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INTRODUÇÃO
No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as
trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas (1,1,2).
Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa: e separou
a luz e as trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas, noite; fez-se uma tarde e uma
manhã, primeiro dia (1.3,5).
Ao mesmo tempo que faz as coisas, Deus denomina-as. No universo mítico, dar
nome é criar. Até o quinto dia, o senhor vai criando lingüisticamente o mundo.
Dentro desta visão performativa da linguagem, é que nos propomos, num esforço de
síntese, a acompanhar a evolução do pensamento de Austin.
A Teoria dos Atos de Fala surgiu no interior da Filosofia da Linguagem, no início dos
anos sessenta, tendo sido, posteriormente apropriada pela Pragmática. Filósofos da
Escola Analítica de Oxford, tendo como pioneiro o inglês John Langshaw Austin
(1911-1960), seguido por John Searle e outros, entendiam a linguagem como uma
forma de ação ("todo dizer é um fazer"). Passaram, então, a refletir sobre os
diversos tipos de ações humanas que se realizam através da linguagem: os "atos de
fala", (em inglês, "Speech acts").
A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na
Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no
livro How to do Things with words. 0 título da obra resume claramente a idéia
principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também (e
sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Aos critérios que precisam ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja
bem-sucedido, Austin denominou "condições de felicidade”. As principais são:
. falante deve ter autoridade para executar o ato (como no exemplo do parágrafo
anterior);
Apesar disso, Austin não abandona, logo de início, a idéia de encontrar um critério
gramatical para definir os enunciados performativos, mas parece que acaba
encontrando mais problemas do que soluções. Um deles é a constatação de que
pode haver enunciados performativos sem nenhuma palavra relacionada ao ato que
executam. É o caso, por exemplo, de enunciados como Curva perigosa e Virei
amanhã, que podem equivaler, respectivamente, a Eu te advirto que a curva é
perigosa e Eu prometo que virei amanhã. É o caso também dos imperativos, como
Feche a porta, cuja performatividade pode ser explicitada em Eu ordeno que você
feche a porta.
Há, porém, uma diferença entre esses dois tipos de performativo: Eu ordeno que
você saia é uma frase que tem uma indicação muito precisa do ato que realiza: trata-
se de uma ordem e nada mais. Já Saia é vago ou ambíguo: pode ser uma ordem,
um pedido, um conselho etc.
Austin, então, postula que todo ato de fala é ao mesmo tempo locucionário,
ilocucionário e perlocucionário. Assim, quando se enuncia a frase Eu prometo que
estarei em casa hoje à noite, há o ato de enunciar cada elemento lingüístico que
compõe a frase. É o ato locucionário. Paralelamente, no momento em que se
enuncia essa frase, realiza-se o ato de promessa. É o ato ilocucionário: o ato que se
realiza na linguagem. Quando se enuncia essa frase, o resultado pode ser de
ameaça, de agrado ou de desagrado. Trata-se do ato perlocucionário: um ato que
não se realiza na linguagem, mas pela linguagem.
Searle chama a atenção ainda para o fato de que não há uma correspondência
biunívoca entre conteúdo proposicional e força ilocutória, dado que um mesmo
conteúdo proposicional pode exprimir diferentes valores ilocutórios. A proposição
João, estude bastante, por exemplo, pode ter força ilocutória de ordem, pedido,
conselho, etc.
. um ato de fala é indireto (ou derivado), quando realizado indiretamente, isto é, por
meio de formas lingüísticas típicas de outro tipo de ato. Nesse sentido, "dizer é fazer
uma coisa sob a aparência de outra" . Eis alguns exemplos:
.Você tem um cigarro? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa
frase não está perguntando se o alocutário tem ou não um cigarro, mas sim pedindo-
lhe que ceda um cigarro.
.Como está abafada esta sala! (pedido com aparência de constatação)
Normalmente, quem enuncia essa frase não está simplesmente fazendo uma
constatação sobre a temperatura no interior do recinto, mas sim pedindo que o
alocutário faça algo para amenizar o calor, como abrir as janelas, ligar o ventilador, o
ar-condicionado,etc.
.Você pode fechar a porta? (pedido com aparência de pergunta) Quem enuncia essa
frase não está perguntando sobre a (in)capacidade fisica do alocutário de fechar a
porta, mas sim pedindo-lhe que feche a porta. Seria estranho se o alocutário
pensasse que a pergunta é mera curiosidade e respondesse simplesmente sim ou
não.
Antes de concluir, cumpre salientar que a Teoria dos Atos de Fala trouxe para o foco
de atenção dos estudos lingüísticos os elementos do contexto (quem fala, com quem
se fala, para que se fala, onde se fala, o que se fala, etc.), os quais fornecem
importantes pistas para a compreensão dos enunciados. Essa proposta muito tem
influenciado e inspirado os estudos posteriores destinados a aprofundar as questões
que envolvem a análise dos diferentes tipos de discurso. Com efeito, os atos de fala
são, hoje, uma fonte inesgotável de trabalhos tanto na área da Pragmática, quanto
na área da Lingüística em geral, bem como em outras áreas de estudos lingüísticos.
Para muitos, a obra de Austin constituiu um verdadeiro marco divisor dos estudos
lingüísticos, inaugurando uma nova concepção de linguagem: uma concepção
performativa e pragmática de uso da linguagem, rompendo, assim, com uma longa
tradição de estudos lingüísticos, caracterizada por uma concepção meramente
descritiva da linguagem.