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A língua escrita quinhentista e a presença lusitana na fala popular brasileira

www.unama.br > Rosa Assis - Texto do 1º. VALUNORTE.doc 11 julho 2010

Rosa Assis
Universidade da Amazônia
Belém-Pará

Este artigo é parte de um estudo mais amplo e aprofundado, cujo objetivo maior é
registrar, como se um glossário fosse, os vocábulos quinhentistas ainda hoje presentes, vivos
e ativos na fala popular de muitas regiões brasileiras. Como se sabe, as relações culturais
Portugal-Brasil sempre foram muito fortes, e permaneceram, em especial na sua manifestação
lingüística, mesmo depois de nossa independência política, conforme adiante comentaremos.
A partir do final do século XIX, sobretudo após a abolição da escravatura, a emigração
para o Brasil foi intensa e muitos povos chegaram aos nossos portos, comos os italianos, os
alemães, os espanhóis, os japoneses, e outros em menor escala. Entretanto, são os portugueses
e os italianos os que maiores marcas deixaram, ou melhor, os que mais amplamente se
estabeleceram em nosso país. Sendo nativa e habitante do norte do Brasil, região que melhor
conhecemos, ressaltamos que a cidade de Belém do Pará, depois da época colonial, tornou-se
um dos maiores pólos de concentração de imigrantes portugueses no Brasil, ficando aquém
talvez somente do Rio de Janeiro, onde a agora chamada colônia portuguesa também se
tornou predominante. Em Belém, como no Rio, esses imigrantes se instalaram a bem dizer
em cada canto, a cada esquina, com estabelecimentos comerciais variados; ainda mais, muitos
deles tiveram de trabalhar nos serviços braçais, no meio do povo, durante décadas, e, por
certo, imprimiram aqui suas marcas fonéticas, que influenciaram no registro falado da
população não escolarizada ou com baixo grau de escolaridade.

Sabidamente, a ação dos portugueses na região Norte, e aqui refiro-me novamente e


em especial ao Estado do Pará, foi sempre muito forte. Apenas a título de ilustração, lembro
que inúmeros municípios do interior paraense têm nomes de localidades portuguesas, como
Altamira, Bragança, Faro, Melgaço, Porto de Mós, Santarém, Soure e tantos outros. E não
vamos muito longe, na própria cidade de Belém (também tão portuguesa, com certeza), há

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todo um bairro  o bairro da Cidade Velha , cheio de casarios portugueses, alguns ainda com
os seus antigos e famosos azulejos, e cujas ruas, à exceção de poucas, também são
tradicionalmente denominadas (e na boca do povo nenhuma mudou de nome) com topônimos
bem conhecidos, transplantados de Portugal, tais quais: Alenquer, Bragança, Breves, Cintra,
Monte Alegre, Óbidos, Santarém.

Embora se desconheça concretamente qual a procedência dos primeiros colonos


portugueses chegados ao Pará no início do século XVII – a fundação de Belém deu-se em
1616 –, é possível que açorianos e algarvios hajam sido os primeiros portugueses a pisar o
solo da Amazônia. E todos sabemos, como um fato geral, que foi do estreito contacto mantido
entre os portugueses, os índios e os negros que se formou a cultura brasileira, do Norte ao Sul
do país. Extremos, aliás, que neste ponto específico se tocam perfeitamente, pois no Rio
Grande do Sul também aportaram e influenciaram os açorianos, como no Pará e no hoje
Amapá, da Nova Mazagão povoada no século XVIII por soldados portugueses vindos de
homônima cidade da África. E, comparativamente à cultura do indígena americano ou à do
negro africano, o peso geral da presença cultural lusitana no Brasil foi muito mais
preponderante.

Esses processos podem ser observados no Brasil como um todo. O fato de,
historicamente, o Brasil inteiro falar a língua portuguesa evidencia a força da hegemonia
cultural lusitana na formação da identidade cultural brasileira. Regionalismos, variáveis
lingüísticas observadas pontualmente no Brasil contemporâneo, não comprometem a solidez
do patrimônio comum representado por uma mesma língua. E se lembrarmos que Fernando
Pessoa proclamava ser a pátria a nossa língua, podemos dizer que a pátria brasileira é a língua
portuguesa falada nacionalmente por todos nós.

É sabido que há inúmeros trabalhos espalhados pelos quatro cantos do Brasil,


dedicados a documentar a língua, a fala, os falares, o linguajar de cada região, como os de
Mário Marroquim, de José de Aparecida Teixeira, Vieira Filho, Antenor Nascentes, Amadeu
Amaral, e tantos outros nomes de igual peso e fôlego, que ao longo de anos estudaram a
história da língua e levantaram os vocabulários regionais de sua terra.

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Especificamente em Belém do Pará, já temos vários estudos gerais, como o dos


falares paraenses (Nazaré Vieira), o glossário paraense (Vicente Chermont), o vocabulário
amazônico (Amando Mendes), sem contar o famoso Dicionário das cousas da Amazônia, de
Raymundo Moraes. Entretanto, o nosso estudo toma um outro rumo, que é justamente o do
cotejo entre o vocabulário escrito do português quinhentista (século XVI) e o vocabulário
falado vintista (século XX), fase contemporânea da língua portuguesa no Brasil, tal como
este vocabulário atual é usado pela gente do povo, gente simples, iletrada, geralmente
analfabetos ou semi-analfabets. Além disso, comentaremos, embora de forma genérica, as
flutuações ou oscilações de pronúncia de certos vocábulos, por darem à nossa fala um
pitoresco sabor de ontem. Assim, dando um salto lá outro cá, procuraremos ligar, pelos velhos
laços comuns da língua, os dois países distantes no espaço mas reunidos no tempo, no tempo
sincrônico do idioma.

O corpus utilizado são as éclogas de Bernardim Ribeiro (neste trabalho utilizaremos


apenas versos da segunda écloga, intitulada Jano e Franco, 1554, Ferrara1), escritor português
que bem documenta essa fase histórica da língua portuguesa – a transição entre os períodos
arcaico e moderno. Esclarecemos, todavia, que apenas registraremos as coincidências
vocabulares, isto é, as ocorrências dos mesmos vocábulos nas duas épocas e formas
distintas do uso da língua, sem maior ou nenhuma interpretação semântica ou análise
contrastiva. A simples título de comparação, lembramos aqui o trabalho de Socorro Aragão
et alii, cujo corpus foi extraído do romance A Bagaceira, de José de Almeida.
Feitas essas considerações gerais, voltemos ao século XVI e ao texto bernardiniano,
para enumerar, isoladamente, alguns vocábulos que colhemos em nossas incursões
lingüísticas, os quais, apesar de soarem como castelhamos, são genuinamente lusitanos, ou
seja, do latim passaram direto para o português, sem intervenção castelhana. É o caso singular
da lexia adverbial entonces, conforme nos ensina o patrício José Pedro Machado, em seu
dicionário etimológico, e que, para o nosso Aurélio, é um puro brasileirismo popular e
arcaico, variante de entonce. Ora, se é arcaico, é português puro de Portugal, e português vivo
do falar popular brasileiro de ainda hoje
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RIBEIRO, Bernardim. . Églogas. In: ...Hystoria de menina e moça per Bernaldim Ribeiro agora de novo
estampada e com summa diligencia. 1554

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Bernardim Ribeiro Falantes1

Tanto entonces lhe pesou v. 7 antonci u gadu fui

Ao lado de vocábulos isolados, há também os fenômenos lingüísticos comuns à fala


natural e espontânea das regiões brasileiras, como:

1) uso da metátese ou interversão – neste caso tomemos dois exemplos para ilustrar,
uma vez que o primeiro deles não é tão freqüente, embora igualmente usado. É o emprego do
vocábulo contrairo, em vez de contrário. Fato curioso, porquanto a ocorrência do fenômeno
da metátese é mais comum quando se trata de palavras que envolvem simples-complexos
prefixos per, pre, pro, uma vez que o povo, de um modo geral, se “atrapalha” todas as vezes
que os utiliza: assim, preguntá e proguntá são pares perfeitos.

E muito moor ho contrairo v. 9 Du contrairu num acetu

Tambem tem tempo ho tromento v. 517 Meo tromento é essi

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A transcrição fonética foi feita pela Dr. Socorro Cardoso, professora de lingüística na Universidade
da Amazônia, e da Universidade do estado do Pará.

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2) uso da epêntese:

Jano quando vio, e oulhou v. 46 Elhi oulhou sim

3) uso da aférese:

E nunca ynda tee guora v. 119 Ina ( inda) foi lá

4) uso da síncope:

E neste meo chegou v.223 tô no meo da roa

5) uso da flutuação grafemática e fonética L/R:

Carlota de Almeida, no Glossário das poesias de Sá de Miranda2 registra a expressão


aguas craras como muito freqüente em escritores renascentistas; portanto, a partir do século
XV já se encontrava documentada esta comutação, também conhecida como rotacismo.

E a frauta sua era aquella v. 244 Num tuca frauta não

É importante lembrar que apenas colhemos um exemplo de cada um dos casos acima,
e que esta colheita foi aleatória, no meio de um corpus de 517 versos. Os casos de aférese, por

2
CARVALHO, Carlota Almeida de. Glossário das poesias de Sá de Miranda. Lisboa, Centro de Estudos
Filológicos, 1953, p. 84.

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exemplo, em algumas formas verbais, hoje estão registrados no dicionário do Aurélio, como
uma variante. Assim, coexistem formas com os mesmos significados, sendo que esses casos
de aférese parecem refletir uma tendência do povo com baixo grau de escolaridade. É como se
“uma voz mais alta se alevantasse” para transmitir com mais força, com mais reforço da
expressão, aquilo que se quer dizer. Talvez uma forma inconsciente, automatizada, de o
falante comum enfatizar na fala o que deseja exprimir É justamente o caso de
alevantar/levantar, assosegar/sossegar; arrecear/recear; alembrar/lembrar. Todos esses
exemplos estão em Bernardim Ribeiro, sendo que o primeiro, em relação ao português do
Brasil, não mais aparece no dicionário de Aurélio como variante, mas sim como duas palavras
dicionarizadas individualmente; e quanto ao último par, diz o dicionarista que a forma
aferética é um vocábulo antigo e popular.

Esta faceta de jogar com palavras arcaicas e modernas é uma característica de


Bernardim Ribeiro, por ser ele um autêntico representante da fase de transição histórica da
língua portuguesa, ou como diz-nos Serafim da Silva Neto – sua linguagem é um misto de
arcaicidade e modernidade3. Com efeito, palavras que hoje caíram em desuso, conforme
registram os elucidários, não as encontramos no registro falado do tipo de falante que
escolhemos para ilustrar nossos cotejos. Logo, antre, leixar, fantesia não estão no léxico do
falante analfabeto ou semi-analfabeto, mas, curiosamente, está uma variante de fermosa, na
simples frase: é uma verdadera fremusura.

Com relação ao estudo específico da realização fonética das vogais, quer em posição
átona ou tônica, este trabalho se limita apenas e exclusivamente a registrar as variações
devidamente abonadas.

 Uso de oscilações do tipo:

1) [ e] por [ i ]

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SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1970.

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E que cantava milhor v. 243 É milhor mermo

2) [ i ] por [ e ]

Onde vevia ho pai della v. 119 Num vevi na cidadi

3) [ o ] por [ u ]

Vendome a barba pongida v. 315 Elhi mi sostenta

4) [ u ] por [ o ]

Jano estaua emburcado v. 264 Tá de tuca na cabeça

A explicação para essas oscilações, segundo o gramático quinhentista Fernão


d’Oliveira, está simplesmente na vizinhança das letras, ou dos fonemas; em outras palavras,
na íntima relação que existe entre esses vocábulos, ao ponto de uma forma interferir na
realização fonética da outra. Vejamos as palavras do mestre das gramáticas do século XVI:

“... agora vejamos da comunicação que alghüas tem ou dalghüa partiçipação q


todas antre si: das vogaes antre .u. e .o. pequeno há tanta vizinhança q quasi nos
confundimos dizendo hüs somir e outros sumir: e dormir ou durmir e bolir ou bulir e outras
muitas partes semelhantes. E outro tanto antre .e. e .i. pequeno como memoria ou memorea,
gloria:.4

Como vivia a língua um período de transição, o próprio texto de Bernardim Ribeiro


joga com duas formas escritas, a, digamos, correta e “erudita”, e a forma corrente, falada e

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OLIVEIRA, Fernão d’. Grammatica de linguagem portuguesa. . Porto, Imprensa Portuguesa, 1871. p . 41

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popular, como, por exemplo, o vocábulo milhor. E é justamente a forma popular que
procuramos registrar nestes poucos exemplos citados.

Dos exemplos acima citados, a palavra milhor, hoje, já se tornou voz corrente em
quase todas as regiões, independentemente da classe social, econômica ou cultural. Está aí se
impondo e competindo, coexistentemente, com a sua atualizada forma: melhor.
Ora, como esses, há inúmeros outros casos dos mesmos fenômenos, tidos como
formas populares, mas que circulam livremente nas diversas classes sociais. Ranca isso, por
exemplo, é tão comum aos mineiros de todos os estratos, como a expressão nordestina e bem
brasileira: jogar no mato, significando, ingênua e genericamente, jogar fora.

Podemos concluir que, de modo geral, percebe-se a sobrevivência de aspectos


fonéticos da língua portuguesa do período quinhentista no registro oral do falante brasileiro de
hoje. É como se fossem resíduos daquela escrita quinhentista, que se conservam intactos no
registro falado do homem simples, com pouco ou nenhum grau de escolaridade, mesmo sendo
este, hoje em dia, atingido pelos modernos meios de comunicação, que invadem, com sua
uniformização lingüística e cultural, os mais longínquos rincões do Brasil.

E a presença desses traços arcaicos é também, de certa forma, a presença do português


colono e depois imigrante, radicado firmemente no Brasil, particularmente em Belém do Pará,
conforme ao início referimos. Não resta dúvida de que somente a linguagem popular falada e
viva na boca do povo consegue manter pronúncias antigas e reproduzir, ou melhor, conservar
lexias e construções sintáticas arcaicas, dando com isso à língua moderna um sabor de
reminiscência ou de revivescência dos falares passados.

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Bibliografia

CARVALHO, Carlota Almeida de. Glossário das poesias de Sá de Miranda. Lisboa, Centro
de Estudos Filológicos, 1953.
HOLANDA, Aurélio Buarque. Dicionário Aurélio eletrônico. Dez.1994
RIBEIRO, Bernardim. Églogas. In:... Hystoria de menina e moça, per Bernaldim Rybeiro
agora de nova estampada e com svmma diligencia emendada. 1554.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Livros de
Portugal, 1970.
VITERBO, F. R. Joaquim de Santa Rosa D. Elucidário das palavras termos e frases. Porto,
Lisboa, Civilização, Edição crítica.

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