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1Outra versão deste texto foi publicada na revista Línguas e Instrumentos Linguísticos, nº 19,
2007. Há entre as versões diferenças que vale a pena tomar em conta.
imaginária da língua que falamos, representação que produz uma língua
normatizada, una, estabilizada, inexistente, idealizada, mas que é um
instrumento importante na reflexão do linguista. E a língua fluida, esta que nos
atrai, nos desafia em sua compreensão, já que não tem limites, não tem regras,
é movimento contínuo, inapreensível como tal. É a normatização dessa língua
que nos leva à necessidade de desembarcar, classificar, nomear distintos
estados de língua: língua materna, língua nacional, língua oficial. E aí podemos
nomear “nossa” língua de colonização, a língua portuguesa. Mas não estacionei
aí. (ORLANDI, 2009, p. 212).
Em um trabalho que muito me agrada – Terra à vista (1990) – procurei
compreender as formas e os meios do processo de colonização e considerei
então o que chamei de acontecimento linguístico da colonização. Em seguida,
passei a produzir uma reflexão que mostrasse a especificidade tanto da história
como da própria forma de nossa língua, língua nacional, a língua brasileira.
(ORLANDI, 2009, p. 212, grifo da autora).
Em um texto que tem por título justamente “A língua brasileira” (1993),
descrevo três passos que constituem a passagem para um processo que
denomino de historicização da língua da colonização. São três movimentos
enunciativos: em um primeiro momento temos um investimento na relação
palavra-coisa, sendo que a questão incide sobre o referente: na presença de um
nome, estamos diante da mesma coisa (no Brasil e em Portugal)? A partir de sua
memória, o português colonizador reconhece as coisas, os seres, os
acontecimentos, e os nomeia. É a situação enunciativa I. Como estamos no
Brasil, esse “transporte” produzido pela memória força contornos enunciativos
diferenciados. Essa diferença se torna cada vez mais uma diferença de língua –
relação palavra-palavra – e não palavra-coisa. Daí resulta todo um trabalho
sobre a língua: de classificação, de organização, de definições em dicionários.
O português, assim transportado, acaba por estabelecer em seu sítio próprio de
enunciação outras relações palavra-coisa, cuja ambivalência pode ser lida (no
Brasil /em Portugal). Tem início, então, a produção de um espaço de
interpretação com deslizamentos, efeitos metafóricos que historiciza a língua.
Produzem-se transferências, deslocamentos de memória, pois estamos diante
de materialidades discursivas que produzem efeitos de sentidos diferentes.
Configura-se assim uma situação enunciativa II. De novo, em um movimento de
saber paralelo ao anterior, a construção discursiva do referente cede lugar à
distinção, à classificação. A língua praticada aqui realiza, então, deste lado do
Atlântico, a relação unidade-variedade: a unidade agora não se refere mais ao
português do Brasil e ao de Portugal, mas a sua unidade e às variedades
existentes no Brasil. Há um giro no regime da universalidade da língua
portuguesa que passa a ter sua referência no Brasil. A isso que denominamos
historicização da língua. Nessas condições, a variação não tem com referência
Portugal, porém a diversidade concreta produzida neste território, que é o Brasil,
na convivência de povos de línguas diferentes (a indígena, a africana, a de
imigração etc.) aqui. (ORLANDI, 2009, p. 212-213, grifo da autora).
Esse fato da historicização da língua concorre para o que trataremos aqui
como processo de descolonização linguística, que pode ser definido como esse
imaginário no qual se dá também um acontecimento linguístico, desta vez
sustentado no fato de que a língua faz sentido em relação a sujeitos não mais
submetidos a um poder que impõe uma língua sobre sujeitos de uma outra
sociedade, de um outro Estado, de uma outra nação. Se, na colonização, o lugar
de memória pelo qual se significa a língua e seus falantes é Portugal, no
processo de descolonização essa posição se inverte, e o lugar de significação é
deste lado do Atlântico, com sua memória local. A descolonização, assim como
a colonização, tem a ver com o modo como as sociedades se estruturam
politicamente em relação aos países, aos Estados, às nações, às tribos. Isto é,
tanto a colonização como a descolonização aos fatos da relação ente a unidade
necessária e a diversidade concreta em um mesmo território. Relação da língua
fluida e da língua imaginária. (ORLANDI, 2009, p. 213-214, grifo da autora).
Se assim é, em nosso caso, de colonização portuguesa (e aqui me refiro
aos vários países de colonização portuguesa), assim como há o processo de
colonização, há o de descolonização (E. Orlandi, 2001), com suas condições
que, embora diversas, marcam este acontecimento linguístico – o da
historicização de sua língua de acordo com suas condições e as condições em
que funciona sua memória linguística. Assim, pensamos que, em consequência,
também a noção de lusofonia deve ser redefinida. (ORLANDI, 2009, p. 214).
Falaremos de uma representação da colonização portuguesa no Brasil e,
em seguida, das condições de descolonização linguística e das que marcam um
deslocamento da noção de lusofonia. Nesta variação de línguas sem um centro
que organize. Falaremos de um processo específico de descolonização
linguística, que a gramatização das línguas submetidas ao processo de
colonização. A gramatização, ou melhor, a endogramatização (Auroux, 1994)
torna visível a historicização da língua e pode ser considerada como um
instrumento no processo de descolonização, pois ter uma gramática que é sua
(feita por brasileiros e para brasileiros) pode ser um documento de “identidade”
linguística. (ORLANDI, 2009, p. 214).
O gramático e o linguista
Referências bibliográficas
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2000.
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UNICAMP, 1994.
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1990.
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