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Conflitos africanos

Alessandra de Fatima Alves


CONFLITOS AFRICANOS
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”
(Nelson Mandela)

“A liberdade de um homem é o jugo de outro.”


(provérbio africano de Benim)

Uma breve história da África pré-colonial: aspectos físicos, povos e cultura


A África, embora tenha uma população reduzida com quase 1 bilhão de habitantes (14% da população
mundial), ocupa 20% da superfície terrestre, constituindo um dos continentes mais extensos. Essa massa de terra
está posicionada no “centro do mundo”, considerando os atuais centros civilizatórios e os fluxos e conexões exis-
tentes entre eles. O continente africano possui 54 Estados independentes, o que representa 27% dos membros das
Organização das Nações Unidas. Da mesma forma, eles constituem um terço dos Estados-membros do Movimento
dos Países Não Alinhados.

Jovens residentes de Ondjiva, província do Cunene (sul de Angola), defendendo o uso de trajes africanos.

É enganosa a ideia de que o continente africano evoluiu isolado dos grandes fluxos internacionais. Desde
o início dos tempos históricos, a metade norte e leste do continente manteve contatos regulares com a Ásia e a
Europa. Por essa razão, qualquer estudo que deseje colocar o continente numa perspectiva global deve iniciar pelo
conhecimento e pela análise da dimensão pré-colonial e fazer estruturas profundas da história do continente. Da
mesma forma, conhecer sua configuração geográfica é indispensável, especialmente a partir da formação de um
sistema mundial calcado nos fluxos comerciais dos grandes espaços oceânicos, a partir do século XV.
É errônea a percepção de uma África cristalizada em dezenas de povos e centenas de “tribos”, com suas
estruturas específicas consolidadas. O quadro é mais o de um intenso deslocamento, interação, fusões e o sur-
gimento de novas entidades. Da ocupação de espaços e seus conflitos, do desenvolvimento de novas formas de
produzir e das conexões com outros povos africanos e extracontinentais foi emergindo uma espécie de sistemas de
“relações internacionais”, que terá uma dinâmica apenas parcialmente determinada pelos estrangeiros e que não
desaparecerá por completo, mesmo com a ocupação europeia.
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O continente africano está separado da Europa pelo mar Mediterrâneo e da Ásia pelo mar Vermelho, mas
liga-se a ela por meio de sua extremidade nordeste, o istmo de Suez. A principal subdivisão da África se refere às
duas regiões que ficam ao norte e ao sul do Saara – África subsaariana ou África negra, e ao norte da África, ou
Magreb (Ocidente, em árabe). Sendo o terceiro maior continente da Terra, a África ocupa, juntamente com as ilhas
adjacentes, uma superfície de 30 milhões de km2, mais de 20% do total das massas terrestres, formando um espaço
compacto. Com exceção dos montes Atlas, no norte, do maciço etíope e do Drakensberg sul-africano, o território
africano é um planalto vasto e ondulado, marcado por quatro grandes bacias hidrográficas: do Nilo, do Níger, do
Congo e do Zambeze.
A África pode ser dividida geograficamente em três regiões distintas: o planalto setentrional, os planaltos
central e meridional e as montanhas do leste. Em geral, a altitude do continente aumenta de noroeste para sudeste.
A característica peculiar do planalto setentrional é o Saara, que se estende por mais de um quarto do território afri-
cano. As faixas litorâneas baixas, com exceção da costa mediterrânea e da costa da Guiné, são estreitas e elevam-se
bruscamente em direção ao planalto. O litoral se caracteriza por dimensões contínuas, quase sem reentrâncias e
portos de águas profundas e com plataforma continental muito exígua, o que limita as possibilidades de pesca e
jazidas de petróleo off-shore. Por fim, os rios, em sua maioria, não são navegáveis a grandes embarcações, devido
a um grande número de corredeiras, dificultando o acesso ao interior do continente. Outra característica peculiar
é que boa parte dos rios africanos tem drenagem endorreica, ou seja, correm para o interior do continente, não
atingindo o mar.

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A África é riquíssima em recursos minerais, possuindo em seu subsolo a maioria dos minerais conhecidos,
sobretudo os mais raros e valiosos, muitos deles em quantidade e qualidade notáveis. Sua principal atividade eco-
nômica é a mineração, principalmente nas grandes jazidas de carvão, reservas de petróleo e gás natural, bem como
as maiores reservas de ouro do mundo, diamantes, bauxita, cobre, manganês, níquel, germânio, lítio, fosfato, rádio
e titânio. Os principais países produtores desses minérios são a República Democrática do Congo, a África do Sul e
a Namíbia, que juntos representam aproximadamente 98% da produção mundial de diamantes.
A profunda contradição do continente africano fica explícita numa comparação referente à energia, pois há
aproximadamente 66 bilhões de barris de petróleo apenas ao sul do Saara e inúmeras jazidas de gás natural, entre-
tanto, a maior parte da energia consumida na África provém da lenha (90%). A segunda atividade econômica mais
importante no continente é a agricultura, praticada de três formas específicas: de subsistência, em sistemas de rota-
ção de terras, desenvolvida por nativos nas áreas de floresta e savana; permanente, realizada por povos berberes no
Marrocos, felás no Egito e alguns povos negros da África ocidental e da meridional; e plantation, cultivo de produtos
tropicais em grande escala, direcionada para exportação. Dentre esses produtos agrícolas exportados encontram-se o
café, o cacau, a borracha, a cana-de-açúcar, o algodão, o amendoim e o azeite de dendê.

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A pecuária é pouco praticada nas áreas equa- (derivado do holandês), pertencente à família das lín-
toriais e tropicais, mas, na zona norte africana (Egito, guas indo-europeias, assim como a maioria das línguas
Líbia, Marrocos, Argélia e Tunísia), há grandes criações crioulas da África. Além disso, a maior parte dos países
de camelos, ovinos e caprinos. O nível de industrializa- africanos adotou, pelo menos como uma de suas lín-
ção africana é baixo, existindo, no entanto, no norte do guas oficiais, uma língua europeia (português, francês
continente, indústrias relativamente bem desenvolvidas, e inglês nas respectivas ex-colônias), sendo que essas
especialmente no Egito (alimentícia, petrolífera, têxtil línguas são geralmente faladas pela população urbana
e siderúrgica) e na Argélia (óleos vegetais e máquinas desses países e, particularmente, por todas as pessoas
agrícolas). No sul africano, também há industrialização com uma escolaridade significativa. As línguas alemã,
média no Zimbábue (alimentícia e de energia) e na Áfri- italiana e espanhola são ainda faladas por minorias na
ca do Sul (têxtil, alimentícia, química, siderúrgica, meta- Namíbia, Camarões, Eritreia, Líbia, Somália, Marrocos e
lúrgica e de equipamentos de transporte). Guiné Equatorial.
Atualmente, vive no continente africano quase Muitas foram as tentativas de classificar os gru-
1 bilhão de pessoas, com densidade demográfica de 30 pos étnicos na África, seja pela cor da pele, pela iden-
habitantes por km2. A população urbana é de, aproxi- tidade linguística ou pelas características culturais. Uma
madamente, 40%, ao passo que a rural é de 60%. O das primeiras tentativas nessa direção foi a de definir os
continente está dividido em cerca de 800 grupos ét- habitantes do norte da África como caucasoides e os ha-
nicos, cada qual com sua própria língua e cultura. A bitantes, ao sul do Saara, como negroides. Entre esses
distribuição populacional da África é muito irregular: as dois grupos podem ser encontradas variações e, além dis-
regiões desérticas são quase desabitadas; em compen- so, entre todos esses povos houve cruzamentos, de forma
sação, nas regiões às margens do rio Nilo, nos vales do que múltiplos graus de mestiçagem ocorreram e ainda
Marrocos, na Tunísia, na Nigéria, na área urbano-indus- são esperados. Originalmente, também as fronteiras geo-
trial da África do Sul e na região dos grandes lagos, a gráficas não eram tão rigorosas como atualmente.
densidade é bastante elevada. Ruanda e Burundi, por A África pré-colonial era dividida em grandes rei-
exemplo, destacam-se por estarem entre as mais altas nos ou impérios, que funcionavam com uma organiza-
densidades demográficas do mundo. ção política e socioeconômica assentada em estruturas
específicas, cujo núcleo de base é a família estendida.
A sociedade africana tradicional era dividida em várias
categorias sociais ou castas, que exerciam de forma ex-
clusiva uma função ou uma atividade socioeconômica
específica. Essa organização social, apesar de suas ca-
racterísticas complexas, tanto dos pontos de vista po-
lítico e cultural, quanto do ponto de vista econômico,
teve um papel fundamental nas relações internacionais
da época.
Outro ponto importante se refere à questão
da posse da terra. Na Idade Média, o sistema feudal
Obá Ovonramwen, de Benin, e sua família derivava da posse da terra, frustrando os habitantes,
teoricamente protegidos pelo Estado, e resultando na
Na África, são faladas mais de mil línguas dife- formação de uma nobreza na Europa e em outras partes
rentes, que são divididas em quatro famílias: as afro- do mundo. Já na África negra, nem o rei ou qualquer
-asiáticas, as khoisan, as nígero-congolesas e as nilo- outro senhor tinha o sentimento pela da posse da terra,
-saarianas. Além do árabe, as mais faladas são o suaíle ou seja, a consciência do poder político derivava princi-
e o hauçá. Há também várias línguas que pertencem palmente de concepções religiosas e morais. O rei, um
a famílias de línguas não africanas, como a malgaxe, pequeno senhor local, possuía escravos e reinava sobre
que é uma língua austronésia (malaia), e o afrikaaner toda região, cujos limites conhecia perfeitamente. A fon-

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te de recursos do Estado tradicional africano sempre foi baseada em um sistema de taxas, extração e dos bens
provindos da guerra.
Do ponto de vista religioso, o continente africano apresenta uma rica variedade que reflete o importante
papel das crenças nas organizações políticas e socioeconômicas. Isso mostra a importância da religião, da divin-
dade ou do sagrado na vida dos africanos, bem antes da chegada das chamadas religiões reveladas (cristianismo
e islamismo). Nesse sentido, a África tem sido uma grande precursora dos valores humanos incorporados pelas
religiões reveladas, apesar do discurso que anunciava a tarefa de “civilizar” os povos africanos a partir de seus
valores. Da mesma maneira, a diversidade dos grupos linguísticos, bem como a organização sociopolítica da África
pré-colonial, continua pouco conhecida ou simplesmente desvalorizada. A religião tradicional africana teve um
papel importante na formação política, social, econômica e cultural do continente, da mesma maneira que outras
religiões e crenças em outras partes do mundo.
O continente africano é conhecido pela diversidade e pela riqueza de suas culturas e religiões, mas sobre o período
pré-colonial a maioria dos filmes e documentários mostra uma imagem essencialmente primitiva e “bárbara”. No entan-
to, essa visão não passa de um olhar racista e ideológico que busca descaracterizar o continente para poder controlá-lo
com facilidade. Apesar disso, nenhuma das classificações pode apagar a história da mais antiga região do mundo, que é,
culturalmente, um conjunto plural, um mosaico de nações étnicas correspondentes a identidades distintas.

O legado colonial
No final do século XIX, o capitalismo caminhava em passos largos para a monopolização da economia a que
assistimos atualmente; os trustes nascidos no continente europeu atingiram uma força tão grande, que os mesmos
Estados aos quais estavam associados lançaram-se sobre novas bases territoriais, procurando garantir o acesso
facilitado às fontes de matérias-primas existentes na África e na Ásia.

Assim, na busca por novas áreas que garantissem a expansão capitalista, em 1885 deu-se a Conferência de
Berlim, que instituiu uma divisão do continente em territórios coloniais, submetidos ao poder e aos interesses das
potências europeias. Essa “partilha da África” não respeitou os limites culturais dos povos africanos, fazendo com
que populações milenarmente ligadas fossem separadas, enquanto outras, muitas vezes inimigas, fossem subme-
tidas a um mesmo poder central. Iniciava-se, então, o neocolonialismo e um intenso processo de expropriação das
riquezas africanas.

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A África foi retalhada, de acordo com as possibilidades de exploração, e submetida ao sistema capitalista na
sua mais cruel forma de espoliação. Assim, os solos mais férteis foram destinados à agricultura do tipo plantation,
e dedicados à produção de café, cana-de-açúcar, cacau e algodão, produtos que não abasteciam as populações
locais, mas sim eram exportados para a Europa, onde eram industrializados.
As imensas riquezas minerais estimularam a corrida imperialista, que, além de prioritária aquisição das fontes
de matéria-prima, também visava converter aqueles habitantes em mão de obra capaz de dar vazão à produção. Os
africanos foram introduzidos em relações de trabalho destoante dos padrões culturais até então vigentes e a novas
formas de organização social e política, que lhes eram estranhas: o Estado-nação, o modo de produzir e o salário.

Conferência de Berlin
A intensificação da corrida por esferas de influência no território africano, originada pela disputa entre capi-
talistas europeus e Estados africanos, como Ashanti, Benin e N’Gola, que controlavam ferreamente as exportações
de novos produtos (óleo de palma, amendoim, ouro e marfim), foi potencializada pela crise econômica que eclodiu
na década de 1870. Para os europeus, era necessário abrir o comércio direto para os produtos africanos e manufa-
turados europeus. Nesse quadro, tornou-se necessária uma ruptura do controle do acesso ao interior, que era man-
tido pelos Estados do litoral. Tais Estados vinham, ao longo do século XIX, estabelecendo impérios tributários com a
subjugação dos vizinhos menos poderosos e, assim, compensando a repressão ao tráfico internacional de escravos.

Outro aspecto decorrente do processo foi a internacionalização, no continente, da escravidão moderna,


para atender à demanda do comércio legítimo dos novos produtos. A utilização de escravos na produção africana
provocava o aumento da intervenção filantrópica (via missionários) e da pressão sobre os Estados europeus para
intervir, com o estabelecimento de consulados e agentes para firmar acordos de proibição do tráfico de escravos e
da liberalização de mercados, além de estabelecimentos de esferas de interesse.

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Frente aos tradicionais parceiros nas relações da nal. Iniciaram-se as guerras de conquista e a dependência
Europa com o continente africano – Inglaterra, França econômica do continente às economias industriais das
e Portugal –, que deslocaram os outros da época mer- potências europeias.
cantilista, surgiram novos competidores: o rei Leopoldo Tendo o Congresso de Berlin estabelecido as re-
II, da Bélgica, e empresários alemães. Se o rei pretendia gras para a partilha da África e reconhecido a supremacia
construir um império colonial privado na África central, das potências europeias, cabia realizar ajustes das fron-
os alemães desejavam estabelecer esferas de influência teiras litorâneas e a incorporação do interior do conti-
no litoral dos territórios com projeção para o interior, nas nente. Diplomacia – para as relações entre os europeus
áreas não controladas por potências tradicionais. Méto- – e armas modernas – para as relações com os africanos
dos privados, através de empresas que recebiam apoio – seriam utilizadas. A dominação efetiva do continente
estatal e de entidades filantrópicas, foram empregados. gerou guerras de conquista territorial e para a submissão
Associações aparentemente internacionais de explora- dos africanos até as vésperas da Primeira Guerra Mun-
ção, além de companhias com carta de direitos emitidos dial. Os naturais do continente resistiam à perda de uma
por potências europeias, mesclaram-se nessa corrida, ge- soberania e às transformações econômicas, fiscais e polí-
rando desconfiança recíproca e instabilidade. ticas que, junto com a exploração predatória de recursos
Exploradores e viajantes, agindo por representa- naturais e demográficos, impunham a transformação da
ção ou autonomamente, estabeleciam, por onde passa- África.
vam, tratados e acordos pessoais em benefício de Esta- Os defensores do imperialismo visavam explorar
dos europeus, sob a forma de cessão de soberania ou economicamente o continente e adaptá-lo à nova divi-
de estabelecimento de esferas monopolistas de proteção. são internacional do trabalho como região periférica e
Portugal tentou fortalecer, com reconhecimento interna- subordinada. A riqueza produzida com o atendimento da
cional, seu controle sob a foz do rio do Congo, sendo demanda de minerais, matérias-primas e gêneros tropi-
barrado pelo governo britânico. Essa situação, numa área cais da nova sociedade fabril, monopolista e urbanizada
de intensa disputa, proporcionou condições para a con- deveria ser acumulada na metrópole para garantir lucro e
vocação de uma conferência internacional na cidade de custo de produção, além de reservas que possibilitassem
Berlin, de novembro de 1884 a fevereiro de 1885. Nesta a liberdade de ação e produção das potências imperialis-
conferência, foram estabelecidas regras para a liberdade tas. Para isso, era necessário submeter territórios e popu-
de comércio e igualdade de condições para os capitais lações, reorganizar a produção, o sistema de propriedade
concorrentes. O mundo liberal vencia o protecionismo. e obrigar a população ao trabalho orientado pelos novos
Paralelamente aos tratados de navegação, foi re- objetos e volumes de produtos. Esse imenso processo de
conhecida a esfera de influência da Alemanha sobre os expropriação da economia, do tempo, da cultura e das
territórios litorâneos conquistados ou ocupados por suas condições de vida originou rebeliões e resistências, prin-
Chartered Companies e o Estado Livre do Congo, pro- cipalmente nas sociedades sem organização estatal. A
priedade pessoal do rei da Bélgica. Definiam-se, também, anulação da soberania e a subordinação das sociedades
a legitimidade e inviolabilidade das esferas dos antigos organizadas sob formas estatais foram efetivadas através
ocupantes do litoral da África – Inglaterra, França e Portu- de guerras de conquista. A superioridade em armamentos
gal. A conferência estabeleceu ainda as regras para a le- e meios de locomoção proporcionada pela nova tecnolo-
gitimidade da dominação: a prova de ocupação definitiva gia foi a garantia da vitória na repressão às resistências
e a declaração de tais normas para possível contestação e nas guerras.
por outras potências europeias e assinaturas de acordos. Enquanto a violência física e simbólica marcou as
Após a conferência, os beneficiários trataram de relações de conquista, as diferenças entre as potências
impor sua dominação no interior e de remodelar geopolí- eram resolvidas entre os diplomatas, por meio de mapas
tica, social e economicamente o continente, transformado incompletos e falhos. Isso resultou no estabelecimento de
em objeto pelo novo tipo de imperialismo que surgia na fronteiras em linhas retas que reuniam, em uma unidade
Europa. Para isso, usavam os mesmos argumentos de sua administrativa, povos diferentes e até inimigos e dividiam
instalação no litoral: fim da escravidão, civilização, cristia- conjuntos étnico-linguísticos com uma longa história de
nismo e abertura do território para o comércio internacio- unidade.

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zação. Na África, onde os colonizados e suas reivindica-
Processo de descolonização
ções são protagonistas preponderantes, deve-se agregar
A expansão colonial europeia na África havia divi- o papel das decisões da Conferência de Bandung e das
dido o continente entre quatro potências – Grã-Bretanha, guerras anticoloniais da Ásia como elementos-chave da
França, Bélgica e Portugal. Essas potências coloniais se descolonização.
diferenciavam em níveis de desenvolvimento, riquezas e Embora o auge da descolonização da África tenha
necessidades. Tal situação determinou diferenças secun- acontecido na passagem da década de 1950 para a de
dárias, porque as colônias eram predominantemente de 1960, a reivindicação pacífica ou violenta pela indepen-
dência se iniciou no imediato pós-guerra. Ela se aprofun-
exploração e não de povoamento. Determinou também
dou e se radicalizou com as tentativas das metrópoles
uma reorganização na geografia política africana, volta-
que buscaram criar mecanismos de autonomização lenta
da para o comércio metropolitano, unindo e separando
e controlada. Isso favorecia as forças internas arcaicas e
áreas e economias, sociedades e povos. Tal reorientação
a permanência das colônias subordinadas à metrópole.
geoeconômica manifestou-se pelas criações de novas
“regiões” na África, que entravam em contradição com
a tradicional ordenação continental, externalizando sua Regionalização geopolítica
economia e criando novas realidades sociais e políticas. da África contemporânea e
O domínio colonial clássico na África durou apro-
seus principais conflitos
ximadamente 75 anos, tempo suficiente para o amadure-
cimento de sua incorporação na economia mundial, das A África adentrou o século XXI apresentando um
economias capitalistas monopolistas e para a emergência melancólico estado econômico, social e também geopo-
de um movimento emancipacionista bastante problemá- lítico. Esquecido pela globalização, o continente assiste
tico. Nesse período, os impérios coloniais submeteram impotente à degradação humana e a proliferação da
ou cooptaram tanto as resistências tradicionais como as pobreza. Guerras, fome e aids figuram entre os compo-
“modernizantes”, ordenaram o continente e mudaram nentes da realidade de boa parte do continente. Para
seu perfil. O auge da dominação e reordenação se deu onde quer que se olhe, veem conflitos de ordem étni-
no período entre guerras, com marcada participação da ca, religiosa ou política. Na porção centro-meridional, a
crise econômica de 1929 e a posterior recessão. trágica situação social da África subsaariana faz dessa
Ao final da Segunda Guerra Mundial, a situação região a mais pobre do Planeta. Eis o legado colonial!
crítica das metrópoles europeias e sua necessidade de
riquezas entraram em contradições com os ideais dos Os conflitos na África são basicamente motiva-
social-democratas que chegaram ao poder em 1945. Isso dos por: disputas territoriais; golpes de Estado, que
levantou o problema da evolução dos impérios. Por ou- geram crises políticas; rivalidades tribais, motivadas
tro lado, certos grupos empresariais já haviam alcançado por questões étnicas ou religiosas; disputas por água
e recursos minerais; e imersão do povo na miséria. Es-
um nível de desenvolvimento que podia prescindir da
sas motivações são provenientes do processo de colo-
subordinação direta à metrópole. A solução era apresen- nização do continente, da Guerra Fria, da intervenção
tada por um longo e quase secular processo evolutivo de de terceiros Estados e de eleições conturbadas.
emancipação. Frente a tal projeto, classificaram-se vários
elementos de oposição: a ascensão dos Estados Unidos Por anos, a África tem sido lembrada como um
e da URSS como potências mundiais e anticolonialistas; continente em completo caos, marcado por guerras,
o sistema da Organização das Nações Unidas, com seu fome e miséria, e cujas esperanças de melhorias são
comitê de descolonização; as reivindicações africanas irrisórias. Todas essas mazelas foram associadas ao
de emancipação; e os interesses econômicos das emer- subdesenvolvimento dos países desse continente de tão
gentes multinacionais estadunidenses – com obstáculos ricas culturas. Contudo, essa realidade caótica está mais
estabelecidos pelas políticas dos impérios coloniais. Tais relacionada à própria estrutura e estabilidade do Estado
fatores foram determinantes nos processos de descoloni- do que ao próprio desenvolvimento desses países.

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Pesquisas apontam que a baixa autoridade es-
Sudão e o conflito norte-sul
tatal, isto é, a presença pouco efetiva do Estado em
seu território era o fator mais relevante na ocorrência O cenário geopolítico do maior país africano é
de guerra civis e de falência de Estados – momento no marcado por uma guerra civil que perdurou por mais de
qual a estrutura estatal deixa de cumprir suas funções 20 anos e tem conduzido ao genocídio da população.
básicas e o país é tomado por ondas de violência –, se A guerra tem razões religiosas e envolve, de um lado, a
comparado à variável do desenvolvimento e subdesen-
maioria muçulmana, ao norte do país, e, de outro, uma
volvimento dos países da África subsaariana.
forte minoria cristã e animista do sul.
Uma importante questão constatada a partir
dessas pesquisas foi a de que a existência de lideranças
tradicionais e a continuidade de características das civi-
lizações pré-coloniais desempenharam papel essencial
para a autoridade do Estado, em alguns casos fortale-
cendo-a e, em outros, concorrendo com essa.
Pesquisadores atentam também para o fato de
que, nos 21 países que nunca tiveram guerra civis ou
conflitos não estatais, a estabilidade foi garantida devi-
do a fatores históricos e políticos no período pós-colo-
nial, que garantiram a capacidade do Estado de projetar
seu poder por todo seu território. Ao lado disso, países Essa situação de instabilidade vem desde a inde-
que passaram por guerras, mas não retornaram mais a pendência do Sudão, em 1956, mas se agravou a partir de
estágios de colapso após a paz, optaram pelo caminho 1983. Naquele ano, o governo muçulmano impôs a sharia
de reconstrução da estrutura do Estado e de retradi- (lei corânica) a todo o conjunto da sociedade, fomentando
cionalização das instituições políticas, e não tanto pela a imediata reação das populações cristã e animista do sul.
busca de desenvolvimento, como é o caso de Angola, Começava, então, uma sangrenta guerra civil.
República do Congo, Libéria e Ruanda. Isso demonstra O Sudão é ex-domínio egípcio e ex-colônia britâ-
que, seja através da modernização das instituições es- nica: para além da questão religiosa, o fator étnico é dos
tatais, seja pela aproximação das instituições daquilo mais complicados, uma vez que se contabilizam no país,
aproximadamente, 570 grupos distintos e mais de cem
que eram anteriormente à chegada dos colonizadores,
idiomas. Árabes e núbios concentrados no norte somam
os países que foram sucedidos em seus processos de
aproximadamente 50% da população. A outra metade
pacificação e estabilidade foram os que seguiram um
está dividida em inúmeros grupos minoritários.
caminho focado na reconstrução do Estado e na efetiva
Após a radicalização islâmica do governo de Car-
execução de suas funções.
tum (capital sudanesa), surgiu nos anos 1980, no sul do
país, um movimento denominado MPLS (Movimento Po-
pular de Libertação do Sudão). Com um viés ideológico
e empunhando a bandeira do socialismo, o MPLS propu-
nha um novo governo de unidade nacional, com respeito
à diversidade religiosa que caracteriza o Sudão, opondo-
-se ao modelo teocrático de imposição do islã como re-
ligião oficial. Para fazer frente à repressão do governo
central, derivou do MPLS uma facção armada, o SPLA
(Exército Popular de Libertação do Sudão). A guerra civil
se agravaria a partir de então. O que motivava a guerrilha
Um dos maiores desafios da África será mudar a imagem pela qual ge- do sul a insistir na ação armada era o desprezo com que
ralmente é lembrada, trazendo uma nova que reflita a heterogeneidade e
tendência de pacificação da região. o governo muçulmano do país tratava as áreas cristãs e
animistas.

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Depois de vinte anos sem guerra, assinou-se, em
2005, um acordo de paz entre o governo de Cartum e os
rebeldes do sul, liderados por John Garang (do MPLS).
O que parecia impossível há alguns anos enfim aconte-
ceu: o Sudão seria dividido em duas porções geopolíticas,
uma ao norte e outra ao sul. Cada uma teria leis e exér-
citos próprios, mas continuariam fazendo parte de uma
só nação, ao menos até 2011, quando foi realizado um
plebiscito pelo status final do país. O que realmente per-
mitiu o acordo foi um fator econômico e não geopolítico:
Alternando golpes militares intrínsecos ao gover- o petróleo. Norte e sul ainda precisariam chegar a um
no sudanês e frágeis eleições, o país seguiu praticamen- acordo com relação ao traçado da nova fronteira e como
te dividido entre o norte e o sul, prolongando a guerra. ela será controlada, como dividir a dívida do Sudão e os
Algumas publicações internacionais relataram que os royalties do petróleo do novo país e que moeda será ado-
EUA passaram a apoiar e armar os guerrilheiros do sul. tada por ele.
Especula-se que, em represália, o governo sudanês tenha
passado a dar abrigo a militantes da Al-Qaeda. A questão de Darfur
No meio desse emaranhado, encontra-se a popu-
lação sudanesa que sofreu as mais duras consequências. Localizada no oeste do Sudão, a região de Darfur
A maioria muçulmana do norte foi atacada constante- tem o tamanho da França e apresenta acelerado cresci-
mente por guerrilhas cristãs, enquanto o governo central mento demográfico. Os violentos conflitos – a que um
de Cartum isolava as aldeias e tribos simpatizantes dos observador da ONU, Mukesh Kapila, caracterizou como
guerrilheiros cristãos, levando-as à miséria. Com uma ge- “a maior crise humanitária do mundo” – iniciaram-se
ografia natural não muito favorável em grandes trechos em 2003.
do país, o Sudão teve uma seca longa e intensa, o que
Trata-se novamente de uma questão territorial
agravou as condições da agricultura, principal atividade
separatista. Representantes da população local acusam
nacional. O resultado de tantas situações críticas foi uma
o governo central de desprezar Darfur, entregando-a à
gravíssima crise humanitária: de 1983 até 2005, a guerra
própria sorte. Nesse contexto, enquanto o governo su-
provocou 2 milhões de mortes e mais de 6 milhões de
refugiados, que é aproximadamente o total da população danês empregava todas as suas forças no sul, organi-
do país. É isso que está por traz das cenas de crianças zou-se em Darfur um movimento contestatório denomi-
africanas abandonadas e degradação humana no Sudão, nado Frente de Libertação de Darfur (FLD) e igualmente
que, por vezes, a mídia veicula. um braço armado, o Exército de Libertação de Darfur
Aproximando-se sobremaneira da opção funda- (ELD ou SLAN, das iniciais em inglês Sudan Liberation
mentalista, o governo sudanês se envolveria ainda em Moviment Army).
duas contendas internacionais. A primeira foi uma dispu-
ta territorial na zona de fronteira com o Egito: os suda-
neses requerem o direito sobre a região de Halaíb (rica
em minérios, particularmente o fosfato). O Egito, por sua
vez, acusou o Sudão de apoiar grupos fundamentalistas
egípcios. A segunda se deu após ataques terroristas à
embaixada estadunidense em Nairóbe (Quênia) e Dar
Asslaan (Tanzânia), quando os EUA acusaram o Sudão de
ter dado abrigo e proteção aos terroristas que realizaram
os atentados, atribuídos à Al-Qaeda. Em represália a essa
hipótese, os EUA bombardearam uma fábrica em Cartum,
a qual, segundo os estadunidenses, produzia armas quí-
micas. O governo do Sudão afirmou tratar-se apenas de
uma fábrica de remédios.
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Esse movimento realizou uma ofensiva para o
leste, conquistando partes do território do país. O go-
verno, ocupado com os combates no sul, confiou então
a grupos de mercenários e saqueadores tribais armados
a função de combater a nova insurgência, ou seja, o
governo de Cartum delegou uma responsabilidade de
Estado a grupos paramilitares, localmente denominados
janjawid. Segundo analistas, esses grupos de extermínio
existem há muito tempo, e antes da explosão da crise
separatista, já saqueavam as aldeias de Darfur, promo-
vendo uma verdadeira limpeza étnica, com a conivência
de Cartum. O governo, obviamente, nega. Colonizada por italianos e britânicos, a Somália
A ONU, os Estados Unidos e a comunidade in-
alcançou a independência em 1960, quando se firmou
ternacional passaram a pressionar o governo sudanês
como uma república. Nove anos mais tarde, um regime
para intervir mais energicamente e suspender o genocí-
comunista alinhado com Moscou chegaria ao poder por
dio que já se verificava em Darfur.
meio de um golpe militar.
A descoberta de petróleo nessa região fez com
que os países olhassem com mais atenção para lá. Du- Em 1977, travou uma guerra contra a Etiópia
rante encontros internacionais em Nairóbe, os Estados pela disputa de Ogaden (guerra do chifre africano), re-
Unidos manifestaram a intenção de uma intervenção gião que os britânicos concederam à Etiópia, o que os
“humanitária” em Darfur – ideia imediatamente frus- somalis nunca aceitaram. A Somália saiu derrotada e
trada pela China, que anunciou veto a qualquer iniciati- ainda perdeu a ajuda de Moscou, que optou por apoiar
va nessa direção, no âmbito do Conselho de Segurança o inimigo. Soldados cubanos que davam suporte à Etió-
da ONU. Atualmente, o Sudão é um importante forne- pia ajudaram a derrotar a Somália.
cedor de petróleo à China, país que tem investido em Em 1991, o regime militar somali foi derrubado
oleodutos sudaneses. por um emaranhado de tribos que combatiam anar-
O conflito já causou 70 mil mortes, mais de 2 mi- quicamente o governo. O único fator de convergência
lhões de refugiados (principalmente no vizinho à oeste, entre essas tribos era o ódio que todas nutriam con-
o Chade) e aproximadamente 3,2 milhões de depen-
tra o regime centralizado do governo somali. Diante do
dentes diretos de assistência humanitária, dentro e fora
caos, o presidente se exilou e o país ficou literalmente
de Darfur. Uma acordo foi assinado em abril de 2004,
desgovernado. Os vários clãs – aproximadamente vinte
mas não trouxe segurança. Ainda há milhões de pesso-
milícias tribais – não se entenderam e mergulharam em
as desabrigadas por conta desse conflito.
intensa guerra civil, todos contra todos.

Somália: um país de guerra e fome


Situada numa estratégica posição no golfo de
Áden, a Somália dividi com Dijibuti o controle do estreito
de Bab el Mandeb, em sua vertente ocidental. Encontra-
-se em estado técnico de guerra civil, desde 1991. Dife-
rentemente dos casos anteriores, o país apresenta certa
homogeneidade étnica. Fala-se predominantemente a
língua somali; o árabe é uma forte minoria, mas é o
mesmo grupo étnico falando uma língua diferente, he-
rança que remonta ao período de arabização promovida Com o caos instalado, a fome se alastrou pelo
pela expansão do islã. Apesar da uniformidade, o país país, já prejudicado pela natural aridez. Diante da si-
se encontra fragmentado em diversos clãs rivais – os tuação, grupos de ajuda humanitária limitavam-se a
protagonistas deste estado de guerra. sobrevoar e despejar pacotes de alimentos junto às

13
áreas castigadas. Mas os donativos eram confiscados A Nigéria abriga mais de 200 etnias que abra-
pelas milícias, que assim impediam aos rivais o acesso à çam três religiões: islamismo, cristianismo e animismo.
comida. As plantações também eram atacadas por gru- Dentre os diversos grupos, destacam-se os hauçás, fula-
pos inimigos. nis e iorubas. Os ibos, uma forte minoria, tentaram, sem
Em 1992, houve uma fracassada intervenção sucesso em 1996, construir um Estado independente na
estadunidense, que permitiu duas leituras: os Estados região de Biafra, o que levou, diante da negativa do go-
Unidos tentavam conter o quadro generalizado de guer- verno central, a uma violenta guerra civil. As duas reli-
ra e a degradação humana na Somália; ou os Estados giões dominantes são o cristianismo (sul) e o islamismo
Unidos estavam se aproveitando do cenário caótico (norte), que aproximadamente se equivalem em número
para posicionar-se estrategicamente no estreito de Bab de seguidores: cerca de 45% da população para cada.
el Mandeb, controlando, assim, a rota do petróleo, uma O restante pratica ritos tribais do animismo. Há minorias
vez que já haviam saído vitoriosos da Guerra do Golfo, religiosas cristãs no sul e no norte.
no mesmo ano. Uma mistura de duas hipóteses talvez A formação política e cultural nigeriana foi in-
seja o mais provável. Mas a Somália se converteu numa fluenciada por essas três fontes distintas: a cultura islâ-
espécie de “breve Vietnã” aos Estados Unidos que, der- mica, levada à Nigéria com a expansão muçulmana; a
rotados, após três anos, se retiraram. influência cristã, trazida pelo colonizador britânico; e os
No transcorrer dos conflitos, varias regiões so- ritos tradicionais do milenar animismo africano. Apesar
malis anunciaram suas respectivas “independências”: da relativa liberdade política e de culto, essa convivên-
a República da Somalilância, Puntland, Somália do Su- cia não foi pacífica. Alguns Estados nigerianos (de um
doeste, entre outras. Diante da obscuridade da guerra, total de 36) adotam a sharia (lei islâmica), e isto é fator
nenhuma das pseudorrepúblicas foi reconhecida por de tensão, pois os cristãos não a aceitam.
regime algum e muito menos pela ONU.
O cenário beligerante e a prolongada seca de
1997 levaram a uma nova crise humanitária. Os anos
de guerra em que todos perderam e a triste realidade
do país fizeram com que as principais lideranças dos
inúmeros meros grupos sentassem a uma mesa de ne-
gociação em 2000, no Dijibuti. Mas líderes tribais não
contemplados na conferência continuaram a luta arma-
da.
Uma conferência maior em 2004, contando com
Desde sua independência, em 1960, a Nigéria
quase todos os chefes tribais, levou a um acordo mais
é uma República Federativa, apresentando três regiões
consistente. Criou-se um parlamento transitório, cuja
principais e autônomas. Também com um passado de
composição obedeceria à proporcionalidade demográ-
golpes militares, o país tem, desde 1999, um presiden-
fica das tribos, mas que, por motivos de segurança, per-
te (cristão) democraticamente eleito e que tentou, com
maneceria instalado provisoriamente no Quênia, país
muita dificuldade, minimizar a instabilidade política de-
que patrocinou o mais bem-sucedido acordo de paz até
corrente dos conflitos religiosos.
então.
Os conflitos são mais intensos no norte do país,
onde a maioria islâmica persiste na aplicação da sharia
O caso da Nigéria e pretende fazer valer a sua jurisdição sobre as minorias
não muçulmanas. Apesar de os políticos muçulmanos
Potência regional africana, a Nigéria é o país
afirmarem que a sharia não atingiria os cristãos, na
mais populoso do continente, muito rico em petróleo
prática foi o contrário o que aconteceu: discriminados,
e membro da Opep. Contudo, também vive há longos
muitos fugiram para outras áreas.
anos sob instabilidade política. A causa maior é a difi-
A séria crise em 2002 deu-se porque, ignorando
culdade de convivência harmônica entre muçulmanos
a fragilidade da convivência entre cristãos e muçulma-
do norte e os cristãos ao sul, diferenças que já puseram
nos, organizou-se no país o concurso de “miss univer-
o país em guerra civil.
so”. O presidente, um cristão anglicano, deu apoio à re-

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alização do evento. Os muçulmanos consideraram uma Com o passar do tempo, o Boko Haram foi se
profanação ao islã aquela exposição de mulheres semi- tornando um grupo militar cada vez mais bem armado,
nuas em pleno mês do Ramadã, período sagrado para recebendo vários treinamentos e ações de formação por
eles. A situação se agravou com uma frase divulgada no parte da Al-Qaeda do Magreb e de alguns outros gru-
jornal mais importante do país: “até Maomé se renderia pos militares radicais existentes na região setentrional
àquelas beldades”. Isso bastou para que muçulmanos da África. Em 2009, com a morte de Mohammed Yusuf
e cristãos se armassem com o que podiam rumo a uma durante um confronto armado, o Boko Haram tornou-se
batalha campal que deixou mais de cem mortos. O epi- uma organização militar totalmente radical. No entanto,
sódio pôs à mostra a instabilidade do país. somente em 2013, os Estados Unidos passaram a consi-
Assim, em linha gerais, o cenário geopolítico que derar, oficialmente, o Boko Haram como grupo terrorista,
caracteriza o mais populoso país africano pode ser sin- que é hoje um dos maiores da atualidade.
tetizado pela seguinte leitura religiosa: muçulmanos de O principal objetivo do Boko Haram atualmente,
um lado, cristãos e animistas do outro. Essa divisão gera além de combater os princípios e legados ocidentais dei-
um constante quadro de tensão, levantes separatistas e xados pela colonização britânica no país, é a construção
frequentes distúrbios. de uma república islâmica. Para conseguir esse objetivo,
o grupo terrorista utiliza muitos métodos radicais, incluin-
do a realização de atentados e o sequestro para realizar
Boko Haram
avanços territoriais. O Boko Haram também age por meio
do sequestro de mulheres, utilizando-as para a obtenção
O Boko Haram é um grupo terrorista surgido na
de resgates e, principalmente, negociando-as como es-
Nigéria que, muitas vezes, é denominado como “grupo
cravas sexuais.
radical islâmico”, pois as suas ações correspondem ao
fundamentalismo religioso de combate à influência oci-
dental e de implantação radical da lei islâmica, a sharia.
O nome Boko Haram significa “a educação não islâmi-
ca é pecado” ou “a educação ocidental é pecado” na
língua hausa, um idioma bastante falado no norte do
território nigeriano.

A ação mais notória do grupo até hoje ocorreu em


abril de 2014, quando o Boko Haram sequestrou cerca
de 276 mulheres, entre 16 e 18 anos. Segundo relatos
de algumas das que conseguiram escapar, os militantes
utilizavam-nas como escravas sexuais e vendiam-nas
para membros da organização a um preço médio de 12
dólares. Indícios posteriores também afirmaram que boa
parte das mulheres foi utilizada em diversos combates.
Logomarca do grupo terrorista Boko Haram

O surgimento do Boko Haram ocorreu em 2002


como uma seita religiosa, fundada por Mohammed Yusuf,
na cidade de Maiduguri, capital do Estado de Borno, na
Nigéria. Para Yusuf e seus seguidores, a cultura ocidental
reproduzida na sociedade seria a principal razão para os
males do país, sendo necessária a sua erradicação para
combater a corrupção e o descaso das autoridades para
com o povo. O líder atual do Boko Haram é Abubakar
Grupo de nigerianos protesta contra o Boko Haram,
Shekau. na cidade de Alicante, Espanha.

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Não há números concretos sobre a ação do Boko
Haram, mas estima-se que o grupo terrorista já tenha exe-
cutado mais de 3 mil pessoas, número que se eleva conti-
nuamente a cada conflito ocorrido. O grupo já tomou boa
parte do território da Nigéria, sobretudo as suas áreas ao
norte e a nordeste, em um mapa difícil de ser representado,
pois, a cada mês ou semana, um nova cidade é tomada ou
perdida para as tropas do governo nigeriano, realinhando
as fronteiras da república radical islâmica.
Os milhares de combatentes e militantes do Boko
Haram vêm lutando não somente contra as tropas gover-
namentais da Nigéria, mas também contra o apoio de ou-
tros países. Chade e Níger, que formam uma coalização A ampliação dessa hostilidade entre hutus e tut-
africana, vêm atuando no território nigeriano para com- sis ocorreu no período neocolonialista, com os domínios
bater as ações da milícia terrorista, que eventualmente alemão e belga. Os primeiros colonizadores europeus a
realiza atividades fora da Nigéria e ameaça, com uma estabelecerem-se na região foram os alemães, a partir
possível expansão, os países circunvizinhos, principal- da divisão territorial realizada na Conferência de Berlim.
mente Camarões, que já sofreu alguns atentados. Os alemães exerceram seu domínio em parceria com os
tutsis, concedendo-lhes uma série de privilégios na ad-
As ações do Boko Haram são uma demonstra-
ministração colonial.
ção da expansão da atividade de grupos terroristas pelo
Após a Primeira Guerra Mundial, a região foi
mundo, algo que se intensificou nos períodos posterio-
entregue para os belgas, que ampliaram o abismo nas
res à Guerra Fria. O líder Abubakar Shekau jurou, in-
relações entre tutsis e hutus. Os colonizadores europeus
clusive, uma lealdade a outro grupo terrorista radical,
justificavam os privilégios aos tutsis alegando que eles
o Estado Islâmico. Essa postura não se trata, ao menos eram “naturalmente superiores”, de acordo com os
por enquanto, de uma aliança entre os dois grupos, mas princípios do darwinismo social em voga nesse período.
pode indicar um paralelo sem igual para o crescimento Essa divisão étnica foi intensificada pelos belgas a partir
da ação de grupos radicais pelo mundo. da década de 1930, quando documentos de identifica-
ção passaram a ser emitidos com a informação da etnia
O domínio colonial em Ruanda e de cada pessoa.
Com o processo de descolonização, o movimento
a rivalidade entre tutsis e hutus de independência ganhou força com a adesão dos hu-
tus, que exigiam um governo democrático liderado pela
Ruanda é um pequeno país da região centro- maioria hutu. Isso deu início à revolução ruandesa, em
-oriental do continente africano e historicamente foi 1959, que concluiu a transição do país para uma nação
habitado por diferentes etnias: hutus e tutsis formavam independente de caráter republicano e governada pelos
a maioria da população da região e os twa compunham hutus. Nesse período, foram registrados alguns ataques
uma minoria étnica. A rivalidade entre hutus e tutsis contra os tutsis, o que forçou milhares a refugiarem-se
passou a ser construída a partir do século XVIII. em países vizinhos, como Uganda.
Tutsis e hutus eram as etnias majoritárias que habi-
tavam Ruanda e, do ponto de vista cultural, possuíam uma Presidência de Juvénal Habyarimana
série de similaridades, pois compartilhavam, em geral, as
e a guerra civil
mesmas tradições e falavam o mesmo idioma (kinyaruanda).
O início dessa rivalidade entre essas duas etnias remonta à Durante a década de 1970, um golpe de Esta-
formação do Reino de Ruanda, no século XVIII, quando os do colocou Juvénal Habyarimana no poder de Ruanda.
tutsis ocuparam cargos governamentais importantes e for- Habyarimana manteve a discriminação contra o tutsis,
maram quase que inteiramente a elite econômica do país. iniciada com o processo de independência, e organizou

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um governo extremamente corrupto e ditatorial. Seu Em 6 de abril de 1994, o avião do presidente
governo sofreu grande enfraquecimento a partir de uma Juvénal Habyarimana foi atacado em Kigali, capital de
grave crise econômica, enfrentada pelo país na década Ruanda, causando a sua morte. Esse ataque, cuja auto-
de 1980. ria nunca foi de fato esclarecida, foi utilizado como pre-
À medida que o governo de Habyarimana en- texto pelo Poder Hutu para convocar a população hutu
fraquecia-se, o discurso de poder dos hutus crescia a iniciar os ataques contra tutsis e hutus moderados.
impulsionado pelo Akazu, um grupo que passou a di-
fundir um discurso de ódio exaltando os hutus e disse-
minando preconceito contra os tutsis. Posteriormente,
o Akazu transformou-se no Poder Hutu, grupo lidera-
do por Agathe Habyarimana, esposa do presidente. Os
membros desse grupo foram responsáveis diretos pelo
genocídio em Ruanda.
A crise do governo de Habyarimana motivou
grupos de refugiados tutsis a organizarem-se para to-
mar o poder em Ruanda. Assim, surgiu a Frente Patri-
ótica de Ruanda (FPR), um grupo guerrilheiro que se
organizou em campos de refugiados de ruandeses tutsis
instalados em Uganda. O interesse da FPR era realizar a Os cem dias seguintes em Ruanda foram mar-
tomada do poder para permitir o retorno dos refugiados cados pelo horror, com um genocídio de proporções
tutsis ao país. gigantescas promovido contra a população tutsi. Nes-
Com o crescimento da tensão em Ruanda, a se período, cerca de 800 mil tutsis foram assassinados
FPR iniciou o ataque contra as tropas governamentais por milícias hutus, sobretudo com o uso de facões. Não
de Habyarimana, marcando o início da guerra civil, em
houve nenhum tipo de mobilização internacional para
1990. Essa primeira fase do conflito estendeu-se até
impedir esse massacre, e mesmo as tropas existentes da
1993, quando um cessar-fogo foi assinado entre as
ONU foram retiradas do país.
partes. Esse cessar-fogo garantia o retorno dos exilados
O genocídio dos tutsis foi interrompido quando a
tutsis e, além disso, propunha a criação de um exército
composto tanto por tutsis quanto por hutus e a realiza- FPR conseguiu conquistar cidades importantes do país,
ção de eleições presidenciais no país. como a capital Kigali, e anunciar a destituição do antigo
governo. Após a vitória da FPR, registraram-se também
Genocídio ruandês pequenos ataques contra comunidades hutus em repre-
sália. Desses ataques, estima-se que podem ter morrido
A assinatura do cessar-fogo, realizada pelo presi- até 60 mil hutus.
dente Habyarimana, não agradou aos grupos extremis-
tas de hutus, principalmente o Poder Hutu, que começa- República Democrática do Congo
ram a criticar o governo ruandês. Seguiu-se um clima de
tensão muito grande no país, com o desenvolvimento Os conflitos que pairam no Congo perpassam
de milícias populares que se armavam de todas as ma- questões políticas, econômicas, étnicas e culturais. A
neiras possíveis, especialmente com facções. República Democrática do Congo enfrentou inúmeros
Relatórios humanitários entregues à ONU com golpes de Estado e governos ditatoriais. A ONU já es-
estudos sobre Ruanda concluíram que a chance de re- tabeleceu, sem sucesso, três missões de paz nesse ter-
tomada do conflito era elevada e que as milícias hu- ritório. Os atuais conflitos envolvem, principalmente,
tus, chamadas de Interahamwe (aqueles que lutam), disputas de poder na política e na economia. No país,
representavam um risco para parte da população. Os há presença de diversos grupos armados, e governos de
relatórios foram ignorados pela ONU, que não tomou países vizinhos acusam o governo congolês de apoiar
nenhuma medida. esses grupos rebeldes.

17
Os conflitos no Congo iniciaram-se em 1996
e são provenientes do genocídio em Ruanda, no qual
hutus assassinaram cerca de 800 mil pessoas e segui-
ram para a República Democrática do Congo. Os tutsis
também migraram para Ruanda, com medo de uma
nova ofensiva. Após o intenso fluxo migratório, os tutsis,
novamente, começaram a sofrer represálias por parte
dos congoleses e também dos hutus. Esse cenário deu
origem à primeira guerra do Congo, na qual os tutsis,
que voltaram ao poder por meio de Laurent Kabila,
acreditavam que era necessário rebelarem-se contra
os hutus, envolvendo nessa represália todos os países
constituídos por essa etnia.
Kabila encontrou dificuldades para governar.
Sem apoio político, passou a enfrentar o desconten-
tamento dos tutsis, que cobravam o cumprimento das
promessas feitas pelo então presidente do Congo. Para
demonstrar controle e proteger os tutsis, Kabila expul-
sou tropas de Ruanda e Uganda, dando início à segun-
da guerra do Congo. O conflito só cessou em 2002 com
a intervenção da Organização das Nações Unidas.

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Conflitos africanos

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