Você está na página 1de 5

Literatura medieval:

contexto e características
A Idade Média é um amplo período de cerca de mil anos. É já na
segunda metade da era medieval que assistimos, na Península
Ibérica, à fundação do reino de Portugal, no século xii. Nesta
época, surge associada à língua, o galego-português, uma
literatura com características bem definidas.

Os historiadores definem a Idade Média como o período que, grosso modo, se inicia
no século v e que termina no século xv, convencionalmente com a tomada
de Constantinopla pelo exército otomano em 1453. Nesta era, a Europa cristã
apresenta alguma homogeneidade na forma como se organiza política, social
e economicamente. Esta homogeneidade estende-se à mentalidade que vigorava
e que influenciava diferentes gentes e regiões.

Sociedade e mentalidade medievais


A sociedade medieval dos reinos europeus encontrava-se dividida em três grandes
ordens, embora cada uma delas formasse um grupo complexo e heterogéneo,
com diferenças e hierarquias no seu interior. Os três grandes grupos sociais eram
a nobreza, o clero e as camadas populares, o povo. O rei constituía a figura de topo
da monarquia.
Uma tal estrutura social era, em parte, condicionada pelo sistema socioeconómico
dominante: o sistema senhorial. Sendo a agricultura a base da economia medieval
A estrutura social e a economia e estando uma elevada percentagem da terra entregue à nobreza e ao clero, a vasta
medievais assentam na relação maioria da população trabalhava a terra para os que a possuíam. O sistema senhorial
de vassalagem entre
camponeses e os senhores
assentava em relações de vassalagem entre os senhores e os que deles dependiam, os
que possuem a terra. vassalos, que tinham de cumprir obrigações, entre as quais o pagamento das rendas rurais.
Além das terras senhoriais, existiam os concelhos, comunidades
populares radicadas numa dada área, a quem o rei concedera, através
de um foral, permissão para se organizarem administrativamente com
alguma autonomia e com direitos específicos. É na região sul que
proliferam os concelhos.
Nesta época, no entanto, nem toda a população do estrato popular
vivia da agricultura. Uma minoria dedicava-se ao comércio, ao artesanato
e, também, aos serviços. Esta minoria dará origem, ainda na Idade Média,
à burguesia, grupo social que ganha importância sobretudo a partir
do Renascimento.
Se o clero ocupava uma posição privilegiada na sociedade, tal se devia,
em grande parte, ao facto de a ideia de Deus e de a doutrina cristã terem
uma presença muito marcante na vida do homem medieval.
Esta religiosidade era de tal forma importante no percurso da
existência humana que se usa o termo teocentrismo, que significa,
etimologicamente, «Deus no centro» do universo, para caracterizar este
traço da mentalidade da Idade Média. A noção de pecado e a ideia de
que a vida terrena era um percurso transitório que antecedia a entrada no
mundo espiritual — paraíso ou inferno — estavam fortemente presentes
no quotidiano do indivíduo. O poder social, político e económico do clero
é, em grande medida, alicerçado nesta forma de ver o mundo
O inferno. Miniatura e na sobreposição do poder espiritual sobre o poder terreno.
de manuscrito do século xii.

106 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS  •  Português  •  10.o ano  •  Material fotocopiável  •  © Santillana

565039 095-132 U0 e U1.indd 106 12/03/15 20:03


Centros de cultura
O clero era o principal promotor de cultura na Idade Média. As mais importantes
instituições culturais eram os conventos e os mosteiros, onde o clero regular dinamizava
uma intensa atividade de pensamento teológico, tradução, ilustração e cópia
de manuscritos. Em Portugal, entre os mosteiros culturalmente mais produtivos
contavam-se os de Lorvão, de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça. Um outro centro de
cultura era a corte. Nas cortes régias ou senhoriais cultivavam-se as artes da poesia,
da música, do teatro, entre outras. A partir do reinado de D. Dinis, a universidade,
então fundada, começa a funcionar de forma embrionária e desponta como outro pólo
de conhecimento.
Há que frisar que, durante a Idade Média, a par de uma cultura erudita, que a escrita
conserva e difunde, existe uma cultura de cunho mais popular, em que a memória
coletiva e a oralidade se assumem como formas de preservar poesia, provérbios,
Era nos mosteiros medievais
contos, ensinamentos, música e histórias que o povo cria e transmite de geração que se encontrava a maioria
em geração. dos poucos livros que existiam.

A língua portuguesa
A língua portuguesa que hoje falamos tem como base o latim, que os Romanos
trouxeram para a Península Ibérica na fase da ocupação do território, a romanização.
No entanto, não foi o latim culto, a norma, que se implementou no nosso território,
mas uma versão falada, menos rígida e menos regulada, que era a usada entre
os colonos romanos, o chamado latim vulgar.
Essa variante do latim foi recebendo contributos e influências fonéticas (de sons),
lexicais (de palavras) e gramaticais das línguas faladas na Península Ibérica, como
o ibérico, o fenício, o grego ou os dialetos celtas. Com o fim da romanização, seriam
sobretudo as línguas germânicas, dos Suevos e Visigodos, e o árabe a dar contributos
importantes para a identidade da língua portuguesa, quando ela se autonomizou
do latim e das demais línguas românicas. A autonomização ter-se-á dado por volta
do século xii e é confirmada nos primeiros textos em língua portuguesa, que remontam
ao início do século xiii.
Se os historiadores recorrem ao termo galego-português para se referir à língua medieval
falada até ao século xv, é porque o idioma que hoje usamos teve origem neste sistema
linguístico, que se formou na área da Galiza e do Norte de Portugal, por altura da
fundação da nacionalidade. Outros denominam-no «português antigo». Certo é que
a língua falada nos séculos xi e xii já apresentava traços que a distinguiam dos dialetos
então falados nos territórios de Leão e Castela.

A literatura medieval
A produção literária em território português tem duas origens. Por um lado, encontramos
uma literatura culta, produzida na corte ou em mosteiros, de que fazem parte a poesia
trovadoresca, os textos historiográficos, que registam o passado da nação, e os textos
religiosos. Por outro, existe uma literatura de cariz popular que preserva, sobretudo
na oralidade, poemas e cantares do povo.
Saliente-se também que a literatura é marcada pela religiosidade da época.
Muitos são os textos de pendor cristão, imbuídos da intenção de ensinar a doutrina
e modelos de comportamento. Aliás, as literaturas religiosa e profana expandir-se-ão
lado a lado.
Por fim, há que destacar que a poesia e a prosa medievais refletem a hierarquia
que organizava a sociedade. Tal facto é visível em romances de cavalaria, em textos
lendários e, também, nas cantigas de amor, em que o enamorado se diz vassalo
da sua amada.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS  •  Português  •  10.o ano  •  Material fotocopiável  •  © Santillana 107

565039 095-132 U0 e U1.indd 107 12/03/15 20:03


Lírica galego-portuguesa
Entre os séculos xii e xiv, os autores líricos compõem poemas em
língua galego-portuguesa, que se destinavam a ser musicados
e cantados. É maioritariamente na faixa ocidental da Península
Ibérica (Portugal e Galiza) e em ambiente de corte que se
escrevem estas cantigas medievais.

Os poemas medievais galego-portugueses podem dividir-se em dois grandes grupos.


O primeiro é constituído por cantigas de assunto profano, ou seja, não religioso. Nestas
são abordados temas relacionados com o sentimento amoroso, nas cantigas de amigo
e nas cantigas de amor, ou assuntos de natureza satírica, nas cantigas de escárnio e de
maldizer. O segundo conjunto de composições poéticas, denominado Cantigas de Santa
Maria, versa temas religiosos. Trata-se de um grupo menor de poemas atribuído ao rei
Afonso X, de Castela e Leão.
Dos poemas de conteúdo profano sobreviveram até aos nossos dias aproximadamente
1680 cantigas da autoria de cerca de 160 autores. Também se dá a esta poesia
galego-portuguesa o nome de poesia trovadoresca porque os autores que a cultivavam
eram trovadores, poetas que na sua grande maioria pertenciam à nobreza. A interpretação
destas cantigas musicadas ficava a cargo de um jogral, que não era nobre. Alguns jograis
ousavam rivalizar com os fidalgos e faziam as suas próprias cantigas.

1. Poesia profana: géneros e temas


As composições galego-portuguesas de temática amorosa pertencem a dois géneros:
as cantigas de amigo e as cantigas de amor. A distinção é feita num breve tratado
de poesia medieval, a Arte de trovar, que chegou até nós fragmentado e incluído
no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
A distinção fundamental, mas não a única, entre estes dois tipos de cantigas de assunto
amoroso reside na pessoa que enuncia o discurso: o sujeito poético. As cantigas de amigo
caracterizam-se por o discurso ser enunciado por uma jovem não casada: isto é, quem
nelas se expressa é uma donzela. Apesar desta característica, existe um número mais
reduzido de cantigas de amigo em que a jovem não é a enunciadora do poema, mas
protagoniza a situação narrada. Nas cantigas de amor encontramos um homem a falar
sobre o seu sentimento.
Cantigas de amigo
As cantigas de amigo têm origem num tipo de poesia de estrutura simples que já era
cultivada na Península Ibérica, em língua moçárabe, antes da fundação do Reino
de Portugal. As denominadas carjas formam um género desta lírica da tradição oral
peninsular, em que o sujeito poético podia ser uma mulher.
Nas cantigas de amigo, uma donzela fala do seu amor em diferentes situações. Em alguns
poemas, é retratado o estado de espírito decorrente da paixão que vive e a rapariga
lamenta-se do sofrimento causado pelo seu amigo ou descreve a sua ansiedade, a sua
melancolia, o seu ciúme. Noutras cantigas, a jovem narra acontecimentos de natureza
sentimental, como um encontro com o seu amado, a espera impaciente pela chegada
deste, etc. As situações evocadas estão na base dos vários tipos existentes de cantigas de
amigo. Assim, distinguem-se subgéneros como: a pastorela, em que um cavaleiro encontra
uma pastora; a alba, que aborda a separação dos amantes ao amanhecer; a cantiga de
Senhor e jogral em ambiente romaria, cuja ação se passa num santuário ou numa peregrinação; a barcarola ou marinha,
de corte (Cancioneiro da Ajuda). que tem o mar como cenário; e o pranto, centrada no lamento amoroso da donzela.

108 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS  •  Português  •  10.o ano  •  Material fotocopiável  •  © Santillana

565039 095-132 U0 e U1.indd 108 12/03/15 20:04


Ao contrário do que acontece com as cantigas de amor, que ilustram situações do mundo
da corte, as de amigo retratam habitualmente cenas do ambiente rural ou doméstico,
associado ao povo ou à burguesia. No poema «— Digades, filha, mia filha velida», de Pêro
Meogo (página 42 do manual), a mãe questiona a filha sobre as razões da sua demora na
fonte, ao passo que em «Ondas do mar de Vigo», de Martim Codax (página 38 do manual
do aluno), a Natureza serve de confidente à donzela apaixonada. Vislumbram-se também
nestes poemas momentos da vida coletiva, como a romaria e o regresso dos guerreiros,
das tarefas domésticas e da relação entre mãe e filha. Por esse motivo, estas composições
literárias são igualmente interessantes documentos da vida medieval.
O facto de o discurso das cantigas de amigo estar a cargo de uma donzela do povo,
sem instrução, servirá para justificar a simplicidade destes poemas no que diz respeito
à linguagem usada, à situação apresentada e à sua organização estrófica. Nisto
contrastam com as cantigas de amor, que evidenciam uma maior complexidade. As
estrofes das cantigas de amigo são breves, com dois a quatro versos e refrão, e
apresentam, geralmente, mas não sempre, uma estrutura paralelística; ou seja,
apresentam uma repetição, com variantes, dos versos usados, das ideias expostas e da
linguagem. Além disso, o tipo de estrofe e o uso do refrão mantêm-se do início ao fim
da cantiga, como nos mostra o poema «Sedia-m’eu na ermida de San Simón»,
de Mendinho (página 26 do manual).
Cantigas de amor
As cantigas de amor caracterizam-se, em primeiro lugar, pelo facto
de o sujeito poético, o eu que fala no poema, ser um homem que nos
relata os seus sentimentos. Habitualmente, este enamorado dirige-se
à dama, que pode ser casada, e formula um pedido de amor ou, então,
lamenta-se por não ser correspondido. O ambiente privilegiado
das cantigas de amor é a corte, e tanto o apaixonado como a mulher
amada são fidalgos.
O sentimento amoroso que encontramos nestas cantigas, denominado
amor cortês, assume contornos muito peculiares. O amor cortês
é uma expressão convencional, não realmente sentida, da paixão,
e o sujeito poético representa os sentimentos e a relação entre ambos
no âmbito da vassalagem: a dama é a «senhor», a quem ele deve
submissão e obediência. Este protocolo reproduz a relação senhorial
que existia na sociedade.
A vassalagem amorosa implica regras que o amador tem de respeitar:
ele não pode revelar a identidade da amada, tem de manter o respeito,
a distância, deve demonstrar contenção (a «mesura») e só lhe é
permitido aproximar-se dela segundo regras definidas. Este amor
convencional não é correspondido, nunca se chega a consumar e
assume contornos espirituais e morais: a dama de alta estirpe,
inacessível, é também elogiada pela sua elevação moral. Assim, aquele
que ama sofre, ou simula sofrer, a dor do sentimento não retribuído, a
«coita de amor», que, nas suas palavras, o pode levar a morrer de amor
ou a perder o juízo (o «sen»).
O amor de um homem por
O carácter convencional deste tipo de poemas distingue-os bem do sentimentalismo uma dama era o tema destas
aparentemente espontâneo das cantigas de amigo. Em contraste com a origem cantigas.
peninsular destas, a cantiga de amor é influenciada pela poesia provençal da Idade Média.
A influência dessa poesia do Sudoeste de França traduz-se na maior complexidade das
cantigas de amor. Nestas, o eu poético apresenta um raciocínio ou uma argumentação
que desenvolve em três ou quatro estrofes de sete versos sem refrão, nas cantigas de
mestria, ou em estrofes de quatro ou cinco versos com um refrão de um a três versos, nas
cantigas de refrão. Um exemplo de cantiga de refrão é «Amigos, nom poss’eu negar», de
Joam Garcia de Guilhade. Curiosos são os poemas do tipo «descordo» ou desacordo, em
que se exprimem conflitos amorosos, e as tenções, cantigas em que dois trovadores
debatem uma questão amorosa.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS  •  Português  •  10.o ano  •  Material fotocopiável  •  © Santillana 109

565039 095-132 U0 e U1.indd 109 12/03/15 20:04


PARA SABER MAIS

D. Dinis
O rei D. Dinis, neto de Afonso X, revelou-se um dos poetas
mais importantes da lírica galego-portuguesa. Foi aquele
que deixou uma herança poética mais fecunda, tendo
em conta que se conhecem hoje 137 cantigas,
73 de amor e 51 de amigo, que são seguramente da sua
lavra. Além de muito produtivo, o rei trovador é o autor
de algumas das mais belas e emblemáticas cantigas
trovadorescas, como «— Ai flores, ai flores do verde pino»
(página 30 do manual), «Levantou-s’a velida» ou «Proençaes
soem mui bem trobar». acompanhava algumas das suas
cantigas.
A valorização que deu às artes e ao conhecimento
levou-o a desenvolver uma admirável política cultural,
que se traduziu na fundação da universidade portuguesa
D. Dinis. (1290), no patrocínio de uma historiografia nacional
e na tradução de obras jurídicas, científicas e históricas.
Empenhou-se também na dinamização literária e intelectual
da corte, convidando trovadores e homens de saber
a frequentá-la. Outra importante medida foi a promoção
da língua portuguesa, decretando que os documentos
oficiais da corte fossem escritos neste idioma e não em latim.

Cantigas de escárnio e de maldizer


Se os géneros anteriormente caracterizados são de temática amorosa, o terceiro género
profano é de assunto satírico. Assim, as cantigas de escárnio e de maldizer formulam uma
crítica aberta ou velada a alguém, normalmente do círculo da corte, denunciando uma
fraqueza moral, um aspeto criticável do seu comportamento ou, mesmo, um defeito
físico. Herdeiras do sirventês político provençal, as cantigas de escárnio distinguem-se
das de maldizer porque, nas primeiras, se satiriza alguém usando expressões com duplo
sentido, «palavras cubertas», não se revelando, muitas vezes, a identidade da pessoa
visada, ao passo que, nas segundas, se troça de alguém abertamente e de forma
inequívoca, podendo o poema indicar o nome do visado.
Nestas composições, denuncia-se a traição de alguns nobres, a homossexualidade de um
fidalgo da corte, o artificialismo da coita de amor, a incompetência dos médicos, a falta
de talento de certos jograis, a fealdade de algumas damas da corte, entre outros aspetos
sociais. Dos dois últimos tópicos, são exemplo as cantigas de maldizer «Foi um dia Lopo
jograr», de Martim Soares (página 57 do manual), e «Ai, dona fea, foste-vos queixar»,
de Joam Garcia de Guilhade (página 54 do manual).

EVITE O ERRO

Diferença entre poeta e sujeito poético


Não devemos confundir a figura do poeta, por exemplo
D. Dinis, Camões ou Fernando Pessoa, com a voz que se
expressa no poema. Trata-se de entidades diferentes. Por
exemplo, no poema «—Ai flores, ai flores do verde pino»,
D. Dinis é o poeta mas a voz que fala é a de uma donzela.
Assim, chamamos sujeito poético ou eu lírico à figura que
enuncia um poema. Não devemos, pois, afirmar sobre
o referido poema ser o poeta, D. Dinis, a desejar ter notícias
do seu «amigo».

110 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS  •  Português  •  10.o ano  •  Material fotocopiável  •  © Santillana

565039 095-132 U0 e U1.indd 110 12/03/15 20:04

Você também pode gostar