Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Pós-graduação
Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo
Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de
Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian
Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem
musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de uma
impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas especialidades, a
arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um rufião ou um
marginal. Na verdade:
“usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com aros
de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto
avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o
nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha,
e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os
cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado.
Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte
e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da
composição musical, na medida das suas capacidades”1.
Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua
maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a
dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento
eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles,
aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos
convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a
desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma
impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética, é
abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura capaz
de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética como a
expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe. Goethe e
Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão da
dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada como
representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da dissolução
completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação determinada”, como
dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca ofereceria um horizonte
de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos, sombrios, um tanto
avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o niilismo desse “espírito que
sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que seja a este inferno frio do
Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses fenômenos que se diz de muitas
maneiras, o inferno também se declina de forma generosa. Ele pode ser, por exemplo,
este lugar no qual a ruína parece eterna e insuperável, no qual estamos condenados à
cantar a cantinela triste da finitude, lugar no qual as condições da praxis transformadora
encontram-se, por isto, completamente impossibilitadas, não restando outra coisa a não
ser o pensamento que denuncia toda solução como uma traição, toda imanência como
um recuo. Um inferno que mais parece o mundo invertido depressivo produzido por
uma teologia negativa. Esta pareceria ser a estação final da longa e complexa história
da dialética no pensamento ocidental.
Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que
aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no
que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz respeito
à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria simples
incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de filósofos
como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em compasso
de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do senso
comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é
o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes3.
Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode
aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar movimentos
que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e passar que não
surgem nem passam, evanescências que não são apenas desaparecimentos mas, ao
mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No coração desta dialética delirante
encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de dissolver a segurança do mundo e, com
ele, as figuras singulares do espírito e os pensamento determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se
perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a
filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso
daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos
permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-estável
que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte regulador
da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre foram tão
sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as discussões sobre o
saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de que as discussões de
Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que algumas frases e que os
momentos de conciliação em Adorno quase nunca são efetivamente postos. Na verdade,
por mais que seus detratores não queiram ver, isto se explica pelo fato da teleologia da
dialética ser a própria imanência do movimento que ela desvela. Movimento este que
será a pulsação interna da experiência do conceito.
Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os
fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que
nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo
impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX
exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu
uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes da
filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa.
Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de ser
o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não
esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações presentes
ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente futuro que
se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera possibilidade
que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos esclarece de
onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a negatividade dialética
não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou privação, como vemos,
por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética hegeliana. Ela é manifestação
do excesso do processo do conceito em relação às possibilidades das determinações
postas.
Por isto, se tal latência do existente deve ser compreendida como negatividade
é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se
não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx:
logique et politique, op cit.
9 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
10 HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da
Ontologia em situação
11 ENGELS, Friedrich e MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p. 71
12 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt:
Surhkamp, 1994, p. 16
13 Lembremos, por exemplo, das colocações de Paulo Arantes a respeito da leitura sugerida por
Gérard Lebrun a respeito da dialética: “Numa palavra, erradicando-lhe todo e qualquer resíduo
afirmativo, Lebrun reduzia o hegelianismo ao que lhe parecia ser o essencial, a Dialética, e esta, a
uma espécie de revolução discursiva sem precedentes, uma ‘máquina de linguagem’
especializada em pulverizar as categorias petrificadas, as fixações arcaicas do pensamento dito
‘representativo’, encarnado pelo famigerado (depois do Idealismo Alemão) Entendimento.
Comprimidas por tal engrenagem, as significações correntes se punham a flutuar para finalmente
confessar que no fundo não eram nada mesmo, a não ser um ninho de contradições cujo
resultado se desmanchava no ar, Não havia doutrina portanto, nada a ensinar ou informar. A
Dialética, no final das contas, nada mais era do que uma maneira de falar” (ARANTES, Paulo;
Hegel: frente e verso)
si no interior de um campo no qual a universalidade genérica da pessoa saberia como
ver e escutar o que lá se apresenta. No entanto, há aquilo que não se proclama, há aquilo
que faz a língua tremer, há aquilo que não se dá a ver para uma pessoa. Expressão do
que destitui tanto a gramática da proclamação, com seu espaço pré-determinado de
visibilidade, quanto o lugar do sujeito da enunciação, que pretensamente saberia o que
tem diante de si e como falar do que se dispõe diante de si. Isto que faz a língua tremer
e se chocar contra os limites de sua gramática é o embrião de outra forma de existência.
Neste sentido, tal horizonte anti-predicativo de determinação não será capaz de se
encarnar nas condições de determinação do que pode ser proclamado. Veremos melhor
o sentido desta discussões no interior do nosso curso mas, por enquanto, gostaria de
dizer que esta é minha maneira de trabalhar uma importante elaboração de Ruy Fausto
a respeito das determinações dialéticas. Encontramo-la em afirmações como :
Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de
possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do
objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.
Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação” a
fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de ideias,
ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”. Ela é
sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se
historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa,
principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre
crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da
dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições
de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições
históricas. Isto é o que devemos compreender, em última instância, como “ontologia
em situação”.
15 KORTIAN, Garbis ; Subjectivity and civil society, In: PELCZUNSKI; The state and civil society :
studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press, 1984, p. 203
16
HEGEL, Filosofia do direito, par. 243
17 ADORNO, Tres estudos sobre Hegel,
forma, a sociedade se dissolveria em antagonismos insuperáveis. Ou seja, ele sabe o
que está em jogo na aposta hegeliana pelo Estado. Adorno só não está seguro de que tal
aposta poderá ser paga com a moeda que Hegel tem em mãos. Colabora para tal
desconfiança a compreensão adorniana da natureza da imbricação atual entre estado e
capitalismo. Imbricação na qual: “o intervencionismo econômico não é enxertado de
um modo estranho ao sistema, mas de modo imanente a ele, como a quintessência da
autodefesa do sistema capitalista”18. Na esteira das discussões de Friedrich Pollock a
respeito do “capitalismo de estado”, mas com um diagnóstico relativamente distinto,
Adorno acaba por apontar a mesma impossibilidade de pôr a possibilidade de um
Estado justo em nossa situação sócio-histórica. Sua articulação orgânica com as
dinâmicas monopolistas do capitalismo tardio lhe retiraria toda possibilidade de ser um
veículo de justiça social. Isto não implica, em absoluto, que a dialética negativa se
contentará em denunciar falsas totalidades lá onde a dialética hegeliana acreditava que
uma totalidade verdadeira poderia ser posta. Antes, ela criticará as figuras atualmente
postas da totalidade verdadeira, isto a fim de deixá-las em pressuposição devido à
situação sócio-histórica na qual o pensamento atualmente se move. A questão
importante será se perguntar onde estão os modelos de totalidade verdadeira, para onde
eles foram deslocados, já que não podem mais aparecer sob a forma do estado. Isto
significa modificar o sistema de posições e pressuposições da dialética.
Note-se ainda como, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme
em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo
que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa
plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação
filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se
produz através da definição normativa do dever-ser, e ninguém mais do que Hegel
recusou tal ideia. Ela se produz através do reconhecimento do desconforto em relação
aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isto, ela
nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte
normativo que a legitima.
Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingindo
o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar
à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando
das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.
verdadeiramente, uma arte, ela supõe um estado das articulações lógicas do discurso, das
relações de consecução ou de incompatibilidade entre as proposições; é preciso reconhecer e
analisar os diversos modos de argumentaão, saber distinguir entre os encadeamentos legítimos e
encadeamentos incorretos. Falta-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica.
Primeiro e sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É uma
arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular sistematicamente as leis
que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico tem como efeito, não apenas impdir-lhe o
acesso à independência científica, mas concentrar seu interesse na argumentação de caráter
erístico ou refutativo” (BLANCHË, Robert; História da lógica, Lisboa: Edições 70, p. 21)
24 KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p. 7
O declínio da filosofia medieval parece levar junto consigo o prestígio da
dialética. Lembremos como Descartes, por exemplo, associa a dialética à retórica para,
em um mesmo movimento, separar os campos da filosofia e da retórica. A dialética é,
para Descartes, uma “arte da raciocinação” meramente formal, pois ligada à análise das
qualidades formais do discurso. Daí sua crítica contra os dialéticos que creem governar
a razão:
27 Idem, A 306
28 “Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do
intervalo que necessariamente separa a ideia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve
determinar, precisamente porque se trata de liberdade e esta pode exceder todo o limite que se
queira atribuir” (KANT; idem, B 374)
29 Idem, A 328
30 Ver a este respeito ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 2
Por que uma ontologia do ser não é possível?
Hegel e Heidegger
Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica
respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja, por
que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação
normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos
perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua
inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia do
ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do qual se
diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua
indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente, como
se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é apenas
substancialização de ausência de realidade concreta.
Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel propõe
uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de reconstruir a
noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia por energeia
(que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência, movimento) no interior
de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia do ser irá necessariamente
transformar o fundamento em normatividade sem temporalização, fundamento ligado
à procura de expressão imediata do originário pensado como pré-subjetivo. Falar de
ser, seria para Hegel sempre retornar aos domínios das identidades abstratas. Já a
reconstrução hegeliana do conceito de essência seria, ao menos para Hegel, dotado da
possibilidade de compreender os processos de temporalização. Tal forma hegeliana de
desqualificar uma ontologia do ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que,
um século depois, Heidegger fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em
confrontação duas maneiras distintas de se pensar a temporalização das categorias da
ontologia, ou seja, esta maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que
se manifesta no interior do tempo.
No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a
experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo de
verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de motor
para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade imediata
entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da
indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente
determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a própria
noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a impossibilidade de
uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências ontológicas. Isto talvez
nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do ser leva Hegel a afirmar
algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta que será a primeira
categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir.
Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma
doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra
natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente,
seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro
conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos
leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por
característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração.
Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os
processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser apreendidos
através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá posteriormente
Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da filosofia hegeliana
reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime então tal inadequação
na medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de maneira plenamente
adequada”31. Este movimento de passagem, que mostra a insuficiência de conceitos
pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que funda uma ontologia de caráter
especulativo, como quer Hegel.
Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa
de compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas
divisões. Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano de
ser.
A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva
(que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva
(Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores dificuldades,
já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a tematização do ser
(objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente exterior à forma do
pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do conceito (objeto da
lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento que animou as
categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos elementos da lógica
tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de inferência). Ou seja, a
passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em larga medida, o
movimento através do qual a substância (o ser) é apreendida como sujeito (o conceito),
já que esta dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto.
No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a lógica
objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência). Segundo, a
lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da lógica
tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente “objetividade”,
onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da natureza, como o
“mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos biológicos (ou seja,
os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos nos campos da física,
da química e da biologia). Como se não bastasse, a última subdivisão, intitulada “A
idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do verdadeiro (objeto da teoria
do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando, curiosamente,
desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode se explicar se
levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com que a Idéia
unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta). De qualquer
forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à exterioridade. Note-
se que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da objetividade. Ao
contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da distinção sujeito e objeto.
Por isto, ela deve aparecer como superação destas perspectivas particulares.
38 Idem, p. 76
39 Idem, p. 77
Ser, puro ser: sem nenhuma determinação outra. Na sua imediatez
indeterminada, ele é apenas igual a si mesmo e não é desigual em relação a outra
coisa; ele não tem diversidade alguma no interior de si nem fora. Qualquer
determinação ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes, ou através
do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe permitiria manter-se
em sua pureza. Ele é pura indeterminidade e vazio (Leere). Não há nada a intuir
nele, se da intuição poderíamos aqui dizer; ou ele é apenas este próprio intuir,
puro e vazio (...) O ser, o imediato indeterminado é, na verdade, nada, não mais
nem menos que nada40.
Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes
de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira
manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser
indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de
indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o ser:
“faz da sua própria indeterminação sua qualidade”41.
Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como
começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo,
isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e
incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se
determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta auto-
referência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque
Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como
diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando é
posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à existência.
O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve necessariamente ser o
Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido de uma situação,
abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como pura abstração:
Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por
acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado,
nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda
predicação, advém um Ens realissimum.
Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o
pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade
simples consigo mesmo, vazio perfeito (vollkommene)”, Hegel admite que ele pode
existir em nossa intuição ou pensamento. O que não deixa de nos remeter à noção
kantiana de ens imaginarium, uma intuição vazia sem objeto que Kant define nos
Neste sentido, o devir (Werden) como resultado da posição da unidade entre ser
e nada deve ser medido em todas as suas conseqüências. O pequeno parágrafo sobre o
devir é, sem dúvida, um dos mais decisivos de todo o livro. Por isto, ele deve ser citado
na íntegra:
O puro ser e o puro nada são pois o mesmo. O verdadeiro não é nem o ser nem
o nada, mas que o ser passou no nada (übergegangen ist) e que o nada passou
no ser – não que ele passa. No entanto, ao mesmo tempo, a verdade não é a
Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que designam
o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo. Trata-se de
dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um movimento. No entanto,
trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja, movimento que ocorre
imediatamente a partir do momento em que um termo é posto, já que não é possível ao
ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que Hegel chama de
Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito de ser não tem
realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade. No entanto, a
passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta passagem não é
alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da insuficiência de sua
significação. A significação do ser demonstra sua inanidade quando é posta.
Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo,
interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez,
isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse sua
relação para com o outro”46. Fica claro como a idéia de posição implica determinar,
isto no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e nada são
contrários quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até porque: “não
há nada no céu e na terra que não contenham em si ser e nada”47. Este é um ponto
fundamental para todo penasamento dialético: a passagem à existência, a posição,
sempre é um acréscimo em relação à determinação categorial, e não sua mera repetição,
como se da determinação à existência não houvesse processo. Lembrem a este respeito
da afirmação kantiana, segundo a qual cem táleres reais não contém mais do que já está
presente em cem táleres possíveis48.
Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode
ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique porque
Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma de um
julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa: “Sendo
o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do predicado é
momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento”49. Isto a ponto de Hegel
afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através de uma série de
duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”) que apresentam uma
antinomia.
Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir
de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento. Pois
o devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as
45 HEGEL, idem, p. 83
46 Idem, Enciclopédia, par. 88
47 HEGEL, ibidem, p. 86
48 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de ver FAUSTO, Ruy;
50 Idem, p. 113.
51 Idem
52 DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145
53 HEGEL, idem, p. 111
do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer
passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria definição
do ser”54. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem ser tratados
como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é vazio de toda
determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é vazio de ser. Em
uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o não-ser não é”55. No
entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade consigo mesmo o objeto
da crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa no conceito de ser é
simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar sua identidade ele
passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a passagem do ser ao nada é
simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência de movimento.
69 Idem, p. 200
70 Idem, p. 200
71 Idem, p. 205
72 “A experiência é a apresentação do sujeito absoluto se desdobrando na representação e assim
Mas o advento de tal corpo foi, na maioria dos casos, dependente da circulação
de um afeto que ganhou dimensões políticas decisivas, a saber, a esperança. É a
esperança que sustentará tal corpo social por vir, que produzirá sua ossatura. Pois
esperança é, acima de tudo, uma forma de ser afetado pelo tempo, afeto indissociável
do que poderíamos chamar de “temporalidade da expectativa”75. Ela é um modo de
síntese do tempo que partilha com outro afeto, a saber, o medo, uma relação com o que
teóricos da história chamarão de “horizonte de expectativa”76.
Vem de Spinoza essa compreensão de medo e esperança como relações ao
tempo de valência invertida: “a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de
74 Ver, a este propósito as relações entre criação contínua e tempo descontínuo em WAHL, Jean;
Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920.
75 A este respeito, ver BODEI, Remo; Geometria delle passioni: paura, speranza, felicitá, op. cit., pp.
72-82
76 KOSELLECK, idem, pp. 306-327
uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida. O medo é uma
tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização
temos alguma dúvida”77. Pois se medo é a expectativa de um dano futuro que nos coloca
em risco, esperança é expectativa da iminência de um acontecimento que nos colocaria
no tempo providencial da imanência enfim desprovida de antagonismos insuperáveis.
Imanência própria à expectativa da concórdia da multiplicidade no seio da comunidade.
No entanto, se o medo é fonte da servidão política por ser: “o que origina, conserva e
alimenta a superstição”78 da qual se serve o poder de estado para impedir o exercício
do desejo e da potência de cada um como direito natural, a esperança mostrará seus
limites por perpetuar um “fantasma encarnado da imaginação impotente”79 aprisionada
nas cadeias da espera. Neste sentido, ganha importância uma afirmação como:
Supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização
de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto,
desta maneira, entristece-se. Como consequência, enquanto está apegado à
esperança, tem medo de que a coisa não se realize. Quem, contrariamente, tem
medo, isto é, quem tem dúvida sobre a realização de uma coisa que odeia,
também imagina algo que exclui a existência dessa coisa e, portanto, alegra-se.
E, como consequência, dessa maneira, tem esperança de que essa coisa não se
realize80.
90 Idem, p. 141
91 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
92 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 389
93 SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit., p. 312
94 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Lisboa: Calouste Gulbenkian, B 291/ A461
segundo o anterior-posterior” 95 . É esta estabilidade que se expressa em afirmações
como: “Toda mudança só é possível por uma ação contínua da causalidade”96.
De certa forma, podemos dizer que é isto o que acontece em Spinoza, para quem
todas as relações, temporais ou não, devem ser pensadas sob a estabilidade estrutural
da causalidade e seu desvelamento retroativo imanente da univocidade da substância
ou, ainda, da conveniência (convenientiam) entre ideia e ideado97. Isto implica afirmar
que o modo da causalidade com suas ordens e sua constituição de relações necessárias
não mudará com o tempo, não será afetado por ele, não perderá sua centralidade na
determinação das relações e dos argumentos que a razão reconhece como legítimos.
Muito diferente seria se as coisas singulares modificassem em continuidade a
totalidade, operando mutações qualitativas na forma do tempo. Neste caso, como
veremos mais a frente, não teríamos apenas tempo formal, mas um regime muito
específico de tempo concreto. Por isto, é correto dizer que a imanência própria ao
governo da multitude é um devir sem tempo. É este devir sem tempo que aparece como
contraposição ao tempo linear do medo e da esperança. A sua maneira, este devir sem
tempo trará ainda outra consequência política importante por fundamentar o horizonte
de concórdia prometido pela paz social.
Neste ponto, podemos medir a distância que separa Spinoza e Hegel.
A crítica da duração
No tempo, costuma-se dizer, tudo nasce e perece. Quando dele é abstraído tudo,
a saber, o que preenche o tempo, assim como o que preenche o espaço, então
resta o tempo vazio, como resta o espaço vazio, ou seja, estas abstrações da
exterioridade estão postas e representadas como se fossem algo para si. Mas no
tempo não nasce e perece tudo, antes o próprio tempo é o devir, o nascer e o
perecer, a abstração existente, Cronos que tudo engendra e destrói seus filhos98.
É claro aqui como Hegel recusa a noção de que haveria uma pura forma do
tempo, assim como uma pura forma do espaço, estabelecidas como condição geral de
possibilidade para o movimento e a mudança. Tomadas como formas puras da intuição,
tempo e espaço são, segundo Hegel, abstrações da exterioridade ou, se quisermos pecar
por certo anacronismo, são reificações. Não pode haver dedução transcendental das
categorias de tempo e espaço, o que não é de se estranhar para uma filosofia na qual:
“toda constituição transcendental é uma instituição social”99. O que aparentemente é
confirmado quando Hegel afirma que a temporalidade (Zeitliche) é uma determinação
objetiva das coisas, e não uma determinação subjetiva do sujeito que as apreende. “O
processo das próprias coisas efetivas produz o tempo”100 (macht also der Zeit), isto não
apenas no sentido da mudança que percebemos nas coisas, sua geração e destruição,
nos revelar a existência do tempo, um topos clássico que insiste como, se as coisas não
mudassem nem se movessem, não seria para nós possível perceber o tempo que passa.
Se devemos afirmar que o processo das próprias coisas efetivas produz o tempo é por
tal processo concreto fazer o tempo nascer e perecer, modificar seu modo de passagem,
paralisá-lo ou acelerá-lo, tirá-lo, por exemplo, do regime da sucessão para colocá-lo no
101 COMAY, Rebecca; Mourning sickness: Hegel and the french revolution, Stanford University
Press, 2010, p. 5
102 HEGEL, G.W.F.; Phänomenologie des Geistes, Hambrugo: Felix Meiner, 1988, p. 324
103 HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
104 Idem, par. 259
105 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
da história. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais submetido à
simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento. “Progresso” não diz
respeito, inicialmente, a uma destinação, mas a uma certa forma de pensar a origem.
Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, aparece marcada pela
impossibilidade de permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que damos à
consciência da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade silenciosa. Por isto,
a verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada por um espaço pleno
de ruínas, por uma mistura entre tempo e fogo que tudo consome.
O ato de desaparecer é assim compreendido como a conseqüência inicial da
história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo movimento
histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua potência de
irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se deixam animar
pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as determinações
particulares. Notemos como este desaparecimento não é a afirmação sem falhas da
necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na verdade, há uma
pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta pulsação contínua
faz parte, de certa forma, do próprio telos da história. Assim, ela realiza sua finalidade
quando este movimento ganha perenidade, quando ele não é mais vivenciado como
perda irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente, nos abre para uma nova
forma de presença, liberada do paradigma da presença das coisas no espaço. O que
explica porque Hegel dirá: “ Deve-se inicialmente descartar o preconceito segundo o
qual a duração seria mais valiosa do que a desaparição” . Só as coisas que tem a força
de desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que só constrói destruindo
continuamente suas determinações finitas.
Isto fica claro se fizermos uma leitura atenta do capítulo dedicado ao Espírito
na Fenomenologia do Espírito. Lá vemos como a história do Espírito é um peculiar
movimento de explicitação das rupturas e insuficiências. Não por acaso, o Espírito
hegeliano se manifesta através de figuras como Antígona (com sua exposição da
desagregação da substância normativa da polis), o sobrinho de Rameau (com sua
exposição da desagregação da substância normativa do ancien régime), o jacobinismo
(com sua afirmação de uma liberdade meramente negativa) e a bela alma (com sua
exposição trágica dos limites da moralidade). Se elas desempenham papéis centrais na
narrativa da história do Espírito é porque tal narrativa é fascinada pelos momentos no
quais o próprio ato de narrar depara-se com sua impossibilidade, depara-se com a
desagregação da língua, com a violência seca de uma morte indiferente e com o impasse
sobre a norma. Neste sentido, vale a compreensão de Gérard Lebrun:
A temporalidade concreta
Glorificar o existente
Mas voltemos a esta força do Espírito de “desfazer o acontecido” pois ela pode
nos fornecer mais orientações sobre o que está em jogo no conceito de presente
absoluto. Muitas vezes pareceu, com tal força, estarmos diante da defesa de uma teoria
do fato consumado que transfigura as violências do passado em necessidades no
caminho de realização da universalidade normativa de um Espírito que conta a história
a partir da perspectiva de quem está a: “deificar aquilo que é” 116 . A confiança no
Espírito seria a senha para um certo quietismo em relação ao presente. Melhor seria
definir o espírito do mundo: “objeto digno de definição, como catástrofe
permanente”117, ou seja, consciência desperta do que foi necessário perder, e do que
ainda é necessário, no interior do processo histórico de racionalização social. Pois pode
parecer que uma filosofia a procura de explicar como os “homens históricos”
[geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial”
[welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos
apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração,
permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des
weltgeistes] só poderia nos levar a alguma forma de justificação do curso do mundo,
como temia Adorno em sua Dialética negativa, repetindo uma crítica já feita por
Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva 118 e por Marx quando acusa
sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da história. Todavia este Deus se tornou
Hegel de “glorificar o existente”119. Pois sendo a vontade do Espírito do mundo aquilo
que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da
impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a
universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas
da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu inicialmente a se curvar e a inclinar
a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por último, dizendo ‘sim’ a todo poder”120.
Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características
fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua força
de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que pareciam
petrificadas, isto através da reabertura do que está em jogo no presente. Sobre este
segundo ponto, lembremos como, quando o Espírito sobe à cena e narra a história, sua
prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham fatos. Primeiro
porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que se passou às
costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só alcança voo
depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem, redescrição, mas
construção performativa do que, até então, não existia. Pois um relato não é apenas uma
relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e será percebido daqui para
a frente, por isto as acusações que vem na filosofia hegeliana uma forma de
“passadismo” erram completamente de alvo.
A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hösle, para quem o
passadismo de Hegel mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao
passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E, na
medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à filosofia;
ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que devo
fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela
poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na realidade”” 121 .
Nada mais distante da perspectiva que gostaria de defender, pois tal posição pressupõe
que “recordar” equivale a redescobrir fatos que foram arquivados na memória social.
Se é verdade que, para Hegel, filosofia é recordação, vale lembrar que todo ato de
rememoração é uma reinscrição do que ocorreu a partir das pressões do presente122.
Rememorar é ainda agir, e não simplesmente chegar depois que a realidade já perdeu a
sua força. Antes, é mostrar como o passado está em perpétua reconfiguração,
redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro. Neste sentido,
ignorar a força de decisão da descrição do passado é operar com a ficção da história
como um quadro estável “do que realmente ocorreu”, “wie es eigentlich gewesen”,
como dizia Ranke. No entanto, seremos mais fieis a Hegel se afirmarmos que o passado
é o que está perpetuamente ocorrendo, pois ele não é composto de uma sucessão de
instantes que são desconexos entre si. Ele é composto por momentos em retroação.
Fontes, 2012
Podemos compreender melhor esta força performativa da rememoração se
explorarmos a maneira com que a narrativa da história em Hegel se assemelha, em
certos pontos importantes, à elaboração de um trabalho de luto 123 , fato difícil de
negligenciar em alguém que descreve a sequência de experiências da consciência em
direção ao saber absoluto como um “caminho do desespero”. Neste sentido, talvez não
haja momento mais claro do que esta passagem canônica de A razão na história:
Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?124.
123 Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op. cit.; ARANTES,
Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Gérard; L’envers de la dialectique, op. cit..
124 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in
126 Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em
GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo:
Editora 34, 2014
127 DERRIDA, Jacques; Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993, p. 175
128 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit., p. 35
129 DERRIDA, Jacques; idem, p. 72
finais da Fenomenologia do Espírito, dedicados ao saber absoluto, estes que, ao falarem
da história como devir do Espírito, afirmam:
Sim, a história é uma rememoração na qual as formações do Espírito passam como uma
galeria de imagens diante das quais é necessário demorar-se, passar mais de uma vez,
como quem está diante da perlaboração de um luto. Desta forma, o Espírito transfere a
existência à rememoração. No entanto, tal transferência é bastante singular por parecer
inicialmente um esquecimento, por nos fazer adentrar na noite da consciência de si.
Pois o Espírito recomeça como se nada houvesse aprendido, como se houvesse tudo
perdido, desamparado por ter tudo perdido. Mas tal perda total é uma necessidade, pois
ela significa simplesmente que este “novo mundo”, que esta “nova existência” é
resultado da força do Espírito em abrir novos começos com a naturalidade de quem
nada tem mais a carregar nas costas, com a naturalidade de quem cura suas feridas sem
deixar cicatrizes, desfazendo o acontecido. Ao agir como se houvesse esquecido, o
Espírito pode reencontrar as experiências passadas em uma forma mais elevada,
retomá-las de um ponto mais avançado, pois ele perceberá que simplesmente deixou a
profundidade inconsciente das experiências agirem através de seus gestos, deixou seus
espectros habitarem seus gestos. Nunca se perde nada, apenas se termina um mundo
que já não pode mais ser sustentado, que já deu tudo o que podia dar, para que outro
mundo comece, reconfigurando o tempo das experiências passadas em outro campo de
existência, em outro modo de existência. Assim, o Espírito reencontra o destino
produtivo das experiências que o desampararam. Nenhum passadismo, nenhuma
glorificação do existente. Apenas a crença de que nenhum fato poderá nos fazer perder,
de uma vez por todas, a possibilidade de recomeçar. Pois:
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos
homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo
medidas e segundo medidas apagando-se131.
propagação em linha reta encontra uma superfície especular e é por ela relançada para trás.
Temos pois aqui um duplo: primeiro, um imediato, um ente; e segundo, o mesmo enquanto
mediatizado ou posto. Ora, é esse exatamente o caso quando refletimos ou (como também se
costuma dizer) nachdenken [refletir, considerar – colocar diante] sobre um objeto, enquanto aqui
No entanto, mesmo assim ainda não saímos necessariamente de uma perspectiva
idealista clássica. Pois podemos dizer que a reflexão, ao apreender as operações do
próprio pensar, simplesmente põe as condições de possibilidade para que um objeto
seja, para que ele apareça à consciência. Como se a reflexão fosse exatamente aquilo
que nos permite falar do que aparece, eleva-lo à condição de nomeável no interior de
uma linguagem humana, já que a reflexão revelaria a forma do que há a ser pensado
(em uma operação na qual a forma aparece no lugar da noção de essência). É assim
que, por exemplo, podemos interpretar a afirmação canônica de Kant: ‘A reflexão não
tem que ver com os próprios objetos, para deles receber diretamente conceitos; é o
estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a descobrir as condições
subjetivas pela quais podemos chegar a conceitos”142.
No entanto, a proposição de Hegel é mais ousada. Trata-se de dizer: a reflexão,
enquanto movimento próprio da essência, não é apenas a posição das condições
subjetivas para a constituição de tudo o que é determinado e condicionado por um
sujeito. Ela é o movimento do que é absoluto e incondicionado. A ideia de que a
reflexão subjetiva está de um lado e o mundo objetivo de outro parte do pressuposto de
que a constituição da estrutura da reflexão é, de certa forma, anterior ao mundo,
autônoma a ele. Como lembrou bem John McDowell, mais correto seria dizer que
mundo e reflexão, de certa forma, nascem ao mesmo tempo. Não é por outra razão que
a Doutrina da Essência deve caminhar para a tematização do absoluto enquanto
realidade. Mas há aqui uma contradição a respeito da qual Hegel demonstrava-se
cônscio ao menos desde seu Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e
Schelling:
Hegel chega a falar que, para superar tal contradição de só poder pensar o
condicionado ao pôr uma multiplicidade infinita de condições e relações, a reflexão
deve dar para si mesma a lei de seu auto-aniquilamento. Podemos dizer que a Ciência
da Lógica realiza o que já estava posto neste escrito de juventude. Pois, de uma certa
forma, a reflexão, para se pôr como movimento do que é absoluto e infinito, deverá
aniquilar aquilo que serve como fundamento para seus modos de determinação. É
exatamente isto que veremos neste capítulo fundamental dedicado às determinações de
reflexão, a saber, a identidade, a diferença e a contradição. Pois modificado o sentido
do que compreendemos por identidade, diferença e contradição são as bases gerais das
operações de reflexão, tal como ela é compreendida pelo entendimento, que se
não é mesmo o objeto que conta em sua imediatez. Mas queremos conhecê-lo enquanto
mediatizado” (HEGEL, Enciclopédia, par. 112)
142 KANT, Crítica da razão pura B 316
143 HEGEL, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 41
encontrarão aniquiladas. Neste momento, aquilo que Hegel compreende por reflexão
especulativa poderá se impor, o que permitirá a apreensão do absoluto sem a
necessidade do recurso a alguma forma de intuição imediata ou de posição do pré-
reflexivo.
Para o entendimento, esta reflexão especulativa própria à essência equivale à
pura negatividade, pois: “a determinação da essência tem um outro caráter do que as
determinidades do ser”144. Ela é pura negatividade por anular incessantemente todas as
determinidades próprias ao ser. Mas esta anulação não é simplesmente a abstração de
todo predicado do ser. Antes, ela é o que Hegel chama de movimento reflexivo no
interior do próprio ser. É pensando nesta força de corrosão própria à essência que Hegel
poderá falar da “natureza negativa da essência”145. Proposição fundamental, pois se a
essência tem uma natureza negativa (o que implica dizer que ela não está simplesmente
em uma situação na qual ela aparece como negativa, mas que ela é ‘negatividade em
si” [Negativität an sich]146), então será um movimento de confrontação incessante do
que aparece ao entendimento como determinado. O que nos explica uma afirmação
como:
Por isto, Hegel dirá que: “a identidade é também em si mesma absoluta não-
identidade”151. Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério as crítica que
Hegel apresenta na nota 2 “Primeira lei originária do pensamento, proposição da
identidade”. Aqui, Hegel apresenta três críticas distintas, porém complementares, que
visam mostrar como a proposição A=A é uma tautologia vazia, desprovida de conteúdo
e sem valor algum para o conhecer. Os três argumentos usados por Hegel são:
toda enunciação da identidade imediata é uma contradição performativa;
a experiência não fornece o fundamento da identidade
não é possível definir a significação de A=A a partir da pretensa analiticidade
da proposição.
Primeiro, Hegel procura mostrar como sempre enunciamos a clivagem ao
tentar pôr a igualdade imediata a si. Pois sendo a identidade imediata, a exclusão da
essencialidade da diferença é um processo constitutivo de sua própria determinação.
Mas, ao afirmar que a identidade e a diferença são diferentes: “Eles [a consciência
comum] não vêem que já dizem que a identidade é algo de diverso; pois dizem que a
identidade é diversa em relação à diversidade” (HEGEL, 1986b, p. 41). Com isto,
produz-se uma passagem da negação exterior à negação internalizada resultante do
reconhecimento da posição da diferença ser momento essencial e interno ao processo
de posição da identidade. Daí porque Hegel pode dizer que a verdade é apenas a
unidade da identidade e da diversidade.
Notemos ainda esta estratégia, tipicamente hegeliana, de medir a verdade de
proposições lógicas fazendo apelo à pragmática da fala. Ao falarmos sobre a
identidade, sempre somos obrigados a pressupor a diferença como dado primeiro e
definidor. Pôr a identidade exige pressupor a diferença. Ou seja, invertermos a ordem
lógica e colocamos o reconhecimento da diferença como lei originária do pensar, já
que “a identidade de uma entidade consiste em um conjunto de seus traços diferenciais”
(ZIZEK, 1999, p. 135). Ela é momento de uma separação em relação a um processo no
qual a diversidade desempenha papel fundante.
Por outro lado, Hegel afirma que a identidade não é um dado de alguma forma
derivado de experiência imediatamente acessível à consciência. Não há um
componente factual orientando o uso de enunciados do tipo A=A. Na verdade, a
experiência fornece apenas a relação da identidade do Um com a multiplicidade da
diversidade. Daí porque: “o concreto e a aplicação é justamente a relação do idêntico
simples a algo de variado distinto dele”152. Ou seja, a aplicação expõe o esforço do
pensar em unificar o que não tem identidade imediata em si mesmo. Por isto que:
“expresso como proposição, o concreto seria inicialmente uma proposição
sintética” 153 . A posição da proposição de identidade já é, segundo Hegel, uma
representações, nem fala segundo essa lei [da identidade]; e nenhuma existência, seja de que
espécie for, existe segundo ela. O falar conforme esssa suposta lei da verdade (um planeta é – um
planeta; o magnetismo é – o magnetismo; o espírito é – um espírito) passa, com razão, por uma
tolice: essa sim é uma experiência universal” (HEGEL, Enciclopédia, par. 115
153 HEGEL, WL II, p. 43
modificação da experiência, já que esta nos mostra, na verdade, a unidade da identidade
com a diversidade.
Mas podemos dizer que A=A, enquanto proposição analítica seria independente
da experiência, o que sabemos, ao menos desde Quine, que não é exatamente o caso,
já que sabemos que um dos dogmas fundamentais do empirismo é: “a crença em certa
divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em significados
independemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas em fatos”154.
Por isto, Hegel deve lembrar que mesmo a forma proposicional da proposição já diz
mais do que afirma. Este é uma maneira astuta de dizer que a analiticidade de
proposições do tipo A=A são um problema. Para chegar a tal compreensão especulativa
da proposição, Hegel compreende toda proposição a partir de sua forma geral (S é P)
que coloca as diferenças categoriais quantitativas entre a particularidade do sujeito e
as predicações de universais e rompe, assim, com a sinonímia pressuposta entre sujeito
e predicado155.
Quando digo, por exemplo “uma rosa é uma rosa” vê-se que a expectativa
aberta pela enunciação “uma rosa é ...”, na qual o sujeito aparece como forma vazia e
ainda não determinada, como “algo em geral”, como “som privado de sentido”156, é
invertida ao final da proposição. A rosa que aparece na posição de sujeito é um caso
particular, uma determinação empírica. Rosa que, em si mesmo, é apenas negação –
acontecimento contingente desprovido de sentido – enquanto que a rosa presente no
predicado aparece inicialmente como “representação universal” 157 abstrata que
forneceria a significação (Bedeutung) do sujeito. Podemos mesmo afirmar que ela é
extensão de um conjunto ainda vazio. Para Hegel, ao enunciar “uma rosa é uma rosa”,
dizemos que o conjunto é idêntico a um de seus elementos, dizemos que o singular é
o universal. Esta é a interpretação que podemos dar à afirmação: “Já a fórmula da
proposição está em contradição com ela [a proposição A=A], pois uma proposição
promete também uma diferença entre sujeito e predicado; ora, esta não fornece o que
sua própria forma exige”158. Ou seja, a posição da identidade produz necessariamente
uma contradição. O que nos explica por que Hegel afirma: “Se alguém abre a boca e
promete indicar o que é Deus, a saber Deus é – Deus, a expectativa encontra-se
enganada pois ela esperava uma determinação diferente”159.
Hegel teria compreendido a existência, na forma geral da proposição, de uma
cisão estrutural entre o regime geral de apresentação e a designação nominal do
acontecimento particular. Pois o primeiro momento da afirmação “o singular é o
universal” põe a inessencialidade do singular e a realidade do universal. Uma rosa será
sempre uma rosa. É o predicado que põe o sujeito e, a partir do momento em que o
sujeito (ainda indeterminado) é posto, ele se anula: o que era predicado advém sujeito.
Devido à forma geral da proposição, o ato de enunciação da identidade produz sempre
a posição de uma alienação. Pois: “Se dizemos também: ‘o efetivamente real é o
Tais colocações permitem a Hegel dizer que a proposição de identidade contém mais
do que ela visa, pois contém sempre a enunciação da diferença como seu pressuposto.
Hegel afirma que a diferença conhece dois momentos distintos: a diversidade
(Verschiedenheit) e a oposição.
A diversidade é a diferença pensada a partir da reflexão exterior. Por isto: “os
diversos estão em relação um com o outro não como identidade e diferença, mas apenas
como diversos em geral que são indiferentes um em relação a outro e em relação à sua
determinidade”. De uma certa forma, a diversidade é um gênero de retorno à
imediaticidade, um momento de recaída no empirismo de quem afirma que “Todas as
coisas são diversas” ou que “Não existem duas coisas que sejam iguais uma à outra”.
Tais proposições não deixam de se referir ao princípio leibniziano de identidade dos
indiscerníveis (se X e Y tem as mesmas propriedades, então eles são idênticos).
Hoje diríamos que os termos sob a noção de diversidade estão dispostos como
um multiplicidade pura, ou seja, estrutura cujos elementos não tem função subordinada,
mas são estruturados por relações recíprocas que não podem ser compreendidas como
relações de oposição. Hegel compreende esta determinação da diferença como pura
multiplicidade uma determinação deficiente. Sua deficiência vem do fato de Hegel
insistir que toda posição da diversidade, para ser minimamente estruturada, exige a ação
de comparação entre termos. Tal comparação pede a presença de uma espécie de
“terceiro termo” comum que permita a estruturação de relações de igualdade e
desigualdade. Este terceiro termo, que permite a comparação mas está para além dos
elementos comparados, acaba por nos obrigar a passarmos da diversidade à oposição.
Cada um é ele mesmo e seu outro, o que faz com que cada um tenha sua
determinidade em si mesmo, e não em um outro. Cada um relaciona-se a si
mesmo como se relacionando a um outro. Isto tem dois sentidos: cada um está
em relação com seu não-ser como suprimindo este outro, assim seu ser-outro é
apenas um momento interno ao si. Mas, por outro lado, o ser-posto se
transformou em um ser, um subsistir indiferente (...) consequentemente, cada
um é apenas na medida em que seu não-ser é.
uma proposição como ”Não há duas coisas que sejam completamente idênticas’ já pressupõe um
dispositivo de contagem que organiza a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade
numérica.
um certo ponto e um esforço semelhante deste corpo para se mover em direção oposta
não se contradizem, sendo ao mesmo tempo possíveis como predicados de um mesmo
corpo” (KANT, 2005, p. 58). Tal oposição é descrita em linguagem matemática através
dos signos + e - (+A e -A) a fim de mostrar como uma predicação pode destruir outra
predicação, chegando a uma conseqüência cujo valor é zero, mas sem que seja
necessário admitir um conceito que se contradiz em si mesmo (nihil negativum). Isto
permitirá a Kant sublinhar que o conflito resultante de um princípio real que destrói o
efeito de outro princípio no nível da intuição não pressupõe uma contradição no nível
das condições transcendentais de constituição do objeto do conhecimento. Este conflito
real, ou oposição real, é a boa negação; “que permite ao entendimento constituir objetos
" (DAVID-MÈNARD, 1990, p. 41), já que, contrariamente à contradição lógica
(pensada como objeto vazio sem conceito), esta negação deixa fora de seu julgamento
a questão da existência do sujeito do julgamento.
Mas se Kant afirma que os predicados opostos são contrários sem serem
contraditórios, é porque eles se misturam como forças positivas determinadas no
resultado de uma realidade final. Os opostos reais são, para Kant, propriedade
igualmente positivas, eles correspondem a referências objetivas determinadas. Não há
realidade ontológica do negativo (mesmo se há um poder negativo do transcendental
na determinação do númeno como conceito vazio em relação à intuição de objetos
sensíveis). A aversão e a dor são tão positivas (no sentido de se referirem a objetos
positivos) quanto o prazer. Elas têm uma subsistência positiva como objetos sensíveis
que não é redutível à relação de oposição.
Hegel está atento à maneira com que a oposição real não modifica a noção de
determinação fixa opositiva. Mesmo reconhecendo a existência de uma solidariedade
entre contrários no processo de definição do sentido dos opostos (ao afirmar que : “a
morte é um nascimento negativo”, Kant reconhece que o sentido da morte depende da
determinação do sentido do nascimento), a noção de oposição nos impede de perguntar
como a identidade dos objetos modifica-se quando o pensamento leva em conta
relações de oposição165. Como nos diz Lebrun: “Que cada um dos termos só possa ter
sentido ao ligar-se ao seu oposto, isto o Entendimento concede, esta situação é
figurável. Mas que cada um advenha o que significa o outro, aqui começa o não-
figurável” (LEBRUN, 1971, p. 292). Daí porque: “Mesmo admitindo, contra os
clássicos que o positivo pode se suprimir e que o negativo possui de alguma maneira
um valor de realidade, Kant jamais colocará em questão o axioma: ‘A realidade é algo,
a negação não é nada’. Essa proposição é até mesmo a base do escrito sobre as
grandezas negativas: ela é a condição necessária sem a qual não se poderia discernir a
oposição lógica da oposição real” (LEBRUN, 2002, p. 266).
Neste sentido, podemos dizer que Hegel procurar desdobrar todas as
conseqüências possíveis de um pensamento da relação assentado na centralidade de
negações determinadas. Pois a produção da identidade através da mediação pelo oposto,
tal como vemos na oposição real, é reflexão-no-outro. Um recurso à alteridade que
aparece como constitutivo da determinação da identidade que promete uma interversão
(Umschlagen) da identidade na posição da diferença. Como nos dirá Henrich, o
primeiro passo deste movimento dialético consiste em passar de algo que se distingue
do outro enquanto seu limite para algo que é apenas limite (HENRICH, 1967, p. 112).
Tal passagem advém possível porque Hegel submete a negação funcional-veritativa à
165Ela nos impede de colocar a questão: “como os objetos são redefinidos, reconstituídos pelo fato
de se inscreverem em relações? Quais transformações a noção de objeto recebe pelo fato de assim
ser reconstituída pelo pensamento? (LONGUENESSE, 1981, p. 80)
noção de alteridade, seguindo aí uma tradição que remonta ao Sofista, de Platão166:
"Contrariamente à negação funcional-veritativa [fundada na idéia de exclusão simples],
a alteridade é uma relação entre dois termos. Faz-se necessário ao menos dois termos
para que possamos dizer que algo é outro" (HENRICH, 1967, p. 133).
Tal submissão da negação à alteridade nos explica porque a figura maior da
negação em Hegel não é exatamente o nada ou a privação, mas a contradição
Contradição que aparece quando tentamos pensar a identidade em uma gramática
filosófica que submete a negação à alteridade. Nesta gramática, só há identidade quando
uma relação reflexiva entre dois termos pode ser compreendida como relação simples
e auto-referencial, ou seja, só há identidade lá onde há reconhecimento reflexivo da
contradição.
166Como vemos na afirmação: “Quando enunciamos o não-ser, não enunciamos algo contrário ao
ser, mas apenas algo de outro” (PLATÃO, Sofista, 257b)
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 5
A processualidade da essência e o problema da contradição em Hegel
(continuação: Deleuze, leitor de Hegel)
Sobre a contradição
174ZIZEK, Slavoj; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, São Paulo:
Boitempo, 2013, p. 26
anteriormente era posto como impossível já é possível. Daí este movimento peculiar de
afirmação que a reconciliação se realiza quando compreendemos que ela já ocorreu. Ou
seja, a reconciliação não diz respeito à antecipação formal de um destino, mas ao
redimencionamente efetivo da ação.
Ter a contradição em si
Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na
medida em que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se seu
contrário". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, também são termos refletidos
em si, algo fora da relação [itálico meu]; mas apenas lugares em geral (HEGEL,
1986b, p. 71).
A crítica deleuzeana
175 É neste sentido que compreendemos a afirmação de Longuenesse: “o que resta, segundo Hegel,
uma descoberta inestimável, é a tensão entre a unidade do Eu penso e a multiplicidade do não
pensado, ou não completamente unificado pelo pensamento. Todo objeto (pensado) porta em si
tal tensão, é por isto que todo objeto porta em si a contradição" (LONGUENESSE, 1981, p. 51). Uma
contradição: « entre sua inscrição em uma unidade racional e sua irredutibilidade à unidade”
(ibidem, p. 52).
176 HEGEL, WL II, p. 79
177 HEGEL, WL II, p. 80
Uma das crítica mais contundente a esta forma de pensar a diferença a partir da
contradição vem de Deleuze. Deleuze tende a compreender que a posição de Hegel não
é essencialmente diferente da maneira que Aristóteles define a diferença e a
determinação. Esta articulação é fundamental para Deleuze poder afirmar que o que
temos em Hegel ainda é uma forma de pensamento da representação. Como não há
possibilidade de pensar a diferença no interior da representação, a não ser como
diferença opositiva que se acomoda a um quadro estruturado de representações, esta é
a forma de Deleuze afirmar que a dialética hegeliana é um pensamento da identidade,
incapaz de pensar a produtividade da diferença.
Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles,
consiste em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em relação
ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de um mesmo
sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos percebidos. Estes
quatro princípios serão a base do que compreendemos por representação. Representar
algo é determiná-lo a partir de princípios de oposição, identidade, semelhança e
analogia. No interior deste modo de disposição que funda aquilo que Deleuze chama
de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da diversidade e da alteridade,
aparecendo submetida à oposição, que é elevada à condição de diferença fundamental.
Aristóteles afirma que é diferente aquilo que difere do outro a partir de um
elemento particular, sendo necessário a existência de um elemento idêntico que
construa um campo de equivalência possível. Este elemento comum pode ser o gênero
ou a espécie. Duas coisas são distintas em gênero quando não há matéria comum ou
geração recíproca, como é o caso de coisas de categorias diferentes. Elas são distintas
em espécie quando são idênticas segundo o gênero.
Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade,
contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença
perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero
(“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que
constitui a unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma
maneira que não é simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um
cão, ao mesmo tempo que “animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não
acidental, pois nos distingue em espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero
divide-o, produzindo espécies que tem, entre si, relações de contrariedade (como
“mamíferos pedestres” e “mamíferos alados”). Desta forma, percebemos como a
diferença aparece como especificidade que divide o que permanece comum, a saber, o
gênero. Ela é um operador que permite a conservação da identidade conceitual do
gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado do gênero.
Esta “diferença específica”, ou seja, que determina espécies, é compreendida
por Deleuze como modo de não apresentar um conceito de diferença, mas de submeter
a experiência da diferença às limitações representacionais do conceito, transformando-
a em predicado de uma espécie. Daí porque ele precisa insistir que: ”confunde-se a
determinação de um conceito próprio de diferença com a inscrição da diferença no
conceito em geral”178. Neste sentido, ao falar que procura uma diferença desprovida de
conceito, Deleuze insiste que há uma experiência exterior ao modo de determinação de
predicações conceituais que deve ser recuperada a fim de nos livrarmos de uma imagem
do pensamento que para nos aparece com o peso do senso comum.
178 idem, p. 48
Por outro lado, a relação dos gêneros entre si desconhece um terceiro termo
comum, por isto Aristóteles afirma que os seres de gêneros distintos são
incomunicáveis. Ele dirá então que: “entre uma coisa e as coisas fora de seu gênero,
não há diferença concebível” 179 . O ‘único termo comum possível seria “ser”. No
entanto, Aristóteles afirma que, na dimensão da distinção entre gêneros, há uma
equivocidade radical do ser, isto enquanto as espécies são unívocas em relação ao
gênero.
Levando isto em conta, podemos dizer que a crítica deleuzeana à Hegel pode
ser sintetizada na seguinte frase: “Hegel, assim como Aristóteles, determina a diferença
por oposição dos extremos ou dos contrários” (DELEUZE, 2000, p. 64), o que implica
reduzir a contradição hegeliana a uma forma radicalizada de contrariedade. Se
aceitarmos a leitura de Deleuze poderíamos explicar porque, na Ciência da Lógica, a
diversidade (como diferença exterior e multiplicidade não-estruturada) deve
necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da desigualdade para daí advir
oposição180. Poderíamos ainda compreender tentativas, como a de Robert Brandom, de
definir a negação determinada como a simples reflexão sobre as conseqüências de
assumirmos o caráter estruturante de relações de incompatibilidade material.
Lembremos do que ele afirma: “Hegel aceita o princípio medieval (e spinozista) omni
determinatio est negatio. Mas a mera diferença ainda não é a negação que a
determinidade exige de acordo com esse princípio. Essencialmente, a propriedade
definidora da negação é a exclusividade codificada no princípio de não-contradição: p
exclui-se de não-p; eles são incompatíveis” (BRANDOM, 2002, p. 179). Assim: “o
conceito de incompatibilidade material ou, como Hegel o designa, de ´negação
determinada´ é seu mais fundamental instrumento conceitual” (BRANDOM, 2002, p.
180).
No entanto, tais leituras não são corretas. Hegel não pensa os pólos opostos a
partir de relações de exterioridade, o que impossibilita a tentativa de reduzir a
contradição a uma forma de incompatibilidade material. Deleuze sabe disto, por isto
dirá que, para além do modo “orgânico” de representação marcado pela aplicação
estrita dos quatro princípios anteriormente mencionados, há ainda um modo da
representação tentar englobar o que lhe nega, englobar o “sentimento” da infinitude.
Trata-se daquilo que Deleuze chama de representação “orgiástica” e que conhecemos
simplesmente por dialética em sua matriz hegeliana. Por representação orgiástica,
Deleuze compreende o conceito enquanto operador de internalização do que lhe
aparece inicialmente como diferença exterior. Daí porque a noção de limite se modifica:
“Ela não designa mais os limites da representação finita, mas ao contrário a matriz na
qual a determinação finita não cessa de desaparecer e de nascer, de se absorver e se
desdobrar na representação orgiástica”181.
Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação
consiste em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que
não se conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação
finita (a representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta
incessantemente com o que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como
fundamento dos modos de orientação do pensamento). É isto que Deleuze tem em
por qualquer coisa a que possamos chamar simplesmente o homem. Ciência da experiência da
consciência, ciência das estruturas da fenomenalidade do espírito relacionando-se com ele
mesmo, ela distingue-se rigorosamente da antropologia. Na Enciclopédia, a seção intitulada
Fenomenologia do Espírito vem depois da Antropologia e excede muito explicitamente os limites
desta” (DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, Campinas: Papirus, 1986, p. 156).
186 DELEUZE, Gilles; Différence et répétition, p. 70
fundamento posso garantir e clarificar o critério do verdadeiro e do falso, do correto e
do incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas estruturas
aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre princípios lógicos gerais
de ligação e unidade capazes de constituir objetos da experiência e fundar proposições
de identidade e diferença. Estes princípios de ligação (Verbindung) e unidade são
derivados do Eu como unidade sintética de apercepções, que aparece assim como o
verdadeiro fundamento das determinações. No entanto, a problematização de tais
princípios é o verdadeiro objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um
Witz ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die
Bedeutung das Seinen hat) 187 , ele tem em vista o fato de que ser objeto para a
consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade
que é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de sua
imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas entre
receptividade e espontaneidade. A dialética precisa pois aceder a um fundamento não
mais dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação
dos modos naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de mundo
que orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências188.
O problema do infinito
190 “Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você estabelece entre conceito e
representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de novembro de 1807)
191 DELEUZE, idem, p. 1
192 Isto se admitirmos a leitura de Alain Badiou, para quem: “o problema fundamental de Deleuze
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é
o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes194.
O conceito de sujeito
Na aula de hoje, gostaria de discutir com vocês as características principais do conceito
hegeliano de sujeito. Não foram poucas vezes que a filosofia hegeliana foi
compreendida por seus críticos como uma filosofia que hipostasia o conceito de
consciência, só conseguindo determinar experiências a partir do quadro prévio de
categorias próprias a uma subjetividade constituinte. Neste sentido, a dialética
hegeliana sempre seria uma dialética idealista, isto no sentido que Robert Brandom dá
à “tese idealista”, a saber: “a estrutura e unidade do conceito é a mesma que a estrutura
e unidade do eu” 195 . Mas podemos compreender tal proposição de duas formas.
Primeiro, que o eu projeta sua estrutura e unidade no mundo através dos conceitos por
ele produzidos. Segundo, que o eu descobre em seu interior a estrutura daquilo que o
conceito tenta unificar. De certa forma, no primeiro caso, o objeto aparece como o que
se submete à estrutura representacional da consciência. No segundo, a consciência
descobre, em seu interior, algo da ordem da opacidade própria aos objetos do mundo.
A meu ver, esta segunda tese é mais adequada para pensarmos a dialética hegeliana.
Para mostrar tal tese, devemos compreender como, em Hegel, “sujeito” não é
uma entidade substancial e auto-idêntica capaz de determinar a si mesmo, como
encontramos na tradição da filosofia moderna que vai desde Locke e Descartes. Na
verdade, “sujeito” é o nome de um movimento de reflexão e implicação com o que não
porta imediatamente a forma da identidade. Tal movimento é pensado por Hegel através
do conceito de “negatividade”. Ao cunhar tal termo, Hegel pensava não apenas em uma
negação, ou seja, o sujeito não é apenas aquele que nega a imediaticidade do mundo.
Tratava-se também de insistir em uma atividade negativa, ou ainda, em uma atividade
que parte da negação do mito do dado, do mito das espécies naturais e que sempre será
refratária a tal mito. Negatividade é o nome da atividade que compreende o campo de
determinações socialmente disponível como limitado, como em falta diante das
potencialidades da experiência.
Isto nos obriga a quebrar duas ilusões. A primeira consiste em confundir o
conceito de sujeito com o conceito de indivíduo, ou seja, esta entidade dotada de
inseparabilidade corporal, continuidade identitária e de um sistema pretensamente
consciente de interesses singulares. O sujeito hegeliano não é o indivíduo. Por outro
lado, sujeito não diz respeito a uma consciência mas a uma estrutura de relações entre
consciências que Hegel chama de consciência de si. Esta relação entre consciências é
pensada por Hegel a partir das dinâmicas de “reconhecimento” (Anerkennung).
Reconhecimento é o nome dado por Hegel para descrever o processo através do qual
sujeitos são instituídos como consciências de si. Só existem sujeitos que são
reconhecidos como tal. Gostaria então de discutir o que poderíamos chamar de “teoria
hegeliano reconhecimento”, base para a compreensão do que Hegel entende por sujeito
em sua capacidade judicativa.
Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da
noção de consciência-de-si. No entanto, esquecemos com freqüência como a
consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à reflexividade de
uma subjetividade auto-suficiente que se delimita em relação ao que lhe é exterior. Na
verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito relacional que visa descrever
certos modos de imbricação entre sujeito e outro que têm valor constitutivo para a
experiência do Si mesmo. Por ser a consciência-de-si um conceito relacional, seus
atributos maiores na dimensão prática (como determinação, autonomia, liberdade e
imputabilidade) só podem ser pensados em seu verdadeiro sentido quando
196 HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1996, § 7.
197 idem, § 6
198 HONNETH, Axel ; Lutte pour reconnaissance, Paris: Cerf, 2000, p. 30.
199 HONNETH, Axel; Sofrimento da indeterminação, São Paulo: Esfera Pública, 2007, p. 102
assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas
visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o
demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição de um pensamento
do que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento também
não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por Habermas ao
afirmar:
Ontogêneses e conflitos
200 HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195
modo de relação ao outro, então o conflito que ele instaura tem o peso de um dado
ontológico para o modo de ser da consciência-de-si.
É certo que o desejo enquanto relação negativa para com o objeto exige ser
superado. No entanto, tal superação não implica recuperar alguma forma de interação
recíproca entre sujeitos fortemente individualizados e determinados, muito menos
implica pôr processos de indiferenciação simbiótica pré-pessoais como horizonte de
desenvolvimento de relações sociais. Como gostaria de mostrar, a experiência da
negatividade do desejo será, de uma certa maneira, conservada como base para a
reconstrução dos modos de relação à si e ao outro.
Se voltarmos ao texto da Fenomenologia, veremos que o desejo aparece pela
primeira vez em um contexto esclarecedor. Trata-se de uma discussão a respeito das
condições para a realização da unidade entre consciência-de-si e consciência de objeto.
Ao lembrar que a noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si
nenhum ser” (já que é apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da
consciência-de-si consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a
essencialidade está sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel
afirma: “Essa unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que
significa: a consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”201.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em geral”,
ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido geral,
como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos, só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação.
A princípio, uma afirmação desta natureza parece algo totalmente temerário.
Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que
submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou estaria ele
insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e Freud, que
a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e legítimo)
através dos interesses postos na realização de fins práticos, interesses que nos levam a
recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin:
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em alguma
forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade à
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser que
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um ser,
mas uma atividade absoluta203.
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é uma
contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas uma
atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si mesma
por objeto e, neste mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência da falta
é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente
(Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação
(Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito
como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo
(Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito
no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, como
sabemos, não é isto o que ocorre:
Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como falta,
não devemos compreender a falta como privação, como carência ou simplesmente
como transcendência, mas como manifestação da infinitude. Esta infinitude pode ser
ruim, se a satisfação do desejo for vista como consumo reiterado de objetos que
“[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida
essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo.
[Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção
e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que ele
é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser
[que tinha perdido]”212.
Esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma
riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das
quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente
presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos
olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante
de nós213.
Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está dizendo que
a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade construída a partir da
internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas de auto-controle.
Não é qualquer submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um senhor
que seja capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto nos explica
porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter um povo
produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem medida
comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista baseado em
“meu” sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste
exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de
esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma
individualidade neste “ego”, já que não há nada de individual no interior de um sistema
de interesses construído, na verdade, a partir de identificações e internalização de
princípios de conduta vindos de uma outra consciência determinada. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar que a
formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo definido como o
que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente. Pois: “ganhar uma
Na aula de hoje, daremos início ao segundo módulo do nosso curso, a saber, este
dedicado a aspectos da dialética em Marx. É importante começar salientando a
dimensão de “aspectos” pois não se trata de procurar dar conta da dialética marxista em
três encontros. Diria que se trata de qualificar articulações importantes da articulação
entre Marx e Hegel, isto a fim de mostrar como a visão que afirma existir rupturas
profundas no conceito de dialética utilizado pelos dois deve ser criticada. Certamente,
vocês conhecem, por exemplo, a leitura de Louis Althusser, para quem entre Marx e
Hegel passava uma espécie de corte epistemológico presente no interior dos próprios
textos de Marx. Pois o jovem Marx estaria, no fundo, ainda preso à temática de uma
filosofia do sujeito herdada da filosofia hegeliana e da fenomenologia da perda da
consciência através de seus processos de exteriorização. Filosofia historicista cuja
temática da alienação da falsa consciência seria o exemplo maior de uma maquinaria
humanista. Marx só se tornaria Marx quando ele abandonasse os problemas centrados
na filosofia do sujeito para operar uma “guinada estruturalista” que nos levaria em
direção a O capital. Um abandono que não seria apenas de temáticas, mas de concepção
de dialética. Althusser recusa radicalmente a ideia exposta pelo próprio Marx: “A
mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele
tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de
movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele, ela se encontra de cabeça para
baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro
místico”. Para ele, não se trata de “desvirar” a dialética hegeliana, mas de simplesmente
abandoná-la. Como ele dirá: “as estruturas fundamentais da dialética hegeliana, tais
como a negação, a negação da negação, a identidade dos contrários, a “superação”, a
transformação da quantidade em qualidade, a contradição etc., possuem em Marx uma
estrutura diferente desta que elas possuem em Hegel”225.
A diferença se daria principalmente por Marx ter pretensamente abandonado a
antropologia filosófica de Hegel. Abandonada tal antropologia, as estruturas
fundamentais da dialética não poderiam mais ser compreendidas como o movimento
através do qual a consciência opera, graças à reflexividade de seus conceitos, a
exteriorização de si e a interiorização de um mundo traz as marcas de sua própria
atividade constitutiva. A crítica não poderia mais ser crítica da alienação da
consciência, mas crítica da economia política com sua descrição dos modos de
produção e suas descontinuidades históricas.
No entanto, aqui poderíamos nos perguntar sobre o quanto tal tema de um
“antropologismo” a guiar a dialética hegeliana é, de fato, defensável. Tal tema, da
forma como ele se apresentou no pensamento francês contemporâneo, é tributário do
estruturalismo e da crença de que o sujeito é, de certa forma, uma determinação
completa da estrutura. Neste sentido, toda compreensão que parta da perspectiva dos
sujeitos agentes será necessariamente ideológica e marcada pelo desconhecimento. O
próprio conceito de sujeito, com suas ilusões de agência a partir das representações de
sua consciência, é o conceito ideológico por excelência por impedir a compreensão das
Comecemos por nos perguntar por que uma certa tradição dialética viu, no
trabalho, algo mais do que a reiteração de processos disciplinares que nos levariam,
necessariamente, a modelos cada vez mais evidentes de reificação social e de
sofrimento psíquico. Por que tal tradição insistiu, para além da estrutura disciplinar da
autonomia, em lembrar que o trabalho deveria também ser compreender como modelo
fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais
intersubjetivamente partilhadas, isto a ponto de elevá-lo (juntamente com o desejo e a
linguagem) a condição de um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender
por “forma de vida”? Tal aposta no trabalho como processo emancipatório de
reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não passava da expressão dos
equívocos de filosofias tão fascinadas pelas dinâmicas de transformação que tendiam a
negligenciar como atividades socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente
como processos de reiteração de sujeições?
Partamos, para isto, da definição do trabalho como modelo de exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a este respeito, da
famosa comparação de Karl Marx, certamente um dos pensadores modernos que
melhor configurou certa via ainda hegemônica na caracterização do trabalho:
Como lembra Habermas, através de afirmações como esta Marx eleva o trabalho
não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma categoria da teoria
do conhecimento, já que a compreensão dos objetos como objetos trabalhados permite
o desvelamento da natureza histórico-social das estruturas normativas da experiência.
Marx partilha com Hegel a noção de que a modalidade de síntese responsável pela
constituição dos objetos da experiência não seria produção de uma subjetividade
transcendental, mas de uma subjetividade empírica às voltas com os modos de
reprodução material da vida227. Tal ampliação da função da categoria de trabalho é
paga, entre outras coisas, com a necessidade de uma distinção ontológica entre
expressão subjetiva e comportamento natural. Habermas (1976, p. 64) sintetiza bem tal
distinção ao afirmar que: “Marx não apreende a natureza sob a categoria de um outro
sujeito, mas apreende o sujeito sob a categoria de uma outra natureza”. Já a definição
de Marx: “toda produção é apropriação (Aneignung) da natureza pelo indivíduo no
interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade” 228 é clara em suas
distinções ontológicas. Apropriar-se é relacionar-se com o que não me é próprio e, por
mais que formas sociais definam modalidades historicamente determinadas de
apropriação com suas consequências específicas, há de se insisitir novamente que a
dinâmica da apropriação pressupõe um modo estrutural de pensar a ação de produção
como dispor do que não me é próprio, como absorção do que se coloca como
inicialmente estranho, redução do estranho ao familiar, que já traz consequências
decisivas para a orientação normativa da crítica social.
Marx descreve em vários momentos tal apropriação como um “metabolismo”
(Stoffwechsel)229 através do qual: “a totalidade da natureza é socialmente mediada e,
inversamente, a sociedade é mediada através da natureza pensada como componente da
realidade total”230. Neste metabolismo, as modificações ocorrem a partir da passagem
da potência ao ato, na qual o trabalhador: “desenvolve as potências que na natureza
jazem latentes” 231 , convertendo “valores de uso apenas possíveis (mögliche)” em
valores de uso reais (wirkliche). Tal processo compreendido como a passagem do
possível ao real é o que deve ser melhor definido. Como vimos, Marx parece
inicialmente dizer que o trabalho distingue-se de toda outra atividade por ser
exteriorização de uma idealidade, mas há de se definir melhor o que devemos entender
por “ideal” neste contexto. Pois se “ideal” significar simplesmente a transformação da
natureza a partir de uma ação dirigida por uma finalidade previamente determinada,
como o texto de Marx parece inicialmente nos fazer acreditar, sua conformação a uma
forma previamente presente como representação ideal, então será difícil não perceber
nesta atividade algo que dificilmente pode ser chamado de “processo”. A passagem do
possível ao real operada pelo trabalho social não passaria de mera exteriorização de
uma finalidade abstrata.
226 MARX, Karl; Das Kapital I, Berlin: Dietz Verlag, 1983, p. 130
227 Ver, a este respeito, Habermas, 1976, p. 60.
228 MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43
229 Por exemplo: “o processo de trabalho é inicialmente um processo entre o homem e a natureza,
um processo no qual, através de sua própria ação, ele media, regula e controla seu metabolismo
com a natureza” (MARX, Karl; Das Kapital I, op.cit., p. 129)
230 SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79
231 MARX, idem, p. 129
Se este fosse o caso, tal modo de determinação do trabalho nos impediria, em
última instância, de distingui-lo do comportamento natural. Todo organismo biológico
tem a capacidade de se orientar e operar escolhas a partir de uma finalidade que serve
de norma de avaliação. O filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso neste
sentido. Sendo a vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença”
(CANGUILHEM, 1983, p. 208), toda individualidade biológica diferencia e escolhe a
partir de normas. Toda individualidade biológica age a partir de um “ideal” com forte
potencial normativo, valorativo e, não devemos esquecer, transformador do meio-
ambiente.
Se quisermos dar alguma realidade à dicotomia afirmada por Marx, talvez
devamos voltar a uma importante afirmação presente nos Manuscritos (2004, p. 84):
“O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela.
O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua
consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade
(Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente”. A diferença entre a
transformação do meio-ambiente devido ao comportamento animal e ao trabalho
humano está no fato da relação de identidade imediata pressuposta pela animalidade,
isto ao menos segundo Marx, perder-se a partir do momento em que o homem “faz de
sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, desta forma, o
homem, segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das determinações
próprias à necessidade natural232. Sua atividade: “não é uma determinidade com a qual
ele coincide imediatamente”.
Assim, se o trabalho é um modelo de expressão subjetiva, não há como pensá-
lo como passagem simples da interioridade pensada à exterioridade constituída. Ele é
expressão do estranhamento da vontade às formas que se colocam como
“representações naturais”, no sentido que Hegel utiliza tal termo na Fenomenologia do
Espírito233. Isto talvez explique porque Marx seja obrigado a definir a ideia trabalhada
como uma lei que “subordina” a vontade. Quem diz “subordinação” diz imposição de
uma norma a algo que lhe seria naturalmente refratário. A vontade humana precisa ser
subordinada à ideia trabalhada porque ela pode, a todo momento, subvertê-la, desertá-
la. Há uma característica negativa da vontade presente na capacidade que tenho de
flertar com a indeterminação através do que Hegel chamou um dia de trabalho do
negativo. Já a abelha de Marx não precisa subordinar sua vontade à lei que determina
sua ação porque ela não tem outra vontade possível, sua vontade está completamente
adequada à lei, sua potência é imediatamente ato. Por isto, podemos dizer que a
existência mesma do trabalho pressupõe a possibilidade humana, possibilidade esta que
é exclusivamente humana, do não-exercício do que se coloca como potência. De certa
forma, a expressão que se manifesta no interior do trabalho será sempre marcada por
esta potência de não passar imediatamente ao ato ou por esta potência de alterar a
determinidade que me seria imediatamente adequada. Maneiras de expressar como a
atividade humana encontra sua essência no excesso dos possíveis (que podem aparecer
inicialmente como impossíveis) em relação aos limites das determinidades postas.
Neste sentido, podemos insistir em uma certa matriz hegeliana deste modo de
pensar a dimensão ontológica do trabalho. Como já foi dito, vem de Hegel as primeiras
232 Daí uma afirmação como: “o animal produz apenas sob o domínio da necessidade física
imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade física, e só produz, primeira e
verdadeiramente.em liberdade para com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto homem
reproduz toda a natureza ” (MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad.
modificada])
233 Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito,
colocações sobre o trabalho como fonte de reconhecimento social. No entanto, é
interessante lembrar como, em vários de seus textos, o trabalho aparece não como a
simples exteriorização de uma ideia, mas como modo de defesa contra a angústia. A
consciência se angustia diante da possibilidade de não ter objetividade alguma, de não
ter forma alguma que seja reconhecida socialmente. Por isto, ela trabalha. Na verdade,
ela trabalha como quem se defende contra uma possibilidade de indeterminação que
está sempre a lhe assombrar. No entanto, os objetos trabalhados sempre terão as marcas
desta sombra. Como Hegel (1992, p. 132) dirá, a respeito do trabalho: “a relação
negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo permanente”. Ou seja, a
impossibilidade do ser humano encontrar um objeto que lhe seja natural, algo que seja
a expressão natural de sua vontade, ganha a forma de um objeto trabalhado. Pois faz
parte de toda defesa absorver algo do medo contra o qual ela foi erigida.
Neste sentido, podemos a partir disto tentar complexificar nossa noção de
trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho alienado aquela modalidade
de atividade laboral na qual não me reconheço no que produzo, já que as decisões que
direcionam a forma da produção foram tomadas por um outro. Desta forma, trabalho
como um outro, como se estivesse animado pelo desejo de um outro. Como dirá o
jovem Marx (2004, p. 83): “Assim como na religião a auto-atividade da fantasia
humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e
sobre ele; isto é como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a
atividade do trabalhador não é sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si
mesmo”. Superar tal perda do que me é próprio seria indissociável da capacidade de
constituir-me como sujeito capaz de apropriar-me da totalidade das relações produtoras
de sentido social com suas mediações, colocando-me assim como a “essência das forças
motrizes” 234 . Constituição ligada, segundo certa tradição marxista, a formação da
consciência de classe proletária, única capaz de realizar a apreensão do “caminho do
processo de desenvolvimento histórico como totalidade”235.
Mas podemos também insistir que não é certo que tal modalidade de apropriação
da totalidade possa no levar à superação da alienação. Pois tal apropriação normalmente
determina a totalidade como uma estrutura fechada na qual todas as relações são
necessárias pois previamente determinadas no interior de um sistema meta-estável que
encontra em um conceito de história teleologicamente orientado seu campo de
desdobramento e nos modos de apreensão reflexiva da consciência seu destino final.
Apropriar-se da totalidade aparece aqui como o ato de reconhecer, na dimensão de tudo
o que aparece, a natureza constituinte de uma subjetividade que abandonou sua crença
no encaminhamento transcendental apenas para encontrar, em operação no interior do
trabalho social com suas relações de interação, a mesma forma de subsunção do diverso
da sensibilidade em representações que animava a atividade teórica.
Melhor seria lembrar como o trabalho alienado é, ao contrário, exatamente
aquele no qual aceitamos um leitura literal da ideia de Marx, segundo a qual: “no final
do processo de trabalho, vemos um resultado que desde o início estava na
representação do trabalhador, presente como ideal”. Pois, neste caso, a imaginação do
trabalhador é apenas a faculdade humana da planificação, do esquematismo prévio, um
pouco como o sujeito kantiano com seu esquematismo transcendental capaz de
determinar previamente a forma geral do que há a ser representado. Este trabalho já é
o trabalho industrial da fábrica, que só produz objetos que são exemplares
intercambiáveis da ideia. Neste trabalho, a expressão tem uma estrutura especular, já
Identidades
236 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que cem táleres
reais não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx:
logique et politique, op cit.
237 MARX, Karl; Das Kapital I, op. cit., p. 294
238 Idem, O Capital – volume I, op. cit., p. 406
239 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
nem ao tempo originário da caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão
reflexiva da crítica, embora possa habitar as temporalidades distintas em uma
simultaneidade temporal de várias camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho
manual, nem ao trabalho intelectual. Todas essas negações demonstram como, por não
passar completamente nos predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva
algo da dimensão negativa da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do
corpo social. Eis um ponto importante: a negatividade na relação a representações
naturais da atividade, apresentada nesta necessidade de estabelecer distinções
ontológicas entre expressão subjetiva e comportamento natural, pede também
manifestação no interior da relação entre o sujeito e seus predicados. Pois o problema
não diz respeito apenas a uma configuração histórico-temporal da atividade humana,
mas refere-se também a uma crítica ontológica da identidade, recurso fundamental a
todo pensamento dialético. Pois tal trabalho no comunismo desconheceria a dominação
disciplinar da identidade.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
presente nos Grundrisse:
241 Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no capitalismo não
são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho sobre o
produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é um objetivo puramente
quantitativo, não existe diferença qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é
puramente quantitativo porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a
objetivação do trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não
produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)
242 A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá: “a mobilidade do trabalhador não realiza o
universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra coisa aqui que uma sucessão de
singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud,
1986, p. 114). De fato, mas poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação uma
universalidade que é ao mesmo tempo singular deve ter. Em que condições a universalidade é
posta no campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se singulariza implica,
neste caso, recusa a determinar o singular como uma determinação completa, sendo que a
incompletude de sua determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto
seu momento próprio. Neste sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta para o
entendimento, mas seu gênero de posição nada tem a ver com as determinações já determinadas
como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento deste tempo através de certa leitura do que
podemos entender por “vida do gênero” em Marx.
indivíduos entram em contato (e essas, por sua vez, são independentes dos
indivíduos e aparecem, apesar de geradas pela sociedade, como condições
naturais, i.e., incontroláveis pelos indivíduos). A determinidade (Bestimmtheit)
que, no primeiro caso, aparece como uma limitação pessoal do indivíduo por
parte do outro, aparece no segundo caso desenvolvida como uma limitação
coisal do indivíduo por relações dele independentes que repousam sobre si
mesmas243.
Gattungsleben
É neste contexto que uma intuição fundamental do jovem Marx pode ser
recuperada, a saber, esta, tão presente no idealismo alemão, que consiste em pensar a
expressão subjetiva na dimensão do trabalho a partir do paradigma da produção
estética. Como se a produção estética pudesse fornecer o horizonte normativo de toda
e qualquer atividade não alienada. Lembremos, neste sentido, de uma afirmação como:
“O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da espécie a qual
ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espécie,
e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem também
forma, por isso, segundo as leis da beleza”244. Esta caracterização do homem como “ser
sem espécie definida”, “ser sem medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade
de produzir segundo a medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma
indiferença genérica em relação à determinação própria à toda espécie na suas relações
de transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao
próprio objeto. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto pode
ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser para-um-outro.
Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo, superar a
alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz à tal condição de ser para-um-
outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma, não tem imagem
de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben) que se objetifica no
objeto trabalhado245.
animalidade, dirá: “De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência, cujo nome deriva de
saber. Onde existe consciência existe também a faculdade para a ciência. A ciência é a consciência
dos gêneros. Na vida, lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para
o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto outras coisas ou
seres de acordo com a natureza essencial deles” (FEUERBACH, Ludwig; A essência do
cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35)
No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do qual o
homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não pode
constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a orientação da
praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino. Mas, e há de se
salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero que se objetifica sem
ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia a
produção própria aos “indivíduos histórico-universais” de A ideologia alemã, não é
apenas a afirmação de que o homem só age de maneira não alienada apenas quando age
conscientemente como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência é seu “ser
social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da vida do
gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da universalidade situada
de minhas condições históricas, assim como da substância comum às relações
intersubjetivas que me constituíram e que se expressa silenciosamente nos objetos que
trabalho. O que nos levaria a uma especularidade muito bem descrita involuntariamente
por Feuerbach ao falar, não por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:
A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no espelho e não
ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da forma humana, a
substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente não seria atualmente
completada com a pergunta: mas o que dizer se insistíssemos que, ao contrário, o
homem é exatamente este ser que se perde ao olhar-se no espelho, que estranha sua
imagem como quem vê algo prestes a se deformar, que não reconhece sua própria
imagem por não ter uma forma essencial que lhe seja própria? O que dizer se aceitarmos
que a experiência do espelho é confrontação com algo do qual não nos apropriamos por
completo, mas que nos atravessa produzindo o sentimento de uma profunda
impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que passa
à existência não pode existir como mais uma espécie, não pode se determinar tal como
se determinam espécies particulares, como se disséssemos algo como: “existem
cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois não estamos diante de uma universalidade
por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só podem vir à existência através
da desarticulação do campo de determinações que permite a organização das diferenças
predicáveis responsáveis pela particularização dos existentes. Neste sentido, estamos
diante de uma universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade não deve ser
compreendida como determinação normativa capaz de definir, por si só, o sentido
daquilo que ela subsume, mas como a força de descentramento da identidade
246FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos
assumir a crítica de Zizek, para quem: “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da
substância a separação da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica
feuerbachiano-marxiana da desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se
como o agente ativo que pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK,
Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p. 101).
autárquica dos particulares. A universalidade é, neste contexto, apenas a generalização
da impossibilidade do particular ser idêntico a si mesmo e a trasnformação desta
impossibilidade em processo de constituição de relações. Aceitando tal conceito de
universalidade, deveremos dizer que o trabalho que expressa a “vida do gênero” deve
ser compreendido como a fonte inesgotável dos possíveis que passa à existência, mas
sem nunca determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma
processualidade sempre aberta de sentido sob a forma de devir contínuo.
Processualidade que as obras de arte expressam em sua forma mais bem acabada.
Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à dimensão estética
da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos dizer que é como portador da
vida do gênero que o sujeito trabalha segundo “as leis da beleza”. Pois as leis da beleza
não são estas que fundam as formas humanas em uma arché, um pouco como a
afirmação de Feuerbach parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria necessariamente
conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e radicalmente defasadas
mesmo diante do estado da crítica na estética romântica tardia à época de Marx. Mais
correto seria afirmar que as leis da beleza são estas que se quebram diante da expressão
do gênio, temática fundamental da estética romântica. Não por acaso, a raiz latina da
palavra alemã Gattung é o latim genus e o grego génos. Genus partilha com genius a
raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio que pode
auxiliar nas consequências desta estética da produção a animar o jovem Marx e, como
gostaria de defender, pressuposta mesmo no Marx de maturidade. Agamben lembra que
os latinos chamavam Genius ao deus ao qual todo homem é confiado sob tutela na hora
do nascimento. Resultado da afinidade etimológica entre gênio e gerar. Por isto, Genius
era, de uma certa forma, a divinização da pessoa, o princípio que rege e exprime toda
sua existência. No entanto, Agamben faz questão de insistir a respeito de um ponto de
grande importância para nós:
Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal em
nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius” é a nossa
vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem. Se ele parece
identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo mais do
que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e menos do que
nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em Genius
equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual,
mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um elemento
impessoal e pré-individual247.
248 A história da sonata romântica é a problematização cada vez maior de seu desenvolvimento é
o melhor exemplo desta forma que flerta a todo momento com sua própria informidade. Para
uma análise do desenvolvimento da forma sonata, ver ROSEN, Charles; Sonata forms, Nova York:
W.W. Norton and Company, 1988.
249 ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
250 MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
251 Cf. POSTONE, idem, p. 151
‘trabalho’”252. Por isto, ao menos dentro de tal perspectiva, não faria sentido falar do
trabalho como categoria de contraposição ao capitalismo, já que ele estaria
organicamente vinculado às estruturas disciplinares de formação da natureza utilitária
das relações próprias à individualidade liberal e seus direitos de propriedade,
expressando apenas amplos processos de reificação.
As discussões a respeito do trabalho e sua alienação raramente estiveram
dissociadas da estrutura de determinação da relação sujeito/objeto sob a forma da
propriedade. Mesmo quando elas estiveram ligadas às exigências de apropriação da
produção e seus produtos pelos produtores imediatos, ela se limitava a uma discussão
sobre os destinos da propriedade 253 . Para além da inegável importância política do
problema da espoliação, há uma discussão sobre a estrutura dos processos de
reconhecimento no interior do trabalho que se faz urgente. Normalmente, pensamos o
trabalho como a produção do que me é próprio, do que é a confirmação especular de
minhas próprias determinações, mesmo que tal próprio não seja o indivíduo isolado,
mas o “ser social”, a “consciência de classe”254. Neste sentido, passar do indivíduo ao
ser social, à consciência de classe não implica, necessariamente, uma mudança
ontológica se a crítica ao trabalho na sociedade capitalista limitar-se à critica à
destinação da propriedade ou sua forma de manifestação. Pois sendo propriedade
privada ou coletiva, cooperação de indivíduos livres ou sujeição de trabalhadores
assalariados, não se muda o fator fundamental: minha atividade deve produzir o que
me confirma no interior da esfera do próprio. Ela me assegura no espaço do familiar.
Assim, proletário ou capitalista, são os afetos do sujeito burguês e suas exigências de
identidade que continuam a nos guiar e a guiar, inclusive, os móbiles da crítica 255.
Como o burguês que dispõe, no interior de sua home, os objetos que contam seus feitos
pessoais, suas pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e lembranças, a consciência
que trabalha parece querer transformar a natureza à sua volta em uma grande home
decorada por objetos que são a expressão de sua própria história. Ela quer o afeto da
segurança do reencontro. Pois a propriedade é, no fundo, um afeto; um afeto de
segurança e amparo. Assim, quando o trabalho aliena-se de seu trabalho, submetendo-
252 Idem, p. 99
253 No fundo, vale neste caso a afirmação precisa de Esposito: “Que se deva apropriar-se do nosso
comum (através do comunismo e do comunitarismo) ou comunicar o nosso próprio (através da
ética comunicativa) o resultado não muda: a comunidade continua duplamente vinculada à
semântica do próprio” (ESPOSITO, Roberto; Communitas: origine e destino della comunitá, Turim:
Einaudi, 1998, p. IX)
254 De nada adianta afirmar, por exemplo: “que a consciência de classe não é a consciência
Na aula de hoje, daremos sequencia a nossa análise sobre aspectos da dialética marxista.
Na aula passada, começamos por uma discussão a respeito da estrutura da categoria
marxista de trabalho. Procurei sugerir uma interpretação no interior da qual as
dinâmicas de exteriorização e alienação referentes à determinações de reflexão na
doutrina hegeliana da essência fornecem o quadro normativo para a reconstrução da
categoria de trabalho. Neste sentido, fiz apelo a temáticas próprias ao jovem Marx
(como a vida do gênero e o topos de uma certa “estética da produção” a animar a crítica
marxista do trabalho alienado) para construir uma forma de produzir a passagem entre
a negatividade hegeliana e a dialética marxista.
Na aula de hoje, procurarei desdobrar tal perspectiva através de uma discussão
sobre o conceito marxista de sujeito. No entanto, há alguma ressalvas a serem feitas
quando falamos de algo que deva ser entendido como “conceito marxista de sujeito”.
Não há em Marx algo como um desenvolvimento sistemático de uma teoria do sujeito,
mas há uma reflexão ampla e consequente sobre a emergência do sujeito no interior da
dimensão prática. Todos vocês conhecem a famosa frase de Marx: “Os filósofos apenas
interpretaram o mundo diferentemente, importa agora transformá-lo”. Podemos dizer
que tal transformação se dá a partir do momento em que a filosofia é capaz de enunciar
a emergência de novas configurações de sujeitos políticos. Diria que esta é a principal
tarefa que Marx se colocou: fornecer uma teoria da emergência do sujeito no interior
da situação presente. A este sujeito emergente, Marx dará um nome: proletariado.
Como gostaria de insistir, proletário não designa apenas uma classe social de
trabalhadores assalariados desprovidos de propriedade. Proletário, em Marx, designa
ao mesmo tempo uma condição própria a toda emergência de sujeitos políticos.
Notemos, neste ponto, uma inovação importante de Marx. Em Hegel,
encontramos a descrição de processos de emergências do sujeito. Tais processos estão
configurados através, por exemplo, de figuras da consciência, como a consciência
infeliz, o senhor e o escravo, o mal e seu perdão, entre tantas outras. Tais figuras não
descrevem apenas situações históricas precisas, mas são a dramatização de uma
multiplicidade de processos que, mesmo temporalmente dispersos, compõem um
simultâneidade sobredeterminada. O que a “consciência infeliz” realmente representa?
A moralidade kantiana, a experiência religiosa pré-reforma protestante, a consciência
cognitiva diante do desvelamento da parcialidade relativista de seus modos de
apreensão ou a sobredeterminação de tais processos temporalmente dispersos em um
pressão de transformação? E a dialética do senhor e do escravo? Uma antropogênese
das relações sociais, a relação entre Napoleão e Toussaint L’Ouverture, a cisão entre
consciência apareceptiva e consciência conceitual, a matriz elementar de alienação do
desejo ou a sobredeterminação de todos esses processos? Por serem sobredeterminadas,
tais figuras descrevem retornos continuamente possíveis, formas do Espírito que
passaram mas que ele guardam como latência.
No entanto, Marx procura algo diferente, ou seja, ele procura pensar uma
emergência em processo de efetivação, pensar a emergência do sujeito em seu
momento presente. Uma emergência que é expressão da urgência de uma nova época
que precisa inicialmente ser nomeada para posteriormente tornar-se possível. Por ser
um sujeito em emergência, o proletariado terá uma realidade espectral. Ele será um
fantasma a assombrar a Europa, como uma virtualidade cuja realização é, ao mesmo
tempo, a passagem a uma forma de vida outra.
Genealogia do proletariado
Para compreender melhor este ponto, há de se insistir que uma situação define a
emergência do proletariado, a saber, sua despossessão. De fato, conforme definido da
Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta
por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou
por não terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão com direito
a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter
filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à condição de
reprodutor da população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma
colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa “pessoa
prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem
ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 256. Até o final do século
XVIII, proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de
“nômade”, de sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade básica
de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos de ações
políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não são ainda o
nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de sofrimento social
intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da pobreza”257. Exemplo
claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É entre os saint-simonistas
que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita pela primeira vez ainda que
em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou, antes,
a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil mais ou
menos oculta na sociedade existente”258. Daí porque Marx falará, a respeito dos saint-
simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses sistemas
compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos elementos
dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado
nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja peculiar”259.
Pois trata-se de levar às últimas consequências o fato de que: “o proletariado romano
viva à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna vive à custa do
proletariado”260.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
256 RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
257 STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
A fim de melhor compreender este ponto, lembremos como, segundo Marx, a revolução
só pode ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e profundamente
despossuídos de identidade. Classe formada por: “indivíduos histórico-universais,
empiricamente universais, em vez de indivíduos locais” 266 . Para que apareçam
indivíduos histórico-universais, faz-se necessário uma certa experiência de
negatividade que, desde Hegel, é condição para a fundamentação da verdadeira
universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre através da despossessão
completa de si descrita por Marx em termos como:
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
268 MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
define como “lumpemproletariado”269. Vale a pena discutir melhor este ponto porque
não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin, transformar o conceito de
lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força revolucionária em Marx.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca como
contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele é a
representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de uma
massa que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador que
lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do
brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele que
dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como farsa
e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação social. Na verdade,
essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria de quem
ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada
fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente comprometida. O que faz
suas ações políticas serem apenas “paródias” de transformações, “comédias”, ou ainda,
“mascaradas”: todos termos usados por Marx no 18 de brumário para falar de
revoluções que são, na verdade, tentativas de estabilização no caos. O
269 Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
270 MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
lumpemproletariado representa uma negatividade que não pode ser integrada no
processo dialético porque ele representa o congelamento da negatividade em uma
espécie de cinismo social. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
produz processo histórico algum.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária. Por
isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de vida
tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar:
156
276 Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE,
Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo:
Martins Fontes, 2012.
condição de assumir sua natureza de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o
advento do proletário como sujeito político é o aparecimento de um: “sujeito como
vazio”277 que não é, em absoluto, privado de determinações práticas. Trata-se de uma
ideia presente também em Jacques Rancière, para quem: “os proletários não são nem
os trabalhadores manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-
contados, que só existe na própria declaração através da qual eles se contam a si
mesmos como os que não são contados”278. Essa manifestação de um vazio em relação
às determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de
si só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da perspectiva
da integralidade de suas personalidades. Pois é assim que Axel Honeeth define o que
Marx compreenderia por “luta de classes”. Na verdade, Honneth serve-se, entre outros,
dos estudos de historiadores como E.P. Thompson e Barrington Moore a fim de afirmar
que a estrutura motivacional das lutas da classe operária baseou-se, principalmente: “na
experiência da violação de exigências localmente transmitidas de honra” 279, já que,
mais importante do que demandas materiais teria sido o sentimento de desrespeito em
relação a formas de vida que clamam por reconhecimento. Por procurar desde há muito
defender tal perspectiva, Honneth pode afirmar que, em Marx:
277 BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260.
278 RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63
279 Idem, p. 131.
280 HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte,
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a cada
um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma que o
povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não são
realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmo a união distorcida
do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é realmente
comum286
É de Reinhart Koselleck a ideia de que até o final do século XVI, a história do ocidente
é uma história: “das expectativas, ou melhor dizendo, de uma contínua expectativa do
final dos tempos; por outro lado, é também a história dos repetidos adiamentos desse
mesmo fim do mundo”288. Koselleck alude à perspectiva milenarista da abreviação do
tempo como sinal da vontade divina de permitir o Juízo final, tão presente nos
reformadores protestantes. Ela produz uma limitação do horizonte da história, pois
projeta para o futuro próximo a suspensão final do tempo.
Neste sentido, uma das maiores produções do século XVIII foi uma certa
aceleração da história, não mais em direção a sua suspensão, mas em direção a sua
realização como abertura de possíveis até então impossíveis. A experiência de um
tempo radicalmente novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem
político poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na
ordem política não implica mais agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos
do passado, mas implica o conhecimento de causas que determinam o presente como
depositário da latência do que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha
que empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência com o
que até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de
encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da
noção de “progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e é dela que, a
partir de agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de uma
reprodução do passado no presente, mas de uma construção que pode inicialmente
parecer começar no passado em direção ao presente.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que poderemos falar de
“a história” como autônoma e autoativa, e não apenas “história de ...”. Esta autonomia
expõe que a história não será mais apenas a narrativa de ações de sujeitos (como a
Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos
e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim
dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a
segunda como farsa. Caussidière como Danton, Luis Blanc como Robespierre,
a Montanha de 1848-51 como a Montanha de 1793-95, o sobrinho como o tio295.
293 LEFEVRE, Georges; La grande peur de 1789, Paris: Armand Colin, 1970
294 HEGEL, G.W.F.: Fenomenologia do Espírito
295 MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25
A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental da dialética
como processualidade referente à necessidade da repetição. A frase Hegel, dita a
respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução política é geralmente
sancionada pelos homens quando ela se repete. Assim, Napoleão sucumbiu duas vezes
e duas vezes foram afastados os Bourbons. Através da repetição, o que apareceu
inicialmente como possível e contingente adquire realidade e permanência”296. Nota-se
claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de repetição
a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente, como
meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter ocorrido ou
não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas uma repetição
feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até então não
aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em necessidade.
Neste sentido, podemos falar em, “revolução” porque tal transformação só é possível à
condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a situação presente.
O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele não obedece ao
regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é inscrevê-lo em
uma nova estrutura simbólica.
Tentemos compreender melhor este ponto. Lembremos, inicialmente, como
Hegel define a contingência: “essa unidade da possibilidade e da efetividade
(Wirklichkeit) é a contingência (Zufälligkeit). O contingente é um efetivo que, ao
mesmo tempo, é determinado apenas como possibilidade, cujo outro ou oposto também
é” (HEGEL, 1986, p. 230). A contingência é unidade da possibilidade e da efetividade
porque, embora existente, ela conserva a marca do que poderia não ser, do que é mera
possibilidade. O outro de si, sua inexistência, seu oposto, era igualmente possível. Daí
porque ela é, aos olhos de Hegel, o espaço de uma contradição maior: “o contingente
não tem fundamento, porque é contingente, e da mesma forma tem um fundamento,
porque como contingente, é”. Sua existência não tem fundamento por estar corroída
pela situação de mero possível, ela é vizinha do não-ser, como dizia Aristóteles, mas
ao mesmo tempo tem alguma forma de fundamento por participar da efetividade posta.
Assumir a existência efetiva da contingência é, para Hegel, confrontar-se como o que
é uma: “interversão posta imediata” (gesetzte unvermittelte Umschlagen), ou seja, com
uma passagem contínua entre opostos que nunca se estabiliza e que por isto abre a
experiência a uma “absoluta inquietude do devir” (absolute Unruhe des Werdens).
Hegel poderia, por exemplo, recusar dar a contingência alguma forma de
dignidade ontológica e professar um necessitarismo absoluto nos moldes daquele que
encontramos em Spinoza. Mas se ele fizesse isto, não haveria mais dialética, pois não
haveria mais produtividade da contradição. Hegel deve admitir que todo acontecimento
se apresenta inicialmente como contingente e tal apresentação não é simplesmente um
“defeito de nosso entendimento”. Ela é a expressão do fato da essência estar em uma
relação de exterioridade consigo mesma, dela se manifestar como uma espécie de
exceção de si. É nesta exceção, nesta excepcionalidade que uma outra ordem começará
por entrar em contradição com a situação normal para depois afirmar-se.
Mas notemos um ponto. A contingência é absoluta inquietude do devir apenas
para uma filosofia, como a hegeliana, que ao recusar distinções ontológicas estritas
entre contingência e necessidade, procura compreender como o necessário se engendra
a partir da efetividade, como a efetividade produz a necessidade, produz um “não poder
ser de outra forma”. O que não significa que a realidade atual deva ser filosoficamente
completamente justificada, como já se criticou Hegel em mais de uma vez. Antes,
296 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 242
significa compreender como fenômenos contingentes, por não encontrarem lugar na
determinação necessária da realidade atual, transfiguram-se em necessidade ao
inaugurar processualidades singulares.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da
Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma
individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação
de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela
República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era
puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o
assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que
retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a
perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral
que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a
forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um
mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base
estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele
complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição histórica
que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação de um
acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições, mas há
de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal distinção no
interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo bem descrito
no capítulo III do 18 de brumário:
298 Idem, p. 27
299 SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64
integralidade. O tempo da Revolução é uma temporalidade outra; é, para usar um
conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro tempo a assombrar o presente
e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver mais presente tal como até agora
houve. Pois as rupturas nos modos de produção que as Revolução proletárias procuram
realizar são modificações que, como bem lembra Balibar, modificam: “a base
econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as formas da consciência social”300.
Neste contexto, “formas da consciência social” significa o modo de determinação dos
sujeitos e de sua experiência espaço-temporal. As configurações de sujeitos vão
juntamente com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que
a revolução social do século XIX pode colher sua poesia”301. A princípio, parece que
Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para travestir
burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real conteúdo dos
processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da fraseologia
histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o conteúdo que
deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é apenas do futuro
que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no passado que possam
dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma revolução faz ressoar
é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem forma e figura, aquilo que
ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que não se inscreveu no
tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin quando afirma: “O
historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da
história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso um fato histórico. Ele
se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem
estar dele separados por milênios” 302 . Ou seja, a revolução é este processo que
reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época determinada do curso
homogêneo da história”303. Tal extração pode, inclusive, paralisar o tempo em uma
configuração saturada de tensões que se cristaliza como uma mônada. Assim, o tempo
pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo com que os múltiplos instantes
na história sejam o mesmo instante em repetição, até que tal pressões de tensões
produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são
intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão em
constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de novo,
para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam repetidamente
ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se produza a situação
que inviabiliza qualquer retorno” 304 . O que significa tais recuos e interrupções?
Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem o sujeito
revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar. Marx, por
exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado abre mão de
revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários, bancas de
câmbio e associações de trabalhadores”305. Como se o proletariado acreditasse que os
problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da conservação
Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o processo
de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a condição para que o
acontecimento contingente possa se transformar em necessidade. Sem tal emergência
acontecimentos se seguirão um após o outro sem que nenhuma sequência de
transformações se inicie. No entanto, tais sujeitos são produzidos por acontecimentos.
Daí porque todo acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do
acontecimento é levada a cabo por outros sujeitos.
Falta a aula 10
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 11
A categoria de sujeito em Adorno
Em vários momentos, deve ter ficado claro como a dialética não é uma ontologia do
ser, mas uma filosofia do sujeito. O conceito de sujeito lhe é absolutamente central e
deveríamos agora nos perguntar a razão para tal centralidade. Esta centralidade fica
evidente na recuperação adorniana da dialética. Podemos mesmo dizer que, do início
até o fim, a filosofia adorniana não será outra coisa que uma complexa teoria do sujeito
que procura desdobrar suas conseqüências nos campos da reflexão sobre a teoria do
conhecimento, a estética, a moral e a teoria social. Ou melhor, uma teoria do sujeito
que só pode se configurar através das passagens da filosofia em direção a campos
empíricos do saber. Não seria difícil mostrar que, neste ponto, Adorno acaba por
mostrar sua profunda solidariedade com a tradição dialética inaugurada por Hegel, já
que a filosofia de Hegel é, a sua forma, também uma longa elaboração a respeito da
reconstrução possível da categoria de sujeito. Uma construção que também exige a
dispersão conceitual do fazer filosófico.
A primeira razão que podemos dar para este insistência na conservação da
categoria de sujeito é a defesa de que “sujeito” é o nome que damos para uma
experiência radical de não-identidade. A defesa do primado da não-identidade pede a
reflexão sobre a estrutura da categoria de sujeito. Desde Hegel, a reflexão cuja atividade
constitui a categoria do sujeito não é definida como auto-reflexão, capacidade de auto-
apreensão de si no interior de uma consciência especular. Ela é um movimento
necessário de alienação e retorno. Esta reflxividade dá ao sujeito sua característica
principal, a saber, sua dinâmica de implicação. Sujeito é o nome que damos para um
movimento de implicação com o que não se deixa pensar sob a forma da identidade.
Notemos ainda que Adorno prefere falar em não-identidade, ao invés de, por exemplo,
diferença, para insistir na natureza do movimento que permite o redimensionamento do
campo da experiência. Tal movimento não parte da eliminação pura e simples das
expectativas de organização próprias ao sujeito, como se fosse possível suspendê-las
por decreto e colocar-se diretamente na perspectiva do infinito. Ele é dialético por levar
tais expectativas a seu ponto de exaustão, a levar a identidade até o ponto no qual ela
confessa sua impossibilidade. Como se o sujeito fosse necessariamente animado por
um movimento de auto-superação de si.
Tal compreensão do sujeito como regime de implicação com uma experiência
de não-identidade explica porque, ao começar sua descrição das categorias de uma
lógica dialética (na segunda parte de Dialética Negativa), Adorno comece não com uma
consideração sobre o ser ou mesmo sobre o sujeito, mas com o “algo” (Etwas) como
“caráter coisal não idêntico ao pensamento”306. Não partir do “algo” é, para Adorno,
aceitar a: “dominação do conceito que gostaria de permanecer constante ante seus
conteúdos”307. No entanto, se quisermos uma dialética materialista, há de se pensar o
processo de alteração do conceito pelo não imediatamente conceitual. “Sujeito” é o
nome que damos para a implicação com tal processo, para a capacidade de ser afetado
pelo pensamento de tal processo. Por isto, ele nos mostra como:
e crítica da identidade In: ZIZEK, Slavoj, Um mapa da ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996,
pp. 51-71. Tomo a liberdade de também remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; Espelhos sem
imagens: mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno, Revista Trans/form/ação, vol. 28 (2),
2005, pp. 21-47
conceitos filosóficos, ao mesmo tempo, fundamentam a crítica social e se configuram
a partir dela, ou seja, são gerados pela situação social mas, ao mesmo tempo, fornecem
a perspectiva que fundamenta a crítica à esta mesma situação? Como o que nasce no
interior de uma situação pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que me permite
criticar esta própria situação? Como se dá esta passagem tensa entre filosofia e teoria
do capitalismo? Como é possível, por exemplo, articular a crítica do sujeito como locus
da identidade imediata e a compreensão de que: “a ideologia é a forma originária da
ideologia”314? Todas estas questões só podem ser respondidas através de uma leitura
atenta do texto adorniano.
Partamos, a este respeito, de uma consideração adorniana fundamental. Para
Adorno, o conceito de sujeito é o espaço de uma ambiguidade entre “o momento da
individualidade humana – chamada egoidade por Schelling”315 e uma determinação de
universalidade. Adorno insiste várias vezes como o sujeito transcendental é uma
abstração do Eu empírico, que tentar salvar seu conceito é como transformar o
condicionado em incondicionado. É importante insistir neste ponto para denunciar o
caráter ideológico de certa ideia de autonomia. Pois:
Adorno chega mesmo a falar que o que Kant chama de “enformação” (Formierung) é
deformação ou, ainda, chega mesmo a falar de um “cativeiro interiorizado” a fim de
sublinhar o caráter de coerção de tais condições formais da experiência. “O cativeiro
categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo”, dirá.
Adorno insiste em pensar a partir de uma dialética entre sujeito e objeto que afirma: “a
separação entre sujeito e objeto é real e aparente”325. Verdadeira por expressar uma
situação concreta atual e aparente por não poder ser hipostasiada como invariante. No
entanto, uma separação radical leva o sujeito a “esquecer o quanto ele mesmo é
objeto”326. Ou seja, ignorar como não apenas o objeto é mediado pelo sujeito, mas como
o sujeito é mediado pelo objeto leva, paradoxalmente, o objeto da experiência a ser
nada mais que uma projeção de um sujeito constituinte. Adorno precisa andar em uma
linha tênue entre aqueles que recusam, ao mesmo tempo, um estado originário de
indiferenciação genérica entre sujeito e objeto, assim como uma separação ontológica
entre os dois. Daí uma afirmação importante como:
A colocação é clara: há uma espécie de síntese não identitária entre sujeito e objeto que
é resultado de um processo, que é uma produção, antes de ser o desvelamento de uma
unidade indiferenciada que muito se criticou como pressuposição da dialética
hegeliana. Esta síntese não tem a forma de uma comunicação entre sujeitos, mas de um
entendimento entre o que tem realidades ontológicas distintas, a saber, homens e coisas.
Tentemos entender melhor este ponto, assim como entender como tal ponto nos abre
para uma relação importante entre dialética hegeliana e dialética negativa.
De fato, há uma proximidade nem sempre relevada a respeito da dialética entre
sujeito e objeto em Hegel e Adorno. Proposição que pode parecer inicialmente
disparatada e ir na contramão de várias asserções explícitas do próprio Adorno. Pois
em mais de um momento, Adorno age como quem afirma que Hegel não pode levar a
dialética sujeito-objeto às suas reais conseqüências. Daí a necessidade de afirmações
como:
Esta mediação por meio dos extremos é, no entanto, a maneira com que a própria
dialética negativa funciona. O que demonstra quão equivocada são perspectivas que
procuram diferenciar a dialética hegeliana e a dialética adorniana a partir da pretensa
distinção entre seus modelos de mediação330. Tanto é assim que Adorno dará um nome
para tal mediação por meio dos extremos e nos próprios extremos que estaria entre
operação na dialética entre sujeito e objeto: mimese. Mas Adorno aproxima, de maneira
explícita, negação determinada hegeliana e mimese, como vemos em uma afirmação
como:
Assim, longe de se reduzir a uma relação meramente projetiva entre sujeito e objeto, a
dialética hegeliana reconhece afinidades miméticas que modificam a identidade dos
dois pólos. Mas isto significa necessariamente reconhecer que o sujeito encontra, no
interior de si mesmo, um “núcleo do objeto” 332 , isto no sentido de uma opacidade
própria à resistência do que se objeta à apreensão integral da consciência 333 . Este
reconhecimento, por sua vez, é a maneira com que uma certa reconciliação opera na
dialética negativa todas as vezes que Adorno fala da relação entre sujeito e objeto como
uma “comunicação do diferenciado”334.
negativa nos remete a uma relação sujeito-objeto que se situa: “não apenas para além de suas
identidades, mas também para além de suas diferenças” (RICARD, La dialectique de T.W.Adorno,
Laval Théologique et Philosophique, 55, 2 (junho, 1999), p. 271.
Mas, da mesma forma que é impossível, ao mesmo tempo, guardar o bolo e
comê-lo, não é possível dizer, ao mesmo tempo, que “o sujeito-objeto hegeliano é
sujeito” e que “o conceito especulativo hegeliano salva a mimese por meio da
autoconsciência do Espírito”. Pois no primeiro caso temos uma projeção irrefletida,
enquanto no segundo ainda temos uma projeção, mas submetida à dupla reflexão de
quem compreende a necessidade de internalizar o momento de resistência do objeto à
organização conceitual.
Neste sentido, lembremos como o pensamento mimético, para Adorno, não é
um modo de pensamento marcado pela crença na força cognitiva das relações de
semelhança e de analogia. A imitação própria ao pensamento mimético é,
principalmente, compreendida como a capacidade transitiva de se colocar em um outro
e como um outro. A mimese seria modo de superar a dicotomia entre eu e outro (seja
tal dicotomia construída na forma sujeito/objeto, conceito/não-conceitual ou
cultura/natureza) através da identificação com aquilo que me aparece como oposto. Ela
é, neste contexto, internalização das relações de oposição, transformação de um limite
externo em diferença interna. Não a mera imitação do objeto, mas a assimilação de si
pelo objeto. Por isto, Adorno descreverá a mimese como um regime de mediação por
meio dos extremos e nos próprios extremos335. Mediação capaz de construir um modelo
de reconciliação que o filósofo chamará de “comunicação do diferenciado”.
Se Adorno afirma que o conceito especulativo hegeliano salva a mimese, o que
pressupõe a idéia de que a racionalidade mimética e a racionalidade conceitual não tem
entre si uma relação de negação simples, é porque afirmações como: “O Eu é o
conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro e ao mesmo tempo o
ultrapassa; e esse Outro, para o Eu, é apenas ele próprio”336 não podem simplesmente
significar a submissão da relação sujeito-objeto à estrutura projetiva do sujeito. Se o Eu
é ao mesmo tempo a forma e o conteúdo da relação é porque algo da opacidade do
conteúdo à forma já é interno ao próprio Eu. Esta mediação por meio dos extremos da
forma e do conteúdo já é uma mediação interna ao Eu. O que implica internalização da
alteridade para o âmago do Eu337.
É assim que podemos ler uma afirmação como: “A consciência-de-si é a
reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a
partir do ser-Outro”338. Podemos compreender tal passagem da consciência-de-si pela
alteridade do ser do mundo sensível percebido, com seu posterior retorno, levando em
conta como, na certeza sensível e na percepção, a consciência teve a experiência de
resistência do objeto às tentativas de aplicação do conceito à experiência. No próprio
campo da experiência, ela confrontou com algo que negava a aplicação do conceito à
experiência, tendo a experiência de uma diferença em relação ao conceito, uma
diferença vinda do objeto. Retornar de seu ser-Outro é assim internalizar tal diferença,
explorando a via complementar, que a reconciliação deve ser pensada como a duplicação de duas
separações: “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação da
substância consigo mesma. Essa sobreposição [e o que se perdeu na lógica feuerbachiana-
marxista da desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente
ativo que pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Menos que nada,
p.101). No entanto, Zizek não leva em conta como este modelo é operativo na dialética negativa
de Adorno.
338 HEGEL, Fenomenologia, par. 167
re-orientando não apenas as relações ao objeto, mas também as relações de identidade
no interior do si mesmo.
Tal reconhecimento de si no que há de opaco no objeto parece-me uma operação
central na estratégia hegeliana, já que ela nos leva ao capítulo final da Fenomenologia.
Neste momento central de reconciliação, Hegel apresenta um julgamento infinito
(unendlichen Urteil)339 capaz de produzir a síntese da dialética entre sujeito e objeto.
Trata-se da afirmação: “o ser do eu é uma coisa (das Sein des Ich ein Ding ist); e
precisamente uma coisa sensível e imediata (ein sinnliches unmittelbares Ding)”. Desta
afirmação, segue-se um comentário: “Este julgamento, tomado assim como
imediatamente soa, é carente-de-espírito, ou melhor, é a própria carência-de-espírito”,
pois se compreendemos a coisa sensível como uma predicação simples do eu, então o
eu desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o sujeito: “mas quanto ao seu
conceito, é de fato o mais rico-de-espírito”340. Trata-se de afirmações de importância
capital pois nos demonstram que, ao menos na Fenomenologia, o término do trajeto
especulativo só se dá com o julgamento: “o ser do eu é uma coisa”. Aqui se realiza o
reconhecimento de que: “a consciência de si é justamente o conceito puro sendo-aí,
logo empiricamente perceptível (empirisch wahrnehmbare)"341. Mas se trata de uma
modalidade de reconhecimento que só se efetiva quando o sujeito encontra, em si
mesmo e de maneira determinante, um núcleo do objeto. Encontro que não é subsunção
simples do objeto, mas insistência na racionalidade do movimento do Espírito em
integrar continuamente o que inicialmente aparece como opaco às determinações de
sentido. Tais colocações devem ser levadas em conta para compreendermos melhor a
processualidade própria à totalidade hegeliana. Colocações que o próprio Adorno
reconhece sua pertinência ao afirmar:
Por mais que nada possa ser predicado de um particular sem determinidade e,
com isso, sem universalidade, o momento de algo particular, opaco, com o qual
essa predicação se relaciona e sobre o qual ela se apóia, não perece. Ele se
mantém em meio à constelação; senão a dialética acabaria por hipostasiar a
mediação sem conservar os momentos da imediaticidade, como aliás Hegel
perspicazmente o queria342.
339 Hegel definiu o julgamento infinito como uma relação entre termos sem relação: “Ele deve ser
um julgamento, conter uma relação entre sujeito e predicado, mas tal relação, ao mesmo tempo,
não pode ser” (HEGEL, Science de la logique III, p. 123). No entanto: “o julgamento infinito, como
infinito, seria a realização da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo” (HEGEL, PhG, p.233)
340 HEGEL, Fenomenologia II, p. 209.
341 HEGEL, Science de la logique III, op.cit, p. 307
342 ADORNO, Dialética negativa, p. 273
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 12
Tempo histórico e tempo musical em Adorno
Esta é a última aula de nosso curso. Durante este semestre, procurei fornecer
chaves de leitura que poderiam nos orientar na recompreensão da experiência dialética
a partir de Hegel. Na verdade, este curso foi a tentativa de elaborar uma questão simples
apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos no começo do
século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX participam de uma
partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de pensamento? Em que tais
dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais proximidades? Por que não
seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do distanciamento?
Tais perguntas foram colocadas já em nossa primeira aula a fim de permitir a
defesa de uma hipótese fundamental de trabalho. Ela insistia que a exploração de linhas
de continuidade entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética negativa era
possível porque a dialética hegeliana seria a dialética necessária para as possibilidades
históricas da experiência no início do século XIX, assim como a dialética marxista o
seria para o final do século XIX e a dialética adorniana o seria para meados do século
XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e pressuposições modifica-se a
partir de configurações históricas determinadas, sem com isto modificar sua
compreensão estrutural da processualidade contínua do existente, ou seja, como
“ontologia em situação”, a dialética reorienta-se periodicamente em um movimento que
leva em conta as transformações de suas situações históricas. O que não poderia ser
diferente para um pensamento que mesmo nunca aceitando distinções estritas entre
ontológico e ôntico, nunca abriu mão da potencialidade crítica da verdade em relação
ao campo de experiências entificado pelo senso comum. A crítica se mede a partir das
configurações historicamente determinadas de bloqueio.
Neste sentido, falar em “ontologia em situação” equivaleria a falar de uma
ontologia que seja o campo de exposição do processo de crítica das próprias categorias
ontológicas produzidas por uma situação sócio-histórica, como ser, essência,
identidade, diferença, entre tantas outras. Por isto que podemos dizer, por exemplo,
sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia metódica, que se fundamenta, da unidade
entre crítica e apresentação da metafísica” 343 . Ou seja, ela é ao mesmo tempo a
apresentação de categorias da metafísica e a crítica de sua insuficiência. Uma metafísica
paradoxal que se realiza como crítica das categorias metafísicas ou, ainda, como
explicitação de significações em seu ponto de esgotamento. Vimos este ponto através
de um exemplo privilegiado, a saber, a maneira com que a dialética, de Hegel a Adorno,
auto-compreende-se como discurso de crítica à categoria fundamental da ontologia: a
categoria de ser.
No entanto, contrariamente ao que muitas vezes se defendeu, a dialética não é
apenas o movimento de dissolução das categorias da ontologia. Esta crítica que
organiza as categorias ontológicas a partir de seu esgotamento, de suas contradições
internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o campo das experiências a respeito
das quais ela se propunha abarcar, não nos leva necessariamente a uma crítica geral da
343THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt:
Surhkamp, 1994, p. 16
ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a uma certa ontologização da negatividade da
crítica, isto no sentido de compreender o movimento contínuo de dissolução da
estabilidade formal do sistema de ideias próprio a situações sócio-histórica
determinadas como sendo a própria manifestação das “formas gerais de movimento” a
respeito das quais fala Marx em seu reconhecimento de filiação a Hegel. Tal movimento
é, de certa forma, ontologizado, o que dá à dialética sua peculiar pulsação entre
ceticismo desenfreado e compreensão de suas dissoluções como processos
racionalmente orientados não em direção a um telos finalista, como muitas vezes se
afirmou, mas em direção a um modelo anti-predicativo de determinação que tentei
apresentar quando foi questão da discussão a respeito do conceito de sujeito em Hegel,
em Marx (através da noção de proletariado) e de Adorno. Ou seja, a positividade da
dialética nunca esteve ligado à orientações normativas teleologicamente asseguradas,
mas a compreensão da estrutura de processualidades abertas.
Este modelo de leitura tem uma função importante para a interpretação do
pensamento de Theodor Adorno. Como vimos, não foram poucos os comentadores que
procuraram ver, na dialética negativa, uma certa forma de pensamento da aporia. A
leitura mais corrente vê a dialética negativa como uma certa forma de “amputação” da
dialética hegeliana. Como se a dialética negativa fosse uma dialética amputada do
momento positivo-racional de síntese. Amputação resultante, principalmente, da
pretensa liberação da negação determinada de sua função estruturadora no interior da
noção hegeliana de totalidade. Pois, em Hegel, a negação determinada seria, ao menos
segundo esta perspectiva, o movimento de constituição de relações entre conteúdos da
experiência tendo em vista a produção de uma totalidade acessível ao saber da
consciência. Ao passar de um conteúdo da experiência a outro através de negações
determinadas, compreendendo com isto que o resultado das negações não é a anulação
do conteúdo anterior mas a revelação de como ambos os conteúdos estavam em
profunda relação de interdependência, a consciência teria as condições de fazer a
experiência de como a determinação de um conteúdo só é completamente possível
através da atualização da rede de negações que o define. Ou seja, ela compreenderia o
verdadeiro sentido do adagio spinozista: Omni determinatio est negatio 344 . Tal
atualização da rede de negações que determinam conteúdos da experiência seria
exatamente o que Hegel compreenderia por posição da totalidade do saber. Uma
posição que, por sua vez, determinaria a negatividade como astúcia que visa mostrar o
caráter limitado dos momentos parciais da experiência, pois tais parcialidades seriam
superadas pelo desvelamento da funcionalidade de cada momento em uma visão
acessível do todo.
Já a dialética negativa adorniana, enquanto “prática ad hoc da negação
determinada”345, acabaria na aporia de uma crítica totalizante da razão incapaz de se
orientar a partir de um horizonte concreto de reconciliação, beirando assim o niilismo
desenfreado. Isto quando ela não for acusada de simplesmente não ser dialética. Basta
lembrarmos, a este respeito, do comentário de Robert Pippin: “ A ´dialética negativa´
simplesmente não é dialética, mas uma filosofia da finitude e uma demanda para o
reconhecimento de tal finitude. O ´não-idêntico´ desempenha um papel retórico
estranhamente semelhante à identificação kantiana da Ding an sich contra os idealistas
344 Comentadores como Robert Brandom compreenderam claramente este ponto mas, devido a
uma apreensão não-dialética da negação determinada como simples relação de oposição, eles
tendem a ver, no força determinante da negação hegeliana, apenas uma figura mais rebuscada da
incompatibilidade material (Ver BRANDOM, Robert; Tales of the mighty death, Harvard
University Press, 2002, p. 180)
345 HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 183
posteriores”346. A referência a Kant não é extemporânea porque, aparentemente, seria
possível ver a dialética transcendental como uma espécie de dialética negativa, já que
ela também é uma crítica da totalidade, mas através da exposição das ilusões produzidas
pelo uso transcendente das idéias transcendentais. O que talvez nos explique porque
esta leitura da dialética negativa como uma filosofia da finitude de ares kantianos será
encontrada em várias tradições de interpretação. Lembremos, por exemplo, de Alain
Badiou, para quem: “o que Adorno retém de Kant é a irredutibilidade da experiência, a
impossibilidade de dissolver a experiência na pura atividade do conceito. Subsiste um
elemento totalmente irredutível de limitação passiva, exatamente como em Kant a
passividade, que é a prática do sensível, é irredutível”347.
No entanto, o que se desprende do texto adorniano é algo totalmente diferente.
Como deveria ser diferente o pensamento de alguém que afirma, claramente: “a
reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito”348, ou seja, ela integra o
não-conceitual como momento do desenvolvimento do conceito. Há de se notar, por
exemplo, que não existe conceito da dialética hegeliana que Adorno simplesmente
abandone. Totalidade, mediação, síntese, Espírito (compreendido em chave não-
metafísica como trabalho social): nenhum destes conceitos será objeto de uma negação
simples por parte de Adorno. Levando isto em conta, podemos dizer que a dialética
negativa de Adorno é o resultado não exatamente do abandono de certos conceitos e
processos da dialética hegeliana, ou ainda, da amputação desta. Na verdade, a dialética
negativa será o resultado de um conjunto de operações de deslocamento no sistema de
posições e pressuposições da dialética hegeliana. Isto pode nos explicar esta peculiar
operação na qual vemos todos os conceitos hegelianos em operação na dialética
adorniana, mas sem poder mais serem postos tais como eles eram postos por Hegel,
sem poder serem atualizado no interior das situações pensadas por Hegel. Pois Adorno
sabe que, em certas situações, pôr um conceito de maneira direta é a melhor forma de
anulá-lo. Deixá-lo em pressuposição é, às vezes, a melhor maneira de reconstruir sua
força crítica. Como ele dirá:
346 PIPPIN, Robert; “Negative ethics: Adorno on the falsehood of bourgeois life” In: The
persistence of subjectivity: on the Kantian aftermath, Cambridge University Press, 2005, p. 116.
347 BADIOU, Alain; « La dialectique negative d’Adorno » In : Cinq leçons sur le ‘cas’ Wagner, Paris :
Nous, 2010, p. 65
348 ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 18
349 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
Se aceitarmos a interpretação que proponho, será necessário afirmar que os
conceitos ligados ao momento “positivo-racional” da dialética não desaparecerão do
pensamento adorniano. Eles deverão permanecer em pressuposição, isto a fim de
recusar as conciliações em circulação na vida social contemporânea e, com a pressão
do irreconciliável, abrir caminho para o advento de outra reconciliação. Pois, e este
ponto é de suma importância: “a antecipação filosófica da reconciliação é um atentado
contra a conciliação real”350, já que, ao pôr abstratamente a reconciliação, a especulação
filosófica, no fundo e de maneira insidiosa, apoia-se nas figuras concretas de
reconciliação atualmente presentes na vida social. O que, segundo Adorno, deixa a
reflexão indefesa para evitar a obrigação de justificar o curso atual do mundo e
perpetuar falsas reconciliações.
350 Idem
351 BADIOU, op. cit., p. 47
352 Como podemos ver, por exemplo, em RICOEUR, Paul; História, memória, esquecimento,
353 ADORNO, Minima moralia, São Paulo: Atica, 1993, p. 9
a importância da ação individual de “grandes homens”, como vemos na filosofia da
história hegeliana, nem afirmar que o lado subjetivo das ações tem “um direito infinito
a ser satisfeito”. Defender a possibilidade de transmutação do individual no interior da
história não equivale a uma negação simples do indivíduo 354 . O que nos permite
perguntar se as injunções de Adorno contra o destino do individual em Hegel não
estariam melhor adaptadas para descrever as interpretações feitas por Lukàcs do mesmo
problema. De toda forma, Adorno sabe que o conceito de Espírito do mundo não pode
ser negado de maneira simples:
Ela deve ser construída enquanto perspectiva crítica que permite nos livrarmos
da tendência a simplesmente confirmar a mera facticidade. Encontramos assim mais
uma vez o receio adorniano de uma reflexão sem recurso algum à totalidade se
transformar na afirmação positivista da ilusão do dado bruto. Por outro lado, a história
universal e, com isto, o Espírito do mundo devem ser negados a fim de salientar como,
até agora, a unidade entre os vários momentos históricos se deixa ler apenas como
aprofundamento progressivo dos mecanismos de dominação da natureza e, por fim, de
dominação da natureza interior. Isto leva Adorno a afirmar: “não há nenhuma história
universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma que
conduza da atiradeira à bomba atômica” 356 . É certamente uma consciência desta
natureza que levará Adorno a definir o Espírito do mundo como catástrofe permanente.
Mas há de se colocar alguns parênteses neste aparente niilismo para o qual a
universalidade do processo histórico seria apenas a perspectiva de denúncia de uma
falsa totalidade cada vez mais inexorável. A definição do Espírito do mundo como
catástrofe permanente pressupõe um sofrimento social advindo da consciência de algo
ainda não-realizado na história. Se os sujeitos não medissem a efetividade com a
promessa do que não se realizou, dificilmente a configuração do presente poderia ser
vivenciada como catastrófica. Neste sentido, a estratégia adorniana baseia-se na
pressuposição de uma experiência histórica em latência, que insiste como uma carta
não entregue. Notemos, a este respeito, que nem sempre o Espírito do mundo aparece
a Adorno como a consciência da catástrofe. Levemos a sério, por exemplo, a seguinte
afirmação:
354 Para uma crítica hegeliana da crítica adorniana ao destino do individuo em Hegel, ver
SOUCHE-DAGUES, Denise; Logique et politique hégélienne, Paris: Vrin, 1995
355 ADORNO, Dialética negative, op. cit., p. 266
356 Idem
357 Idem, p. 255
Note-se aqui (e nisto não poderíamos ser mais hegelianos) que a história
universal, quando se realiza como expressão do Espírito do mundo, eleva os indivíduos
acima de si mesmos por abrir espaço a uma ação social que não é meramente individual,
mas promessa de realização de uma universalidade capaz de fazer a institucionalização
da liberdade avançar. O exemplo da Revolução Francesa não poderia ser mais evidente
neste sentido. Se assim for, então não devemos nos perguntar se é lícito ou não
pressupor, em Adorno, algo como o Espírito do mundo. Ele precisa estar pressuposto
para dar à crítica uma orientação normativa. Melhor seria se perguntar porque toda
tentativa atual de afirmá-lo só pode obscurecê-lo.
Neste ponto, Adorno age como que maprendeu claramente a lição de Freud,
referência maior para a antropologia filosófica que anima todas suas considerações
sobre a história universal desde o primeiro capítulo da Dialética do Esclarecimento.
Pois Freud nos lembra como o processo de desenvolvimento social e maturação
individual é pago com a constituição de um passado recalcado no qual encontramos as
marcas da brutalidade da dinâmica de racionalização social. Não é outro o tema geral
de O mal-estar na civilização. A incapacidade de rememorar tal passado, integrando-o
em um novo arranjo do presente, é fonte maior de patologia e sofrimento. Na verdade,
patologia de quem luta para não ouvir a pressão de uma vida racional que ainda não se
realizou, e que só pode se realizar se souber como integrar aquilo que ficou para trás no
processo de racionalização social.
Assim, a impossibilidade de afirmar a história como horizonte de realização
institucional progressiva da liberdade não aparece como expressão de alguma forma de
niilismo. Ela é condição para que o que ainda não encontrou espaço no interior de uma
história que impôs certa figura do humano e da humanidade, ou seja, que constituiu
uma antropologia determinada, possa ser reconhecido em sua potência de
transformação. É da astúcia do Espírito do mundo, reconstruído pela dialética negativa,
se voltar para o que ainda não tem história a fim permitir à história continuar.
A reconciliação musical
Aceita tal interpretação, devemos nos perguntar se Adorno acredita haver algum
espaço na vida social onde possa ser posta uma experiência da totalidade como
processualidade contínua, força que transcende a identidade estática dos particulares, e
não como determinação normativa forte e sistema meta-estável. Se quisermos uma
resposta positiva a tal questão, devemos voltar os olhos em direção à estética musical.
O que não deveria nos estranhar, já que Adorno afirmará que a apreensão da totalidade
como esta identidade em si mesma mediada pela não-identidade é uma lei da forma
artística transposta para a filosofia.
Para alguns, tal recurso à estética musical pode parecer extemporâneo. No
entanto, Adorno nunca partilhou da desqualificação filosófica da práxis artística ou de
sua compreensão como mera esfera “compensatória” para uma época incapaz de levar
a cabo grandes transformações estruturais. Para ele, tratava-se, ao contrário, de uma
esfera fundamental da práxis social, com forte capacidade indutiva para o campo da
moral, da teoria do conhecimento e da política. Ou seja, a filosofia adorniana exige uma
compreensão mais alargada de práxis social, na qual a produção estética possa ser
reconhecida em sua força de transformação das formas de vida; o que, é fato, implica
virar o pensamento hegeliano, com seu diagnóstico do fim da arte como veículo do
Espírito, simplesmente de cabeça para baixo.
A este respeito, lembremos como a Teoria estética adorniana não temia afirmar
que: “a problemática da teoria do conhecimento retorna (wiederkehren) imediatamente
na estética”358. Ela vai ainda mais longe, na medida em que assevera que a formalização
estética deve ser compreendida com “correção do conhecimento conceitual”, já que a
“arte é racionalidade que critica a racionalidade sem dela se esquivar”359. Pois: “Com
o progresso da razão, apenas as obras de arte autênticas conseguiram evitar a simples
imitação do que já existe”360. Um exemplo do gênero de “correção” que a arte pode nos
fornecer: “A grosseria do pensamento é a incapacidade de operar diferenciações no
interior da coisa, e a diferenciação é tanto uma categoria estética quanto uma categoria
do conhecimento”361.
Este regime de recurso filosófico à arte será uma constante na experiência
intelectual de Adorno. Vemos, aqui, que a arte não é utilizada como álibi para o
abandono do conceito em prol de alguma espécie de imanência com domínios pré-
conceituais da intuição, de afinidade pré-reflexiva entre sujeito e natureza ou de
hipóstase do inefável, do arcaico e do originário. Ao contrário, tal recurso privilegiado
quer dizer simplesmente que precisamos sustentar novos modos de formalização e
ordenação que não sejam mais assentados na repressão da experiência de não-
identidade. Modos que, em certas situações históricas, encontram sua primeira
manifestação na arte, isto para depois desdobrarem-se em outras esferas da vida social.
Foi esta a aposta que animou a experiência intelectual de Adorno: pensar a partir das
promessas de uma nova ordem trazida pelo setor mais avançado da produção artística
de seu tempo. Digamos que este foi o solo positivo de sua dialética negativa.
Neste sentido, não é desprovido de interesse lembrar como Hegel aparece no
horizonte da estética musical de Adorno, mesmo que a estética hegeliana, devido ao
seu anti-romantismo declarado, não leve a música em muito boa conta362. Por exemplo,
ao insistir nas comparações entre os processos construtivos de Beethoven e o projeto
da Ciência da Lógica, Adorno acaba por transformar Hegel em uma referência
importante para a reflexão sobre a natureza da totalidade funcional das obras musicais.
É por ter o problema da totalidade hegeliana em vista que Adorno compreenderá a
função da forma estética, tão bem realizada por Beethoven, como a: “mediação
enquanto relação das partes entre si e relação à totalidade, assim que enquanto completa
elaboração (Durchbildung) de detalhes”363. Ele será ainda mais claro quando definir a
função da forma como “síntese musical” 364 ou quando ver na forma musical : “a
totalidade na qual um encadeamento (Zusammenhang) musical adquire o caráter de
autenticidade”365.
No entanto, Adorno insiste que a totalidade funcional das obras musicais não
pode ser pensada mais como subsunção dos instantes particulares à estruturas formais
de base. Em um texto tardio ele falará, por exemplo, da constituição de uma noção de
“trabalho temático” não mais vinculada a noção clássica de temas claramente
identificados e trabalhados através de repetições e modulações. Este trabalho temático
de uma outra ordem seria o resultado de:
absoluten Musik,
363 Idem, Aestetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 216
364 Idem, O fetichismo na música e a regressão da audição,p. 167
365 Idem, Quasi una fantasia, p.254.
outros, apresenta-se como necessário, sem que motivos dados reapareçam
através da obra sob uma forma idêntica ou variada366.
Uma afirmação como esta demonstra, primeiro, que Adorno reconhece como a
totalidade em Hegel não se confunde com uma sistematicidade absoluta. Ele sabe que
o momento imediato não desaparece simplesmente na mediação, o que não poderia ser
diferente já que a relação entre o conceito e o não-conceitual é decisiva tanto no
conceito adorniana quanto no hegeliano de mediação. O que Adorno salienta outras
vezes, ao afirmar, por exemplo, que:
366idem, p. 314
367 Idem, p. 314
368 Idem, p. 319
369 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
conflito irredutível do material com a forma. Conflito que encontra sua forma
primordial no estilo tardio de Beethoven.
Desta maneira, tudo se passa como se o pensamento se servisse da estética para
pensar aquilo que lhe é interditado em outras esferas da vida social. Através da reflexão
sobre a forma musical, problemas filosóficos de forte capacidade de indução de
transformações sociais, como a possibilidade de uma totalidade que não seja
simplesmente a afirmação autárquica do princípio de identidade, são recuperados. O
que não deve nos surpreender, já que:
Contra a comunidade
373 ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p. 240