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faromanelli@gmail.com
Resumo: O presente texto tem por escopo analisar o discurso sobre a língua
brasileira, de uso nacional, quando confrontada com a língua colonizadora,
institucionalizada, o português de Portugal, na canção popular, por meio de
textos recortados de canções que balizaram a discussão, em 1933 e em 1984.
Procura referências na multiplicidade linguística do país, observando as
muitas contribuições de línguas nativas, africanas e maternas de imigrantes
para a constituição da língua nacional. Na canção popular, a discussão que
evidencia os discursos sobre a língua brasileira foi inaugurada por Noel
Rosa, em “Não tem tradução”, e posteriormente retomada por Caetano
Veloso em “Língua” e “Quereres”.
Palavras-chave: Língua brasileira; multiplicidade linguística; Noel Rosa;
Caetano Veloso.
Abstract: The present text has the purpose of analyzing the discourse about
the Brazilian language, of national use, when confronted with the colonizing,
institutionalized language, the Portuguese of Portugal, in the popular song,
through texts cut of songs that marked the discussion in 1933 And in 1984. It
seeks references in the linguistic multiplicity of the country, observing the
many contributions of native, African and maternal languages of immigrants
to the constitution of the national language. In the popular song, the
discussion that evidences the discourses on the Brazilian language was
inaugurated by Noel Rosa, in "Não tem tradução", and later retaken by
Caetano Veloso in "Língua" and "Quereres".
Keywords: Brazilian language; linguistic multiplicity; Noel Rosa; Caetano
Veloso.
As palavras dos letrados brasileiros confundem-se com os perfumes
das flores das selvas nacionais, o canto dos sabiás, e os gritos das
arapongas, o rebombo das cachoeiras e a altitude das serras...
A língua brasileira espelha nas palavras, a alma dos brasileiros e a
feição das cousas brasileiras.
Bricio Cardoso1
Introdução
1
Tratado da Língua Vernácula, 1875. Citado por Edgard Sanches, in Língua Brasileira, 1940, tomo 1, p.
180.
2
Dados obtidos no site <http://basilio.fundaj.gov.br/>, em agosto de 2016.
colonizadores, acabou por constituir a língua brasílica, adotada como a língua geral da
colônia (BIZIKOVÁ, 2008, p. 6). Vicente Chermont de Miranda aponta a predominância,
na época, da língua tupi, cindida em dois dialetos, que serviriam de modelo para a
composição de uma língua de maior alcance, com maior base no tupi litorâneo: o
nhêengatú ou tupi equatorial, e o abanhêenga ou o tupi austral (MIRANDA, 1944, p. 18).
No entanto, não se pode descurar que toda essa massa de falares dispersa pela
imensidão do país influenciou e amalgamou o conhecido “português brasileiro”. O uso
do português como língua oficial brasileira, apesar de constante insistência de estudiosos
e gramáticos e de um número significativo de obras sobre a língua que se falava no Brasil
(GUIMARÃES, 2004, p. 28-35) nunca foi um acontecimento pacífico, mas motor para
debates, tratativas e invectivas que nunca obtiveram êxito na meta perseguida: a
instituição oficial da língua brasileira.
É tal a direção que se pretende seguir ao procurar trazer para o real do discurso os
sentidos indagados nas respectivas letras de canções populares submetidas à análise.
Procura-se, pois, sob orientação da Análise do Discurso proposta por Michel Pêcheux e
por Eni P. Orlandi, discutir sentidos como aqueles exalados pelas canções em análise e
praticados por meio da linguagem, “como uma região privilegiada porque o discurso pode
ser visto justamente como a instanciação do modo de se produzir linguagem, isto é, no
processo discursivo se explicita o modo de existência da linguagem que é social”
(ORLANDI, 2011, p. 26). Portanto, ao buscar tal análise, não se há como deixar a largo
a historicidade que as contemplou e as fomentou. Afinal, sempre, os “processos que
entram em jogo na constituição da linguagem são processos histórico-sociais”
(ORLANDI, 2011, p. 26). Ademais, a historicidade é constitutiva do discurso: um
discurso, identicamente textualizado, não produz os mesmos sentidos em sociedades
diferentes e em épocas diferentes. Assim, “Não se trata assim de trabalhar a historicidade
(refletida) no texto, mas a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a
matéria textual produz sentidos” (ORLANDI, 1995, p. 113).
Também não se deixa a largo o fato de que todo discurso é atravessado pela
Língua/linguagem e a língua é passiva de falhas, sempre possibilitando interpretações e
o encontro de sentidos diversos. A canção popular brasileira, no aspecto que se chamou
de “samba malandro”, atualizado para “samba duplex” ou “música de fresta”, se utilizou
fartamente das possibilidades de ruptura proporcionadas pela incompletude da língua. Os
sentidos sempre podem ser outros, e tal possibilidade de polissemia foi um dos motores
da malandragem perpetrada pelo samba, “porque são várias as linguagens possíveis,
porque a linguagem se liga necessariamente ao silêncio, porque o sentido é uma questão
aberta, porque o texto é multidirecional enquanto espaço simbólico” (ORLANDI, 2004,
p. 18).
Como nos ensina Eni Orlandi, retomando Michel Pêcheux, “A análise concreta de
uma situação concreta pressupõe que a materialidade discursiva em uma formação
ideológica seja concebida como uma articulação de processos”, isto é, um entretecimento
de ideologias, saberes e discursividades prévias, de origem inatingível e delimitações
inconcebíveis, pois “o discurso [...] não é um conjunto de enunciados portadores de uma,
e até mesmo várias significações. É antes um processo que se desenvolve de múltiplas
formas, em determinadas situações sociais” (ORLANDI, 1995, p. 112). E, ainda
embasada em Pêcheux, esclarece que “A especificidade da análise de discurso está em
que o objeto a propósito do qual ela produz seu resultado não é um objeto linguístico,
mas um objeto sociohistórico onde o linguístico intervém como pressuposto”
(ORLANDI, 1995, p. 112).
Neste trabalho, o que interessa não é a língua em sentido estrito, mas a pluralidade
de possibilidades de relações entre sujeitos de comunidades diversas, tendo em mira os
deslizes e deslocamentos sofridos pela língua instituída na sua materialização discursiva,
a ponto de ganhar novos significados, trazendo a discussão de um tema hermético e
acadêmico (a língua nacional) para o mundo pobre e perseguido do samba. Tomam-se,
para isso, por paradigmas, as alterações enunciadas na canção popular brasileira,
apontando as demonstrações de “fugas” que a língua brasileira fez do português de
Portugal, o que denuncia um discurso coerente, no mundo do samba, nesse mesmo
sentido.
Sob esse aspecto, temos que considerar que as línguas, em qualquer sociedade,
serão sempre muitas e que poderiam ser resumidas, com Orlandi (2009, p. 18), em duas
possibilidades marcantes: língua imaginária e língua fluida. Enquanto a língua imaginária
é aquela formalizada, legalizada, a “língua sistema” que tenta englobar e normatizar todas
as possibilidades de se usar um padrão único, gramatical, compendiável – e, portanto,
impossível, com funcionamento completo apenas no imaginário –, a língua fluída é aquela
que efetivamente se fala, é a “língua movimento”, aquela que é insubmissa e se faz
insubordinada aos arcabouços e fórmulas normatizadoras, impossível de ser contida,
submetida à historicidade, à ideologia e ao inconsciente (ORLANDI, 2009, p. 18).
Em uma determinada nação, onde se estabelece uma única língua como língua
oficial3, caso do Brasil, esta língua oficial, em sua formulação normativa, corresponde à
língua imaginária. Ao estabelece-la, os mecanismos políticos que se movimentam para
tal, definem, por regra, seus limites e suas potencialidades, demarcáveis semântica e
gramaticalmente. No entanto, as línguas, mesmo formais, quando praticadas, passam
constantemente por um processo de alteração e de dispersão, dependente da posição
profissional, social ou geográfica do falante, que sempre fará com que as línguas sejam
múltiplas. A multiplicidade linguística é consequência inevitável da própria capacidade
humana de simbolizar, idealizar e metaforizar, de provocar desvios, deslizes e
deslocamentos no processo de “tentar” a inatingível paráfrase perfeita, a impossível
3
“A língua oficial resulta [...] de uma decisão de Estado que exerce pressão normativa sobre os aparelhos
de Estado, notadamente o judiciário e a Escola, impondo essa língua como aquela exigida aos cidadãos na
sua relação com a estrutura administrativa estatal” (FONTANA, 2013, p. 275).
interpretação exata. Como acentua Eduardo Guimarães, o “Brasil é um país multilíngue”
(GUIMARÃES, 2005[b], p. 22). E apesar da materialidade de tal multiplicidade de falares
acompanhar o cotidiano nacional, em todos os rincões, tem-se como evidente um absoluto
unilinguismo, tratando-se, no mais, os falares em geral de “desvios” da língua padrão,
merecendo, por isso serem silenciados como um aspecto do real da língua. É a esfera de
domínio da construção de identidade da nação: uma mesma nação, um mesmo povo, uma
mesma língua. E, o mais curioso é que a língua instituída, língua oficial, por ser ideal,
mítica, utópica, vai ser, sempre, a menos usada. Por isso que
Esse é o processo poético e reflexivo inaugurado por Noel Rosa no final da década
de 1920, retomado em tempos mais atuais (a partir de 1968, com o lançamento do LP
Chico Buarque de Hollanda) por Chico Buarque, e do qual muito fez uso o tropicalista
Caetano Veloso. Processo que colocou, definitivamente, a fala do compositor popular na
prática de uma ação política consciente: “Falar é uma prática política no sentido amplo,
que considera as relações históricas e sociais do poder sempre inscritas na linguagem”
(ORLANDI, 1998, p. 9); a canção popular crítica, de resistência, manipula a fala
essencialmente política nos entremeios dos dizeres e dos não-dizeres, no domínio do
silêncio e da polissemia, do falar uma coisa para denunciar outra, do mostrar pela fresta
o não-dito crítico enquanto exibe o dito inócuo.
Por meio dessa estratégia enunciativa, procura trazer à luz discursos de resistência
à opressão do autoritarismo político, social e, às vezes, até religioso. E, inclusive, do
autoritarismo colonialista de imposição de uma norma linguística discordante daquela
língua praticada pelo povo no mundo do samba, que, na ocasião, era a voz da totalidade
dos pobres oprimidos e discriminados de quase todo o país.
A primeira das canções trazidas a claro, como texto demonstrativo dos sentidos,
dentro da historicidade típica, do discurso sobre a língua brasileira, é “Não tem tradução”,
samba de Noel Rosa, gravado em 1933 por Francisco Alves, no coração da chamada
“época de ouro da canção popular” (1930-1945). A segunda, que dialoga com a primeira
e retoma seu fio discursivo, atualizando-o e amplificando-o dentro das potencialidades
históricas do samba, é “Língua”, samba-rap de Caetano Veloso, gravado pelo compositor
e Elza Soares, em 1984, no álbum Velô. A terceira, “Quereres”, também de Caetano
Veloso e por ele interpretada, integra o mesmo álbum Velô.
Noel Rosa foi um mestre na manipulação da língua nas letras de canções populares
(principalmente do gênero samba, acobertado pelo uso de síncopas), usando e abusando
da polissemia, da dialogia e da ironia, marcas sempre realçadas em sua obra. Inovou, com
isso, a poética das letras das canções populares do Brasil, mostrando as potencialidades
da canção como texto de crítica, de denúncia, como folheto cronista, possibilitando
materializações da ideologia inscrita em formações discursivas multifacetadas em
sentidos diversificados e em múltiplos diálogos semiocultos no mesmo texto.
Difícil afastar-se, na textualidade de suas canções (não só nas letras, mas também
nas potencialidades discursivas inclusive do ritmo e da melodia), a forte influência dos
temas nacionais (mas não nacionalistas) e da “antropofagia”, característicos do
modernismo brasileiro, àquele momento em processo de fixação completa, valorizando o
produto cultural nacional, brasileiro, inclusive no campo da língua e da maneira de
manipulá-la. Por isso, quando compõe “Não tem tradução”, harmonizando-se com
movimentos intelectuais inspirados no modernismo, apresenta um libelo da resistência
contra a invasão expressiva e incipiente da língua inglesa, a persistência do domínio, nas
classes altas, da língua francesa, como, ainda, de oposição à imposição do português de
Portugal como a norma padrão brasileira.
Por outro lado, apresenta seu libelo em um discurso que aponta o povo,
simbolizado pelo mundo do samba e pelo morador do morro, como autor da língua
brasileira. A língua, vai dizer sua canção, já se afastou do português, não depende do
inglês ou do francês, e, agora, é brasileira, gestada pelo povo (“a gíria que o nosso morro
criou / bem cedo a cidade aceitou e usou”, ou seja, a língua do povo refez a língua da
cidade; a língua falada refez a língua instituída).
Não se pode esquecer que, não por acaso, o movimento modernista foi inaugurado
no centenário da independência brasileira, em 1922, em São Paulo, por um grupo de
literatos e intelectuais que pretendiam relocar a língua do Brasil em efetiva
independência. A questão sobre a independência linguística do Brasil e a instituição da
língua brasileira, que marcara profundamente o final do século XIX, volta a ser assunto
de debate sob a orientação modernista. Os anos 1930 passam a ter um vigor significativo
às ideias modernistas. Como bem coloca João Luiz Lafetá, tanto os anos 1920 como os
anos 1930 são décadas de profundas transformações política, econômica e estética em
todo o mundo, não deixando o Brasil de suportar as consequências.
À época, por outro lado, já se faziam sentir as estratégias de domínio cultural dos
EUA, e uma das armas de maior poder era justamente o cinema falado. Após a bem-
sucedida sonorização parcial levada a efeito em 1926, “a 27 de outubro de 1927, Al Jolson
extasia as platéias em Cantor de Jazz, dirigido por Alan Crosland” (PEREIRA, 1980, p.
92), inaugurando oficialmente o cinema falado que, como percebe Noel Rosa,
paralelamente também inaugura um discurso de resistência à invasão cultural que o
cinema alienígena representava.
A seu turno, vamos encontrar Caetano Veloso, trinta anos depois de Noel,
inaugurando uma revisão do modernismo, quando encabeça o movimento tropicalista. O
que Noel foi para o modernismo, na canção popular do morro, Caetano o foi para o
tropicalismo. O discurso da nacionalização da língua persistia vivo, produzindo sentidos.
Noel compõe seu libelo de resistência à invasão da cultura estrangeira, e à manutenção
da norma padrão da língua, o português, batendo-se contra o descaso governamental ao
mundo do samba e contra a opressão política, em tempos de opressão e perseguição;
Caetano, o faz em momento político identicamente crítico: quatro anos após o golpe
militar e às vésperas do recrudescimento autoritário que veio pelo Ato Institucional n.º 5,
em dezembro de 1968. Quando lança o álbum que, revendo Noel, retomava a defesa
musical da língua nacional, já em 1984, nos estertores do regime militar, fora perseguido,
preso e exilado, carregando a experiência do autoritarismo governamental que coibia a
livre manifestação cultural.
O discurso da primeira das canções de Caetano Veloso retoma Noel, para apontar
que a língua brasileira se forma e se reforma constantemente, em motu perpetuo,
agregando novas formulações sobre a pretensa linguagem originariamente instituída. No
que pese o reconhecido valor da origem, a “língua de Camões”, que “roça” com a língua
do povo (e aqui também se tomou como símbolo o mundo do samba, em seu processo
evolutivo até o rap brasileiro), há um deslocamento da língua como pátria, para mátria
que busca a frátria. Ao deixar a obediência ao “pai” Portugal, o brasileiro encontra a
língua mãe, a própria língua nacional, que tem como destino, conscientemente ou não, a
irmanização de todo o processo linguístico constitutivo do país, sejam as línguas nativas,
o português, as línguas negras, como a multiplicidade de línguas estrangeiras faladas no
território nacional, interagindo com a língua brasileira em permanente reciprocidade e
constituição.
Caetano trazia à luz um discurso que ainda era do mundo do samba, de valorização
das culturas tradicionais negra e nativa. A discussão sobre a instituição da língua
brasileira, destronando a língua do colonizador português, permanecia em pauta e não
fugia ao projeto político do tropicalismo. Inúmeras obras de sotaque nacionalista
persistiam reivindicando a autonomia brasileira e o compositor trouxe à luz sentidos
atualizados desde Noel que despontam no mundo da cultura popular, ou seja, no mundo
do samba.
Caetano Veloso foi um dos cabeças, junto com Gilberto Gil, do chamado
movimento tropicalista. A ideia original da dupla de baianos, interagindo com outros
intelectuais que demandavam a inserção de novos e mais modernos sentidos na música
popular, principalmente de baianos, não era a de construir um movimento cultural, mas a
de “abrir” a música brasileira aos elementos modernizadores da canção em todo o planeta,
oriundos do pop americano aprimorado pelo estilo do conjunto inglês The Beatles
(FAVARETO, 2000, p. 27-28). O próprio pop já era uma simplificação rítmica do rock e
de seus ritmos fundadores, como os blues, os spirituals, o jazz, o soul, que, dadas suas
possibilidades, pela simplicidade, quase infinitas de composição e de divulgação, tomava
o mundo de assalto, junto com o rock (isso, sem falar na imposição ideológica cultural
levada a efeito pelos “donos” da indústria cultural).
O grupo, portanto, que iniciava (ainda sem saber) o movimento tropicalista4, tinha
como alvo a inserção da estética do pop na música popular brasileira (o que culminou
com a formatação definitiva do gênero musical mpb), adotando, inclusive, o uso de
instrumentos eletrificados. A pressão do pop sobre a música nacional, e a correspondente
resistência, era tensa, dando causa à marcha contra a guitarra elétrica, em julho de 1967,
com a participação, dentre outros, de Gilberto Gil que, junto com Caetano, inovaria, três
meses depois, em outubro, no III Festival da TV Record, a música brasileira pela inserção
de elementos eletrificados e da estética do pop-rock na canção popular brasileira
(VIDEOFILMES, 2010). A inovação foi maciçamente acatada confirmando o gênero
Mpb, um dos mais significativos do país, e dando ingresso definitivo ao rock no Brasil.
Com isso, se converteu em um movimento cultural e político dos mais expressivos,
afetando todas as áreas da cultura e da política nacionais.
Antes, a bossa-nova reinava soberana, desde final dos anos 1950, mas, ao explodir
o movimento tropicalista, “O espírito solar das canções da bossa nova, adequado às
paisagens da Zona Sul carioca [...], foi substituído ora por um clima cáustico e árido do
sol nordestino, ora por sensibilidades quentes e úmidas, de sabor fortemente africano”
(NAVES, 2004, p. 26). O espaço de um novo movimento, mais engajado, mais ruidoso,
que alcançasse a universalidade das artes e da cultura, estava, portanto, aberto, e, a partir
da experimentação musical do famoso “beco das garrafas” (NAVES, 2004, p. 26-27), a
tropicália veio para ocupá-lo.
4
O nome, “tropicalismo”, deriva de “Tropicália”, título de um trabalho de Hélio Oiticica, montado na
Mostra nova objetividade brasileira”, no MAM/RJ, em abril de 1967. O trabalho era uma composição
multiartística, com vários detalhes que lembravam a ocorrência de diferentes elementos culturais, inclusive
dos morros, na paisagem tropical brasileira, subsequência de um posicionamento das artes plásticas,
interpretativas e da poesia, iniciado no começo da década de 1960, buscando a inserção da brasilidade nos
elementos da arte (ITAÚ CULTURAL, p. un.).
“antropofagiando”, à maneira do modernismo, os inúmeros marcos culturais do país e de
além, mas jogando luz sobre a estética silenciada da pobreza e dos desvalidos, em todo o
país, e, por isso, se estabeleceu de maneira definitiva na arte brasileira.
É o seguinte o texto enunciado em “Não tem tradução”, canção solo de Noel Rosa
e inicialmente gravada em 1933 por Francisco Alves:
O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês
5
Trecho da canção “Não deixe o samba morrer”, de Édson e Aluísio, gravado por Alcione no álbum A voz
do samba (1975).
6
Trecho da canção “A voz do morro”, de Zé Keti. Gravado em 1955 por Jorge Goulart.
7
Aqui se refere apenas ao discurso relativo à Língua Brasileira na canção popular, à constatação
materializada no domínio da arte cancioneira, pioneiramente, por Noel Rosa. A discussão, nos meandros
acadêmicos, científicos, políticos já existia desde a independência do país (Orlandi, 2009, p. 51-86; 153-
154).
polêmicas, sendo uma das mais ruidosas a “Réplica” de Rui Barbosa a um pretenso único
equívoco gramatical de Clóvis Bevilaqua na redação de um anteprojeto de Código Civil.
Naquela época, a questão da gramática era
Caetano Veloso, cinquenta anos depois, em franco diálogo com Noel Rosa, retoma
o discurso do movimento libertário da língua brasileira, buscando, também, a
autenticação da fala da cultura popular como elemento de distinção entre a “carrancuda”
norma estabelecida e a “alegre e comunicativa” fala do povo: a tensão entre a língua
imaginária e a língua fluída, a que prende (xadrez que prende mais que o barracão) e a
que liberta (tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia). E o faz por meio da
canção “Língua”, composição solo gravada em 1984 pelo compositor, no álbum Velô,
com a participação da sambista Elza Soares:
8
A referência a nomes em “ã” se dá em razão da influência das línguas nativas no vocabulário brasileiro.
A sonoridade tem tamanha importância em línguas nativas que mereceu registro por Capistrano de Abreu
(1853-1927) no início do século XX, conforme anota Beatriz Christino (2007, p. 25-40).
Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
Meu medo!
9
Termo criado por Chico Buarque, pela fala da fictícia personagem (seu pseudônimo – alguns dizem ser
heterônimo) do compositor Julinho da Adelaide, em uma entrevista concedida ao jornalista Mário Prata,
intitulada “O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide” e publicada no jornal Última Hora, em
07 e 08 de setembro de 1974 (não por acaso, ano do lançamento de Sinal fechado, em que aparece a canção
“Acorda, amor”, assinada por Julinho e seu “irmão” Leonel Paiva – outro pseudônimo ou heterônimo de
Chico). Como diz Orlandi, Chico “faz parte do funcionamento de sentidos que inaugurou” (eu diria
“retomou”, já que o considero inaugurado por Noel Rosa), ele se dilui no “evento histórico”, no
acontecimento discursivo, que “se instalara no jogo entre censura e resistência. E de tal forma que ele
mesmo dá um nome à sua poética: o samba-duplex, aquele que pode mudar de sentido quando for
necessário” (ORLANDI, 2015[c], p. 123). Em “Festa imodesta”, Caetano estabelece um novo termo para
o mesmo efeito, “música de fresta”, ao dizer que “tudo aquilo que o malandro [o artista, cantor, compositor]
pronuncia e o otário [a censura, o censor] silencia, toda festa que se dá ou não se dá, passa pela fresta da
cesta e resta a vida”.
10
Em “Festa imodesta”, Caetano estabelece um novo termo para o mesmo efeito, “música de fresta”, ao
dizer que “tudo aquilo que o malandro [o artista, cantor, compositor] pronuncia e o otário [a censura, o
censor] silencia, toda festa que se dá ou não se dá, passa pela fresta da cesta e resta a vida”.
11
Ao que parece, nada neste álbum está lá, compondo-o ou na própria distribuição de faixas, por acaso. A
faixa que dá o título ao álbum “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, vencedora do V Festival da Record,
1969, é a que o encerra. A mensagem é clara: o sinal continua fechado e o trânsito da palavra contido. Não
se pode – não se deve – falar e, portanto, os diálogos hão de ser contidos.
12
Há, aparentemente, uma outra inserção emblemática na escolha dessa canção, considerando-se que a
primeira das canções tropicalistas de Caetano Veloso foi “Alegria, alegria”. E, mais, que críticos veem, em
malandro pronuncia / e o otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela
fresta da cesta e resta a vida”. Ora, “tudo aquilo que o malandro pronuncia”, ou seja, o
discurso da gente comum do povo, no “mundo do samba” (como metáfora à resistência
dos negros e da pobreza contra as ideologizações, censuras e opressões) se dá em um
linguajar que “é brasileiro, [e que, portanto] já passou de português” e “passa pela fresta
da cesta” expondo a língua brasileira como a vida que resta, e que é aquela que Caetano
vai mostrar na metalinguística (já desde o nome) canção “Língua”. E Caetano fecha o
círculo entre as três canções ao invocar, nesta última, “e que o Chico Buarque de Holanda
nos resgate.
tal título alusão a “alegoria, alegoria”. Em “Festa imodesta” Caetano poderia estar realçando a alegoria da
“paixão” de Chico Buarque.
13
Discute-se se o Rosa seria o Guimarães ou o Noel, ou ambos, quando a rosa é a arte ou a poética, mas,
neste texto, tende-se a assumir que Caetano resgata um discurso sobre o multilinguismo, já inaugurado em
“Não tem tradução”, de Noel, e o explicita nos muitos falares nacionais, misturando o sotaque dos paulistas
com o inglês relax dos surfistas, a língua de Luanda, o jeito do negro brasileiro falar e as influências que
recebeu do negro americano do Harlem, o japonês, o francês em suas rimas aportuguesadas, o sotaque da
Bahia, os regionalismos, o universalismo linguístico que a Rede Globo de TV procura implantar, as
sonoridades diversas, da mistura de sotaques, como em Carmem Miranda (talvez a brasileira mais
americana de todas as portuguesas).
pelos modernistas e retomado pelo tropicalismo) as múltiplas influências
multilinguísticas que aqui, no Brasil, foram e são o caldeirão fervente da língua brasileira.
Não adianta a busca da perfeição, utopia dos literatos e dos cientistas, já que toda
perfeição é um horizonte móvel e sempre distante, por mais que se vençam limites e
ultrapassem fronteiras sempre estará lá, na distância. Essa impossibilidade é indagada
14
Nesse verso, Caetano dialoga com o filósofo inglês Thomas Hobbes (5 de abril de 1588 — 4 de dezembro
de 1679) que reviu a máxima latina Homo homini lúpus, atribuída a Plauto (254-184aC). No entanto, o que
Caetano propõe não é ser o lobo do homem, mas ser o lobo do lobo do homem, ou seja, predador do “lado
mau” do homem, domesticando o Mr. Hyde que se esconde por trás de todo Dr. Jeckyll.
pela última estrofe: “o quereres e o estares sempre a fim / do que em mim é de mim tão
desigual / faz-me querer-te bem, querer-te mal / bem a ti, mal ao quereres assim /
infinitivamente pessoal / e querendo querer-te sem ter fim / e, querendo-te, aprender o
total / do querer que há e do que não há em mim”.
Por fim, mas não sem idêntica importância são dois indícios que apontam para a
retomada de sentidos de discursos anteriores, aqui questionados. O primeiro, é o verso
“onde queres quaresma, fevereiro”, remissão ao carnaval, a alegre festa popular, onde a
alegria carnavalizada se estabelece, desvirtuando qualquer indício de sobriedade, e que
se confronta com a seriedade dogmática da quaresma, instituto religioso (assim como a
língua imaginária, que é quase uma idealização religiosa e, afinal, para o colonizador, a
implantação da língua do príncipe era também um ato catequético) que pede
circunspecção permanente e austera sisudez.
O segundo, que se usa como reflexão para encerrar este trabalho, é o refrão: “ah!
bruta flor do querer / ah! bruta flor, bruta flor”. Difícil conceber-se, como símbolo, a flor
que deixa de lado sua suavidade para se brutalizar no querer. Flores são metáforas
possíveis de beleza, leveza, perfume, agradabilidade, carinho, amor, lembrança. Não
apontam para a brutalidade, a não ser na crueza de alguns documentários científicos, em
pesquisas raras. Qual seria, então, o discurso que se tem para legitimar tal flor que
brutaliza no querer? Em qual querer? Na nossa hipótese, o querer do discurso ainda
insuflado dos sentidos da colonização linguística, aquele que autentica o impor a língua
do colonizador e calar as múltiplas línguas nacionais, do multilinguismo popular, que é
um querer autoritário, bruto, impiedoso. A flor? Naturalmente se refere a última “Flor do
Lácio”, que tem o esplendor simbólico da flor, mas a brutalidade silenciosa da sepultura:
Reflexões conclusivas
Os discursos sobre a língua nacional são divergentes. Enquanto alguns, muito bem
embasados, se sustentam em estudiosos que demandam o resgate do local, do nacional,
da língua brasileira – pedem a independência linguística, já quase alcançados dois séculos
de distância da independência administrativa – outros tentam justificar o permanente uso
da língua imposta pelo colonizador. Muitas polêmicas a respeito se estabeleceram e,
seguramente, muitas outras se estabelecerão. São discursos que não perdem a atualidade
e não deixam de produzir sentidos.
15
Primeira estrofe do soneto “Língua portuguesa”, de Olavo Bilac (1865-1918).
independência linguística do país. Noel Rosa trouxe à tona uma discussão que reforçava
os discursos de ambos os lados, motivados pelo momento histórico e pelo nascimento do
modernismo brasileiro. Para o Brasil, o movimento modernista, no que tange à língua
falada, foi de relevante riqueza, uma vez que, constituindo-se, desde a chegada dos
portugueses, uma nação multilinguística, a diversidade cultural e linguística fora
silenciada por instrumentos de censura e repressão. Caetano encabeça o movimento
tropicalista, um neomodernismo que restaura, em momento repressivo similar e também
historicamente conturbado, a valorização do nacional e da cultura do povo.
O mundo do samba, tomando-se aqui, como base, o samba carioca que é o samba
reconhecido como gênero musical brasileiro típico, constituído principalmente por
negros, índios e pobres, acentuadamente os do morro, que foram segregados por políticas
higienistas, econômicas e de tentativa de implantação de uma perversa constituição
ideológica de inferioridade racial, sempre teve sua voz silenciada pelo sistema dominante,
exclusão que se agravou após a abolição da escravatura com discriminações (racial,
social, econômica, sexista), perseguições policiais, impedimento de trabalho, desrespeito
à propriedade e política de subsídios à imigração de europeus e asiáticos.
Tanto Noel Rosa como Caetano Veloso falam de uma posição de representantes
desse mundo castigado pelo descaso dos poderes oficiais. Noel apresenta a posição
discursiva dos habitantes do morro, que demandam a inserção de seus falares ao idioma
nacional, situação que, de fato, pela fresta, já ocorria, pois “a gíria que o nosso morro
criou / bem cedo a cidade aceitou e usou” (destaquei) e, paralelamente, de resistência à
invasão cultural alienígena, que poderia prejudicar o comércio do produto cultural
autóctone. Caetano amplia o mundo dos excluídos, pelos quais fala. Assume uma posição
discursiva genérica, que abriga os mais diferentes falares nacionais, inclusive aqueles
influenciados pela dominação cultural do idioma inglês (ao lado dos negros, dos índios,
dos pobres, dos imigrantes europeus e asiáticos).
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