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Paulo no mundo do séc.

I
Paulo
e a epistolografia antiga
Desenvolvimento de ‘epístola’ no mundo helenístico

A ‘epístola’ como instrumento de comunicação


é antiga, talvez tão antiga quanto antiga quanto a escritura,
mas se tornou particularmente útil na época helenística:
A amplitude do império de Alexandre Magno, de fato,
havia criado a necessidade de superar grandes distâncias
no exercício de comércio, guerra, cultura, propaganda
Daí o grande desenvolvimento do gênero epistolar
que foi posto ao serviço também da literatura e da filosofia.
Platão, Sócrates, Aristóteles, Demóstenes, Epicuro etc.
escreveram verdadeiros e próprios tratados em forma de epístola
A extensão do império conquistado por Alexandre Magno
(IV século a.C.) tornou necessário o uso da epístola
Extensão do império e do mundo greco-romano
(sob o imperador Trajano, 98-117 d.C.)
A publicação do epistolário de Cícero
(106-43 a.C.; 931 epístolas: 769 dele, as outras para ele)
consagrou definitivamente a epístola
como peça de literatura
Da antiguidade nos provém apr. 15.000 epístolas.
No mundo helenístico houve, até mesmo, estudiosos e teóricos
do gênero epistolar:
cf. o Peri. evrmhnei,aj («Sobre o estilo») de Demétrio o qual,
com um certo Artemão, definia a epístola como
“a outra parte do diálogo
(to. e[teron me,roj tou/ dialo,gou)”
Características das epístolas helenísticas

Segundo H. Koskiennemi (1956 Oslo, Noruega)


para compreender a peculiaridade das epístolas helenísticas
é preciso ter presente três caraterísticas
(a) A filofro,nhsij («the friendly relationship» - a afetuosidade)
porque a epístola deve ser
como ‘o dom escrito’ de si mesmo
(b) A parousi,a (a presença) porque quando se está longe
a epístola faz com que se esteja presente um para o outro
para reavivar a amizade
(c) O dia,logoj ou o`mili,a (diálogo, troca de conversação)
porque a epístola permite dialogar
mesmo quando se está fisicamente separados
e de trocar notícias daquilo que é parte da própria vida
Material de escrita

Da antiguidade nos chegaram epístolas:

sobre óstraca (= fragmentos de terracota)


sobre tábuletas de barro secado ao sol
sobre tabuletas de madeira (cf. o pinaki,dion de Lc 1,63)
sobre folhas de papiro (cf. 2Jo 12: dia. ca,rtou kai. me,lanoj)
sobre pergaminho (cf. 2Tm 4,13: fe,re… ta. membra,na)
material de escrita:
óstraca
material de escrita:
tabuleta de barro seco ao sol
material de escrita:
o papiro
Material de escrita:
o pergaminho
material de escrita:
Tabuleta de madeira
com cera
Tinteiro
do scriptorium
de Qumran

O scriptorium
e os seus materiais:
estilete e tinteiro

Gravuras medievais
O mais antigo papiro do NT
o P52 (ou Papiro Rylands)

No verso do Papiro 52
estão os vv. 31-33 de Jo 18
e no anverso os vv. 37-38

verso anverso

Os judeus...a nós... (para isso) eu nasci...


ninhguém...assim a palavra... mundo para testemunhar...
disse indicando... da verdade.
Morrer. Entrou de novo... Disse-lhe... Uma vez que a mesma página de
pretório Pilatos E isso...
e disse... os judeus.. papiro está escrita sobre os dois
dos judeus. nenhuma...
lados, a folha fazia parte de um
códice, não de um rolo, uma vez
que no rolo se escrevia somente
no lado interno
As duas cartas de Pedro
do papiro Bodmer VIII (P72)
em fac-simile

O códice vaticano em facsimile

Para distinguir os seus livros sagrados


daqueles dos judeus que escreviam em rolos
os cristãos adotaram a forma do códice (= o nosso “livro”)
cistae ou capsae
para guardar os rolos
cistae ou capsae encontradas
em tumbas de época romana
na Palestrina
Paulo com a cista das suas cartas e das Escrituras
numa imagem antiga das catacumbas
E numa imagem moderna
Modos de escrever uma epístola

Os pobres e quem quisesse manter o segredo do escrito


escreviam com as próprias mãos. Geralmente porém:
(i) se ditava verbatim (uma palavra por vez)
ou syllabatim (uma sílaba de cada vez)
a um escriba profissional (cf. Gl 6,11ss; Rm 16,22 etc.)
(ii) se podia confiar a um amanuense (= escrevente ‘a mão’)
ou secretário, para compor a carta dando-lhe instruções orais
(iii) se podia dar a ordem de escrever a um secretário de confiança
(«Te peço de expedir a carta no meu nome
àqueles aos quais é necessário, como tu dizes»
Cícero, ad Atticum 3,3,21)
(iv) Existia também a figura do “taquígrafo”
que recolhia o conteúdo tomando anotações
com sinais especiais - como se faz na moderna estenografia -
depois se transcrevia a carta em escritura compreensível
Velocidade no escrever e tamanho das cartas
a posição do escritor que era muito incômoda
(sentado por terra, sem mesa, à mão esquerda segurando a folha)
e a rudeza do papiro tornava fadigosa e lenta a escritura.
Segundo os cálculos, talvez muito pessimistas, de O. Roller (1933)
se conseguia escrever três sílabas por minuto e 72 palavras por hora
Em base a estes cálculos, sariam necessáras 98 horas
para escrever a carta aos Romanos, que tem 7.101 palavras
enquanto a carta a Filemon, que tem 335 palavras,
requeriria 4 ou 5 horas de trabalho.
As cartas privadas que chegaram até nós, sobre papiro, são breves
(de 18 até 209 palavras):
as 769 cartas de Cícero possuem uma média de 295 palavras
as 13 cartas “paulinas” possuem uma média de 2.500 palavras
Rm é a mais longa do NT e da antiguidade (7.101 palavras)
A 3Jo, a mais breve (185 palavras) do NT.
imagens de escribas
imagens de escribas medievais
(com cadeira e escrivanhia
pouco usados na antiguidade)

Reprodução em várias cópias


de um texto
mediante o ditado
Saudação final autográfica

Na antiguidade em geral não se ‘assinava’, mas havia uma saudação


autográfica que dava valor legal à carta
e que, para o destinatário, confirmava
aquilo que o escriba havia escrito sob ditado
(cf. 1Cor 16,21; Gl 6,11; Fm 19)
«Vede com que grandes caracteres vos escrevo
de meu punho» (Gl 6,11)
«A saudação é de meu próprio punho, de Paulo.
Este é o sinal em cada epístola
eu escrevo assim» (2Ts 3,17)
O envio e o destinatário

A administração imperial tinha a sua rede postal


no cursus publicus (em casos excepcionais os portadores de cartas
podiam percorrer até 150 km num dia)
os ricos mandavano os seus escravos
(= tabellarii, portadores de tabletes ou tabuinhas escritas)
enfim existiam empresas privadas de distribuição postal
No oriente aquele que levava uma carta
anunciava o nome do remetente e do destinatário
que não eram colocados na carta
No mundo helenístico o carteiro tinha o encargo e a autoridade
de apresentar, interpretar e expandir a carta
com informações adicionais, de tal forma que o escrito
era como que só um esquema
a distribuição do correio
com o cursus publicus
em Noricum, atual Austria
Exemplos da importância do carteiro,
de cartas que foram conservadas em papiro:
«Horus, que levou a carta,
disse que tu foste deixada
e eu fiquei terrivelmente descontente»
(papiros de Londres 42)
«o restante, solicite a viva voz, te peço,
do homem que ti leva a carta
porque não é um estranho»
(Coleção de Zenão I,69)
Estrutura da carta antiga e formulário

O endereço no exterior
Sobre o externo de papiro ou pergaminho sigilados,
se escrevia o endereço com nome e lugar do destinatário
A formulação da carta escrita no seu interior previa:
cabeçalho (= praescriptum) com
- nome do remetente no nominativo (= superscriptio)
- nome do destinatário no dativo (= adscriptio)
a saudação (= salu-tatio)
Por exemplo: Cicero Attico suo s[alutem]
Seneca Lucilio suo s[alutem]
Em grego a salutatio era «cai,rein»
Por exemplo: Dhmofw/n Ptolhmai,w| cai,rein [le,gei]
Ação de graças ou bênção inicial:

depois do augúrio de boa saúde, o escrevente


rendia graças ou bendizia aos deuses
porque lhe haviam protegido e ao destinatário.
No corpo da carta os diferentes sentimentos ou mensagens
eram introduzidos com fórmulas mais ou menos convencionais:
«Me maravilho que… Vos declaro portanto que…
Certamente vós tendes ouvido falar de…»
A saudação final (= avspasmo,j - subscriptio) podia ser
também de uma só palavra (e[rrwso =
[imperativo perfeito passivo de r`w,nnumi = reforçar]
= «have strength /might»; força!
cf. o plural e[rrwsqe em Atos 15,29)
Colaboradores - FORMA E VALOR ECLESIAL
Para Paulo uma carta era uma operação técnica complexa
Devia adquirir o papiro ou o pergaminho
ou preparar ou adquirir o material de escrever
sobre o qual se devia traçar com um estilete
as linhas ao longo das quais depois escrever
Depois Paulo devia liberar-se, tomar informações acuradas
dos seus informadores, para discutir e elaborar a resposta
e depois ditar a carta a um escriba.
Um dia só podia bastar para cartas breves como Filemon
Mas para as outras (cartas longas) eram necessários certamente
muitos dias. E exatamente por isso alguns comentadores de
Paulo atribuem os saltos repentinos de um tema ao outro
ao processo de ditar ou ao período intermitente
Pode-se pensar que Paulo escrevesse as suas cartas
sobretudo na estação invernal
do momento que a navegação era fechada
de 15 de novembro até 15 de março,
tempo no qual era dificíl viajar
De fato quando ele escreveu a 1Coríntios
a primavera não tinha ainda chegado
(«Permanecerei em Éfeso até Pentecostes» 1Cor 16,8)
Co-remetente, co-autores e portadores

Provavelmente Paulo não concebia as suas cartas


em total solidão como alguns pensam, tendo uma visão
um pouco romântica de sua imagem.
Mais provavelmente ele as discutia com os seus colaboradores
e junto com eles elaborava o conteúdo
«Paulo consultava os seus companheiros
depois, exercitando a sua autoridade,
ditava persoalmente o texto» (J. Murphy-O’Connor)
«[Paul was] thinking and laboring together with a group
of close associates during most of his career» (S. Byrskog)
enfim, quando Paulo declara digno de confiança
confiável, pleno de solicitude e zeloso
por exemplo por Tito (2Cor 8,16-24) Epafrodito (Fil 2,25-30)
ou Tíquico (Col 4,7-9; Ef 6,21-22) …


é porque confia a eles,
além do encargo
de levar a carta
também o encargo
bem mais importante
de apresentá-la
e de ilustrá-la
às comunidade
de destinação
Paulo modifica as fórmulas das partes da cartas helênicas:
do prescripto, do corpo da carta, a saudação final

Amplificação (do latim: “amplificatio”) do prescripto


No prescripto de Gal, por ex., Paulo emprega 75 palavras
e na carta aos Romanos, 93 palavras
Isto é já surpreendente do ponto de vista da forma
(quase 100 palavras, ao invés das 4 de Cícero ou Sêneca)
mas, a maior razão, o é do ponto de vista do conteúdo
Amplificando o seu nome com o título de “apóstolo”
Paulo apresenta as suas credenciais
reivindica o seu direito evangélico de intervir
não como pessoa privada mas como plenipotenciário de Cristo
no exercício da sua missão
prescripto ciceroniano prescripto de Gálatas

Cicero «Paulo, apóstolo não da parte


de homens, nem por meio de
homem, mas por meio de Jesus
Cristo e de Deus Pai que o
ressuscitou dos mortos, e todos
os irmãos que estão comigo,

Attico suo Às Igrejas da Galácia

s[alutem] Graça a vós e paz da parte de Deus Pai


nosso e do Senhor Jesus Cristo que deu a si
mesmo pelos os nossos pecados, para
arrancar-nos deste mundo perverso
segundo a vontade de Deus e Pai nosso ao
qual seja glória nos séculos dos séculos.
Amém
O acréscimo dos co-remetentes
(por exemplo Timóteo em 2Cor, Fil, Fm -
Silvano e Timóteo em 1Ts – Sóstenes em 1Cor)
deixa entender que a carta
é uma carta oficial e eclesial
do momento que pode elencar testemunhas e colaboradores

Paulo frequentemente amplifica


também a designação dos destinatários
Recordando-lhes a sua dignidade evangélica:
cf. por exemplo Fil 1,1:
«A todos os santos (a`gi,oij) em Cristo Jesus
que estão em Filipos»
No prescripto enfim
Paulo transforma profundamente a saudação:
cai,rein (= fique bem)
se torna ca,rij (= graça – não mais a saudação
mas o dom gratuito e benigno de Deus em Cristo)
e além disso é acrescentado o augúrio da eivrh,nh
deste modo,
a saudação helenística
se torna augúrio cristão
com o enriquecimento da paz bíblica
Modificação da ação de graças

Também a ação de graças ou bênção


são trasformadas por Paulo.
Paulo não podia evidentemente agradecer os deuses:
Em todo caso, a sua ação de graças é a Deus
pelos frutos que o Evangelho produziu
em quem receberá a carta.
Depois se torna oração (= coloração litúrgica)
Para que os interlocutores de Paulo sejam fiéis
(= aspecto parenético)
até ao dia do Senhor (= referência escatológica)
Modificações paulina na conclusão da carta

Na parte conclusiva, além da saudação e do beijo santo


(«Saudai-vos uns aos outros com o beijo santo»
1Ts 5,26; 1Cor 16,20)
ao invés do augúrio de boa saúde,
Paulo coloca frequentemente uma doxologia
«Ao Deus e Pai nosso seja glória nos séculos dos séculos» (Fil 4,20)
ou uma bênção:
«A graça do Senhor Jesus esteja convosco.
O meu amor com todos vós em Cristo Jesus» (1Cor 16,23)
«A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus
e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós»
(2Cor 13,13)
Cristianização da carta helênica

A carta paulina não pretende cultivar a amizade ou os negócios


mas está ao serviço do anúncio evangélico
mirando à edificação da fé e da novidade de vida
A relação que quer aprofundar com a carta
é sobretudo aquela com o Cristo
Isto resulta desde o prescripto no qual Paulo reivindica
o título de apóstolo e recorda aos seus interlocutores
que são Igreja evangelizada e santificada por Deus em Cristo
(cf. agioi = santos, em 1Cor 1,2; Rm 1,7; Fil 1,1 ...)
O aporte de Paulo é tão original que se pode considerá-lo
o criador de um novo gênero literário
isto é, da carta cristã, apóstolica, eclesial
Depois dele a sua escola, os autores das cartas católicas
os Padres apostólicos (1Clemente, Inácio, Policarpo
o autor do Martírio de Policarpo ...)
os Padres sucessivos (Orígenes, os Capadócios, Jerônimo,
Agostinho ...)
os sínodos e concílios eclesiásticos, os papas e os bispos
não escreveram evangelhos mas cartas

A carta, portanto, não somente é gênero dominante no NT


mas na tradição cristã se tornou depois
o mais comum instrumento de comunicação, de magistério
e de ação eclesial.
dialogicidade e situação da carta paulina

sendo destinada por natureza a continuar a comunicação


entre duas pessoas quando estão fisicamente separadas,
a carta resultou instrumento estratégico de comunicação
quando o movimento cristão
alcançou uma grande difusão geográfica
e foi necessário manter contato com cidades e lugares longíquos
A expansão geográfica por sua vez pôs o problema
do encontro do Evangelho com a cultura greco-romana
em tudo isso a carta,
muito mais do que um evangelho ou de uma monografia histórica
era aderente à situação
isto é, aos problemas singulares e concretos
à organização da vida comunitária e missionária
Carta e presença apostólica de Paulo

Como na epistolografia antiga


em Paulo a carta representa o remetente,
é substituta da sua pessoa, da sua palavra
da sua presença física:
«Recordai-vos de mim, por meio desta carta,
como também eu me recordo de vós, sempre» (Bar 68,3)
Paulo preferiria estar presente em pessoa,
assim a carta é para ele um expediente
mas a sua presença epistolar é equivalente à física:
«… como nós somos com as palavras de uma carta
assim seremos também com a presença física» (2Cor 10,11)
«Por isso vos escrevo estas coisas de longe
para não dever depois, presente fisicamente, agir com
severidade» (2Cor 13,10)
Presença física, presença epistolar, envio de colaboradores
ou presença espiritual são formas e expressões diversas
da única presença apostólica de Paulo
Em 1Cor 5,1-5, por exemplo, ele anuncia por carta
que estará presente com o espírito
quando a comunidade coríntia entregará a Satana o incestuoso
para a ruína da carne em vista da salvação do espírito

é provavelmente sobre esas premissas


que é fundada a tradição
logo surgida e jamais interrompida
de ler as cartas apostólicas
na assembleia litúrgica
como textos sagrados e inspirados
GÊNERO LITERÁRIO: CARTAS OU EPÍSTOLAS

A distinção entre cartas verdadeiras e cartas fictícias


era feita já na antiguidade:
Demétrio critica Platão e Tucídides
porque escrevem verdadeiros e próprios tratados
deixando da carta só algumas fórmulas
Eusébio de Cesareia escreve a propósito
das cartas de Dionísio de Alexandria:
«Há junto de nós um grande número de cartas suas
[= verdadeiras cartas]
e de tratativas escritas em forma epistolar [= cartas fictícias]
como aquela ‘Sobre a natureza’ endereçada ao filho Timóteo
e aquele ‘Sobre as tentações’, dedicada a Eufranor»
Em época moderna, a partir destas premissas,
A. Deißmann (1895) propôs a distinção entre carta,
documento privado que tem como escopo
a comunicação com um destinatário real e irrepetível,
e epístola, que é, ao invés, uma tratação literária
destinada desde o início à publicação
e portanto a muitos leitores
As cartas em papiros encontradas no Egito,
convenceram Deißmann que também as cartas de Paulo,
como aquelas, são ‘peças de vida’
e não ‘peças de literatura’ ou epístolas
Paulo no mundo do primeiro século

aos Romanos - aos Coríntios - aos Gálatas –


aos Efésios - aos Filipenses - aos Colossenses –
aos Tessalonicenses - a Timóteo - a Tito –
a Filemon -
Paulo e a epistolografia antiga

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