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A DEMANDA DA LÍNGUA-PADRÃO

Vamos Lá Tirar As Medidas À Língua-Padrão

Renato Roque
FLUP, Junho 2022
Índice

1. Introdução – uma língua-padrão que me mexeu com os nervos ......................................... 3


2. Uma brevíssima história da Língua Portuguesa .................................................................... 4
3. A língua-padrão como uma demanda do Santo Graal para brasileiros e moçambicanos .. 12
3. 1 O português estará mesmo à descoberta do brasileiro, como escreve Fernando
Venâncio? ................................................................................................................................ 13
3. 2 As Línguas do Brasil para Emilio Gozze Pagotto .......................................................... 24
3. 3 O Português Moçambicano para Perpétua Gonçalves ............................................... 26
4. Conclusões – Precisa uma língua de uma língua-padrão? .................................................. 31
5. Bibliografia .......................................................................................................................... 34

2
Resumo: Este pequeno ensaio pretende discutir o conceito de língua-padrão. A história da
língua portuguesa permite-nos compreender como nasceu o chamado português-padrão e
perceber a sua completa arbitrariedade. Depois tentamos avaliar a forma como as variedades
do português no Brasil e em África procuram, por sua vez, identificar uma nova língua-padrão,
que as diferencie do português europeu. O ensaio utiliza como ponto de partida três obras: o
livro O Português à Descoberta do Brasileiro de Fernando Venâncio, o artigo “Variedades do
Português no Mundo e no Brasil“ do linguista brasileiro Emilio G. Pagotto“ e o livro A Génese
do Português de Moçambique da linguista moçambicana Perpétua Gonçalves.

1. Introdução – uma língua-padrão que me mexeu com os


nervos

A necessidade desta reflexão surgiu do facto de ter ouvido pela primeira vez, em contexto de
aulas de Linguística na FLUP, que havia orientações específicas do Ministério de Educação em
Portugal para as escolas, para levar os alunos a usar a chamada língua-padrão que, como se
sabe, é a forma de falar da população escolarizada da região litoral entre Lisboa e Coimbra.

Que havia uma pressão social subjectiva sobre o modo de falar, que, de alguma forma,
desprestigiava os sotaques nortenhos, os falares do interior, os sotaques do Alentejo ou do
Algarve era algo evidente aos olhos e aos ouvidos de quem por aqui vive, mas ignorava em
absoluto haver orientações oficiais para treinar os alunos a falar a norma padrão, pelo menos
em situações que envolvam algum formalismo; a dizer “D[o]ro (Dôro)” em vez de “Douro” ou a
dizer “b[ə]ira” em vez de beira e dizer pão em vez de “pom”.

Fui à procura e encontrei facilmente vários documentos em sites oficiais do ME que confirmam
existirem essas orientações:
No caso de Portugal, a norma-padrão era a variedade falada pela população escolarizada do eixo
Coimbra – Lisboa, embora hoje a população escolarizada assim tipificada tenha proveniências
muito mais variadas que as duas cidades universitárias e se encontre distribuída por todo o
território nacional, especialmente nos ambientes urbanos.3 É esta a variedade que é usada nos
meios de comunicação e que é ensinada, nas escolas, a nacionais e a estrangeiros. É esta
variedade social (ou diastrática) que qualquer jovem, independentemente da sua origem social e
regional, deve saber usar à saída do seu percurso escolar. Essa é uma das funções da escola: fazer
com que todos sejam detentores, ainda que não de modo exclusivo, da variedade de referência
(língua da administração, da política, da ciência, da cultura e desejavelmente dos meios de
comunicação), porque através dela todos beneficiam de nivelamento de acessos e oportunidades.
É ainda função da escola levar todos os jovens a serem capazes de reagir adequadamente à
variação diafásica; ou seja, serem capazes de usar a variedade de referência em contextos de
comunicação muito diversos, para fins muito variados e com interlocutores muito distintos.

In Português Língua Não Materna no Currículo Nacional – Orientações Nacionais

Produzir textos orais em português padrão, segundo categorias e géneros específicos,


complexificando progressivamente as suas diferentes dimensões e caracterizações.

3
Adquirir um conhecimento reflexivo sobre a língua e explicitar e sistematizar aspetos
fundamentais da estrutura do português padrão. 21. Compreender o português padrão e fazer
uso adequado dele nas diversas situações de oralidade, de leitura e de escrita.

In PROGRAMA E METAS CURRICULARES DE PORTUGUÊS DO ENSINO BÁSICO

Tal constatação mexeu comigo, confesso. Fiquei com as orelhas e a língua a arder.

Mesmo que as intenções do ME possam ser consideradas benévolas, ou seja, perante o


reconhecimento da forma negativa como são vistos os modos de falar das gentes distantes do
centro de poder, queira preparar os jovens para poderem adoptar o modo de falar da côrte do
príncipe, tal perspectiva parece-me inaceitável. Só pode derivar de preconceito e de
ignorância. E o preconceito e a ignorância combatem-se, não se preparam os jovens para os
aceitar de bom-grado. É no fundo uma forma de diglossia interna à língua portuguesa. Tal
como na Galiza, durante séculos, o galego foi visto como língua rural, devendo os jovens
galegos aprender e falar castelhano e se possível esquecer o galego, ou, na região de Miranda,
o mirandês era considerado como língua dos pastores, de contrabandistas e de gente inculta.
O mesmo poderíamos dizer dos crioulos de base lexical portuguesa ou de milhares de línguas
dos povos conquistados, e, condenadas, quase todas desapareceram ao longo do tempo.

A irritação que tal constatação provocou em mim levou-me a pensar um bocadinho sobre o
próprio conceito de língua, de língua padrão, a partir de um conjunto de leituras recentes
sobre as variedades da Língua Portuguesa. Este texto pretende plasmar em palavras escritas o
resultado desse processo de reflexão. Porque plasmadas, ficam, se não para todo sempre, pelo
menos para quando eu precisar delas, espero.

2. Uma brevíssima história da Língua Portuguesa

Para compreender o que é a língua-padrão e as razões que fazem com que seja esta e não
aquela a chamada língua-padrão, temos de rever, ainda que brevemente, a história da Língua
Portuguesa.

Sabemos que a determinada altura a língua falada no noroeste da Península Ibérica já seria
distante daquilo que poderíamos chamar latim, mesmo do latim vulgar ou falado. Mas
ninguém consegue dizer o exacto momento em que tal separação aconteceu, nem como
realmente aconteceu, até porque foi um processo continuum no tempo e no espaço. “Uma
língua não nasce em dia e hora certa” escreveu Carolina Michaelis. Pensa-se no entanto que a
partir do século VI ou do século VII, a língua por estas bandas já conteria em si um conjunto de
transformações que tornavam irreversível o nascimento do galego.
Tudo indica que muito antes de 1200, talvez por volta do ano 600, já a nossa língua atingiu um
estádio irreversível, desenvolvendo-se e sedimentando as principais características que a
individualizam no conjunto das línguas da Península Ibérica (Venâncio, 2019)

A Figura 1 permite visualizar a região na Europa, com fronteira no norte da Itália, a que
correspondem as chamadas línguas românicas ocidentais. Ocorreram nestas línguas um
conjunto de transformações em cadeia, e variações que individualizaram cada uma das línguas
e que permitiram, por exemplo, distinguir desde muito cedo o galego do castelhano, do leonês
ou do catalão.

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Figura 1 – Romances Ocidentais

Acredita-se que muitas das mudanças (em cadeia e palatizações) poderão ainda ter sido
iniciadas no seio do ainda chamado latim vulgar. Uma das evidências são as listas de erros que
os gramáticos latinos reuniram, como por exemplo no conhecido Appendix Probi1, que
parecem algumas vezes reflectir já aquelas mudanças em curso, e que são por eles
consideradas então como erros grosseiros.

Um simples exemplo: no Appendix Probi, lê-se: “vetulus non veclus”. Ora em português temos
a palavra velho. A forma indicada no Appendix já indicia a palatização que se seguirá. Neste
exemplo, o que se passou foi a chamada síncope da vogal pós-tónica, muito comum no latim
vulgar, e que tem muitos registros no Appendix. O problema da forma vetlus é que o encontro
de consoantes [tl] era difícil de pronunciar em latim, e o que os falantes fizeram foi sonorizar o
[t] em [k]. Mas os encontros de consoantes têm tendência natural a simplificar numa única
consoante palatal ou próxima do palato, por um processo de palatalização. O resultado no
caso do galego é o som [ʎ]. Exactamente o mesmo acontece por exemplo em “speculum non
speclum” e em muitos outros exemplos.

Mas o galego teria uma mudança única e poderemos dizer revolucionária, que o diferenciaria
de todas as outras línguas românicas. A queda do “n” e do “l” intervocálicos, para o qual ainda
não há uma explicação plausível, já que a associação desse fenómeno ao substrato celta está
por demonstrar, e nem mesmo os estudos recentes do PCP (Paradigma da Continuidade do
Paleolítico) encontraram uma resposta satisfatória.
Estes dois fenómenos semelhantes produziram-se apenas na Galécia Magna e afectaram o latim aí
falado, que passou assim a distinguir-se tanto do latim falado no centro da Península, que daria
origem ao castelhano e ao leonês, como do latim falado a sul, na Lusitânia. Essa diferença entre a
língua da Galécia Magna e as suas vizinhas mais chegadas talvez tenham sido o acto de nascimento

1
Não se conhece o autor do Appendix. Data-se o documento no século III d.C. O autor poderá ter sido
um professor, que teria elaborado a lista como suporte para os seus alunos, para eliminar erros por eles
cometidos. Poderá ter sido um gramático, que via o latim clássico degenerar e que elaborou uma
compilação de erros, que descobrira em textos de várias proveniências, com o objetivo de auxiliar a
escrita e restaurar o que ele considerava ser a forma correta de utilização da língua romana. O Appendix
tem tido uma importância grande no estudo das mudanças fonéticas a partir do latim vulgar.

5
da nossa língua, a que, por respeito pela área em que ocorreu, se pode chamar galego-português.
(Castro, 2004)

A queda sistemática do “n” e do “l” intervocálicos é a principal singularidade do galego e,


portanto, naturalmente, também do português, e teve de acontecer muito cedo2; esta
singularidade revolucionária alterou e afastou a língua das línguas vizinhas e criou numerosos
hiatos e vogais nasais que iriam dar lugar no português a numerosos ditongos. Realmente, a
resolução dos hiatos e a sua evolução é um dos pilares da variação dialectal no território que
fala português, a partir do século XIV.
A evolução dos hiatos originou variação dialetal no território português, quer em relação à
eliminação ou conservação de tipos particulares de hiatos quer no que diz respeito à interação entre
ditongação de [é]/[ó] em hiato e monotongação dos ditongos [ej]/[ow]. (Martins, 2016)

Temos, portanto, muito cedo, no noroeste da Península, uma língua românica, a que
chamamos galego3. Apesar dessa comunidade linguística galega ser indiscutível até ao seculo
XIV, Bechara (1985), alguns autores mostraram que existiam já diferenças dialectais no eixo
norte e sul desse espaço, que irão naturalmente reflectir-se na futura divisão entre o
português e o galego, sendo possível, por exemplo, em textos do século XIII determinar, por
analise textual, se esses textos provêm da zona a norte ou a sul do rio Minho. Algumas dessas
diferenças ainda podem ser ouvidas no nosso país à medida que nos deslocamos de norte para
sul.

Ivo Castro sugere que se considerem dois grandes ciclos4 na história da língua portuguesa. A
vantagem deste modelo simples é a de permitir-nos olhar para a história da língua com outra
perspectiva no olhar. A proposta de Ivo Castro insere-se numa visão de muitos linguistas,
nomeadamente de Heinz Koss, que consideram haver normalmente dois ciclos na evolução de
uma língua: 1) um ciclo de diferenciação (quando a língua desenvolve caraterísticas que a
individualizam), que no caso português coincide com a Reconquista; 2) um ciclo de elaboração
(quando a língua desenvolve uma norma funcional em domínios como a prosa literária e
científica), uma Gramática própria, o que no caso português coincide com um tempo de
Expansão.
proponho que se reconheçam dois grandes ciclos, em vez de uma periodização mais pormenorizada:

– O ciclo da Formação da língua, que decorre entre os sécs. IX e XV, ou seja, entre a Reconquista e o
início dos Descobrimentos. É durante este longo período que o romance se forma numa área inicial
que reúne a Galiza e o Norte de Portugal, e é depois levado pela Reconquista para territórios de Sul
e de Leste, onde estabelece as suas fronteiras contra o leonês e o castelhano, fronteiras cuja defesa
constituirá uma das mais constantes forças da afirmação e da coesão nacionais. As primeiras
manifestações da escrita em português datam do meio do séc. XII : uma breve Notícia de Fiadores,
de 1175, é o documento mais antigo hoje conhecido, mas é a partir de 1255 que começa a produção
regular de documentos escritos em português, na chancelaria de Afonso III. É no final deste período,

2
Este processo foi radical e, se existem em Português muitos “n” e ”l” intervocálicos, isso deve-se à
reentrada de vocábulos do latim ou directamente do castelhano, dando lugar a muitas situações de
dobletes, como plano/chão ou palácio/paço.
3
Muitos autores – é o caso de Ivo Castro - usam a designação galego-português, o que nos parece
menos rigoroso, já que o português iria demorar ainda muitos séculos a aparecer, aliás, como língua
descendente do galego. Mas esta é uma discussão que não nos ocupa aqui.
4 De notar que Ivo Castro usa a designação de CICLO e não de PERÍODO.

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no séc. XV, que o centro de gravidade da nação se desloca para Lisboa e se consuma o afastamento
em relação ao galego. (Castro, 2011)

Castro situa o primeiro ciclo entre o século IX e século XV. Em rigor, talvez este ciclo se
pudesse iniciar mais atrás, quando aparentemente já estavam em curso todas as mudanças
que referimos, mas Ivo Castro prefere iniciá-lo quando pensa que essas mudanças já estarão
numa fase de consolidação, e, assim, podemos afirmar que já era o Galego a língua dos
falantes. Faz coincidir este ciclo com o tempo em que acontece a chamada reconquista de
norte para sul. A este ciclo chama Ciclo de Formação da Língua Galego-Portuguesa.

Este grande ciclo de seiscentos anos corresponderia a uma fase da nossa língua galega ou
galego-portuguesa, na terminologia de Castro. A reconquista permitiu alargar a área
geográfica do galego, estendendo-se, desde uma área que corresponderia a uma zona
geográfica próxima da representada na Figura 2, até ao Algarve, no século XIII.

Figura 2 – Línguas na Península Ibérica por volta do ano mil

Este longo ciclo engloba claramente dois tempos: um longo período em que não existia
produção escrita5, e outro, em que a escrita de textos em romance vai acontecer. No século
XIII dar-se-ia uma erupção da nova língua escrita, criando as condições linguísticas e políticas
para a afirmação da língua e a criação de uma nova língua literária, o galego ou galego-
português.

O fim do século XIV foi um tempo que juntou várias crises, que podem explicar, pelo menos
em parte, a rapidez da mudança que se seguiria.
Sofrera Portugal, em meados do séc. XIV, duas passagens gravíssimas da peste negra, que dizimou
parte da população, provavelmente a sua secção adulta. O salto de gerações que dai resultou pode
ter algumas culpas nas transformações muito rápidas que logo viriam a ocorrer na sociedade
portuguesa. Logo a seguir, uma época de guerras com Castela: as de D. Fernando e as de D. João l,
cm consequência das quis se dá uma inversão nos equilíbrios políticos no nosso pais. A nobreza da
primeira dinastia, a nobreza que tinha ajudado Afonso Henriques a fazer o reino e que tinha

5
Pode ter existido, mas é desconhecida. A produção textual que se conhece desses séculos continuava a
ser escrita em latim.

7
governado o pais durante os primeiros séculos, toma, nestas guerras, o partido da rainha de
Castela, porque, como filha de D. Fernando, era a herdeira legitima da coroa de Portugal. Essa
nobreza perde, assim, a guerra e o poder. O seu espago é ocupado por uma nobreza nova
constituída por burgueses nobilitados ou por filhos segundos das casas nobres, que recebem terras e
poder económico situado no centro e no sul do país. O Alentejo e o vale do Tejo tornam-se as áreas
por onde os reis mais viajam e em que a Corte mais tempo permanece. Uma cidade como Lisboa,
onde se passaram alguns dos epis6dios principais da guerra e que sustentou, até financeiramente, a
nova dinastia, torna-se definitivamente a capital do pais. (Castro, 2011)

O fim do chamado Ciclo de Formação aconteceu, portanto, no final do século XIV. A língua irá
passar por uma rápida mudança, orientada por uma norma subjectiva, fixada a partir das
variedades dialectais do centro-sul. Ao novo ciclo chama Ivo Castro, neste seu olhar, Ciclo da
Expansão, porque irá acompanhar a expansão do português para fora da Europa.

Tem, por isso especial interesse para nós aquela fronteira temporal, que se situa no final do
século XIV e que coincide com uma mudança do centro de poder em Portugal, com a
deslocação para sul, como efeito da luta pela sucessão da coroa Portuguesa que envolveu
Castela e duas facções de nobres em Portugal. Depois de Aljubarrota, Lisboa passou a ser
definitivamente o lugar da corte e do poder, a aristocracia nortenha de entre Douro e Minho
perdeu influência, sendo substituída por uma “arraia-miúda”, nas palavras de Fernão Lopes, a
quem D. João I vai atribuir títulos de Conde e de Duque e oferecer terras e poder a sul. A nova
dinastia, apoiada pelo povo e por uma ascendente burguesia impõe uma reconstrução dos
antigos quadros sociais, em que novos burgueses, aliados do rei, vão preencher as vagas
deixadas pela antiga nobreza do Norte, que fora derrotada na luta pela sucessão. Na nova
corte formava-se uma geração de infantes ilustrados. 1420 é a data charneira proposta por
Lindley Cintra. Concorrem para esta data múltiplos factores: a paz peninsular, a idade adulta
dos Infantes e o início dos Descobrimentos6. Os príncipes liam, escreviam, traduziam e
possuíam bibliotecas particulares, com muitos livros escritos já na nova língua. A esse novo
período, iniciado em meados do século XIV, de intensa elaboração e de afastamento do
galego, alguns linguistas, como Ivo Castro ou Esperança Cardeira, chamam português médio,
designação no entanto polémica.
A fronteira entre português antigo e português médio pode ser encontrada algures durante a época
em que, finda a produção trovadoresca, se inicia a prosa histórica; em que a elevação ao trono do
Mestre de Avis significa a falência da velha nobreza da fundação da nacionalidade e a conversão de
Lisboa em centro do estado; mas também em que a ruptura da unidade galego-portuguesa se torna
definitiva. Nos anos seguintes a língua sofrerá um processo de koineização e de emergência de
‘forças centrípetas’ (a corte, a literatura, o eixo Coimbra-Lisboa, a nacionalidade) que centralizarão
a elaboração de um idioma nacional… as manifestações de nacionalidade reflectir-se-ão numa
tendência para a unificação da língua e para a fixação de uma norma linguística. Norma que irá
nascer no eixo Coimbra-Lisboa, agora centro vital da nação, residência da corte e antigo território
moçárabe, terra reconquistada, repovoada e, por isso, receptiva a inovações, principalmente a
inovações niveladoras. (Cardeira, 2010)

Nos finais do século XIV Portugal ganha uma nova capital. A revolução de 1383-1385, ao determinar
a queda da antiga nobreza setentrional, determina, também, uma rejeição das suas características
linguísticas, substituídas pelas da região em que a nova corte se instala, a área koinizada centro-
meridional, centrada em Lisboa. A partir daqui, está decidida a localização da norma. (Cardeira,
2008)

6A conquista de Ceuta ocorrera em1415. Em 1418, sob comando do Infante D. Henrique dá-se o redescobrimento
da ilha de Porto Santo por João Gonçalves Zarco e mais tarde da ilha da Madeira por Tristão Vaz Teixeira.

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Independentemente da designação dada a este período linguístico, toda a gente concorda que
no século XIV se iniciou um tempo de mudanças profundas e rápidas na língua, conduzindo a
um sistema linguístico novo, chamado português clássico; e isso é realmente o que nos
interessa, fixar para o nosso trabalho esta fronteira, que separa o antes e o depois de meados
do século XIV, quando se inicia a mudança. Essa norma linguística constituiu-se, por um
processo de elaboração e estandardização, com base nas variedades centro-meridionais.

São as circunstâncias históricas, políticas e culturais, que determinam em cada momento qual é
a língua prestigiada e, portanto, o modelo linguístico a imitar. Por isso, uma mudança política e
cultural numa comunidade possa produzir um razoável número de mudanças linguísticas. E as
mudanças políticas e culturais durante o século XIV e XV em Portugal estariam associadas a uma
profunda mudança linguística.
… do século XV em diante, enquanto o português sofre mudanças que o encaminham no sentido da
elaboração de um padrão que terá como modelo a língua literária, na Galiza castelhanizada o
galego sobrevive apenas no uso oral (Cardeira, 2010)

Esse processo de elaboração é em grande medida marcado por um afastamento do galego, a


que Xoan Lagares chama “desruralização da língua”. Estas duas passagens, a primeira de Duarte
Nunes de Lião, a segunda de Fernão de Oliveira, são significativas quanto à perspectiva das
elites no século XVI:
Sendo pois a lingoa Portuguesa na origem latina, & reformada muitas vezes, & ampliada de
vocabulos latinos, de que careciamos, por a corrupção, que os Godos nella fizeraõ sem nenhum
pejo, & com mais honra nossa nos devemos aproveitar della, como filhos, que dos bens paternos se
ajudão mais sem afronta sua, o que naõ fariaõ dos estranhos.

A carão, que quer dizer junto ou a par, e samicas, que sinifica porventura, e outras piores vozes
ainda agora as ouvimos e zombamos dellas.

A designação “português médio”, que autonomiza este período de mudança acelerada, e assim
parece dar-lhe um maior relevo, parte da sugestão feita por Lindley Cintra, decalcada da
designação francesa (moyen français). Este período tem vindo a ganhar importância e
visibilidade nos estudos, por ser um período particularmente interessante, pelas
transformações rápidas que contém.
Alguns períodos históricos parecem ter sido particularmente favoráveis à difusão de mudanças. O
período do português médio tem sido encarado como um período de transição da língua medieval
para a clássica, transição durante a qual “coexistem as formas e os tratamentos próprios da etapa
anterior com formas e tratamentos que já anunciam o português do período clássico” (Maia,
1995a: 79). (Cardeira, 2010)

Muitas vezes 1536 é a data sugerida para iniciar o período clássico. 1536 é não só a data da
publicação da primeira gramática portuguesa de Fernão Oliveira, como a data da última peça
de Gil Vicente e da morte de Garcia de Resende que, como assinala Ivo Castro, eram símbolos
desse português médio do século XV. Representam realmente o início do século XVI linguístico.
Em 1537 a Universidade é transferida definitivamente para Coimbra; irá ter um papel
fundamental no Renascimento português.
Desde o século XVI, data em que surgem as primeiras gramáticas do português (de Fernão de
Oliveira, em 1536, e João de Barros, em 1540) que a fixação e normalização da língua se tornam o
ponto fulcral do pensamento metalinguístico: no quadro do movimento dos Descobrimentos
portugueses, a ‘questão da língua’, presente em toda a Europa, ganha, em Portugal, uma
importância acrescida. (Cardeira, 2008)

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As primeiras reflexões sistemáticas e normalizadoras da língua, as gramáticas de Fernão de Oliveira
e de João de Barros, descrevem, na primeira metade do século XVI, uma língua já muito distinta do
português antigo. Se compararmos essas descrições com os elementos que Rosa Virgínia Mattos e
Silva (1989) fornece para o português trecentista, teremos que concluir que as grandes mudanças
linguísticas que separam o português antigo do português clássico se processaram depois de 1350 e
antes de 1536. Foram factores políticos que determinaram o destino da ‘língua portuguesa’. A
língua, adaptando-se a uma nova situação (a de factor de identificação e coesão social), virá a
tornar-se um símbolo do império. (Cardeira, 2010)

Ao mesmo tempo a transformação da língua literária afasta-se do modelo trovadoresco, ligado


à Galiza e ao sul de França, e passa a ser claramente influenciada pelo renascimento e pelo
retorno aos modelos latinos. Enriquece-se o léxico com importação de cultismos latinos,
gregos e muito léxico castelhano. Realmente, adopta-se o castelhano como segunda língua
literária, como frisa Castro (2011) e também Cardeira:
O português sofre, durante a primeira metade do século XV, um processo de elaboração que
aprofunda as diferenças face às restantes línguas da mesma família, retomando um modelo latino
que o renova, enriquece e aprimora, e que serve de suporte à sua gramaticalização a partir do
século seguinte. (Cardeira, 2008)

Toda a história linguística portuguesa é a dum afastamento do galego. A norma-padrão portuguesa


é o produto dum longo processo de desgaleguização, em que as características nortenhas –
fonológicas, lexicais, morfológicas – foram sistematicamente filtradas. Dispomos ainda, é verdade,
dum enorme acervo comum de materiais exclusivos galego-portugueses. Mas a própria consciência
deste facto é ténue. (Venâncio, in Portal Galego da Língua www.pgl.gal.)

Depois do ciclo da Formação, entrara-se no ciclo da Expansão da língua portuguesa,


“separados por uma cesura no século XV”, nas palavras de Ivo Castro, apoiado na koiné centro-
meridional como escreve Cardeira.
A expansão implicou um renovado interesse pelas questões da língua. Ao louvor da língua
portuguesa e à sua valorização enquanto factor de consolidação de um império aliou-se o interesse
pela codificação. A fixação de uma norma linguística tornou-se um objectivo dos gramáticos. Norma
que se elabora a partir de uma língua que se afasta, cada vez mais, do português antigo: separado
do galego, implantado na koiné centro-meridional, o português ganha identidade própria. Cresce,
nos portugueses, a consciência dessa identidade, potenciada pelo confronto com ‘o outro’, que
descobrem, agora, no ‘novo mundo’. (Cardeira, 2010)

Percebemos agora com clareza por que razão o chamado português-padrão, que nos
pretendem impor como melhor, agora com o beneplácito do ME, vem de onde vem. Por o
centro de poder ter migrado para Lisboa, e por lá ter ficado até hoje, é considerado de mau
tom não distinguir os “bês” dos “vês”, quando em Espanha, por exemplo, por o poder se ter
mantido a Norte é de mau tom pronunciar “bês” e “vês”, como acontece na rural Andaluzia…

Esta história explica igualmente o continuum de variação dialectal em Portugal – ver Figura 3 –
de Norte para Sul e da raia para o Atlântico.

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Figura 3 – Mapa do continuum de variação dialectal com marcação das isoglossas principais

Esse continuum é demarcado a leste pela raia com Leão-Castela, que traça uma separação bem
sentida entre o português e o castelhano, a que alguns chamam impropriamente espanhol, – o
leonês quase desapareceu do mapa – mas a norte esse continuum de variação parece
prolongar-se para o outro lado da fronteira, sem linhas de separação abruptas. E é
extraordinário que, passados mais de oitocentos da separação do reino de Portugal da Galiza,
de séculos de pressões linguísticas, do lado do português do sul sobre o galego original do
norte, e de pressões do castelhano sobre o galego dominado e humilhado, continue a ser
perceptível essa sensação de continuum linguístico, que passa por cima da fronteira política e
administrativa, e que faz com que haja no presente movimentos linguísticos galegos que
defendem a ligação do galego ao português e até a utilização da mesma norma ortográfica.
Mas esta discussão daria para outro ensaio.

Curiosamente, na língua portuguesa, ao longo de todo o território continental, é possível


traçar algumas linhas, representadas na figura, a que os linguistas chamam isoglossas, que são
como raias do nosso modo de falar (isófonas), ou do vocabulário usado (isoléxicas). Por
exemplo, é possível descobrir uma isófona que separa a não-pronúncia do “v” a norte com a
distinção clara a sul do “b” e do “v”, ou a pronúncia do ditongo “ou” a norte com o som ô a sul.
Muitas mais há.

E não é de estranhar que todas essas isoglossas se desenhem entre os leitos dos rios Douro e
Tejo, ou seja, no território que não falava galego, onde havia várias línguas, para além do
árabe e possivelmente de uma língua de origem latina, que se acredita iria ter uma grande
importância na história da evolução linguística, mas de que se sabe muito pouco, chamada

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moçárabe. O centro e o sul foram sendo conquistados, perdidos e reconquistados, entre o
século XII e o século XIV, adoptando a língua dos conquistadores, ainda que a transformando,
como sempre acontece.

E realmente, ao contrário do que nos muitas vezes nos querem fazer crer, ainda hoje o falar
das gentes muda de sul para norte e de poente para oriente, ao longo do território português.
Muda, e muito. E esta mancha linguística mudou também ao longo do tempo. Seria diferente
há 200 ou 300 anos. Realmente, se falámos a mesma língua, a que chamamos língua
portuguesa, é sobretudo porque há factores políticos e culturais de unidade, e também
normas provenientes do estado – por exemplo um acordo ortográfico e uma gramática7 –que
asseguram a nossa percepção de que falamos todos a mesma língua. Tudo poderia ser bem
diferente, se a nossa história tivesse sido outra.

Concluindo: o português-padrão mais não é do que um de entre os muitos modos de falar em


todo o território nacional. O epiteto “padrão” foi o poder político e o poder económico quem
lho deu. E deu-lho para valorizar esse modo de falar e desvalorizar os outros. Se o poder da
coroa não se tivesse deslocado para sul no seculo XIV, a língua-padrão, aquela que o ME
proporia como ideal seria muito provavelmente o “pom” e o “Som Joom do Puorto”. E
andaríamos a ridicularizar os falares de boca fechada do vale do Tejo. E estaria mal na mesma.

3. A língua-padrão como uma demanda do Santo Graal para


brasileiros e moçambicanos

A fase a que Castro chama de expansão caracterizou-se por levar o Português para fora da
Europa: para África, Américas e Ásia. Essa expansão conduziu não só ao aparecimento de
novas línguas de contacto, os chamados crioulos de base lexical portuguesa, que são muitos e
em situações muito diferentes, alguns extintos, outros a lutar pela sobrevivência, uns poucos
pujantes, mas essa expansão conduziu também à situação actual de um português
pluricêntrico.

Realmente, o português foi escolhido como língua oficial no Brasil e nas colónias portuguesas
de África e mais recentemente também em Timor Leste. Como tal, o português é actualmente
a língua de escolaridade nesses países. No entanto, a situação no Brasil, onde o português é
hoje língua materna de quase toda a população, é muito diferente da que encontramos nos
países africanos, onde o português convive com múltiplas línguas nativas e em que o
português é língua materna de uma percentagem muito pequena da população.

Neste contexto pluricêntrico, o Português do Brasil (PB) e o Português Africano (PA) procuram
afirmar-se face ao Português Europeu (PE), como variedades da Língua Portuguesa. Para o
fazer, cada variedade do português parece procurar determinar o conjunto de características:
fonéticas, lexicais, sintácticas, morfológicas e semânticas que as individualize. Temos a
sensação de assistir, para cada variedade do português, à procura de uma língua-padrão, como
de uma demanda do Santo Graal se tratasse. Por vezes, parece mesmo que os linguistas de
cada variedade procuram identificar características distintivas da sua variedade, a todo o

7
Para além da tal norma-padrão, criada e difundida pelo centro difusor de poder, a sul.

12
custo, dando mesmo muitas vezes a sensação de misturar erros com evoluções efectivas,
reconhecidas, para poderem afirmar a individualidade da sua variante de português.

Munir-nos-emos neste capítulo, como ponto de partida para as nossas reflexões, de algumas
das nossas leituras recentes: o livro O Português à Descoberta do Brasileiro de Fernando
Venâncio, o artigo “Variedades do Português no Mundo e no Brasil “do linguista brasileiro
Emilio G. Pagotto “ e o livro A Génese do Português de Moçambique da linguista moçambicana
Perpétua Gonçalves.

3. 1 O português estará mesmo à descoberta do brasileiro, como


escreve Fernando Venâncio, ou ameaçado por ele, como escreverá?

Poder-se-á argumentar que este livro de Fernando Venâncio não tem realmente como
objectivo a descoberta de um português do Brasil padrão, mas foi-nos, no entanto, muito útil
para identificar algumas das diferenças entre as duas variedades do português, o PE e o PB, e
para nos sentirmos capazes de lhes dar a importância que em nossa opinião elas merecem e
que nem sempre coincidem com a que lhes parece ser dada pelo autor.

O autor parte de uma constatação insofismável:


Quando falam e quando escrevem, os brasileiros exprimem-se – é o menos que se pode dizer –
diferentemente de nós. (Venâncio, 2021: 10)

O mesmo poderia ser dito, claro, para os portugueses de Trás-os-Montes, ou para os


portuenses de gema.

Mas Fernando Venâncio logo nos coloca num terreno fragoso, em que a relação entre as duas
variedades do português foi e parece que continua a ser obrigada a medrar, em grande
medida talvez devido à falta de atenção que o Estado Português sempre dedicou à sua língua e
à sua cultura nas colónias, ao contrário de outras potências colonizadoras. O português teria
sido “deixado à solta”, escreve Venâncio, citando Agostinho da Silva. E deixado à solta, ter-nos-
ia escapulido.

O ambiente criado por essa distância, e consequente deriva, seria assim caracterizado no
presente, por um lado, por um “anti-brasileirismo larvar” do lado europeu, e por outro lado,
por uma a falta de auto-estima dos brasileiros, relativamente ao seu modo de falar e de
escrever. “A convicção brasileira de que, no seu país, se fala “errado” está mesmo
generalizada”. (Venâncio, 2021:29)
No Brasil, o conservadorismo linguístico tenta, com mal disfarçada nostalgia, e não raro de forma
artificial, aproximar-se do português da antiga metrópole, ao mesmo tempo que as análises mais
descritivas assumem as diferenças das duas normas. E em Portugal, enquanto uma abordagem
linguística encara a influência do português brasileiro sobre o nosso, sem estados d'alma, como um
fenómeno natural, a atitude dos amadores é, toda ela, desconfiança e receios. Os comentários nas
redes sociais confirmam este cenário. A propósito e a despropósito, é atribuído ao português do
Brasil um papel nocivo, perturbador da boa ordem lusitana. (Venâncio, 2021:15)

Ao mesmo tempo em Portugal, a par do tal “anti-brasileirismo larvar”, há por vezes uma
idealização romântica:
O português de Portugal é velho e rígido, o português de África e do Brasil é jovem, plástico, criativo,
fértil, (Hélia Correia em entrevista recente à Sinal Aberto)

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Perante este panorama radicalizado, Venâncio, realmente, parece começar por criticar aqueles
que atribuem ao português do Brasil os males da nossa língua.
A ele [português do Brasil] se atribuem todos os males do nosso [português], desde a introdução do
verbo achar até à do tratamento por você. São exemplos reais. Não vale a pena mostrar ao queixoso
que o nosso achar está amplamente documentado desde o século XIII, ou que você já tinha uso
generalizado no Portugal de 1650. Haverá sempre outra e mais outra recriminação deste curioso
teor. (Venâncio, 2021: 14)

Mas, apesar disso, logo surgem, identificados por ele, os “espinhos cravados” pelo PB no PE. O
maldito verbo “achar” e o descabelado tratamento por “você”. Os epítetos são nossos.

Mas, logo, Venâncio argumenta, e bem, que há expressões a que chamamos “brasileiras”, que
são afinal bem portuguesas e bem antigas: desmemórias nossas. Mas, mais à frente, neste
mesmo livro, o autor parecerá mudar de tom e de argumentos e criticará os que não vêm
ameaça nos chamados brasileirismos, só porque existiriam por aqui há séculos. E esclarece que
brasileirismo não são só as inovações, mas também o que se torna mais frequente entre nós,
por influência do PB. Estas e outras aparentes contradições no livro derivam talvez de o livro
ser basicamente uma colecção de artigos que foram escritos ao longo do tempo. Isso poderá
explicar por um lado a repetição de exemplos e de argumentos e algumas possíveis
incongruências.

Venâncio tece a seguir, no contexto da relação entre o PE e o PB, algumas considerações muito
críticas ao AO90, que ele considera profundamente inadequado, mas este é outro assunto,
que não iremos aqui sequer abordar.

Mas, finalmente, numa secção que intitula “Uma norma brasileira” Venâncio parece iniciar a
identificação sistemática das influências nocivas (?) do PB no PE. E começa, como talvez
pudéssemos esperar, pela questão dos pronomes pessoais átonos, os chamados clíticos.
Uma sintaxe desviante em âmbito português pôde aflorar, já em 1872, num texto de José de Alencar
… e se alonguei-me foi pelo sistema da crítica (Venâncio, 2021:24)

Ficamos a saber que os clíticos e a liberdade no seu posicionamento são para Venâncio,
mesmo, uma “sintaxe desviante”. E hesitamos perante este nosso “mesmo”. Será
brasileirismo?

E Venâncio volta a chamar a atenção para a falta em Portugal de uma academia interventiva,
ao contrário do que sucedeu em Espanha ou França, para definir e impor regras morfológicas e
sintácticas nas colónias. E os clíticos, perante a libertinagem que lhes concederam, teriam
desarvorado.

Estamos então perante a questão velha do posicionamento dos clíticos que, no Brasil, parece
contrariar aquela que seria a norma oficial portuguesa, e da influência nefasta de tal deriva no
português contemporâneo.

Mas Venâncio e outros autores, que atribuem tanta importância à localização dos clíticos na
frase, parecem esquecer que o posicionamento dos clíticos é questão antiga na história do
português e que o seu posicionamento parece ter oscilado ao longo do tempo.
A nível morfo-sintáctico, destacam-se sobretudo, na colocação dos clíticos (Martins 2016), a mudança
da próclise na oração principal, quase absoluta no português clássico, para a ênclise, no português
moderno, (Banza&Gonçalves:46).

14
E, realmente, o posicionamento dos clíticos não parece comprometer em nada os
fundamentos das regras sintácticas do português. Parece-nos ser sobretudo uma questão de
ritmo na frase ou de moda epocal. O rigor sintáctico mantém-se em pleno.

Se é ainda mais frequente dizer por cá “Ela deu-me um livro”, nada na sintaxe do português
parece proibir dizer “Ela me deu um livro” ou até “Ela um livro me deu”. São aliás mudanças
muito habituais na poesia e nas letras das canções. Perde-se alguma coisa no rigor ou no
significado da frase?

Uma coisa é observar e estudar o fenómeno da variação das posições dos clíticos na frase, que
é um fenómeno interessante, outra coisa é ver nisso uma ameaça de brasileirismos à solta ao
nosso português.

No capítulo seguinte “Brasileirismos: Dados Actuais de um Paradoxo” Venâncio regressa à


identificação das diferenças entre as duas variedades, sobretudo aquelas que estariam a
influenciar negativamente o PE.

E o que começou por nos surpreender neste capítulo foi o autor identificar um conjunto de
expressões, locuções, que nunca associaríamos a brasileirismos e que ouviríamos ou diríamos
sem nos apercebermos de estar a sair deste pequeno território continental. Vejamos: refere
Venâncio as expressões “será que”, “dar para”, “só que“ e o tal advérbio “mesmo”, usado
como reforço.

Na verdade, apercebemo-nos de que todas são expressões e locuções antigas no português,


tendo a tal influência brasileira porventura apenas conduzido à sua utilização com maior
frequência e a um certo alargamento semântico. Assim por exemplo a expressão “dar para”
que teria como significado em português europeu “chegar para” teria alargado, por influência
do PB, a sua semântica, para significar “ser possível”. E agora seria usada de uma forma
desproporcional por todos os autores, mormente na Comunicação Social.
Um destes fenómenos é a generalização em flecha da interrogativa “será que”. Vejamos alguns
exemplos de entre centenas, recolhidos nos últimos cinco meses. «Será que havíamos esquecido o
velho e violento conquistador James Bond?» (DL). «Será que no Ocidente tudo corre bem?» (DN).
«Estou a pensar no teatro beckettiano/público português... será que funciona?» (jL). «Será que o lixo
nuclear do desenvolvimento vai mesmo para lá parar?» (DL). «Será que a Argentina mora na Rua de
Buenos Aires?» (Sete). Há aqui, a par do antigo valor modalizante da expressão (algo como «dever-
se-á isso a que...»), um valor novo, brasileiro, de elemento não marcado, neutro, destinado só a
anunciar uma pergunta, de indesmentível funcionalidade. igualmente elucidativo é o que se vem a
passar com a expressão verbal “dar para”. Ao antigo valor de 'chegar para' («Dá para pagar dois
cafés») veio juntar-se um significado brasileiro de 'tomar possível'. Exemplos esclarecedores são:
«Algumas nuvens escondiam, de vez em quando, o sol, mas deu para se estender na esteira que
levava» (Mulheres, Julho de 1983), «Tal como [o programa] tem vindo a ser emitido, já deu para se
compreender que essas boas intenções...» (DN, 7.2.1982). Atente-se no novo valor, impessoal, único
admissível em «Aqui não chateia; bebe-se uma cerveja, dá para dançar...» (DL, 7.11.1983). Cite-se
ainda este título, relativo à quadra do Natal: «Desalojado, não dá para comemorar...» (DL,
17.12.1983). (Venâncio, 2021:36)

E Venâncio lastima a uniformidade que o português brasileiro estaria a provocar no português.


Lastima por exemplo a utilização abusiva do “só que”:
O aumento explosivo no emprego desta locução era, agora, inequívoco, com detrimento das
habituais adversativas “simplesmente”, “sucede que”, “no entanto” ou do corriqueiro “mas”.
(Venâncio, 2021:35)

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E prosseguem os casos de infiltração, e muitas vezes hão-de regressar os mesmos, ao longo
dos capítulos:
Nova é, também, a generalização de” tudo o que é” ou “tudo quanto é” seguido de um substantivo.
Havia já «toda a espécie de» e congéneres, mas uma maior singeleza do giro brasileiro poderá
explicar a fácil adopção. Alguns exemplos: «Ouvimos 'bocas' machistas ou `piropos' de tudo o que era
homem» (Mulheres), «A continuar a explorar por tudo quanto é sítio» (DN), «A fazer espectáculos
por tudo quanto é sítio» (Expresso). (Venancio, 2021: 37)

Elucidativa, mas menos clara, é a sorte do advérbio mesmo. Que se passa exactamente? Vejamos
casos: «A situação, cíclica, toma-se habitual, parece inevitável. Mas inevitável mesmo?» (Expresso,
9.10.1982), «Mas o PCP tem alternativa a esta política? Existe mesmo?» (DL, 25.10.1983), «O livro
agora reeditado mostra bem que Sérgio Godinho também é poeta mesmo» (O Jornal, 27.1.1984).
Compare-se este último exemplo com «Esta obra mostra que Sérgio Godinho [...] é também, de facto,
poeta» (j L, 31.1.1984). Tudo parece indicar que se trata, umas vezes, de elemento interrogativo de
reforço (equivalente a «na realidade», «sequer») e, outras, de um sinônimo de «de facto» ou
«efectivamente», sendo de salientar, aqui, a sua posição, eminentemente brasileira, no fecho da
afirmação. (Venâncio, 2021: 37)

Sirva de exemplo o aumento vertiginoso (em entrevistas, o facto salta aos olhos) do uso de eu acho
que e concomitante queda a frequência de «creio que», «penso que», «julgo que». Igualmente
iniludível é a extensão de entender a domínios onde imperavam «perceber» e «compreender».
(Venâncio, 2021: 38)

Facto, porém, entre todos, de duvidoso ganho é o impressionante crescendo dum recurso a ir como
auxiliar do futuro (em títulos de imprensa como «Vai ser menos perigoso andar nu nas praias
portuguesas», os exemplos são frequentes), arredando alternativas como «esperarnse», «passar a»,
ou os simples «dever» e «haver de». É sobretudo na transcrição da fala que essa exacerbação se
revela e empobrecedora (Venâncio, 2021: 38,39)

Parece-nos duvidoso que o verbo “ir” como auxiliar do futuro tenha origem brasileira, como
afirma Venâncio. A sua generalização parece ser muito Português-Europeu. Aliás quase todos
estes brasileirismos, que Venâncio apresenta, poderão ser ou não de mera origem brasileira.
Nada no livro realmente o prova. Intuição do autor?

E para Venâncio estes casos são de desestabilização, semântica, mas igualmente sintáctica. E aí
reside o busílis e por isso lamenta Venâncio que só se dê sempre tanta importância ao léxico.
Desestabilização, pois. Semântica, mas igualmente sintáctica. Por isso deve lamentar-se que as
observações respeitantes à «invasão de brasileirismos» jamais ultrapassem o plano lexical. Certo: é
assinalável a quantidade de elementos lexicais introduzidos (tipo bagunça, fofoca, curtir por
`gostar'), assim como a revalorização que vão levando chato ou chatear, ou a generalização de
formas diminutivas compactas: uma entradinha, uma historinha (DL), um pouquinho diferente (Sete),
quadrinhos e mais quadrinhos (DN), uma certa vontadinha (O País). (Venâncio, 2021:)

Não se percebe onde reside a destabilização. O único caso referido, em que tal epiteto poderia
ser usado é o da localização dos clíticos, mas mesmo aí parece evidente que essa
desestabilização é interna à língua portuguesa e tem-na acompanhado ao longo dos séculos e
a língua portuguesa está bem com ela e recomenda-se.

E regressam mais ameaças à sintaxe:


É na sintaxe que, porém, bate o ponto, é nela que a medição de forças se há-de operar. E enquanto
não vem a sistematização, deixemos alguns exemplos falarem por si. O resvalar para uma toada
brasileira é visível em frases como «Quando parece que tudo terminou é que tudo está começando»

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(DL, 19.11.1983), «Andar na moda tem os seus custos, último figurino nem sempre colhe» (DN,
23.2.1982), «Quarenta e cinco anos, filhos crescidos, e não precisando mais dessa casa-mãe»
(Mulheres, Agosto de 1983), «A bica era a 12$50. Era pequena e de má qualidade. Governo
liberalizou» (DL, 11.1.1984), «Português como é nas escolas? Uma aprendizagem que a televisão
pode destruir» (Expresso, 1.4.1983). (Venâncio, 2021:)

Concordo com Venâncio que “É na sintaxe que, porém, bate o ponto”. A sintaxe é a estrutura
que permite à língua dizer e escrever tudo o que queria dizer e escrever. Mas, realmente, não
encontramos em nenhum dos exemplos por ele apresentados, verdadeiras ameaças
sintácticas, se exceptuarmos curiosamente algo que o autor refere no início do livro (Venâncio,
2021:12), e a que curiosamente não regressa, ou seja, a substituição dos pronomes de
acusativo a/o/as/os pelos pronomes de dativo lhe/lhes, dando o conhecido exemplo da
Gabriela “Essa noite eu quero lhe usar”. Não nos parece ser ameaça à sintaxe recorrer ao tão
português gerúndio – talvez não no tal português-padrão – ou a não explicitação nalguns casos
do artigo definido que a sintaxe do português europeu tão bem admite. Se há a tal “medição
de forças” é no seio da sintaxe-padrão do português-padrão e ainda bem que há, porque uma
língua sem essa “medição de forças” está estagnada.

Mas Venâncio dramatiza e fala de “Infiltração, contágio, desestabilização, desvirtuamento”, os


substantivos são todos dele. Parece estar bem longe da página 14, em que, em passagem que
aqui citámos, criticava aqueles que atribuem ao português do Brasil os males da nossa língua.
‘Infiltração’, 'contágio, 'desestabilização, 'desvirtuamento' — é difícil decidir onde acaba a acepção
objectiva e começa o brado de alma. (Venâncio, 2021: 40)

Venâncio discute então o conceito de brasileirismo. E como já referimos, segundo o autor deve
ser atribuído tal epíteto, não só a originalidades do português brasileiro, mas também a usos
que, sendo mais frequentes no Brasil, se tornam mais frequentes deste lado do mar. Este é o
caso da maioria das situações para que o autor chama a tenção como o “acho que”, “dar
para”, “só que” ou “será que”. Sendo tal definição de brasileirismo aceitável e até positiva, não
nos parece, no entanto, que tornar expressões ou locuções mais frequentes no uso quotidiano
possa alguma vez abalar a sintaxe da nossa língua. Outra coisa é defender a diversidade de
expressões na prosa portuguesa. Fugir à monotonia, inevitável do texto, se não se se
procurarem expressões e locuções equivalentes.

E Venâncio pergunta-se e pergunta-nos “que faremos nós com os ‘nossos’ brasileirismos’?” e


diz “oferecer resistência é fatalmente inglório…” (Venâncio, 2021:47). Não responde
realmente. E, para concluir, parecendo contradizer-se, adapta Celso Cunha e escreve “é
sempre melhor um brasileirismo que nos una do que um lusitanismo que nos separe”
(Venâncio, 2021:48)

No capítulo seguinte “Brasileirismo que unidade”, Venâncio volta à carga com os “será que”
“só que” e etc. e parece criticar a nossa inércia e indiferença, o “nosso encolher de ombros” o
nosso minimizar do assunto” “porque tudo isto é português”. E lá regressam os diminutivos de
tom brasileiro: forcinha, conversinha ou chorinho, e de novo o “será que”. E Venâncio alerta
“muitas vezes a infiltração brasileira toma formas de todo inofensivas, não obstante se verem
grandemente generalizadas”. (Venâncio, 2021: 53)

Muitas mais vezes, até ao fim do livro, há-de voltar aos mesmos casos, citando mais e mais
exemplos de utilização dessas expressões por jornais e escritores em Portugal. Jornais e
escritores que adoptam essas expressões, que sim, que realmente eram portuguesas, mas que
nos regressariam mais pujantes, como cavalos de Tróia, pela mão dos brasileiros.

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Mas não só. E aponta “A norma brasileira é também indutora de radical novidade”. E dá
exemplos como “Iniciei já minha pausa (DL)”. Não sabemos se tais frases, por acaso retiradas
de jornais portugueses, seguem essa tal “norma brasileira”, cuja existência desconhecemos –
onde está? –, se são apenas formas escritas adoptadas em Portugal. Nem sabemos se será
realmente por influência brasileira. Nem percebemos onde reside a tal “radical novidade”
dessa e de outras frases. Será a omissão do artigo definido a tal radical mudança que se
anunciava? Omissão que não altera a estrutura sintáctica nem o significado.

E o autor afirma ter chegado ao centro da questão e regressa à questão da sintaxe:


Até onde oferecerá o reduto mais sólido da língua, a sua sintaxe, resistência eficaz aos que os líricos
chamam ‘a pacífica invasão brasileira’ (Venâncio, 2021: 54)

Aqui parece começar por mostrar confiança na robustez da nossa língua:


A sintaxe do português é, dentre as línguas ocidentais, uma das mais flexíveis. Isto lhe permite
amortecer, e até neutralizar, os maiores embates. As investidas francesas e castelhanas acabaram da
melhor maneira: pura e simplesmente integrámo-las. É o nosso lado bruto, alienígena. Os
brasileirismos não terão melhor sorte” (Venâncio, 2021: 54)

E logo a seguir o autor aponta aqueles brasileirismos que melhor dispensa, argumentando com
o que chama a “norma portuguesa”. É argumento de peso, cito: “quando um objecto,
mormente se complexo, precede o verbo, ele deve voltar a ser explicitado como pronome”,
dando exemplos de erros da CS portuguesa “Essa oportunidade já não vai ter (DL 27-10-83)”
em vez de “Essa oportunidade já não a vai ter”. Se aceito que a forma de artigo explicitado
possa ter “sobejas excelências”, como Venâncio escreve, de um ponto de vista estilístico, não
nos parece que qualquer uma das duas opções fira de morte a sintaxe do português. Parece
mais uma vez ser apenas uma questão de elegância do estilo.

E o autor preocupado regressa preocupado, “a nossa actual recomposição tem no brasileiro


um instigador, fortuito decerto, mas actuante, onde estará o fim?” (:55). E volta a citar vários
exemplos mais ou menos obtusos da imprensa portuguesa, em que os erros são atribuídos à
influência nefasta do tal “brasileiro”. Mas “onde estará o fim?” não nos esclarece.

E o autor conclui que o nosso crescimento – o PB e o PE – é de há muito divergente inelutável.


Para o autor parece inevitável o afastamento entre o PB e o PE. E nisto parece estar de acordo
com Ivo Castro, que coloca a língua portuguesa perante um dilema:
… a importância actual da língua portuguesa, no plano mundial, deve mais ao desenvolvimento
económico e populacional do Brasil que à expansão portuguesa. O que coloca um dilema
interessante a Portugal: apostar na unidade de uma língua propulsionada a partir do Brasil ou
preservar a sua autonomia e especificidade num quadro de desintegração do sistema linguístico?”
(Castro, Forças de união e separação no espaço da língua portuguesa (2007) Conferência dada no
Institut d’Estudis Catalans, Barcelona (16.3.2007)

Mas logo a seguir, depois do que nos soou a desânimo, Venâncio regressa a um optimismo
moderado quanto ao futuro da nossa língua:
Nada porém no passado da nossa língua justifica tão negras visões. O nosso idioma passou já por
períodos de radiação maciça de castelhano e de francês e saiu deles com a pujança antiga e uma
elegância nova (Venâncio, 2021:58)

Mas logo o tom de preocupação do autor com o futuro se adensa:

18
As modificações de comportamento linguístico que se vêm operando na fala e na escrita de Portugal
ultrapassaram há muito o estádio de curiosidade e encaminham-se para o da preocupação
(Venâncio, 2021:73)

O que próximos anos se prepara em matéria de assimilação maciça da norma brasileira deixou já o
terreno da ficção cientifica e entrou no das sérias probabilidades… A nós caberá decidir se desejamos
essa assimilação, ou se, pelo contrário, lhe iremos barrar o caminho. (Venâncio, 2021:78)

Aquele pequeno desvio percentual já é grande, é mesmo decisivo. Qualquer professor de Português
para estrangeiros sabe que uma sobreposição de duas normas, brasileira e portuguesa, é um suicídio
colectivo. (Venâncio, 2021:80)

A actual absorção de peculiaridades brasileiras em Portugal pode garantir os resultados mais


curiosos, mas não faz prever significativa «convergência». (Venâncio, 2021:80)

A verdade para que temos de preparar-nos é esta: não demora muito que 150 milhões de pessoas do
outro lado do oceano achem que nós, o português europeu, é que somos a variante. Não haverá
nada a fazer. Cada dia que passa, falando e mesmo calados, estamos a trabalhar mais para isso.
(Venâncio, 2021:81)

Perante a última citação, ficamos sem perceber qual seria o real problema de, num cenário
pluricêntrico, ser o núcleo com mais falantes o principal determinante da variação da língua.
Nostalgia pós-colonial?

E o autor continua a lamentar-se:


O que se observa é, quase sempre, a simples comutação de elementos (lexicais, sintácticos,
semânticos, nunca. até hoje, fonéticos) e o concomitante recuo e mesmo a perda de expressividades
de que largamente dispúnhamos. (Venâncio, 2021:93)

É um milagre dos idiomas que, no meio de udo isso, a pronúncia portuguesa tenha mostrado uma
solidez a toda a prova8, e que a nossa sintaxe pouco se tenha visto afectada9. Em tudo o resto
acabaram por incrustar-se as fortes marcas brasileiras. (Venâncio, 2021:97)

Mas afinal onde residem esses grandes perigos para a nossa língua?

Torna-se cada vez mais raro no texto uma frase de optimismo. Elogia a resistência da nossa
língua, parecendo quase sempre contrariar outras coisas que foi escrevendo, anunciando o
desastre que a contaminação da sintaxe já anunciava. E queixa-se várias vezes de a influência
ser só num sentido:
O movimento faz-se e continuará a fazer-se em sentido único… Progredirão, entre portugueses os
dizeres em, brasileiro indisfarçável. (Venâncio, 2021:79)

Nunca eu consegui, em todos esses mais de 40 anos de absorção portuguesa de


brasileirismos, identificar um só portuguesismo que, reconhecido como tal, tenha entrado
eficazmente nos usos da fala ou da escrita brasileiros. É isso: As influências correm,
nitidamente, em sentido único. (Venâncio, 2021:96)

Compara o processo de separação do inglês, entre o RU e os EUA, com o do português


europeu e do Brasil. E cita um livro de Lynne Murphy “Os dois países enriqueceram a língua

8
Não compreendemos por que razão a resistência de uma pronúncia de vogais reduzidas ou quase
anuladas é um milagre…
9
Esta opinião parece contrariar o que autor escreve noutros locais do livro, onde parece anunciar um
grande risco para a sintaxe, na sua opinião já fortemente erodida pela influencia do português do Brasil

19
que compartilhamos, conservando no entanto diferentes identidades”, e conclui que nada foi
assim com o português:
A afirmação [ de Murphy] vale para aqueles dois países. Não se aplica, tanto é certo, ao contexto do
português. Enquanto nos últimos 40 anos, os portugueses absorveram e fizeram seus numerosos
vocábulos e giros frásicos de criação brasileira e como tal identificados, não se conhece (repito, eu
não conheço) um único caso de movimento contrário. (Venâncio, 2021:107)

E conclui desalentado com a injustiça que nos fazem:


Nós exorbitamos de brasileirismos. O actual falante brasileiro não está interessado em
portuguesismos. Quanto a uma relação assimétrica, estamos falados. (Venâncio, 2021:107)

Uma questão interessante que o autor aborda a determinada altura é a necessidade da


tradução entre PE e PB. E até utiliza este argumento como mais uma prova irrefutável da
divergência inexorável entre o PE e o PB. Porque ao contrário do castelhano – o autor escreve
espanhol – que conseguiu que existisse um castelhano internacional, e como tal não há
necessidade de traduções, o português não foi capaz de o fazer. Talvez por ter sido deixado a
andar à solta, como escreveu logo no início do livro.

A questão da necessidade de tradução é interessante, sobretudo porque apenas parece ser


necessário traduzir do PE para o PB. Creio que nenhum de nós gostaria de ler Guimarães Rosa
ou Jorge Amado “traduzido” para PE, porque sabemos que perderíamos uma grande parte da
doçura e da poesia da escrita e porque os lemos sem qualquer dificuldade. O exemplo que o
autor dá da necessidade de tradução da Odisseia Adaptada Para Jovens de Frederico Lourenço
parece-nos ser paradigmática. Seria mesmo necessário traduzir, para substituir o tu/vós por
você/vocês, quando o tu/vós, inclusive, ainda é usado em certas regiões do Brasil? Será que
um brasileiro não é capaz de compreender o tu/vós, quando nós compreendemos tão bem o
você? Será assim tão difícil? Seria mesmo necessário alterar a posição dos clíticos para um
leitor brasileiro médio compreender as frases? Ou será apenas isto uma ideia feita, um
preconceito, resultado por um lado de uma falta de divulgação da literatura e da cultura
portuguesa no Brasil e por outro lado da crença de que traduzir facilitará o acesso aos textos
por parte dos brasileiros. Porque os brasileiros são muito preguiçosos e só aceitam as fórmulas
a que estão mais habituados?

Aliás, algo de muito interessante poderia ser dito sobre alguns dos exemplos de tradução da
Odisseia para Jovens de FL. Escreve o autor que a passagem do poema “Não me posso sentar/
Parece que Heitor nos quer falar/ Não tentes aproximar-te de Tróia/ Penso que nos irá
assassinar” teve de ser traduzida para “Não posso me sentar/Parece que Heitor quer nos
falar/Não tente se aproximar de Tróia/Penso que irá nos assassinar”. Perante o exemplo a
primeira reacção é abrir os olhos de espanto. Seria mesmo necessário deslocalizar os
“me”/”nos”? Seria mesmo necessário eliminar o ”te” e transformá-lo numa terceira pessoa?
Parece-nos bizarro. Mas o mais interessante é constatar que o texto de origem, em PE, parece
realmente não respeitar a norma do PE, já que faz o que se costuma designar por ”subida dos
clíticos”, ou seja afasta o clítico do verbo a que se refere e coloca-o perto do verbo auxiliar. Se
quiséssemos ser verdadeiramente respeitadores da norma teríamos de escrever “Não posso
sentar-me/ Parece que Heitor quer falar-nos/ Não tentes aproximar-te de Tróia/ Penso que irá
assassinar-nos”. Estamos assim perante uma situação caricata em que o texto vertido para PB
parece estar realmente mais próximo da norma do PE do que o texto original, supostamente
em PE, pois no texto traduzido o clítico está junto ao verbo a que respeita.

20
Escreve o autor, para justificar as traduções: “Insistamos: para uma leitura fluida e aprazivel, o
leitor deseja um texto na Sua norma”. Imaginem então que algum inteligente tinha a ideia
peregrina de traduzir Manoel de Barros para PE, ou de traduzir as peças de Ariano Suassuna. A
leitura poderia ser fluida, mas seria certamente muito menos aprazível. Por isso, nos parece
que a tradução de material literário de PE para PB é, pelo menos na maioria dos casos, uma
tolice.

Para além da Odisseia de FL o autor apresenta outros casos, por exemplo a tradução diferente
de um romance em galego para PE e PB. É de qualquer forma uma situação bem diferente,
pois traduzimos a partir de uma outra língua, neste caso o galego. Mas onde residem essas
diferenças? Onde haveria de ser? No posicionamento dos clíticos, na supressão de alguns
artigos definidos, na opção por tu/você, ou na inversão da posição entre o sujeito e o verbo
nas interrogativas, por exemplo “Que fez ele, matou?” (PE) e “O que ele fez, matou?” (PB).

A propósito de traduções, não resistimos a citar algo que o autor escreve, citando ele Hélder
Guégués, com quem parece concordar: “Sou o primeiro a defender que se use um
brasileirismo na falta de um equivalente …. Não quando dispomos de um vocábulo para
designar essa realidade. É o caso. Nunca eu diria favela se temos bairro de lata” (Venâncio,
2021:12). Como se favela e bairro de lata fossem exactamente a mesma coisa. Não creio, e
ainda bem que temos “favela” e temos “bairro de lata” e podemos optar qual usar.

Por mera coincidência lemos, quando ultimávamos este artigo, um livro do escritor brasileiro
Ruben Fonseca, intitulado Romance Negro e Outras Histórias. Lemo-lo de uma forma fluente,
sem quaisquer problemas e, se se encontrámos exemplos de uso de gerúndios ou de
transformação de ênclises em próclises10, tivemos de estar de olhos bem abertos para os
notar, pois passavam-nos completamente despercebidos.

Só no fim do livro o autor refere uma característica do PB que nos parece interessante. Há uma
tendência no Brasil para substituir verbos irregulares por verbos regulares, com o mesmo
sentido, ou a que alargam o âmbito semântico, para fugir às irregularidades. Por isso dizem
“falar” em ver de “dizer”, e preferem “Ele falou isso.“ a “Ele disse isso”, usam “machucar” em
vez de “ferir” ou de “magoar”, etc. Os outros verbos, os irregulares, continuam a existir mas
são pouco usados. Como o autor conclui: ”Sim, os falantes são seres inteligentes” (Venâncio,
2021:114) e optam por soluções mais simples.

Quase no fim do seu livro o autor tem uma secção a que chama “O que eu não posso dizer” em
que pretende apresentar as GRANDES diferenças que nos seriam PROIBIDAS. Quais são?
Teriam de ser os malditos clíticos, assim, por exemplo, segundo Venâncio uma frase como “o
que poderia o senhor lhes sugerir?” é uma frase proibida em PE, pois teríamos de dizer “O que
poderia o senhor sugerir-lhes?” e assim conclui que no PE e PB “estamos perante sintaxes que
mutuamente se excluem”, como se a posição dos clíticos não fosse problemas de indefinição
antiga no Português. E escreve criticando os que conciliam:

Assim, mesmo que admitam uma norma brasileira e uma europeia, vêem-nas como
“diversas” e jamais como “diferentes”. Ora elas são mais do que isso: são autenticamente
irredutíveis. (Venâncio, 2021:123)

10
Por exemplo “João, um amigo, lhe disse”, logo na primeira página ou “Assim, quando não está
escrevendo, ele caminha pelas ruas”, na segunda página do livro.

21
Irredutíveis? Realmente não se pode dizer ao mesmo tempo “sugerir-lhes” e “lhes sugerir”
(Venâncio, 2021:124), mas porque não há-de a gramática portuguesa aceitar as duas, ou uma,
ou outra? Aliás esta flutuação dos clíticos já existia por cá (sempre existiu?). Qual o risco dessa
variação? Qual o perigo que representa para a estrutura da língua?

E curiosamente o autor usa exemplos como “Nós podemos vestir-nos”. Segundo Venâncio o
português europeu pode apenas substitui-la por “Nós podemos-nos vestir”, mas um brasileiro
pode usar essas duas formas, mas também pode dizer “Nós podemos nos vestir” ou “Nós nos
podemos vestir” (Venâncio, 2021:124). E curiosamente o autor volta a defender uma forma de
subida do clítico, que a norma mais exigente não aceita e a rejeitar outras: apenas porque são
mais comuns do outro lado do oceano? Se queria ser rigoroso, pensamos que só poderia
aceitar “Nós podemos vestir-nos”.

Mas o autor concluiu, parecendo contrariar o que escrevera antes e o que escreverá mais à
frente: “é um milagre que a nossa sintaxe pouco se tenha visto afectada” (Venâncio, 2021:97)
As normas portuguesa e brasileira diferem naquilo que é essencial aos idiomas, a sua estrutura
sintáctica. E, nisto a norma portuguesa distingue-se pelo ser caracter restritivo, sendo-lhe interdito
um vasto tipo de construções correntes na norma brasileiro (Venâncio, 2021:124)

E a linha vermelha da sintaxe, em que o autor parecera tanto acreditar, parece afinal estar a
ser ultrapassada, e o autor cita vários artigos do Público e romances recentemente publicados
para o sustentar. E que vemos? Sempre os clíticos que não estão onde deveriam estar. Os
clíticos que passam a linha vermelha a salto para oi lado de lá.
Devagar., devagarinho, uma sintaxe brasileira vai-se-nos tornando natural. Pelo menos, começou já
a desafiar as nossas resistências. (Venâncio, 2021:125)

Ainda que, como o próprio autor conclui, muitos dos casos de posicionamento errado dos
clíticos, quer do lado brasileiro quer do lado do PE se devam a hipercorrecção. Brasileiros e
portugueses, tendo a crença de que a próclise está errada, corrigem, sobretudo ao escrever e
falham redondamente o alvo, como, por exemplo, escrevendo “Quem foi Camões e o que de si
revelou-nos em sua poesia”.

O último capitulo do livro chama-se “E o Futuro?” E aí parece regressar um pouco de


optimismo:
Há um factor decisivo, a que chamaríamos “memória linguística que porá eficaz cobro à adopção do
produto brasileiro. (Venâncio, 2021:125)

E argumenta, para reforçar a sua convicção nessa tal memória linguística, como se de um
negócio se tratasse, com ganhos das duas partes, mas demasiado desvantajoso para nós:
Alem disso, e não o percamos de vista, não existe uma contrapartida brasileira, como seria a
adopção de um ou outro “portuguesismo” (Venâncio, 2021:125)

E percebemos que é um optimismo muito moderado na capacidade de resistência do PE, e


claramente associado a um completo pessimismo no futuro de uma língua só com duas
variedades
Todos os factores de afastamento das duas normas permanecem intocados e em plena acção. A
diferenciação do português brasileiro e português europeu, que já se veio desenhando ao longo de
séculos, prosseguirá lenta, mas irreversível. (Venâncio, 2021:131-132)

22
É de prever que a sensação de estranheza vá aumentando e, quem sabe, surgirá, mais década menos
década, um período de aberto conflito, de que hoje não imaginamos a exacta forma. Esse conflito
resultará na inelutável consciência de que a ruptura já está aí, diante dos olhos de todos. (Venâncio,
2021:133)

Teremos, portanto, segundo o autor, de nos preparar para um cenário de rompimento, de


divórcio, um cenário de duas línguas que tiveram um passado lindo…

Antes de concluir esta secção organizada a partir do livro O Português à Descoberta do


Brasileiro, não resistimos a fazer aqui uma espécie de nota, já que o seu assunto extravasa de
alguma forma o tema deste nosso ensaio. Mas, sentimos necessidade de referir a forma como
autor se refere aos crioulos num capítulo que designa como “O Português dos Outros”. Tudo
parte da intenção de criticar David Mourão-Ferreira por reconhecido poeta, no seu livro Magia
Palavra Corpo - Perspectiva da Cultura de Língua Portuguesa, ver com bons olhos a “mútua
fecundação das variantes da nossa língua”, defendendo uma “crescente e saborosa
mestiçagem”. Para Venâncio esta é “uma concepção pasmosa e não despida de perigo” que
“será o princípio do fim”. (Venâncio, 2021:89). Aparentemente David Mourão-Ferreira, ao
defender um tal futuro linguístico – não lemos o seu livro – usaria a terminologia “crioulização”
do português europeu. Venâncio aproveita a deixa e escreve:
Um crioulo é um produto estável da radical simplificação duma língua, dispensando-se nisso até de
idioma estranho. Assim a língua cabo-verdiana foi um crioulo do português. Assim foi também o
galego-português primitivo um crioulo do latim vulgar. (Venâncio, 2021:90)

E na ânsia de criticar, porventura com razão, a utopia do escritor Mourão-Ferreira, comete o


erro de chamar crioulo ao que nunca o foi, o galego-português, e de definir de uma forma no
mínimo ligeira o “crioulo”, pois um crioulos não é uma simplificação radical da língua dos
colonizadores, mas uma nova língua, construída com o léxico dos colonizadores, mas com uma
gramática inteiramente nova. A origem dessa gramática é aliás tema de debate entre os
crioulistas, pois, se alguns defendem a influência de possíveis línguas africanas, outros, se
calhar com mais razão, descobrem algo a que chamam uma “gramática universal”.
Um facto notável intriga os que se dedicam ao estudo das línguas crioulas: assemelham-se. Não do
modo como se esperaria – que as suas gramáticas se assemelhassem às das línguas europeias – mas
justamente o contrário. Todas elas têm gramáticas semelhantes, muito diferentes das europeias…. O
problema deu azo a toda uma literatura e a muitas disputas académicas. (Janson, 2018:220)

A verdade é que há duas formas de criar uma nova língua: 1. a dialectização, como aconteceu
com todas as línguas românicas, que adoptaram o léxico e a gramática do latim, mas sofreram
uma variação lenta ao longo dos séculos, devido a múltiplos factores, nomeadamente a
influência das línguas-substrato; 2. A crioulização, em que uma comunidade adopta o léxico
dos colonizadores e constrói uma nova língua com uma gramática inteiramente nova. Ao
contraio da dialectização, o processo de criação da língua é muito rápido e essa é mais uma
característica que atrai os crioulistas que vêem nos crioulos um laboratório vivo de linguística:
“Se a situação exige uma nova língua, essa língua será criada” (Janson, 2018: 222)

Concluindo, o livro é bem escrito, como seria de esperar, mas o tom dominante da escrita é
um tom lamentoso, tendo como pano de fundo a recente influência do PB sobre o PE. E essa
influência crescente é tida pelo autor como abusiva, por acontecer sem um equilíbrio justo nos
dois pratos da balança. Muitos brasileirismos em troca de nenhum portuguesismo, contesta.
Esse tom lamentoso adquire aqui e ali, mesmo, um cunho algo dramático, e o autor alerta para
os perigos eminentes; e se não anuncia o fim, anuncia pelo menos a ruptura futura entre o PE

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e o PB. No entanto, grande parte dos riscos enunciados pelo autor, nomeadamente para a
sintaxe – “É na sintaxe que, porém, bate o ponto, é nela que a medição de forças se há-de
operar” – não foram capazes de nos convencer, como fomos justificando ao longo deste
capítulo, que acompanha o desenvolvimento dos capítulos do livro.

Um outro aspecto a ter em conta é que o livro de Fernando Venâncio sobre a relação entre o
PE e o PB é muitas vezes repetitivo, nos argumentos e nos exemplos, que enuncia uma e outra
vez – talvez por ter sido construído, juntando artigos escritos ao longo do tempo – e, por isso,
é talvez, também, pouco claro, parecendo hesitar entre os males encarnados na ‘Infiltração’,
'contágio, 'desestabilização, 'desvirtuamento', trazidos pelo português brasileiro, e a pujança
da nossa língua para aguentar e integrar todas as inovações que vêm de fora, renovando-se e
fortalecendo-se.

3. 2 As Variedades do Português no Brasil por Emilio Gozze Pagotto

Regressamos nesta secção ao PB. O artigo de Pagotto na revista Línguas do Brasil pretende
sintetizar o estádio evolutivo do estudo linguístico do PB. E ressaltamos o “s” de plural em
“Línguas do Brasil”.
Nas duas últimas décadas tem sido feito um grande esforço descritivo e interpretativo a respeito da
constituição do português do Brasil, podendo destacar-se três grandes linhas de trabalho:

A. A estrutura gramatical do português do Brasil


B. Os processos de variação no âmbito das cidades e dos territórios
C. Os processos históricos de constituição do português do Brasil e seus dialetos
(PAGOTTO, 2015:32)

Estamos no cerne da grande questão que nos move aqui. Identificar o tal brasileiro-padrão.

O autor apresenta de seguida alguns processos linguísticos relevantes que na sua opinião
“expressam a diferença entre Portugal e Brasil”
Gostaria de destacar alguns lugares na estrutura da língua, bastante permeáveis à variação. São lugares que
não só expressam a diferença entre Portugal e Brasil, como também definem no Brasil diferenças regionais e
sociais. (PAGOTTO, 2015:32)

O linguista brasileiro começa pela fonologia. Aceita existirem seis indicadores fonológicos.
Segundo Mateus et alii (1983) teríamos seis indicadores fonológicos que diferenciariam o português brasileiro do
português de Portugal. Desses, destaco quatro: a realização das vogais pré-tônicas; a realização de /t/, /d/
diante de [i]; a realização de /s/ em final de sílaba; a realização de /l/ em final de sílaba. O fato interessante é
que esses mesmos ambientes diferenciam no Brasil regiões dialetais diferentes, ainda não muito bem
demarcadas. (PAGOTTO, 2015:32)

No entanto, o autor começa logo por reconhecer que esses poderão ser porventura
indicadores de variação interna dentro do próprio território do Brasil, ou seja, ficamos na
dúvida se serão realmente indicadores diferenciadores entre o PE e o PB. É por isso
particularmente importante a forma de tratamento das vogais átonas, que de uma forma clara
plasmam a diferença e permitem inclusive demarcar no Brasil duas regiões dialectais.
Enquanto no português de Portugal há uma tendência muito forte para a redução das vogais pré-
tônicas (talvez a grande marca identificadora do sotaque português para um brasileiro), no Brasil,
elas são pronunciadas claramente, não se percebendo, até onde se sabe, nenhuma tendência de que

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caminharemos na mesma direção de Portugal. Ao mesmo tempo, é nas vogais pré-tônicas que se
encontra o grande traço apontado por Antenor Nascentes como definidor das duas grandes regiões
dialetais do Brasil: o norte e o sul. No norte, elas tenderiam a serem abertas. A linha divisória estaria
entre o Espírito Santo e a Bahia, indo, para o oeste até Cuiabá (2). Além disso, as vogais pré-tônicas
sofrem também um processo conhecido como o de elevação da vogal (grosso modo, /e/ -> [i] ; /o/ ->
[u]) altamente variável em todo o país, com matizes sociais os mais diversos. (PAGOTTO, 2015: 32)

Quanto à morfologia e à sintaxe, surpreendentemente, o autor pouco diz:


São muitos os lugares da estrutura morfossintática que estão em variação no Brasil e que nos
diferenciam dos dialetos portugueses. A morfologia verbal, especialmente a flexão de número e
pessoa e a morfologia pronominal – aqui se destacando os pronomes pessoais – são palco de
grandes processos de variação e mudança (em termos de dialetação brasileira, destaca-se o emprego
dos pronomes tu e você como tratamento íntimo que diferencia grandes áreas linguísticas no Brasil)
(3) . Associadas a esses lugares, a sintaxe no Brasil experimenta também muitos processos de
variação e mudança, com especial destaque para os fenômenos de ordem e a representação
pronominal do sujeito e do objeto. (PAGOTTO, 2015: 32)

Sem dar pormenores apercebemo-nos de estar a falar de situações, que também Venâncio
referira, nomeadamente a fluidez das formas pronominais o/a/os/as e lhe/lhes, a fluidez entre
tu e você, a localização dos clíticos, referindo ainda a fluidez na flexão numeral, mas mais uma
vez se nos levanta a questão de serem características do PB ou de algumas regiões ou até
classes sociais do Brasil, estando ainda por clarificar quais a Gramática Brasileira aceita e quais
são considerados erros.
O resultado desta grande mescla [linguística] do século XX ainda está por se conhecer, mas
seguramente é um dos grandes responsáveis pelo alto grau de variação que as pesquisas têm
mostrado. Ao mesmo tempo, a universalização da escola, ainda em vias de alcançar completamente,
tem colocado mais e mais falantes em contato com as formas mais eruditas da língua. Isso tem
produzido uma grande tensão de cunho normativista cujo resultado ainda não se pode prever…
Vivemos um momento de inflexão normativa, já que mais e mais pessoas de estratos mais populares
têm alcançado os cursos superiores, onde a demanda pelas formas normativas é maior. Porém o
peso das diferenças é muito grande, o que tensiona o falante, de um lado, e a língua, de outro. É
cada vez mais difícil manter como norma aquela recomendada pelos gramáticos; (PAGOTTO, 2015:
32)

“Difícil manter a norma recomendada pelos gramáticos” escreve Pagotto, referindo-se com
certeza à NURC11, que poderia ser considerada como uma pretensa norma de língua-padrão do
Brasil. NURC a língua que ninguém no Brasil fala, diz-se.

E conclui o autor:
No caso do Brasil, tem havido um enorme esforço descritivo do português por aqui falado, sobretudo
nos grandes centros urbanos. Desse retrato emerge tanto um português que está irremediavelmente
separado do português de Portugal, quanto um português com alto grau de variação, em grande
parte provocada pelo contato entre dialetos populares fruto de contatos entre o português e outras
línguas, durante a formação do Brasil. (PAGOTTO, 2015: 33)

E ficamos sem saber se, para além das inúmeras inovações lexicais, que caracterizam qualquer
território onde a língua se estende, inovações materializadas em dicionários, há-os por

11
O estudo da Norma Urbana Culta, conhecido como NURC, é um projecto académico brasileiro,
iniciado na década de 1960, que tem como foco cinco capitais brasileiras: Recife, Salvador, São Paulo,
Rio de Janeiro e Porto Alegre O objetivo é reunir material sonoro que permita a análise da linguagem
oral culta do português brasileiro em seus diversos níveis (fonologia, morfologia, sintaxe, léxico e texto).

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exemplo em Portugal para Trás-os-Montes ou para o Alentejo, para além de divergências
fonéticas conhecidas e audíveis, ainda que algumas variando ao longo do território, se há
mudanças no plano morfológico e sintáctico, o reduto mais sólido da língua, como lhe chama
Venâncio, quais são as inovações e mudanças que as Gramáticas Brasileiras aceitem como
normativas e que difiram das do PE.

Para concluir notamos que um linguista brasileiro, que nos pretende elucidar acerca de uma
variedade do falar e do escrever brasileiros, o brasileiro-padrão, que se assume como tão
diferente do português europeu, escreve um artigo que em nada se diferencia do PE, se
exceptuarmos a célebre localização do clíticos, em que Pagotto realmente parece optar por
uma localização mais livre, por exemplo: “o português se transformou na língua de um
império” ou “o português vai se separando, mas curiosamente respeitando todos os casos que
o próprio PE aconselha a próclise, por exemplo “como se sabe” ou “ainda não se sabe”.

Há uma norma brasileira para a sintaxe. Se há, onde está?

3. 3 O Português Moçambicano por Perpétua Gonçalves

A única razão porque nos debruçamos aqui sobre o Português Moçambicano (PM) e não outro
português africano é apenas a de ser o PM a variedade de português africano (PA) que tem um
maior registo de informação e um maior trabalho realizado, nomeadamente por linguistas
moçambicanos. Utilizaremos como ponto de partida para a nossa reflexão um livro A Génese
do Português de Moçambique, de uma das linguistas moçambicanas de maior prestígio.

Perpétua Gonçalves dedica os dois primeiros capítulos da sua obra a caracterizar a situação
multilingue em Moçambique e a situação do português como Variedade Não Nativa (VNN),
herdeira da língua dos colonizadores e como tal durante muito tempo desvalorizada,
considerada como um português imperfeito, impuro, falada pelos colonizados.

No primeiro capítulo, a autora trata de uma forma genérica a génese de variedades não
nativas (VNNs) a partir das línguas coloniais.
Por emergirem em sociedades coloniais, fortemente marcadas por preconceitos socioculturais e
também raciais, as VNN terem sido vistas, durante muito tempo, como subprodutos das línguas
coloniais, i. e., como línguas imperfeitas "geradas pelas populações colonizadas, que pareciam
incapazes de aprender o padrão europeu na sua plenitude” (Gonçalves, 2010: 14)

Essa situação de diglossia social fez com que a própria comunidade africana rejeitasse durante
algum tempo as inovações introduzidas.
As inovações registadas em diversas componentes gramaticais (fónica, lexical, morfológica,
sintáctica, etc.) eram assim alvo de atitudes negativas, quer por parte dos falantes nativos do padrão
europeu, supostos representantes desse padrão, quer pelos próprios membros das comunidades em
que estas variedades emergiram.

… no que se refere aos falantes das VNN, verifica-se que estes oscilam, até hoje, entre atitudes de
rejeição de muitas das inovações que eles próprios criaram, e o reconhecimento e institucionalização
dessas inovações como parte das normas locais” (Gonçalves, 2010: 14-15)

E surge pela primeira vez no texto esta ideia de buscar/criar uma norma local, o tal PM-padrão.

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A autora informa-nos que investigação mais recente permitiu entender a nativação das VNNs
como um processo de adaptação a um novo contexto, “como o resultado de estratégias
cognitivas e comunicativas, eficientes” em vez de “resultarem de um processo incompleto de
aquisição” como se acreditava. Há por isso um processo em curso de valorização das VNNs.

Para os defensores das VNN, estas constituem sistemas independentes de pleno direito, e não
apenas colecções de 'erros' ou 'desvios' a partir de alguma variedade padrão. Mas “Só na
segunda metade do século XX ficou disponível argumentação teórica consistente, que tornou
possível uma investigação objectiva das VNN de línguas coloniais”.

Conclui a autora que:


A adopção de novos instrumentos conceptuais no estudo das VNN de línguas coloniais tornou possível
analisá-las de forma mais rigorosa e objectiva, pondo assim fim a um longo período de discriminação
negativa. (Gonçalves, 2010: 21)

É preciso ter em conta que o português funciona para a maioria dos falantes em Moçambique
ainda como L2 e a qualidade da aprendizagem depende da origem social dos falantes e do
contexto, rural ou urbano, em que é adquirido.
Nas grandes cidades, os falantes das classes média e alta têm acesso a um input relativamente rico e
variado, em contexto natural e instrucional, ao passo que/ no campo e nos pequenos centros
urbanos, as evidências sobre o português são consideravelmente mais limitadas, sendo fornecidas
quase exclusivamente em contexto instrucional. (Gonçalves, 2010: 20)

No segundo capítulo a autora faz uma muito importante e esclarecedora análise da história da
Língua Portuguesa em Moçambique. Disponibiliza dados que nos permitem compreender
como o número de falantes era tão reduzido em 1975, no ano da independência, e como foi o
processo depois da independência que realmente permitiu um crescimento muito grande dos
falantes de português, quer como L1, quer como L2.
num período de menos de vinte anos, a percentagem de falantes de português como LL aumentou
quase cinco vezes, e o número de falantes desta língua como L2 também registou um aumento
considerável. (Gonçalves, 2010: 33)

De facto, foi praticamente nula a difusão do português durante os primeiros quatro séculos de
colonização. Havia pouco interesse de Portugal nesta colónia, que servia de mero entreposto
comercial. Moçambique foi governado até 1752 a partir de Goa. A colonização maciça deste
território ocorre só em meados do século XX. E em meados dos anos 50, o número de falantes
africanos de português era residual. Só em 1930 foi adoptado o Acto Colonial que definia uma
política educativa. Essa política, naturalmente de índole colonial, proibia a aprendizagem de
outras línguas. Por tudo isso, a rede escolar foi muito tardia e muito residual em Moçambique,
durante toda a governação portuguesa.

Mas, realmente, Moçambique, se era, continua a ser um país multilingue com cerca de vinte
milhões de habitantes, onde para além do português, a língua oficial, são faladas mais de vinte
línguas bantu e outras. As mais faladas são o Macua e o Changana da família bantu.

E segundo a autora “a política linguística do pós-independência fez desenvolver uma maior


afectividade pela língua portuguesa” e aumentou o seu prestígio. Mas uma consequência do
processo de adopção do português como língua oficial, é uma diglossia inevitável, pois como
consequência da expansão dos domínios de uso da língua portuguesa, as línguas bantu ficam
cada vezais reservadas a domínios estreitos, nomeadamente a comunicação familiar, que já

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qualificam estas línguas como ”baixas”. Estaremos a assistir a uma glotofagia do bantu? A
autora refere-o, mas não avalia nem discute as consequências deste processo.

Na opinião da autora os poucos anos do processo de adopção do português dificulta o


trabalho dos linguistas. A colonização tardia de Moçambique fez com que na independência
não estivesse ainda estabilizada uma variedade nativizada. Para a autora, o PM encontra-se
ainda numa fase de "variância ainda não consolidada", tornando-se difícil estabelecer um
conjunto significativo de propriedades gramaticais partilhadas de forma estável pela
comunidade moçambicana.

Finalmente no terceiro capítulo do livro, Gonçalves apresenta os resultados de um estudo


sobre o Português Moçambicano (PM). A autora começa por nos dizer que as variedades do
PM
se distribuem ao longo de um continuum polilectal associado aos estratos sociais. As subvariedades
deste continuum distinguem-se não tanto pela presença ou ausência de um certo traço gramatical,
mas antes pela sua frequência. (Gonçalves, 2010: 39)

Tendo em conta esta afirmação da autora, não fica claro se essa presença de certo traço
gramatical corresponde realmente a verdadeiras inovações gramaticais consolidadas ou a
meros erros. Aliás a própria autora escreve:
todos os falantes cometem erros nestas áreas gramaticais, variando apenas a sua frequência em
função do grau de escolaridade, idade e profissão (Gonçalves, 2010: 39)

A autora esclarece ainda que no seu estudo, tomou como alvo a subvariedade educada, por
considerar que as propriedades e regras que a distinguem do PE padrão apresentam um
carácter mais estável.

E as nossas dúvidas acentuam-se quando a autora esclarece qual foi o corpo textual de que
partiu para as suas análises
A base empírica desta descrição gramatical é constituída por produções orais e escritas de jornalistas
e estudantes dos níveis pré-universitário e universitário. (GONÇALVES, 2010: 40)

Ficamos sem saber qual a representatividade desse corpo textual, nem como foi definida a sua
dimensão e composição. Tal desconhecimento, a par com outras situações pouco
transparentes, permitem-nos interrogarmo-nos sobre algumas das conclusões deste capítulo,
em que realmente os resultados “experimentais” da observação do PM no terreno nos são
apresentados.

A autora apresenta a seguir uma longa lista de variações, documentadas com base nos seus
registos, nos planos fonológico, lexical, sintáctico e morfo-sintáctico. Como o artigo está
disponível para quem o quiser consultar dispensamo-nos de repetir aqui cada uma dessas
“inovações”. Limitar-nos-emos a apontar o que nos chamou a atenção na lista de inovações
sintácticas e morfo-sintácticas, porque parecem poder ameaçar as fundações gramaticais do
português, “o reduto mais sólido da língua”, como escreveu Fernando Venâncio e nós
relembramos.

Aspectos sintácticos:

a) Transitivar verbos intransitivos no PE


[Ela] nasceu [dois filhos] na Suazilândia.
b) Tendência a realizar como SN complementos seleccionados por verbos agentivos

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c) Até há filhos que batem [os pais]
d) Tendência à realização como SN argumentos verbais que, em PE, têm a função de
complemento indirecto e são regidos pela preposição “a”.
Chegou na sala, entregou [o emissário] a carta.
e) A possibilidade de formar frases passivas, em casos excluídos pelo PE
Dois filhos foram nascidos na Suazilândia (ver a))
Até há pais que são batidos pelos filhos (ver b))
f) A tendência para associar algumas preposições (a e com) a papéis semânticos específicos. (
“a” usada tipicamente com argumentos [+ humano] com a função de complemento directo
em PE, que podem ser interpretados como beneficiário
Pode incentivar [aos criminosos] a cometerem um crime.
“com” com complementos de verbos que indicam <separação> que, em PE, são regidos
pela preposiçáo de ou em agentes da passiva
As jovens recém-casadas divorciam-se [com os seus esposos]
Eu era muito mimado [com os meus avós]
g) Uso da preposição “em” em complementos direccionais com verbos de movimento
Quando voltávamos [em casa], estávamos muito cansados.
h) Ocorrência das preposições “de” e “para” a anteceder orações completivas em verbos
declarativos (Acho de que, ordenou-me para que) (pág. 50)
Acho [de que ] esses alunos não conhecem
Ordenou-me [para que fizesse o documento]
i) Supressão ou inclusão de reflexivos
Ouvi um ruído e assustei.
Aquilo passou, não prolongou
Parecia troçar-se dele (parece ter caracter enfático)
j) Tendência para adoptar a ênclise em contextos em que há atractores de próclise
Tudo agradava-me mas não era feliz
k) Com formas verbais complexas formadas por um verbo auxiliar ou semiauxiliar finito e um
verbo principal numa forma não finita, torna-se difícil determinar se estão em ênclise ao
verbo auxiliar, ou se estão em próclise ao verbo principal.
O meu pai sempre vinha para ver-me
l) Tendência dominante é para a omissão do artigo definido em várias situações, por exemplo
com nomes próprios ou em quantificações universais
Há genocídio em Ruanda
Nunca conheceu meu namorado
m) Uso de relativas cortadoras, em que não é usada a preposição seleccionada pelo verbo.
Havia rapazes que nós não brincávamos com eles
Dados que nós dispomos
n) Nas frases complexas que contêm orações subordinadas comparativas e consecutivas há a
tendência a não realizar lexicalmente as palavras que exprimem quantidade ou grau de
intensidade
Verificámos que o custo de vida acentua-se nas zonas rurais que urbanas
Os polícias bateram-me que até hoje tenho marcas
o) No encaixe do discurso directo, observamos a presença da conjunçao “que” (por vezes “de
que”), como introdutor do discurso directo.
Afirmou [que] "nós estamos fartos de conflitos".
Só ouviam de que: "Ah, existe a ilha da Juventude!"

29
Aspectos morfo-sintácticos:

a) Uso do infinitivo flexionado em contextos excluídos em PE, nomeadamente em orações


completivas infinitivas, e com formas verbais complexas formadas por um verbo auxiliar e
um verbo principal no infinitivo
As pessoas preferem ganharem naquela hora mesmo
b) Uso da forma dativa do pronome pessoal lhe(s), em lugar da forma acusativa o(s)/a(s)
Levam a miúda para o quarto e vestem-lhe
c) Enfraquecimento do paradigma flexional do imperativo manifesta-se na tendência para
usar só formas do conjuntivo. Misturando o tu e o você
A sida mata. Previna-te!
d) tendência para neutralizar a oposição que regista em PE entre as formas de tratamento por
tu e você, que se caracteriza pela coocorrência deste último com pronomes pessoais da 2ª
pessoa.
Você há-de ter o teu lar.
e) Entre as construções em que não são respeitadas as regras de concordância verbal em
números, há casos que parecem ter tendência para estabilizar como parte da subvariedade
educada do PM, enquanto outros parecem resultar de falta de atenção dos falantes às suas
próprias produções linguísticas.
Estou certo de que haverão leis que vão defender as crianças clonadas
[A camada juvenil] não tinham preocupação com o seu futuro
f) Falta de atenção às regras de concordância verbal, em casos em que temos SN sujeito
complexo
[A coragem e a segurança social] não chega a exercer o seu devido papel
g) Na falta de concordância nominal sobressai a falta de concordância em género do nome
predicativo do sujeito com o sujeito, sobretudo quando este é um SN complexo
[As soluções para a resolução dos problemas] são vastos.

São duas listas longuíssima de “inovações”, mas para as quais lastimamos não ter verdadeira
evidência da sua normalização no PM. E o que a autora escreve faz-nos ainda mais duvidar.
Chamou-nos a atenção aquele “Penso eu de que” que tantas vezes ouvimos ser pronunciado
por falantes portugueses europeus e que muitas vezes, como se lembrarão, tem sido usado
para brincar com uma certa e conhecida pessoa, como consequência de um boneco criado
para o representar num programa de comédia chamado Contrainformação, apesar de a ele
nunca o ter ouvido usar tal construção sintáctica. Mas a pergunta que se poderia fazer é “Se
ouvimos tal construção sintáctica com alguma frequência por aqui, também poderemos dizer
que é uma inovação do PE? Iremos reivindicar a alteração da nossa gramática? Se não, porque
não?

A autora dedica o último capítulo do seu livro ao cerne da questão que nos interessa: a
demanda do PM-padrão. Segundo a autora a formação de padrões locais de VNN é um
processo longo e complexo, que parece estar ainda em curso. Esse processo teria três fases:
numa primeira fase observa-se a dependência da norma externa europeia, a segunda
caracteriza-se como uma fase de libertação da língua-mãe, há uma expansão da VNN, em que
ainda reina alguma confusão, e só na terceira e última fase se regista a estabilização de uma
norma local. A norma-local, a tal língua-padrão. Segundo a autora, na análise da formação da
variedade moçambicana do português, conclui-se que esta se encontra na segunda fase.
Afirma que, apesar da sua relativa instabilidade, são já numerosas e frequentei as inovações
relativamente ao padrão europeu. Esta conclusão parece pressupor a estabilidade das longas

30
listas de “inovações” que apresentou, apesar de não ser de todo claro qual a sua real
implementação no terreno, em qual terreno e, portanto, não ser de todo transparente se são
inovações ou meros erros, fruto de um processo de aprendizagem da língua deficiente.

Mas, segundo a autora, tendo em conta a dinâmica do processo de nativização do PM, e


concordando com outros autores, é já possível e até necessário reflectir sobre as linhas gerais
que poderão/deverão orientar a sua futura padronização.

Concluindo: Este texto de Perpétua Gonçalves parece ser exemplar para materializar a tal
demanda de uma língua-padrão, como se de um fetiche se tratasse. Os linguistas parecem ter
urgência em encontrar variações e “inovações” que garantam uma diferença e uma distância
do PE, como se o PM tivesse necessidade de se afirmar como uma língua independente.
Estamos de alguma forma a rever o filme do português no século XIV face ao galego. O PM é
muito jovem, o ensino do PM é ainda frágil e limitado. A própria autora apresenta indicadores
que mostram que o português como L1 cobre menos de 10% da população em Moçambique.
Neste quadro andar à procura de inovações sintácticas para as tornar “inovações” da língua
parece ser no mínimo arriscado.

4. Conclusões – Precisa uma língua de uma língua-padrão?

Figura 4 – Medir e marcar a Língua-Padrão

31
Tudo começou quando soubemos que havia diglossia oficial no português falado em Portugal.
Diglossia promovida pelo próprio ME. Tudo começou quando soubemos que o ME considerava
o falar de certas regiões de Portugal melhor do que o falar de outras regiões e que, por isso,
instruía os professores a ensinarem os seus alunos a falarem à moda da zona centro-
meridional, de onde provém esse famigerado português-padrão.

Soubemos e não sabíamos. Ignorâncias…

A história da língua portuguesa, que aqui evocámos, mostra bem que o conceito de língua-
padrão é meramente político e que qualquer modo de falar pode ser transformado facilmente
pelo poder numa língua-padrão e até numa nova língua. As recentes independências da
Eslováquia ou da Croácia foram, como seria de esperar, acompanhadas da invenção de novas
línguas, ou seja, mais do que inventar uma língua-padrão, temos nesses casos mesmo a criação
de línguas novas pelo novo poder. A língua era a mesma e passou a ser diferente no dia da
independência, e, como tal, a nova língua exige uma nova norma.

Há que começar por dizer que a língua portuguesa sobreviveu una, ao longo de séculos, sem
qualquer língua-padrão oficial.

Há no território nacional um continuum de variação dialectal, cuja origem histórica também é


facilmente explicável. Esse continuum prolonga-se inclusive para o outro lado da fronteira,
mesmo depois de 800 anos de separação e de distanciamento. Esse continuum dá à língua
portuguesa variedade e beleza. Compete aos linguistas acompanhar e documentar essa
variação no território, no tempo, nas classes sociais e nas situações do dia a dia. Essa variação
no PE materializa-se sobretudo na pronúncia e no léxico. Há, por isso, dicionários de vocábulos
e expressões do Minho ou de Trás-os-Montes. A sintaxe é o cerne do problema, “É na sintaxe
que, porém, bate o ponto, é nela que a medição de forças se há-de operar”, voltamos a citar
Venâncio. Mas, na sintaxe, o que observamos parece ser apenas a maior ou menor frequência
de certas construções sintácticas. Assim, por exemplo, é possível ainda ouvir o “vós” como
tratamento pessoal e os consequentes tempos de verbos em Trás-os-Montes ou nas Beiras,
tempos que, por vezes, já temos até dificuldade em enunciar, tal como é possível por exemplo
ouvir o mais-que-perfeito com o sentido do condicional: “se mais houvera mais se comera”.
Há, para além disso, a nível nacional mudanças sintáticas, certamente, lentas, como por
exemplo a menor utilização do futuro simples, substituído pelo futuro composto com o verbo
“ir”, ou a utilização mais rara do condicional simples, substituído pelo imperfeito, mas essas
mudanças parecem acontecer, mais uma vez, sem pôr em risco os fundamentos da nossa
Gramática. Outra coisa seria, por exemplo, uma tendência, que poderia existir, para substituir
os pronomes dativos lhe/lhes pelos nominativos, dizer por exemplo, “dei a ele um livro” em
vez de “dei-lhe um livro”.

Diríamos que devemos ser bastante permissivos no léxico, ainda que seja necessário garantir a
sua real entrada na comunicação oral e escrita para dicionalizar, mas ser bastante
conservadores na gramática, a que poderíamos chamar gramática-padrão, pois a modificação
da sintaxe deve ser ultra-cuidadosa, contrariando os erros, e aceitando-os só quando,
realmente, estiverem perfeitamente normalizados pela comunidade. É nesse jogo de forças
que cada língua encontra o seu caminho.

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Se a questão da língua-padrão e do seu ensino em Portugal é perturbante, na diglossia
dialectal que subentende, o mesmo se poderá dizer de uma espécie de demanda por línguas-
padrões, quer no Brasil, quer em África. A demanda por línguas com uma norma que as
diferencie e autonomize do PE. Aliás este movimento por uma língua-padrão no domínio
internacional parece ser contraditório, num plano de pura racionalidade, com a ideia de
escolher uma língua-padrão nacional. Realmente, se a língua-padrão de Lisboa-Coimbra serve
para o território nacional, apesar das diferenças em continuum observadas, porque não há-de
servir para o Brasil e para África. Os mesmos argumentos, cheios de boas intenções do ME,
para impor a língua-padrão nas escolas portuguesas seriam válidos para a impor no Brasil ou
em África. Porque também aí o PE e a língua-padrão portuguesa são prestigiantes. Aliás, o
português, quer de Emílio Pagotto, quer de Perpétua Gonçalves, parecem respeitar
absolutamente o padrão sintáctico do PE. Ou seja, não usam a tal norma nacional que tanto
valorizam. Lá saberão porquê.

Portanto, diríamos, uma vez mais, que compete também aos linguistas brasileiros e africanos
acompanhar e documentar a variação do seu português no território, no tempo, nas classes
sociais e nas situações do dia a dia. Esse trabalho há-de se materializar num ou mais
Dicionários e numa Gramática. E se nos dicionários há campo para grande liberalidade, como
escrevemos, ainda que haja necessidade de garantir a estabilidade dos novos vocábulos e
novas expressões, na gramática aconselha-se a tal prudência, garantindo que só mudanças
perfeitamente elaboradas e reconhecidas sejam incorporadas. E é sobretudo na(s)
gramática(s) que deveria haver uma coordenação efectiva entre todos os países falantes do
português, tentando fazer uma aproximação a cada afastamento ou divergência.

Não cremos, portanto, por tudo o que escrevemos, que a nossa língua beneficie com uma
língua-padrão a ensinar nas escolas. Parece-nos mesmo uma prática discriminatória.
Poderíamos escrever o mesmo para as variedades africanas ou brasileira do português. Cada
uma das variedades precisa sim de Dicionários e de Gramáticas, que unifiquem tanto quanto
possível o português de cada país, e se distanciem o menos possível das gramáticas dos outros
países de língua portuguesa.

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2018 Roteiro de História da Língua Portuguesa, UNESCO
Cardeira, Esperança
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2019 Assim Nasceu Uma Língua
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