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A unidade antropológica
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uma metafísica da alma sucede, contemporaneamente, uma fenomenologia
do corpo.
Todavia uma análise mais cuidada da actual recuperação do corpo,
revela-nos a sua profunda ambiguidade. A valorização do corpo não
significa, de imediato, o reconhecimento da dignidade da pessoa no
concreto da sua condição corpórea. Mais do que valorizar o realismo do
corpo da pessoa, marcado pela debilidade, pelo envelhecimento e pela
morte, o que se verifica é a idealização e a mitificação de um corpo
eternamente jovem. Na actual cultura do culto do corpo não tem cabimento
o corpo humilhado e debilitado pela dor, pela doença e pela velhice. O mito
da beautiful people não suporta os sulcos da carne, a flacidez da pele, o
entorpecer dos músculos.
À volta do corpo decide-se hoje também toda uma epistemologia do
conhecimento antropológico. Do monismo fisicalista ao dualismo com que
operam alguns teóricos das actuais ciências neurológicas, do reducionismo
biologista à dessomatização da cibernética, o que está em causa é,
radicalmente, o valor da pessoa em sua condição corpórea. Pura biologia e
mero processo físico-químico, ou realidade pessoal única e
qualitativamente superior, o corpo é o lugar onde se confrontam, por um
lado, os reducionismos antropológicos e, por outro, as antropologias de
exigência ontológica e axiológica. Quer se reconheça ou não, todo o
discurso antropológico sobre o corpo é, em sua génese, um discurso
ontológico. E do modo como se inscreve o corpo no ser da pessoa, depende
tanto o reconhecimento do valor da pessoa como o do próprio corpo. Por
isso mesmo, o velho problema da relação alma-corpo volta a estar no
centro do debate científico e filosófico actuais, ainda que reciclado na
questão do mind-body problem, desenvolvida no mundo anglo-saxónico.
1
Cf. G. VON RAD, Teología del Antiguo Testamento, II, Salamanca 1980, 448.
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2.1.1. A antropologia do AT
2
Cf. H. W. WOLFF, Antropología del Antiguo Testamento, Salamanca 19972,
87-82; W. EICHRODT, Teología del Antiguo Testamento, II, Madrid 1975, 137-160: J.
BEHEN, «Áima», in KITTEL (ed.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, I, Bréscia
1985, 461-466; F. BAUGMARTEL, «Kardía», in Ibidem, V, Bréscia 1969, 193-205;
ID., «Sarx», in Ibidem, XI, Bréscia 1977, 1265-1290; ID., «Pneuma, pneumátikos», in
Ibidem, X, Bréscia 1975, 357-366.
3
Cf. W. EICHRODT, Teología del Antiguo Testamento, 154.
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realidade e a visibilidade do próprio homem; não somente o conjunto das
suas partes orgânicas, mas, sobretudo, a significação de toda a sua pessoa
situada, débil, pecadora e carenciada diante de Deus, solidária pela
proximidade (parentesco, nacionalidade, raça...), actuante na história e no
mundo, onde se encarna e encarna, no esforço da sua fidelidade, o projecto
de Deus. Por isso, o corpo presencializa a pessoa, no mundo, diante de
Deus e dos outros.
É através do corpo que o homem experimenta a sua condição de
criatura, dependente de Deus mas a Ele semelhante, de quem recebe o
hálito vital. Pela sua fragilidade biológica, onde a morte surge como fim de
toda a vida, o homem dá-se conta do relativo que ele próprio é, bem como
do mundo em que se situa4. Por essa razão, o corpo é também a
oportunidade humana de abertura ao mistério, a outro tempo que
permaneça, ao futuro de uma realização total. Materialidade, por um lado, o
homem é também espiritualidade, por outro; limite e finitude, todavia
aberto à transcendência.
4
Cf. FIORENZA – J.-B. METZ, «El hombre como unidad de cuerpo y alma»,
in Mysterium Salutis, II, Madrid 19772, 525.
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