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CULTURA E SOCIEDADE: ASPECTOS DA SEXUALIDADE NO NOVO

TESTAMENTO

Ocir de Paula Andreata1

INTRODUÇÃO

Como texto, o Novo Testamento registra os fundamentos do cristianismo como


uma nova religião no mundo antigo, bem como também marca a passagem da tradição
religiosa hebraico-judaica para a tradição cristã nascente. Como contexto, porém, as
ponderações sobre este tempo bíblico devem considerar suas raízes a partir do âmbito
do final da história hebraico-judaica, que começa por volta do Séc. VI aC, perpassando
pela vida de Jesus e seus ensinos conforme relatados nos Evangelhos, e indo até o final
do Séc. I AD, quando já todos os relatos bíblicos constam do atual cânon sagrado.
O ethos cultural deste período, levando-se em conta as culturas do pano de fundo
do mundo bíblico nesta passagem dos Testamentos, abrange as sociedades palestínicas
do entorno, e principalmente a cultura greco-romana dominante. Portanto, os fatos que
constituem este momento histórico vão além do estritamente textual no Novo
Testamento, o qual se desenvolve a partir da segunda metade ao final do Séc. I AD.
Este período pode considerar suas raízes a partir dos intensos acontecimentos
narrados pelos historiadores bíblicos deuteronomistas (1-2 Reis) e cronistas (1-2
Crônicas) no Antigo Testamento ao longo do Séc. VI aC em diante, com a decadência e
consequente queda do império assírio perante o babilônico, conforme relatados nos
textos exílicos e pós-exílicos (Daniel, Ester, Esdras, Neemias), e a presença forte da
pregação moral monoteísta dos profetas com a interpretação do sentido dos fatos
históricos como propósitos divinos (Habacuque, Jeremias, Ezequiel, Ageu, Zacarias e
Malaquias), bem como ainda o crescente humanismo da tradição de sabedoria descritos
nos textos poéticos e sapienciais (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos
Cânticos). Todo este fundo cultural é cada vez mais difuso porque cada vez mais
influenciado pelas culturas dominantes posteriores (persas, gregos e romanos) e confuso
pelo abissal “silêncio profético” após aproximadamente 450 aC até o advento de João
Batista já nos dias de Jesus (6 aC-30 AD).

1
Doutorando no Programa de Teologia na PUCPR, com pesquisa sobre o tema da Individuação; Mestre em Filosofia
e graduado em Teologia; Psicólogo e Especialista em Sexologia; professor e pesquisador universitário; coordenador
do Curso de Especialização em Sexualidade Humana, na Universidade Positivo. E-mail: ocirandreta@gmail.com.
Paralelamente ao mundo bíblico do Oriente Médio e Próximo, no âmbito das
cidades gregas (pólis) do outro lado do mar Egeu, desenvolve-se uma intensa cultura
humanística que influenciará todos os segmentos da vida individual e coletiva, a partir
do nascimento da razão pela mitopoese, pelas artes, teatro, esportes e pela educação,
notadamente pela filosofia, donde se destacam vários sistemas de éticas como propostas
de espiritualidade pela interiorização e pela normatização da vida, que se estenderão
pelo mundo romano até final do Séc. VI AD.
O desenvolvimento intenso da racionalidade entre os gregos para explicar os
fenômenos da vida põe o humano em lugar de primazia, gerando um antropocentrismo
para a vida social e política, centrado na capacidade de interioridade deste novo ser
humano. Obviamente, na medida em que a religião passa a ser substituída pela razão na
condução da vida, a moral é que se torna o novo limite supremo aos impulsos humanos.
O problema é que este limite da moral social é sempre flexível, na proporção da
evolução histórica do pensamento. Mudam-se os sistemas racionais, mudam-se as regras
de conduta. O homem fica mais esclarecido de seus impulsos e motivações, mas seus
ideais e ações ficam mais pervertidos.
Para continuar garantindo a “ordem e harmonia” do cosmos humano, social e
cultural, a própria moral também sente a necessidade de transcender seus limites e ir
além, conduzindo este “animal político”, pela via de “éticas cosmológicas”, à felicidade
da vida plena, conquanto primeiro que esta “vida plena” (eu zen) seja vivida nas
obrigações da vida na pólis, para depois, como prêmio a esta vida pública, o gozo da
imortalidade pelo retorno ao Uno. Ou seja, a filosofia questiona os fundamentos
religiosos e propõe uma concepção metafísica do mundo e tenta inserir uma ética no
lugar da religião. Mas também a filosofia ética não cessa seu devir de procurar novas
compreensões e propor novos sistemas de conduta, encontrando aí seu próprio limite.
A sexualidade é sem dúvida um aspecto central da manifestação e
desenvolvimento do fenômeno humano. E em meio a todo este ambiente histórico,
podemos afirmar que a sexualidade, nos confrontos das exigências morais da revelação,
com as liberdades das culturas das sociedades locais e as propostas éticas, constitui-se
também no centro dos embates bíblicos, tanto na abordagem à questão do prazer, como
na fruição dos desejos e paixões, bem como no uso dos bens da vida no mundo.
Portanto, abordar aspectos deste tema no âmbito do Novo Testamento é
relevante, pois se constitui no cerne do pensamento ocidental sobre a sexualidade, a
qual é sempre um desafio à compreensão humana.
1. FUNDAMENTOS METAFÍSICOS E ÉTICOS AO TEMA DA SEXUALIDADE

O cristianismo é essencialmente uma religião de revelação baseada na


experiência do amor, altruísta e comunitário, porém embasado numa moral, já herdeira
da moralidade hebraico-judaica expressa no Antigo Testamento, notadamente nas
normas da Lei (Torá) e especialmente na essência moral do profetismo até Jesus, mas
também influenciada pelas éticas gregas. A experiência cristã, portanto, é uma fé moral.
O Novo Testamento relata o nascimento do cristianismo e traz seu fundamento
doutrinário. Seus escritores, como seus antecessores no Antigo Testamento, são pessoas
comuns vivendo o cotidiano das suas sociedades e participantes ativos de seus
acontecimentos, porém muitas vezes contrapostos à cultura envolvente no que diz
respeito às exigências da revelação, notadamente quanto à sexualidade.
No contexto histórico que estamos abordando, o Cristianismo ganha projeção ao
propor a vida cristã como basicamente uma moral (Mateus, 5-7), apoiada pela fé num
só Deus, como sendo o “Lógos divino” manifestado em carne na “pessoa” de Jesus
Cristo (João, 1.1-3), uma metafísica ao estilo do pragmatismo de vida romana.
Como notam Boehner & Gilson (1985), este uso por João do termo grego Lógos
(Verbo) para designar o Cristo (Chistós) ou o Ungido (Messiah) prometido na
revelação do Antigo Testamento, é já uma recepção da metafísica grega aplicada à
mentalidade semítica, a transcendência na imanência, que se torna na teologia do logos.
Pessoalmente, inclinamo-nos à opinião de que as especulações dos gregos acerca do Logos
não eram desconhecidas ao evangelista, posto que o quarto evangelho foi redigido em
Éfeso, onde, a partir de Heráclito, se empregou o termo “Logos” para designar a
inteligência cósmica ou razão do mundo, princípio formal do ser e do conhecimento. É
provável que conhecesse também as especulações de Filo, o filósofo judeu, que via no
Logos a ideia divina do mundo, e o meio pela qual Deus opera no mundo. (BOHENER &
GILSON, 1985, p.18)

Portanto, o Prólogo do quarto Evangelho volta-se para o ponto de origem do


legado de interioridade ética, que já os pensadores pré-socráticos buscaram a partir da
reflexão sobre a natureza (physis) como um ser (óv), uma substância original (ousía),
um princípio ativo único gerador das coisas (arché), diferente da resposta mitopoética
de Homero e Hesíodo (cerca séc.VIII-VI aC), onde a ordem e harmonia da physis era
resultado dos deuses. Heráclito de Éfeso (c. 540-470 aC) explica o cosmos como
“ordem e harmonia” do “múltiplo no um”, através do contínuo fluxo de forças opostas
complementares num todo dinâmico e divino, que é o “Lógos”.
Por isso é preciso seguir o-que-é-com (isto é, o comum; pois o comum é o-que-é-com).
Mas, o logos sendo o-que-é-com, vivem os homens como se tivessem uma Inteligência
particular. (Heráclito, Fragmento B 2)

Este mundo (cosmos), que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez;
mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo, que se acende em medidas e se apaga
em medidas. (Heráclito, Fragmento B 30)2

A partir de Heráclito temos a idéia de cosmos associada à concepção de logos


como “razão ordenadora do caos” (Frag. B 1), que é tanto uma ordenação harmoniosa
como consciência racional das coisas num todo harmônico e dinâmico. Quer dizer, são
as primeiras respostas racionais à realidade existente, sem a mitologia.
Também Paulo relaciona Jesus, o Logos-Cristo de João 1, ao Deus originador e
ordenador (criador) do mundo e dos entes existentes, o transcendente imanente. E
também à sabedoria divina, fonte de todo conhecimento e justiça que nos é dada.
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criação; pois, nele, foram criadas
todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam
soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele
(Colossenses 1;15-16).
Mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de
Deus e sabedoria de Deus. (...) Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se tornou, da
parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção... (1 Coríntios 1.24,30).

Na cultura grega o logos foi entendido também como “razão”, que orienta todas
as relações humanas do indivíduo e da sociedade. O helenista Jean-Pierre Vernant
(2003) diz que a razão fez evoluir a vida na pólis e emancipou o cidadão para a ação da
justiça (diké), lei (nomós) e julgamento (krinen). “Esse quadro urbano define
efetivamente um espaço mental; descobre um novo horizonte espiritual” (2003, p.50). A
pólis como universo espiritual da vida e a sociedade como o logós que se torna
proeminente instrumento na “organização do cosmos humano” (Idem, p.87). E nesta
mudança da vida na sociedade grega, a religião também muda no direito e na moral,
com nova imagem ideal da virtude (areté), como vida moral, virtuosa e cidadã.
Isto quer nos dizer que o mundo que envolve o ethos bíblico no qual queremos
considerar a sexualidade é emergentemente metafísico e ético, onde os valores passam a
ser transcendentes, absolutos, e a ética do “andar e viver no espirito” (Gálatas 5.25) é o
valorizado, em detrimento das “obras da carne” (5.19) que devem ser o combatido.
Portanto, a ascese da moralidade bíblica se encontra aqui com o rigor das éticas gregas.

2
Os Fragmentos restantes do poema Sobre a Natureza, de Heráclito, mostram uma grande concepção
racional da natureza física e psíquica humana. Ver: Pensadores, Pré-socráticos, SP, Nova Cultural, 1978.
Vernant diz que esta filosofia da “ética de virtudes” permeou toda a
interpretação dos aspectos da vida humana individual, aos cuidados da corporeidade
(soma), à luta contra às emoções (epithimía, páthos) e à salvação da alma (psychê,
anima), e influenciou a religião exigindo, além do “conhecimento de si” (gnoti seauton)
também o “cuidado de si” (epimeléia reauto), tema que será apreciado também por
Michel Foucault em sua abordagem filosófica à História da Sexualidade (Vol 1-3).
Nos agrupamentos religiosos, não somente a areté se despojou de seu aspecto guerreiro
tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que representasse como comportamento
e forma de sensibilidade o ideal de habrosyne: a virtude é o fruto de uma longa e penosa
áskesis, de uma disciplina dura e severa, a meleté; emprega uma epiméléia, um controle
vigilante sobre si, uma atenção sem descanso para escapar às tentações do prazer, à hedoné,
ao atrativo da moleza e da sensualidade, a malachia e a tryphé, para preferir uma vida
inteira votada ao ponos, ao esforço penoso. (VERNANT, 2003, p. 88).

Isto implica também em certa “laicização acentuada da vida social pela moral”,
onde o ideal virtuoso de moderação (sophrosyne) passa a influenciar toda a vida política
(politéia), aliada à crítica racional feita por dramaturgos, filósofos e legisladores, que
buscam a reta justiça (dikaiousyne), justas leis (eunomia) e autonomia ao cidadão pelo
“cuidado de si”. A religião torna-se assim mais individual e subjetiva, em interioridade.
Virtude de inibição, de abstinência, consiste em afastar-se do mal, em evitar toda impureza:
não somente recusar as solicitações criminosas que um mau demônio pode suscitar em nós,
mas manter-se puro do comercio sexual, refrear impulsos do eros e de todos os apetites
ligados à carne, fazer aprendizagem... O domínio de si de que é feita a sophrosyne parece
indicar, senão um dualismo, pelo menos uma certa tensão no homem entre dois elementos
opostos: o que é da ordem do thymós, a afetividade, as emoções, as paixões, e o que é da
ordem de uma prudência refletida, de um cálculo raciocinado. (VERNANT, 2003, p. 94).

Ética como modo de vida e espiritualidade, “vida segundo o espírito” (theoría).


A dignidade do comportamento tem uma significação institucional; exterioriza uma atitude
moral, uma forma psicológica, que se impõem como obrigações; o futuro cidadão deve ser
exercitado em dominar suas paixões, suas emoções e seus instintos (2003, p. 96).

Educação ética em valores do espírito para a felicidade (eudaimonia).


Aristóteles distingue entre a felicidade que o homem pode encontrar na vida política, na
vida ativa – é a felicidade que pode conduzir à prática da virtude na cidade -, e a felicidade
filosófica que corresponde à theoría, isto é, a um gênero de vida consagrado totalmente à
atividade do espírito. (HADOT, 2004, p.121).

A essência desta ética eudaimônica grega é a consciência moral de virtude,


simplicidade e testemunho público de justiça e retidão de caráter. Isto concordará com o
paradigma evangélico de Cristo de “Quem perder sua vida, ganha-la-á” (Mateus 16.25).
A filósofa francesa Monique Canto-Sperber (2005) também enxerga na
influência da cultura ética grega o reforço à fé moral que se estabeleceu no cristianismo.
A concepção da interioridade do princípio moral sob a forma da consciência foi
abundantemente comentada na tradição cristã. Ela foi preparada pelo pensamento grego, e
particularmente pela predicação estoica, na qual a primazia da consciência revela a
orientação primordial do homem para o bem. (CANTO-SPERBER, 2005, p.47).

Mas, o que qualifica esta vida “espiritual e moral” como felicidade? A luta da
virtude contraposta ao vício, apesar da devassidão e licenciosidade com que vivia a
sociedade, cheia dos felizes prazeres da vida comum. O mal passa a ser perturbação e o
bem a estabilidade da vida; a salvação (sotéria), então, pode ser realizada aqui-e-agora
pela interioridade da vida no espirito (CANTO-SPERBER, 2003, p.613).
Platão (427-347 aC), em seus diálogos (Banquete, Fédon, Górgias,), já contrasta
a felicidade da moralidade proposta pelo ideal de virtude pregado por Sócrates, contra a
felicidade do hedonismo dos prazeres do corpo, das relações interpessoais e sociais,
contra. Mas, sua sugestão soa aos demais como um imoralismo intemperante. Sócrates
propõe, então, a busca da felicidade na moralidade da virtude e na retidão da vida
pública. Tal “felicidade da moralidade” torna-se o próprio “sentido da vida” humana.
Aristóteles (384-322 aC), na Ética a Nicômaco (EN), atenta para o fato de que
toda forma de prazer tem sua contrapartida na dor (EN II, 3,5-10). Portanto, é necessário
bem julgar (krinen) os desejos e paixões por uma régua, o justo-meio ou bom senso
(sophrosyne) e agir segundo a reta razão pela virtude da temperança (pronesis).
Os estoicos, segundo Émile Bréhier (1978), viam na alma (psychê) a razão
(lógos) para o controle das paixões (páthos) corpo: “A razão particular da alma humana
consiste no assentimento que se introduz entre a representação e a tendência ou
inclinação”. Assim, se estabelece a vida virtuosa do sábio (sophos) pela ação da alma
que controla a ação, pois “Toda a recusa da alma impede a ação”, pela qual se alcança o
ideal da apathéia ou a “ausência de paixão” (1978, p.57).
Os epicuristas, apesar de fazer da hedoné (prazer) o centro da vida, pois Epicuro
(341-270 aC) defendia uma “ética do prazer”, ainda assim é o prazer de examinar os
desejos e realizar a ataraxia (imperturbabilidade, tranquilidade) de uma vida simples.
Portanto, postos estes fundamentos, vemos que a moralidade torna-se o télos da
felicidade e do sentido da vida e isto significa renúncia aos prazeres inferiores dos
apetites carnais e a busca pelos superiores prazeres racionais. Portanto, na cultura e
sociedade bíblica neotestamentária é a virtude que se torna o prazer!
2. ASPECTOS DA SEXUALIDADE NO ÂMBITO DO NOVO TESTAMENTO

É importante relembrar que nesta época o grande processo de globalização da


cultura helênica (paidéia) desde Alexandre Magno (330 aC), também se reflete na
comunidade judaica da Palestina, onde a educação se amplia e ganha lugar de
obrigatoriedade ao jovem judeu. A época pré-cristã é plena de humanismo, onde escolas
rabínicas irão estabelecer influentes tradições teológicas. Filon de Alexandria (c. 200
aC) se destaca na ligação entre a filosofia grega e a teologia judaica. Há escolas
rabínicas, a de Shamai e a de Hilel; nesta última, mais tarde, estudará o jovem Paulo. 3
Mas, a reflexão sobre o tema do prazer, no âmbito da moral, não será abrangente
se não levar em conta o contexto histórico sociocultural das sociedades orientais, grega,
judaica e romana, que formam o pano de fundo de todo este desenvolvimento da
doutrina neotestamentária bem como da própria subjetividade moral ocidental.
Obviamente, tal contexto histórico é amplo demais para ser abordado com
profundidade na sua complexidade em poucas linhas, todavia é importante colocar os
principais pontos em tela para a reflexão do encontro e amálgama entre estas duas
correntes: a moral e a fé; a ética e a liberdade do prazer; a filosofia e a teologia. Vemos
aí uma recepção a partes das filosofias éticas gregas pelo judaísmo como pelo
cristianismo, que se aprofundará mais tarde no pensamento teológico da Patrística.
No histórico do Antigo Testamento, ao longo do desenvolvimento social
israelita, há mais liberdade e positividade4 para com o prazer que a abordagem
filosófica grega e cristã, como mostram literaturas poéticas orientais sobre o amor e as
relações afetivas, exemplificada na coletânea de poemas de amor do Cântico dos
Cânticos, que, em sua interpretação natural, constitui-se no livro de erótica bíblica.
Mas, na medida em que o monoteísmo cada vez mais se debateu contra a
poligamia para estabelecer a monogamia, cresceu um lugar de negatividade ao prazer na
literatura religiosa judaico-cristã. Este processo, a que chamamos de subjetivação da
moral e da fé, traz como resultado uma potencialização da culpabilidade do sujeito
religioso. Nesta subjetivação ou interiorização da moral e da fé, contra o prazer,
enxergamos a teologia tornar a fé cristã, após Paulo, numa fé moral.
2.1. Jesus e a Sexualidade
3
Tradição referida por DAVIS, John em seu clássico Dicionário Bíblico, SP, Vida Nova, 1977, p.449.
4
Textos e aspectos destas literaturas são encontrados nos historiadores: Jacques Le Goff, Paul Veyne,
Claude Mossé, François Lebrun, Georges Duby, Philippe Ariés, e outros, em Amor e Sexualidade no
Ocidente, POA, L&PM, 1992; em Reay Tannahill, O Sexo na História, RJ, Francisco Alves, 1983; e em
Jean-Louis Flandrin, O Sexo no Ocidente, SP, Brasiliense, 1988.
E é em meio a isso que Jesus aparece pregando: “tomai sobre vós o meu jugo...,
pois o meu fardo é leve e o meu jugo é suave!” (Mateus, 11.29-30), pois o “jugo do
amor” alivia a culpa do “fardo da lei”, na subjetividade daquele que o segue e o imita.
Mas a conduta cristã, seguindo a doutrina bíblica de que “O justo viverá pela fé”
(Habacuque, 2.4), é, assim, regida mais como modo de vida de fé do que pura moral,
como corrobora Canto-Sperber: “A palavra evangélica, que recomenda a renúncia, a
castidade, a pobreza e a humildade, é pois mais uma fé que uma moral” (2005, p.47).
O lugar desta nova ética da “Boa-Nova” (eûaggelion) de Cristo não é de fácil
definição, pois, ao mesmo tempo em que pressupõe obediência em dependência filial a
Deus-Pai (Mateus, 6.26-34; João, 15.7-14), prega uma experiência de nova e radical
liberdade (João, 8.30-37), e sob a regência da “regra de ouro” da práxis cristã em prol
do próximo, à qual Jesus resume toda a Revelação: “Tudo o que quereis que os homens
voz façam, fazei antes vós a eles, pois isto é a Lei e os Profetas” (Mateus, 7.12).
A identificação de divindade (Theós) à pessoa de Jesus como Lógos e Christós,
tal como o interpreta João no prólogo do seu Evangelho: “o Logos se fez carne e
habitou entre nós, e vimos a sua glória...” (João, 1.14), é um desvio radical na herança
grega sobre a transcendência do ser divino, para uma imanência da transcendência!
Esta “imanência da transcendência” em Jesus é que o filósofo Luc Ferry enxerga
como o marco da distinção da fé moral cristã, ao aproximar o “cosmológico-ético”
grego à cosmologia judaico-cristã, quando o Lógos se faz homem! (2004, p.231).
Neste ponto a Boa-Nova imprimiu uma segunda mudança radical no modo de
vida cristã, ao juntar exigências “cosmológico-éticas” à expectativa “escatológica” de
iminente “fim dos tempos”, a partir da afirmação feita por Jesus de que “voltaria outra
vez” (João, 14.1-3), conhecida como a Parousia, ou doutrina da Segunda Vinda.
Em suas origens, o cristianismo, tal qual se apresenta nas palavras de Jesus, anuncia a
iminência do fim do mundo e o advento do reino de Deus, uma mensagem totalmente
estranha à mentalidade grega e às perspectivas da filosofia, pois ele se inscreve no universo
de pensamento do judaísmo, que sem dúvida, subverte, dele conservando certas noções
fundamentais. (HADOT, 2004, p.333).

Segundo os Evangelhos e alguns historiadores judeus e romanos, Jesus viveu na


Palestina durante os reinados de César Augusto e Tibério, de 06 ou 07 aC até 30 dC, numa
época carregada de convulsões. Desde os Macabeus (170 aC), os judeus da Palestina
viviam um clima apocalíptico, prevendo a vinda de um Messias, prometido pelos profetas,
que salvaria o povo da opressão de seus dominadores, trazendo uma era de paz; veio em
meio a pobreza da população em geral e profundas diferenças sociais, percorrendo
aldeias pobres, entrando nas casas dos aldeões e participando do cotidiano deles.
A sociedade ainda mantinha casamentos arranjados pelos pais, que ocorria muito
cedo na vida dos jovens. Para as meninas, era a grande expectativa na vida e se casavam
no início da adolescência. Alguns historiadores pensam que Maria tenha se casado por
volta dos quatorze anos com José, um homem de meia-idade.
Jesus não normatizou a vida afetivo-sexual, pois afirmou que sua missão não era
a lei, mas libertar a vida humana do aprisionamento da excessiva regulamentação da
liberdade de viver, e trazer uma espiritualidade mais espontânea, pessoal e interior,
através de uma única lei: o amor! “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros,
como eu vos amei!” (João, 15.12).
Jesus, segundo Lima Vaz (2002, p.170), ao anunciar o advento do Reino de
Deus, no célebre Sermão da Montanha (Mateus, 5-7; Lucas, 6.20-49), lança as bases de
seu pensamento, trazendo uma das mais profundas revoluções éticas que a história
conhece, baseada em valores subjetivos como o amor e a solidariedade.
Neste Sermão, Jesus evidencia as pessoas que mais interessam ao Reino de
Deus e com as quais se envolverá, na famosa doxologia das “bem-aventuranças”: os
pobres de espírito, os mansos, os aflitos, os injustiçados, os misericordiosos, os puros de
coração, os pacificadores e os perseguidos (Mateus, 5.3-12). Em seguida estabelece o
padrão ético de uma vida baseada na prática de virtudes, “Vós sois o sal da terra...”, e
justiça, “... se vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino
do Céu” (Mateus, 5.13-16, 20).
Jesus traz uma novidade no padrão de julgamento, que se assemelha à ética
socrática, ao inverter a ótica da lei, que só pode julgar o ato acontecido, colocando o
foco sobre a interioridade da consciência, no desejo, como subjetividade da intenção,
antes do ato! (Marcos, 7.14-23).
Mas também Jesus reitera seu respeito às leis do Antigo Testamento e amplia
seus significados: “Não pensem que vim abolir a Lei e os Profetas, vim cumprir...”
(Mateus, 5.1-19). E é dentro desta ótica que fala do adultério, única norma sexual a que
faz referência: “Ouvistes o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Eu, porém, vos
digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso, já cometeu adultério
com ela em seu coração” (Mateus, 5.27-28, grifo nosso).
Neste texto, Jesus lança a questão do julgamento ético sobre o desejo, mas não
para condenar toda a sexualidade, como foi entendida por alguns Pais, e sim para tornar
todos os homens indesculpáveis e necessitados da graça oferecida, como único meio
para o desenvolvimento da conduta humana, em amor. Podemos entender que Jesus
pensa o desejo como motor da alma, que a dirige a todas as ações da vida, cabendo ao
homem tomar consciência disso.
Nesta ocasião, Jesus é questionado sobre a norma da carta de divórcio,
estabelecida na lei mosaica (Deuteronômio, 24.1-4). E aborda a questão deixando valer
uma exceção: em relação ao adultério. O texto de Mateus 5.31 usa a palavra grega
pornéia estritamente com o sentido de “adultério”, mas Paulo a usará num sentido tanto
de “adultério”, quanto de “fornicação” (1 Coríntios, 6.18), ampliando sua significação
também para sexo entre solteiros, o que se tornará dogma nos Pais.
Noutra ocasião, conforme relatado em Mateus, 19.1-12, ao responder novamente
sobre a questão do adultério, em resposta aos fariseus, Jesus fala da sexualidade
recorrendo ao argumento do “princípio” como estabelecido no Gênesis: “Nunca lestes
que o Criador, desde o início, os fez homem e mulher?” (v.4; Cf. Gênesis, 1.27). E
reitera o matrimônio como instituição humana: “E que também diz: Por isso deixará o
homem pai e mãe e se unirá a sua mulher e serão ambos uma só carne” (v.5; Cf.
Gênesis, 2.24). Então, Jesus reitera a regra da união em “uma só carne” (henósis),
reitera: “Portanto, o que Deus uniu, não o separe o homem”. João diz que Jesus iniciou
seu ministério participando de uma festa de casamento na aldeia de Caná (João, 2.1-12).
Sob a insistência da pergunta sobre a instituição por Moisés da Carta de
Divórcio (Deuteronômio 24.1-4), ele responde: “Por causa da dureza de vosso coração...
mas não foi assim desde o princípio” (Mateus, 19.7-8). Mas deixa uma cláusula: “quem
repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações ilícitas” (v.9). O termo usado por
Mateus é pornéia, “adultério”, relações fora do casamento.
Segundo William Cole (1967, p.155), Paulo, no significativo texto sobre a
sexualidade em 1 Coríntios, 6.15-20, usará desta asseveração de Jesus como norma à
pureza sexual ao identificar a “união numa só carne” (henósis) com uma “união
mística” entre duas pessoas através do corpo: “ou não sabeis que o homem que se une à
prostituta torna-se uma só carne com ela?” (6.16). Neste sentido de união mística, Paulo
normatiza a sexualidade nas relações dentro do casamento, sob o signo do amor ágape,
segundo o modelo do “amor entre Cristo e a Igreja” (Efésios, 5.22-33).
Cole diz ainda (1967, p.175) que, a partir da interpretação que São Jerônimo fez
neste texto de Efésios, traduzindo o termo grego mystérion ao latim sacramentum e a
associando-o a ideia paulina da henósis (mística de “uma só carne”), na sua Bíblia
Vulgata, como origem da teologia do casamento como sacramento e meio de graça.
Ainda na mesma ocasião de Jesus com o divórcio, ao responder a pergunta de
um discípulo, Jesus falou de três casos de eunucoidismo5, onde trouxe a idéia de
eunucos pelo Reino de Deus: “e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por
causa do reino dos céus” (Mateus, 19.12), que será desenvolvida mais tarde por Paulo
como recomendação: “é bom que o homem não toque em mulher... quero que todos os
homens sejam como eu sou, mas cada um tem o seu próprio dom...” (1 Coríntios,
7,1,7), e que servirá de base bíblica para o dogma católico do celibato.
O conceito de prazer em Jesus é valorizado a partir do casamento. À semelhança
dos profetas, ele também usa linguagem sexualizada em metáforas de núpcias, bodas de
casamento, com cortejo e festa: o Reino de Deus é uma grande boda de casamento, para
o qual todos são convidados e têm de vir adequadamente vestidos (Mateus, 22.1-14); os
fiéis são como virgens acompanhantes do cortejo nupcial da noiva e devem portar o
óleo da vida do Espírito em sua interioridade (Mateus, 25.1-12).
O próprio Jesus compara sua estadia na terra como um noivo em festa de
núpcias, cuja alegria compartilha com os amigos discípulos (Mateus, 9.15; João, 3.29),
usando a alegoria dos profetas do amor conjugal espiritual. Esta imagem de um
casamento hierogâmico entre Cristo-esposo e a Igreja-esposa, será usada mais tarde
também por Paulo (2 Coríntios 11.2; Efésios, 5.22), como modelo ao relacionamento
da Igreja com Cristo e dos casais, amor com que o homem deve amar a esposa.
Jesus demonstrou-se um homem sensível aos sentimentos humanos e tratou as
mulheres de forma inovadora para seu tempo. Lucas destaca a postura de Jesus quanto à
sexualidade feminina, através de vários episódios de curas e contatos com mulheres,
demonstrando a liberdade de comunicação de Jesus com o mundo feminino. Um grupo
de discípulas fazia parte de seu círculo íntimo diário (Lucas, 8.1-3). Permitia que as
mulheres se aproximassem, falassem e tocassem nele, relações públicas proibidas na
época, exemplo raro entre mestres orientais!

5
O eunucoidismo era prática milenar dos povos orientais, inclusive os semitas, em emascular homens
jovens para servirem nas cortes e haréns dos reis e aristocratas. Na economia da teologia bíblica há o
costume do nazireato, aos nazireus do AT como Sansão (Jz 14-16 não era imposta restrição à sexualidade
e casamento. Mas, ser “eunucos do reino” (Mt 19.10), significa ser voluntariamente celibatário. Para uma
discussão atual, veja-se: RANKE-HEINAMANN, Uta, Eunucos pelo reino de Deus: mulheres,
sexualidade e a igreja católica. RJ: Record, Rosa dos Tempos, 1996.
A relação próxima de Jesus com as mulheres, que certamente escandalizava os
judeus de sua época, é visto em várias partes dos Evangelhos: uma mulher siro-fenícia
se aproxima dele e o interpela rogando uma benção sobre sua filha adolescente (Marcos
7.24-30); outra mulher, sofrendo de um distúrbio no ciclo menstrual, toca-o, o que era
contra a Lei (Lucas, 8.43-48). Em certa ocasião, recebe unção do toque suave de uma
prostituta, durante um banquete na casa de um fariseu (Lucas 7.36-50); liberta uma
mulher adúltera de ser lapidada, segundo o costume da Lei, liberando-a, “vai e não
peques mais” (João, 8.1-11). Também João relata a célebre narrativa do diálogo de
Jesus com a mulher samaritana, que servia de amante em Samaria, num dos diálogos
mais reveladores da teologia com uma mulher (João, 4.15). Além do mais há a relação
de amizade com Maria Madalena, que parece ter sido sua mais íntima do círculo de
“discípulas” que ele mantinha junto consigo (Lucas, 8.2; Mateus, 27.55).
William Cole (1967, p.138) é de opinião que “O cristianismo em suas fases
iniciais viu-se, portanto, em um contexto de extremos em atitudes e práticas sexuais”;
contudo, “Nem Jesus nem Paulo pediam o controle rígido e moralístico dos desejos do
individuo pelo puro exercício da força de vontade” (1967, p.159).
Enfim, podemos pensar que o prazer é parte da postura pessoal de Jesus, em suas
atitudes de acolhimento, amizade e amor ao próximo, como de modelo de liberdade que
se goza dentro de um pacto de espiritualidade com Deus. Jesus não normatiza a
sexualidade, a não em relação ao adultério e divórcio quando estritamente questionado,
bem como também nada diz sobre a homossexualidade, pontos que serão discutidos na
verdade por Paulo, o normalizador da moral no Novo Testamento.

2.2. Paulo e a Sexualidade


Falando como apóstolo e organizador do pensamento cristão, e respondendo à
urgência dos problemas da expansão da Igreja, Paulo procurou normatizar a
sexualidade na conduta cristã, enfatizando a supremacia da virgindade, o matrimônio
como remédio à concupiscência, o controle do apetite sexual, o prazer como débito ao
casal, e outros, tudo sob a lei do natural.
Pela ordem das Epístolas conforme colocadas no Cânon, o primeiro texto de
Paulo sobre o prazer sexual que encontramos refere-se à dura condenação à
homossexualidade, tanto masculina quanto feminina! (Romanos, 1.18-32). Nesta Carta
aos Romanos, esboço de teologia da salvação (soteriologia), sua condenação tem a
força da lei de Levíticos, pois invoca a “ira de Deus” contra toda a “injustiça” e
“impiedade”, vistas aqui na associação entre religião e sexualidade, conforme ele vê no
mundo greco-romano (Romanos, 1.18-25). A mesma linguagem de idolatria dos antigos
profetas contra o “baalismo” é usada à religião que desonra o corpo: “Por isso Deus os
entregou, segundo o desejo de seus corações, à impureza em que eles mesmos
desonraram seus corpos” (1.24, itálico nosso). Tal como Jesus pôs a ênfase do “pecado”
sobre a “intenção” (Mateus, 5.26), Paulo também põe no desejo a fonte do mal.
Esta disposição será objeto de uma carta aberta aos “gentios”, cristãos não-
judeus, resultado do primeiro Concílio da Igreja, em Jerusalém, no ano 50, cujo último
preceito é: “e não pratiquem imoralidade sexual” (Atos, 15.22-29).
Neste texto de Romanos surge a primeira novidade da teologia cristã, proposta
por Paulo: a tese do sexo pela via do natural. Sexo “natural”, para Paulo, é a
heterossexualidade dentro do casamento. A homossexualidade é “desonra ao corpo”,
porque é sexo “não-natural”, pois: “mudaram o modo natural das relações” (1.27). Esta
será a grande tese da teologia cristã desde a Patrística sobre o sexo.
Outra novidade é a utilização de categorias ou listas de pecado (Romanos, 2.28-
32), que encontramos também em várias outras Cartas suas e que têm sido vinculadas
aos catálogos de vícios e virtudes dos estoicos. 6
Como reforço à condenação, Paulo desenvolve uma ontologia, apelando à lei da
consciência, que todos têm “escrita no coração” (Romanos, 2.14-15), de uma forma
inata, pois: “a verdadeira circuncisão é a do coração...” (2.25).
Estes temas da sexualidade são discutidos sob a primeira tese da soteriologia
(Romanos 1-3): a ideia da depravação total, pela qual todos são “pecadores
indesculpáveis, pois todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (3.23).
Ainda sob a ontologia da lei da consciência, Paulo argumenta sobre a liberdade
e a lei (Romanos, 7.1-13), contrastando a Lei de Moisés (objetiva, escrita) com a Lei
Natural (subjetiva, mental). Esta nomós (lei) manifesta a hamartia (pecado).
Outra novidade teológica é o constante dualismo espírito – carne. O espírito
(pneuma) corresponde à razão (psychê), ou “homem interior”, donde a “Lei da Mente”;
a carne (sarx) corresponde ao corpo (soma), ou “homem exterior”, donde a “Lei do
Corpo”. Este dualismo constitui-se numa constante luta interior do ser humano, um
conflito no interior, colocando-se ele mesmo como exemplo! (Romanos, 7.14-23).

6
Ver outras listas em: Rm.13:13; 1 Cor.5:10-11; 6: 9-10; 2 Cor.12:20; Gl.5:10-21; Ef.4:31 e 5:3-5;
Col.3:5-8; 1 Tim.1:9-10; 6:4; 2 Tim.3:3:2-5 e Tito 3:3. Ver também a discussão de ARIÉS, Philippe,
São Paulo e a carne, In: Sexualidades Ocidentais, SP, Brasiliense, 1985, p.50-53.
Após demonstrar a nomós interior como natural, Paulo traz outra novidade ao
colocar o cristianismo como uma religião da razão7, onde a santificação é conseguida
pelo esforço da vontade, através de uma “mente renovada” e “sacrifício ao corporal”
(Romanos, 12.1-2), semelhante ao postulado estoico.
Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo resolve problemas e desafios das
primeiras experiências da vida cristã dentro do contexto de liberdade vivida pelo
“mundanismo” greco-romano. Corinto, cidade cosmopolita portuária grega, era um
grande centro comercial na rota entre europeus e asiáticos, conhecida pela exacerbada
sexualidade do culto à deusa Afrodite, cujo templo era dos maiores do mundo e possuía
muitas moças sacerdotisas, como prostitutas sagradas.
É a “carta severa” de Paulo e onde mais se trata de sexualidade no Novo
Testamento, tanto que a Segunda Carta é usada mais para se desculpar e amenizar o
impacto das recomendações, que acabaram virando doutrina.
Paulo faz veemente condenação a um caso de incesto de um dos fieis da igreja:
“um dentre vós vive com a mulher do seu pai!”. E se irrita com a tolerância desta
“luxúria”, que causou cisão na comunidade (1 Coríntios 1-2). “É geral ouvir-se dizer
que entre vós existe luxúria... ainda maior do que entre os pagãos”. (5.1). E sua
condenação beira ao Levíticos: “Afastai o mau do meio de vós!” (5.4-5.9).
Outro ponto em que se aproxima da ética platônica é quando fala do desejo
sexual como um “movimento da alma”, pela metáfora da Páscoa, um “fermento” que
contamina todo o corpo: “Não sabeis que um pouco de fermento leveda toda massa?”;
“Purificai-vos do velho fermento para serdes nova massa” (1 Coríntios, 5.6-8).
Mostrando a autoridade de um “pai”, que em breve vai visitá-los “com vara” (I
Coríntios, 4.14-20), Paulo usa uma lista de “pecadores pagãos”, aos quais os cristãos
não devem “se associar”: os imorais, avarentos, idólatras, bêbados e ladrões (5.9-13).
Outra abordagem sexual de Paulo diz respeito à fornicação (1 Coríntios, 6.12-
19). O termo grego pornéia, antes usado por Jesus para designar apenas “adultério”
(Mateus, 5.28), aqui designa todo tipo de conduta sexual, seja auto, hetero ou
homoerótica, antes ou fora do casamento. É, sim, “prostituição” e “impureza sexual”.
Na opinião de Cole (1967, p.152), a palavra “pornéia”, antes restrita ao
“adultério”, no Novo Testamento, foi usada por Paulo também para “fornicação” ou
“prostituição”, significando “sexo entre pessoas não-casadas”. Sua correspondente

7
“Rogo-vos... que apresenteis vossos corpos em sacrifício vivo... este é o vosso culto racional” (Rm, 12,1);
“Todas as coisas me são lícitas... mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1 Cor, 612).
latina fornicare, do substantivo fornix, “arco, abóbada”, em ligação aos bordéis
romanos. Paulo está de acordo com a tradição rabínica que defendia a monogamia e
condenava toda relação pré-conjugal ou extraconjugal, com foco no corpo: “aquele que
se entrega à fornicação peca contra o próprio corpo” (1 Coríntios, 6.18).
Em relação ao corpo, Paulo traz outra novidade ao cristianismo: a salvação
inclui santificação do corpo, porque a imortalidade resultará na ressurreição do corpo!
(1 Coríntios 15). “O corpo não é para a fornicação e, sim, para o Senhor...” (6.13). Daí,
sua regra básica de restrição à liberdade: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me
convém... não me deixarei dominar por coisa alguma” (6.12). E usa o exemplo da
relação sexual com prostituta cultual para fechar sua idéia de corpo-templo: “Ou não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo” (6.19).
Para Paulo, o desejo8 é da ordem da sarx, que é concupiscentia, e deste vêm
todos os vícios ou “obras da carne”: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria,
feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras,
orgias e “coisas semelhantes” (Gálatas, 5.18-21). São contrários às virtudes ou “frutos
de espírito”: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão e autodomínio (5.22-23). E reitera: “Pois os que são de Cristo Jesus
crucificaram a carne, com suas paixões e seus desejos” (5.24).
Assim, chega à proposição da virtude ética, a autocrucificação, como método de
controle do desejo: “Estou crucificado junto com Cristo” (Gálatas, 2.19). E assim: “... o
mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (6.14). Logo: “Mortificai, pois,
os vossos corpos: a fornicação, a impureza, a paixão, os desejos maus e a cupidez, que é
idolatria” (Colossenses, 3.5). A mortificatio do corpo é o padrão moral ascético paulino.
Paulo dá a idéia de ser solteiro, celibatário: “digo às pessoas solteiras e às viúvas
que é bom ficarem como eu sou” (1 Coríntios, 7.7-8); mas, vencido pela força do desejo:
“Mas o pecado... engendrou em mim toda espécie de concupiscência” (Romanos, 7.7-8).
Paulo amplifica o significado da expressão de Jesus na discussão do adultério
(Mateus, 5.28), ao colocar sobre o desejo a origem da depravação humana e parece
apoiar a ética estoica das “paixões mundanas” e a vitória da vontade pela virtude: “Foge
das paixões da mocidade!” (2 Timóteo 2.22 e Tito 2.12).
2.3. Outros Autores do Novo Testamento:
8
A idéia paulina de que o “corpo é santo” e “será ressuscitado”, e que o “desejo é mau”, porque produz
“pecado contra o corpo”, é a grande novidade da moral cristã à ética ocidental. O corpo é bom, é
“templo” do Espírito Santo. Segundo SISSA, Giulia: “Se, para o filósofo grego, o prazer é impossível
porque o desejo é insaciável, para os cristãos o prazer é facilmente alcançável porque o desejo é como o
desempenho de um papel, realiza-se física e plenamente em sua própria representação”(1999, p.105).
A Carta aos Hebreus, de autor desconhecido, também contribuiu para a teologia
católica posterior e a prática da vida conjugal cristã, da Idade Média até hoje, porque
tomado no sentido de restrição ao prazer sexual na alcova, apoiando a teologia de Paulo:
“O matrimônio seja honrado por todos e o leito conjugal, sem mácula; porque Deus
julgará os fornicadores e os adúlteros” (Hebreus, 13.4).
Segundo Cole (1957, p.177), a leitura direta do texto mostra que ele não está
falando do prazer sexual, mas salvaguardando a alcova da infidelidade, dentro da
mesma doutrina de Paulo da henósis, a unidade mística do casal em “uma só carne”
(Mateus, 19.10-11; 1 Coríntios, 6.15-20). A alcova como salvaguarda ao matrimônio.
Tiago também alerta contra o pecado como subjetividade da alma humana pela
gestação do desejo (concupiscência), tornando-se ato: “Cada um é tentado pela própria
concupiscência, que o arrasta e seduz. Em seguida a concupiscência, tendo concebido,
dá à luz o pecado, e o pecado, atingindo a maturidade, gera a morte” (Tiago, 1.14-15).
Também lembra a “Lei régia” do amor do cristianismo: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo, como “lei da liberdade”, pela qual a transgressão do: Não cometerás
adultério, é julgada como falta de amor ao próximo (Tiago, 2.8-13). E reprova ainda o
“adultério do coração”, na linguagem típica dos profetas do Antigo Testamento:
“Adúlteros, não sabeis que a amizade com o mundo é inimizade com Deus? Todo
aquele que quer ser amigo do mundo, torna-se inimigo de Deus” (Tiago, 4.4).
Pedro também reforça as doutrinas paulinas da liberdade e restrição: “Amados,
exorto-vos... a que vos abstenhais dos desejos carnais que promovem guerra contra a
alma. Seja bom o vosso comportamento entre os gentios... Comportai-vos como homens
livres, não usando a liberdade como cobertura para o mal” (1 Pedro.2.11-12, 16).
Do mesmo modo, vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, a fim de que... sejam
conquistados sem palavras, pelo vosso comportamento casto e respeitoso. Não esteja o
vosso enfeite na trança do cabelo, no uso de joias de ouro ou traje de roupas finas, mas nas
qualidades pessoais interna... Com efeito, era assim que se adornavam as santas mulheres
do passado... estando sujeitas aos seus maridos. Como vemos em Sara, que foi obediente a
Abraão, chamando-lhe “senhor”. Dela sereis filhas, se fizerdes o bem e não vos deixardes
dominar pelo medo (1 Pedro, 3.1-6).

Pedro defende a igualdade e mutualidade entre homens e mulheres na casa:


“Também vós, maridos, compartilhai a vida comum do lar, dando às vossas esposas a
honra devida a companheiras de constituição mais delicada, co-herdeiras da graça da
vida, para evitar que vossas orações fiquem sem resposta” (1 Pedro, 3.7).
3. AVALIAÇÃO CRITICA

O lugar de negatividade que o prazer adquiriu na tradição filosófica grega é


reforçado pelas crescentes exigências da moralidade religiosa judaica e cristã.
Como resultado da reflexão sobre esta herança, três ideias principais se nos
sobressaem: a) a ética das virtudes é potencializada pela culpabilidade da moral religiosa
judaica; b) a ética cosmológica grega ganha a emergência da escatologia cristã; c) a
proeminência da realização do reino de Deus na realidade histórica do individuo e da
comunidade, sob iminência escatológica, leva a teologia cristã a pecalizar o desejo,
renunciar ao corpo e negar o prazer.
Os sistemas filosóficos gregos, conforme anuncia Pierre Hadot (2004, p.103),
também possuem em si uma “teologia” e prescrevem “exercícios espirituais”. De modo
geral, todas as recomendações dos filósofos para a “salvação” do indivíduo dizem
respeito à vida moral visam dirigir o comportamento, propiciar o bem e levar o ser
humano a alcançar a felicidade da vida boa. A singularidade desta “espiritualidade
filosófica”, porém, é o fato de ela advir da reflexão racional, por pleno exercício de
liberdade e autonomia do individuo como sujeito moral.
É óbvio que a moral cristã é releitura e aprofundamento da moral judaica
veterotestamentária. Todavia, precisamos enxergá-la, como indica Lima Vaz, invertendo
a ótica em relação à ética grega: ela não advém da livre reflexão racional, mas da
vivência social da fé religiosa monoteísta ao longo do desenvolvimento do ethos (2002,
p.170). É contrária à autonomia (autarchéia) grega, pois pressupõe de um lado uma
relação de dependência do fiel para com Deus, e de outro, um comprometimento deste
com a comunidade e o próximo.
A religião bíblica, como diz Paul Ricoeur (1970, p.682), é essencialmente uma
religião da culpa. E esta culpa ganha uma tônica distintamente subjetiva, na simbologia
do ser preso a um fardo opressivo, quanto mais é despertada a consciência da condição
humana perante a perfeição do divino. Mas, para Ricoeur, esta “interiorização da culpa”
traz “progresso à consciência”, na medida em que abandona a realidade coletiva externa
e focaliza a realidade subjetiva interna, pois a culpa tende a individualizar-se.
Por isso, Jesus aparece pregando: “tomai sobre vós o meu jugo..., pois o meu
fardo é leve e o meu jugo é suave!” (Mateus, 11.29-30), pois o “jugo do amor” alivia a
culpa do “fardo da lei”, na subjetividade daquele que imita seu exemplo.
Paulo é o grande doutrinador sobre a sexualidade enfatizando a castidade em
“em tempos de fim” e gerando uma rígida moral na realização do Reino, “por causa da
angústia do tempo presente” (1 Coríntios, 7.26,29), o que será teologia na Patrística.
Fica claro que, apesar de estabelecer normas sociais para a sexualidade, a moral
bíblica do Antigo Testamento é menos repressora que a do Novo, seus livros sapienciais
trazem uma visão mais humana e integradora da sexualidade, com riqueza poética e
valorização do prazer, contendo até mesmo um livro de erótica, o Cântico dos Cânticos.
Também a moralidade é central no ethos judaico devido à luta empreendida ao
longo de sua história por distinguir o pudor da fé monoteísta, contra a sensualidade do
politeísmo baalista das culturas religiosas circunvizinhas. No período pré-cristão, a
proximidade de crenças como as da religião persa influíram na concepção judaica da
origem do mal e sua associação ao corpo e ao prazer. É razoável inferir também que
houve influência da ética grega na teologia judaica através de sua vertente Alexandrina.
Em Jesus, claramente, vê-se maior liberdade de expressão, comunicação e troca
de afetos, com inovadora valorização às mulheres, muito além dos lideres religiosos de
sua época e que este pouco enfatizou questões de moral sexual.
Já em Paulo, primeiro doutrinador do cristianismo, encontramos um esboço de
teoria geral de moral sexual cristã, que é seguida pelos demais escritores
neotestamentários e serve de base à teologia patrística, cuja influência se mostrará
acentuada no pensamento de Agostinho. Contudo, devemos considerar o fato de que a
moralidade sexual preconizada por Paulo tinha o propósito de valorizar a pessoa e as
relações humanas, em meio a um combate contra a liberalidade da sociedade greco-
romana, reforçando valores éticos como a opção pela abstinência e o ascetismo.
Conforme disse a filósofa Giulia Sissa (1999, p.105), a diferença entre a ética
grega e a cristã sobre o prazer é que o desejo que antes era insaciável e irrefreável é
agora facilmente alcançável e passível de corromper o corpo, que é templo santo, e que
Jesus projeta a culpa na motivação antes do ato, como forma de desmascarar a
hipocrisia legalista judaica (Mateus, 5.28), o que Paulo usará como norma.
Concordamos que a ética da Patrística, como reitera Benetti (1998, 294), em
meio a este sincretismo de ideias, imprimiu novos valores cristãos sobre a sexualidade,
nesta ordem: a) superioridade da virgindade sobre o matrimônio; b) o prazer sexual
submetido à continência, mesmo dentro do matrimônio; c) o ato sexual conjugal como
concessão somente para a procriação e ilícito com qualquer elevação de gozo; d) o
celibato e a abstinência como virtudes superiores.
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