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A LÍNGUA BRASILEIRA NO DISCURSO DO SAMBA: DE

NOEL ROSA A CAETANO VELOSO

FRANCISCO ANTONIO ROMANELLI

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli


Universidade do Vale do Sapucaí
Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre – MG – Brasil

faromanelli@gmail.com

Resumo: O presente texto tem por escopo analisar o discurso sobre a língua
brasileira, de uso nacional, quando confrontada com a língua colonizadora,
institucionalizada, o português de Portugal, na canção popular, por meio de
textos recortados de canções que balizaram a discussão, em 1933 e em 1984.
Procura referências na multiplicidade linguística do país, observando as
muitas contribuições de línguas nativas, africanas e maternas de imigrantes
para a constituição da língua nacional. Na canção popular, a discussão que
evidencia os discursos sobre a língua brasileira foi inaugurada por Noel
Rosa, em “Não tem tradução”, e posteriormente retomada por Caetano
Veloso em “Língua” e “Quereres”.
Palavras-chave: Língua brasileira; multiplicidade linguística; Noel Rosa;
Caetano Veloso.

Abstract: The present text has the purpose of analyzing the discourse about
the Brazilian language, of national use, when confronted with the colonizing,
institutionalized language, the Portuguese of Portugal, in the popular song,
through texts cut of songs that marked the discussion in 1933 And in 1984. It
seeks references in the linguistic multiplicity of the country, observing the
many contributions of native, African and maternal languages of immigrants
to the constitution of the national language. In the popular song, the
discussion that evidences the discourses on the Brazilian language was
inaugurated by Noel Rosa, in "Não tem tradução", and later retaken by
Caetano Veloso in "Língua" and "Quereres".
Keywords: Brazilian language; linguistic multiplicity; Noel Rosa; Caetano
Veloso.
As palavras dos letrados brasileiros confundem-se com os perfumes
das flores das selvas nacionais, o canto dos sabiás, e os gritos das
arapongas, o rebombo das cachoeiras e a altitude das serras...
A língua brasileira espelha nas palavras, a alma dos brasileiros e a
feição das cousas brasileiras.
Bricio Cardoso1

Introdução

Não é de pouco que se discute as variações sofridas pelo português falado no


Brasil e que o distanciam daquele português colonizador, falado em Portugal. No Brasil,
a Língua é múltipla, desde muito antes da colonização portuguesa. Afinal, quando os
colonizadores aqui fincaram bandeiras e pés, as nações indígenas já se comunicavam por
nada menos que cerca de 1.300 línguas nativas, das quais ainda hoje restam 264 ativas 2.
Os Jesuítas, na missão de catequizar os nativos, acabaram por contribuir para a
formatação de uma outra língua padrão, baseada na língua Tupi/Tupinambá, conhecida
por “língua brasílica” ou “Tupi moderno”, que acabou por se transformar na “língua
geral”, ou “língua franca” da colônia (PIRES, 2009, p. 1-2).

Os primeiros colonizadores e outros aventureiros portugueses que por aqui


aportaram logo após a “tomada” do território brasílico sentiram necessidade de se
comunicarem com os nativos, seja para “domesticá-los” e atraí-los, como escravos ou
colaboradores, para o pesado trabalho de “inauguração civilizatória” da terra, seja para
catequizá-los (afinal, a missão mais nobre da conquista portuguesa de territórios ignaros
era a salvação das almas eternas dos povos autóctones), seja para estabelecer o império
da lei sob governo da bandeira do reino português (MARIANI, 2008, p. 35). No entanto,
os próprios colonizadores vinham de regiões diversas de Portugal e, por isso, “Não foi,
como pensam muitos [...] o português disciplinado grammaticalmente, o português dos
classicos, o que veiu para o Brasil na bocca dos colonos, mas o velho e genuíno português
do povo, rude e inculto” (SANCHES, 1940, p. 218).

Os colonos, em número infinitamente inferior aos nativos, e os religiosos, Jesuítas,


que buscavam a catequização destes todos, tiveram que se adaptar a uma língua adequada
à comunicação. “Deste contato entre língua indígena e diversas variedades linguísticas
regionais e sociais portuguesas foi criada uma língua “franca” para que os colonizadores
pudessem estabelecer um contato efetivo com os índios que também não entendiam o
português” (PIRES, 2009, p. 2). E uma das línguas locais acaba sendo a escolhida e
conformada às necessidades do momento, o já dito “Tupi moderno”, falado pelos nativos
ao longo da costa do país, que, com as devidas influências e interferências dos

1
Tratado da Língua Vernácula, 1875. Citado por Edgard Sanches, in Língua Brasileira, 1940, tomo 1, p.
180.
2
Dados obtidos no site <http://basilio.fundaj.gov.br/>, em agosto de 2016.
colonizadores, acabou por constituir a língua brasílica, adotada como a língua geral da
colônia (BIZIKOVÁ, 2008, p. 6). Vicente Chermont de Miranda aponta a predominância,
na época, da língua tupi, cindida em dois dialetos, que serviriam de modelo para a
composição de uma língua de maior alcance, com maior base no tupi litorâneo: o
nhêengatú ou tupi equatorial, e o abanhêenga ou o tupi austral (MIRANDA, 1944, p. 18).

A língua geral se estabiliza e domina as comunicações até maio de 1757.


“Tamanha foi a influencia da lingua tupy, que, até o começo do seculo XVIII senhoreou
ella inteiramente o idioma” (SANCHES, 1940, p. 218), após o que, pela “Lei do Diretório
dos Índios”, foi imposto, por ordem do Marquês de Pombal, o ensino e o uso exclusivo
do português em terras brasileiras, além de determinar a saída dos jesuítas da colônia
(PIRES, 2009, p. 3). Eram eles, provavelmente, os maiores incentivadores e divulgadores
do uso da língua geral, a ponto de o padre José de Anchieta fazer sua gramatização pela
obra Artes de gramática da língua mais usada na costa do Brasil (GUIMARÃES, 2004,
p. 25). No entanto, no que pese o silenciamento imposto à língua geral, ainda persistiram
traços de seu uso até inícios do século XX, quando foi considerada definitivamente extinta
e o “nheengatu” é ainda hoje usado, em regiões da Amazônia, por cerca de 30.000 nativos.

De qualquer maneira, a influência das línguas nativas deixou suas marcas


decisivas no português praticado deste lado do Atlântico. As línguas apagadas não
desaparecem. Como aponta Maria Onice Payer, os “traços de memória da língua apagada
parecem ter um estatuto constitutivo no sujeito de linguagem” e, por isso, “nem sempre
eles são representados pelo sujeito que os fala, como traços de uma língua outra.
Funcionam antes como evidências da língua para os sujeitos falantes” (PAYER, 2003, p.
223). E muitas dessas evidências aparecem na língua nacional, contribuindo para sua
singularização.

Além disso, os escravos africanos trouxeram as muitas línguas maternas,


diferentes entre si. Pelo final do século XIX e começo do século XX, a crise de trabalho
na Europa (principalmente na Itália) e o incentivo ao trabalho do imigrante, para substituir
a mão-de-obra negra, recém liberta, fez emigrar uma enorme quantidade de estrangeiros
para o Brasil, trazendo línguas diversificadas, que, neste lado do Atlântico, uniu grupos
em torno de falares iguais. Com Getúlio Vargas, após sua ascensão ao poder, em 1930, o
português foi normatizado como língua oficial do Brasil.

No entanto, não se pode descurar que toda essa massa de falares dispersa pela
imensidão do país influenciou e amalgamou o conhecido “português brasileiro”. O uso
do português como língua oficial brasileira, apesar de constante insistência de estudiosos
e gramáticos e de um número significativo de obras sobre a língua que se falava no Brasil
(GUIMARÃES, 2004, p. 28-35) nunca foi um acontecimento pacífico, mas motor para
debates, tratativas e invectivas que nunca obtiveram êxito na meta perseguida: a
instituição oficial da língua brasileira.

Procura-se, neste trabalho, encontrar os sentidos que as alterações linguísticas,


justificadores da luta pelo reconhecimento de uma língua brasileira, no contato com o
mundo da canção popular, produziram. A linguagem, portanto, como não poderia deixar
de ser, é entendida como um fenômeno social, que se materializa pelo discurso
textualizado, ou seja, no nosso caso, por letras de canções tidas como samba “malandro”,
ou, em linguagem mais atualizada, como “samba duplex” ou como “música de fresta”.
Parto, por isso, do princípio segundo o qual o desate material do discurso malandro do
samba é a língua, a língua textualmente consolidada na forma de letras de canções
populares, tomando-se, portanto, o(s) respectivo(s) texto(s) do corpus como unidade(s)
de análise. Convém, por isso, lembrar que o que analisamos é como a memória do
discurso, o interdiscurso “faz funcionar a língua em um presente”. Trata-se, desse mondo,
de analisar como o exterior da enunciação “constitui sentidos no acontecimento”
(GUIMARÃES, s/d., p. 3).

É tal a direção que se pretende seguir ao procurar trazer para o real do discurso os
sentidos indagados nas respectivas letras de canções populares submetidas à análise.
Procura-se, pois, sob orientação da Análise do Discurso proposta por Michel Pêcheux e
por Eni P. Orlandi, discutir sentidos como aqueles exalados pelas canções em análise e
praticados por meio da linguagem, “como uma região privilegiada porque o discurso pode
ser visto justamente como a instanciação do modo de se produzir linguagem, isto é, no
processo discursivo se explicita o modo de existência da linguagem que é social”
(ORLANDI, 2011, p. 26). Portanto, ao buscar tal análise, não se há como deixar a largo
a historicidade que as contemplou e as fomentou. Afinal, sempre, os “processos que
entram em jogo na constituição da linguagem são processos histórico-sociais”
(ORLANDI, 2011, p. 26). Ademais, a historicidade é constitutiva do discurso: um
discurso, identicamente textualizado, não produz os mesmos sentidos em sociedades
diferentes e em épocas diferentes. Assim, “Não se trata assim de trabalhar a historicidade
(refletida) no texto, mas a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a
matéria textual produz sentidos” (ORLANDI, 1995, p. 113).

Também não se deixa a largo o fato de que todo discurso é atravessado pela
Língua/linguagem e a língua é passiva de falhas, sempre possibilitando interpretações e
o encontro de sentidos diversos. A canção popular brasileira, no aspecto que se chamou
de “samba malandro”, atualizado para “samba duplex” ou “música de fresta”, se utilizou
fartamente das possibilidades de ruptura proporcionadas pela incompletude da língua. Os
sentidos sempre podem ser outros, e tal possibilidade de polissemia foi um dos motores
da malandragem perpetrada pelo samba, “porque são várias as linguagens possíveis,
porque a linguagem se liga necessariamente ao silêncio, porque o sentido é uma questão
aberta, porque o texto é multidirecional enquanto espaço simbólico” (ORLANDI, 2004,
p. 18).

1. O discurso sobre a língua brasileira no mundo do samba: aportes teóricos

Como nos ensina Eni Orlandi, retomando Michel Pêcheux, “A análise concreta de
uma situação concreta pressupõe que a materialidade discursiva em uma formação
ideológica seja concebida como uma articulação de processos”, isto é, um entretecimento
de ideologias, saberes e discursividades prévias, de origem inatingível e delimitações
inconcebíveis, pois “o discurso [...] não é um conjunto de enunciados portadores de uma,
e até mesmo várias significações. É antes um processo que se desenvolve de múltiplas
formas, em determinadas situações sociais” (ORLANDI, 1995, p. 112). E, ainda
embasada em Pêcheux, esclarece que “A especificidade da análise de discurso está em
que o objeto a propósito do qual ela produz seu resultado não é um objeto linguístico,
mas um objeto sociohistórico onde o linguístico intervém como pressuposto”
(ORLANDI, 1995, p. 112).

Assim, o que se pretende buscar no discurso textualizado pelo corpus de análise é


algumas de tais derivas de sentidos considerando-se a historicidade que constrói ou que
é construída pelas condições de produção dos textos e pelas circunstâncias de sua
enunciação, relembrando-se que entre a canção de Noel Rosa (1933) e as canções de
Caetano Veloso (1984) medeia meio século de grande agitação cultural e de
transformação dos conhecimentos e das expressões artísticas.

O corpus analisado é a produção textual, por meio de letras de canções populares,


no universo do mundo dos sambistas, que baliza o discurso sobre a língua brasileira como
praticada nesse período de 51 anos, entre 1933 e 1984. Ou seja, a fala que, interagente
com as múltiplas formações discursivas que se realçavam em discussão geral, pelo povo,
pelos estudiosos, pelos intelectuais e gramaticistas, moldava a produção textual do
sambista (“folgado”, “malandro”, à época de Noel Rosa, e “duplex”, “de fresta”, à época
de Caetano Veloso) a respeito da língua pragmática do povo no mundo do samba,
trazendo à luz uma forte presença ideológica de então. Afinal, é a fala que propicia base
material ao discurso (GASPARINI, 2015, p. 63), que será, sempre, ideológico, já que a
ideologia é o que produz “a fixação de um conteúdo, pela impressão do sentido literal,
pelo apagamento da materialidade da linguagem e da história, pela estruturação
ideológica da subjetividade” (ORLANDI, 2012, p. 22).

No caso do nosso corpus, questiona-se quais os sentidos, na historicidade típica,


exsurgem dos recursos utilizados na sua construção, notadamente daqueles extraídos,
segundo o domínio enunciativo dos compositores, pelo uso de possibilidades
parafrásticas e polissêmicas que realçam o discurso sobre a língua. Paráfrase e polissemia
são utilizadas, neste texto, segundo o entendimento da Análise do Discurso. Ou seja, a
paráfrase como a “relação do dizer com outros dizeres” e a metáfora como “os
deslizamentos, as derivas, que, dando visibilidade à historicidade, permitem compreender
o trabalho da ideologia” (ORLANDI, 2012, p. 51).

Tais possibilidades, a par de indispensáveis na construção discursiva, pois “todo


o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e
processos polissêmicos” (ORLANDI, 2015, p. 34), são utilizadas pelo sambista
“malandro” com maestria, com o propósito de confundir sistemas autoritários, a que
ambos compositores estavam submetidos, onde impera certa restrição ao dizer certas
coisas que aparentam fazer certos sentidos. Assim, diz-se o que não se pode dizer por
meio do silêncio, pela manipulação da paráfrase e, mais sistematicamente, pela
polissemia, em um jogo astuto entre a paráfrase e o silêncio. Como nos ensina Eni
Orlandi, “a polissemia é função da incompletude e o silêncio é sua matéria” (ORLANDI,
2012, p. 131).
Afinal, como neste texto se defende, o samba malandro é fruto do “gingado”,
típica consequência do uso acentuado de síncopas nos ritmos afrodescendentes, condição
rítmica que permite a “falha” de acentuação no tempo tido como adequado à marcação
forte e a troca do local de acentuação rítmica, acentuando fortemente o tempo fraco e
fracamente o tempo forte, causando um “manquitolado” no balanço rítmico e corporal.
Essa “dessincronia” rítmica é filha da hábil manipulação dos silêncios (pausas), que
acabam comandando a linha melódica e a letra da canção. E é por causa dessa
manipulação de tempos e pausas que o samba se dá o poder de ser uma língua musical
adequada aos efeitos polissêmicos: “o silêncio permite compreender a incompletude na
base da interpretação, dos trajetos de sentidos, dos deslocamentos dos sujeitos,
movimento contínuo entre a repetição e a diferença” (ORLANDI, 2012, p. 131).

Neste trabalho, o que interessa não é a língua em sentido estrito, mas a pluralidade
de possibilidades de relações entre sujeitos de comunidades diversas, tendo em mira os
deslizes e deslocamentos sofridos pela língua instituída na sua materialização discursiva,
a ponto de ganhar novos significados, trazendo a discussão de um tema hermético e
acadêmico (a língua nacional) para o mundo pobre e perseguido do samba. Tomam-se,
para isso, por paradigmas, as alterações enunciadas na canção popular brasileira,
apontando as demonstrações de “fugas” que a língua brasileira fez do português de
Portugal, o que denuncia um discurso coerente, no mundo do samba, nesse mesmo
sentido.

Sob esse aspecto, temos que considerar que as línguas, em qualquer sociedade,
serão sempre muitas e que poderiam ser resumidas, com Orlandi (2009, p. 18), em duas
possibilidades marcantes: língua imaginária e língua fluida. Enquanto a língua imaginária
é aquela formalizada, legalizada, a “língua sistema” que tenta englobar e normatizar todas
as possibilidades de se usar um padrão único, gramatical, compendiável – e, portanto,
impossível, com funcionamento completo apenas no imaginário –, a língua fluída é aquela
que efetivamente se fala, é a “língua movimento”, aquela que é insubmissa e se faz
insubordinada aos arcabouços e fórmulas normatizadoras, impossível de ser contida,
submetida à historicidade, à ideologia e ao inconsciente (ORLANDI, 2009, p. 18).

Em uma determinada nação, onde se estabelece uma única língua como língua
oficial3, caso do Brasil, esta língua oficial, em sua formulação normativa, corresponde à
língua imaginária. Ao estabelece-la, os mecanismos políticos que se movimentam para
tal, definem, por regra, seus limites e suas potencialidades, demarcáveis semântica e
gramaticalmente. No entanto, as línguas, mesmo formais, quando praticadas, passam
constantemente por um processo de alteração e de dispersão, dependente da posição
profissional, social ou geográfica do falante, que sempre fará com que as línguas sejam
múltiplas. A multiplicidade linguística é consequência inevitável da própria capacidade
humana de simbolizar, idealizar e metaforizar, de provocar desvios, deslizes e
deslocamentos no processo de “tentar” a inatingível paráfrase perfeita, a impossível

3
“A língua oficial resulta [...] de uma decisão de Estado que exerce pressão normativa sobre os aparelhos
de Estado, notadamente o judiciário e a Escola, impondo essa língua como aquela exigida aos cidadãos na
sua relação com a estrutura administrativa estatal” (FONTANA, 2013, p. 275).
interpretação exata. Como acentua Eduardo Guimarães, o “Brasil é um país multilíngue”
(GUIMARÃES, 2005[b], p. 22). E apesar da materialidade de tal multiplicidade de falares
acompanhar o cotidiano nacional, em todos os rincões, tem-se como evidente um absoluto
unilinguismo, tratando-se, no mais, os falares em geral de “desvios” da língua padrão,
merecendo, por isso serem silenciados como um aspecto do real da língua. É a esfera de
domínio da construção de identidade da nação: uma mesma nação, um mesmo povo, uma
mesma língua. E, o mais curioso é que a língua instituída, língua oficial, por ser ideal,
mítica, utópica, vai ser, sempre, a menos usada. Por isso que

Esta característica linguística [de país multilíngue] é significada


politicamente pela tensão histórica entre um imaginário de unidade,
comum a um grande número de países contemporâneos, e uma divisão
das línguas e de seus falantes. Esse imaginário de unidade é parte da
construção das identidades nacionais modernas (GUIMARÃES,
2005[b], p. 22).

Contudo, deixando-se de lado a multiplicidade concreta de línguas (ORLANDI,


2007, p. 59-61), de diversas nacionalidades, ou etnias, como línguas maternas, línguas
nativas, línguas ensinadas, línguas praticadas por coletividades imigrantes etc., iremos,
de qualquer maneira, encontrar nas múltiplas línguas de segregação, diferenciações
significantes na estratificação social, jurídica ou econômica, utilizando-se, como base, a
língua padrão nacional, a língua oficial, mas que a adequa a condições de pronunciamento
específicas, moldadas pelas condições de produção discursiva, ou à necessidade da fala
independentemente de amplo conhecimento das normas que regem a língua, de normas
estabelecidas que não podem satisfazer sequer a unidade linguística daqueles que falam
segundo um mesmo padrão, o padrão culto, mas que o particularizam em instâncias
diversas. Essa fixação de normas sempre será, segundo Marcos Bagno, um trilho estreito
marcado pela gramática tradicional, que funciona como o “sapatinho de cristal de
Cinderela”, que “só cabe no pé de alguns poucos escritores [...] mas que querem que [...]
caiba no pé de cada um de nós: se não couber, a gente que corte um pedaço do calcanhar
ou a ponta dos dedos para forçar o pé a entrar” (BAGNO, 2013, p. 18).

2. A língua brasileira e a malandragem do samba polissêmico: de Noel Rosa


a Caetano Veloso e Chico Buarque

No presente texto, o que nos interessa, no entanto, é ver a declinação política e


ideológica da língua portuguesa praticada no Brasil, como língua oficial, o discurso que
a trouxe à tona na década de 1930 e, depois, na década de 1980, e a anotação de sua
“conversão” em língua brasileira no mundo do samba e no gênero musical samba, o que
se verá pela análise de letras das três canções que compõem o corpus de análise. Nunca
se pode esquecer que a canção brasileira “desempenha um papel particular que poderia
se aproximar daquele de uma filosofia popular, lugar em que se trabalham identidades,
em que se concebem traços importantes do consenso social” (ORLANDI, 2015[c], p. 99).
Por isso, José Miguel Wisnik diz que há “em certas linhas da canção [popular] um modo
de sinalizar a cultura do país”, o que representa “um modo de pensar – ou, se quisermos,
uma das formas da riflessione brasiliana” (WISNIK, 2004, p. 215).

Além do mais, ao “publicar’, na arte popular, pela canção, um discurso que


contrasta com a posição oficial do governo, ou quando traz à luz as agruras do dia-a-dia
do artista, de forma reflexiva e crítica, está o compositor e/ou intérprete se investindo de
uma função cronista, ou assujeitando-se discursivamente face à ideologia de denúncia e
crítica de situações sociais silenciadas pelo sistema oficial. É, no dizer de Santuza C.
Naves, a “composição crítica”, aquela que se tornou “o veículo por excelência do debate
intelectual, tanto com relação a questões textuais, como a problemas contextuais [...] O
compositor popular tornou-se crítico” (NAVES, 2009, p. 42) e, como compositor crítico,
questiona não apenas a lide artística, mas também o sistema estabelecido e a opressão
social e econômica, além de operar o processo de composição pelo “uso da
metalinguagem, da intertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversas
formas de citação, como a paródia e o pastiche. E ao estender a atitude crítica para além
dos aspectos formais da canção, o músico popular tornou-se um pensador da cultura”
(NAVES, 2009, p. 42-43).

Esse é o processo poético e reflexivo inaugurado por Noel Rosa no final da década
de 1920, retomado em tempos mais atuais (a partir de 1968, com o lançamento do LP
Chico Buarque de Hollanda) por Chico Buarque, e do qual muito fez uso o tropicalista
Caetano Veloso. Processo que colocou, definitivamente, a fala do compositor popular na
prática de uma ação política consciente: “Falar é uma prática política no sentido amplo,
que considera as relações históricas e sociais do poder sempre inscritas na linguagem”
(ORLANDI, 1998, p. 9); a canção popular crítica, de resistência, manipula a fala
essencialmente política nos entremeios dos dizeres e dos não-dizeres, no domínio do
silêncio e da polissemia, do falar uma coisa para denunciar outra, do mostrar pela fresta
o não-dito crítico enquanto exibe o dito inócuo.

Por meio dessa estratégia enunciativa, procura trazer à luz discursos de resistência
à opressão do autoritarismo político, social e, às vezes, até religioso. E, inclusive, do
autoritarismo colonialista de imposição de uma norma linguística discordante daquela
língua praticada pelo povo no mundo do samba, que, na ocasião, era a voz da totalidade
dos pobres oprimidos e discriminados de quase todo o país.

3. Condições de produção e circunstâncias de enunciação: historicizando Noel


e Caetano

A primeira das canções trazidas a claro, como texto demonstrativo dos sentidos,
dentro da historicidade típica, do discurso sobre a língua brasileira, é “Não tem tradução”,
samba de Noel Rosa, gravado em 1933 por Francisco Alves, no coração da chamada
“época de ouro da canção popular” (1930-1945). A segunda, que dialoga com a primeira
e retoma seu fio discursivo, atualizando-o e amplificando-o dentro das potencialidades
históricas do samba, é “Língua”, samba-rap de Caetano Veloso, gravado pelo compositor
e Elza Soares, em 1984, no álbum Velô. A terceira, “Quereres”, também de Caetano
Veloso e por ele interpretada, integra o mesmo álbum Velô.
Noel Rosa foi um mestre na manipulação da língua nas letras de canções populares
(principalmente do gênero samba, acobertado pelo uso de síncopas), usando e abusando
da polissemia, da dialogia e da ironia, marcas sempre realçadas em sua obra. Inovou, com
isso, a poética das letras das canções populares do Brasil, mostrando as potencialidades
da canção como texto de crítica, de denúncia, como folheto cronista, possibilitando
materializações da ideologia inscrita em formações discursivas multifacetadas em
sentidos diversificados e em múltiplos diálogos semiocultos no mesmo texto.

Difícil afastar-se, na textualidade de suas canções (não só nas letras, mas também
nas potencialidades discursivas inclusive do ritmo e da melodia), a forte influência dos
temas nacionais (mas não nacionalistas) e da “antropofagia”, característicos do
modernismo brasileiro, àquele momento em processo de fixação completa, valorizando o
produto cultural nacional, brasileiro, inclusive no campo da língua e da maneira de
manipulá-la. Por isso, quando compõe “Não tem tradução”, harmonizando-se com
movimentos intelectuais inspirados no modernismo, apresenta um libelo da resistência
contra a invasão expressiva e incipiente da língua inglesa, a persistência do domínio, nas
classes altas, da língua francesa, como, ainda, de oposição à imposição do português de
Portugal como a norma padrão brasileira.

Por outro lado, apresenta seu libelo em um discurso que aponta o povo,
simbolizado pelo mundo do samba e pelo morador do morro, como autor da língua
brasileira. A língua, vai dizer sua canção, já se afastou do português, não depende do
inglês ou do francês, e, agora, é brasileira, gestada pelo povo (“a gíria que o nosso morro
criou / bem cedo a cidade aceitou e usou”, ou seja, a língua do povo refez a língua da
cidade; a língua falada refez a língua instituída).

Na década de 1930, o mundo do samba, nos morros, estava saindo da


marginalidade para a cidadania. Getúlio Vargas assumira o poder em 1930 pronto para
remendar a cisão da cultura brasileira, em busca da identidade nacional e uma de suas
estratégias era a de levar cidadania para o mundo do samba, econômica, social e
politicamente discriminado e penalmente perseguido desde fins do século XIX. Queria
inserir o morador do morro no espaço do trabalho remunerado e legalmente documentado,
acabando com a figura do malandro. Trabalhou a ideologia da inserção do pobre no
mundo do trabalho e, paralelamente, a da valorização da família. Procurou unificar
definitivamente a língua nacional, em torno do português. Adotava maneira coercitiva,
através de leis, criação de departamentos, institutos e secretarias, para a imposição de seu
programa arbitrário de governo, o que se acentuou a partir da instituição do Estado-novo,
em 1937 e por ocasião da guerra mundial quando o Brasil esteve do lado dos aliados,
contra países como a Alemanha, a Itália e o Japão, o eixo, mas que eram tributários de
significativa massa de imigrantes no território nacional, com comunidades inteiras
fazendo uso das respectivas línguas maternas.

Se as intenções se demonstravam boas, as ações, nem tanto. O realce coercitivo


batia de frente com a resistência do mundo negro e pobre às perseguições e
discriminações vindas do mundo branco, remediado. A valorização da família, que levava
a mulher a ser apenas companheira do marido, a ele subserviente, “dona-de-casa”, “rainha
do lar”, “mãe educadora”, confrontava os movimentos feministas. Era natural, portanto,
que o samba resistisse, também, à imposição da língua considerada culta, que afrontava
as gírias que movimentavam as falas dos habitantes daquele espaço. A força do
movimento modernista atraía valor às brasilidades, inclusive linguísticas; estudiosos
pugnavam pelo reconhecimento da língua nacional. Noel Rosa não se alheou de tal
resistência.

Não se pode esquecer que, não por acaso, o movimento modernista foi inaugurado
no centenário da independência brasileira, em 1922, em São Paulo, por um grupo de
literatos e intelectuais que pretendiam relocar a língua do Brasil em efetiva
independência. A questão sobre a independência linguística do Brasil e a instituição da
língua brasileira, que marcara profundamente o final do século XIX, volta a ser assunto
de debate sob a orientação modernista. Os anos 1930 passam a ter um vigor significativo
às ideias modernistas. Como bem coloca João Luiz Lafetá, tanto os anos 1920 como os
anos 1930 são décadas de profundas transformações política, econômica e estética em
todo o mundo, não deixando o Brasil de suportar as consequências.

A despeito de os modernistas brasileiros buscarem inspiração nas vanguardas


europeias, “no Brasil [...] as artes negra e ameríndia estavam tão presentes e atuantes
quanto a cultura branca, de procedência européia" (LAFETÁ, 2000, p. 22). Dirigindo-se
às culturas tradicionais negra e nativa, o modernismo brasileiro dava voz a tais segmentos
excluídos, já que, “de um só passo, rompia com a ideologia que segregava o popular [...]
e instalava uma linguagem conforme à modernidade do século” (IBIDEM, p. 23).
Distinguem-se as décadas de 1920 e 1930 como duas fases distintas do modernismo (antes
e depois da revolução de 1930) que, apesar de consequentes e entranhadas, se distinguem
por sua força política quando norteiam projetos distintos. “Um exame comparativo”,
esclarece o estudioso, “mostra-nos uma diferença básica entre as duas [fases]: enquanto
na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético (isto é, o
que se discute principalmente é a linguagem), na segunda a ênfase é sobre o projeto
ideológico (isto é, discute-se a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da
ideologia com a arte)” (IBIDEM, p. 28).

A perspicácia estética de Noel Rosa não se furtou às formações ideológicas


dominantes e trouxe, pelo agudo senso crítico da canção, à tona, no mundo do samba, o
discurso que se reinstaurava, pelo modernismo, de valorização da independência
linguística nacional e do aproveitamento estético da tradição popular, juntando mais este
registro à resistência cultural negra contra a opressão do poder branco, que se inspirava
na tradição culta europeia enquanto procurava silenciar a voz das tradições negra e nativa.

À época, por outro lado, já se faziam sentir as estratégias de domínio cultural dos
EUA, e uma das armas de maior poder era justamente o cinema falado. Após a bem-
sucedida sonorização parcial levada a efeito em 1926, “a 27 de outubro de 1927, Al Jolson
extasia as platéias em Cantor de Jazz, dirigido por Alan Crosland” (PEREIRA, 1980, p.
92), inaugurando oficialmente o cinema falado que, como percebe Noel Rosa,
paralelamente também inaugura um discurso de resistência à invasão cultural que o
cinema alienígena representava.

A seu turno, vamos encontrar Caetano Veloso, trinta anos depois de Noel,
inaugurando uma revisão do modernismo, quando encabeça o movimento tropicalista. O
que Noel foi para o modernismo, na canção popular do morro, Caetano o foi para o
tropicalismo. O discurso da nacionalização da língua persistia vivo, produzindo sentidos.
Noel compõe seu libelo de resistência à invasão da cultura estrangeira, e à manutenção
da norma padrão da língua, o português, batendo-se contra o descaso governamental ao
mundo do samba e contra a opressão política, em tempos de opressão e perseguição;
Caetano, o faz em momento político identicamente crítico: quatro anos após o golpe
militar e às vésperas do recrudescimento autoritário que veio pelo Ato Institucional n.º 5,
em dezembro de 1968. Quando lança o álbum que, revendo Noel, retomava a defesa
musical da língua nacional, já em 1984, nos estertores do regime militar, fora perseguido,
preso e exilado, carregando a experiência do autoritarismo governamental que coibia a
livre manifestação cultural.

O discurso da primeira das canções de Caetano Veloso retoma Noel, para apontar
que a língua brasileira se forma e se reforma constantemente, em motu perpetuo,
agregando novas formulações sobre a pretensa linguagem originariamente instituída. No
que pese o reconhecido valor da origem, a “língua de Camões”, que “roça” com a língua
do povo (e aqui também se tomou como símbolo o mundo do samba, em seu processo
evolutivo até o rap brasileiro), há um deslocamento da língua como pátria, para mátria
que busca a frátria. Ao deixar a obediência ao “pai” Portugal, o brasileiro encontra a
língua mãe, a própria língua nacional, que tem como destino, conscientemente ou não, a
irmanização de todo o processo linguístico constitutivo do país, sejam as línguas nativas,
o português, as línguas negras, como a multiplicidade de línguas estrangeiras faladas no
território nacional, interagindo com a língua brasileira em permanente reciprocidade e
constituição.

Caetano trazia à luz um discurso que ainda era do mundo do samba, de valorização
das culturas tradicionais negra e nativa. A discussão sobre a instituição da língua
brasileira, destronando a língua do colonizador português, permanecia em pauta e não
fugia ao projeto político do tropicalismo. Inúmeras obras de sotaque nacionalista
persistiam reivindicando a autonomia brasileira e o compositor trouxe à luz sentidos
atualizados desde Noel que despontam no mundo da cultura popular, ou seja, no mundo
do samba.

Caetano Veloso foi um dos cabeças, junto com Gilberto Gil, do chamado
movimento tropicalista. A ideia original da dupla de baianos, interagindo com outros
intelectuais que demandavam a inserção de novos e mais modernos sentidos na música
popular, principalmente de baianos, não era a de construir um movimento cultural, mas a
de “abrir” a música brasileira aos elementos modernizadores da canção em todo o planeta,
oriundos do pop americano aprimorado pelo estilo do conjunto inglês The Beatles
(FAVARETO, 2000, p. 27-28). O próprio pop já era uma simplificação rítmica do rock e
de seus ritmos fundadores, como os blues, os spirituals, o jazz, o soul, que, dadas suas
possibilidades, pela simplicidade, quase infinitas de composição e de divulgação, tomava
o mundo de assalto, junto com o rock (isso, sem falar na imposição ideológica cultural
levada a efeito pelos “donos” da indústria cultural).

A situação, de alguma forma, repetia um processo de “invasão” perpetrado pela


cultura norte-americana. Enquanto, pelos tempos de Noel, a arma utilizada pelo invasor
era o cinema falado, nos tempos do tropicalismo, era a nova forma de compor e interpretar
a canção. A diferença fundamental é que, se o discurso daqueles tempos resistia à invasão,
o de agora a acolhia, abrasileirando-a antropofagicamente (uma proposta modernista) ao
sol tropical das praias nacionais e ao sertão tórrido e árido do Nordeste.

O grupo, portanto, que iniciava (ainda sem saber) o movimento tropicalista4, tinha
como alvo a inserção da estética do pop na música popular brasileira (o que culminou
com a formatação definitiva do gênero musical mpb), adotando, inclusive, o uso de
instrumentos eletrificados. A pressão do pop sobre a música nacional, e a correspondente
resistência, era tensa, dando causa à marcha contra a guitarra elétrica, em julho de 1967,
com a participação, dentre outros, de Gilberto Gil que, junto com Caetano, inovaria, três
meses depois, em outubro, no III Festival da TV Record, a música brasileira pela inserção
de elementos eletrificados e da estética do pop-rock na canção popular brasileira
(VIDEOFILMES, 2010). A inovação foi maciçamente acatada confirmando o gênero
Mpb, um dos mais significativos do país, e dando ingresso definitivo ao rock no Brasil.
Com isso, se converteu em um movimento cultural e político dos mais expressivos,
afetando todas as áreas da cultura e da política nacionais.

Antes, a bossa-nova reinava soberana, desde final dos anos 1950, mas, ao explodir
o movimento tropicalista, “O espírito solar das canções da bossa nova, adequado às
paisagens da Zona Sul carioca [...], foi substituído ora por um clima cáustico e árido do
sol nordestino, ora por sensibilidades quentes e úmidas, de sabor fortemente africano”
(NAVES, 2004, p. 26). O espaço de um novo movimento, mais engajado, mais ruidoso,
que alcançasse a universalidade das artes e da cultura, estava, portanto, aberto, e, a partir
da experimentação musical do famoso “beco das garrafas” (NAVES, 2004, p. 26-27), a
tropicália veio para ocupá-lo.

O movimento era de amplitude tal que deu suporte ao fortalecimento da indústria


cultural, deu voz à resistência dos jovens artistas e intelectuais que contestavam o
momento político; a exemplo do movimento modernista das décadas de 1920 a 1940,
permitiu uma retomada da cultura nacional, embora absorvendo a simplificação rítmica e
musical do pop e a potencialidade catártica do rock. Abrigou um universo de
possibilidades, mantendo-se como ícone do reavivamento dos valores nacionais,

4
O nome, “tropicalismo”, deriva de “Tropicália”, título de um trabalho de Hélio Oiticica, montado na
Mostra nova objetividade brasileira”, no MAM/RJ, em abril de 1967. O trabalho era uma composição
multiartística, com vários detalhes que lembravam a ocorrência de diferentes elementos culturais, inclusive
dos morros, na paisagem tropical brasileira, subsequência de um posicionamento das artes plásticas,
interpretativas e da poesia, iniciado no começo da década de 1960, buscando a inserção da brasilidade nos
elementos da arte (ITAÚ CULTURAL, p. un.).
“antropofagiando”, à maneira do modernismo, os inúmeros marcos culturais do país e de
além, mas jogando luz sobre a estética silenciada da pobreza e dos desvalidos, em todo o
país, e, por isso, se estabeleceu de maneira definitiva na arte brasileira.

Os mundos de Noel Rosa e de Caetano Veloso se distanciaram por um período de


cerca de trinta anos. Noel Rosa começa a sua produção musical em 1929, com 19 anos, e
a encerra em 1937, quando morre com apenas 26 anos e meio, vítima precoce de
tuberculose. Caetano aparece em 1965, com 23 anos de idade, como cantor e compositor,
por meio do compacto simples “Samba em paz” e “Cavaleiro” e do sucesso de “De
manhã”, gravada no mesmo ano por vários intérpretes, inclusive por Wilson Simonal,
Maria Bethania e Leny Andrade e Pery Ribeiro. Sua produção gravada, anterior ao III
Festival, é de oito canções. Em 1966 ganha, no II Festival da Record, com a canção “Um
dia”, o prêmio de melhor letra. Alça-se definitivamente ao estrelato em 1967, com
“Alegria, alegria”, classificada em 4.º lugar no III Festival da Record, e onde inaugura,
na música, a filosofia tropicalista e a absorção da estética pop/rock. As oito canções
anteriores, quase todas no ritmo da bossa-nova (ou modinha), eram exclusivamente
acústicas. No entanto, alguns pontos de contato aproximam, ao nível ideológico, os dois
músicos.

Noel Rosa, que nascera, em 11 de dezembro de 1910, sob o bombardeio da


Revolta da chibata (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 10), alcança um primeiro sucesso no
início do regime autoritário de Getúlio Vargas, pós revolução de 30, governo que “como
os governos autoritários em geral, exercia forte censura sobre a cultura e o conhecimento”
(ORLANDI, 2009, p. 113); Caetano aparece nos anos iniciais da revolução de 1964.
Ambos, portanto, iniciaram suas obras imersos em um processo de silenciamento imposto
pela censura dos respectivos governos autoritários. Assim como Noel, Caetano também
inaugurava uma nova maneira de fazer canção e, em ambos, vê-se uma transformação na
poética das letras. Os dois se colocaram como cronistas da vida miúda do cotidiano banal,
buscando uma estética de assimilação da cultura popular e da voz silenciada dos menos
favorecidos. Tanto um como outro fez uso de ampla polissemia e de farta dialogia, muitas
vezes de profunda ironia, para fazer crítica social e econômica enquanto driblavam a
censura. Noel estabeleceu o modernismo na canção popular; Caetano inaugurou o
tropicalismo, uma revisita aos ideais modernistas.

Noel foi, reconhecidamente, um mestre para as gerações bossa-nova e tropicalista.


Não é sem sentido o fato de muitos cantores da época bossa-nova/tropicália (exemplos de
João Gilberto, Chico Buarque e Caetano Veloso) resgatarem canções de Noel, e muitos
compositores (exemplos de Chico Buarque e Caetano Veloso) com elas dialogarem.
Portanto, não causa grande surpresa encontrar as línguas brasileiras de Noel e Caetano se
roçando.

4. Dispositivo analítico: a língua é brasileira, já passou de portuguesa

É o seguinte o texto enunciado em “Não tem tradução”, canção solo de Noel Rosa
e inicialmente gravada em 1933 por Francisco Alves:
O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês

A gíria que o nosso morro criou


Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançando o Fox-Trote

Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição


Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português

Amor lá no morro é amor pra chuchu


A gíria do samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone

A canção traz à luz, materializa, os discursos que enriqueciam os debates


acadêmicos e literários, condensados em uma posição discursiva de forte crítica à
ideologia dominante, de tradição colonizadora, segundo a qual melhor é o que vem de
fora; oposição crítica essa perceptível em todo o curso da letra da canção, bem afinada,
nesse sentido, com os ideais modernistas. A seu turno, percebe-se que, no mundo pobre
do samba, discutia-se a inevitável influência do cinema falado sobre seus processos
culturais.

Dentro do amálgama tradição africana-samba-indústria cultural, um outro


produto, um “invasor” externo poderia provocar uma transformação decisiva, que viesse
constranger e oprimir economicamente o compositor popular. Por isso, a canção retoma
o discurso segundo o qual “o cinema falado é o grande culpado da transformação / dessa
gente que sente que o barracão prende mais que o xadrez”. Essa formulação demonstra e
denuncia um jogo político de desvalorização do barracão, um dos símbolos do malandro,
do morro e, portanto, do samba. Barracão é pior que o xadrez, ou seja, que a prisão.
Barracão é do mundo tradicional do morro; cadeia, do mundo civilizado. A canção joga
com a memória discursiva: de um lado, a pobreza livre do morro; de outro, a civilização
aprisionante. E o cinema falado era um espectro desse aprisionamento.

O poder do comportamento do malandro do samba continua produzindo sentidos.


No morro, a lei é outra. A prisão, para o malandro é uma cabrocha, um barraco e um
violão. Por isso que uma “falseta’, fala malandra aveludada do samba, faz, no mundo do
samba, mais sentido que o francês ou o inglês. Tanto assim é que a fala que o morro cria
é aceita e usada pela cidade; a vida, pobre economicamente, mas rica culturalmente, do
morro não tem tradução; é uma fala brasileira legítima em funcionamento, sem gírias em
línguas estrangeiras; a fala do samba, a fala malandra, é nacional, muito além do
português padronizado e imposto. O discurso de interferências exteriores que ameaçam o
samba é constantemente retomado e um sem número de canções clamam “não deixe o
samba morrer, não deixe o samba acabar, o morro foi feito de samba”5

Por isso, o discurso que se materializa na canção se opõe às transformações


ideológicas “dessa gente” que valoriza mais o cinema e a canção internacionais, inglesa
e francesa, renegando o “barracão”, emblemática caracterização do povo desvalido, e o
samba de gafieira, idem, da arte popular. Opõe-se, também – e isso é o que mais nos
interessa aqui –, ao português institucionalizado, de Portugal. Noel mostra que havia um
discurso produzindo sentidos na canção popular segundo o qual “não se fala[va] mais a
mesma língua do lado de lá e do lado de cá do Atlântico”, conforme frase de Eni Orlandi
(2009, p. 88). Ou seja, percebia-se que a “memória do português de Portugal inicialmente
funcionando como a memória Outra que dá distância das situações enunciativas deixa de
funcionar na situação discursiva brasileira [...]. É a nossa memória aqui que passa a
funcionar na construção discursiva dos referentes” (ORLANDI, 2009, p. 88).

Tradicionalmente, a voz do samba é uma voz coletiva. Quando fala o samba, é o


morro quem está falando. Não é sem sentido que se diz: “eu sou o samba, a voz do morro
sou eu mesmo, sim senhor”6. Por isso, é o morro que, pelo discurso textualizado na canção
de Noel Rosa, declara instituída a língua brasileira, fortemente constituída com a
participação da fala do morro, e a opõe ao francês e ao inglês: “lá no morro, se eu fizer
uma falseta / a Risoleta desiste logo do francês e do inglês” ou “essa gente hoje em dia
que tem a mania da exibição [tanto no sentido de exibir-se, ser aparecida, usar o
estrangeirismo como marca de status, como da invasão da cultura estrangeira,
concentrada na exibição cinematográfica e na exibição por catálogos e mídias culturais]
/ não entende que o samba [a nossa arte, a arte do nosso povo, da tradição] não tem
tradução no idioma francês”. Depois, Noel resgata o discurso do morro que, na
historicidade daquele momento, dá o brado de independência da língua brasileira7: “tudo
aquilo que o malandro pronuncia / com voz macia, é brasileiro, já passou de português”.

Além disso, é o povo simples, descentralizado dos poderes de mando na sociedade


ou na economia, que, em parte, constrói a língua nacional: “a gíria que o nosso morro
criou [destacou-se] / bem cedo a cidade aceitou e usou”, ou “tudo aquilo que o malandro
pronuncia [destacou-se]”. Há uma memória discursiva que convoca a importância da
participação do negro na composição da língua brasileira. Como esclarece Edgard
Sanches, “Soffreu a lingua européa não só da lingua indigena, como dos dialectos
africanos, modificações que a alteraram no vocabulario, na prosodia e na syntaxe”
(SANCHES, 1940, p. 218). Na virada do século XIX para o XX, a questão da língua
nacionalizada no Brasil ou “emprestada” de Portugal gerava calorosas discussões e

5
Trecho da canção “Não deixe o samba morrer”, de Édson e Aluísio, gravado por Alcione no álbum A voz
do samba (1975).
6
Trecho da canção “A voz do morro”, de Zé Keti. Gravado em 1955 por Jorge Goulart.
7
Aqui se refere apenas ao discurso relativo à Língua Brasileira na canção popular, à constatação
materializada no domínio da arte cancioneira, pioneiramente, por Noel Rosa. A discussão, nos meandros
acadêmicos, científicos, políticos já existia desde a independência do país (Orlandi, 2009, p. 51-86; 153-
154).
polêmicas, sendo uma das mais ruidosas a “Réplica” de Rui Barbosa a um pretenso único
equívoco gramatical de Clóvis Bevilaqua na redação de um anteprojeto de Código Civil.
Naquela época, a questão da gramática era

extremamente sensível [...] dada sua íntima relação com os novos


conceitos de nação trazidos à baila com o estabelecimento de um
sistema político republicano. Um tema recorrente junto aos círculos
intelectuais da época era a questão se a jovem nação dispunha ou não
de uma língua própria – uma língua brasileira (NUNES, 2012, p. 3).

Quando a canção foi composta, pugnava-se pelo resgate da importância dessa


participação. Ou seja, o discurso do morro, naquele momento e naquela situação social,
pedia socorro à cidade a seus pés para que sua voz fosse ouvida, como a voz do brasileiro,
contribuindo na construção de uma língua singular. A língua do povo brasileiro, o
português do Brasil, é uma constituição manifesta, dadas às singularidades que a afastam
da língua-mãe, o português de Portugal (ORLANDI, 2009, p. 37). Afinal, a “língua
brasileira difere da língua portuguesa em sua forma material que é a base de processos
discursivos diferenciados”, sofrendo e recebendo interferências múltiplas da história, do
social, do ideológico. Por isso, não “se significa da mesma maneira em português e em
brasileiro. Mais ainda, as mudanças se dão de formas diferentes nessas línguas enquanto
línguas fluidas distintas, com suas formas materiais distintas” (ORLANDI, 2009, p. 48).

Pelos tempos de Noel, a discussão sobre a língua no Brasil, incentivada pelo


modernismo brasileiro e pelas transformações culturais globais, é acalorada, inclusive
sobre o reconhecimento da importância da contribuição negra, população predominante
no mundo do samba, na constituição de nossa língua. Como bem aponta Beatriz Christino,
“a herança lingüística dos negros para o português brasileiro foi percebida em obras
publicadas por autores nacionais entre 1920 e 1945, período destacado como o mais
relevante da história das discussões acerca da natureza da nossa variante (Pinto: 1981)”
(CHRISTINO, 2004, p. 45).

Interessante demonstração do incômodo que a discussão causava ao mundo das


artes é o poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade, em que o poeta
acentua: “Precisamos descobrir o Brasil / [...] O Brasil está dormindo, coitado /
Precisamos colonizar o Brasil / [...] Precisamos educar o Brasil / [...] Precisamos,
precisamos esquecer o Brasil!”, encerrando o poema com a severa advertência “Nosso
Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os
brasileiros?”. Outras obras que mostram a relevância do momento para a discussão são
O dialeto caipira, de Amadeu Amaral, e O linguajar carioca, de Antenor Nascentes,
publicados, respectivamente, em 1920 e 1922, realçados por Thiago Mattos e Vanise
Medeiros (2013, p. 241-255).

Caetano Veloso, cinquenta anos depois, em franco diálogo com Noel Rosa, retoma
o discurso do movimento libertário da língua brasileira, buscando, também, a
autenticação da fala da cultura popular como elemento de distinção entre a “carrancuda”
norma estabelecida e a “alegre e comunicativa” fala do povo: a tensão entre a língua
imaginária e a língua fluída, a que prende (xadrez que prende mais que o barracão) e a
que liberta (tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia). E o faz por meio da
canção “Língua”, composição solo gravada em 1984 pelo compositor, no álbum Velô,
com a participação da sambista Elza Soares:

Gosto de sentir a minha língua roçar


A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira
Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
o que pode
Esta língua

Vamos atentar para a sintaxe paulista


E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Cadê? Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Hollanda nos resgate
E Xeque-mate, explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Sejamos o lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisa como rã e ímã8...
Nomes de nomes como Scarlet Moon Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé, Maria da Fé
Arrigo Barnabé

8
A referência a nomes em “ã” se dá em razão da influência das línguas nativas no vocabulário brasileiro.
A sonoridade tem tamanha importância em línguas nativas que mereceu registro por Capistrano de Abreu
(1853-1927) no início do século XX, conforme anota Beatriz Christino (2007, p. 25-40).
Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
Meu medo!

A língua é minha Pátria


eu não tenho Pátria: tenho mátria
Eu quero frátria

Poesia concreta e prosa caótica


Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar
Tá craude brô, você e tu lhe amo
Qué que'u faço, nego?
Bote ligeiro
arigatô, arigatô
Nós canto falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem

A canção de Caetano é uma alegoria sobre a língua brasileira de riqueza de difícil


contornos, de impossível limitação. Traz, em uma síntese absurda, todo um universo de
debates linguísticos materializado em discursos que ocuparam estudos de milhares de
páginas e discussões de milhares de horas. O diálogo com Noel Rosa faz aflorar os
discursos já lá textualizados. A principal marca de retomada daquele discurso ancestral
se faz obliquamente através de uma outra canção, “Festa imodesta”, composta por
Caetano especialmente para Chico Buarque gravar no álbum Sinal fechado, de 1974. Este
álbum é, ele próprio, uma metáfora da resistência à censura imposta pelo governo militar
à obra de Chico Buarque que, forçadamente silenciado pelos censores, pôde voltar aos
braços (ou melhor, aos ouvidos) da população e textualizar seu grito de protesto,
naturalmente de forma “duplex”9 ou “de fresta”10 (expondo sentidos óbvios que
escondem sentidos outros), para além das barreiras do silêncio imposto, através da fala
de outros compositores. Nunca se pode esquecer que na “censura está a resistência. Na
proibição está o ‘outro’ sentido”, já que, como a censura vai atingir a constituição do
sujeito, em sua identidade, a “identidade, por seu lado, sempre em movimento, encontra
suas formas de manifestação não importa em que situação particular de opressão”
(ORLANDI, 2015[c], p. 118).

“Festa imodesta” foi a marcante contribuição de Caetano Veloso, abrindo o


álbum, ocupando a faixa 1 do lado “A”. Certamente não por acaso11, na faixa 3 do mesmo
lado, a canção de Noel Rosa está presente, representada por “Filosofia” (gravada
originalmente, em 1933, por Mário Reis): “o mundo me condena / e ninguém tem pena /
falando sempre mal do meu nome / deixando de saber se eu vou morrer de sede / ou se
vou morrer de fome” (discurso bem apropriado para o momento político e para o grito de
resistência de Chico Buarque, quando muitos artistas, inclusive o próprio Chico, por causa
da reiterada censura a suas obras, estavam ameaçados não só de restrições à liberdade de
agir e falar – inclusive fisicamente, por prisão – mas até na própria subsistência
econômica. Por trás do discurso, estavam as vozes de muitos outros compositores,
inclusive, é certo, a de Noel Rosa in memoriam).

Deixando à parte as formulações discursivas do álbum, como um conjunto – já


que não é esse o objetivo deste estudo –, retomemos “Festa imodesta”. Nela, Caetano
Veloso (além do evidente resgate de “Alegria”, de Assis Valente e Durval Maia, gravada
em 1937 por Orlando Silva, nos versos: “minha gente / era triste, amargurada / inventou
a batucada / pra deixar de padecer”, também bastante apropriados aos objetivos do
álbum12), busca franco diálogo com “Não tem tradução”, de Noel: “tudo aquilo que o

9
Termo criado por Chico Buarque, pela fala da fictícia personagem (seu pseudônimo – alguns dizem ser
heterônimo) do compositor Julinho da Adelaide, em uma entrevista concedida ao jornalista Mário Prata,
intitulada “O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide” e publicada no jornal Última Hora, em
07 e 08 de setembro de 1974 (não por acaso, ano do lançamento de Sinal fechado, em que aparece a canção
“Acorda, amor”, assinada por Julinho e seu “irmão” Leonel Paiva – outro pseudônimo ou heterônimo de
Chico). Como diz Orlandi, Chico “faz parte do funcionamento de sentidos que inaugurou” (eu diria
“retomou”, já que o considero inaugurado por Noel Rosa), ele se dilui no “evento histórico”, no
acontecimento discursivo, que “se instalara no jogo entre censura e resistência. E de tal forma que ele
mesmo dá um nome à sua poética: o samba-duplex, aquele que pode mudar de sentido quando for
necessário” (ORLANDI, 2015[c], p. 123). Em “Festa imodesta”, Caetano estabelece um novo termo para
o mesmo efeito, “música de fresta”, ao dizer que “tudo aquilo que o malandro [o artista, cantor, compositor]
pronuncia e o otário [a censura, o censor] silencia, toda festa que se dá ou não se dá, passa pela fresta da
cesta e resta a vida”.
10
Em “Festa imodesta”, Caetano estabelece um novo termo para o mesmo efeito, “música de fresta”, ao
dizer que “tudo aquilo que o malandro [o artista, cantor, compositor] pronuncia e o otário [a censura, o
censor] silencia, toda festa que se dá ou não se dá, passa pela fresta da cesta e resta a vida”.
11
Ao que parece, nada neste álbum está lá, compondo-o ou na própria distribuição de faixas, por acaso. A
faixa que dá o título ao álbum “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, vencedora do V Festival da Record,
1969, é a que o encerra. A mensagem é clara: o sinal continua fechado e o trânsito da palavra contido. Não
se pode – não se deve – falar e, portanto, os diálogos hão de ser contidos.
12
Há, aparentemente, uma outra inserção emblemática na escolha dessa canção, considerando-se que a
primeira das canções tropicalistas de Caetano Veloso foi “Alegria, alegria”. E, mais, que críticos veem, em
malandro pronuncia / e o otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela
fresta da cesta e resta a vida”. Ora, “tudo aquilo que o malandro pronuncia”, ou seja, o
discurso da gente comum do povo, no “mundo do samba” (como metáfora à resistência
dos negros e da pobreza contra as ideologizações, censuras e opressões) se dá em um
linguajar que “é brasileiro, [e que, portanto] já passou de português” e “passa pela fresta
da cesta” expondo a língua brasileira como a vida que resta, e que é aquela que Caetano
vai mostrar na metalinguística (já desde o nome) canção “Língua”. E Caetano fecha o
círculo entre as três canções ao invocar, nesta última, “e que o Chico Buarque de Holanda
nos resgate.

O discurso que alimenta a canção de Caetano autentica as raízes portuguesas de


nossa língua, quando dá sentido aos versos “gosto de sentir a minha língua roçar / a língua
de Luís de Camões” ou ao verso “gosto do Pessoa na pessoa”. Da mesma forma o faz
quando, no verso “minha pátria é minha língua” busca sentidos na poesia de Fernando
Pessoa (pelo heterônimo de Bernardo Soares) na crônica (poema em prosa?): “Minha
pátria é a língua portuguesa (gosto de dizer)”. No entanto, apresenta um sentido derivado
de uma outra posição, calcada em outra formação discursiva do sujeito brasileiro, que,
para além do paternalismo português (“não tenho pátria”), anseia por gestar sua própria
identidade (“tenho mátria”), buscando uma identidade definitiva e comum, própria do
multiculturalismo nacional (“quero frátria”), que é o amálgama da literatura tipicamente
brasileira – “a rosa no Rosa”13.

Essas “confusões de prosódia” e essa “profusão de paródias”, resultado do latim


agora instantâneo e processado, o latim em pó, pulverizado nos limites nacionais, de
múltiplas utilidades, absorvendo a tecnologia estrangeira e a utilização brasileira, é
“minha língua” e, portanto, “minha pátria”, considerando-se que, para Caetano, “minha”
pátria é a brasileira, com sangue negro, e que, sendo “minha pátria [a] minha língua”,
portanto, minha língua é a brasileira: tal o sentido que Caetano reproduz do discurso que
o motiva. É a língua de Caetano (a brasileira) roçando a de Pessoa (a portuguesa), cada
qual do seu lado do Atlântico. Por isso, retomando o discurso textualizado em “é
brasileiro, já passou de português”, Caetano acrescenta: “e deixa os portugais morrerem
à míngua”, ou seja, que os discursos que defendem a dependência da língua, “portugais”
linguísticos colonizadores (sejamos nós, agora, imperialistas na imposição de nossa
língua), morram à míngua, por inanição. A língua brasileira é o samba, é o negro, é o
pobre, o nativo, representados por “fala, Mangueira!”, antropofagiando (como apregoado

tal título alusão a “alegoria, alegoria”. Em “Festa imodesta” Caetano poderia estar realçando a alegoria da
“paixão” de Chico Buarque.
13
Discute-se se o Rosa seria o Guimarães ou o Noel, ou ambos, quando a rosa é a arte ou a poética, mas,
neste texto, tende-se a assumir que Caetano resgata um discurso sobre o multilinguismo, já inaugurado em
“Não tem tradução”, de Noel, e o explicita nos muitos falares nacionais, misturando o sotaque dos paulistas
com o inglês relax dos surfistas, a língua de Luanda, o jeito do negro brasileiro falar e as influências que
recebeu do negro americano do Harlem, o japonês, o francês em suas rimas aportuguesadas, o sotaque da
Bahia, os regionalismos, o universalismo linguístico que a Rede Globo de TV procura implantar, as
sonoridades diversas, da mistura de sotaques, como em Carmem Miranda (talvez a brasileira mais
americana de todas as portuguesas).
pelos modernistas e retomado pelo tropicalismo) as múltiplas influências
multilinguísticas que aqui, no Brasil, foram e são o caldeirão fervente da língua brasileira.

Interessante observar que a “sintaxe dos paulistas”, ou o seu “dialeto caipira”


foram acolhidos pela canção popular pelas composições de Adoniran Barbosa, que,
descendente de italianos, explorava com mestria os hábitos de fala paulista, inseridos na
vida do mundo do samba de São Paulo, também constituído por pobres economicamente
segregados se bem que, agora, principalmente imigrantes europeus e migrantes
nordestinos. Um bom exemplo de canção para se anotar esse “sotaque” caipira é “O
samba do Arnesto”, de 1953, composto por Adoniran Barbosa e Alocin e gravado pelo
primeiro compositor: “O Arnesto nus convidô prum samba, ele mora no Bráis / Nóis
fumos, não encontremos ninguém / Nóis vortemos cuma baita duma reiva / Daotra veiz,
nóis num vai mais / Nóis num semo tatu! / Noutro dia encontremo co’Arnesto / Que pediu
descurpa, mais nóis num aceitemos / Isso não se faz, Arnesto, nóis não se importa / Mais
você devia ter ponhado um recado na porta”. A se comparar com a norma padrão,
percebe-se que é uma outra língua.

Pelo viés dos discursos que falam da língua brasileira, cancioneiramente


textualizados, uma outra canção de Caetano Veloso não passa desapercebida. Trata-se da
enigmática “Quereres”, também parte do álbum Velô. É bom que se anote que “Língua”
é a última faixa do lado “B”, consolidando o sentido do álbum, suas “conclusões”. Por
outro lado, “Quereres” faz parte dos “argumentos centrais” da tese discursa por ele
defendida. Ao ser observada sob a ótica da tensão que existe entre os discursos
instaurados durante todo o período e retomados com maior atenção às épocas das
composições, sobre a legitimidade da língua brasileira em confronto com a língua
portuguesa, sentidos outros são possíveis e se estabelecem e apontam, em “Quereres”,
para a final e conclusiva “Língua”:

Onde queres revólver, sou coqueiro


Onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco


E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! bruta flor do querer


Ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito


E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor


Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! bruta flor do querer


Ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo


E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
Onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim


Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

Em muitos pontos, a canção aponta as contradições que se vislumbram nos


confrontos e conflitos entre os falares e as línguas, sejam nos regionalismos, na erudição,
na literatura, nas apropriações raciais e internacionais, que alimentam os discursos sob
análise. É certo que a canção, para a aferição ampla de sentidos que, nesse aspecto, podem
ser extraídos de suas diversas formulações discursivas, merece um estudo mais detido e
cuidadoso. No entanto, aqui, para efeitos da comparação entre canções e dos discursos
que textualizam, acentuam-se apenas algumas, que demonstram maior evidência.
A primeira é a que diz “[...] onde voas bem alta, eu sou o chão / e onde pisas o
chão, minha alma salta / e ganha liberdade na amplidão [...] onde queres mistério, eu sou
a luz”. O discurso que pugna pela liberdade da língua brasileira aponta para os
desencontros linguísticos daqui e de lá: enquanto a língua instituída, com amarras na
língua portuguesa, de Portugal, é uma língua imaginária, cheia de mistérios gramaticais,
instituída e idealizada, mas afastada das línguas faladas pelo povo brasileiro e, portanto,
é aquela que “voa bem alto”, a(s) língua(s) fluída(s) naciona(l)(is) é(são) o chão do real,
a luz do entendimento e, consequentemente, as possibilidades de diálogo. Quando a
língua formal tenta “pisar” o chão da realidade, fluida como é, a língua praticada pelo
povo salta para a luz do entendimento e se esquiva e ganha liberdade em uma amplidão
que não admite controle ou sujeição.

Em seguida, os deslizes, deslocamentos, desvios dos múltiplos falares do povo


brasileiro, presentes nos mesmos discursos, ficam claros nas contraposições: “onde
queres Leblon, sou Pernambuco”, “e onde queres cowboy, eu sou chinês [...] / onde queres
comício, flipper-vídeo / e onde queres romance, rock'n roll [...] / e onde queres um canto,
o mundo inteiro”. No verso “onde queres o lobo, eu sou o irmão”, percebe-se a ligação
com os versos “sejamos o lobo do lobo do homem”14 e “eu quero frátria”, de “Língua”.
Se o homem conseguir domesticar o seu lado lobo, sombrio, responsável pelos desvios
de caráter, pela ânsia de poder e de domínio, a fraternidade, inclusive linguística, se
instaurará. Percebe-se que o discurso sobre a língua nacional se escora na ideia de
fraternidade: onde se impõe o domínio – o imperialismo lobo, predador – busca-se o
fraterno, o irmão, o brasileiro cordial calcado no discurso inaugurado por Sérgio Buarque
de Hollanda.

Interessante notar que, em toda uma estrofe, o compositor traz sentidos do


discurso de resistência da língua fluida à língua imaginária, à qual não admite submeter-
se: “eu queria querer-te amar o amor / construir-nos dulcíssima prisão / encontrar a mais
justa adequação / tudo métrica e rima e nunca dor / mas a vida é real e de viés / e vê só
que cilada o amor me armou / eu te quero (e não queres) como sou / não te quero (e não
queres) como és”. Também em outros versos a canção aponta o embate entre o idealizado
e o real, como, por exemplo, em “e onde buscas o anjo, sou mulher”, ou “onde queres a
lua, eu sou o sol / onde a pura natura, o inseticídio”. O discurso desvelado é o que caminha
no sentido de questionar os interesses e os “quereres” diversos, as expressões e sentidos
peculiares a cada uma das potencialidades da língua. Não somente isso. Indica a
impossibilidade da plena conciliação, pois enquanto a língua “perfeita” é rígida e
inatingível, a língua materializada é fluida e onipresente.

Não adianta a busca da perfeição, utopia dos literatos e dos cientistas, já que toda
perfeição é um horizonte móvel e sempre distante, por mais que se vençam limites e
ultrapassem fronteiras sempre estará lá, na distância. Essa impossibilidade é indagada

14
Nesse verso, Caetano dialoga com o filósofo inglês Thomas Hobbes (5 de abril de 1588 — 4 de dezembro
de 1679) que reviu a máxima latina Homo homini lúpus, atribuída a Plauto (254-184aC). No entanto, o que
Caetano propõe não é ser o lobo do homem, mas ser o lobo do lobo do homem, ou seja, predador do “lado
mau” do homem, domesticando o Mr. Hyde que se esconde por trás de todo Dr. Jeckyll.
pela última estrofe: “o quereres e o estares sempre a fim / do que em mim é de mim tão
desigual / faz-me querer-te bem, querer-te mal / bem a ti, mal ao quereres assim /
infinitivamente pessoal / e querendo querer-te sem ter fim / e, querendo-te, aprender o
total / do querer que há e do que não há em mim”.

Por fim, mas não sem idêntica importância são dois indícios que apontam para a
retomada de sentidos de discursos anteriores, aqui questionados. O primeiro, é o verso
“onde queres quaresma, fevereiro”, remissão ao carnaval, a alegre festa popular, onde a
alegria carnavalizada se estabelece, desvirtuando qualquer indício de sobriedade, e que
se confronta com a seriedade dogmática da quaresma, instituto religioso (assim como a
língua imaginária, que é quase uma idealização religiosa e, afinal, para o colonizador, a
implantação da língua do príncipe era também um ato catequético) que pede
circunspecção permanente e austera sisudez.

O segundo, que se usa como reflexão para encerrar este trabalho, é o refrão: “ah!
bruta flor do querer / ah! bruta flor, bruta flor”. Difícil conceber-se, como símbolo, a flor
que deixa de lado sua suavidade para se brutalizar no querer. Flores são metáforas
possíveis de beleza, leveza, perfume, agradabilidade, carinho, amor, lembrança. Não
apontam para a brutalidade, a não ser na crueza de alguns documentários científicos, em
pesquisas raras. Qual seria, então, o discurso que se tem para legitimar tal flor que
brutaliza no querer? Em qual querer? Na nossa hipótese, o querer do discurso ainda
insuflado dos sentidos da colonização linguística, aquele que autentica o impor a língua
do colonizador e calar as múltiplas línguas nacionais, do multilinguismo popular, que é
um querer autoritário, bruto, impiedoso. A flor? Naturalmente se refere a última “Flor do
Lácio”, que tem o esplendor simbólico da flor, mas a brutalidade silenciosa da sepultura:

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...15

Reflexões conclusivas

Os discursos sobre a língua nacional são divergentes. Enquanto alguns, muito bem
embasados, se sustentam em estudiosos que demandam o resgate do local, do nacional,
da língua brasileira – pedem a independência linguística, já quase alcançados dois séculos
de distância da independência administrativa – outros tentam justificar o permanente uso
da língua imposta pelo colonizador. Muitas polêmicas a respeito se estabeleceram e,
seguramente, muitas outras se estabelecerão. São discursos que não perdem a atualidade
e não deixam de produzir sentidos.

Neste trabalho, buscou-se mostrar que a canção popular do país, multicultural e


multilíngue, utilizando-se de uma fala “amalandrada’, ou “duplex”, ou “de fresta”,
conscientemente polissêmica, se coloca ao lado dos discursos que defendem a

15
Primeira estrofe do soneto “Língua portuguesa”, de Olavo Bilac (1865-1918).
independência linguística do país. Noel Rosa trouxe à tona uma discussão que reforçava
os discursos de ambos os lados, motivados pelo momento histórico e pelo nascimento do
modernismo brasileiro. Para o Brasil, o movimento modernista, no que tange à língua
falada, foi de relevante riqueza, uma vez que, constituindo-se, desde a chegada dos
portugueses, uma nação multilinguística, a diversidade cultural e linguística fora
silenciada por instrumentos de censura e repressão. Caetano encabeça o movimento
tropicalista, um neomodernismo que restaura, em momento repressivo similar e também
historicamente conturbado, a valorização do nacional e da cultura do povo.

Em 1757, pelo Diretório dos índios, foram instituídas punições pelo


descumprimento da ordem real de que toda a colônia se obrigava a falar e a ensinar tão
somente o português. Como lembra Eduardo Guimarães, na ocasião proibia-se “o uso da
língua geral na colônia. Assim, os índios não poderiam mais usar nenhuma outra língua
que não a portuguesa” (GUIMARÃES, 2005, p. 24). A situação, de uma outra maneira e
por outros motivos, se repete com Getúlio Vargas, após os anos 1930, mas, de qualquer
forma, o silenciamento da fala e do ensino das línguas maternas foi imposto por lei e a
desobediência reprimida legalmente. Esquece-se, nesse processo de pretensa
homogeneização linguística, tomando-se como base a língua colonizadora, atrai um
paradoxo irresolúvel: “Nós, brasileiros, ao falarmos português estamos sempre nesse
ponto de disjunção obrigada. A nossa língua significa em uma filiação de memória
heterogênea. Essas línguas se filiam a interdiscursividades distintas como se fossem uma
só. Esse efeito de homogeneidade é o efeito da história da colonização” (ORLANDI,
1994, p. 31).

O mundo do samba, tomando-se aqui, como base, o samba carioca que é o samba
reconhecido como gênero musical brasileiro típico, constituído principalmente por
negros, índios e pobres, acentuadamente os do morro, que foram segregados por políticas
higienistas, econômicas e de tentativa de implantação de uma perversa constituição
ideológica de inferioridade racial, sempre teve sua voz silenciada pelo sistema dominante,
exclusão que se agravou após a abolição da escravatura com discriminações (racial,
social, econômica, sexista), perseguições policiais, impedimento de trabalho, desrespeito
à propriedade e política de subsídios à imigração de europeus e asiáticos.

O samba, de movimento de resistência negra, significando a reunião festiva e


social, coletivo, busca a individualização e a indústria de produtos culturais, firmando-se
como gênero e voz do mundo pobre, provocando deslocamentos de sentidos na resistência
que, de qualquer forma, é um discurso que permaneceu no ideológico daquele universo
cultural. Por isso, pela ânsia contida de falar e ter sua voz reconhecida extrafronteiras do
seu próprio mundo, o samba incorpora o discurso de valorização do nacional.

Tanto Noel Rosa como Caetano Veloso falam de uma posição de representantes
desse mundo castigado pelo descaso dos poderes oficiais. Noel apresenta a posição
discursiva dos habitantes do morro, que demandam a inserção de seus falares ao idioma
nacional, situação que, de fato, pela fresta, já ocorria, pois “a gíria que o nosso morro
criou / bem cedo a cidade aceitou e usou” (destaquei) e, paralelamente, de resistência à
invasão cultural alienígena, que poderia prejudicar o comércio do produto cultural
autóctone. Caetano amplia o mundo dos excluídos, pelos quais fala. Assume uma posição
discursiva genérica, que abriga os mais diferentes falares nacionais, inclusive aqueles
influenciados pela dominação cultural do idioma inglês (ao lado dos negros, dos índios,
dos pobres, dos imigrantes europeus e asiáticos).

No entanto, ambos extraem e apresentam sentidos que se repetem nos mesmos


discursos de confronto entre a língua do colonizador e a língua da colônia, entre a língua
imposta e a língua que se fala e seus próprios falares engrossam os discursos que clamam
pelo estabelecimento da língua brasileira. As canções analisadas textualizam de maneira
clara a posição sempre assumida pela canção popular: o Brasil é a soma de muitas línguas,
de muitas culturas, de muitos hábitos, heterogêneos e ativos, portanto, nada mais natural
que se libertar a língua das amarras de além-mar, coisa que acontece no real, e assim
também instituí-la formalmente, legalmente, como a língua brasileira. Relembrando
Noel, o samba, a prontidão e outras bossas, e, inclusive, a língua brasileira, “são nossas
coisas, são coisas nossas”. Cabe-nos autenticá-las definitivamente.

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