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Paulo

apóstolo
dos gentios

Pau/loj
avpo,stoloj
tw/n evqnw/n
A complexidade
da figura de Paulo
A COMPLEXIDADE DE PAULO

«[Paulo] pertence a três mundos e a três culturas:


hebraica, grega e romana
e todavia emerge de cada uma delas
com o vigor da sua individualidade
e encontra um ponto de referência somente na pessoa de Cristo
(…)
Esta comunicação viva e pessoal com Cristo
lhe deu a possibilidade de sair das culturas
às quais pertencia sem renegá-las» (P. Rossano)
J. Jeremias num escrito brevíssimo (1971)
exprime de modo incisivo aquela que é a convicção comum
que nem Tarso onde nasceu
nem Jerusalém onde foi educado
nem Antioquia da Síria onde foi co-envolvido
no movimento cristão de modo decisivo
- conseguem explicar Paulo, a sua obra e o seu pensamento
Mas somente Damasco

Sobre todos os componentes da personalidade de Paulo


(helenismo, judaismo, Igreja primitiva)
domina o evento de Damasco, nomalmente dito ‘conversão’
Jerusalém

Tarso Tarso

Jerusalém

Antioquia da Síria

Antioquia da Síria

Damasco Damasco
Joachim Jeremias

Para compreender a teologia do apóstolo Paulo, Brescia 1973


= Der Schlüssel zur Theologie des Apostels Paulus, Stuttgart 1971
Tarso

Tarso A chamada porta de Cleópatra

1. A COMPONENTE HELENÍSTICA
Tarso - cidade helenística e pátria de Paulo

No tempo de Paulo Tarso era capital


da província romana da Cilícia com aprox. 300.000 habitantes
Xenofonte a refere como cidade rica e muito populosa:
«[Na sua marcha os soldados de Ciro]
avançavam pela planura, sem parar
chegam a Tarso, cidade rica e muito populosa da Cilícia:
a cidade encerra o palácio do rei da Cilícia
e é percorrida pelo rio Cidno» (Anabasi I, 2,23)
A posição da cidade era favorável
seja pela agricultura seja pelo comércio
Era de fato no ponto de encontro das vias de comunicação
do Oeste (Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Mileto sobre a costa egeia)
a Leste (Síria Palestina)
e do Mediterrâneo para o Norte
através da passagem das “Portas Cilícias”
que permitia atravessar
a cadeia montuosa do Tauro
Ademais, Tarso era um centro de formação grega
sendo sede de escolas filosóficas e de retórica
as Portas Cilícias hoje
Mesmo se não frequentou a escola helenística (como alguns
pensam) mas aquela da numerosa colônia de judeus
Paulo aí aprendeu muito bem o grego comum
(= koinh. dia,lektoj) tanto que muitos pensam que
o grego fosse a sua língua materna
De fato ele cita pouquíssimas vezes a Bíblia hebraica (2 vezes)
e quase sempre a tradução grega da Septuaginta
(34 citações exatas, 36 com variações, 10 com fortes variações)
A moral paulina, depois, tem algum ponto em comum
com aquela dos filósofos estoicos
(em maioria, naquele tempo, também em Tarso)
mas poderia ter sido influenciado por eles depois de adulto
Paulo faz uso da diatriba
(= método dialógico de ensinamento
usado nas escolas filosóficas dos Estoicos e dos Cínicos)
das figuras de retórica e, como se viu, da sua dispositio
Paulo enfim é criativo no uso da língua grega:
ele cria neologismos, sobretudo servindo-se de preposições
que exprimem a participação no mistério de Cristo
cf. por ex.: «Por meio do batismo
fomos sepultados com Ele (sun-eta,fhmen)
na morte…» (Rm 6,4)
«… co-herdeiros (sug-klhrono,moi) de Cristo
se sofremos com (sum-pa,scomen) Ele
para que também sejamos com-glorificados (sun-doxasqw/men)»
(Rm 8,17)
As imagens e metáforas usadas por Paulo

O fato de ter nascido


numa grande cidade helenista
marcou Paulo
Diferente de Jesus, a Paulo não lhe vem espontâneo
tomar as suas imagens da natureza ou da vida dos campos
«Ele não vê a natureza inanimada
senão nas suas relações com o homem:
o seu reino é a psicologia» (F. Prat)
Paulo «é um introvertido para quem a verdadeira realidade
é aquela interior, espiritual» (P. Rossano)
Assim ele extrai as suas imagens não da natureza
mas da vida do homem
(nascer, morrer, gerar)
das atividade esportivas
(estádio, boxe, corrida, prêmio, coroa
cf. 1Ts 2,1-2; 1Cor 9,24-27; Gl 2,2; 5,7
Fl 2,16; 3,12-14; 4,1; Rm 9,16)
das atividades comerciais
(dar e receber, ganho e perda, comprar, resgatar
cf. Fl 4,15-18; Fm 17; 1Cor 6,20; 2Cor 2,17
Gl 3,6.13; 4,5; Rm 1,27; 7,14)
da vida militar (couraça, guerra, paz, armas
cf. 1Ts 5,8 2Cor 2,14; 6,7; 10,3.4; 11,8, Rm 13,12)
ou da vida urbana (teatro, cortejo para a visita do imperador,
tribunais, templos)
Substancial estranhamento de Paulo com helenismo
Não obstante tudo isso, Paulo não faz jamais referência
às cidades helenísticas e aos seus monumentos cujas ruínas
olhamos com admiração
e um só livro profano deixou o sinal nas suas cartas:
tomando-a da comédia Taide de Menandro (séc. iii a.C.)
Em 1Cor 15,33 cita a sentença:
«As más companhias corrompem os bons costumes»
Cf. também a citação dos Oráculos de Epimênides em Tt 1,12
e de Arato de Soli e Cleante de Asso em At 17,28
O pensamento paulino sobre homem não é aquele grego
baseado sobre o dualismo antropológico:
«A antropologia [unitária] de Paulo é a prova que ele
não é um helenista, mas um hebreu cem por cento» (L. Cerfaux)
Jerusalém

Jerusalém

2. A COMPONENTE JUDAICA
RABÍNICO-FARISAICA
Formação e identidade israelita

Sempre se discutiu sobre Paulo, se ele é hebreu


Ou se ele é um helênico
Esse debate pode ser visto na batalha contra ele, feita
pelos judaizantes que o consideravam muito helenizado,
inimigo da tradição judaica
Em 1800 a escola neotestamentária de Tübingen
(fundada por F.C. Baur, 1860)
considerava Paulo representante do partido helenista-universalista
contra o partido petrino-jerosolimitano ligado ao judaismo
O mesmo fizeram os estudiosos dos comparativismo das religiões
por exemplo A. Deißmann, W. Bousset ...
e, no século XX, R. Bultmann
«Da formação de Paulo não se pode anular a complexidade:
Paulo é um judeu que escreve em grego
que cita mais a Bíblia grega que o texto hebraico
A sua origem judaica não se pode certamente negar
e todavia é preciso levar em cont as suas relações com o helenismo
Por isso é distorcido e ‘escolástico’ o dilema
das duas opostas escolas exegéticas
entre o Paulo judeu (Cf. J.-M. Lagrange, S. Lyonnet ...)
e o Paulo grego (Cf. R. Bultmann, L. Cerfaux ...)
Paulo, como muitos judeus da diáspora,
pertence ao judaismo rico também de influxos helenísticos
(cf. E.P. Sanders, M. Hengel)
A sua formação não é muito diversa
daquela do grande judeu de Alexandria, Filão,
nem daquela do mais importante historiador judeu romanizado,
Flavio Josefo» (A. Pitta)
Paulo, de toda forma, reivindica repetidamente
uma identidade de israelita:
«Eu sou israelita, da descendência de Abraão,
da tribo de Benjamim» (Rm 11,1)
«… circuncidado ao oitavo dia, da estirpe de Israel,
da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus,
quanto à Lei, fariseu» (Fl 3,5; cf. também 2Cor 11,22 ...)
e sempre mais os estudiosos pôem à luz
a sua herança judaica, mesmo que não exclusiva:
«Tarso é a sua pátria civil onde receve a língua grega
que o faz de certo modo cidadão do universo
mas Jerusalém é a pátria da sua alma.
Para Jerusalém ele convergirá sempre» (Prat)
«A maior parte da sua teologia (= doutrina sobre Deus)
e da sua antropologia (= doutrina sobre o homem) revela
o seu retroterra hebraico» (J. Fitzmyer)
Tendo sido circuncidado escrupulosamente ao oitavo dia
deve depois ter sido iniciado já em Tarso
não às escolas helênicas mas àquela da colônia hebraica
que desde 171 a.C. tinha se constituído como tribo (fulh,)
com o direito de organizar a própria vida e o próprio culto
Das escolas hebraicas eram excluídos os livros pagãos
e o único texto era a Bíblia, em Tarso na tradução da LXX
Para a escola superior, em At 22,3 Paulo afirma
ter sido educado em Jerusalém
«aos pés de Gamaliel, nas mais rígidas normas da lei»:
(Gamaliel o velho, neto de Rabi Hillel
guiou uma escola rabínica entre 25 e 50 d.C.)
Métodos exegéticos

Sinal da educação rabínica de Paulo


são os métodos exegéticos por ele praticados
Como os rabinos, por ex. Paulo se serve da prova a fortiori:
«Está escrito na Lei de Moisés:
‘Não atarás a boca do boi quando pisa o trigo’
Acaso Deus se preocupa com bois?…
Certamente foi escrito para nós» (1Cor 9,9-10)
Outros métodos rabínicos empregados por Paulo são a analogia
o sentido consequente, a análise, o uso do contexto, dos paralelos
E se serve da regra chamada gezerah-shawa:
aquela pela quao dois textos bíblicos podem ser explicados
um com o outro se possuem em comum um termo
Ainda como os rabinos, Paulo procura o sentido tipico:
«Adão é tu,poj daquele que dovia vir»
(Rm 5,14; cf. também 1Cor 15,22.45.49)
E os Israelitas no deserto eram ‘tipo’ da Igreja:
«Ora isso [= a passagem do mar? /a morte dos idólatras?]
aconteceu como exemplo (tu,poi) para nós» (1Cor 10,6)
«Todas estas coisas aconteceram a eles como exemplo (tupikw/j)
e foram escritas para nossa admoestação» (1Cor 10,11)

Como os rabinos, por ex. em 2Cor 3,15-16,


Paulo usou também o sentido acomodatício:
«Até hoje quando se lê Moisés
um véu é estendido sobre o coração deles
Mas quando houver a conversão ao Senhor
aquele véu será tirado»
Assim Paulo em 2Cor 3,15-16. Mas no AT-Lxx Ex 34,34
é Moisés que torna a falar ao Senhor
(h`ni,ka de. eva.n eivsporeu,eto Mwush/j e[nanti kuri,w| lalei/n auvtw/|)
enquanto em 2Cor são os israelitas que se converterão
(h`ni,ka de. ea;n evpistre,yh| pro.j ku,rion)
à fé no Senhor Jesus
«O uso que Paulo faz do AT não concorda
com as nossas modernas ideias de citação da Escritura
mas é conforme ao modo hebraico contemporâneo a ele
e deve ser aceitado como tal» (Fitzmyer)
Pertença à corrente farisaica

Em Fl 3,5-6 Paulo diz de si mesmo:


«Quanto à Lei, fariseu
quanto ao zelo, perseguidor da Igreja
irrepreensível quanto à justiça que deriva
da observância da Lei»
Dentro do judaismo
Paulo escolheu, portanto, a corrente farisaica
pela prática religiosa severa
e, àquele tempo, não ainda fechada
e agressiva como se fez
depois do fim da nação no ano 70
3. A COMPONENTE PROTO-CRISTÃ

Antioquia da Síria

Antioquia da Síria
Paulo e Jesus

Interessado sobretudo no Cristo glorioso,


Paulo faz continuamente referência à sua Páscoa
Todavia L. Cerfaux reivindica uma substancial continuidade
entre o Jesus histórico e Paulo, sobretudo com relação
à crítica à Lei, ao farisaísmo, aos sacrifícios
e ao particularismo judaico

De Jesus, Paulo cita algumas raras palavras:


sobre a sorte dos mortos na parusía (1Ts 4,15)
sobre matrimônio indissolúvel (1Cor 7,10)
sobre sustentamento dos evangelizadores (1Cor 9,14)
Outras vezes, como em 1Cor 13,2; Rm 12,14; 13,9; 16,19 ...
se aproxima das formulações sinóticas
das palavras do Senhor
Da existência histórica de Jesus conhece o nascimento
da estirpe davídica (Rm 1,3), de mulher (Gl 4,4)
e a submissão à Lei (Gl 4,4)
Conhece os Doze e Cefas (1Cor 15,5 etc.)
a ceia na noite da entrega (1Cor 11,23)
a cruz (Gl 3,1 …) e a sepultura (1Cor 15,4)
mas não fala nem dos milagres de Jesus, nem das parábolas
nem das controvérsias com os judeus, nem do anúncio do Reino

A impressão que se tem é que tenha tido interesse


não no que era temporâneo (milagres, ensinamentos)
mas na identidade messiânica de Jesus e na soteriologia
(liberação da Lei, cruz e Páscoa)
Paulo e a tradição primitiva

Não obstante reivindique uma completa autonomia dos apóstolos


com relação ao Evangelho que anuncia (Gl 1-2)
na realidade Paulo extrai da tradição
Invocações aramaicas como Maranatha (1Cor 16,22)
e Abba (Gl 4,6; Rm 8,15) não podem vir
senão das comunidades palestineses (cf. Mc 14,36 para Abba)
O mesmo se deve dizer sobre hinos talvez pre-paulinos (Fl 2,6-11)
esquemas catequéticos (1Ts 1,9-10; 1Cor 15,3-7; Rm 10,9)
materiais ético-exortativos e litúrgicos (1Cor 11,23-25)
dossologias (2Cor 1,3; 13,13; Gl 1,5 ...)
Paulo às vezes fala explicitamente de tradição (parado,seij)
que recebeu e que transmite:
«Vos louvo porque conservais as tradições
assim como vos transmiti» (1Cor 11,2)
«Eu recebi do Senhor
aquilo que eu vos transmiti» (1Cor 11,23)
«Vos transmiti, portanto,
aquilo que também eu recebi» (1Cor 15,3)
Em 1Cor 11,16 se liga aos constumes das Igrejas:
«Se alguém tem o gosto da contestação,
nós não temos este constume (sunh,qeia)
e tampouco as Igrejas de Deus»
Não obstante a sua grande criatividade teológica,
Paulo retoma as fórmulas de fé e os títulos cristológicos
em uso nas Igrejas antes dele:
«Ninguém pode professar a sua fé
dizendo: “Jesus é Ku,rioj”
senão sob a ação do Espírito Santo» (1Cor 12,3)
«Se confesseres com a tua boca
que Jesus é o Senhor-Ku,rioj
e creres com o teu coração
que Deus o ressuscitou dos mortos
serás salvo» (Rm 10,9)
Paulo reconhece o papel insubstituível de Pedro
dos Doze, de todos os apóstolos e das Igrejas
das quais eles são colunas e representantes
não obstante deva, às vezes, defender deles a sua autonomia
ou submeter à crítica o comportamento deles (Gl 1-2)
Em Gl 2,2ss diz ter querido confrontar o seu Evangelho
com as autoridade de Jerusalém
para evitar que o seu apostolado
fosse uma corrida vã:
«Fui a Jerusalém,
expus às pessoas mais importantes
o Evangelho que eu prego entre os pagãos
para não encontar-me no risco de correr [= no futuro]
ou de ter corrido [= no passado] em vão (eivj keno,n)»
«é impossível cindir Paulo do cristianismo primitivo»
(L. Cerfaux)
Mas «qualquer coisa Paulo tenha herdado
do seu retroterra hebraico
dos seus contatos com o helenismo
e qualquer coisa tenha extraído sucessivamente
da tradição da Igreja primitiva
e da própria experiência missionária ...
– tudo foi transformado de maneira única
da sua compreensão do mistério de Cristo
adquirida sobre a via de Damasco» (Fitzmyer)
Paulo em Damasco - Paulo e Damasco

Damasco Damasco
Não Tarso
onde nasceu
Não Jerusalém
onde foi
introduzido na Lei
Não Antioquia Damasco
onde foi introduzido
na tradição
do protocristianismo
...
mas Damasco
explica Paulo
a sua personalidade
o seu pensamento
a sua obra apostólica
«avnasta.j poreu,qhti evpi. th.n r`u,mhn th.n kaloume,nhn Euvqei/an
kai. zh,thson evn oivki,a| VIou,da Sau/lon ovno,mati Tarse,a

- ... Vai à Via chamada Direita … e procura Saulo de Tarso» (At 9,11)
Damasco hoje: O suq
(antigamente “via Direita”)
Damasco hoje: a mesquita ommayade
Antes fora a Igreja de são João Batista
Damasco hoje:
a casa venerada como casa de Ananias
«910 Ora, havia em
Damasco um discípulo
chamado Ananias. Disse-
lhe o Senhor numa visão:
Ananias! Ao que
respondeu: Eis-me aqui,
Senhor:

11«...
vai à rua que se
chama Direita, e, na casa
de Judas, procura por
Saulo, apelidado de Tarso
...»
Somos informados sobre o que acontece em Damasco:

(a) de brevíssimos acenos do mesmo Paulo nas suas cartas


(1Cor 9,1ss; 15,8ss; 2Cor 4,6; Gl 1,15-16; Fl 3,12ss)
(b) de textos que se encontram em cartas consideradas
deutero-paulinas (Ef 3,1-12; 1Tm 1,12-16)
(c) de três relatos lucanos
em Atos 9,1-22 (narração do escritor, 22 vv.)
Atos 22,6-21 (autodefesa de Paulo à prisão em Jerusal. 18 vv.)
Atos 26,9-18 (autodefesa de Paulo diante do rei Agripa, 10 vv.)
Fontes neotestamentárias para o evento de Damasco

At 9,1-22 22 vv.
22,6-21 18 vv.
26,9-18 10 vv.
Escritos deutero-paulinos
1Tm 3,1-12 12 vv.
Ef 3,1-12 12 vv.

Cartas de Paulo
1Cor 9,1 1 v.
1Cor 15,8 1 v.
2Cor 4,6 1 v.
Gl 1,12. 15-16 2 v.
Fl 3,8. 12 2 vv.
Menções bíblicas de Damasco

Na Septuaginta
49 recorrências
No Novo Testamento
13 recorrências:
Atos 9 (6 recorrências) Damasco
Atos 22 (4 recorrências)
Atos 26 (1 recorrência)
Em Paulo
2Cor 11,32
Gl 1,17
Damasco em 1Cor 9,1
Damasco em 1Coríntios 9,1-18

Em 1Cor 8 Paulo escreve dizendo estar pronto


para abster-se de comer carne para sempre
por consideração a qualquer irmão cristão
Mas aquela renúncia à liberdade
podia ser facilmente criticada
pelos adversários Coríntios que podiam objetar:
«Se não tem autoridade e liberdade, Paulo não é apóstolo!»
Paulo prevê esta possível objeção
com quatro perguntas retóricas (1Cor 9,1)
todas introduzidas por partículas interrogativas (ouv - ouvk - ouvci,)
que deixam em espera de uma reposta afirmativa:
1: «ouvk eivmi. evleu,qeroj? - Não sou acaso livre?»
O sentido da pergunta é que, como todo cristão,
Paulo é livre
em particular, como cada apóstolo,
é livre de fazer-se manter economicamente

2: «ouvk eivmi. avpo,stoloj? - Não sou eu acaso um apóstolo?»


Para dar fundamento à pretensão (de ser apóstolo)
Paulo se refaz ao evento de Damasco
na terceira pergunta retórica:
3: «ouvci. VIhsou/n to.n ku,rion h`mw/n e`o,raka?
- Não vi acaso Jesus, nosso Senhor?»
Na última pergunta Paulo acrescenta uma segunda prova
da sua apostolicidade, que é a sua obra mesma:

4: «ouv to. e;rgon mou u`mei/j evste evn kuri,w|?


- E não sois vós a minha obra no Senhor?»
No contexto seguinte depois Paulo reivindica
com muitos argumentos de ter os direitos de apóstolo:
(a) Cada trabalhador (soldado, vinhteiro, pastor
lavrador, triturador) vive do seu trabalho
(b) Também a Lei mosaica pede que o boi coma
do seu trabralho (Dt 25,4)
pelo que a fortiori o apóstolo tem esse direito
(c) O Senhor mesmo disse que quem anuncia o Evangelho
desse anúncio tem direito de tirar o sustento
Paulo depois fornece os motivos
pelos quais não se vale desse direito:
porque ele não quer pôr obstáculos ao Evangelho
e porque anuncia o Evangelho não de sua vontade
mas, como os antigos profetas (Amos 3,8; Jr 1,6; 20,7-9),
por necessidade:
porque não pode resistir ou sobtrair-se à ação de Deus nele

Junto com a fundação das Igrejas, portanto,


o ter visto o Senhor em Damasco
é fundamento da apostolicidade de Paulo:
O evento de Damasco é a investidura apostólica de Paulo
e a obra missionária é a sua comprovação
Ouvk eivmi. evleu,qerojÈ ouvk eivmi. avpo,stolojÈ
ouvci. VIhsou/n to.n ku,rion h`mw/n e`o,rakaÈ
ouv to. e;rgon mou u`mei/j evste evn kuri,w|È

Não sou eu, porventura, livre? Não


sou apóstolo? Não vi Jesus, nosso
Senhor? Acaso, não sois fruto do
meu trabalho no Senhor?

Em 1Cor 9,1
Damasco
é visão
e fundação
da apostolicidade
de Paulo
Damasco em 1Cor 15,3-11
«3 Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que
Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras,
4 e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as

Escrituras.
5 E apareceu a Cefas e, depois, aos doze.

6 Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só


vez, dos quais a maioria sobrevive até agora; porém alguns
já dormem.
7 Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os

apóstolos
8 e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como
por um nascido fora de tempo…»
«9 Porque eu sou o menor dos apóstolos, que
mesmo não sou digno de ser chamado
apóstolo, pois persegui a igreja de Deus.

10 Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua


graça, que me foi concedida, não se tornou vã;
antes, trabalhei muito mais do que todos eles;
todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo.

11 Portanto, seja eu ou sejam eles, assim


pregamos e assim crestes»
O problema que Paulo discutirá até o fim do
longo capítulo 15 é exposto em 1Cor 15,12:
«Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos
como podem alguns dizer entre vós
que não existe ressurreição dos mortos?»
De fato, como os outros apóstolos, assim também Paulo
(«Seja eu seja eles, assim pregamos» 15,11)
anuncia um Evangelho centrado sobre:
Morte-Sepultura de Jesus e Ressurreição-Aparições
No elenco dos destinatários das aparições do Ressuscitado
Paulo se coloca também a si mesmo:
«… apareceu
(1) a Cefas-Pedro
(2) aos Doze; em seguida apareceu
(3) a mais de 500 irmãos de uma só vez:
a maior parte deles vive ainda
enquanto alguns estão mortos; além disso apareceu
(4) a Tiago, e portanto
(5) a todos os apóstolos. Último entre todos apareceu
(6) também a mim como a um abortivo»
Também aqui o evento de Damasco é para Paulo
investitura apostólica, e isso
não obstante o fato que ele ocupe o último lugar
no elenco dos destinatários das aparições
… antes, não obstante seja indigno desse título
porque perseguiu a Igreja (1Cor 15,11)
Em conclusão, em 1Cor 15:
(a) o evento de Damasco, mais que visão, é aparição
enquanto em 1Cor 9 era ativo («Eu vi o Senhor»)
em 1Cor 15 Paulo é passivo («… apareceu também a mim»)
(b) a cristofania é fundamento da apostolicidade
e - elemento novo -
(c) a cristofania é ca,rij - graça:
é a iniciativa gratuita e misericordiosa de Deus
que de um perseguidor extrai um apóstolo ardente
Aquele que entre os apóstolos é o feto abortivo,
em virtude da graça que recebeu e foi favorecido,
é aquele que se afadigou pelo Evangelho mais do
que todos (v. 10)
O antigo esquema catequético
de 1Cor 15,3-11

I.
MORREU Fato e escopo
FOI SEPULTADO prova

II.
RESSUSCITOU fato
APARECEU A (…) prova
e;scaton de. pa,ntwn
w`sperei. tw/| evktrw,mati
w;fqh kavmoi,

e, afinal, depois de
todos, foi visto também
por mim, como por um
nascido fora de tempo.

Em 1Cor 15,8
Damasco é
cristofania
aparição pascal
fundamento
da apostolicidade
de Paulo
E é graça
Damasco em Gl 1,12
Segundo as acusações dos seus adversários
Paulo pregaria
a liberdade - para os pagãos - da Legge mosaica
“para agradar aos homens”:

«Porventura, procuro eu, agora, o favor dos


homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a
homens? Se agradasse ainda a homens, não seria
servo de Cristo!» (Gl 1,10)
Paulo responde antes de tudo negando
de ter facilitado e adocicado o Evangelho
(«o Evangelho por mim anunciao não é segundo o homem -
ouvk e[stin kata. a[nqrwpon» v.11)
Desois nega de tê-lo recebido de homens
ou em particular da catequese [de alguma comunidade] (v. 12a)
Antes de Damasco, de fato,
era obstinado perseguidor da Igreja
[e, portanto, certamente não era catecúmeno] (vv. 13-14)
Depois de Damasco foi para a Arábia
sem subir a Jerusalém
para encontrar os Apóstolos (vv. 16b-17)

Ele, ao invés, recebeu o Evangelho


por revelação (= di’ avpokalu,yewj)
O texto e contexto de Gl 1,12

«11 Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim


anunciado não é segundo o homem, (ouvk e;stin kata.
a;nqrwpon)
12 porque eu não o recebi, nem o aprendi (ouvde. ga.r evgw. para.

avnqrw,pou pare,labon auvto. ou;te evdida,cqhn)


de homem algum,mas mediante revelação de Jesus Cristo.
(avlla. diV avpokalu,yewj VIhsou/ Cristou/)
13 Porque ouvistes qual foi o meu proceder outrora no
judaísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus
e a devastava.
14 E, na minha nação, quanto ao judaísmo, avantajava-me a

muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das


tradições de meus pais»
Então, o evento de Damasco em Gl 11- é:
é apocalipse do Evangelho,
ou bona notícia que diz respeito a Jesus,
e que Paulo recebeu
não de homens
mas diretamente de Deus (v. 12)
Em Gl 1,12
Damasco é
avpokalu,yij
-
revelação
do Evangelho
O texto e contexto
de Gálatas 1,16
«15 Quando, porém, ao que me separou antes de eu
nascer e me chamou pela sua graça, aprouve

16 revelar em mim o seu Filho


(avpokalu,yai to.n ui`o.n auvtou/ evn evmoi,)
para que eu o pregasse entre os gentios, sem detença,
não consultei carne e sangue,
17 nem subi a Jerusalém para os que já eram apóstolos
antes de mim, mas parti para as regiões da Arábia e
voltei, outra vez, para Damasco»
Aprouve a Deus, portanto, revelar a Paulo o seu Filho
(euvdo,khsen avpokalu,yai to.n ui`o.n auvtou/ evn evmoi,)
tendo-o escolhido, desde o seio de sua mãe
(avfori,saj me evk koili,aj mhtro,j mou)
e tendo-o chamado por graça
(kai. kale,saj dia. th/j ca,ritoj auvtou/)
Tudo isto em vista do anúncio evangélico aos pagãos
(evn toi/j e[qnesin)

Em Gl 2,7-8 Paulo explicitará


o caráter particular desta sua missão
colocando em confronto o seu mandato «aos gentios»
com aquele de Pedro «aos circuncisos»
Então o evento de Damasco em Gl 1,15-17 é:
(a) “apocalipse” “revelação” a Paulo do Filho
qual centro do Evangelho
e centro absoluto da história salvífica (Gl 1,16a)
(b) é chamada ao apostolado totalmente gratuita
(dia. ca,ritoj v.15b) e imerecida
como aquela de Pedro
é, ao invés, chamada ao apostolado dos circuncisos (2,8)
(c) é chamada profética porque descrita
com as palavras da vocação de Jeremias
(Jr 1,5: «Antes de formar-te no seio materno te conheci
estabeleci-te profeta das nações»)
ou do servo de Adonai
(Is 49,1: «O Senhor do seio materno me chamou
desde o ventre de minha mãe pronunciou ...)
Em Gl 1,15-16
Damasco é
escolha divina,
chamada,
graça,
e avpokalu,yij
do Filho
Damasco em Fl 3,8
Na serena carta aos Filipenses, o cap. 3
é, ao invés, duramente polêmico contra missionários,
provavelmente cristãos, defensores da circuncisão
Em duas réplicas contra eles
Paulo insere duas alusões a Damasco:
avlla, … hgemai zhmi,an (3,7):
mas... considerei perda

evfV w-| kai. katelh,mfqhn (3,12):


aquilo para o que também fui conquistado
A primeira vez Paulo se confronta com a vanglória deles:
«Se alguem pensa poder confiar na carne,
eu ainda mais do que ele» (3,4)

Paulo então elenca primeiro três motivos de glória


por ele herdados por nascimento. Ele é:
(i) circuncidado ao oitavo dia
(ii) Israelita da tribo de Benjamim
(iii) Hebreu de hebreus [= fiel à cultura, língua, estilo de vida]
e depois três motivos de glória
conquistados pessoalmente:
(iv) Quanto à Lei, fariseu (= observância radical)
(v) Quanto ao zelo, perseguidor
(vi) Quanto à justiça, irrepreensível
No início do v. 7 há um «mas (= avlla,…)»
que assinala a reviravolta do raciocínio
e que é uma alusão ao evento de Damasco:
«Ma aquilo que podia ser para mim um ganho
pelo motivo Cristo (= dia. to.n Cristo,n)
considerei uma perda (hgemai zhmi,an)»

Essa reviravolta de valore aconteceu em Damasco


A contraposição de ganho e perda
diz que em Damasco aconteceu
uma inversão de juízo de valor
sobre os privilégios históricos e morais do judaísmo
Passando a falar do presente,
Paulo confirma aquela mutação de perspectiva
e a reforça dizendo considerar como perda (zhmi,a)
e esterco (sku,bala) não só os privilégios do judaísmo
mas todas as coisas (pa,nta)
diante ao conhecimento superior,
sublime de Jesus Cristo (v. 8)
Agora Paulo, deixando perder qualquer outro valor
procura conquistar o Cristo,
experimentar a potência da sua ressurreção
e a comunhão com seus sofrimentos
«com a esperança de chegar à ressurreição dos mortos»
Texto e contexto de Filipenses 3,8

«Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu


ainda mais:
5 circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo

de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu,


6 quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça

que há na lei, irrepreensível!


7Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por
causa de Cristo.
8 Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da

sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor;


por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como
refugo, para ganhar a Cristo»
Paulo passa assim a falar do futuro,
e no segundo confronto com os seus adversários
Parece que se pode extrair do texto de Fl 3
que eles se consideravam já perfeitos
plenamente salvos e partícipes da ressurreição de Cristo.

Paulo, servindo-se da imagem da corrida no estádio,


diz de si de estar ainda empenhado na corrida:
«Não porém que eu tenha já conquistado o prêmio
ou que tenha já chegado à perfeição.
Somente me esforço em correr para conquistá-lo»
E acrescenta a segunda referência a Damasco escrevendo:
«… porque também eu fui conquistado por Cristo
(… katelh,mfqhn u`po. Cristou/)» (v. 12)
Mais do que esportiva, a imagem aqui
parece ser aquela da conquista militar
Texto e contexto de Filipenses 3,14

«12Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a


perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que
também fui conquistado por Cristo Jesus.

13 Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas


uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás
ficam e avançando para as que diante de mim estão,

14 prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de


Deus em Cristo Jesus»
Em conclusão, em Fl 3 Damasco para Puolo é:

(a) Conversão (mas falta a palavra explícita)


porque é reviravolta
de valores e de escolhas morais
Por isso os Filipenses, que podem ser desorientados
por um ensinamento novo e por modelos de vida errado
como aqueles introduzidos pelos adversários de Paulo,
têm um exemplo no Apóstolo.
Ele, de fato sente a necessidade de convidá-los à sua
imitação:
«Irmãos, sede imitadores meus e observai os que andam
segundo o modelo que tendes em nós» (v. 17)
dia. to. u`pere,con
th/j gnw,sewj Cristou/ VIhsou/

u`pere,cw = «me levanto, me ergo, ultrapasso,


me elevo»
Ilíada 11, 735: «o sol se elevou alto sobre a terra»
Odisseia 13,93: «surgiu a estrela»

u`pere,con = «o que supera tudo, o que se eleva


o que ultrapassa»
Em Fl 3,8
Damasco é
sublime Miquelângelo
Capela Paulina
conhecimento no Vaticano
de Jesus
como Senhor
e reviravolta
de valores
Em Fl 3,12
Damasco é
conquista
por parte de Cristo
sobre o campo
de batalha
ou na competição
esportiva
É início
da corrida de Paulo
Em Fl 3,12
Damasco é conquista por parte de Cristo, sobre o campo de batalha
ou na competição esportiva
O evento de Damasco :
síntese
O evento de Damasco foi:

1. Uma experiência religiosa determinante

«Ninguém pode pôr em dúvida


que Paulo, sobre a estrada de Damasco,
tenha vivido uma experiência religiosa determinante
Experiência natural para alguns, sobrenatural para outros
Para o não-crente a explicação do fenômeno
se encontra numa crise seja intelectual
seja moral de Saulo (…)
Para o crente a conversão vem
de uma intervenção direta de Jesus glorificado»
(B. Rigaux)
2. Uma experiência inter-pessoal

Os intérpretes se perguntam se, antes de Damasco,


houve alguma preparação
e se há uma preparação negativa
(= crise interior pela insatisfação
experimentada na prática da Lei)
ou uma preparação positiva
(= fascínio exercido sobre Paulo
pelos cristãos que perseguia
ou pela mensagem cristã
centrado sobre a Ressurreção)

Uma preparação, é possível hipotetizar


mas é insuficiente falar
de explicação psicológica de Damasco
3. Uma experiência não objetivável

Sendo uma experiência essencialmente mística,


o evento de Damasco não é objetivável, exprimível:
cf. 2Cor 12,2-4 onde Paulo diz de não ter palavras
para exprimir a experiência mística
na qual houve arrebatamento até ao terceiro céu
Isso é ainda mais verdade
se se considera o versante divino:
o que sucedeu em Damasco é indizível
porque faz parte do mistério de Deus
Para descrê-lo, Paulo e o autor de Atos recorreram
Sobretudo à linguagem bíblica,
com a vantagem ulterior de poder colocar aquele evento
no quadro da história da salvação
De fato, Paulo não faz a crônica do evento.
E nenhuma das suas alusões,
às vezes de uma só palavra,
nos permite responder
às muitas perguntas sobre as circunstâncias:
onde? em que hora?
de que modo? em companhia de quem?
e depois?
Nenhum nome: o nome da cidade de Damasco
só se pode ter de Gl 1,17 onde Paulo diz:
«E depois retornei a Damasco»
Mesmo assim do acontecido
muito foi falado (Gl 1,22-23!; At 9,21)
4. As linguagens usadas por Paulo

De vez em quando Paulo fala


utilizando a linguagem:
(a) da vocação profética
(b) da criação da luz
(c) das teofanias
(d) do apocalipse ou revelação escatológica
(e) da conquista militar
ou da vitória esportiva
(f) da conversão
ou mudança na escala dos valores
5. Uma fonte inexaurível
Paulo retornava de contínuo ao encontro de Damasco
como à fonte inexaurível do seu apostolado
Nos textos que nos deixou, ele escreve à distância de 20 anos,
Pelo que devemos levar em conta que eles
tenham sido já incorporados ao enriquecimento teológico
ocorrido com 20 anos de reflexão.
O contexto depois, que é frequentemente polêmico,
comporta uma seleção de certos aspectos, ênfase sobre eles,
e o silêncio sobre outros
Damasco, de toda forma, foi o evento
que dividiu a vida dei Paulo em duas.
Paulo mesmo fala
daquilo que ele era antes e do que foi depois:
portanto Damasco tem uma absoluta centralidade
na existência e na teologia de Paulo
6. Uma conversão? uma chamada?

Nos textos de Paulo a insistência sobre a conversão moral,


em todo caso, não é tão forte como na nossa catequese
e como no nosso calendário litúrgico
Em Damasco Paulo não é um pecador
que reencontra o caminho do bem
Dele mesmo ele dizia, de fato:
«Quanto à justiça,
que vem da Lei,
irrepreensível!» (Fl 3,6)
Não é tampouco uma conversão de uma religião a outra:
«Ele não considerava o cristianismo como uma religião
nova, distinta do judaísmo:
Paulo resta hebreu de raça e de religião» (L. Cerfaux)

Paulo considera Damasco como o momento no qual


a sua fé alcança a maturação e plenitude
e, se os judeus não acetaram de passar
através da mesma maturação messiânica,
serão eles que renegarão de fato a sua religião:
«Serão eles a ‘converter-se’ ou melhor a ‘perverter-se’» (L.
Cerfaux)
«Mais que um convertido, Paulo foi um chamado» (A. Pitta)
«Paulo, mais que ao cristianesimo, se converteu a Cristo» (H.G.
Wood)
Cf. o título de K. Stendahl «Call Rather than Conversion»
7. Não uma experiência privada mas histórico-salvífica

De toda forma aquela de Damasco


não foi uma experiência privada
mas uma experiência de relevância histórico-salvífica
A definição mais completa que Paulo deu
foi aquela da «revelação (avpoka,luyij)»
do Filho (Gl 1,16), e do Evangelho (1,12)
De destinatário de revelação
Paulo se fará depois anunciador de revelação
O evento de Damasco para Paulo

Damasco para as origens cristãs


O evento de Damasco para Paulo
«Persegui a Igreja» (1Cor 15,9 - Gl 1,13-14 - Fl 3,6):
‘Ter perseguido’ foi uma ferida que jamais ficou à margem
(não só diw,kein - perseguir mas porqei/n - devastar)

Primeiro foi apoiador (7,58: guardava os mantos por Estêvão)


depois tomou a iniciativa em Jerusalém (At 8,3: entrava nas casas)
depois fora de Jerusalém (At 9,2: pediu cartas para Damasco);
O livro dos Atos o faz responsável de massacre/morte (fo,noj At 9,1)
mas a coisa é muito improvável
O que a lei permitia era de pôr no cárcere
ou de infligir os 39 golpes de flagelo (cf. 2Cor 11,24)
A motivação era a defesa do templo, circuncisão e Lei
Era ligado aos Helenistas: «… alguns da sinagoga dos Libertos
Cireneus e Alexandrinos e daqueles da Cilícia e Ásia…» (6,9)
Era, portanto, uma questão interna ao judaísmo
Paulo escreve três vezes «Persegui a Igreja»
mas não escreve jamais «Persegui o Cristo»
enquanto, na tríplice réplica do episódio de Damasco,
os Atos põem na boca de Cristo a famosa frase:
«Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9,4; 22,7; 26,14)
Todavia é talvez possível reencontrar
também nas cartas de Paulo
o sinal da antiga rejeição que tinha nutrido
em relação a Jesus. De fato
nas cartas ele define Jesus e a sua cruz com epitetos,
agora resgatados em chave paradoxal e evangélica,
bastante duros e no limite da aceitação
para um ouvido cristão:
«Maldito aquele (= Jesus) que pende sobre o madeiro» (Gl 3,13)
«Jesus feito feito maldição» (ibidem)
«Jesus foi feito pecado por Deus» (2Cor 5,21)
«Jesus foi feito ministro de pecado» (Gl 2,17)
«A cruz é escândalo» (1Cor 1,23)
«A cruz é loucura» (ibidem)
[A cruz é] estultícia do mundo, fraquesa do mundo,
é a baixeza do mundo, é o não-ser (cf. 1Cor 2,27-28)
São afirmações que no fundo tem
um incancelável resíduo de blafêmia
e são provocatórias a tal ponto
que se explicam só como objeções judaicas
que o Paulo pre-damasco havia condividido
e às quais havia recorrido
para devastar a fé da Igreja.
Se assim é, então para a sua atividade de perseguidor
Paulo sentia de dever acertar as contas com a Igreja
em termos explícitos – e o faz ao menos três vezes
Com relação às contas com o Cristo,
que eram obviamente ainda mais altas,
queria estingui-lo
numa relação reservada e íntima,
sem expectadores ou juízes
Foi em Damasco que Paulo passou
do ódio da cruz à teologia da cruz
do horror da cruz à glória da cruz
Houve para ele um deslocamento do centro
de tal forma que começou a dizer:
«A palavra da cruz é potência de Deus» (1Cor 1,18)
«Para mim não há outra glória senão na cruz
do Senhor nosso Jesus Cristo» (Gl 6,14)
Foi deslocamento do baricentro da Lei a Cristo

O evento de Damasco se tornou


fonte inexaurível para ele
quando era criticado em Corinto
ou quando o seu trabalho era turbado
na Galácia ou em Filipos
O evento de Damasco para as origens cristãs
A contribuição peculiar da tradição paulina
Sem Paulo a missão aos gentios teria tido um outro curso
(proporções mais reduzidas, tempos mais longos, menor lucidez
teológica)
Mas os Evangelhos afirmam com evidência a abertura aos gentios
(Mt 28,19; Mc 14,19; 16,15…)
Inicialmente, por aproximadamente 15 anos
houve, portanto, dois canais diferentes:
«… sem consultar ninguém, sem ir a Jerusalém
fui a Arábia…» (Gl 1,16-17)

Depois houve confronto com “as colunas”


e a divisão do campo apostólico:
Pedro e Tiago aos circuncisos,
Paulo àqueles da não circuncisão (Gl 2,7)
A história cristã e as aparições do Ressuscitado
Em 1Cor 15 Paulo se coloca na lista dos destinatários
das aparições do Ressuscitado que têm um absoluta unicidade
para a fundação da fé neotestamentária
Sem as aparições os discípulos voltavam pra casa
«com o rosto triste» (Lc 24,17)
e tudo teria terminado não só para os discípulos
mas também para o Evangelho e para Jesus
Ao longo dos séculos a piedade popular se inspirou
nas aparições do Cristo, da Virgem e dos Santos
(… com conversões, orações, sacramentos)
muito mais que nas aparições pascais
Mesmo assim, as experiências místicas dos santos não são
indispensáveis. São ajuda e não fundamento.
Fundamento são as aparições pascais: também aquela de Paulo
Damasco revelou a Paulo o Evangelho: mas qual conteúdo?

De quem era apóstolo antes dele chegou para Paolo algumas palavras de
Jesus (o perdão, a mercê, a ceia …)
esquemas catequéticos, fragmentos litúrgicos, fórmulas de fé
E o que veio a Paulo do encontro de Damasco?
Não um outro cristianismo, mas fortíssimas acentuações:

- o Filho no lugar central que o judaísmo dava à Lei


- o Crucificado como escândalo e loucura, como sapiência e potência
- o Ressuscitado como avrch, do novo mundo
como e;scaton e ponto de chegada do judaísmo e da humanidade
- a urgência de anunciar o Filho, o Ressuscitado, o e;scaton
aos gentios, porque o Cristo era «Senhor» de todos (Rm )
« avna,gkh ga,r moi evpi,keitai
ouvai. ga,r moi, evstin eva.n mh. euvaggeli,swmai
«… anunciar o Evangelho … é uma necessidade que se me impõe:
Ai de mim se não anuncio o evangelho!» (1Cor 9,16)
No NT a exclamação ameaçadora ouvai, recorre
em Lc 15x, em Ap 14x, em Mt 12x, em Mc 2x,
mas depois jamais no Quarto Evangelho nem em Atos
Em Paulo recorre só uma vez: só aqui -
e exprime a exigência insupprimível
de anunciar aos outros a revelação recebida em Damasco
E Paulo a anunciou pondo-se no papel de profeta (Gl 1,15)
do apóstolo (cf. os prescritos de muitas suas cartas)
da testemunha (At 22,15 e 26,16) e do kh,rux (1Tm 2,7 e 2Tm 1,11)
kh,rux - anunciador
de Jerusalém até à Espanha

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