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2.

A unidade antropológica

A primeira descoberta da pessoa é a do seu corpo, que se dá


simultaneamente com a tomada de consciência do mundo exterior. Esta
experiência acontece na criança por volta dos seis meses, e consiste no
reconhecimento das diferentes partes do seu corpo e da sua
instrumentalidade na relação com o mundo exterior. A percepção elabora a
consciência de uma subjectividade, que se distingue ao espaço circundante.
Acontece a diferenciação sujeito-mundo através do aparelho sensorial.
Desde o começo da existência humana o corpo joga um papel
determinante: É através dele que a pessoa organiza o universo e diz o
mundo exterior. O corpo é o acto primeiro do homem e ser corpo a sua
condição. Assim se compreende que a questão do corpo e da alma não é
mera questão de linguagem. É, no fundo, a questão da natureza histórica do
homem, como sujeito concreto que existe no mundo, mas não se reduz ao
mundo, pois é portador de uma espiritualidade. É na estreita correlação do
binómio corpo-alma, materialidade-espiritualidade, que se deve
desenvolver uma compreensão correcta da condição humana. Acentuar
apenas a materialidade histórica e mundana do homem seria cair no
reducionismo materialista, como, por outro lado, sublinhar apenas a
abertura espiritual esquecendo a dimensão corpórea e histórica, seria cair
num espiritualismo desencarnado.
A recuperação do valor do corpo tem sido, sem sombra de dúvida,
uma das grandes apostas culturais do Ocidente nos últimos cem anos.
Ignorado, rejeitado ou domesticado, durante séculos, pelas diversas
instâncias produtoras de comportamentos, o corpo reaparece,
contemporaneamente, liberto das suas amarras, descomplexado,
absolutamente transparente. De espaço marginal de todas as suspeitas,
torna-se o abrigo de todas as crenças; de objecto rejeitado, passa a objecto
de culto, até mesmo de desmedida exaltação. O corpo é bem o espelho das
aspirações e das contradições da nossa sociedade actual. Da pintura ao
cinema, da técnica à informática, da ciência à filosofia, o corpo é, hoje,
uma questão que atravessa e unifica todos os domínios da cultura
contemporânea.
A actual recuperação e valorização do corpo anda a par da crítica
antimetafísica ao conceito de alma e da redução epistemológica do real ao
aparecer fenoménico, ao material. À concentração espiritualista e
intelectualista no conceito de alma, próprio das antropologias clássicas de
inspiração metafísica, as filosofias existencialistas e fenomenológicas
contemporâneas acentuam, precisamente, a realidade do corpo, a sua
dimensão vital, pulsional e existencial. O corpo passa a inscrever-se no ser
da pessoa a partir da realidade da própria existência vivida, e não tanto a
partir de um princípio metafísico ontologicamente determinante, a alma. A

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uma metafísica da alma sucede, contemporaneamente, uma fenomenologia
do corpo.
Todavia uma análise mais cuidada da actual recuperação do corpo,
revela-nos a sua profunda ambiguidade. A valorização do corpo não
significa, de imediato, o reconhecimento da dignidade da pessoa no
concreto da sua condição corpórea. Mais do que valorizar o realismo do
corpo da pessoa, marcado pela debilidade, pelo envelhecimento e pela
morte, o que se verifica é a idealização e a mitificação de um corpo
eternamente jovem. Na actual cultura do culto do corpo não tem cabimento
o corpo humilhado e debilitado pela dor, pela doença e pela velhice. O mito
da beautiful people não suporta os sulcos da carne, a flacidez da pele, o
entorpecer dos músculos.
À volta do corpo decide-se hoje também toda uma epistemologia do
conhecimento antropológico. Do monismo fisicalista ao dualismo com que
operam alguns teóricos das actuais ciências neurológicas, do reducionismo
biologista à dessomatização da cibernética, o que está em causa é,
radicalmente, o valor da pessoa em sua condição corpórea. Pura biologia e
mero processo físico-químico, ou realidade pessoal única e
qualitativamente superior, o corpo é o lugar onde se confrontam, por um
lado, os reducionismos antropológicos e, por outro, as antropologias de
exigência ontológica e axiológica. Quer se reconheça ou não, todo o
discurso antropológico sobre o corpo é, em sua génese, um discurso
ontológico. E do modo como se inscreve o corpo no ser da pessoa, depende
tanto o reconhecimento do valor da pessoa como o do próprio corpo. Por
isso mesmo, o velho problema da relação alma-corpo volta a estar no
centro do debate científico e filosófico actuais, ainda que reciclado na
questão do mind-body problem, desenvolvida no mundo anglo-saxónico.

2.1. A antropologia bíblica

Enquanto a cultura grega antiga tinha do homem uma visão


preponderantemente dualista, a cultura bíblica sempre sustentou uma visão
unitária do homem. Este não é um composto de elementos antagónicos,
corpo e alma, mas uma criatura viva, unitária, inserida na história onde
realiza o projecto de Deus. O homem é uma realidade que não se
compreende autonomamente, mas numa dupla referência, a Deus e ao
Povo. É, portanto, à luz da aliança e da eleição que surge no pensamento
bíblico uma antropologia, não como elaboração sistemática, mas como o
questionamento sobre a existência concreta, mundana e histórica do
homem, enquanto criatura e enquanto comunidade1.

1
Cf. G. VON RAD, Teología del Antiguo Testamento, II, Salamanca 1980, 448.

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2.1.1. A antropologia do AT

Desconhecendo o Antigo Testamento o conceito de corpo, fala antes


de órgãos e das sus funções (garganta, rins, coração...). A linguagem
bíblica, concreta e simbólica, recorre a termos arrancados da vida para
expressar a totalidade da pessoa, bem como a sua condição corpórea.
Vários são os termos usados para descrever tanto os fenómenos psíquicos
como os orgânicos (nefesh=vida, basar=cane, leb=coração, ruah=espírito,
damân=sangue)2. Não há dualismo algum, pois o mesmo homem que
precisa de ar e de alimento enquanto nefesh (cf. Sir 6,7; Sl 107,5; 119,25),
que é frágil e débil enquanto basar (cf. Gn 2,23; Sl 38,4; 119,24; Lv 6,3;
16,4; 1 Re 21,17; 1 Sm 17,44), é também aquele que é capaz de amar, de
acolher a palavra de Deus e de lhe responder enquanto leb: «Amarás ao
Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, e com
todas as tuas forças» (Dt 6,5»; «Perscrutai Senhor, conhecei o meu coração,
e examinai-me e conhecei os meus propósitos» (Sl 139,23; cf. Dt 4,11; Pr
15,11; Jr 17,9s; Is 6,10; Job 12,3; 34,4; 2 Sm 7,27). A vida do homem se
biológica, enquanto damân (cf. Gn 9,4; Lv 3,17; 7,26; Dt 12,16.23.), é
também uma realidade espiritual, por outro, enquanto ruah (Gn 41,38; Ez
11,5; Is 42,1; Zc 12,1; Os 4,12; 5,4), força de Deus que anima toda a
existência. Todavia podemos verificar um perceptível contraste entre a
actividade instintiva, condicionada pela vida animal (nefesh), e a actividade
espiritual e consciente (leb). Porém, jamais se nota alguma oposição entre
uma dimensão interior, a subjectividade consciente, e uma dimensão
exterior, a objectividade orgânica e biológica.
Embora não exista no Antigo Testamento o conceito de corpo, a
realidade corpórea é, porém, afirmada pelos termos basar, nefesh, ruah,
leb e damân. Neste realismo, a dimensão corpórea do homem surge como a
inter-relação da sua vida psíquica e espiritual com a sua vida biológica.
Não é o corpo um objecto que se possua, pois nada fica fora do nosso ser
autêntico, nem tão pouco um instrumento com o qual teremos de contar
mas que não faz parte do nosso eu essencial. O corpo é a forma viva do
nosso eu, expressão necessária da nossa existência pessoal, na qual há-de
encontrar realização o sentido da nossa vida3. O corpo é, no fundo, a

2
Cf. H. W. WOLFF, Antropología del Antiguo Testamento, Salamanca 19972,
87-82; W. EICHRODT, Teología del Antiguo Testamento, II, Madrid 1975, 137-160: J.
BEHEN, «Áima», in KITTEL (ed.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, I, Bréscia
1985, 461-466; F. BAUGMARTEL, «Kardía», in Ibidem, V, Bréscia 1969, 193-205;
ID., «Sarx», in Ibidem, XI, Bréscia 1977, 1265-1290; ID., «Pneuma, pneumátikos», in
Ibidem, X, Bréscia 1975, 357-366.
3
Cf. W. EICHRODT, Teología del Antiguo Testamento, 154.

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realidade e a visibilidade do próprio homem; não somente o conjunto das
suas partes orgânicas, mas, sobretudo, a significação de toda a sua pessoa
situada, débil, pecadora e carenciada diante de Deus, solidária pela
proximidade (parentesco, nacionalidade, raça...), actuante na história e no
mundo, onde se encarna e encarna, no esforço da sua fidelidade, o projecto
de Deus. Por isso, o corpo presencializa a pessoa, no mundo, diante de
Deus e dos outros.
É através do corpo que o homem experimenta a sua condição de
criatura, dependente de Deus mas a Ele semelhante, de quem recebe o
hálito vital. Pela sua fragilidade biológica, onde a morte surge como fim de
toda a vida, o homem dá-se conta do relativo que ele próprio é, bem como
do mundo em que se situa4. Por essa razão, o corpo é também a
oportunidade humana de abertura ao mistério, a outro tempo que
permaneça, ao futuro de uma realização total. Materialidade, por um lado, o
homem é também espiritualidade, por outro; limite e finitude, todavia
aberto à transcendência.

4
Cf. FIORENZA – J.-B. METZ, «El hombre como unidad de cuerpo y alma»,
in Mysterium Salutis, II, Madrid 19772, 525.

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