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CAPÍTULO 3

OS GRANDES PENSADORES DO LOGOS

“O Logos como desenvolvimento conceitual de uma realidade transcendente, imanente e


existencial, não é um mistério que se possa exprimir apenas no âmbito da filosofia grega,
judaísmo e cristianismo. O Logos mesmo, em suas profundas raízes, é universal e
manifesta-se em nossa existência sob as mais diversas formas: mítica, metafísica, poética,
científica, religiosa, política, Social, etc., e como tal, Ele próprio nos é dado,
independentemente do fato de a Bíblia e outros livros sagrados ou não, comunicarem
sentenças a seu respeito. Essas sentenças, ao contrário, são dirigidas a nós, justamente
porque nos foi concedida essa realidade mesma, acerca da qual se proferem sentenças” 1

3 As diferentes apreensões e conceitos

Conforme vimos no capítulo anterior, o Mythos e seu Epos lançaram as primeiras


bases da comunicação, significação e abertura para o Sentido em todas as suas dimensões e
reflexões, contribuindo para o surgimento do vocábulo Logos e o seu conseqüente
desenvolvimento conceitual.

Neste capítulo, estudaremos o vocábulo Logos como palavra mística que encarna um
Sentido universal e que se revela ao mundo, especialmente, o mundo grego, judaico e
cristão, como principio vital e fonte de energia da qual todos os seres humanos necessitam e
dependem, sendo ao longo dos séculos imperfeitamente apreendido e nominado de maneiras
diferentes, devido às limitações humanas, sobretudo e ao “zeitgeist” de uma época.

Veremos que semelhantemente ao termo Epos, o vocábulo Logos assim como a


palavra Dabar, possuem profundas implicações com a vida e o Sentido que lhes é inerente,
visto constituírem, ao mesmo tempo, Princípio vital do cosmos e do mundo dos homens,
sem o qual não haveria vida, ordem, beleza e harmonia universal, tampouco Sentido, em

1
Autor desconhecido.
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toda a acepção do termo. Isso porque, tanto no Epos mítico quanto no Logos grego e na
Dabar judaica, subjaz o mesmo princípio único 2 e vital, a Lei divina que ordena, sustenta e
mantém a vida, assim como o Sentido que lhe é inerente, e que desde sempre e eternamente
é universal e imutável. 3

Na verdade, no que diz respeito à vida, não é o ‘Sentido’ que muda, mas o que Dele
imperfeitamente se apreende e nomina-se e que poderá conformar-se ou não ao que lhe é
inerente. Por isso, é impossível ao ser humano dar sentido à vida, naquilo que lhe é próprio:
fundamento e Sentido último do cosmos e de tudo o que nele há. Somente sobre si mesmo e,
por conseguinte, sobre o mundo é que o ser humano poderá ou não criar e,
conseqüentemente, dar sentido.

Nietzsche, o mais brilhante apologista da vida, foi quem melhor compreendeu a sua
grandeza de sentido. Posicionando-se energicamente em defesa da vida e do sentido que lhe
é inerente, atacou os sistemas religiosos e culturais de sua época, especialmente o
cristianismo e também a filosofia, acusando-os de matarem a vida e roubar-lhe o sentido
que lhe é inerente.

Segundo Nietzsche, para se compreender o valor da vida, e ai ele utiliza a própria


filosofia como exemplo, [o que se aplica também a toda e qualquer área do conhecimento
humano], deve-se ultrapassar a estreiteza dos sistemas e entrar em contato direto com a
pulsação da vida; colocando-se a serviço da vida, e não a serviço do conhecimento ou de
interesses outros. Seu pensamento convergia no esforço de recuperação do sentido da
existência e das forças vitais instintivas, sufocadas pela racionalidade e ideais hostis à vida.
Apesar de todas as manipulações e coerções, Nietzsche queria atingir a afirmação da vida,
retomar o sentido da existência, seu vigor, sua potência. 4

2
O pensamento pré-socrático já é marcado pela concepção de um único princípio originário (a α̉ρχή divina).
(...) (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 132).
3
Para Aristóteles, Deus é o princípio comum de todo o movimento, bem como da imutabilidade de suas leis. (...)
Causa de todas as causas, a fonte de toda a atividade, o ato puro, ou seja, pura energia. (FONSECA, Dax. Logos
em Filon de Alexandria. p. 75-77).
4
BATISTA, William José. As Estratégias da Pergunta. p. 140. Sobre o sentido da existência e sua potência,
esta, enquanto elemento dinâmico composto de força e luz (vida) é sinônimo da Dabar judaica e do Logos grego.
Sobre o assunto, assim comenta Dax Fonseca, em sua Tese de Mestrado: “Enquanto o Logos, consiste na própria
unidade de Potência Divina, sobre a qual os mundos inteligíveis e sensível se fundem. Logo, Não há homem de
carne que possa ser, enquanto tão, considerado ou feito “filho de Deus”, senão em potência. (Dax Fonseca, Tese
de Mestrado, 2003, pp. 127 e 141). Mas o que é a vida? A essa questão, o próprio Nietzsche responde com “uma
nova concepção de vida”, que ele assim enuncia: “Vida é vontade de potência”. Por conseguinte, o ser humano,
sendo parte integrante dessa vida, enquanto potência dela derivada, é também vontade de potência. (CARMO,
Ferreira. A Vontade de Poder. Disponível em http://www.triplov.com/ista/escritura/carmo_ferreir.html).
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Para ele, o sentido da existência (e, consequentemente, o ‘Sentido’ da vida), é a


pergunta mais importante da filosofia, porque coloca ao mesmo tempo a questão da
interpretação e da avaliação. Esta lhe confere a um só tempo origem e valor. Entretanto, Por
detrás das pretensões de validade aparentemente universais de valor, se oculta a vontade de
poder, própria de toda valoração e de seus processos anônimos de dominação e sujeição das
vontades individuais. 5

Por isso, em relação à existência afirma Nietzsche “o seu único critério de avaliação é
a própria vida, cujo valor se impõe por si mesmo, e não pode ser avaliado. Um valor tem
que ser colocado a serviço da vida. Diante de cada valor, a questão que deve ser colocada é:
em que medida esse valor promove a vida e a conserva. Para explicar e defender a
existência, Nietzsche, transvaloriza o valor, a fim de revitalizar e reconciliar o seu sentido
de valor com o ‘Sentido’ da vida. A transvaloração nietzschiana coloca os valores a serviço
da vida, sob o ponto de vista da vida e não do conhecimento ou de interesses individuais. 6

Se em Nietzsche o bem contribui para a afirmação da vida, em Jesus o amor é o seu


principal fundamento, condição sine qua non e sentido último da existência. A grandeza de
Nietzsche consistiu exatamente em demonstrar que a existência, aqui representada pela vida
e o sentido que lhe é inerente, é muito mais do que aquilo que dela se apreende, nomina-se e
se representa, estando para além de Zeus, Deus, Aláh, etc., e da própria cultura.

Assim, a vida, semelhantemente ao Logos, possui o seu próprio Sentido, que é desde
sempre e eternamente o Sentido do Logos, de onde todas as coisas derivam e em relação ao
qual devem necessariamente estar de acordo (em conformidade).

3.1 Heráclito de Éfeso (504 a.C)

No capítulo anterior, vimos que o mito embora possuísse sentido e referência, não
revelava a Physis. A verdadeira natureza dos seres ainda estava oculta. Desta sua reclusão,
vai retirá-la o Logos, instrumento revelador de um Sentido universal que ao mesmo tempo
sinaliza, indica, aponta para a existência de um Ser supremo. Ora, mas em que consiste

5
BATISTA. op. cit. p. 141.
6
Ibid., p. 142-143.
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realmente a Physis? Que diz a doutrina heraclítica do Logos a esse respeito? 7 É o que
passaremos a nos ocupar no presente tópico.

Heráclito é por muitos considerado o mais eminente pensador pré-socrático por


formular com vigor o problema da unidade permanente do ser diante de uma lei universal e
fixa (o Logos), regedora de todos os acontecimentos particulares e fundamento da harmonia
universal, feita de tensões, “como a do arco e da lira”. 8 Embora seja verdade que a própria
palavra Logos jamais tenha sido empregada por Heráclito, não obstante, o sentido já se fazia
presente.9

Analisando uma série de seus fragmentos, chega-se à conclusão de que em Heráclito, a


Physis está no fogo, Pyr. De mero elemento cósmico, o fogo, contudo, exerce para ele
funções e apresenta propriedades que o fazem transcender o empírico. A princípio, esse
fogo seria mais uma arché, a substituir a dos pensadores milésios (Tales, Anaximandro,
Anaxímenes e Xenófanes) e suas teorias acerca da origem do cosmos. Houve naquelas
doutrinas algo que fascinva Heráclito: a idéia da origem do cosmos, e de seus componentes,
de um princípio primordial e universal que ultrapassa o simples científico. 10 Há de se aqui
destacar que Heráclito distingue entre os deuses em geral e uma divindade suprema, o Pyr
transcendente, recusando a idéia da proveniência do cosmos de um daqueles milésios, sobre
a gênese do mundo. 11

Corroborando com o pensamento do Efésio, as reflexões de Gomperz levaram-no a


formular a hipótese de que o Pyr-fogo heraclítico, suposto pela ekpýrosis, é idêntico a Dike,
à Lei divina, Lei superior aos próprios deuses. Nesse conjunto, é igualmente notável o
fragmento 16.12 Clemente, seu conservador, lhe antepõe a observação: “Talvez alguém se
esconda do fogo sensível áistheton pyr, do inteligível, noetón, porém, é impossível ocultar-
se”, paráfrase que situa perfeitamente o pensamento do Efésio. 13

Heráclito reconheceu um fogo superior, inteligente, Lei divina, igual a Dike, a


conduzir-nos ao “Um” divino do fragmento 114, 14 representado como “transmitindo vida às
7
BERGE, Damião. O Logos Heraclítico, p. 138.
8
REGIS, W. e SOUZA, Cavalcante. Os Pré-socráticos, p. 74.
9
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, p. 898.
10
BERGE., op. cit. p. 138-145.
11
REGIS, op. cit., p. 82- 97.
12
BERGE, op. cit., p. 245. Fragmento 16: “(Talvez alguém se esconda da luz sensível, mas, da inteligente, é
impossível, ou segundo diz Heráclito,) do que nunca se põe, como pode alguém ocultar-se?”
13
BERG, op. cit., p. 149.
14
BERG., op. cit., p. 289, Fragmento 114: “Aqueles que falam com inteligência devem fortalecer-se com o
que é comum a todos, assim como a polis <se torna forte. Pela lei, e ainda mais fortes <se tornam eles>. Todas
40

leis humanas, estendendo seu poder até onde quer chegar, suficiente para tudo e ainda o
excedendo”. Logo, se conclui que o “um” do fragmento 10 é realmente um ser “misterioso”
[Mysterium Tremendum]: é o “relâmpago” divino, keraunós, do fragmento 64, que “dirige”,
oiakizei, tudo; é, segundo o fragmento 41 o “Um sábio” cuja “inteligência”, gnóme,
“governa, ekybérnese, tudo através de tudo”. 15 É distinto não só das demais modalidades
ígneas, como dos princípios, arckái, a que outros pensadores fazem reverter o cosmos. 16

Em Heráclito, a Physis invisível é forte, tão poderosa que harmoniza as contraposições


mais agudas (noite-dia, inteiro-não inteiro, consoante-dissonante, etc) embora destas, nasça
a mais bela harmonia, conforme os fragmentos 8 e 51. 17 Os seres concretos são envolvidos
numa unidade tão firme que, num paradoxo contraditor da realidade empírica, o fragmento
50 pode afirmar “ser tudo um”, hèrn pànta eînai. Conferem os frags. 57, 58, 60, 88, 106 18 e,
sobretudo, o 10: “Articulações: inteiros-não inteiros, concorde-discorde, consonante-
dissonante, e de tudo um, e de um tudo”. Sejam quais forem às diversificações e
enantiologias exteriores, interiormente prende-os uma juntura poderosa, o Pyr, do qual
provieram. O pyr, atestou-o Clemente de Alexandria, é inteligente, assim confirma o
fragmento 32: “O Um, unicamente sábio, hén to sophón moûnon não quer e quer ser
chamado pelo nome de Zeus”. 19

Inteligente e dotado de vontade, o fogo, idêntico ao Um, governa o cosmos segundo o


fragmento 64: “Ao universo, ta pánta, governa-o o relâmpago, oiakizei keraunós”. O

as leis humanas, pois, nutrem-se do Um-divino, porque estende seu poder até onde quer, e é bastante poderoso
para todos [ou para tudo] e até excede a todos [tudo].
15
Sobre o relâmpago ou raio divino heraclítico, Martin Heidegger comenta: “Tudo o que é presente, o raio
mostra-o bruscamente, tudo junto, na luz de sua presença. O raio, agora nomeado, governa. A cada coisa conduz
a priori para o lugar de sua essência que lhe foi destinado. Um tal conduzir tudo ao mesmo tempo é o pousar que
recolhe, o Logos. “O raio” é aqui uma palavra para nomear Zeus. Este é, enquanto o mais alto de todos os
deuses, o destino de tudo. O Logos, o Hèn Pánta, não seria então nada mais que o deus supremo. O
desdobramento do ser do Logos daria assim um aceno para a divindade do deus”. (REGIS, W. e SOUZA,
Cavalcante. Os Pré-socráticos, p. 119).
16
BERGE, op. cit., p. 150-151.
17
BERGE, op. cit., p. 239-259, Fragmentos 8: “Aquilo que se obsta conduz à concordância, e das tendências
contrárias provém a mais bela harmonia” e 51: “Não compreendes como o discorde concorda consigo mesmo:
harmonia, reciprocamente tensa, como a do arco e da lira”.
18
BERGE, op. cit., p. 261, 263, 277 e 285, Fragmentos 57: “Mestre da grande multidão é Hesíodo. Estão
certos de que possui o mais amplo saber: <Ele> que nem conhecia o dia e noite. Pois, <tudo> é um”; 58: “(O
bem e mal são idênticos.) Além de trabalharem, queimarem e torturarem, de todo o modo possível, os
enfermos, os médicos reclamam destes pagamento, quando nada deviam perceber, por terem feito a mesma
coisa, o bem e a moléstia”; 60: “A rota para o alto e para o baixo é uma e a mesma”; 88: ” É uma e a mesma
coisa: o vivo e o morto, o acordado e o adormecido, o jovem e o idoso; pois, pela conversão, isso é aquilo, e
aquilo, convertendo-se por sua vez, é isso” e 106: “a) (Falando dos dias nefastos, Heráclito, censurou, com
razão, a Hesíodo por este ter declarado uns dias por bons, a outros, por maus, dizendo que) ignorava como a
physis de cada dia era uma e a mesma”.
19
Berge, op. cit., p. 162.
41

mesmo conceito de ser sábio e ser governador retorna no fragmento 41, cujo texto seria,
segundo a lição correntes de Diels-Karanz: “<Há só> uma coisa sábia, hén to sophón:
compreender o pensamento, epistasthai gnómen, que como tal governa tudo através de tudo,
hotée ekybérnese pánta dia pánton”. O Um-fogo, dotado de inteligência e de vontade,
governa o cosmos através de seu saber, que propriamente é o único verdadeiro a existir.
Este pensamento da divindade que rege o mundo espiritualmente pelo saber e querer, já
apareceu em Xenófanes. Desse modo, o Um-sábio “dirige tudo através de tudo”, ou seja,
dirige o cosmos, não imediatamente, mas por meio do Logos, mantenedor do equilíbrio. No
fragmento 114, diríamos aparecer uma fórmula nova, relativa ao Um: “Todas as leis
humanas nutrem-se do Um divino, hypó henós toû théiou: pois este estende seu poder até
onde quer e é suficiente para todos (ou para tudo) e até os (o) excede”. Em sua totalidade, os
tradutores e exegetas relacionam Hèn to theion com antrópeioi nómoi, neste sentido: “Todas
as leis humanas nutrem-se de uma lei divina” 20 ordenadora da vida. 21

Destarte, o fogo transempírico, a harmonia e unidade oculta, o Um sábio divino e


numinoso, é também a suprema divindade. Isso põe em relevo a imensa distância que separa
deuses e homens. Logo, comparado ao divino, o homem perde aquilo que de preferência
deveria caracterizá-lo: o ser forte e inteligente, as duas propriedades precípuas que, além da
imortalidade, os olímpicos consideravam exclusividade sua.

Heráclito ilustra isso muito bem nos fragmentos 79 e 83, salientando a superioridade
total do deus ao mesmo tempo em que demonstra o absolutismo da negação humana: o
homem é inferior “em tudo mais”, radicalismo que supõe a plenitude das perfeições divinas.
Em vista disso, pode outro fragmento, o 78, estabelecer sumariamente: “A índole humana,
êthos anthrópeion, não tem conhecimentos, gnómas, mas tem-nos a divina, theion”: isto é,
não em si, mas quando confrontado com o divino, o conhecimento humano é nulo. 22 Embora
o logos de Heráclito parta de reais prestígios e valores humanos para atingir o pensar
inteligente; ao confrontá-los com os divinos, reconhece a deficiência do ser humano e
termina proclamando a superioridade absoluta do divino. 23
20
Ibid., p. 163.
21
ROCHA, Alessandro. Teologia Sistemática, p. 28.
22
BERGE, op. cit., p. 165.
23
Ibid., p. 108, 165 e 167. Segundo Fílon, as Idéias “não são auto-suficientes, pois são dependentes de Deus para
sua existência”, não sendo do “mesmo grau de simplicidade e pureza”. Na segunda passagem, somos conduzidos
ao mesmo raciocínio, se delineando uma relação entre a alma, a razão, ou intelecto humano, e o Logos
transcendente e uno. O mesmo pode valer para o primeiro caso, na medida em que vemos que o intelecto (ou
logos) humano produz (concebe) pensamentos analogamente ao intelecto (ou Logos) divino. (...) Desse modo, a
relação entre Logos e mundo inteligível (que também é interno ao homem) somente é possível se considerarmos
este último em sua totalidade, como uma única Idéia (a do próprio mundo), enquanto unidade plural –
42

Contudo, é mister reconhecer que Heráclito, por seu próprio esforço, buscando a si
mesmo (frag. 101),24 soube descobrir, nesse ser inacessível o que os lógoi de seus
antecessores, em parte ao menos, não haviam encontrado: que o Um-transcendente é um
fogo, Pyr, supremo, transcendente, que pelo Logos exprimiu sua resolução de o cosmo
material constituir-se através do princípio transempírico da contraposição, desenvolver-se,
organizar e manter-se por suas próprias leis imanentes e que o governa pelo mesmo Logos.
Nesse ser e agir, o Um-divino pode ser denominado pelos homens de modos mais diversos:
suprema lei, Dike, governador, Keraunós; de acordo com a tradição, Zeus. 25

Ora, o Pyr-deus supremo revela-se à mente humana pelo Logos, na reflexão paciente e
prolongada, e na sujeição a este seu Logos.26 Mas esta obediência, por sua vez, é um ato
eminentemente religioso, [ainda que inconsciente], o culto mais digno que o homem poderia
prestar-lhe.27

Heráclito afirma que a grande maioria dos homens não pensa verdadeiramente, mas
“dorme”, “sonha”, inconscientemente do Logos, pois daquilo com que mantêm contínuo
contato, do logos, discordam (frag. 72). Para os que estão acordados Heráclito diz que há
um só mundo comum; mas, dos que dormem, cada qual retorna para o seu mundo. Assim,
por desconhecerem o Logos e Nele não confiar, os homens ignoram o deus (frag. 86). 28 Que
entrem, pois, em seu interior, onde reside o Logos e lhes forma a consciência própria: este
dirigir-lhes-á a vida! 29

Na doutrina Heraclítica do Logos, a constituição do Logos interior merece especial


atenção e reflexão. Na percepção atenta sobrevém ao homem, da parte dos objetos, certo
conteúdo que, superando as impressões sensíveis, invade a mente humana. Assim, ele
observa, apreende, nomina e representa. Entretanto, para nós, o conjunto desse processo
apreendida apenas enquanto “idéia de unidade” -, mas sempre inferior àquela de que é imagem e que a contém, a
saber, o Logos divino, ou intelecto de Deus. Portanto, toda Idéia é gerada assim como gerado é o próprio mundo
inteligível (...)”.
24
BERGE, op. cit., p. 283, Fragmento 101: “Busquei-me a mim mesmo”.
25
Op. cit., p. 174-175.
26
Op. cit., p. 119 e 139. Assim comenta Dax Fonseca em sua Tese de Mestrado: “os sentidos e a parte
irracional da alma devem obedecer ao logos, ou razão, ou palavra de sabedoria, que aqui aparece no papel do
intelecto platônico (cf. FÍLON, p. ex., 1996a, §§60-67, p. 165-169). Como diz Bréhier, “a virtude é como um
princípio de unidade (ἀρετὴ ἑνώσεως); o vício, é a dispersão e a instabilidade” (1950, p. 94). Em outras
palavras, o dualismo e o próprio pluralismo são tratados por Fílon como apreensões imperfeitas da razão
humana submetida aos sentidos corporais e governada pela parte irracional da alma, o que já não difere tanto
da perspectiva rabínica quanto pretende Guttmann.”.
27
Loc. cit., p. 175.
28
Loc. cit. cit., p. 277, Fragmento 86: “(A maior parte das coisas divinas, segundo Heráclito) subtrai-se ao
conhecimento devido à falta de confiança”.
29
BERGE, op. cit., p. 119-176.
43

mental é operação nossa, apesar de seu conteúdo inicial nos ter sobrevindo; damo-lhe
expressão em termos próprios nossos. Estes, no entanto, são sempre reduzidos, não
conseguindo enunciar o pleno sentido de nosso pensar. Na verdade, a maneira de se
interpretar o ato formativo da idéia não consiste na combinação “aperceptiva” do conteúdo
proveniente do perceber sensível pela qual “transformaríamos” em idéias e em conceitos e
lhe daríamos “redação” lógica; tampouco, constitui nosso esforço de “distinguir, coordenar,
hierarquizar” o conteúdo; porém, ela reside entre a recepção-representação do conteúdo e
nosso próprio trabalho mental de, pensando, estabelecer suas relações – no ato, dir-se-ia
expresso pelo “homologar” heraclítico. 30

De igual modo, Heráclito também analisa e interpreta. A força pensante, porém, autora
desses processos, é para ele o Logos. Este, a primeira vista, não se apresenta como ato
humano: é transmitido ao interior do homem pela Physis que nele se revela ao intelecto
como verdade vinda do exterior. Assim, não só o primeiro impulso ao pensar provém de um
fator extra-humano, mas o processo intra-mental inteiro é apresentado como função do
Logos invasor. Em seu interior, o homem acolhe-o, ouve-o, epaíei (frag. 112), termo que o
Efésio, uma vez mais, parece ter sido o primeiro a utilizar. 31

A esse respeito, a Cabala ensina que os nossos pensamentos não se originam na


matéria física do cérebro, assim como a música não se origina no objeto físico de um rádio.
Em vez disso, o cérebro é como uma antena, uma estação receptora que capta um sinal e
depois o retransmite para a mente consciente. 32

Durante a década de 1950, o brilhante neurocirurgião Wilder Penfield iniciou uma


extensa pesquisa sobre o fenômeno da mente-cérebro. Depois de 40 anos de estudo
profundo, Penfield admitiu que havia fracassado. Em Mistério da Mente (Princeton
University Press, 1975), um livro notável que detalha décadas de sua pesquisa, Panfiel
escreveu: “A mente parece agir independentemente do cérebro da mesma maneira como um
programador age independentemente de seu computador, não importando o quando ele
possa depender da ação do computador para determinadas finalidades”.33

30
Op. cit., p. 184.
31
Ibid., p. 184.
32
BERG, Rabi Yehuda. O poder da Cabala, p. 144.
33
Ibid., p. 145.
44

De igual maneira é a questão da audição e, nesse caso, a escuta ao Logos. Em seu livro
“Lógica: o nome e a coisa”, Martin Heidegger faz um comentário bastante interessante
sobre o assunto.

“Por isso, quando partimos do acústico, na acepção técnica da ciência físico-


psicológica, tudo fica de cabeça para baixo porque acreditamos, equivocadamente, que
a escuta que se vale do instrumento auditivo do corpo é a escuta propriamente dita e
que, no sentido da obediência, a escuta não passa, ‘naturalmente’, de uma metáfora para
o plano espiritual e que ‘naturalmente’, só pode ser tomada como uma imagem. (...).
Nós, seres humanos, só escutamos, por exemplo, o trovão dos céus, o ruído das
florestas, o correr da fonte, o soar da lira, o barulho dos motores, o ruído da cidade,
porque nós, de alguma maneira, pertencemos e não pertencemos a tudo isso (...) E
assim, conclui: Não escutamos porque temos ouvidos. Temos ouvido porque escutamos
aquilo a que já pertencemos numa relação de pertinência”. 34

Retornando a questão do pensamento, diz Heidegger:

“Os pensamentos verdadeiros são dis-pensados ao homem, e isso somente quando ele
se encontra na correta com-pensação, ou seja, na prontidão exercida para o pensamento,
que vem ao seu encontro como o a-se-pensar. (...) Desde então, aceita-se que o
pensamento pertence ao domínio protetor da “lógica e que essa copertinencia de
‘pensamento’ e ‘lógica’ foi desde sempre prescrita pelos céus”.35

Em Heráclito, o Logos enuncia a verdade sobre a Physis, tanto pela palavra interior,
como pela exterioridade, oral e escrita. Na constituição de ambas, intervém, decisivamente,
a audição, o epaíein interior do fragmento 112 36 e o akóuein dos frags. 19, 34 e 50. 37 Quem
não ouve, não compreende: para ele, o verdadeiro Logos deixa de constituir-se. O nexo
entre Logos exteriorizado e a audição é, particularmente, realçado nos fragmentos 79 e 39. 38

34
HEIDEGEER, Martin. Lógica: O nome e a coisa, p. 258-259.
35
HEIDEGEER, op. cit., p. 200.
36
BERGE, op. cit., p. 287, Fragmento 112: “Pensar sensatamente é a mais elevada perfeição, e é sabedoria
dizer a verdade e agir de acordo com a physis, ouvindo <sua voz>”.
37
BERGE, op. cit., p. 245, 253, 259, Fragmentos: 19: “(Censurando a certas pessoas a falta de fé, Heráclito
diz:) Não sabem ouvir nem falar”; 34: “Apesar de terem ouvido, não tem compreensão: parecem-se com
surdos. O provérbio o atesta: presentes <estão> ausentes”; 50: “Apesar de terem ouvido, não tem
compreensão: parecem-se com surdos. O provérbio o atesta: presentes <estão> ausentes”.
38
Op. cit., p. 191.
45

É, com efeito, notável a força que a audição do Logos possui no pensar heraclítico. Na
formação do conhecimento abstrato, domina a audição: “Quem ouvir, não a mim, porém ao
Logos, procederá sabiamente se admitir que tudo é um”, diz o frag. 50, 39 estabelecendo o
nexo entre o Logos, a audição e a sabedoria, assim como já no frag. 19 o verdadeiro saber
foi ligado ao ouvir e falar. 40 Assim, a base da certeza está em ouvir o Logos. Quem,
portanto, o ouve possui, igualmente, a sophie do pensar e agir certos. O Logos, segundo
Heidegger, é algo passível de escuta, uma espécie de discurso, voz. É, pois, na justa ausculta
do Logos, que surge e se dá o saber, em sentido próprio. 41

Heráclito diz ainda: “Tudo fazemos e dizemos segundo a participação do


entendimento divino (Logos). 42 Por isso devemos seguir apenas a este entendimento
universal. Muitos, porém, vivem como se tivessem um entendimento próprio (idían
phrónesin). Por isso, na medida em que tomamos parte no saber do Logos, estamos na
verdade; quando porém, particularizamos, individualizamos esse saber, estamos na ilusão,
penando e vivendo o não verdadeiro, o mau. Somente a consciência como consciência do
universal é consciência da verdade. O Engano, portanto, consiste na particularização do
pensamento – o mal e o engano residem no fato da separação do universal. Os homens
acham em geral que, quando devem pensar algo, isto teria que ser alguma coisa singular;
isto é ilusão. 43
39
REGIS, W. e SOUZA, Cavalcante, op. cit. p. 101 E 121. “Não me escuteis a mim, o mortal que vos fala; mas
sede atentos ao pousar que recolhe; começai por pertencer-lhe, então ouvireis propriamente falar; um ouvir é,
enquanto tiver lugar um deixar-estendido-diante-uma-coisa-junto-da-outra, diante do qual se estende o conjunto,
o deixar-estendido que recolhe, o pousar que recolhe. Quando acontece que o deixar-estendido-diante deixa
estendido, produz-se então, alguma coisa de bem-disposta; pois o bem-disposto propriamente dito, o destino,
somente é: o único uno que tudo unifica”.
40
Op. cit., p. 192-194.
41
HEIDEGEER, op. cit., p. 257-271.
42
(“Todo homem, por sua inteligência [διάνοιαν], está unido intimamente ao Logos divino, pois é uma
impressão, um fragmento, um reflexo da natureza bem-aventurada”), e 1964a, §223, p. 136/137 (“ ‘Razão’
[Λογισµός] (...) é a coisa mais perfeita e a mais divina, é um fragmento da alma do universo, ou ainda,
expressão mais conforme à lei religiosa, segundo os filósofos que seguem Moisés, é a impressão semelhante
de uma imagem divina.”). “ ‘Impressão’, ‘fragmento’, ‘raio’ [“reflexo”] são assim os termos pelos quais ele
descreve figurativamente a essência do intelecto como uma imagem incorpórea da idéia de mente [ou
intelecto]. É neste sentido que ele também explica o ‘espírito divino’ que Deus soprou em Adão como ‘um
brilho da bendita e três vezes bendita natureza de Deus’. Aqui como alhures, Fílon faz uso do vocabulário
estóico, mas há um afastamento da doutrina estóica.” (WOLFSON, 1982, p. 395, citando FÍLON, De
especialibus legibus, IV, §123 (fim) (cf. 1954, p. 85). Isto se torna explícito em sua crítica à concepção estóica
em De plantatione, §18 (1963c, p. 31). (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 157).
43
REGIS, W. e SOUZA, Cavalcante, op. cit., p. 102. “Identificar o logos reto [ο ̓ρθὸς λόγος] com νου̑ς (o que
parece ser bem o pensamento estóico) seria dar ao homem o poder de produzir por si mesmo toda virtude e
todo bem; é então necessário separar o logos do homem como um princípio superior e transcendente ao qual
se deve ascender; o homem não está no logos e na sabedoria senão em potência (...). Mas quando esse logos
divino for atingido pelos perfeitos, não haverá mais diferenças entre a alma perfeita e o logos; ela não será
governada pelo logos, ela mesma será logos. Por outro lado, para tornar possível este progresso, é necessária
ao homem uma faculdade racional (δύναµις λογική) e ao menos uma possibilidade de obtê-lo; é neste mais
46

Logos e nomos estão firmemente vinculados no dizer desse frag. 114 que agora
podemos transcrever integralmente: “Aqueles que falam com inteligência, fortalecem-se
pelo que é comum a todos assim como a polis <se torna forte> pela lei, e ainda mais fortes
<se tornam>. Todas as leis humanas, pois, nutrem-se do Um-divino: este estende seu poder
até onde quer, e é bastante poderoso para <sustentar> a todos (ou para realizar tudo) e até
excede a todos (a tudo)”. O vínculo que os prende é o “substrato” comum, o Pyr divino.
Fortalece-se o logos do homem, à medida que a psique humana, sede da inteligência do
ethos, superando o material, “espiritualiza-se”, pois, nesse caso, dissera-o o frag. 115, 44 o
Logos aumenta por si mesmo. Ambos, Logos e nomos, são comuns; mas aquele, revelação
da physis, é preordenado a este: o logos é de origem diretamente divina; dirige-se ao homem
que dá expressão concreta ao nomos; este, entretanto, vive do divino, por ter nele seu
fundamento último. 45

Cumprida a sua missão, este Logos, sujeito à lei da economia, enquanto termo
específico teve de retirar-se aos poucos, ressuscitado e munido de sentido e significado
novo pelo estoicismo.

3.2 Zenão e os Estóicos (300 a.C)

Fundador do estoicismo, Zenão de Citio e seus discípulos 46 (Perseo, Crisipo,


Antipater, Arquedemo, Herílo, Boeto, Cleantos, Estero e Dionísio) 47 tomaram por
empréstimo de Heráclito os seus conceitos metafísicos e expandiram a idéia de uma razão
universal e de uma lei de transformação, que por sua vez não sofre alteração, tendo sido os
primeiros a empregar o vocábulo Logos com o intuito de expressar esse Princípio. 48

Para os Estóicos, o Logos seria a razão universal, a força criadora eterna, a energia
sustentadora e orientadora, a alma do mundo. Tudo isso são outras tantas expressões do
Logos e dessa forma foi criado um tipo de panteísmo, com emanação e absorção final. Para

baixo grau que se coloca a sabedoria humana, que é o germe de bem de que nenhum ser é privado, a noção
inata ou comum do bem que faz com que o homem não possa desculpar suas faltas por sua ignorância; ela é
um sopro leve (πνοή ) e não o sopro poderoso (πνευ ̑µα) que anima o homem ideal; mas ela não tem sentido
senão com respeito à sua origem, o logos divino”. (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 65).
44
BERG, op. cit., p. 289. Fragmento 115: “A psique possui um logos que aumenta por si mesmo”.
45
BERG, op. cit,, p. 194
46
CHAMPLIN, op. cit., p. 539.
47
BREHIER, Emile. O Antigo Estoicismo. Tradução de Miguel Dulcos. Disponível em:
http://www.consciência.org/estoicismobreheir.shtml.
48
CHAMPLIN, op. cit., p. 899.
47

eles, o Logos seria a existência, na realidade, uma substância material, a saber, o fogo. 49
Tratar-se-ia do universo como uma razão mundial ativa e criadora, e as suas manifestações
foram chamadas de Logoi Spermatikoi 50, ou seja, “sementes da razão”. Todas as formas
existentes no mundo seriam Logoi Spermatikoi ou manifestações do Logos.51

Assim, pois, o Logos seria a organização de todas as miríades de formas e de leis que
emprestam naturezas e nomes aos objetos individuais, inspiram e governam as suas
atividades. Por isso mesmo, o Logos seria uma força material, cósmica, impessoal, e não
uma pessoa. Não obstante, algumas de suas características e atividades são aquelas
atribuídas ao Logos pessoal pertencente ao pensamento cristão. Posto que os estóicos
ensinavam uma modalidade de panteísmo, o Logos é reputado divino. 52

Ainda que sejam muitos os pontos de contato com a doutrina Heraclítica do Logos, a
corrente de pensamento estóica é completamente nova. Esta é caracterizada por dois traços
brilhantes: o primeiro é que é impossível ao homem encontrar regras de conduta ou alcançar
a felicidade sem apoiar-se em uma concepção do universo determinada pela razão; a
investigação acerca da natureza das coisas não tem um fim em si mesma, na satisfação da
curiosidade intelectual, mas exigem também a prática. O segundo traço, mais ou menos
manifesto, é a tendência à disciplina de escola, segundo a qual o novo filósofo não tem que
buscar o que já foi encontrado antes, a razão e o raciocínio só servem para consolidar nele
os dogmas da escola e dar-lhes uma segurança inabalável; mas nestas escolas não se trata,
muito menos, da investigação livre, desinteressada e ilimitada da verdade, mas de se
assimilar uma verdade já encontrada. 53

Para os estóicos, todo corpo, animado ou inanimado, é concebido à maneira de um ser


vivo. Há nele um sopro (pneuma) cuja tensão sustenta as partes. O universo todo é também
um ser vivo cuja alma, sopro ígneo estendido através de todas as coisas, sustenta as partes.
Tudo é permeado pelo pneuma doador de vida. 54

49
Op. cit., p. 539.
50
FONSECA, Dax., op. cit., p. 99.
51
CHAMPLIN, loc. cit., p. 899. Em sua tese de Mestrado, Dax Fonseca faz o seguinte comentário sobre o
assunto: ““ARNALDEZ, “Introdução” a De opificio mundi (1961a, p. 132, nota). Ou seja, os “espermas” não
consistem em mera imanência, mas em uma força intrínseca aos seres vivos que permite a atualização de seus
potenciais no tempo. Não só a Razão é disseminada, mas a própria racionalidade de um processo comum a
todas as formas de vida. “Não se tratam de porções do fogo divino (almas racionais), mas – podemos sugerir –
a força motriz de toda transformação física, a natureza de todos os fenômenos, o que faz parte do processo
sempiterno de Criação através do Logos”. (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 71)
52
Ibid., p. 899.
53
BREHIER, Passim.
54
FONSECA, Dax., op. cit., p. 48-71.
48

O deus dos estóicos não é um olímpico nem um Dionisos, é um deus que vive em
sociedade com os homens, com os seres racionais, e que dispõe todas as coisas do universo
em favor deles. Sua potência penetra todas as coisas e nenhum detalhe, por ínfimo que seja,
escapa à sua providência. É uma maneira completamente nova de conceber a relação divina
com o homem e com o universo. Já não é aquele solitário estranho ao mundo que atrai por
sua beleza, ele é o autor mesmo do mundo, cujo plano concebeu em seu pensamento. A
virtude do sábio não é nem a assimilação de Deus que sonhava Platão, nem a simples
virtude cívica e política que pintava Aristóteles; ela é a aceitação da obra divina e a
colaboração desta obra graças à inteligência do sábio. Está aqui a idéia semítica do Deus
todo-poderoso que governa o destino dos homens e das coisas, tão diferente da concepção
helênica. Nesse sentido, o mundo é considerado como uma grande cidade regida por uma
mesma Lei, de que os hebreus foram os intermediários. 55 Quanto à relação entre Lei e
Natureza, há inúmeros tratados talmúdicos que defendem esta perspectiva; embora só hajam
sido compilados posteriormente ao tempo de Filon, o conteúdo dos textos talmúdicos
remonta a séculos anteriores, constituindo legado da tradição oral. A Cabalah também se
funda sobre esta concepção da universalidade, e muitos filósofos judeus defenderam esta
idéia , sendo talvez, Spinoza, o mais audacioso. 56

Zenão, o fenício, vai dar o tom ao helenismo. Certamente, esta não é uma importação
brusca dentro do pensamento grego: o Deus de Platão, no Timeu, é um demiurgo, o das Leis
que se ocupa dos homens e dirige o Universo em todos os detalhes, e o deus de Sócrates e
de Xenofonte, que deu aos homens seus sentidos, inclinações e inteligência, os guia também
mediante os oráculos e a adivinhação. Anunciava-se assim o tema demiúrgico e
providencialista que com Zenão se converte na chave da filosofia. 57

A este tema fundamental se subordina o resto da doutrina. Zenão é, sobretudo, o


profeta do Logos,58 e a filosofia nada mais é do que a consciência que se toma de que nada

55
Op. cit., p. 21.
56
Op. cit., p. 45.
57
BRPEHIER, Emile, Passim.
58
FONSECA, Dax., op. cit., p. 71 e 133. “(...) Uma vez que essa harmonização tem por propósito a não-
dissolução das partes do mundo, dessa lei decorre imediatamente aquela da perpetuidade das espécies, pela
qual o mundo criado participa da eternidade do Criador. Esta lei ainda carrega alguma relação com o que diz
Aristóteles acerca da geração dos seres vivos e da perpetuação das espécies em razão de um poder nutritivo
(τὸ θρεπτικόν), que, em Fílon, é atribuído às “essências espermáticas” (σπερµατικαὶ ου ̓σίαι), essências estas
também identificadas como logoi. No entanto, mais uma vez, diversamente do que diziam os estóicos, a causa
última da geração não é o Logos imanente, o qual recebe essa potencialidade de Deus, assim como é dito por
Aristóteles. (Em teorias como estas, percebemos com maior clareza o efeito distintivo da hierarquização
filoniana que separa Deus do Logos, o que está ausente no estoicismo)”.
49

existe à parte dele. É "ciência das coisas humanas e divinas", isto é, de tudo o que é
racional, ou seja, de todas as coisas, visto que a natureza mesma se considera absorvida nas
coisas divinas. Sua tarefa está, desde logo, totalmente determinada, e, quer ela trate da
lógica e da teoria do conhecimento ou da moral da física ou da psicologia, em qualquer
caso, há que se eliminar o irracional e crer que apenas a pura razão atua tanto na natureza
como na conduta. Este racionalismo baseava toda a sua realidade em um método dialético
que permitira ultrapassar os dados do sentido e alcançar formas brilhantes ou essências
inteligíveis. Não se vê nenhum procedimento deste gênero no dogmatismo estóico. Aqui
não se trata de ultrapassar os dados imediatos e sensíveis. Mas, pelo contrário de procurar
que a razão tome corpo neles. 59

A física estóica tem a preocupação de nos fazer representar, pela imaginação, um


mundo totalmente dominado pela razão, sem nenhum resíduo irracional; nada depende do
azar ou da desordem, tudo está incluído na ordem universal, 60 atribuída à “causa ativa” ou
“intelecto universal”, expressões inteiramente estóicas, em substituição ao Demiurgo de
Platão61

Para os estóicos, a história do mundo é feita de períodos alternados, em um dos quais


Zeus, o deus supremo, identificado a um fogo ou força ativa, absorveu e reduziu a si mesmo
todas as coisas, enquanto que, no outro, anima e governa um mundo ordenado
(diakósmesis).62

O mundo é um sistema divino no qual todas as partes são distribuídas divinamente,


havendo nele uma força unificadora da substância corpórea. Se o mundo é uno, é porque o
sopro ou a alma que o penetra retém as partes, porque possui uma tensão ( tónos), análoga a
que possui, em menor escala, todo o ser vivo e mesmo todo ser independente, para impedir
a dispersão de suas partes. 63 Pela força que tem em si mesmo, que é ao mesmo tempo
59
BREHIER, Passim.
60
BREHIER, Emile, Passim
61
FONSECA, Dax. op. cit. p. 97.
62
BREHIER, Passim.
63
O Logos é a um só tempo o princípio da ordem universal, que se manifesta na simpatia e no acordo de todas
as coisas entre si, e a força motriz que faz a unidade de cada substância real, coesão na pedra, potência
vegetativa na planta, sensação no animal, razão que associa os homens e os deuses. O Logos é a lei do
universo, a lei das cidades e a lei moral: como lei do universo, é tanto destino quanto providência, [onde]
Destino quer dizer princípio que subscreve a cada ser e a cada acontecimento seu lugar, sem permitir qualquer
indeterminação ou acaso, seja no mais fino dos detalhes, [e] Providência quer dizer potência inteligente e boa
que tudo criou em vista dos seres racionais. Lei das cidades, é aquilo que, inato na natureza humana, ordena o
que se deve fazer e interdita o contrário. Lei moral, e, para o sábio, anuência à ordem mesma que criou. (...) O
estoicismo nos ensina a identificar nossa vontade à nossa essência, ou seja, a querer o que quer a razão
universal. (FONCECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 54).
50

pensamento e razão, Deus contém o mundo. Ademais, "se o mundo está contido por uma
alma única, é necessário que haja simpatia entre suas partes componentes. Esta simpatia
universal de um mundo em que "tudo atua com o mesmo fim" distingue radicalmente o
mundo hierarquizado de Aristóteles dos estóicos; há nele como um círculo universal em que
a terra e seus habitantes recebem as influências celestes. 64 Por sua vez, esta simpatia
universal revestida de um sentimento oceânico de amor, faz nascer um dos principais
princípios do estoicismo: o da irmandade universal da humanidade, de grande importância
para o estoicismo e também para as diversas leis romanas que favoreceram os estrangeiros,
baseados neste conceito. 65

Segundo Zenão, o universo é o efeito de uma causa que atua conforme uma lei
necessária, Deus, a alma de Zeus, a Razão, a necessidade das coisas, a lei divina e o destino,
tudo é um e o mesmo para ele. A Razão universal, a inteligência ou vontade de Deus, é que
dirige todos os acontecimentos no cosmos e no mundo dos homens. 66 Este mundo unido,
feito de Logos ou razões, constitui uma espécie de universo de forças ou, se quiser, de
pensamentos divinos ativos que ocupam o lugar do mundo platônico das idéias. 67

O alcance da teologia estóica tem sido designada como algo que detém a imanência e
mesmo o panteísmo. Deus está presente nas partes mais íntimas do universo. Ele é
imaginado como uma força interna das coisas, como um "fogo artista que procede
metodicamente à produção das coisas", ou como "um mel que flui através dos favos", o
estóico se dirige a ele, por outro lado, como a um ser providencial, pai dos homens, e que
regula tudo no mundo em proveito do ser racional, ao ser todo poderoso, chefe da natureza,
que governa as coisas com a lei e a quem obedece todo esse mundo, 68 conceito a que Filon
de Alexandria toma por empréstimo, referindo-se a uma Lei que tem sua fonte em Deus. 69

De acordo com os estóicos, é refletindo sobre a razão comum de nosso assentimento


espontâneo às nossas inclinações e comparando-os entre si, que captaremos a noção de bem.
Nosso assentimento espontâneo, na aurora da vida, era já um assentimento fundado na
razão, e mesmo um assentimento da razão, pois visava conservar um ser produzido pela
64
BREHIER, Passim.
65
CHAMPLIN, op. cit., p. 540.
66
Ibid., p. 540.
67
BREHIER, Passim.
68
BREHIER, Passim.
69
Sobre a “Lei divina”, Dax assim transcreve: “Filon deixa claro, em suma, que, se uma lei não tem sua fonte em
Deus no ato de criar, correspondendo a uma idéia incorruptível, a mesma não é válida para o mundo criado,
consistindo precisamente na máxima de se viver conforme a natureza, a qual, de fato, oportuna e
convenientemente, toma de empréstimo aos estóicos”. (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria,p. 199).
51

natureza, ou seja, pelo destino ou razão universal. Nesse sentido, a base da vida moral é essa
espécie de escolha espontânea que nossas inclinações nos induzem a fazer entre as coisas
úteis a nossa conservação; o fim é viver, escolhendo com uma escolha reflexiva e voluntária
as coisas conforme a natureza universal. É, sem dúvida, o que propunha Zenão, ao definir o
objetivo: viver de acordo ou viver com conseqüência (omologouménos). Viver assim é viver
segundo a razão, que não encontra ante si qualquer oposição, pois tudo acontece segundo a
razão universal, 70 a vontade de Deus e o destino. Portanto, o fim consistirá unicamente numa
atitude interior da vontade, já que todo ser obedece necessariamente ao destino, mas a razão
extraviada tenta resistir a ele e lhe opor ao bem universal o fantasma de um bem próprio:
saúde, riqueza, honra; o sábio, ao contrário, aceita com reflexão os fatos que resultam do
destino.71

Com os estóicos, esta Razão universal reviveu durante muitos séculos com vigor,
nobreza e elevação, recebendo de Filon de Alexandria uma nova roupagem teológica e
filosófica.

3.3 Filon de Alexandria (50 d.C)

Entre os eruditos judeus helenistas, Filon foi o mais importante. Aproveitando-se de


fundamentos estóicos sobre a doutrina heraclítica do Logos, consubstanciados com
princípios platônicos, soube imprimir uma nova “identidade” ao conceito de Logos,
incorporado nas adaptações religiosas de sua filosofia. 72

Antes de tudo, é necessário admitirmos que o estoicismo se constitui na doutrina mais


recorrente na obra de Fílon, uma vez que sua terminologia aparece ligada a vários tópicos
filosóficos por ele abordados. Porém, quando examinamos o uso feito por ele do material
estóico, devemos descobrir que ele é seu crítico, ao invés de seu seguidor. 73

Fílon diverge deles, quanto às definições de filosofia (que é meramente humana) e


sabedoria (que resulta da inspiração divina, senão a própria divindade), “ainda que,
ostensivamente, ele cite sua definição para estes dois termos”. Além disso, Fílon ainda
rejeita a concepção estóica de Deus, muito embora, por vezes, o defina do mesmo modo
70
BREHIER, Passim.
71
CHAMPLIN, loc. cit., p. 540.
72
CHAMPLIN., loc. cit., p. 899.
73
FONSECA, Dax., op. cit. p. 53.
52

(causa ativa, alma, ou intelecto universal) – devemos ter em conta que, em Fílon, Deus não
pode ser reduzido aos atributos que o homem lhe confere, ainda que legítimos. 74

A chave da atitude de Fílon está justamente no acréscimo da dimensão transcendental


do Logos, pelo que tenta estabelecer uma distinção entre o intelecto divino e o intelecto
humano, denominando o primeiro pelo termo Λόγος e, o segundo, pelo termo νου ̑ς, jamais
utilizando este último ao se referir à mente de Deus ou do mundo. 75

Para Filon, a noção de Logos enquanto racionalidade imanente, não se refere a uma
propriedade necessária das substâncias criadas, como o era no estoicismo. Ao contrário, é
como que uma lei ordenadora imposta de fora por Deus, que é extramundano. Ele cria um
intermediário que carrega em si os fundamentos necessários à existência e progressão do
mundo sensível em que vivemos. Tal intermediário é o Logos, que em sua totalidade,
coincide com o mundo inteligível, encerrando não apenas Idéias genéricas, mas todas as
imagens e todas as oposições cuja tensão regula. 76

Esse Logos, porém, não está no mesmo nível ontológico do mundo inteligível, que, na
verdade, é formado por imitações do Logos sobre o modelo de Deus, o que é dizer que o
Logos “está entre ambos”. Em outras palavras: o Logos imita o modelo monádico de Deus,
que é superior à própria Mônada 77 − esta, nada mais é do que a mais elevada intuição ou
idéia possível ao homem, mas ainda atrelada à sensibilidade, pois pode ser imaginada. Já o
mundo inteligível agrega uma pluralidade de logoi, sendo constituído, por meio do Logos
que o compreende ou encerra, a partir de divisões dicotômicas entre espécies “boas” e
“más”. Por exemplo, o mundo inteligível também contém as idéias do sensível e da
sensação, pelo que é possível que o mundo visível exista, enquanto que, no Logos, esse
antagonismo e todos os demais se encontram unificados. O Logos, portanto, poderia ser
considerado não como um simples mundo das Idéias, mas como a Idéia por excelência, a
“verdade”, a “virtude genérica”, o “Arcanjo”, um “gênero supremo”, que encerra em si o
mundo de todas as Ideias, enquanto os logoi seriam os intermediários nele unificados, as
“opiniões”, as “virtudes inteligíveis”, os “anjos”, as “espécies”. Embora cada um dos logoi
também consista em uma mônada, indivisível e simples como o próprio Deus, sua
combinação produz o número, e, com isso, a multiplicidade. A cada nível que se desce, em

74
Ibid., p. 53.
75
Op. cit. p. 55.
76
Op. cit. p. 203.
77
O Logos divino não é igual a Deus: é a auto-manifestação de Deus (…) Ele é Deus; mas não o Deus, muito
embora permaneça na essência de Deus. (TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão, p. 51).
53

suma, devido à crescente imperfeição e a uma multiplicidade cada vez maior de unidades
substanciais que tendem a se interrelacionar produzindo compostos, temos uma maior
diversificação do mesmo princípio único e transcendente, de que o Logos é o todo. Assim,
se o Logos é como a mente de Deus, o mundo inteligível é como a mente do homem. 78

Em Filon, o Logos, enquanto Razão divina, tanto em seu estágio de imanência quanto
no de mundo ideal sempiterno e imutável, aparece na acepção de totalidade/lugar das
medidas, proporções, parâmetros, sendo naturalmente cindido. Se ele é responsável pela
ligação das partes do mundo, sustentando-o, uma vez que consiste na “indissolúvel ligadura
do universo”, assim o é sob os desígnios de Deus. O Logos é, pois, um mero “instrumento
nas mãos do demiurgo”, e não ele mesmo, o que permite a Deus utilizar-Se dessa
“ferramenta” conforme Lhe apraz, não estando jamais submetido às Suas próprias leis,
privando assim as potências imanentes do cosmos de qualquer autonomia, reduzindo-as a
simples instrumentos e manifestações suas. Pelo contrário, Deus é capaz de rompê-las ou
suspendê-las segundo Sua Vontade autônoma. Desse modo, esse Logos é a ação de Deus no
mundo sensível; enquanto mundo inteligível, o fundamento dessa ação − a razão é diretriz, e
não autônoma. 79

Para Filon, a racionalidade que o homem recebera como um dom divino, que é
incorporada pelo λόγος, a inteligência pura, não pode nem deve ser confundida ou
assimilada, como faziam os estóicos, à inteligência ordinária, misturada a dados sensíveis,
designada por Fílon como νου̑ς. Esta racionalidade implantada na alma humana é, na
verdade, a própria Palavra divina, que é a Lei que instrui, 80 a Lei divina que rege a natureza.

Com efeito, o Logos tem algo em comum com a alma... Por vezes são e/ou carregam
ideais intercambiáveis. Seria por meio dessa comunidade de princípios, onde a inteligência é
associada à palavra, que se torna possível a recepção da revelação divina como graça e
78
FONSECA, Dax., op. cit. p. 104-105.
79
Loc. cit. p. 204.
80
FONSECA, Dax., op. cit. p. 55, 60 e 61. “O ímpio crê, ao contrário, que o espírito [νου ̑ν, seu intelecto] é o
mestre de tudo o que ele decide, e a percepção [αἰσθησιν, sua sensibilidade], a mestra de tudo o que ela
percebe. Esta, segundo ele [o ímpio], julga o mundo material e, o primeiro, julga tudo, sem nem uma nem o
outro correrem o risco da menor censura, nem do menor erro. Poderia haver um pensamento mais repreensível
ou mais exposto às repreensões da verdade? Não é verdade (...) que a inteligência [νου ̑ς] é convencida pela
ininteligência em inumeráveis casos? E, os sentidos, não são eles todos pegos em flagrante delito de falso
testemunho, não por juízes sem razão, que é natural se enganarem, mas diante do próprio tribunal da natureza,
por essência, incorruptível? Verdadeiramente, se nossos próprios meios de julgamento [κριτηρίων], fundados
sobre o espírito e os sentidos, estão freqüentemente desencaminhados [σφαλλοµένων], devemos
necessariamente aceitar as conseqüências desta situação: é Deus que concede (...) as idéias ao espírito e as
percepções aos sentidos, e nada de tudo o que existe se realizou graças a uma ou à outra de nossas faculdades,
mas, em realidade, tudo é dom d’Aquele a quem devemos também a vida”.
54

auxílio ao progresso moral, através do qual se vai adquirindo conhecimento da verdade e da


natureza divina? Parece ser esta a idéia... O mundo, portanto, seria unificado por esse
Logos, que é, a um tempo, razão e linguagem, inteligência e palavra, sabedoria e
entendimento. A revelação, desse modo, que só é possível entre duas partes, clama pelo que
há de imanente, intrinsecamente divino e incorruptível na criatura dotada de inteligência,
bem como da virtude, da pureza necessária. 81

Em seu tratado De Decalogo, Fílon ressalta que Deus não fala – ou, pelo menos, não
somos capazes de ouvi-Lo, conforme lê-se em Êxodo, 20. Após dizer que Deus não emitiu
palavras, e sim formou no ar um som admirável – o ensurdecedor trovejar referido no relato
bíblico (Êx., 19:16, 19) –, Fílon prossegue com sua explicação alegórica, pela qual diz haver
sido a palavra divina soprada – como o “espírito de vida” na criação de Adão (Gênesis,
2:7), e como o “sopro de Deus” que passa pelo Éden logo após a falta ser cometida (ibid.,
3:8) – em cada um, que a “ouviu” interiormente, como uma inspiração. “O Logos sagrado,
ou divino [ἱερὸς λόγος], é para ele essa palavra interior, revelada, que o homem piedoso
ouve no recesso de sua alma, e que constitui o ensinamento sobre as coisas divinas. 82

Assim, a sabedoria (fundada na ética e não o inverso) não é um conhecimento


indutivo, mas, ao contrário, uma revelação concedida voluntariamente por Deus àquele que
atingira a virtude, de modo que não se atinge a virtude pela ciência ou pelo ensino das
escolas, mas pela fé; a piedade surge como a mais elevada sabedoria, a mãe das virtudes, e é
dela que emana toda a possibilidade de conhecimento verdadeiro acerca das coisas divinas e
humanas. Com isso, Filon traz à realidade o apelo do incompreensível, chama pelo
sentimento (amoroso) que conduz o homem a Deus, sugerindo por meio disto o abandono
da intelectualidade que “gruda” o homem ao solo e à sensibilidade (estética) tão logo esta
forma inferior mundana de inteligência cumpra o seu papel ao longo do progresso pessoal,
cujo fim último não é outro senão a assimilação à divindade. 83

Em Filon, Deus não cria as leis e Se retira, como em Platão, nem tampouco as
determina inexoravelmente, tornando-Se presente nas coisas enquanto racionalidade
imanente, como no estoicismo. Pelo contrário, mesmo após criar o mundo que passa a se
mover por si, jamais deixa de estar de algum modo presente no mundo através de Sua
Bondade e de Sua Justiça, velando e motivando o progresso de Suas criaturas. Com isso,

81
Op. cit., p. 162-204.
82
Loc. cito., p. 162.
83
Loc. cito., p. 204.
55

Fílon ainda nega a previsibilidade do mundo, substituindo-a aí, como já dissemos, pela
possibilidade do espanto sempre renovável diante da grandeza da obra de arte que é o
cosmos, pela certeza de estarmos cercados e mesmo imersos em um mistério insondável
senão pelo próprio Deus. Para ele, o Logos imanente, responsável pela própria existência do
mundo, sua vida e seu movimento, está parcialmente presente na alma humana como um
dom divino e, como uma semelhança a Deus, permitindo a aquisição de sabedoria, a
ascensão e a imortalidade. 84

No que se refere ao ecletismo de Filon, a dedução é óbvia: seu pensamento não é


grego nem judaico, não uma doutrina, mas uma “atmosfera, um reflexo teórico de uma
religião mística que fala de Deus [sob a ótica de um Mysterium Tremendum]. 85 Eis o que diz
Bréhier sobre o filósofo, em uma caracterização típica que lhe valeu a qualificação de
“eclético”:

“Seus escritos contêm as informações mais preciosas, não somente sobre a situação
intelectual e moral da comunidade judaica em Alexandria por volta do tempo de Cristo,
mas ainda sobre o sincretismo filosófico e religioso dominante nas civilizações
helenísticas.” (...). A obra de Filon vibra com todos os ecos; ligado à lei judaica, vendo
nos estóicos os melhores dos filósofos, íntimo dos cultos dos mistérios, conhecedor de
Platão e dos pitagóricos, usando, para comentar a bíblia, um método tal que pudesse
inserir nela elementos diversos, ele não podia ser estudado sem que de todos os lados se
abrissem horizontes; nele se refletia toda a história da filosofia grega até nossa era, bem
como a situação religiosa de seu tempo; nele se enunciava a mística paga e cristã que
seguiriam. Não que Filon seja um compilador; ele tem amores e ódios muitos firmes e
deliberados; mas seu pensamento não forma um sistema como aqueles que se vê (ou que
se restabelece) nos grandes clássicos: é antes uma corrente que passa, alimentando-se de
todas as doutrinas de que precisa.”

Em Filon, o misticismo, apesar de tudo, é dominante, inclusive no que concerne à


idéia de revelação, que, no Judaísmo, não teria o sentido de uma imitação de Deus e
comunhão com Ele. Estariam fundidos em Filon o misticismo e a concepção judaica do

84
Op. cit. p. 205.
85
Op. cit. p. 19-20.
56

Deus universal e supranatural, criador e governante, já presente desde os profetas, mas isto,
após um longo processo evolutivo. 86

Filon inaugura na tradição filosófica uma nova tendência – a da interpretação das


Escrituras -, que prosseguiria ininterruptamente até Spinoza, sendo marcada justamente pelo
esforço em conciliar as tradições filosófica e religiosa na audaciosa tentativa de provar que
não há uma real contradição entre elas. Nisto se empenharam não apenas cristãos como
também mulçumanos e até judeus, o que se torna especialmente marcante no período
medieval, ainda que nenhum sistema servisse perfeitamente, ou pudesse ser utilizado
integralmente nesse empreendimento. 87

Assim, de acordo com Filon, há de existir uma harmonia entre a Escritura e todas as
outras espécies de conhecimento humano útil, qualquer que seja sua fonte; mas as últimas
são manuais da Escritura. 88 Para demonstrar seu ecletismo, Filon parte de uma análise da
própria Bíblia, especificamente no que se refere aos “nomes” de Deus e as apreensões
imperfeitas da divindade. 89

A Bíblia denomina Deus de inúmeras formas segundo qualidades que Lhe são
atribuídas, tais como Todo-Poderoso, Senhor, Rocha, Altíssimo etc. Tratar-se-iam, ao ver de
Fílon, de apreensões imperfeitas e parciais, incompletas, de Sua natureza. Filon e outros
judeus de Alexandria serviam-se de epítetos que constam na Septuaginta, e que os mesmos,
no mundo grego, por sua vez, aparecem ligados a divindades pagãs como Zeus e Hermes, ao
que acrescenta que os tradutores da Bíblia hebraica não se deram ao trabalho de transliterar
os nomes hebraicos para Deus, mas simplesmente adotaram os que já existiam na língua
grega. De qualquer modo, também vale notar que as traduções são literais, ou muito
próximas disto − senão em todos os casos, ao menos nos mais importantes, aqui referidos −;
mesmo as descrições/qualificações de Deus, apesar de também remetentes a Zeus, são
encontradas em importantes textos do Antigo Testamento. Como, para Wolfson, há um
sincretismo na língua, mas não na crença, tais epítetos são assimilados – ou, melhor
dizendo, apropriados – por uma questão de conveniência, e este mesmo princípio norteia

86
Op. cit., p. 57.
87
Op. cit., p. 30.
88
Op. cit., p. 35.
89
Neste equívoco são incluídos os estóicos. Para eles, as potências de Deus constituem o princípio ativo
(ποιου̑ν) imanente no mundo. Cada potência de Deus é então tida como qualidade (ποιότης) de Deus (cf.
WOLFSON, 1982, I, p. 276). Nesse caso, vemos que Fílon encontrou no estoicismo algo presente no texto
bíblico, que é a identificação de Deus, do princípio ativo, por Suas qualidades, ou potências (FONSECA, Dax.
Logos em Filon de Alexandria, p. 130).
57

inúmeros outros empréstimos. Ora, mas isto não tornaria indistintos o culto judaico e o culto
pagão, não provocaria certa confusão chamar o Deus judaico por um termo utilizado no
culto a Zeus, por exemplo? A princípio, a resposta é não! Ao menos no caso da mitologia e
do politeísmo, Fílon costuma tentar mostrar “que o uso de tais termos mitológicos não
deveriam ser tomados como indicativos de crença naquilo que os mesmos representam”. 90

Em resposta à relação feita por Bréhier entre a pluralidade de nomes divinos em Fílon
e dentre os estóicos e seitas místicas helenísticas, Kahn argumenta dizendo ser tal
aproximação “bizarre”, e esclarece:

“Com efeito, ela [a pluralidade de nomes divinos] se explica pelo mistério que cerca o
verdadeiro nome de Deus, o Tetragrama sagrado [IHWH = Iavé], que Fílon, não mais que
os outros judeus, não queria nem pronunciar nem escrever. Levara-se por isso a designar
Deus ou Seus logoi por um ou outro de seus numerosos atributos. O próprio Fílon se
explica longamente no Decalogo [§§83, 93-94 (1958e, p. 49, 53/55)], e o que é dito
concorda muito bem com a Mishnah, Sota, 7, 6, Tamid, 7, 2, etc. Nosso filósofo ilustra o
que quer dizer por uma imagem muito pertinente: “O nome vem sempre em segundo
lugar, após a coisa que designa, como a sombra que segue o corpo”. Mas, assim como as
iluminações podem variar ao infinito os jogos de sombras, a essência inefável de Deus
[supostamente oculta no mistério do Tetragrama] pode ser alcançada de mil maneiras que
não a esgotam, salvo o Tetragrama sagrado que a cerca, por esta razão, de um respeito
particular”

Em Fílon, além de os politeístas terem uma visão imperfeita e, por isso, fragmentada
da unidade de Deus, Este, em Sua bondade, pode Se lhes dar a conhecer (quanto à Sua
existência, apenas) por meio de Suas potências, de Suas qualidades, donde a impressão de
uma pluralidade de deuses. 91

Diante disto, pode-se entender em que medida a “assimilação” desses nomes – o que,
como foi dito, consiste em uma qualificação imprópria, visto que se tratam de meras
traduções bastante adequadas – se liga à teoria dos intermediários, levando-se em conta o
que diz Fílon a respeito do politeísmo, bem como o fato de ele não alterar a terminologia
presente na Septuaginta. Poderíamos, pois, sugerir que, na concepção de Fílon, os judeus

90
Op. cit., p. 130-131.
91
Ibid., p. 131.
58

teriam reconhecido os inúmeros atributos de seu único Deus disseminados em uma enorme
pluralidade de “divindades”. Nesse caso, temos um novo argumento para explicar em que
consistia a prática filoniana de colher fragmentos da tradição filosófica pagã: tratava-se
mesmo de uma recolha dessas “partes” espalhadas (as manifestações “espermáticas”,
podemos dizer) do Logos divino em função das imperfeições e limitações epistêmicas do
intelecto humano, terrestre, mortal. 92

Portanto, isto difere do que se chama de sincretismo, a saber, a simples adoção de um


nome estrangeiro para designar uma divindade local, assimilando-os, e não o ato de se servir
de termos estrangeiros que traduzem termos locais, os quais, aqui, diferentemente de ali, são
entendidos como que formando uma unidade atômica, uma vez atribuídos a uma entidade
em si mesma monádica ao invés de serem tidos por nomes próprios de individualidades
distintas. Parafraseando James Denny, “Embora Filon tivesse tomado de empréstimo o
conceito, não fez empréstimo do mesmo”. 93

Com isso, a constante presença de traços estóicos na obra filoniana, bem como o fato
de Fílon qualificar Zenão como um homem divino, adquirem uma nova dimensão
legitimadora: o estoicismo favoreceu a transição do politeísmo para o monoteísmo no
mundo helenizado, cuja tendência já se fazia presente desde os pré-socráticos. 94

“Zenão de Citium foi assim o profeta de um Logos cuja unidade e onipotência constituem
a um só tempo o mais íntimo de nós mesmos e o mais exterior a nós; graças a esta
profecia, o homem se sente unido aos outros seres pelo mesmo elo que o une a si mesmo:
O Verbo preenche toda a realidade em nós; é a ignorância do Verbo que nos destaca dos
outros e que nos separa do mundo: destacamento de intenção aliás, não destacamento
real, que é impossível. O estoicismo nos ensina a identificar nossa vontade à nossa
essência, ou seja, a querer o que quer a razão universal. É sob esta forma que se expande
o monoteísmo no Ocidente: não pela afirmação de um Deus transcendente ao mundo, mas
de um Verbo único, a que o mundo e nós mesmos somos consubstanciais. O Logos não se
manifesta nele e em nós, de uma maneira, em alguma medida, histórica, como se essa
aparição fosse um acontecimento com lugar e data determinados; é, no entanto,
eternamente manifesto, de uma maneira que é eternamente a mesma, já que, se o universo
92
Ibid., p. 132. No que diz respeito ao Logos, este autor considera Chuang-tzu, Lao-tze, Buda, Maomé,
Gandhi e outros grandes líderes religiosos, manifestações do logoi spermatikói (raziones seminaes) do eterno
Logos, colocando-os ao lado de Jesus Cristo, a sua mais bela e perfeita forma de expressão.
93
CHAMPLIN, op. cit., p. 256.
94
FONSECA, Dax., op. cit., p. 133.
59

deve perecer após um ciclo determinado, renascerá idêntico, e assim indefinidamente,


sem que haja nem começo nem fim nessa sucessão”

Nesse caso, os estóicos não separam o monoteísmo do politeísmo, pois os deuses são
personificações particulares, que, em seu todo, encerram toda a natureza, da qual o Deus dos
estóicos não se separa como o dos judeus, que também distingue os Seus fiéis dos demais
homens. Deus é o princípio único, e, os deuses, manifestações desse mesmíssimo princípio.
Desse modo, ao ver de Bréhier, “o politeísmo só faz, ele mesmo, afirmar a multipresença de
Deus”. Afinal, não era intenção dos estóicos rejeitar a crença popular. Por isso é que se diz
ser tipicamente estóico interpretar alegoricamente os mitos tradicionais dos deuses como
símbolos das forças ativas da natureza, resgatando assim as antigas intuições pré-
socráticas.95

“O método alegórico representa, na religião positiva, o mesmo papel que a física no


estudo da natureza. Do mesmo modo que a física chegava a revelar o Verbo divino em
todas as forças ativas da natureza, encontra-se um sentido racional e verdadeiramente
divino em todos os mitos, em todos os contos, em todas as revelações da religião”

Por sua vez, alguns atributos divinos eram reunidos por filósofos – dentre eles, alguns
estóicos – como pertencentes a um único Deus, não constituindo concepções ímpias ao ver
de Fílon. Como exemplo, temos o Deus uno e demiurgo de Platão, o mais próximo do Deus
judaico, diferente de tudo o que há no mundo, o Deus como “causa do movimento pelo qual
o mundo como um todo continua a ser o que é e pelo qual também todas as coisas no mundo
vêm a ser”, descrito por Aristóteles, e o próprio Deus dos estóicos, também uno e criador,
invisível e relativamente diverso de todos os demais seres. Para Fílon, portanto, “o Deus dos
filósofos”, à exceção daquele dos epicuristas, “não é para ser incluído entre os deuses que a
Escritura condena como falsos”.

Destarte, esse Logos, que, segundo Heráclito, é Lei universal da Physis Transcendente,
segundo Zenão os Estóicos, é a força vital (pneuma) que une e sustenta as partes do mundo;
segundo Filon é a Palavra de Deus que revela Deus a alma humana e apazigua as paixões;
no autor do Prólogo joanino é o Verbo divino que se fez carne e habitou entre os judeus. 96
95
Ibid., p. 133.
96
Op. cit., p. 159.
60

3.4 O autor do Prólogo joanino (90-100 d.C)

Embora a questão da autoria do evangelho de João, especialmente, o Prólogo joanino


(Jo 1:1-18) continue sendo assunto extremamente debatido, uma coisa é certa: seu autor foi
um judeu profundamente religioso, místico por natureza, que mantinha real comunicação
com o Cristo a respeito de quem ele escreveu. Dificilmente, o quarto evangelho teria sido
inteiramente produzido em grego pela pena de um idoso pescador Galileu, principalmente o
prólogo, cujo discurso metafísico não tem analogia nem nos evangelhos sinópticos e nem no
Talmude; e apesar do retrato falado que faz dele ser radicalmente diferente dos evangelhos
sinópticos, é óbvio que o autor cria que esse Cristo transcendental fosse o salvador do
mundo e o Jesus da História. Entretanto, para ele, esse salvador não podia estar confinado
dentro dos estreitos limites da Palestina do primeiro século da era cristã, ou mesmo do
mundo grego-romano daquela época, ou mesmo, meramente, Salvador eterno de todos
aqueles que o têm conhecido e amado, significação essa que se estende a todos os séculos,
e, na realidade, até a própria eternidade. 97

Conforme se percebe dos conceitos anteriormente desenvolvidos sobre a natureza do


Logos, o conceito de Logos no Prólogo joanino, tem realmente muitos elementos similares,
e que, na realidade, o autor desse evangelho se aproveitou de uma idéia corrente e bem
conhecida no mundo helenista, a fim de expressar uma profunda verdade concernente à
pessoa do Cristo encarnado. 98

O Prólogo joanino, é um corolário filosófico-teológico-religioso que resume em uma


única idéia mística todo o desenvolvimento conceitual do Logos heraclítico, estóico e
filônico, servindo ao mesmo tempo de introdução a toda e qualquer literatura religiosa que
tenha como fundamento da vida e do sentido que lhe é inerente, a existência de um principio
universal,99 um poder dinâmico, uma força vital, uma palavra divina criadora, conforme se
97
CHAMPLIN., op. cit. p. 251.
98
CHAMPLIN., op. cit. p. 264.
99
Atualmente, o pensamento científico representado pela física quântica, seguindo a mesma linha estóica de
uma razão universal, uma força criadora eterna, uma energia sustentadora e orientadora da vida, a alma do
mundo representada pelo Logos, defende a tese segundo a qual o cosmos e tudo o que nele existe é constituído
de um princípio vital, uma “energia sutil” que, a exemplo da “Dabar” judaica, contém um elemento dinâmico
de força e luz que produz, anima, ordena e sustenta a vida. Para os chineses, esse Principio Vital é composto
de duas polaridades complementares, que eles definem como energias Yin e Yang. Já Hipócrates denominava
esta força especial, invisível, que permeia e habita todas as coisas da natureza de Enormom. Segundo
Paracelso, o principio vital é uma essência suprema, por ele denominada Iliaster. Wilhelm Reich, precursor da
61

acreditava no Egito, na Assíria e na Babilônia, 100 resguardado, é óbvio, a legitimidade das


interpretações, estas, conforme já dito, decorrentes de apreensões imperfeitas da divindade.

Após estudarmos todo o desenvolvimento conceitual do Logos e suas diferentes


apreensões, conceituações e representações, empreender-se-á, agora, a tarefa de elucidar a
doutrina do Logos no Prólogo joanino, sua relação com Deus, com a criação, com a vida e,
por fim, com o próprio Jesus Cristo, enquanto Palavra de Deus 101 e Verbo encarnado.

“1. No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. 2. Ele
estava no princípio com Deus. 3. Todas as coisas foram feitas por intermédio Dele, e sem
ele nada do que foi feito se fez. 4. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; 5. a
luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. 6. Houve um homem
enviado de Deus, cujo nome era João. 7. Este veio como testemunha, a fim de testemunho
da luz, para que todos cressem por meio dele. 8. Ele não era a luz, mas veio para dar
testemunho da luz. 9. Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem, estava chegando
ao mundo. 10. Estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele, e o mundo não
o conheceu. 11. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. 12. Mas, a todos
quanto o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornar filhos de
Deus. 13. Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade
do varão, mas de Deus. 14. E o verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai. 15. João deu
testemunho dele, e clamou, dizendo: Este é aquele de quem eu disse: O que vem depois
de mim, passou adiante de mim, porque antes de mim ele já existia. 16. Pois todos nós
recebemos da sua plenitude, e graça sobre graça. 17. porque a Lei foi dada por meio de
Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. 18. Ninguém Jamais viu a
Deus. O Deus unigênito, que está no seio do Pai, esse deu a conhecer” 102

Bioenergética, dava a esta força o nome de Orgone, energia onipresente em toda a vida. O princípio vital era
também reconhecido pelos hinduístas como Atmam, literalmente fôlego, a força vital instalada no íntimo de
cada um, indestrutível e com característica de unicidade com o universo. [Para os gregos, esse principio vital
era o Logos, caracterizado mais precisamente pelo dualismo platônico; para o judaísmo, é representado por
Dabar, palavra composta de luz e força; para o Cristianismo, é o Verbo criador, principio de vida e luz.] Indo
mais adiante, podemos encontrar outras denominações: Éter, Prana, Mana, Energia Bioplasmática, etc
((CAPELLARI, L. A Força da Vida, p. 13).
100
COENEN, Lothar & BROWN, Colin., op. Cit. p. 1516-1517.
101
A palavra do homem é aquela por meio da qual ele se expressa, por meio da qual ele se comunica com os
seus semelhantes. Por sua palavra ele dá a conhecer seus sentimentos, e por sua palavra ele manda e executa a
sua vontade. A palavra com que ele expressa está impregnada de seus pensamentos, de seu caráter. Da mesma
maneira, a “Palavra de Deus” é o veículo mediante o qual Deus se comunica com outros seres, e é o meio pelo
qual Deus expressa o seu poder, a sua inteligência e a sua atividade, sua vontade e propósito, e por meio dela
tem contato com o mundo. (PEARLMAN, Myer. Conhecendo as doutrinas da Bíblia, p. 100-101)
62

Os versículos, 1, 2, 3, 10, 12, 14 e 18, do Prólogo joanino, colocam o Logos, em


relação direta com Deus. Nesses versículos, há uma profunda e vital relação entre Deus, o
Pai, e o Logos, que é, inclusive, chamado de Filho. Ele é colocado junto de Deus e é
declarado como tal, embora o autor mantenha que ele estava com e era Deus, ou seja,
distinguindo-o e identificando-o, ao mesmo tempo, com Deus. O Logos ainda concede o
poder de tornar-se filho de Deus a quem crer nele, manifesta a sua glória e o revela aos
homens.103

Nos versículos 1 e 2, o autor quer mostrar ao leitor que ele está se referindo àquilo que
é anterior a tudo mais, 104 àquilo que é o princípio de todas as coisas. É visível a semelhança
com o início de Gênesis: "No princípio, criou Deus o céu e a terra” e também com
Provérbios 8,22-31, em relação ao qual, Juan Mateos e Juan Barreto apresentam um
comentário bíblico bastante interessante. 105 Contudo, o Logos é anterior a criação, já existia
antes desta, não como Sabedoria, que era a primeira das criaturas; o Logos não pode ser

102
Bíblia de Estudo Pentecostal – Almeida Revista e Corrigida, p. 1569. Interessante nota a relação que o
Prólogo joanino possui com o pensamento chinês de Chuang Tzu sobre a existência de um Principio divino
como a causa e origem do cosmos e do mundo dos homens. “Não perguntes se o princípio está nisto ou naquilo;
ele está em todos os seres. É em razão disso que lhe conferimos os mais epítetos de supremo, universal, total. Ele
ordenou que todas as coisas sejam limitadas, mas ele mesmo é ilimitado, infinito. Quanto ao que pertence à
manifestação, o Principio causa a sucessão de suas fases, mas não é essa sucessão. É o autor de causas e efeitos,
mas não é causa nem efeito. É o autor das condenações e dissipações (nascimento, morte, mudança de estado),
mas não é condenação nem dissipação. Tudo procede Dele e está debaixo de sua influência. Ele está em todas as
coisas, mas não é idêntico aos seres, pois não é diferenciado nem limitado” (CAPELLARI L. A Força da Vida,
p. 12).
103
ARAÚJO Éric. O Logos no prólogo do Evangelho segundo São João. p. 240. O Logos é o princípio da auto-
manifestação de Deus. É Deus manifesto em si mesmo, a si mesmo. Portanto, onde quer que Deus apareça, a si
mesmo ou aos outros, é sempre o Logos que aparece. Este Logos está em Jesus, o Cristo, de maneira especial.
(TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão, p. 50).
104
Sobre a preexistência do Logos, o autor assim comenta: “A palavra que é usada no original grego, arché
(princípio), era utilizada com o propósito de fazer referência à geração primária ou ao surgimento de todas as
coisas e ainda que esse vocábulo tenha sido usado desta maneira, não haveria indicação alguma de que isso
queria dizer que o Logos teve começo nessa ocasião; pelo contrário, ele é visto como já em existência nessa
ocasião. (...) Portanto, quando se diz que o Logos estava no princípio, já nisso fica expressa a sua existência
eterna (...)”. (CHAMPLIN, Russel., O Novo Testamento Interpretado, p. 263).
105
Ao usar a expressão no princípio, o autor enlaça seu evangelho com o relato da criação do mundo (Gn 1,1-
8), oferecendo já uma linha de interpretação de seu escrito. O que nele será narrado está em relação com a
obra criadora de Deus. Jo declara a existência de realidade anterior no princípio descrito pelo Gênesis: ''No
princípio, Deus criou o céu e a terra" (1,1). Precedendo à própria criação, existia uma Palavra divina que devia
guiar e realizar a criação inteira. Jo assume a idéia expressa no livro dos Provérbios (LXX) referindo-se à
Sabedoria: "O Senhor me estabeleceu como princípio de seus caminhos para [realizar] suas obras, constituiu-
me no princípio antes que existisse o tempo, antes de criar a terra" (8,22-24). "Quando colocava o céu, aí
estava eu com ele" (8,27). Segundo este livro, a Sabedoria precedeu a criação e acompanhava a Deus em sua
obra, até terminá-la com a existência dos homens (8,31). A conseqüência moral proposta pelo autor é que o
homem deve ajustar sua vida a essa sabedoria primordial, deve escutá-la para ter vida; quem a odeia, ama a
morte (8,32-36). Seguindo a linha dos Provérbios, Jo coloca a existência do Logos antes da criação efetiva.
MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 44-45).
63

colocado entre as criaturas. O autor identifica-o com Deus, sobre isso, comenta a Bíblia do
Peregrino:

“No princípio: assim começa o Gênesis, a Torá, a Bíblia dos hebreus. João o corrige
remontando a um princípio anterior a Gn 1,1: é o Logos. O grego emprega um verbo no
imperfeito de continuidade. A Palavra se dirige a Deus: no AT há uma fórmula profética
básica que, com variações morfológicas ou de nomes, aparece umas cem vezes: 'a palavra
de Deus se dirigiu a Fulano.' João teria retomado e corrigido paradoxalmente a fórmula,
tornando a Palavra sujeito e Deus destinatário. O paradoxo se resolve esclarecendo que a
Palavra era Deus."106

Vemos, logo, que nos dois primeiros versículos do Prólogo do quarto Evangelho, o
autor já afirma de início que o Logos é Deus, está com Deus e se dirige a Deus, não
desenvolvendo mais essa tese, por enquanto, mas deixando claro que, embora haja uma
identidade entre eles, há também uma distinção. 107

Nos versículo 4, 5 e 9, percebe-se o efeito que a Palavra divina produz no homem,


outorgando-lhe vida, vida em plenitude, a qualidade divina por excelência, a descrição do
ser do Pai (6,57: como a mim me enviou o Pai que vive e assim eu vivo pelo Pai, também
aquele que come de mim, viverá por mim). O núcleo e a finalidade da obra criadora, a
comunicação da vida, colocada no prólogo do evangelho, faz com que todo este deva ser
lido nesta chave. De fato, tal é a missão de Jesus (Jo 10,10): eu vim para que tenham vida e
em abundância), comunicar a vida ao homem até a plenitude (cf. 1,12.13). Luz e vida são
inseparáveis. Ao ver a luz, o que se percebe é a vida. A luz é, portanto, a vida, enquanto
perceptível. A revelação que Jesus vem trazer é a da vida, que se impõe por sua evidência
(verdade). A vida, sendo a luz dos homens, fisicamente vivos, adquire significado que
desborda da mera existência: é a plenitude da vida (Jo. 10,10), a vida definitiva (Jo. 3,15),
em contraposição a uma vida que não merece este nome. Por estar a vida contida no projeto
divino, segundo o qual o homem foi criado, o anelo de vida é constitutivo do seu ser. O

106
ARAÚJO. op. cit., p. 241.
107
Ibid., p. 241. Segundo os apologistas, a encarnação não é a união do Espírito divino com o homem Jesus: é o
Logos que realmente se faz homem. Esta cristologia voltada para a transformação do Logos em homem vai-se
tornando progressivamente importante por meio da doutrina do Logos. Por meio da vontade de Deus, o Logos
pré-existente se faa homem. Faz-se Carne (TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão, p. 52).
64

homem percebe que é destinado à plenitude e que esta deve ser o objetivo de sua existência
e atividade. 108

No que diz respeito a natureza dessa luz, podemos dizer que ela ilumina tanto a razão
como a inteligência; e é ao mesmo tempo moral e metafísica. Somos iluminados não
simplesmente em sentido moral e na inteligência, mas também somos transformados por
essa iluminação, até nos tornarmos semelhantes ao Cristo, em nossas naturezas essenciais
até sermos também verdadeiras luzes, filhos autênticos de Deus. 109

No versículo 12, é afirmado que o Logos tornou capazes de serem filhos de Deus
aqueles que o acolheram e nele creram. Isso é uma conseqüência da sua divindade, é algo
que só Deus mesmo poderia fazer, pois só quem possui algo pode dar a outrem uma
participação nessa mesma coisa. Sendo Deus, o Logos comunica aos que a ele se abrem e
que entram comunhão com ele, pela fé, certa participação na vida divina. 110

Na segunda parte do versículo 14, o Logos, tendo-se encarnado, manifesta a glória de


Deus Pai. Ele só manifesta essa glória, pois ele é o "Filho único" enviado de junto do Pai,
herdeiro de tudo o que pertence a Ele, como dirá depois: "...tudo o que é teu é meu”. Isto
significa que ele tem a mesma dignidade de Deus, é Deus com o Pai. O versículo 18 encerra
o prólogo, destacando o ministério de Revelador do Filho de Deus, que, tendo vindo a nós,
na sua condição de Filho único, no-lo revelou, dando-nos a conhecer o seu amor salvador e
misericordioso. Só Deus poderia revelar Deus, pois "Ninguém subiu ao céu, a não ser
aquele que desceu do céu: o Filho do Homem. 111

Nos versículos 3 e 4 o Logos é apresentado em sua relação com toda a criação, isto é,
com toda a obra de Deus, que é obra sua, devido ao fato de ele ser Deus com o Pai: "Tudo
foi feito por ele e sem ele nada foi feito. No que foi feito, nisso ele era a vida, e essa vida
era a luz dos homens..". É de se aqui destacar que Platão se utilizou dessa palavra para
indicar a “força geradora”, a “força originadora” ou “aquele que começa”, “que gera”. Por
essa mesma razão é que Jesus Cristo, na passagem de Apo. 3:14, é referido como “o

108
MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. op. cit., p. 48-49.
109
Utilizando-se do versículo 9 de Jo “pois a verdadeira luz que alumia a todo o homem estava chegando ao
mundo, os pais”, os pais gregos da Igreja ensinavam que Deus iluminava aos pagãos de diversas maneiras,
incluindo as suas próprias variegadas filosofias, e, em especial, os ensinos dos filósofos como Sócrates, Platão
e Aristóteles, os quais serviam de agentes do Logos, conduzindo os homens, finalmente, a Cristo, o Logos
encarnador. Os Quacres, por sua vez, usam este versículo para ensinar a iluminação universal, nas mentes dos
homens. (CHAMPLIN, Russell. O Novo Testamento Interpretado, p. 269).
110
ARAÚJO. loc cit., p. 241.
111
Ibid., p. 241.
65

princípio da criação de Deus”, palavras essas que significam que Jesus Cristo é o “agente
primário”, o “iniciador da criação”, a “força” ou “energia criadora”, e jamais que ele foi a
primeira criatura a ser criada. 112

O Logos, essencialmente junto de Deus, enquanto Palavra Divina, dirige-se para fora
de Deus, para comunicar o ser ao parceiro de diálogo que Deus quer proporcionar a Si
mesmo, isto é, à criação. Deus é o autor da criação toda, criando-a, mediante a sua Palavra.
E tudo o que foi criado pertence ao seu desígnio: "O enunciado negativo (sem ele nada foi
feito.) elimina toda exceção; nada existirá fora da vontade e do projeto divino, expresso e
realizado por sua Palavra. No Logos de Deus há vida, pois ele, que é "...O caminho, a
verdade e a vida (:)"e é "um com o Pai” é, comunicação de Deus, comunicação que gera
vida, que, necessariamente fecunda e gera um efeito vital. Portanto, nele há vida, pois ele é
vida, fonte de vida, palavra geradora de vida e o fim de toda vida. O Logos é Deus e, por
isso, o criador de todas as coisas. 113

O Logos é Palavra divina, absoluta, original, que relativiza todas as demais. As


dirigidas por Deus ao homem na Lei e nos Profetas não passavam de expressão parcial de
sua plenitude. Chegando-se a conhecer essa Palavra, expressão perfeita de Deus, todas as
demais perdem sua força, ao se perceber sua fragmentariedade e imperfeição. Os ideais
humanos propostos na antiga aliança, em particular a realização do homem por meio da Lei
(Jo. 3,3-8), ficaram superadas quando se conheceu o Logos encarnado e a sua verdadeira
essência: Vida e Luz. 114

Não era rara nas escolas rabínicas a identificação da Lei com a sabedoria e também
com a luz; consideravam a Lei como preexistente e como princípio criador. É claro que o
autor joanino tem em vista essas proposições, refutando-as com a afirmação: “A vida estava
Nele”, contrapondo-se assim ao absolutismo da Lei mosaica. Nesse sentido, o conflito entre
a Lei e a vida como norma do homem, coloca-se explicitamente em Jo 5,1ss e 9,1ss.
Enquanto Jesus o resolve em favor da vida, os dirigentes judeus se decidem a favor da
Lei.115 Esse foi um dos grandes motivos da revolta de Nietzche – o apologista da vida –,
contra os sistemas religiosos e a racionalidade deste mundo, capazes de matarem a vida em

112
CHAMPLIN. op. cit., p. 263.
113
ARAÚJO. Loc. cit., p. 241.
114
MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. op. cit., p. 46.
115
Ibid., p. 49-50.
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nome da verdade, de Deus, de Aláh, da cultura, etc, roubando-lhe o sentido que lhe é
inerente.

Dessa maneira, o dito de João “a vida era a luz dos homens” inverte a concepção
rabínica, que enunciaria a sentença ao revés: a luz (= a Lei) é a vida do homem. Antes tinha
que conhecer a Lei, como luz e guia, sua prática levaria à vida (Jo. 7,49). O Autor propõe
exatamente o contrário: o que se conhece é a vida mesma, ou seja, a prática daquilo que se
conhece, nomina-se e se prega, e este conhecimento e experiência é a luz do homem. Toda a
atividade de Jesus para com o seu semelhante consistiu em comunicação de vida, e vida em
Plenitude. Com efeito, a vida precede a “doutrina”, a “verdade”, que muitas das vezes, ao
invés de libertar, aprisiona, mata, rouba. Aceitar Jesus é aceitar a vida tal e qual se
manifesta em sua pessoa e se expressa em suas obras (1,38 Leit.). A experiência desta vida
tornada presente e manifestada em Jesus converte-se em norma de toda a atividade do
homem. 116

O Logos é criador em relação ao universo, porque é Deus e porque é comunicação que


Deus faz de si mesmo, do seu propósito, da sua vontade. Não podemos esquecer que o
Prólogo joanino está em referência também ao Gênesis, no qual Deus cria através de sua
Palavra. Embora todo o Prólogo joanino fale de Jesus Cristo, há alguns versículos que
especialmente trazem informações sobre Ele, enquanto Logos de Deus encarnado. Nesses
versículos encontramos uma espécie de síntese da vida de Jesus. São os versículos 10, 11,
12, 14, 15, 16, 17 e 18: 117

Os versículos 10-11 querem nos mostrar a realidade da recusa global, sofrida pelo
Logos. Primeiro, ele, que estava presente no mundo por tê-lo criado, não foi reconhecido
pelo homem como seu criador. 118 De fato, o homem desviou-se de Deus desde o princípio
116
Loc. cito., p. 49. Nesse sentido, Chuang-tzu, Lao-tze, Buda, Gandhi e outros no mundo oriental ou as cartas
de Sêneca, as máximas estóicas de Marco Aurélio, a filosofia de Platão no mundo ocidental podem e devem,
pela fé, serem considerados veículos comunicadores da graça. Foram obras da graça e se constituíram, ao longo
da história, em atmosfera permanente da graça para muitíssimas pessoas. Em contato com estes testemunhos
privilegiados do Espírito, o homem se sente convocado a ascender, a entregar-se ao Mistério de Deus e a
descobrir em sua vida o desígnio misterioso da luz divina. Algo semelhante ocorre no espaço cristão. Jesus de
Nazaré é por excelência e de forma definitiva amado como a graça de Deus presente no mundo. (BOFF,
Leonard. Graça e Experiência Humana, p. 190).
117
ARAÚJO., loc. cit., p. 241.
118
Sobre o versículo 10 de Jo “Estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele, e o mundo não o
conheceu”, Champlin, concordando com o seu amigo Westcott, comenta: “É impossível atribuirmos essas
palavras simplesmente a presença histórica da Palavra em Jesus, conforme ela foi testemunhada por João Batista.
Essa manifestação era muito mais antiga e universal do que está envolvido apenas na encarnação; e é mister que
nos lembremos que este texto está frisando a universalidade do Logos, tanto na questão da criação como na
questão da manifestação e da iluminação operadas por Cristo. A verdade é que o Logos veio a este mundo, tanto
no mundo físico como também na consciência dos homens. (CHAMPLIN, Russell. O Novo Testamento
67

dos seus dias, recusando-se a conhecê-lo. São Paulo, sobre isso diz na carta aos Romanos:
"...O que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles (os homens), pois Deus lho
revelou. Sua realidade invisível - seu eterno poder e sua divindade tornou-se inteligível,
desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa. Pode haver
qualquer referência no versículo 11 à recusa específica dos judeus, pois eram o povo que,
além de ter feito uma Aliança com o Deus verdadeiro, esperava pelo Messias prometido.
Seria uma aplicação perfeita do "...Veio para a sua propriedade e os seus não o acolheram. 119

Os versículos 12 e 13 falam da acolhida do Logos, e de sua conseqüência principal, a


filiação divina. 'Aqueles que acolheram Jesus e a sua mensagem, que creram e se abriram à
salvação trazida por ele, receberam-na através do poder de se tornarem filhos de Deus. Não
é isso uma recompensa do Logos aos que o acolhem, mas a realização mesma da sua
missão, a conseqüência necessária de sua acolhida num coração sincero. 120

No versículo 14, contemplamos a parte mais central do Prólogo, o trecho que resume
em si, todo o Evangelho de João. O Logos se faz carne, isto é, Deus se comunica a nós,
assumindo a humanidade em sua totalidade, fazendo-se em tudo semelhante aos homens,
menos no pecado. São Paulo também expressou essa realidade, dizendo: "...esvaziou-se a si
mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. Deus se fez homem
para remir o homem, se fez filho do homem para que o homem se tornasse filho de Deus. 121
Todo o Evangelho e todo o verdadeiro cristianismo dependem dessa afirmação. Deus que já
estava presente e que já guiava a história humana, se mostra, nela de uma forma tão
concreta, tão reveladora e tão simples. A carne assumida por Cristo, será o meio próprio da
manifestação da glória do Pai e da realização da Sa1vação. O Logos assume, então, uma
figura histórica concreta, no meio de um povo concreto, com uma história concreta e
documentável. Sua presença marcará toda a história e será o seu centro. 122

Chegamos ao final do terceiro e último capítulo. Conforme pode ser visto, o Logos é
uma palavra mística que encarna um Sentido universal, imperfeitamente apreendido,
nominado e representado de maneiras diferentes.

Em Heráclito, o Logos seria aquilo que por sobre a multiplicidade do diverso, reúne e
unifica os opostos e contrários, a palavra ordenadora do mundo (uma espécie de divindade),
Interpretado, p. 270).
119
ARAÚJO. loc., cit., p. 241.
120
Ibid., p. 241.
121
Ibid., p. 241.
122
Ibid., p. 241.
68

um princípio imanente ou lei cósmica, universal, eterna que, como um fogo espiritual,
preside o destino de todas as coisas mutáveis. Por outro lado, é também um sistema
argumentativo próprio, em correspondência ou paralelismo com o sistema objetivo do
mundo, interpretação confirmada, ao que parece, pelo fato de o próprio Heráclito considerar
o seu discurso, o seu logos, não como um ato isolado, individual, mas como um eco e
expressão de um Logos universal que, deste modo, lhe garante objetividade e verdade.

Nos Estóicos, o Logos seria a razão universal, a força criadora eterna, a energia
sustentadora e orientadora do cosmos, a “alma do mundo”. Tratar-se-ia de uma do cosmos
como uma razão universal ativa e criadora e suas manifestações foram chamadas de logoi
spermatikoi, ou seja, sementes da razão. Todas as formas existentes no mundo, bem como
todas as leis que atual neste mundo, seriam logoi spermatikoi ou manifestações do Logos.
Assim, pois, o Logos seria a organização de todas as miríades de formas e de leis que
emprestam naturezas e nomes aos objetos individuais, por isso mesmo o Logos seria uma
força material, cósmica, impessoal, e não uma pessoa.

Já em Filon de Alexandria, o Logos é a ação de Deus no mundo, o instrumento da


criação, modelo do mundo e imagem de Deus, a Palavra reveladora e o único meio a partir
do qual a alma humana adquire o conhecimento verdadeiro, que vem de Deus. Esta
faculdade, porém, não pertence ao homem senão como dom divino, como graça. Como
razão divina, universal e imanente, o Logos contém dentro de si mesmo o ideal universal,
mas que, ao mesmo tempo, é a palavra expressa que procede da parte de Deus e que se
manifesta neste mundo em tudo quanto existe. Seria a manifestação que Deus faz de si
mesmo neste mundo. Por conseguinte, para Filon, o Logos seria a súmula total do livre
exercício das energias divinas. Dessa maneira, ao revelar a si mesmo, Deus poderia ser
chamado de Logos; o Logos, como hipóstase Sua, na qualidade de agente revelador, poderia
ser chamado de Deus.

No Prólogo joanino, o Logos aparece como uma força criadora, uma força
controladora, uma pessoa, uma personalidade divina que embora deva ser identificada com
Deus, não obstante é pessoa distinta de Deus-Pai. Um dos mais conspícuos ensinamentos do
prólogo joanino sobre o Logos é que ele é quem revela a Deus, servindo de elo de conexão
entre Deus e o ser humano, motivo pelo qual lhe convinha compartilhar das naturezas divina
e humana. Ele é a expressão de Deus na criação inteira, e não meramente para o homem,
pois ele sempre existiu, desde a eternidade passada, e tem sido a manifestação de Deus para
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todas as demais criaturas. Ele é a vida e a luz de Deus no mundo e, nessa qualidade, ilumina
a criação em sua totalidade.

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