uma negativa e outra, positiva. A primei-
ra exprime, com sóbrio realismo, a condição humana quanto ao conhecimento
de Deus: “a Deus ninguém nunca viu”. Em vista das alusões ao Êxodo no v.
14 do Prólogo, podemos pensar que o principal personagem a não ter visto
Deus foi Moisés; só pôde vê-lo pelas costas (Ex 33,23). Mas João estende seu
enunciado a todos os humanos: “A Deus ninguém nunca viu”7. O verbo “ver”
parece visar, aqui, ao conhecimento imediato de Deus (pois há muitas passa-
gens na Bíblia que falam de ver a Deus no sentido de experiência indireta, por
um sinal, uma inspiração...).
Na segunda proposição, positiva, em contraposição ao desconhecimento universal de
Deus, João diz quem o deu a conhecer, ou revelou. Para designar essa reve-
lação, João usa um verbo inesperado: exegḗsato. Este verbo ganhou sentido
predominantemente intelectual (“exegese”), embora suas raízes etimológicas
apontem para uma metáfora espacial: fazer sair, conduzir para fora, expor8.
Isso sirva de advertência para não reduzir a obra de quem nos faz conhecer
Deus a algo meramente intelectual, conceitual. A Vulgata e a Nova Vulgata
traduziram o termo por enarravit, o que sugere anúncio ou explicação nar-
rativa e parece apontar principalmente para os ensinamentos de Jesus. As
traduções atuais tendem a traduzir exegḗsato por “fazer (dar a/levar a) conhe-
cer”, o que não está errado, mas talvez seja um pouco fraco [Almeida revista
e corrigida (ARC), tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB)]. A Almeida revista e atualizada (ARA) e a Almeida Século XXI es-
crevem “revelou”, termo que sugere um conhecimento superior ou divino, mas
inclui o risco de remeter a conceitos teológicos posteriores. A Nova tradução
na linguagem de hoje (NTLH) prefere “mostrou”, o que ajuda a compreender
que o conhecimento proporcionado pelo revelador tem algo de concreto, visí-
vel. Depois de percorrer essas tentativas da tradução, o importante é entender
que a “visualização” do conhecimento desse Deus, que ninguém nunca viu, é
a própria vida do “revelador”. Ora, para saber o que isso implica é necessário
ler a narrativa dessa vida: a obra de Jesus. Não é por causa de um defeito re-

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dacional que, em Jo 1,19, a narrativa continua sem interrupção a entoação dos
vv. 1-189.
Em 1,18b, aquele que faz conhecer Deus é chamado (pelo menos, segundo a lectio diffici-
lior) “o unigênito, deus, o estando junto ao seio do Pai”10. Este sintagma enuncia
três atribuições que sublinham a competência exclusiva do “revelador”. Ele é
unigênito, o que exprime por um lado seu privilégio incomparável (sobretudo
na literatura joanina, em que os crentes são chamados de filhos ou gerados de
Deus) e, por outro, sua qualidade de muito querido (como Isaac, o unigênito de
Abraão). Ele é “deus”, o que já foi dito no v. 1 (“a Palavra era deus” – nos dois
casos sem o artigo definido). Ele está junto do seio do Pai, o que sugere máxima
proximidade11. A competência do “revelador” está fora de questão.

O conhecer Deus está ligado ao conhecimento da origem de quem fala em seu nome,
enviado como profeta ou mestre12. No Quarto Evangelho, para os discípulos,
Jesus é o mestre (1,38). O mesmo vale para Nicodemos (Jo 3,2). Para a mulher
samaritana, ele é um profeta, talvez o messias-profeta esperado pelos samari-
tanos (4,19). Também o cego de nascença reconhece nele um profeta (9,17).
A multidão saciada o vê como o messias-profeta que deve vir ao mundo (Jo
6,14). Já os que não acreditam em Jesus – aqueles que João, projetando a
situação de conflito com o judaísmo dominante, designa como “os judeus”
– parecem considerá-lo sobretudo à luz de conceitos messiânicos que não se
verificam em Jesus. Recusam-lhe a fé porque não é da linhagem davídica. Não
o aceitam como mestre e profeta, porque não se enquadra na tradição de apren-
dizagem e ensino deles. Jesus não é formado (7,15), seu ensino e sua prática
infringem a interpretação que eles têm da Torá.
A isso, o Jesus joanino opõe sutilmente o mistério de sua origem e destino: ele é o Fi-
lho do Homem que vem do alto (3,13!) e volta para o Pai (13,1). Só que este
percurso inclui um momento muito terrestre: o dom da própria vida pela vida
do mundo. Como já fez Marcos (8,31-33; 10,45), também João interpreta esse
momento “crucial” combinando as figuras do Filho do Homem e do Servo Pa-
decente de Isaías 52–5313. A origem deste Filho do Homem-Servo Padecente
está, desde sempre, na “glória”, o âmbito próprio de Deus14. Antes de Abraão,
ele já existia (Jo 8,58). Isaías já contemplou a glória dele (de Jesus!) no dia em
que achava estar vendo a glória de Deus e foi enviado ao povo incrédulo (Jo
12,39-41). O seu destino é o mesmo que sua origem: o Pai (13,1!). A oração
de Jo 17 está concebida totalmente segundo essa trajetória15.
O tema de origem e destino do revelador é amplo demais para ser desdobrado aqui, mas
vale a pena apontar uma linha que é pouco observada. Na primeira parte do

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evangelho (cap. 1-12), que descreve a obra de Jesus, articulada principalmen-
te em torno dos sinais realizados diante do povo, os “judeus” não conhecem
Jesus e o Pai, não sabem de onde ele é e não podem ir aonde ele vai (7,28.34;
8,14.19). A segunda parte do evangelho (cap. 13–20) oferece, desde a primeira
frase, a chave de leitura para a plena revelação: Jesus sabe de onde ele veio e
para onde ele vai (13,1). Nos discursos de despedida, dirigidos aos “seus” e
não ao mundo incrédulo, ele revela sua origem e destino àqueles que o seguem
e o servem, e que são também chamados a estar onde ele estiver: lá onde o
grão de trigo morre na terra para produzir fruto (cf. 12,24), mas também nas
moradas do Pai (14,3). Depois do gesto emblemático do Servo no lava-pés,
que ensina a servir e a amar como ele mesmo serve e ama (13,15.34), Jesus
revela para onde ele vai e para onde quer que os seus o sigam (14,6): ele mes-
mo é o caminho. Podemos interpretar isso no sentido de que o caminho – que
na Bíblia significa frequentemente a prática da vida – é aquilo que Jesus faz e,
fazendo, ensina. O caminho que sua vida é! E neste mesmo diálogo, ele ensina
que o tê-lo visto, na obra que ele está prestes a consumar na cruz, equivale a
ter visto o Pai (14,9). Isto é conhecê-lo e conhecer o Pai; e, de acordo com o
pedido de Filipe, isso basta (14,7-8).
A partir deste ponto, acompanhando o relato da “consumação” de Jesus, o discípulo e
o leitor implícito chegam à verdadeira gnose, aquilo que o enviado de Deus ti-
nha a missão de dar a conhecer e de mostrar, pelo caminho que ele percorreu e
no qual ele quis ser acompanhado por aqueles que nele creram, representados,
a partir daqui (cap. 13) pelo Discípulo Amado, o verdadeiro gnóstico16.
Por isso, a morte por amor até o fim, pela qual Jesus consuma sua obra (“consumado
está”, 19,30), é a manifestação da glória de Deus-Amor (cf. 1Jo 4,8.16). João
exprime isso recorrendo a uma imagem-chave do cântico do Servo Padecente:
o Servo será enaltecido (Is 52,13)17. “Quando eu for enaltecido da terra atrairei
todos a mim”, proclama Jesus, identificando-se ao mesmo tempo com o Filho
do Homem e com o Servo; e o evangelista acrescenta: “Ele disse isso signifi-
cando de que morte ele haveria de morrer” (12,32-33).
Olhando para o Enaltecido na cruz se vê Deus e pode-se dizer: “Assim é Deus”.

Portanto, para conhecer Deus e, assim, realizar a mais profunda aspiração humana, é
preciso contemplar a prática de Jesus e unir-se a ela pelo “co-nascimento”, o
conhecimento por participação, vivendo como ele viveu. Diz 1Jo 4,12: “Nin-
guém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em
nós, e o seu amor é realizado perfeitamente [ou consumado] em [ou entre]
nós18” (1Jo 4,12). Conhece-se Deus não por teoria, mas por participação. Por

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participação na vida e na prática daquele que no-lo descreve em seu próprio
caminhar. Esse é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6), independentemente
da cultura, religião ou confissão a que se pertence. E esse conhecimento se dá
quando aprendemos que, em Jesus que dá sua vida pelos seus, Deus manifesta
sua glória, seu verdadeiro ser: amor (1Jo 4,8.16).
Esse conhecimento é chamado de “vida eterna”, como lembramos na epígrafe deste
artigo. O texto de Jo 17,3, ainda que estilisticamente uma footnote19, é na
realidade o centro do exórdio (vv. 1-5) da oração sacerdotal de Jo 1720. Exa-
minar aqui o tema da vida eterna em João nos levaria longe demais. Baste
lembrar que o tema faz parte do campo do querer-saber, da gnose no sentido
amplo, que permeava o ambiente “global” de João e suas comunidades. Na
sua “orthodox proclamation”21, procurando usar uma linguagem que falasse a
seu público, João substituiu a terminologia judaico-apocalíptica do “reinado
de Deus” (usada só na conversa com o judeu Nicodemos, Jo 3,3-5) por “vida
eterna”. Seria preciso refletir mais sobre o significado dessa substituição. O
reinado de Deus não é outra coisa que a realização do bem-querer mais pro-
fundo de Deus. A vida eterna é a mesma coisa, porém, expressa em termos
participativos, de comunhão: é participar da vida do “éon vindouro” (não
tanto futurístico, mas contrastante com o “este éon” ou “este mundo”)22.
No exórdio do capítulo 17 (vv. 1-5) há outro termo que deveria ser aprofundado no qua-
dro da reflexão que estou propondo: Deus único. Trata-se do conhecimento do
YHWH da tradição bíblica e de seu “enviado”, Jesus, chamado Cristo, portanto,
reconhecido como Messias. O exórdio forma inclusão com o final da oração,
onde é explicitado o tema da unidade entre o Pai, Jesus e os seus. Sabe-se que
o tema da unidade é fundamental no pensamento gnóstico e pós-platônico
(Plotino), e continuou vivo em toda a tradição mística cristã. Os discípulos de
Jesus são chamados a serem “um” porque Deus é “um”, e a comunhão entre
Deus e seu Filho enviado, e entre este e os seus, é que garante o “ser um”
(LEON-DUFOUR, 1996, p. 227-8).

Não digo que João era um gnóstico no sentido da acadêmica história da cultura e
menos ainda no sentido da heresiologia cristã. Quero apenas sugerir que
uma leitura de sua mensagem a partir das perguntas que também os gnósti-
cos faziam pode ser muito produtiva. Quem sabe se tal leitura dos escritos
joaninos não será muito proveitosa num tempo em que o impasse da civili-
zação dominante suscita as mesmas incertezas e o mesmo desencanto que
suscitava aquele outro período imperial, que desde seu início mostrou os
sintomas de sua insuficiência?

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Vivemos num tempo de incertezas. Até os militantes mais convictos (ou convencidos)
se sentem abalados, e “o mais corajoso entre os guerreiros foge nu” (Am 1,16).
Não só as incertezas dos projetos políticos ou das crenças religiosas, mas tam-
bém (ou sobretudo) a muda incerteza que não quer calar quanto à viabilidade
de nossa civilização, de nosso planeta até, criam um clima de angústia, de
querer conhecer e compreender. Será João, ensinando o conhecimento prático
e participativo do amor de Deus que por sua revelação em Cristo frutifica em
nós, um guia para estas horas?

JOHN: A PRACTICAL GNOSIS?

Abstract: noting that the Fourth Gospel has been related to Gnosis, positively or ne-
gatively, and considering the Gnostic tendency as cultural phenomenon more
than doctrine, we hypothesize that the word field of knowledge, in John (Gos-
pel and letters), is not only very important, but conveys a practical aspect:
knowledge by participating in the practice (“the way”) of Jesus of Nazareth.
Especially the mutual illumination of texts as Jn 14,6-9 and 1Jn 4,7-12 brings
to light this dimension. The love of God is known by participating in the prac-
tice of the life of Jesus, and this is the revelation of “how God is”: love. At the
end we put the question of the relevance of this intuition for our time, that puts
the question of the meaning of our action and of humanity itself.

Keywords: Participatory knowledge. Practice. John Gospel and Letters. Love. Gnosis.

Notas
1 Sobre o Logos e o mito do Revelador, cf. Bultmann (1957, p. 9-17).
2 Assim interpreta Hans Jonas (1978): Alexandre e depois dele o Império romano domina-
ram pelas armas, mas a percepção da vida dos vencidos se espalhou nas veias dos novos
impérios.
3 Entendo por ‘João’ o compositor (ou os compositores) dos atuais textos canônicos do
Evangelho segundo João e das Cartas Joaninas.
4 Frequência: oîda Jo 85, 1-3Jo 16, Paulo 103, NT 321; ginṓskō Jo 56, 1-3Jo 26, Paulo 50,
NT 221.
5 A respeito disso ver Konings (2005, p. 314).
6 Embora inserido no fim da redação, como a introdução de uma tese... Sem reconstituir a
cronologia da redação, percebemos coerência entre Jo 1,18; 14,9 e 17,3.
7 A mesma afirmação volta em 6,46; 1Jo 4,12.
8 Também o português “explicar” tem como base etimológica uma metáfora espacial: tirar
das pregas (latim plicae), das dobras, “desdobrar, desenvolver” (cf. o ingles “un-fold”).
9 Em 1,6-8 e 15 o assunto já é João Batista, e em 1,19 o autor continua com o mesmo assunto:
“E este é o testemunho de João”. Não convém separar 1,1-18 como “prólogo teológico” de
1,19-51 ou 1,19–2,11 como “prólogo narrativo”. Se há na atual composição do evangelho

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joanino um prólogo ou epígrafe destacável, seria somente 1,1-5. Em 1,6 já começa a narrativa
(egéneto...). Por isso prefiro chamar 1,1-18 de “entoação”, e o canto continua... Os vv. 9-18
são mais parecidos com os textos “autorais extranarrativos” que permeiam o evangelho, p.
ex. 3,16-21; 3,31-36; 12,37-50, sem falar das footnotes ou breves comentários inseridos
em diversos lugares. João não facilitou o trabalho aos exegetas que pretendem encontrar
algum hino preexistente por trás de 1,1-18...
10 Esta lectio difficilior ganha nota B no Textual Commentary on the Greek New Testament
de Bruce Metzger (1994). A leitura monogenēs huiós deve ser considerada como facilitação
secundária.
11 A expressão “estar (reclinar) junto ao seio” (cf. Jo 13,23) talvez lembre a disposição do
banquete celestial, em que o convidado de honra, sentado ao lado direito e apoiando-se no
cotovelo esquerdo, encostava-se ao peito do anfitrião.
12 Para a cristologia joanina do envio seja lembrado Comblin (1974).
13 Assim recentemente Beutler (2013, p. 390) (e.o.). A obra de Beutler aparecerá em breve
em tradução portuguesa (São Paulo: Loyola).
14 João conhece tanto a semântica semítica quanto a grega de “glória”. A primeira acentua e
remete ao “peso” (kabōd) e sugere o valor substancial, a segunda remete ao “parecer” e ao
“aparecer” (dokeîn, dóxa), e por isso pode ser sinônimo de honra, mas também sugerir o
falso brilho, a aparência (como em Platão, contra os sofistas).
15 A esse respeito ver Kaesemann (1983). Contudo, Kaesemann interpreta isso como docetismo
ingênuo.
16 O Discípulo Amado só entra no Quarto Evangelho a partir do cap. 13, na revelação de Jesus
diante dos “seus”.
17 Assim Beutler (2013) com insistência (cf. supra nota 13).
18 Mantemos a voz passiva em vez de traduzir pelo médio-reflexivo (consuma-se) porque
talvez se trate de um passivo teológico, ou seja, quem aperfeiçoa o amor em (entre) nós é
o próprio Deus. Ele age e nós participamos.
19 Termo proposto por Tenney (1948, p. 350-364). Cf. também Van Belle (1985, p. 42, nota
266).
20 Sobre essa questão ver Beutler (2013, p. 450).
21 A esse respeito, Schweizer (1954, p. 387-403).
22 Sobre a complementariedade de escatologia apocalíptica e escatologia presente em João,
ver sobretudo Frey (1997-2000).

Referências

BEUTLER, J. Das Johannesevangelium. Freiburg: Herder, 2013.


BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes, 10. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1957.
COMBLIN, J. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1974.
FREY, Jörg. Die johanneische Eschatologie. Tübingen: Mohr, 1997-2000. 3 vol.
JONAS, Hans. La religion gnostique: le message du Dieu étranger et les debuts du christian-
isme. Paris: Flammarion, 1978.

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KAESEMANN, Ernst. El Testamento de Jesus: el lugar histórico del Evangelio de Juan. Sala-
manca: Sigueme, 1983.
KONINGS, J. O evangelho segundo João: amor e fidelidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
LEON-DUFOUR, X. Leitura do evangelho segundo João. vol. 3. São Paulo, Loyola, 1996.
METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 1994.
SCHWEIZER, E. Orthodox Proclamation. Interpretation, Richmond VA, t. 8, p. 387-403,
1954.
TENNEY, M. C. The Footnotes of John’s Gospel. Bibliotheca Sacra, Dallas TX, t. 117, p. 350-
364, 1948.
VAN BELLE, G. Les parenthèses dans l’Évangile de Jean: aperçu historique et classification,
texte grec de Jean. Leuven: Peeters, 1985.
Outras referências para aprofundar estudos
DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé
e moral. 2. ed. Tradução de Johan Konings. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2013.
KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua leitura. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
______. Ser cristão: fé e prática. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
______. A Palavra se fez livro. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2010.
______. Liturgia Dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis (ano A, B, C). 4. ed.
Petrópolis: Vozes, 2009.

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