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Revista de Cultura da Universidade Federal da Bahia


,

O Padre Serafim Leite



e a língua tup1

Em pontos atinentes à lin- pseudo-entendidos nunca che-


güística indígena o Pie. Sera- gou a ter concepção muito cla-
fim Leite arcou penosamente, ao ra das diferenças marcantes en-
longo da sua laboriosa trajetó- tre as três etapas históricas no
ria de historiador, com a im- desenvolvimento da língua tu pi
precisão de certos têrmos da literàriamente fixadas:
dialetologia -tupi, somada com I . O legítimo tu pi, a língua
idéias e preconceitos hauridos briasílica .dos índios, unificada
durante a fase inicial da sua vi- nos compêndios jesuítas e por
da n a Amazônia. êles cultivada, qual nôvo latim,
Não sendo lingüista, sempre até à sua expulsão, em 1759.
sobresti1nou o nheengatu, rema- II . O dialeto de transição, a
nescente hodierno da língua- língua-geral, que se desenvolveu
geral dos tempos coloniais, do entre os colonos e agregados sob
brasiliano, dialetos semiciviliza- a influên cia sempre crescente
dos, como adjuvan tes na inter- do português, e,
pretação de têrmos e textos an- III. o mod·e rno nheengatu,
tigos . Tal como a maioria dos que nunca foi língua original
295
J

de qualquer tribo tupi, mas é escapou-lhe a oportunidade de


o desenvolvimento amazónico do fazer justiça aos antigos tupinis-
brasi.Ziano (1) , a modalidade da tas da Companhia num ponto
língua-geral do antigo Estado tão malsinado, em que urge fi-
do Maranhão e Grão-Pará. xar terminologia moderna e
Na terminologia não foi, as- ,transparente . Muito aio revés,
sim, o reformador de velhos continuando a usar indistinta-
conceitos que admiramos em al- mente o têrmo língua-geral
guns pontos no historiador, mas também no sentido de língua
apenas o tateante adepto do seu brasílica e de qualquer dialeto
tempo e dos cronistas da Or- tu pi, confere-lhe três acepções,
dem, propenso a retificações prejudicando a clareza da sua
ocasionais no correr das duas exposição em muitos trechos.
últimas décadas. A língua-geral de Pero Rodri-
Sofrendo, ao iniciar a redação gues (3) não se confunde com a
da sua História, visível influên- língua-geral da página seguin-
cia de afoita corrente paulista, te, nem com a de António Pe-
logo superada, não viu maiores reira (4 ) e muito menos com a
inconv;enientes na adoção for- de Teodoro Sampaio e Barbosa
tuita do esdrúxulo têrmo língua Rodrigues (5 ) . E, fôra tão fácil
tupi-guarani, que felizmente evitar dubiedades pelo emprêgo
tornou a repudiar mais tarde.
das denominações restritas: lín-
Entre as primícias daquela épo-
gua tupi ou língua brasílica, lín-
ca inicial figura um estudo do
seu livro Páginas de história do gua-geral, nheengatu, dialeto tu-
p í.nam bá, etc., se, por outro lado,
Bra,s-i.l (2), que traz uma série de
confusões, ainda parcialmente as nossas cátedras universitárias
r~tificadas em publicações ulte-
tu pis t i v e s s e m ministrado
riores. orientação mais adequada. Aliás,
Da Língua .m ais usada na cos- Serafim Leite notou a discre-
ta do Brasil, de Anchieta, à lín- pância, circunscrevendo em uma
gua-geral dos cronistas, a distân- referência a denominação lín-
cia parece insignificante para a gua-geral pela nota: "a que os
maioria dos leitores; não o é, en- padres fixaram" (G) .
tretanto, para o lingüista. Re- A citação de têrmos e frases
p etimos: A "língua mais usa- tupis foi sempre atração e ao
da" (Anchieta referia-se aos ín- mesmo tempo motivo de desas-
dios) é a língua ·brasílica, o sossêgo para o antigo familiar
idioma original dos tupis da da terra do nheengatu. Nota-se.
costa, .e nquanto a língua-geral é o seu esfôrço por penetrar-lhes
o tupi remai1ejado na bôca dos o sentido e provàvelm·e nte nun-
~

portugueses e mestiços .
. ca soube quão poucas vêzes o
Infelizmente, o caráter espe- conseguiu nos casos onde o pró-
cífico da língua brasílica não prio texto não o socorria.
mereceu o devido relêvo de Se- Não queremos com estas afir-
rafim Lei te ·e com essa f a.lha mativas, nem inculcar Serafim
296
Leite de tôdas as interpretações
falhas por êle transcritas, nem
É
-
um trecho que, para boa
compreensao, exige. uma nota
exagerar-lhes o número ou as e.~clarecedora da palavra abunás.
proporções. Destinadas a figu- Os índios tupis apelidavam
rar inocentes galas de ilustra- os missionários de acôrdo com a
ção, a sua presença nada acres- rou peta. Os franciscanos e ca-
centa ou sub;trai ao valor da puchinhos eram chamados pa-
opulenta obra histórica . · dres gafanhotos, por causa do
1 I sto pôsto, passemos aos co- capuz, que lembra a conforma-
mentários propriamente lin- ção da parte superior dianteira
.. , .
g·u1st1cos. .. dêstes ortópteros .
Os religiosos da Ordem das
- ABA-ETÉ E ABAITÉ M·e rcês eram conhecidos por
padres brancos, devido à côr da
Há, tanto no tupi como no batina. Aos jesuítas davam o
guarani, dois têrmos que, por nome de padres de roupa preta.
terem sido considerados inicial- Roupa preta ,em tupi, é aob-
mente homógrafos, têm causado -una, um composto que no bra-
unia série de malentendidos. siliano, na língua-geral do Nor-
São: abá-été e abaité, escritos te, deperece para obuna. Entre-
nos compêndios antigos de ma- tanto, aplicado aos j esuítas, obu-
neira uniforme abaeté. na se alterou ali estranhamente
Baseado em deduções etimo- para abuna, confundindo-se com
lógicas ponderáveis e servindo o legítimo homófono abuna, que
à clareza, distingue-se mais re- em tupi significa cabelo prêto!
centemente abá-eté - homem A população heterogênea de
grave, homem ilustre de abaité me.s1tiços não atinava mais com
- terrível, espantoso, fatídico. o verdadeiro sentido de muitas
Terreiro Espantoso represen- palavras compostas. Além disso,
ta-se, pois ,em tupi etimológica abuná, como acentua Serafim
e foneticamente correto por Leite, está em d'esacôrdo com
ocar-abaité (1) e dia-de-juizo todos os vocabulários brasilianos
por ar-abaité (8) e não por oca- e mesmo com a História da
ra abaeté e ara abaeté. Companhia de Jesus no Mara-
nhão, do Pe. José de Morais (9 ).
ABUNA que êle cita.
À página 341 do tomo III . AMANAf E JURUPARIAÇU
da História da Companhia vem
citada a seguinte frase de uma Na sua R elação do Maranhão_,
carta do Pe. Bettendorff: "Ou- de 1608, o Pe. Luís Figueira se
vindo que os padres A bunâs, refere, entre outros, a dois mo-
vestidos de i1egro, eram proteto- rubixabas de nomes apenas
res dos índios, desceram a pedir mencionados na tradução de
aux1'l.10 . . . ,, Diabo Grande e Algodão. Sera-
297
fim Leite não se contenta com História da Companhia de je-
cingir-se fielmente ao texto pri- sus no Brasil.
mário, mas, querendo exibir os Não é a única vez em que re-
seus conhecimentos tupis, apre- miniscências da fase amazónica
senta-os por ]urupariaçu (1º) e em sua mocidade armaram trai-
Amanaí (11), como se tais no- çoeiras arapucas ao nosso histo-
mes f ôssem m·e ncionados por riador, de pendores um tanto
i.-igueira. Foi, porém, infeliz, enciclopédicos .
porque o mestre Figueira não
e1npregaria nenhuma das duas CARAIBEBE
formas.
] uruparia,ç u pode ser nheen- Grande Anjo não é carai-
gatu, tupi é que nunca foi, pois bebe (16), nem caraibeba (17) .
aí só se admite ]urupari- Em tupi traduziram anjo por
guaçu (12) . caraí-bebé, literalmente santo
Por sua vez, algodão é amy- voador. Portanto, anjo-grande é
nyiú em tupi e amaniiú no bra- .caraí-bebé-guaçu (18) .
siliano, mas nunca amanaí, se
bem que citado nesta forma pelo CARIBA
~.pe. José de Morais. (13), que
provàvelmente tinl1a alguns co- Indesculpável ~ é a categórica
nhecimentos do dialeto brasilia- afirmativa de que: "branco em
no, mas não era versado em tu- tup1 e carzua ... e em tup1 an-
• ' • I •

pi. Basta para prová-lo a sua tigo caribá" (19) .


tradução da palavra iguaçu-mi- Antes do mais, a terminolo-
rim (14) . gia cientifica deve ser concisa,
restrita quanto ao alcance. Em
CACAU lingüística, tupi deve restringir-
-se à língua brasílica dos jesuí-
Não sabemos onde o Pe. Lei- tas (2 º) .
te colheu a etimologia da pala- No que diz respeito à sua afir-
vra cacau: caá caú ua (15), por mativa, o Pe. Serafim está re-
êle atribuída, pela grafia e dondamente enganado. Vamos
composição, ao tupi moderno mais longe; em cinqüenta anos
amazonense e naturalmente quer de vagueações tupi-guaranis
traduzida, mui plausivelmente nunca encontramos a forma la-
para o leigo: fruta de beber do ribá alhuresl O branco e, por
mato, como se os nossos índios extensão, o batizado em tupi é
soubessem preparar chocolate. caraíba, que se transformou em
Há muitas etimologias engano- cariba na língua-geral e em ca-
sas ou discutíveis, 1nas esta, que ríua no nheengatu. Respeita-
se quer no caso opor a cacauatl, mos, isso não obstante a cate-
d.e origem mexicana e definiti- górica asserção de Serafim Leite
vamente comprovada de longa de que no Rio Negro se diz
data, é francamente depreciati- cariuá, porque no nheengatu o
va numa obra da gravidade da impossível acontece.
298
EMBU O topónimo é composto de:

Nos comentários em tôrno à Paranã - mar,


aldeia de Embu (21) , Serafim epiaca (r-, s-) - ver, avistar e
Leite perdeu a oportunidade de aba - sufixo verbal substanti-
mostrar a sua argúcia e com ela vador, que aqui se tra-
juntar preciosos esclarecimen- duz por lugar de, lugar
tos às su as informações . . onde etc.
M boy é forma dialetal vicen-
tina correspondente à tupi O composto dos dois últimos
1nbayra, que se traduz por con- étimos, epiacaba - lugar de on-
ta (s), colar. Dêste têrmo os de se vê, o mirante, tendo por
nossos índios tu pis lançaram complemento um genitivo, toma
m ão para traduzir rosário: a forma relativa, que é repiaca-
·1nboy-caraíba, literalmente con- ba; portanto: paranã repiacab a
tas bentas (22) • - o lugar de onde se vê o mar,
Ora, a fazenda Mboy, que deu o mirante do mar . Esta é a pri-
início à localidade, tinha como m itiva e legítima forma tu pi.
padroeira a Virgem do Rosário N a língua-geral u sada pelos co-
e a ela fôra dedicada a capela lonos e os seus descendentes, o
ali existente. Mboy corresponde, -
nome um tanto extenso nao tar-
pois, a R osário, nome que dá a dou de sincopar-se, perdendo a
razão da devoção imposta pela sílab a re, fugindo assim à re-
doadora Catarina Camacho. gra geral do tu pi .

P ARANAPIACABA

Valiosa lição de morfologia Serafim Leite acertou ao de-


tupi está registrada na página cidir-se pela forma tobajara (2 3),
290 do tomo VI da H istória. aliás tobaiara em tupi. Justifi-
L ê- se ali que, ainda em meados camos extensamente esta nossa
do século dezesse te, os índios do opinião em Tupis e Guaranis,
litoral da Capitania de São Vi- p . 12 (24) .
cente apelidavam o alto da ser-
ra de Paranàrepiacaba. Na mes- TEXTOS
, .
ma pagina se transcreve uma re-
ferência de um contemporâneo, De quando em vez o Pe. Se-
do Pe. Antônio Vieira, onde rafim se aventura a transcrever
ocorre a for ma Paranapiacaba, uma frase tupi extraída de car-
que se mantém até hoje . Sera- tas dos missionários jesuítas. Ao
fim Leite se limitou a pospor às fazê-lo, sem reservas, assume as
duas formas um sic, abstendo-se conseqüências da paternidade.
de comentar a discrepância . N em todos os padres eram bons
Agiu com acêrto . tupinistas e muito menos os
A •

O só registo vale por uma li- amanuenses, como se ve nesta c1-


ção de gramática tu pi. -
taçao:
299
"Ichera:itá p e e o á paranáme Tupinarnbá - da tribo tupi-
p irá jucabo iande remiu rama nambá;
reté" (25) . Peribira - da família Peribira;
Mongetá Q uatiá - de escola.
Sem repararmos na grafia, há escolar.
nesta fxase dois erros graves . Em
lugar de icheraitá devia estar ch e Desta interpretação tupi, tão
raitá - m eus filh os. Iché com laboriosa quão ingênua, colhi-
nomes é pronome absoluto: eu da nos dicionários guaranis, de
(sou . . . ) . O possessivo d a pri- Montoya (!), segundo se lê n as
meira pessoa: meu (s), m inha (s) explicações acompanhantes, sal-
é ch e . Raitá é a forma r ela tiva vam-se infelizmen te apenas as
do plural no dialeto ·tupinam- duas primeiras palavras: Diego
b á; no tupi se diria che rayre- Tupinam bá, o ape lido efetivo
tá. A última palavra tam bém do menino que desempenhou a
foi mal apreendida; em lugar de função de amanuense . A com-
reté deve ser recé - para. preensão das três restantes de-
I sto pôsto, o sentido literal
pende principalmente do conhe-
exato da frase é:
cimento da gramática e de cer-
"M eus filh os, i de ao mar a tas deficiências dos tupis na ar-
matar p.e•ixe p ara a nos.sa co- ticulação de palavras estranhas à
rn ida". morfologia da língua brasílica.
Comecemos por Peribira.
Um exemp lo de que mesmo Parece quase sempre exagera-
acurados estudos da língua tupi da a maneira por que os tupis
em si n ão b astam para a per- transformam os nomes portu-
feita compreensão de certas fra- guêses:
ses temos no f êcho da carta dos
meninos órfãos ao Pe. Pero Do- Selvagem era pronunciado sa-
mén ech, de 5 de agôsto d e ravaia;
1552 (26) . castelhano vira cassian a;
Convém n o t ar preliminar- Lourenço é para êles R oré e
men te que, redigida pelo P e . Francisco aparece disfarçado
Francisco Pires, termina: em Pancicu.
A vista dêstes poucos exem-
"De vuestros hermanos plos já n ão se estranhará que
D iego T upinambá Peri bira os índios reduzissem Padre Pi-
Mongetá Quatiá". res a Peri bira . É êle quem di-
tou· a carta e cujo nome corres-
1'omando tôd a esta última li- ponde na citação a um comple-
nha como assinatura, eis como m ento nominal, um genitivo .
o Pe. Leite a tradu z: M ongetá (== monguetá) é o
infinitivo em função substan-
Diego - Diego, nome de ba tis- tiva!, que tem o sentido de fa-
mo; lar, a fala, o ditado .
300
Quatiá, entretanto, é o gerún- são (??) portuguêsa perpetrada
dio do verbo quatiara - riscar, por um tal P e . João da
escrever e, assim, se traduz por Cunha (2 7) , que representa uma
escrevendo, a escrever. das mais deslavadas mistificações
Em Diego Tupinambá Peri- literárias já cometidas.
bira monge tá quatiá, já que a Para fundamentar êstes nossos
língua tupi não possui, nem reparos r eproduzimos abaixo,
verbos auxiliares, nem pronomes em primeiro lugar, o texto tu-
relativos, temos assim literal- pi, d e Anchieta. lVIantivemos
mente e sem adivinhações: nêle a grafia do manuscrito re-
produzido por Maria de L. de
"Diego Tupinambá, Paula Martins (28) .
(que) do padre Pires o ditado A seguir transcrevemos a ver-
(está) escrevendo . " são fantasiada de João da C'unl1a
como figura na História, de Se-
Tudo muito simples e claro, rafim Leite, opondo-lhe a nossa
mas natural1nente algo diverso tradução, que diverge em al-
da tradução do Pe. Sera- guns pontos da de Paula Mar-
fim (2la) . tins, sem contudo alterá-la na
A •
essenc1a.
O AUTO DE SAO LOURENÇO A fim de arredondar a pero-
ração do anjo, da qual faz parte
Profundamente lastimável, in- a transcrição de Serafim Leite,
compreen sível mesmo à vista das que supostamente corresponde
. , . . ,
persistentes cr1t1cas antigas, e aos versos tupis de núm·e ro 595
que Serafim Leite sancionasse a 609 da edição de Paula Mar-
com elogios e transcrição na sua tins, ~crescentamos-lhe dois
História, com pequenas corre- versos no início e três no fim do
ções. de linguagem, u1n trecho do texto original e da nossa tra-
Auto de São Lourenço na ver- dução.

v. 593 - S. Sebastião abe v. 603 - ]abebiraçic tapera


v. 594 - marana rerecoaroera v. 604 - aqueime niporetai,
v. 595 - Tamilya quireibaguera v. 605 Yauye muamaroera
v. 596 - omõbab erimbae v. 606 - oyoibiri, çeombuera
v. 597 - nitibangai çetãbuera v. 607 - parana ibiri ycoai.
v. 598 - Opa Paranapucu v.608 - Çauçupara A iuruiuba
v. 599 - Y acutinga, M oroi v . 609 - mocaba ogoeru tenhe
v. 600 - Çarigueya, guiriri v.610 - yabaete muru çupe
v. 601 - Pindoba, Rarigoaçu v . 611 S. Sebastião ruuba
v. 602 - Curuça, Miapeig (2~) v .612 - S. Lço. piribe

Tradução de ] oão da Cunha Tradução nossa (3º)

V .593 - São Sebastião também,


V .594 - Que foi padroeiro das lutas,
301
v. 595 - Dai-lhe tôda a atenção, - Os tamoios, que eram valen-
tes,
v. 596 - Acabe-se o antigo rito, Aniquilou de há muito.
v .597 - Não haja aqui mor- - Já. nada existe do seu domí-
tandade, nIO.
v. 598 - Acabem-se os feitiços, - Desapareceram: Par anã -
-Pucu, (31)
v.599 E o augúrio que vós tí- - Jacutinga, Moroí,
nheis
v.600 Nas aves e feras do Sarigüeia, Guiriri,
\ mato,
v.601 Não adoreis a palmei- Pindoba, Rari--G uaçu,
ra.
v.602 A cruz haveis de ado- Curuçá, :rYiiapeí.
rar (21}) .
v.603 Não façais mal a nin- - A tapera de Jabebyr-acyca
guém,
v.604 Amai-vos entre v ó s - De longa data não era po-
mesmos, pulosa.
v. 605 - Não sejais enredadores, - Vencidos os recalcitrantes,
v. 606 Lembrai-vos dos vos- - Lado a lado houveram os
sos mortos, seus cadáveres.
v.607 Não vos lembreis das - · Alguns raros ainda vivem ao
ofensas, longo do mar.
v.608 E não sejais invejosos, O s seus amigos franceses
v.609 Não tireis frechas às Debalde trouxeram armas de
gentes, etc. fogo.
v.610 • - Terríveis fora1n para os mal-
ditos
v.611 As frechas de São Sebastião
v.612 Conjuntas às de São Lou-
renço.

Nada precisamos acrescentar transcritos: curuçá - cruz; pin-


ao confronto das incríveis fanta- doba - palmeira e ceombuera -
sias do Pe. Cunha com a ver- mortos, cadáveres.
dadeira tradução; o cínico em- E, n estas condições, o arre-
buste salta aos olhos de qualquer mate ditirâmbico do II tomo,
leigo desprevenido e foi como tal baseado em tal fraude, um es-
verberado repetidamente. O im- cárnio aos tupinistas e drama-
postor, p erito no processo de ca- turgos jesuítas, converte- se em
nonização de Anchieta (1), só ironia cruel numa obra apoló-
iàentifico11 realmente três pala- gica do tomo da História da
vras nos poucos versos tu pis Companhia de Jesus no Brasil.
302
Singular é a contribuição do chieta: "Nóbrega nomeou-o
Pe. Serafim Leite aos estudos (Anchieta) mestre de gramáti-
biobibliográficos, tanto pelas ca latina em São Paulo . E êle,
informações novas relativas aos ao mesmo tempo qu·e ensinava,
tupinistas jesuítas, colhidas em aprendia; em pouco tempo,
grande parte nos arquivos re- moldou, por aquela, a língua
servados da Companhia, como tupi" (33) .
ainda indiretamente pel~s dis- Evidentemente, a intenção
cussões provocadas por algu- -
de Serafim Leite n ao foi afir-
mas dúvidas levantadas em tôr- mar o que aí se lê, pois Anchie-
no a certas autorias . ta nada rnoldou na língua tu pi.
Eram mal conhecidas ou to- O que êle fêz foi apenas adap-
talmente ignoradas a compe- tar aos fatos lingüísticos e à es-
tência e contribuição de vá- , .
trutura genuinamente tup1s a
rios lingüistas exímios. Ignora- terminologia e a disposição da
vam-se quase todos aquêles tu- gramática latina, o que é algo
pinistas .c ujo nome não enci- diverso. Já nos r eferimos a essa
n1a alguma das raras publica-
-
çoes.
acusação, descabida e repetida
por críticos mal informados, em
O mais destacado em nossas
nosso livro Estudos Tupis e Tu-
bibliografias tupis foi sempre o
pi- Guaranis, pp. 38-54.
Padre Anchieta. Estranhamen-
Infelizmente nenhuma notí-
te, Serafim Leite acata-lhe a
cia nos pôde dar o Pe. Serafim
prerrogativa com visível relu-
tância, a despeito de ter sido o Leite sôbre os sermões e as ex-
plicações do catecismo redigidos
primeiro a apreend·e r ao tupi a
índole e os cânones fundamentais em tupi pelo grande língua Leo-
da sua estrutura e caber-lhe n ardo do Vale (ª4 ) • Seriam va-
também, ao lado de outras com- liosos complementos aos escas-
posições brasílicas autógrafas, a sos textos hoje ao nosso dispor.
redação final da A rte de uso ge- Com referência à Doutrina,
já não podemos falar em auto-
ral entre os jesuítas da época e
finalmente publicada no seu ria única. Começada a tradu-
nome, em 1595, o que não ex- ção pelo Pe. Azpilcueta Navar-
clui hajam sido perfilhadas, ro, trabalharam nela diversos
pelo autor, sugestões de outras entendidos, inclusive Anchieta,
sumidades, no decurso de qua- segundo afirma Quirício Ca-
renta anos (32) . xa (ªó) e se depreende da licen-
Além disso ainda se faz mis- ça e censura estampadas nas
ter, nesta altura, frisarmos, que primeiras páginas da Arte. Essa
uma expressão infeliz do comen- autoria múltipla vem expressa-
tarista pode raiar por desnor- mente admitida pelo provincial
teante difamação. É o caso do Marçal Beliarte (36) e confirma-
seguinte conceito dúbio inserto da no frontispício da primeira
na História sôbre a Arte de An- edição, de 1618 (37), a que deu
303
a última demão António de cuidado de indicar de todos os
Araújo. estudiosos do tupi a amplitude
O que se deu com o Catecis- dos seus conhecimentos lingüís-
mo deve ter acontecido na ela- ticos e mencionar os escritos que
boração do Vocabulário na lín- se lhe atribuem. São dados pre-
gua bras·ílica. Entretanto, à vis- ciosos colhidos nas mais diver-
ta da documentação dada a co- sas fontes.
nhecer por Serafim Leite, dificil- Através destas múltiplas re-
mente se poderá hoje pôr em dú- velações sabemos também que,
vida que o arranjo fundamental para dinamizar a conversão dos
do qu·e se conhece e se preten- índios, o Padre Geral Acquavi-
dia publicar pertence ao Pe. va chegou a subordinar a orde-
Leonardo do Vale. Mas, diga- nação dos j esuítas no Bra-
-se sem rebuços, se o catecismo sil ao conhecimento da lín-
tupi supera o guarani de Mon- gua brasílica. Tal ordem taxa-
toya, o conteúdo do Vocabulário tiva foi, aliás, atenuada em cer-
está longe de poder ombrear-se tos casos (38) . Mas que ela ti-
com os léxicos guaranis de Mon- nha a sua razão de ser se vê nu-
toya e R estivo. Faltaram aos nos- n1a carta do Pe. Manuel Vie-
sos j esuítas a quietude, os laze- gas (ª9) e noutra do Pe . Simão
res e, quem sabe, a confiança dos Travassos (4º), denunciando que
seus colegas do Prata no futuro nas duas últimas décadas do
da língua. Quinhentos já muito poucos
Nas apreciações das peças tea- nela se queriam aperfeiçoar, ain-
trais quer-nos parecer que fal- da que, para o próprio provin-
tou a Serafim Leite a indispen- cial Marçal Beliarte, o conheci-
sável isenção no que diz r espei- m ento da 1 í n g u a brasílica
to aos di:álogos tu pis. O · seu suprisse no Brasil a Teolo-
conteúdo não presume apenas gia para alguns (41) .
boas noções da língua, mas ain- A aversão crescente ao estu-
da dos costumes e da m entali- do acurado do tupi aí denun-
dade dos índios, e, nesse con- ciada só se explicaria então pe-
junto de conhecimentos, aliado la ausência de espírito missio-
.
à reconhecida propensão e lon- ne1ro.
ga prática na matéria, n enhum Entretanto, menos de um sé-
j esuíta da época se avantajava culo depois o rápido decresci-
ao Pe. Anchieta . mento da população tupi cos-
Futuras revelações dos arqui- teira e a sua diminuta pene-
vos tal vez forneçam esclarecimen- tração pelo Interior devia
tos que pennite1n delimitar me- acentuar o desprestígio de tais
lhor o quinhão pessoal de cada estudos pelo menos até o Ma-
q ual dos nossos tupinistas. ranhão .
Nas notas biobibliográficag Mesmo a língua-geral p~­
dos tomos VIII e IX da sua H is- pular, simulacro do tu pi ori-
tória, Serafim Leite teve o ginal, desapareceria aos pou-
304
cos, mas não sem legar-nos, da lhares de nomes, no domínio da
sua efê1nera hegemonia, o i)e- nossa Geografia, Botânica e
rene cunho priva tivo ·dos mi- Zoologia.

FREDERICO G. EDELWEISS

l Edehveiss, Estudos tupis . . . , p . 109-58.


2 Lei te, " O primeiro vocabulário tupi-guarani". ln: Id . Páginas de his-
t ória . .. , p. 6 3-9.
3 Leite, História da Companhia .. . ,v. 2, p. 550.
4 Ibid., v. 3, p. 263.
5 Ibid., V. 2, P · 551.
6 Ibid.
7 lbid., V. 6, p. 502.
8 Ibid., nota. Pela m esma razão, a famosa lagoa de Ita puã na Bahia não
é Lagoa de Abaeté, mas Lagoa Abaité (Lagoa Fatídica) , nome que traduz os
freqüentes a fogamentos um tanto misteriosos que nela se registram.
9 Morais, "História da Companhia ... ", p . 31. A búnas (assim chamam aos
padres da Companhia) .
10 Leite, H istória da Companhia .. ., v. 3, p. 6.
11 lbid., p . 7.
12 Vieira, "Relação da missão ... ", p . 457, fala no Demônio Grande, mas
dá-lhe o nome tupi de Taguaibunuçu. Como Vieira era contemporâ neo do Pe.
Luis Figueira, merece mais fé do que os cronistas posteriores. O vocabulário na
língua brasílica, dos jesuítas, dá para diabo o genérico anhanga e, em funções
específicas, curupira, taguaiba, jurupari e outros. T aguaíb-un-uçu, embora citado
em português como diabo gran de, é pois, mais exatamente, diabo prêto gran de.
Mais tarde, com a promoção de jarupari a genérico, em lugar de anhanga, evo-
lução que se o p erou no Norte, alguns cro nis~as retraduziram Diabo Grande
por jurupariguaçu, palavra que no nheen gatu se transformou em jurupari-açu,
forma inadmissível no tupi.
]urupari não passa de intruso amazônico relativamente recente na mitologia
tupi. Do Centro p ara o Sul era figura desconhecida. Os comentários, que lhe
tece Serafim Leite de segunda mão, são pois muito questionáveis. Vide Edelweiss,
Estudos tupis . . ., p. 1O1-217.
13 1\forais, "História da Companhia ... ", p . 31, onde se lê amanay, mas
o Pe. !\forais não dá a tradução da palavra.
14 Ibid., p. 42. tle traduz y-guaçu -1nirim por água pouco quente. Ora,
y-guaçu-mirim significa sem dúvida alguma pequeno rio grande, nome que, a
despeito do ap arente disparate, se explica fàcilmente. Haveria dois índios de
nome Y-guaçu. Para evitar confusões, o de tamanho ou ascendente menor passou
a chamar-se Y-guaçu-rnirim.

305
Água pouco quente, ou seja, água morna, é y racu aiba e1n tupi. Entretanto,
no b rasiliano, temos em seu lugar y acu mirim. Vide Arronches, O caderno ... ,
verbetes água quente e morna cousa.
É dêsse y acu mirim, lido y açu rnirim, que é o correspondente brasiliano
do tu pi y guaçu mirim, que o Pe. Mor ais tirou a sua tradução ! O t~rmo deve
ter tido origem num au tor, q ue ouvindo falar em Pequeno-Rio-Grande, retra-
duziu -lhe o nome d o dialeto brasiliano, como se fôsse língua indígena original,
por Y'-açu-mirim. Um copista pouco versado terá escrito Y-acu-mirim, d e onde
a tradução correta de água morna, m as que naturalmente não corresponde ao
n ome efetivo Y-guaçu-mirim, constante da documentação primária.
15 Leite, História da Co1npanhia .. . , v. 4, p . 158.
16 Ibid., v. 6. p. 479-500.
17 Ibid., p . 502, n ota.
18 rrrata-se aí de certos feiticeiros, que se arvoraram a filhos de anjos,
conforme relata o Pe. Inácio de Sequeira. Vide: Ibid., p. 500.
19 lbid., V. 3, p. 196.
20 Edeh veiss, Estudos tupis . .. , p. 69-79.
21 Leite, História da Cornpanhia .. . , v. 6, p . 358-62.
22 Vocabulário na língua brasílica. No brasiliano, a língu a geral do Norte,
preferira1n denominar o rosário de rnoy-curuçá, cruz de contas, uma descrição
sumária do têrço.
23 Leite, História da Companhia . .. , v. 3, p . 38.
24 Tobajara tanto significa fronteiro, inimigo, contrário, como cunhado.
25 Leitie, H istória da Companhia ... , v. 4, p. 153.
26 Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, 1538-1553. Coimbra. Con1issão
do IV Centen ário de São Paulo, 1956. p. 375-92.
26a. A nota final de Leite, H istória da Companhia . .. , v. 9, p. 62, não
tem assim razão de ser.
21 Ibid., v. 2, p . 61 3. - Cf. Barbosa, A. Lemos. Auto de São Lourenço.
Verbum. Rio de J aneiro, PUC, 7: 201-47, 1950.
28 Anch ieta, Auto representado ...
29 Serafim Leite suprimiu êsse verso onde; segundo Cunha, o Pe. Anchieta
r ecomenda a herética adoração da cruz. A supressão sem aviso é um procedi-
m en to dúbio, que tanto compro1nete o historiador quan~o o companh eiro ele
Orde1n suspeitoso.
30 Acima de tudo, procuramos m anter o sentido, o que impede, aqui e
ali, a tradução servilmente literal.
31 Enumera tôdas as tabas desaparecidas com a conquist a da Guanabara
aos fra nceses. Referimo-nos a ela em nosso estudo histórico-etimológico, Os t<>-
pônimos indígenas .. .
32 Leite, História da Co1npan.hia . .. , v. 2, p . 558.
33 lbid., p. 549.
34 lbid., V. 9, p . 170-1.
35 Leite, "A primeira biografia inédita de J osé de Anchieta". ln: Id. Pá·
ginas de história . .. , p. 157.
36 Em carta de 20 de setembro de 1592, o Provincial do Brasil, Pe. Marçal
Beliarte, pediu ao superior da Ordem licença para a impressão da Doutrinã
Cristã e da Arte na língua brasilica. Nela, -ocor1·em os dois trechos seguintes.
" ...... Quanto à Doutrina, quarenta anos há que se compôs e até agora sempre
se ensinou, apurando-se e emendando-se, assim no tocante à teologia como na
língua. E, ...... parece que não há j á que emendar, coroo as 1nelhores línguas,
que há, dizem ...... "
Com r esp eito à gramática, acrescenta: ". . . . . . A A rte, outro tanto h á que
se compôs, mas sempre se foi a.purando . . . . . . Está a conten to das grandes
,
1inguas ..... . "

306

,
L eite, H istória da Co1npanhia .. . , v. 2, p . 558.
37 "Composto a modo de diálogos por padres doctos e bons língoas da
Companhia de J esus".
38 Leite, H istória da Companhia ... , v. 2, p. 563 -4.
39 l bid., V. 9, p. 384-5.
40 lbid., V. 2, P· 564-5.
41 l bid., p . 563.

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