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A FÉ, O TESTEMUNHO E AS PROVAS

O Evento Jesus Filosoficamente Considerado

Miguel Spinelli
Universidade Federal de Santa Maria

Se estudamos Filosofia da Religião, Jesus é um


fenômeno religoso a ser considerado. Ele não é tão-
somente uma questão que diz respeito à fé, mas também
ao discurso; tanto que São João o denominava de logos.
Concebido inicialmente como sendo o messias dos judeus,
como o que cumpre as profecias da Torah hebraica, mas
rejeitado por esse ponto de vista, ele se transformou pos-
teriormente num fenômeno religioso universal. A par dos
Evangelhos, foram sobretudo as cartas de São Paulo, en-
dereçadas a vários povos, que contribuíram para essa
universalização.
A existência de Jesus foi verbalmente concebida,
levando-se em conta não só a cultura hebraica (da qual o
Cristianismo é conseqüência), mas exigências de outras
culturas. Aliás, olhando-se para a História do Cristianis-
mo, por um lado, as culturas egípcia e hebraica estão in-
timamente relacionadas. Moisés (o fundador da nação
hebraica, seu legislador, e escritor da Torah) era egípcio.
Jesus também lá esteve por um longo tempo... Por outro
lado, as culturas grega e latina, uma ofereceu o arcabouço
teórico, e, a outra, a estrutura funcional para a consolida-
ção e institucionalização do Cristianismo. Coube a São
Paulo (o Moisés do Novo Testamento) os maiores feitos
nessa tarefa. Foi ele quem dogmatizou e deu autoridade à
doutrina do Cristianimo. E ao se dirigir a vários povos,
além de usar técnicas de convencimento, valeu-se de vári-
Miguel Spinelli

as fontes de inspiraç o: "Eu sou devedor aos gregos e aos


b rbaros, aos s bios e aos ignorantes"1.
Ele diz que se preocupava, em primeiro lugar,
com os judeus (com as comunidades judaicas dispersas
em v rios pontos do Imp rio Romano), e, em segundo
lugar, com os gregos, mas atingiu, em última instância,
sobretudo os romanos: "Eu n o me envergonho do evan-
gelho, porque ele  a força < dýnamis> de Deus para dar a
salvaç o a todo o que cr , primeiro ao judeu e, depois, ao
grego"2. Ali s, ele próprio era judeu, descendente de uma
família judia, nascido em Tarso, na Cilícia, mas um cida-
d o romano3. Ao contr rio de S o Pedro e de S o Jo o,
tidos como "homens sem letras e do povo"4, ele era reco-
nhecido e louvado pelo seu extenso saber5. Ele fora edu-
cado em Jerusal m. Ora, ser educado, segundo os padrões
daquela  poca, significava apropriar-se da cultura grega.
Quem se envolvia com a tradiç o helenística, e dominava
a língua grega, era tido como um "homem culto"; j a na-
ç o que praticava o direito e a jurisprud ncia romana era
tida como "civilizada".

1 Epístola aos Romanos, 1, 14; Fontes das quais nos serviremos para esse
estudo: MERK, A. Novum Testamentum Graece et Latine. Romae: Scripta
Pontificii Instituti Biblici, 1964; La Biblie de Jérusalem. Traduite en fran-
çais sous la direction de l'École biblique de J rusalem, Paris: Les Éditi-
ons du Cerf, 1974; Apoio: ZERWICK, M. Analysis Philologica Novi Tes-
tamenti Graeci. Romae: Scripta Pontificii Instituti Biblici, 1953.
2 Epístola aos Romanos, 1, 16
3 Atos dos Apóstolos, 22, 3; 22, 25-29
4 Atos dos Apóstolos, 4,13
5 "Est s louco, Paulo; o muito saber desorienta o teu espírito" (Atos dos

Apóstolos, 26, 24); "Ainda que eu seja grosseiro nas palavras, n o o sou
todavia na ci ncia" ( II Epístola aos Coríntios, 11, 6).
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

S o Paulo foi o grande mestre da divulgaç o e


aculturaç o 6 das doutrinas do Cristianismo. As suas cartas
s o personalizadas. Elas n o só se endereçavam a uma
comunidade precisa, como tamb m refletiam um modo
próprio de vivenciar e de conceber o Cristianismo. Os
Evangelhos (mesmo levando-se em conta que o de S o
Mateus fora escrito para uma comunidade específica, que
o de S o Marcos esteja vinculado ao magist rio religioso
de S o Pedro, e que o de S o Lucas e de S o Jo o estejam
vinculados a S o Paulo) tendem a ser universais: sem se
restringir aos interesses e necessidades de uma comuni-
dade em particular. Afora o Evangelho de S o Mateus
(endereçado aos crist os palestinos convertidos do j u-
daísmo), escrito em aramaico, mas logo traduzido para o
grego, todos os outros foram escritos originalmente em
grego. Esse fato, por si só, permite duas observações: pr i-
meira, os evangelhos foram endereçados a leitores, ou seja,
aos eruditos que sabiam ler, e que, em v rios pontos do
Imp rio Romano, dominavam a língua grega - a maioria
expressiva das populações n o sabia ler, era de auditores;
segunda, os que dominavam a língua grega estavam, de
um modo ou de outro, envolvidos com a Filosofia. Ora, a
quest o fundamental da Filosofia, desde os seus primó r-
dios, era a quest o do conhecimento, cujo pressuposto
b sico era a experiência (a empeiría) como fonte de conhe-
cimento. Parm nides foi o primeiro a formular de modo
claro essa pressuposiç o, arrolando-a como uma exig n-
cia preliminar do processo cognoscitivo.
Ele dizia que o conhecimento parte da afirmaç o
da existência, do seguinte modo: posto que, do que n o
existe, nada se pode falar,  necess rio, primeiro, como

6Pensamos, nesse sentido, em certos aspectos da doutrina, tais como,


sobre a lei e a justiça, sobre o matrimônio, especialmente o seu conceito
sobre a mulher, sobre o escravo e a escravid o, etc.
Miguel Spinelli

condiç o sine qua non de ci ncia, a constataç o da exist n-


cia antes de qualquer outra investigaç o 7. Ora, existir, pelo
ponto de vista empírico da filosofia grega, e por princípio,
 mostrar-se. Por isso, o que existe, al m de apresentar-se
empiricamente, de ter um corpo organicamente constituí-
do, de ocupar um espaço ou lugar, deveria estar submet i-
do ao processo de nascimento, crescimento, deterioraç o e
morte. É pressupondo esse princípio que Emp docles, um
discípulo de Parm nides, dizia: "N o nos  possível colo-
car (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou apanh -la
com as m os, principais caminhos pelos quais a persuas o
penetra o coraç o do homem" 8. Em outras palavras: ele
afirmava que o divino " apenas um espírito (ph
n)"9, e
que por isso, ou seja, pelo fato de ele n o se apresentar à
nossa percepç o sensível (ponto de partida do processo
cognoscitivo), n o se deixa conhecer.... Outros Pr -

7 "Vem, eu falarei, e tu guarda bem as palavras que vais ouvir, pois


vou te indicar quais s o os únicos e concebíveis caminhos que se ofere-
cem à investigaç o. O primeiro, como <o ser>  ( hópôs éstin), e que ele
n o pode n o ser, esse  o caminho da Persuas o, (pois segue a verda-
de); o segundo, que n o  , e que deve n o ser, mas esse, eu te asseguro,
 um atalho totalmente desconhecido, pois nem poderias conhecer o
n o-ente (que n o leva a nada) e nem express -lo em palavras" (DK 28
B 2 - Fonte: DIELS, H & KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. 18ª
ed. <Unveränderter Nachdruck der 6. Auflage 1951>, Zürich-
Hildesheim: Weidmann, 1989).
8 DK 31 B 133. Cf. Filósofos Pré-Socráticos, p. 191. Parm nides tamb m

dizia que só h um único caminho de investigaç o: o da exist ncia; sob


dois aspectos, ao mesmo tempo interrogativo e afirmativo: o que é (hôs
éstin) e como é (hôpos éstin). Veja, nesse sentido, o artigo O Exame de
Aristóteles da Proposiç o Ontológica de Parm nides. In Revista Portu-
guesa de Filosofia, Braga, 53 (2) 1997: 323-349.
9 "Pois, tal como o homem, n o  provido de cabeça e nem de me m-

bros, tampouco tem dois braços. N o tem nem p s e nem joelhos  geis,
nem genit lias peludas, mas  apenas um espírito, sagrado e inef vel,
cujo pensamento percorre instantaneamente todo o cosmos" (DK 31 B
134).
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

Socr ticos diziam a mesma coisa, assim como Melisso


(outro discípulo de Parm nides): "Ele dizia que, dos deu-
ses, n o se deve dar explicaç o definitiva, porque n o
podemos conhec -los"10. Antes dele, eis o que dissera o
pitagórico Alcme o: "Tanto no domínio do invisível
quanto no das coisas mortais, os deuses det m um conhe-
cimento imediato; quanto a nós, em raz o de nossa h u-
mana condiç o, só conjeturar  permitido" 11... Tamb m o
Epicurismo propunha que o conhecimento tinha que ser
reduzido, de alguma maneira, à sensaç o, e essa, por sua
vez, ao tato. Para um epicurista, o corpo  que  o real, e
n o a id ia, como propunha Plat o. El  real porque 
tangível... É um mito, entretanto, dizer que Plat o n o
atribua nenhum valor à pe rcepç o sensível.
Visto que os gregos n o acreditavam na possibili-
dade de se conhecer Deus porque ele n o  corpo, porque
n o se mostra ou  tangível... o nascimento de Jesus  nar-
rado como uma ruptura dessa condiç o. Duas descriç es
de S o Jo o, uma contida no preâmbulo do Evangelho e, a
outra, no da primeira Epístola, s o muito expressivas nes-
se sentido. Elas foram elaboradas com termos filosóficos,
e a sua linguagem remonta a Her clito. O curioso  que
foi na mesma cidade de Her clito, em Éfeso, que S o Jo o
escreveu tanto o Evangelho quanto as epístolas. Isso se
deu por volta do ano 98, durante um período em que ali
cuidava de uma comunidade crist , fundada por S o
Paulo. Eis, pois, como ele inicia o Evangelho:
"No princípio (en arch i) era o Logos ( n ho Lógos ), e
o Logos estava perante Deus (pròs tòn Theón ), e Deus era o
Logos"12. Assim  o prólogo da primeira Epístola: "O que
era desde o princípio (hò n ap' arch
 ), o que ouvimos, o

10 DK 29 A 1
11 DK 24 B 1
12João, 1, 1
Miguel Spinelli

que vimos com os nossos olhos, o que observamos, e o


que tocamos com as nossas m os, ou seja, o Logos da vida
(toû lógou t s zô
 )... nós vos anunciamos..." 13. Como, ali s,
est dito no Evangelho: "nós dizemos o que sabemos e
damos testemunho do que vimos"14.
A linguagem da qual se serve S o Jo o  franca-
mente filosófica e heraclitiana. Entretanto, ela tamb m
assinala uma ruptura com a Filosofia e com Her clito. S o
Jo o n o tem nenhuma preocupaç o filosófica no sentido
de formular teoricamente a arch e o logos. Os seus interes-
ses s o estritamente religiosos: Deus  a arch , o princípio
de tudo, e o logos. Ele  "o Logos que se fez carne e que
veio habitar entre nós" 15. Posto diante de nós, frente ao
nosso campo de observaç o, nós (S o Jo o se apresenta
como testemunha universal desse evento) experienciamos
de fato a sua exist ncia e constatamos a sua verdade. En-
quanto arch , Deus  o Logos vivo, n o mais um sujeito
lógico-teórico, mas uma presença de fato, empiricamente
considerada e, portanto, passível de ser conhecida. "Quem
 s tu (perguntou algu m a Jesus)? E ele respondeu: o
princípio (t n arch n)"16. Por um ponto de vista, Deus (de-
nominado por S o Jo o de a luz e a verdade), manifesto em
Jesus Cristo,  tudo aquilo a que um homem possa exis-
tencial e intelectualmente aspirar. Sendo Jesus a express o
absoluta da sabedoria divina, a sua doutrina precede
qualquer outra sabedoria... Por um outro ponto de vista,
referendado ao Antigo Testamento, Deus deixa de ser t o-

13 I Epístola de São João, 1, 1-2. Traduç o latina: " Quod fuit ab initio,
quod audivimus, quod vidimus oculis nostris, quod perspeximus et
manus nostrae contrectaverunt... adnuntiamus vobis..." (MERK, A.
Novum Testamentum Graece et Latine. Romae: Scripta Pontificii Instituti
Biblici, 1964, p. 771).
14João, 3, 11
15João, 1, 1-2
16João, 8, 26; o par ntesis foi acrescentado.
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

somente um logos (a palavra ou o discurso) contido nas an-


tigas Escrituras, a fim de submeter-se à exist ncia, ao pr o-
cesso de nascimento, crescimento, deterioraç o e morte.
Ele deixa de ser uma linguagem ou escritura, e tamb m
uma substância incorpórea (um pneûma), a fim de se colo-
car ao alcance de nossos olhos a ponto de podermos toc -
lo com as m os. Ele deixa, enfim, de ser t o-somente um
discurso da f ancestral, para se transformar em carne: "No
princípio... Deus era o Logos (no sentido de a Escritura)...
mas o Logos se fez carne e veio habitar entre nós, e nós
vimos a sua glória, glória como de Filho  nico do Pai,
cheio de benevol ncia e de verdade <charitos kaì al theí-
as>"17.
A divindade de Jesus  a quest o fundamental
n o só do Evangelho de S o Jo o, como de todos os
Evangelhos. Ela  um dogma inquestion vel para o cris-
t o, e se constitui no princípio essencial de sua f , que,
por sua vez,  a garantia de seu testemunho. A convicç o
qualifica o testemunho, mas ele sozinho, e por mais confi-
 vel que seja, n o basta. A ci ncia exige provas. Tanto o
testemunho, em geral, quanto um testemunho, em parti-
cular, s o sempre carentes de cr dito: s o provas fracas.
Por isso, a jurisprud ncia dos latinos, e dela os crist os se
apropriaram, invalidava a veracidade de um  nico teste-
munho. "N o recebas (aconselhava S o Paulo a Timóteo)
acusaç o contra um presbítero, sen o com duas ou tr s
testemunhas"18. "Se algu m violar a lei de Mois s (escre-
veu S o Paulo aos Hebreus), sob a deposiç o de duas ou
tr s testemunhas, morre sem remiss o alguma"19. Visto
que ele era um cidad o romano, e que, inclusive, "apelou

17 "En arch i... Theòs en ho Lógos... Kaì ho Lógos sàrx egu neto..."; traduç o
latina: "In principio erat Verbum... et Deus erat Verbum... Et Verbum caro
factum est..." (Jo o. 1, 1-2; o par ntesis foi acrescentado).
18 S o Paulo. I Epístola a Timóteo. 5, 19
19 S o Paulo. Epístola aos Ebreus. 10, 28
Miguel Spinelli

a C sar"20 a fim de n o ser julgado pela jurisprud ncia dos


judeus, sabia do que estava falando. Mas eis o que escre-
veu S o Lucas, nos Atos dos Apóstolos , sobre a jurispru-
d ncia romana: "... n o era costume dos romanos conde-
nar homem algum antes do acusado poder confrontar-se
com os seus acusadores e ter tido a oportunidade de de-
fender-se de seus crimes"21...
Todos os Evangelhos est o fundados nesta rela-
ç o entre f e testemunho. De modo semelhante ao que os
gregos concebiam sob o conceito de r , o Cristianismo
passa a conceber sob o conceito da f . A "verdadeira luz",
na Filosofia, alcança-se mediante irrefut veis argumentos
lógicos; no Cristianismo, mediante argumentos da f . "A
f (dizia S o Paulo)  o fundamento <ypóstasis > das coisas
que esperamos e o argumento < lenchos> das coisas que
n o vemos. Pela f , os antigos obtiveram um bom teste-
munho; enquanto que, nós, atrav s dela, sabemos
<noûmen> que os mundos foram feitos da palavra de
Deus, de tal modo que, das coisas invisíveis deu origem
ao que se v "22.
Do que vemos, por um ponto de vista filosófico,
inferimos o que n o vemos, e, pelo que n o vemos, damos
como conhecido o que vemos. Nós n o vemos, por exem-
plo, o capim crescer, mas observamos a mudança, e, por
ela, damos como conhecido o crescimento. Her clito, ali-
 s, dizia que "os homens se enganam no conhecimento
das coisas visíveis"23, e que "a vista  enganadora"24. Visto
que a percepç o sensível n o nos serve como crit rio de
conhecimento, o que vemos serve t o-somente como mo-
tivaç o para inferirmos o que n o vemos. O visível esti-

20 Atos dos Apóstolos. 25, 12; 26, 32


21 Atos dos Apóstolos. 25, 16
22 Epístola aos Hebreus. 11, 1-3
23 DK 22 B 56 e B 46
24 Epístola aos Hebreus. 11, 1-3
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

mula em nós a busca pelo invisível, porque  le que f i-


nalmente nos satisfaz, ou seja, nos assossega, na medida
em que nos d como conhecido o que vemos. Para os
crist os, o processo tem-se mostrado inverso. Porque,
para eles, "o que se pode conhecer de Deus, lhes  mani-
festo. Foi Deus mesmo (como diz S o Paulo) quem lhes
manifestou. Pois o que de Deus havia de invisível, depois
da criaç o do mundo, pode ser observado pelo intelecto
em suas obras <poi masin nooúmena kathorâtai>, tal como a
sua eterna pot ncia <dýnamis> e a sua divindade"25. Nas
obras visíveis, feitas pelo Criador, v -se tamb m o que
nele h de invisível e, desse modo, d -se como compre-
endido, pelas coisas que vemos, o que n o vemos.
A f , para o crist o,  a sua fonte de sabedoria.
Enquanto que o filósofo "v " com os "olhos" da r  o, o
crist o v com os olhos da f . Por isso, o crist o n o carece
de pressupostos teóricos e nem de argumentaç o concei-
tual. É apoiado em sua f que ele d testemunho do que
sabe. Por essa relaç o, entre f e testemunho, os Evangelhos
foram elaborados, quer no intuito de expressar a f de
seus autores (especialmente a dos apóstolos, que conviv e-
ram com Jesus, mas tamb m a daqueles que creram), quer
para servir de instrumento persuasivo (apoiado na f dos
que cr m) para os que n o cr m.
A f , para o crist o,  tamb m o seu argumento, e
 le que qualifica o seu testemunho. Mas a f de um só (a
exemplo do testemunho na jurisprud ncia romana) n o
tem valor extensamente persuasivo. E só a f tamb m n o
basta, pois ela exige obras, tal como escreveu em sua
Epístola, S o Tiago: "Que resultar de proveitoso, meus
irm os, se algu m diz que tem f , e n o tem obras? (...).
Poder mesmo algu m dizer: Tu tens f , e eu tenho as
obras e eu te mostrarei a minha f pelas minhas obras.

25 Epístola aos Romanos. 1, 19-20


Miguel Spinelli

(...). Porque assim como o corpo sem espírito  morto,


tamb m a f sem obras  morta"26. Ou seja, de um certo
modo as obras antecedem e precedem a f . As obras da
criaç o, para o que cr , s o motivaç es para sua f ; mais
do que elas, o nascimento e a ressurreiç o de Jesus: "Se
Cristo n o ressuscitou (dizia S o Paulo),  v  nossa pre-
gaç o, e tamb m  v a nossa f ; e somos assim consid e-
rados falsos testemunhos..."27.
O nascimento de Jesus, por si só, n o despertaria
nada, f alguma, se n o fosse o modo como ele nasceu. É
sobre esse modo que os Evangelhos, na descriç o do na s-
cimento de Jesus, p em acento. Mas o que finalmente se
acentua, n o  o fato de Jesus ter nascido simplesmente, e,
sim, o fato de que ele nasceu na condiç o de filho de Deus
que veio ao mundo. N o se trata de um nascimento co-
mum. Somente Mateus e Lucas relatam o nascimento de
Jesus: a) Esta a descriç o de S o Mateus: "Ora, o nasc i-
mento de Jesus Cristo foi deste modo: estando Maria, sua
m e, prometida como esposa de Jos , antes de coabita-
rem, ela descobriu que estava gr vida por obra do Espí-
rito Santo. Jos , seu futuro esposo, sendo justo, e n o que-
rendo castig -la <deigmatísai>, de bom grado se propôs
liber -la secretamente do prometido. Enquanto essa id ia
persistia no seu pensamento, eis que um anjo do Senhor
lhe apareceu em sonhos dizendo: Jos , filho de Davi, n o
temas receber Maria como tua esposa, porque o que dela
vai nascer  por obra do Espírito Santo"28. (Causa esp cie o
fato de S o Jos ter sido avisado, por um mensageiro di-
vino, do ocorrido, somente depois do fato consumado, e
n o antes); b) Segundo a descriç o de S o Lucas: Deus
enviou o anjo Gabriel "a uma virgem dada em casamento

26 Epístola de S o Tiago. 2, 14-26


27 I Cor.. 15, 14
28 Mateus. 1, 18-20
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

a um var o... E o anjo disse-lhe: ... eis que conceber s no


teu ventre (en gastrí), e dar s à luz um filho, e por-lhe- s o
nome de Jesus. (...). E Maria disse ao anjo: Como se far
isso se eu n o conheço homem?". ( N conheço <oyk gui-
nôskô > expressa a negaç o de um envolvimento empírico,
de uma copulam maritalem). "E, respondendo, o anjo disse-
lhe: O Espírito Santo <o pneûma háguion> vir sobre ti e a
pot ncia <dýnamis> do altíssimo te cobrir com sua som-
bra"29...
Os textos s o "suficientemente claros" (pelo
ponto de vista de sua literalidade), com uma intenç o
precisa: assegurar que o nascimento de Jesus era de todo
extraordin rio. O nascimento do filho de Deus n o pode-
ria restringir-se a um intercurso reprodutivo tipicamente
humano. A sua filiaç o divina necessariamente requeria
uma participaç o seminal de outra ordem, cuja semente
deveria ter uma origem divina. Entretanto, só h um
meio (previsto naquela  poca) de nascer: o ter sido gerado
no corpo de uma mulher. Se no caso de Jesus houvesse a
participaç o de um homem, o seu nascimento seria c o-
mum. A negaç o dessa participaç o vem afirmada atrav s
da prova material (ginecológica) da virgindade. Mas,
al m dessa prova material (semelhante à do túmulo vazio,
no caso da ressurreiç o), o relato do nascimento elenca
outras raz es, como o da anunciaç feita pelo anjo (pelo
mensageiro da divindade), o da participaç o do espírito divi-
no (que se sobrep e à participaç o de um homem)... que
s o descritas como provas da divindade de Jesus.
Quanto à ressurreiç o, ela  relatada pelos quatro
Evangelhos. Tomemos por base o Evangelho de S o Ma-
teus, e vejamos como, em certos passos30, ele ressalva v -
rias precauç es de ordem empírica associadas a argu-

29 Lucas. 1, 26-35
30 Mateus. 27, 57-66; 28, 1-20
Miguel Spinelli

mentos de autoridade: a) O corpo de Jesus foi entregue a


Jos de Arimat ia, a quem o relato do Evangelho faz
quest o de dizer que era "um homem rico", e que "se fize-
ra discípulo de Jesus" <autòs emath teusen tôi I soû>. Ora, o
fato de ser rico lhe proporcionava autoridade e influ ncia,
e fazia com que o seu testemunho fosse mais valioso do
que o dos outros; assim, por exemplo, como advertia S o
Tiago: "n o s o os ricos que vos oprimem com prepot n-
cia, e n o s o eles que vos arrastam aos tribunais?"31. Ou
seja, o testemunho dos ricos, de um modo geral, e j na-
quela  poca, gozava de maior autoridade e de credibili-
dade, principalmente nos tribunais. No caso de Jos de
Arimat ia, a sua autoridade era tanta, que lhe permitia
falar pessoalmente com o Governador: "Ele foi ter com
Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus. Pilatos mandou en-
t o que lhe fosse dado o corpo"32. Se n o fosse por ele, o
corpo de Jesus, como era de costume, teria permanecido
por longo tempo na cruz, fincada no morro do calv rio,
onde eram crucificados os ladr es e os bandidos. Por isso
era chamado de Gólgota, o lugar do crânio. Alí, os crucifi-
cados ficavam expostos à vista de todos, a fim de serv i-
rem de exemplo, e de dissuas o; b) O fato de ser rico, isso
tamb m possibilitava a Jos de Arimat ia ter um t mulo
da melhor qualidade, e inviol vel: "um sepulcro novo,
que ele mandara cravar na rocha"33. Com efeito, assim que
Pilatos mandou que lhe fosse entregue o corpo de Jesus,
ele "envolveu-o num lençol branco, e depositou-o no seu
sepulcro... E rolou uma grande pedra para diante da boca
do sepulcro, e retirou-se"34. Maria Madalena e uma outra
Maria presenciaram tudo (kath menai, sendo que ohi kath -

31 Epístola de S o Tiago. 2, 6
32 Mateus. 27, 58
33 Mateus. 27, 60
34 Mateus. 27, 59- 60
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

menoi diz respeito a uma atividade dos juízes35). Segundo


Marcos, "elas estavam observando <e-theôroun , de theo
ô >
onde estava sendo depositado" o corpo de Jesus36;
c) No dia seguinte, foi a vez dos sumos Sacerdo-
tes e dos fariseus terem com Pilatos, "e lhe disseram: Se-
nhor, estamos cientes de que aquele vagabundo <ho
plános>, quando ainda vivia, disse: Depois de tr s dias
ressuscitarei. Ordena, pois, que seja vigiado o sepulcro at
o terceiro dia, a fim de que n o venham os seus discípulos
e o roubem, e depois digam ao povo: Ele ressuscitou dos
mortos; esse  ltimo equívoco <plán > seria pior do que o
primeiro"37. Ora, dessa descriç o de S o Mateus  possível
dizer duas coisas: uma, que as autoridades estavam cientes
da possibilidade da ressurreiç o de Jesus; outra, que, na
ocasi o em que Mateus se pôs a escrever o Evangelho
(entre os anos de 42 a 45), estava muito difundida a crença
de que os discípulos roubaram e esconderam o corpo de
Jesus, e andavam pregando que ele tinha ressuscitado, e
que estava junto de Deus pai. Fica evidente, ali s, que o
propósito de S o Mateus era dissuadir os judeus dessa
crença, contest -la e, sobretudo, descartar a acusaç o p  -
blica que pesava sobre eles. Nesse sentido, o seu relato
culpa os sumos Sacerdotes e os fariseus de serem os
mentores da divulgaç o dessa crença. Ele os acusa, incl u-
sive, de suborno; diz que, quando os guardas foram rela-
tar o acontecido, os Sacerdotes lhes "deram uma grande
soma de dinheiro, dizendo: Declarai: os seus discípulos
vieram de noite, e enquanto nós est vamos dormindo, o
roubaram. (...) recebido o dinheiro, fizeram como lhes

35 ZERWICK, M, op. cit., p. 75


36 Marcos. 15, 47
37 Mateus. 27, 62-64
Miguel Spinelli

tinha sido ensinado, e essa voz <ho lógos > divulgou-se


entre os judeus at o dia de hoje"38;
d) Quanto à preocupaç o dos sumos Sacerdotes
de ir a Pilatos e ao fato de serem os mentores da crença no
roubo, S o Mateus n o nos oferece nenhuma explicaç o.
O que lhe importava, certamente, era dar  nfase à guarda
do t mulo, descrita como um compromisso oficial assu-
mido pelo Estado, e que, por isso, a acusaç o de roubo
n o fazia sentido. Afinal, quando os sumos Sacerdotes
foram ter com Pilatos, ele assegurou-lhes: "Tendes a vossa
guarda, ide, e guardai-o como entendeis. E eles foram, e
guarneceram o sepulcro com guardas, e selaram a pe-
dra"39. A sepultura, portanto, e isso  apresentado como
uma prova forte, estava protegida e guarnecida por ordem
do poder imperial;
e) Mas o que efetivamente ocorreu? Esta  a des-
criç o de S o Mateus: no domingo de manh , Maria M a-
dalena e a outra Maria foram "visitar o sepulcro". S o
Marcos diz que elas iam "embalsamar o corpo de Jesus", e
que, pelo caminho, "diziam entre si: Quem nos h de re-
volver a pedra da boca do sepulcro?"40. Mas assim que elas
chegaram (diz S o Mateus), "eis que se deu um grande
terremoto, e um anjo do Senhor desceu do c u, aproxi-
mou-se e revolveu a pedra, e sentou-se sobre ela(*). (...).
Pelo medo que tiveram dele, os guardas ficaram paralisa-

38 Mateus. 28, 11-15


39 Mateus. 27, 65-66
40 Marcos. 16, 1-3
(*) Eis as outras versões dos Evangelhos, concordantes quanto ao fato,

mas contraditórias entre si: a de Marcos: quando elas chegaram "viram


a pedra revolvida... E, entrando no sepulcro, viram um jovem sentado
do lado direito... e ficaram assustadas" (Marcos. 16, 4-5); a vers o de
Lucas: elas "encontraram a pedra do sepulcro revolvida. Ao entrarem...
estando consternadas, eis que apareceram junto delas dois homens
com vestes resplandecentes" (Lucas. 24, 2-4); confira a vers o de Jo  na
segunda nota a seguir.
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

dos, como mortos. Ent o o anjo disse às mulheres: Vós


n o temais! Sei que procuram o Jesus crucificado, mas ele
n o est aqui; ele ressuscitou como tinha dito. Vinde e
vede o lugar onde ele estava depositado, e ide logo contar
aos discípulos que ele ressuscitou..."41. Ora, a descriç o de
S o Mateus n o se preocupa em fazer dos guardas teste-
munhas, e sim das duas mulheres, as mesmas, ali s, que
presenciaram o sepultamento e que, agora, certificavam vi-
sualmente o t mulo vazio. J o relato de S o Jo o fala, en-
tretanto, somente de uma mulher, de Maria Madalena, e
lhe atribui uma condiç o secund ria enquanto testem u-
nha. Ele atribui a Sim o Pedro e a um outro discípulo essa
tarefa, relegando à mulher uma condiç o de segundo
plano: algu m que sai correndo para avisar, retorna de-
pois deles e, enquanto eles entram no sepulcro, "se con-
serva da parte de fora, chorando"42...
f) A ressurreiç o de Jesus n o  narrada como
um fato isolado. S o Mateus assegura, por exemplo, que
no momento da morte de Jesus, muitos outros mortos
tamb m ressuscitaram: "muitos corpos de santos, como
que adormecidos, ressuscitaram, e, saindo dos sepulcros,
entraram na cidade santa e mostraram-se a muitos..."43.
Antes desse evento, por m, a propósito de Jo o Batista,
Herodes tamb m dissera: "Este  Jo o Batista, que, por si

41 Mateus. 28, 1-7; o it lico foi acrescentado


42 Esta  a vers o de S o J  o: "No primeiro dia da semana, Maria Ma-
dalena foi ao sepulcro... e viu que a pedra estava retirada. Correu, pois,
e foi ter com Sim o Pedro e com um outro discípulo... Partiu ent o
Pedro e aquele outro discípulo... que chegou primeiro ao sepulcro. (...).
Chegou depois Sim o Pedro, e entrou no Sepulcro... Ent o entrou
tamb m aquele discípulo que tinha chegado primeiro, e viu e creu... e
voltaram para casa. Entretanto, Maria conservava-se da parte de fora,
chorando. E, enquanto chorava, inclinou-se e olhou para dentro do
sepulcro, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados... um à cabece i-
ra e outro aos p s, onde Jesus tinha sido depositado" (Jo o. 20, 1-12).
43 Mateus. 27, 51-53; o it lio foi acrescentado.
Miguel Spinelli

mesmo, ressuscitou dos mortos, e eis porque tantos mila-


gres se operam por meio dele"44;
g) Depois de ressuscitado, Jesus aparece aos seus
discípulos, sendo que esta  a prova empírica mais con-
tundente: "Por que est o assustados (pergunta-lhes
Jesus)? Olhem minhas m os e p s, e ver que sou eu
mesmo; apalpem-me e olhem, pois um espírito (pneûma) n o
tem carne e osso..."; e acrescenta: "Disso vós sois testemu-
nhas <martýres>45", cujo termo designa a presença de al-
gu m que observou o acontecer, e que, por conseqü ncia,
experimentou, de certo modo, o evento.... Est dito nos Atos
dos Apóstolos que, depois de sua ressurreiç o, Jesus "se
mostrou vivo, com muitas provas, aparecendo aos discípulos
por quarenta dias..."46. Numa dessas apariç es (o relato 
de S o Lucas), Jesus, chegando, perguntou-lhes: "Tendes
aqui alguma coisa que se coma? Ent o lhe deram uma
posta de peixe assado e um favo de mel, e ele comeu di-
ante deles..."47. Numa outra ocasi o (o relato  de S o
Jo o), quando os discípulos retornavam de uma pescaria
frustrada, Jesus lhes apareceu, e perguntou-lhes: "Ó mo-
ços, tendes alguma coisa de comer? Responderam-lhe:
Nada. Disse-lhes Jesus: Lançai as redes... E eles lançaram,
e j n o a podiam tirar, tanta era a quantidade de peixes...
Disse-lhes Jesus: Vinde e jantai... Ele se aproximou, pegou
o p o e lhes deu, e assim tamb m o peixe. Essa era a ter-
ceira vez que Jesus se manifestava aos discípulos depois
de ressuscitar dos mortos"48. Ora, tanto o relato de S o
Lucas, quanto o de S o Jo o asseguram que Jesus comeu
depois de sua ressurreiç o, e isso quer dizer que a sua
ressureiç o foi completa: do corpo e da alma. Ela se deu

44 Mateus. 14, 2
45 Lucas. 24, 38-39 e 24, 48; o it lico foi acrescentado.
46 Atos dos Apóstolos. 1, 3
47 Lucas. 24, 42-43
48 Jo o. 21, 13-14
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

de modo semelhante ao que acreditavam os antigos egíp-


cios que, por isso, embalsamavam os corpos a fim de pre-
serv -los, e sobretudo dotavam o t mulo de bens, de ri-
quezas e de alimentos;
h) "Aquele que o verdadeiro Deus ressuscitou
dos mortos n o experimentou a deterioraç o < ouk eîden
diaphthor n>"49. A morte de Jesus se deu no pleno vigor da
sua forma física. "Todos envelhecer o como um vestido",
dizia S o Paulo50. Mas Jesus n o envelheceu. O divino 
perman ncia e n o mudança; ele  o que " sempre o
mesmo" <ho autós eî>51. Afinal, como teria sido o filho de
Deus morrer depois de velho, ou seja, deteriorado pelos
desgastes da vida e do tempo? Quando n o, desiludido
com muitas coisas e desgostoso! Por certo a idade e o
modo como ele morreu, e todo o relato de sua trag dia,
contribuiram decisivamente para o sucesso da propaga-
ç o do evento...
Em conclus o, o evento Jesus  apresentado, nos
Evangelhos, como uma contradiç o ao que os gregos d i-
ziam sobre o conhecimento de Deus, mas tamb m como
uma confirmaç o ao que se admitia como passível de co-
nhecimento a partir de Parm nides, nos seguintes termos:
Deus (em Jesus) n o era mais o lógos ou o mythos carente
de exist ncia, um n o-ser do qual nada se poderia conhe-
cer e nem sequer "express -lo em palavras"52. Visto que
Jesus  o Deus que se mostra ou, como dizia S o Paulo, "
a imagem do Deus invisível"53, sobre Deus, agora, n o se
careceria mais de suspender o juízo e, nem tampouco, de

49 Atos dos Apóstolos. 13, 37


50 Epístola aos Hebreus. 1, 11
51 "Eles perecer o, mas tu permanecer s... e tu os mudar s como se

muda uma capa, e eles ser o mudados; tu, por m,  s sempre o mesmo"
(Epístola aos Hebreus. 1, 11-12).
52 DK 28 B 2 e B 8
53 Col. 1, 15
Miguel Spinelli

restringi-lo à conjetura. Sobre ele n o era mais possível


dizer (tal como afirmava Emp docles) que a divindade
n o se p e "ao alcance de nossos olhos" ou n o se deixa
tocar com as m os. Ele se pôs à vista dos mortais e  ta n-
gível: "Em Cristo (dizia tamb m S o Paulo) habita corpo-
ralmente a plenitude da divindade"54. Sendo assim, al m
de n o haver mais motivo para negar-lhe a exist ncia,
tamb m seria desnecess rio (mediante argumentos filosó -
ficos) querer demonstr -la.
Entretanto, a quest o do nosso conhecimento a
respeito de Deus, n o  t o pacífica quanto parece. O pró -
prio S o Paulo tem dificuldades ("filosóficas") em justif i-
car, na forma humana de Jesus, o conhecimento pleno da
divindade. A dificuldad  a seguinte: os filósofos gregos
ensinavam que a percepç o sensível n o era garantia de
conhecimento, e S o Paulo parece que tamb m sabia dis-
so. Na sua carta aos Coríntios, est escrito: "... a ningu m
conhecemos segundo a carne. E se houve tempo em que
conhecemos <egnôkamen > a Cristo segundo a carne, agora
j n o o conhecemos <gnôskomen > desse modo"55. Mas,
al m de S o Paulo, tamb m S o Jo o demonstra dificul-
dade semelhante. Ele diz no Evangelho: "E o Verbo se fez
carne, e habitou entre nós; e nós vimos < the mai> a sua
glória < dóxa >..."; mas acrescenta: "Deus (por m) ningu m
jamais viu <hor >"56, dando a entender que "ver" Jesus e
"ver" Deus s o duas coisas distintas. Como de fato o s o.
Pois quando ele diz que "o Verbo se fez carne, e nós vimos
a sua glória ",  como se dissesse: "nós constatamos os seus
grandes feitos" e que isso lhe dava certeza de que Jesus era
o filho de Deus. Ou seja, quando ele diz "nós vimos" ( the-
 mai), ele estava querendo dizer "nós constatamos". Po r-

54 Colossenses. 2, 9
55 II Cor.. 5,16
56 "Theòv, oudeìs heôraken pôpote..." (J o. 1, 18).
Dissertatio, UFPel (9), pp. 109-124, Inverno de 1999

que the mai (ver, considerar, contemplar) n o comporta


um sentido propriamente empírico, e sim, inteligível; n o
diz respeito a um "ver" físico (com os olhos da face), mas
com o espírito ou com a intelig ncia. Por isso  distinto do
"ver" (hor ) referente a Deus. Hor tem um sentido es-
tritamente empírico, e  sinônimo de eídô (ver, olhar, en-
tender). Quer dizer, hor se aplica a Jesus e n o a Deus,
mas a Jesus humana e empiricamente considerado. Porque o
ver Deus (the mai), em Jesus,  um ver n o empírico. Ou
seja, S o Jo o viu Jesus, conviveu com ele, certificou-se de
sua presença e de seus grandes feitos, e, sobretudo, ouviu
as suas palavras (reveladoras). Ocorreu-lhe, por m, que
Jesus, enquanto presença (de Deus) expressa em um co r-
po sensível, n o lhe revelou, por esse meio, a sua origem
divina, ou seja, n o foi vendo ou tocando Jesus que ele,
em particular, ou o crente, em geral, conheceram a origem
de sua exist ncia. A divindade de Jesus n o foi revelada
pela percepç o sensível; ao contr rio, clamava, a par do
sensível, pelo inteligível, por um tipo de envolvimento
que só o espírito seria capaz de concretizar.
Enfim, no Jesus visível, a divindade se mantinha
invisível. Ela permanecia oculta, e em segredo. Afinal,
pergunta S o Paulo: "Quem conhece os segredos do ho-
mem sen o o espírito do homem que est nele? J os se-
gredos de Deus, ningu m os pode conhecer, a n o ser o
espírito de Deus"57. Porque o "homem psíquico <psychikòs
dè  ntrôpos > n o acolhe o espírito <pneûma> de Deus, pois
 loucura para ele e n o o pode conhecer"58. Ou seja, ao
fato de sermos dotados do "espírito que vem de Deus,
com o qual podemos conhecer <eídô > as coisas que nos
foram dadas"59 (cujo verbo eídô =ver, observar, experimentar,

57 I Cor.. 2, 11
58 I Cor.. 2, 14
59 I Cor.. 2, 12
Miguel Spinelli

expressa a um saber empírico), n o se segue que possamos


igualmente conhecer as coisas (divinas) que dizem res-
peito a Deus. Quer dizer, n o  pelo fato de o homem ter
sido criado à imagem e semelhança de Deus, de ser dot a-
do do pneûma divino, que ele seja naturalmente capaz de
conhecer Deus ou de penetrar nos seus mist rios. Na rela-
ç o do crente com Deus, pressup e-se a graça e a ilum i-
naç o divina, al m de uma subjetividade pessoal nessa
relaç o.

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