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APÓSTOLO SÃO PAULO

A aula de hoje será baseada na obra “Paulo de Tarso” de Josef Holzner. O autor nasceu
na Baviera e cursou filosofia e teologia no colégio Germânico de Roma, onde se ordenou
sacerdote em 1901. Autodidata e dotado de um imenso saber histórico e teológico, bom
conhecedor do Grego e do latim, dedicou praticamente toda a sua vida a escrever este
livro.
Nesta aula tentaremos demonstrar a importância do estudo para sermos bons cristãos.
A importância de conhecer as Sagradas Escrituras, conhecer a vida dos Apóstolos, os
contextos históricos em que Cristo e seus discípulos viveram e que explicam a linguagem
e muitas expressões que os Apóstolos e os Evangelistas utilizaram em seus textos.
Aprofundando um pouquinho na vida do grande Apóstolo São Paulo, vamos tentar
demonstrar, de maneira geral, a importância de conhecermos a história e a cultura
Grega, a história e cultura Judaica e a história e a cultura Romana, pois estes são os três
pilares fundamentais para entendermos a cultura do ocidente cristão, a Santa Igreja
Católica e compreendermos com mais profundidade a nossa fé.
Nós cristãos geralmente começamos a conhecer São Paulo pelo livro dos Atos dos
Apóstolos. Os Atos dos Apóstolos trata da Igreja e nos mostra que todo cristão é
embaixador de Cristo, ou seja, enquanto estamos aqui na terra somos a voz do Cristo
(alter Christo). Cristo anda pelos nossos pés, age pelas nossas mãos e fala pela nossa
boca. É o corpo místico de Cristo.
Para que vocês entendam a importância do estudo para compreender verdadeiramente
a nossa fé e a mensagem do Evangelho, vamos tentar explicar, nesta primeira aula sobre
o Apóstolo São Paulo, todo o trajeto que São Paulo percorreu até a sua conversão e isso
nos fará compreender com mais profundidade as palavras de São Paulo na 1ª Epístola
aos Coríntios, capítulo 15, quando ele vai fazer o relato da ressureição e diz:

Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. Pois sou o menor
dos Apóstolos, nem sou digno de ser chamado de Apóstolo, porque persegui a Igreja
de Deus. Mas pela graça sou o que sou: e sua graça a mim dispensada não foi estéril.
Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que
está comigo.

Aqui segundo São Tomás de Aquino, Paulo passa a ideia de um parto a fórceps, ele era
prematuro e Jesus o arrancou. Foi uma conversão violenta.
São Paulo continua explicando os critérios para ser verdadeiramente Apóstolo: são
Hebreus? Também eu. São Israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão?
Também eu. São Ministros de Cristo? Muito Mais eu. Muito mais pelas fadigas, pelas
prisões, pelos açoites, pelo perigo de morte, pelas 5 vezes 40 chicotadas menos 1 dos
Judeus, 3 vezes fui flagelado, uma vez fui apedrejado.
Portanto, São Paulo era amigo da Cruz. “Aquele que se gloria, glorie-se na Cruz do
Senhor” e como veremos na sequência, era construtor de tendas.
A palavra tenda no grego é σκηνή (lê-se esquinê). O verbo derivado dessa palavra no
grego está presente no prólogo de São João. “O Filho de Deus se fez carne e habitou
entre nós (fez sua tenda), ou seja, armou sua tenda em nós. Deus vive dentro da nossa
alma.
São Paulo é o construtor de Tendas. É ele que vai erguendo as Igrejas (Corinto, Éfeso,
Tessalônica, Beréia, etc).
O Evangelho de São Lucas (São Lucas era médico com formação acadêmica e
acompanhava São Paulo, por isso o Evangelho de São Lucas é considerado como Paulino,
assim como o Evangelho de São Marcos é considerado um Evangelho Petrino, pois ele
acompanhava São Pedro em suas pregações), os Atos dos Apóstolos e as cartas de São
Paulo constitui mais da metade do Novo Testamento. Isso mostra a importância de São
Paulo para nós.
Quem é esse homem que se ergue à sombra de um Ser infinitamente
maior? Quem é este ousado inovador, o fundador do Ocidente Cristão?
Duas cidades exerceram influência decisiva na sua formação: Tarso e Jerusalém. “Sou
judeu, nascido em Tarso da Cilícia (At. 22,3), assim Paulo descreve a sua personalidade
diante do chefe romano, ao ser preso. Nele se fundem, portanto, duas correntes da
cultura antiga: a educação judaica e a formação helênica, adquiridas na cidade
universitária e capital provincial de Tarso.

CULTURA HELENÍSTICA

Tarso era uma cidade famosa por ser um centro comercial e linha divisória entre duas
culturas: a civilização greco-romana do Ocidente e a civilização semítico-babilônica do
Oriente. Muito próxima do mar e atravessada de rios navegáveis. Nas cartas de São
Paulo encontramos muitas imagens tiradas da vida do comércio e do tráfego marítimo.
Certamente foi a intenção da Providência que o homem que durante toda a sua
existência havia de ser missionário em cidades pagãs tivesse sido educado numa
metrópole pagã. São Paulo cresceu numa rica cidade comercial para onde convergiam
os mais variados povos do Império Romano.
O ambiente de Tarso, em que Saulo cresceu e onde passou longos anos antes e depois
de sua conversão, explica-nos a influência helenística (cultura grega) que sofreu e a que
o judaísmo da diáspora não podia subtrair-se nem na vida nem na cultura.
Temos que dar um rápido olhar sobre este mundo do helenismo (que vamos estudar
com mais profundidade em aulas futuras), se quisermos entender melhor o autor das
Epístolas na escolha de suas expressões e imagens, bem como nas emoções que nelas
palpitam. Hoje, todos reconhecem unanimemente que a maneira de pensar e a forma
de vida dos gregos teve influência considerável sobre o Espírito de Paulo; pensava, falava
e escrevia em grego como se fosse sua língua materna.
A ideia preponderante em Tarso era a do poder divino (Baal). Para os orientais, a
divindade era inacessível, imóvel e que só podia entrar em contato com o mundo
exterior por meio de seus ministros. Como as divindades pagãs de Tarso eram
relacionadas à vegetação, a festa mais famosa era a festa anual das fogueiras, onde a
imagem do deus pagão era levada em procissão através da cidade e depois queimada,
representando a vegetação que agonizava debaixo do sol para depois reverdecer de
novo quando chegavam as chuvas.
Paulo, apesar ser judeu e não participar dessas festas, presenciou muitas delas e
meditou muitas vezes sobre a grandeza do Deus de Israel. Mais tarde, ao meditar em
como a natureza humana havia pressentido o mistério da morte e da ressurreição,
mistério que se revestia continuamente de novas formas nas religiões primitivas,
aproveitou esse ponto de contato para mostrar aos seus amigos pagãos como esses
obscuros pressentimentos tinham encontrado uma realização muito mais esplêndida na
Morte e Ressurreição do Cristo.
Nas suas Epistolas, Paulo demonstra frequentemente conhecer os mistérios pagãos. Em
Tarso, ainda rapaz, teve ocasião de ver como era comum que místicos que participavam
dos cultos pagãos se envolvessem nas vestes representativas das divindades, por
exemplo, numa roupagem de escamas de peixes, se o deus era representado sob o
símbolo do peixe. Talvez a expressão aparentemente estranha “revestir-se de Cristo” –
que o Apóstolo utiliza nos escritos tenha se baseado no mundo cultural pagão.
Do mesmo modo, quando mais tarde tenta tornar compreensível aos catecúmenos a
salvação através de Cristo, Paulo empregará a imagem da libertação de um escravo, e
também neste ponto devia apoiar-se nas suas lembranças de juventude, nas cerimônias
de alforria a que tantas vezes assistira: com as suas economias, o escravo ia juntando o
preço fixado para a sua libertação e depositava-o num templo; quando alcançava a
quantia necessária, o senhor dirigia-se com ele ao templo, recebia a soma e vendia-o
por esse dinheiro ao deus, que o punha em liberdade. Esse fato é muito parecido com
a analogia utilizada por São Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios (cap 7, 20-21):

“Pois aquele que era escravo quando chamado no Senhor, é liberto do Senhor. Da
mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado é escravo de Cristo. Alguém
pagou alto preço pelo vosso resgate; não vos torneis escravos dos homens.”

“Eu na verdade sou judeu, natural de Tarso na Cilícia, cidadão desta ilustre cidade”.
Nestas palavras de São Paulo ressoa um orgulho genuinamente grego: a sua cidade
natal, Tarso, rivalizava em importância cultural com Alexandria e Atenas, e era lá que se
iam buscar os preceptores dos príncipes imperiais de Roma. A formação da
personalidade espiritual do Apóstolo não podia, pois, deixar de refletir essas
características dominantes da cidade: o espírito grego e a língua grega, o direito romano
e o rigor das sinagogas judias, a concepção helenística da vida, com as suas atividades
desportivas, e a magia oriental com os seus mistérios e vagas aspirações de redenção.
Saulo, por exemplo, provavelmente viu na sua infância Antenodoro, velho mestre que
tinha profunda influência na cidade de Tarso e cujos princípios éticos tinham
semelhança com os princípios cristãos: “Aprende que não te libertarás das tuas paixões
até o dia que só pedires a Deus o que possas pedir publicamente”; “Para cada criatura,
a sua consciência é Deus”; “Comporta-te com o próximo como se Deus te visse, e fala
com Deus como se os outros te ouvissem”. Será por obra do acaso que a palavra
“consciência” aparece tantas vezes nas cartas de São Paulo. Infelizmente, só
conhecemos os pensamentos desse mestre através de Sêneca.
Um estudo mais aprofundado da maneira de escrever de São Paulo levou os estudiosos
a concluirem que ele dominava a língua grega desde as suas variantes mais elevadas até
à linguagem mais vulgar. Com todo respeito a tradução grega dos Setenta (Velho
Testamento), Paulo toma de empréstimo, com simplicidade, qualquer elemento de
linguagem familiar dos judeus helenistas que o rodeavam, bem como dos mais cultos
escritores gregos, desde que a expressão lhe sirva para exprimir com maior nitidez os
seus próprios pensamentos.
Na juventude Saulo parece ter-se interessado vivamente por desafios esportivos e
paradas militares, segundo nos mostram as imagens que utiliza em suas cartas: a do
corredor no estádio e do prêmio ao vencedor, ao do cortejo triunfal, a dos combates
com animais na arena, a das sentinelas romanas. Também nas imagens da vida jurídica
que utiliza nos revela que foi criado em uma grande cidade.
Vale a pena ressaltar que Tarso era uma cidade séria e conservadora, ao contrário de
muitas cidades pagãs que São Paulo evangelizou (onde as mulheres andavam quase
semidespidas pelas ruas), era costume das mulheres casadas de Tarso, andarem
cobertas por um véu (tradição originária dos Persas) e é por isso que ele escreve às
mulheres coríntias que não usavam véu: “Nós não temos tal costume” (1 Cor 11, 10-16).
O ambiente que Saulo cresceu era, pois, o da civilização grega, da língua universal grega,
mas também das cidades gregas, esse instrumento colonizador único, em que Alexandre
Magno havia baseado as suas esperanças de conquistar o Oriente. Nestas grandes
cidades gregas existiam grandes professores, conferencistas e sofistas que iam de lugar
em lugar proferindo suas palestras. Este mundo espiritual, moral e artístico existia por
toda a parte e ninguém podia subtrair-se à sua influência.
Portanto, é evidente que este homem que escreveu: “Examinai tudo e abraçai o que for
bom” (1 Tess 5,21), com toda certeza examinou bem cedo todas as doutrinas que se
difundiam à sua volta.

CULTURA ROMANA

Todas as cidades gregas, dotadas de uma forte vida intelectual (como Tarso), tinham se
tornado aliadas de Roma, a “Imperatriz do Mundo”. Esta, por sua vez, procurava
romanizar o Oriente helênico, estendendo a determinadas comunidades o direito de
cidadania romana e formando por toda a parte uma elite nacional que simpatizasse com
os romanos. “Sou cidadão romano de nascimento”, disse Paulo. Portanto, a sua família
certamente possuía ambas as cidadanias: a de Tarso e a de Roma. A primeira era
condição obrigatória para se receber a segunda.
Hoje sabemos que a burguesia de Tarso se compunha de tribos e corporações que
possuíam seus próprios templos e cultos religiosos. Os judeus mais influentes que
podiam pagar pelo menos 500 dracmas de tributo, recebiam o direito de cidadania e
tomavam parte na administração da cidade.
As cidades gregas distinguiam-se das romanas por concederem maiores facilidades ao
desenvolvimento da livre personalidade, propiciando maior franqueza no
relacionamento dos cidadãos e abrindo-se a todas as influências estrangeiras em
matéria de cultura. Paulo teve assim ocasião de alargar o seu horizonte espiritual e pôde
mesmo observar que nem tudo era condenável ou merecia desaparecer no paganismo.
Foi em Tarso que Paulo cultivou as características do seu ser que, na verdade, o
predestinavam para Apóstolo de uma religião acima de todas as classes e raças. Mas
para isto, alguém maior do que ele tinha de aparecer-lhe, e seria necessário um
SEGUNDO NASCIMENTO MAIS ELEVADO para libertá-lo do seio da Sinagoga e da sua
estreiteza nacional-judaica. Em todo caso, estava excepcionalmente preparado para a
tarefa de toda sua existência, isto é, para derrubar a parede divisória entre judeus e
pagãos.
Diante do prodígio desta vida verdadeiramente grande, só podemos encher-nos de
assombro pelo modo como a natureza e a graça se entrelaçaram a fim de tecer um dos
mais impressionantes destinos humanos. O próprio Paulo reconhecerá mais tarde, que
toda a sua vida foi obra miraculosa da divina Providência.

Olhando para trás, podemos dizer que Tarso se ergue diante dos nossos olhos como
que predestinada para dar vida ao homem que devia tornar realidade o testamento
de Alexandre Magno, unindo espiritualmente o Oriente e o Ocidente e tornando
verdadeira aquela visão do Senhor: “Muitos virão do nascente e do poente para
tomar parte no festim do reino dos céus com Abraão, Isaac e Jacó” – (Mt 8,11)

CULTURA JUDAICA

Mais importante do que a influência helênica sobre São Paulo, é a tradição judaica. A
sua ascendência judaica e a sua educação à sombra do Velho Testamento.
As comunidades judaicas de Tarso formavam uma corporação política ou “colônia”.
Constituíam um pequeno Estado dentro do Estado, unidas umas às outras por laços
sagrados e rigorosos. Como fariseu, o pai de Saulo era homem da mais estrita
observância em assuntos nacionais e religiosos. Foi ele quem iniciou o filho na linguagem
sagrada da Bíblia, através da tradução grega dos “setenta”. Os judeus dispunham de um
excelente sistema de educação doméstica, que constituía o segredo da sua força.
Aos seis anos, Saulo passou a frequentar a chamada “vinha”, a escola da sinagoga. Ali
sentado no chão com tabuinhas, ele aprendeu a história do seu povo.
Os primeiros anos na escola eram consagrados exclusivamente à História Sagrada. Foi lá
que Saulo compreendeu como era excepcional a situação do seu povo entre as outras
nações. Todos os dias trazia para casa uma nova história que lhe fornecia abundantes
reflexões. Mas os professores falavam-lhe também do futuro do seu povo: um dia
haveria de chegar o Rei-Messias, que tomaria de assalto o mundo com a sua espada
miraculosa, mais forte e refulgente do que a lança de Apolo, o tesouro mais precioso da
cidade de Tarso. E então o mundo inteiro se voltaria para o Senhor Deus de Israel em
Jerusalém, e o próprio Imperador viria de Roma adorar o grande Rei.
Aos 10 anos, começou a segunda fase de sua educação, menos feliz do que a primeira.
Nessa altura, o jovem hebreu foi introduzido na chamada “Lei oral”. Todos os dias
travava conhecimento com inúmeros pecados novos, pois os rabinos tinham criado uma
quantidade enorme de tradições orais, preceitos purificadores e distinções sutis em
torno da Lei de Deus, ou seja, uma rede de leis humanas que consideravam tão
importantes para a consciência como o Decálogo.
Acerca dessa época, que o tirou do seu inocente paraíso de criança, Paulo consignou
mais tarde, na Epístola aos Romanos (7, 9-11), vivência típica de um homem antes da
redenção:

“Outrora eu vivia sem Lei; mas, sobrevindo o preceito, o pecado reviveu e eu morri.
Verificou-se assim que o preceito, dado para vida, produziu a morte. Pois o pecado
aproveitou da ocasião, e, servindo-se do preceito, me seduziu e por meio dele me
matou.”

A sua alma juvenil demasiado sensível revoltou-se ao contato com o rigorismo. Sentia-
se ludibriado na sua consciência natural, parecendo-lhe que experimentava a morte.1
Que pesada e insuportável experiência de criança não se ocultaria por detrás dessas
palavras? Hoje compreendemos melhor essa experiência do que pode fazê-lo a
psicologia primitiva dos antigos tempos, sem pensar, como fazem alguns autores, que o

1
Essa passagem tem o sentido da profunda desilusão de São Paulo ao ver que era impossível cumprir
interiormente e de maneira verdadeira todas as leis que os preceitos judaicos impunham e que, por isso,
a maioria dos judeus se apegava apenas ao cumprimento externo das tradições orais e dos preceitos
purificadores, o que na consciência do jovem Saulo soava como hipocrisia).
Apóstolo não teve uma juventude sã e alegre. Pelo contrário, conseguimos conhecer
melhor o Paulo dos anos posteriores se o virmos imbuído da profunda amargura do
homem “nascido sob o império da Lei”, e precisamente por isso mais capaz de
experimentar a enorme ALEGRIA DA REDENÇÃO, tal como a manifestou ao descrever
essas duas atitudes na Epístola aos Romanos.

Também o jovem Lutero viria a ser vítima desse complexo de infância, devido a uma
educação repressiva, e imaginaria assim um Deus severo e arbitrário; o fundador do
protestantismo pressentiu com razão que a solução do seu problema se encontrava
na Epístola aos Romanos, MAS, faltando-lhe uma direção espiritual esclarecida,
procurou a solução pelo caminho errado, por uma violenta autossugestão cujos
efeitos perduram até hoje.

A atmosfera que Saulo respirava na sua casa paterna era, pois, bem religiosa, embora
um tanto asfixiante. Nesse ambiente desenvolviam-se com facilidade o orgulho de casta
e o nacionalismo próprio dos judeus. Podemos imaginar o pai de Saulo como um homem
sério, íntegro e de poucas palavras. Não seria de se admirar que fizesse descer
generosamente a vara sobre o pequeno Saulo, que por sua vez não deixaria de lhe dar
motivos para isso: basta pensarmos no espírito feroz e contumaz do futuro perseguidor
de cristãos, antes de que a graça viesse transformá-lo. Não teria ele pensado no pai ao
registrar mais tarde, na Epístola aos Efésios (6,4), esta exortação pedagógica: “Pais, não
provoqueis à ira os vossos filhos?”.
É uma pena que não saibamos nada da sua mãe e de seus irmãos. O Apóstolo nunca se
refere à sua mãe; possivelmente morreu muito cedo e o rapaz teve de crescer sem
conhecer o seu amor. Talvez se explique assim o fato de se mostrar tão sensível e grato
à maneira feminina e materna com que foi tratado pela mãe de Rufo. (Romanos 16,13)
Na oficina do pai, o jovem Saulo aprendeu com os operários e escravos a tecer o pano
para tendas. Nessa altura, Saulo não podia antever o dia em que teria de recorrer a esse
ofício manual, e que havia de ser precisamente esse trabalho que lhe permitiria
conhecer Aquila e Priscila, seus futuros colaboradores, em cuja oficina viria a trabalhar.
Nem de longe poderia imaginar essas noites em Éfeso, em que teceria, enquanto falaria
com Apolo sobre a ação do Espírito Santo, que vai tecendo a sua obra nas almas, ou
aludiria alegremente ao Logos Eterno, que “se fez carne e (levantou a sua tenda) entre
os homens”.
Ao voltar mais tarde o olhar sobre a sua existência e a do seu povo, Paulo escreverá mais
tarde cheio de emoção: “Ó insondável profundidade da riqueza e da sabedoria e da
ciência de Deus! Quão insondáveis são as suas decisões e impenetráveis os seus
caminhos!” (Romanos 11, 23).
Por fim, chegou o dia, quando completou quinze anos, em que, como futuro rabino,
Saulo teve de mudar-se definitivamente para Jerusalém, a fim de ali frequentar a escola
do Templo. Deve ter sido um grande dia para Saulo, aquele em que pela primeira vez se
dirigiu a escola, sobretudo porque o reitor da escola era o famoso rabi Gamaliel,
respeitado por todo o povo, membro do Sinédrio – Conselho Supremo da Nação – e
homem de grande coração, que mais tarde chegaria a tomar a defesa dos Apóstolos
junto dos seus concidadãos.
Jerusalém transbordava de estudantes. A escola dos rabinos imprimia à cidade o seu
cunho peculiar, tal como a Universidade de Paris marcaria a Paris medieval.
Os rabinos que ali lecionavam não eram, no entanto, sábios escritores pagos pelo
Estado; viviam pobremente e, além da profissão de mestres, exerciam um ofício manual.
O grande Hillel (Gamaliel era neto de Hillel) era operário que trabalhava por horas, e o
rabi Jehoshua, carvoeiro. É provável que Saulo se encontrasse nas mesmas condições,
dado o espírito severamente econômico do pai: compreende-se assim a austera conduta
apostólica que haveria de seguir mais tarde, ao recursar-se a viver às custas das
comunidades cristãs.
Os teólogos de então dividiam-se em duas escolas: a de Hillel (de caráter conciliador e
flexível, que sempre achava um meio de suavizar a rigidez sufocante da Lei) e a de
Shammai, fanaticamente apegada a letra da lei.
Saulo tornou-se um fervoroso aluno de Gamaliel e avançou no Judaísmo. Os interesses
literários que adquirira em Tarso devem ter se esfumado pouco a pouco neste ambiente
religioso, embora Gamaliel animasse os seus discípulos a estudar a literatura grega.
Os estudos teológicos abrangiam: as tradições, prescrições da Lei e as verdades
religiosas extraídas da história do Antigo Testamento. Um rápido exame das Epístolas
demonstra-nos que Saulo estudou a fundo todas essas coisas e possuía uma cultura
bíblica impressionante, além de ser capaz de manejar o triplo sentido das Escrituras, de
acordo com os conhecimentos adquiridos na escola de Gamaliel: interpretação típico-
simbólica, a acomodatícia e a alegórica (que não vamos aprofundar agora).
Nessa época, apesar da vida cultural efervescente de Jerusalém (inundada de
estudantes), Saulo se movia por um único interesse que devorava todos os outros: o
interesse religioso. O que lhe tomava todas as energias era a Bíblia e nada mais que isso.
Aprendeu-a de cor em duas línguas. Isso explica como, sem carregar os volumosos rolos
das Escrituras, suas cartas estão cheias de alusões e citações (contaram-se cerca de
duzentas citações do Antigo Testamento).
Há qualquer coisa de impressionante no amor dos judeus pela sua Bíblia. Por ocasião
da destruição do Templo de Jerusalém por Tito, os judeus, que entendem de
preciosidades, desprezaram os vasos sagrados de ouro e prata dos holocaustos, as
Lâmpadas e candelabros, e até o peitoral do sumo-sacerdote, cravejado de grandes
pedras preciosas – só para salvar os rolos das Sagradas Escrituras. Este era o verdadeiro
tesouro do Templo.

ESTÊVÃO E SAULO

Depois de passados dez anos desde que Saulo deixara a universidade e se despedira do
venerando mestre Gamaliel, mas ainda jovem, por volta dos trinta anos, retornou a
Jerusalém (At 7,58). Não temos possibilidade de saber, com certeza, onde esteve, só nos
restam conjecturas. Seja como for, enquanto andava por longes terras, deu-se o
acontecimento mais importante e mais extraordinário a que o mundo jamais assistiu
desde o seu começo: A REDENÇÃO, levada a cabo sobre o cume do Gólgota. No seu
orgulho judaico, Saulo não dever ter se interessado muito pelas perturbações dos
galileus (deve ter pensado que esse carpinteiro da Galileia teria o mesmo fim de outros
que haviam sido mortos com seus adeptos). Mas, desta vez, o próprio LEÃO DE JUDÁ
erguera a sua voz e o universo escutara-o admirado (Am 1,2).
Saulo ouviu de longe o seu rugido. Três dos seus concidadãos que tinham estado em
Jerusalém por altura do Pentecostes e possivelmente se haviam convertido, contaram-
lhe os terríveis acontecimentos da Sexta-Feira Santa, enquanto outros anunciavam que
a agitação provocada pelo Nazareno estava longe de se acalmar. Morto, tornara-se
muito mais perigoso do que vivo: crescia assustadoramente o número dos seus adeptos
e nos últimos tempos tinham-se juntado a eles muitos sacerdotes das classes inferiores.
Podemos supor que ao ouvir sobre a conversão de um antigo camarada de estudo
(Barnabé) não pudesse se conter por mais tempo; mas também é possível que lhe
chegasse às mãos o convite do Sinédrio ou da comunidade de Jerusalém para
encarregar-se da repressão da nova seita.
Neste período, seria um erro considerar a Igreja de Cristo como uma entidade
independente e autônoma, com organização própria. Distinguiam-se os cristãos apenas
por uma crença impressionantemente fervorosa no Messias, pela caridade fraterna que
unia os seus adeptos, pelas refeições em comum e pelo culto místico e eucarístico a
Jesus, aliás envolto num certo mistério. (At 2,42-46). Estêvão era um dos seus principais
representantes, e aparentemente foi ele o primeiro a manifestar com clareza o valor
definitivo e universal da Igreja, contrapondo-o ao significado preparatório e limitado da
lei mosaica. Saulo encontrava-se, pois, diante de um inimigo respeitável.
Dirijamo-nos a Sinagoga de Jerusalém. A casa está repleta; terminaram já a leitura da
Escritura e o Sermão e começa a controvérsia. Por detrás de um pilar, Pedro e João
observam a cena. No centro sobre um estrado alto, vemos Estevão, e na sua frente
destaca-se um vulto esguio, consumido por um fogo interior: é o jovem rabino de Tarso,
que vai cruzar a espada com UM DOS MAIORES ESPÍRITOS DA JOVEM IGREJA.

A GRANDE BATALHA

Estevão odiava as habilidades e subterfúgios da Lei, era genial e magnânimo, e atacou o


ponto central da controvérsia pelo lado histórico: baseando-se nos Profetas, provou
primeiro que o Messias devia sofrer e morrer, e a seguir demonstrou que Jesus o
Crucificado era justamente o servo sofredor de Javé descrito por Isaías.
Mas para Saulo tal pensamento era inconcebível: como poderia uma criatura votada ao
sofrimento, condenada à morte como escravo sobre o lenho infame da Cruz, ser o
Messias? O jovem rabino depara aqui com o “escândalo da Cruz”, que se ergue como
uma ameaça diante dele. Mais tarde, haverá de servir-se dessa mesma ideia para
defender a fé (Gál 3,13), aproveitando-a com ousadia na sua acepção cristã: “Cristo
remiu-nos da maldição da Lei, fazendo-se por nós Maldição, pois está escrito: Maldito
todo aquele que pende do madeiro (Deut 31,23); por ora, porém, essa era justamente a
mais forte arma de ataque dos fariseus contra o cristianismo.
Compreendemos, pois, com que violência Estevão e Saulo, os defensores de duas
concepções absolutamente opostas acerca da vinda do Messias, tinham de enfrentar-
se.

Saulo era um contendor de forte talento retórico, mas Estevão demonstrou ser-lhe
amplamente superior. Ninguém podia resistir “à sabedoria e ao Espírito que o
inspiravam” (At 6,10), ao passo que Paulo só podia opor-lhe as áridas palavras da
Lei: “Maldito todo o que pende do madeiro”.
No entanto, Estêvão viu-se forçado por esse argumento a atacar toda a
interpretação judaica da Lei: a Lei e o Templo, os pilares da nação hebraica, não
passavam de simples etapas passageiras da História da Salvação, que se estende
com força pelo passado e pelo futuro, ultrapassando-os de longe; e o enorme erro
histórico do judaísmo consistia precisamente em dificultar todo o acesso a essa
perspectiva geral da história da humanidade mediante o pesadíssimo rochedo
constituído pela Lei e pelo Templo, numa vã pretensão de assim deter a irradiação
da graça divina.

Quando ressoaram essas palavras, toda a assembleia reunida na sinagoga se ergueu dos
bancos, como se fosse impelida por uma mola; todos se sentiram atingidos no ponto
mais vulnerável. A controvérsia transformou-se em tribunal e Estêvão foi levado até o
conselho do Sinédrio.
Não era difícil falsificar o sentido do discurso de Estêvão, e quando lhe deram a palavra,
voltou a vincular a ideia messiânica à História da Salvação, terminando o seu discurso
com tremenda acusação: “Vós vos tornastes traidores e assassinastes o Justo” (At 7,52-
53). Ecoaram pela sala gritos de fúria e ranger de dentes, Estevão, porém, alheio à
gritaria, ergue-se como em êxtase, de olhos fitos no céu. O Sumo Sacerdote resolveu
passar a votação. Saulo tinha direito de voto, pois era membro do Sinédrio. Mas como
votou? Não deu tempo de votar, a multidão já arrastava Estêvão até a porta de
Damasco.
Saulo correu atrás da multidão e assistiu ao martírio de Estevão. O único escriba
presente. A primeira testemunha empurrou Estêvão para dentro da cova, a seguir, a
segunda testemunha tomou uma grande pedra e lançou-a com toda força sobre o seu
peito, mas o golpe não foi mortal. Os homens estenderam os mantos brancos aos pés
de Saulo, para que nada os estorvasse na criminosa tarefa. Num derradeiro esforço,
Estêvão conseguira erguer-se e de braços abertos disse: “Senhor Jesus, recebei o meu
Espírito! Atiraram as primeiras pedras. O jovem caiu de joelhos e procurando Saulo com
um olhar moribundo, exclamou: ‘Senhor, não lhes imputeis esse pecado”. Terminada a
obra. Estêvão estava morto.
Saulo, porém, nunca seria capaz de esquecer este dia, e durante toda a sua vida o
remorso haveria de torturar a sua consciência (At 22,20;26,10; Gál 1,13, 1 Cor 15,9):
“Não sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus!”
A morte de Estêvão foi o preço que a Igreja primitiva precisou pagar para despedaçar o
invólucro nacional judaico e abrir o caminho determinado por Deus para se tornar a
Igreja Universal; e também o preço pelo qual ia conquistar o seu maior Apóstolo, aquele
que devia realizar essa cisão histórica.

Santo Agostinho diz que Paulo guardou os mantos dos lapidadores para assim
colaborar no crime através das mãos de todos, e que por isso a oração do moribundo
se ergueu ao céu sobretudo em seu favor: “Se Estêvão não tivesse orado assim, a
Igreja não teria tido Paulo” (Sermão 382).

Mais tarde Saulo saiu pela porta de Damasco em direção a Damasco, onde
teria o MAIOR ENCONTRO de sua vida. A mesma porta em que Santo
Estêvão foi apedrejado. Portanto, ele saiu abençoado pelo sangue de
Santo Estevão que é o sangue de Cristo, pois é preciso tomar o sangue
para derramá-lo. É por isso que o Martírio é sempre semente de novos
Cristãos.
Fim da primeira aula.

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