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JAROSLAW MERECKI, SDS

Corpo e
A antropologia filosöfica na
Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II

%OES
JAROSLAW ME-RECKI, SDS

Corpo e
Transcendéncia
A antropologia filos6fica na
Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II

Traduzido por
D. Hugo C. da S. Cavalcante, OSB e
Pe. Valdir M. dos Santos Filho, SCJ

ctöøø
Corpo e Transcendéncia
A antropologia filosöfica na Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II

Edifäo-2014

Diretor Editorial:
Mons. Jamil Alves de Souza

Tradugäo:
D. Hugo C. da S. Cavalcante, OSB e Pe. Valdir Manuel dos Santos Filho, 5CJ
Supervisäo de Revisäo:
Leticia Figueiredo

Revisäo:
Raquel Cristina P. de Sousa

Projeto Gråfico, Diagrama$o e Capa:


Nenn Costa

Ediqöes CNBB
Titulo Original: Corpo e trascendenzo. L'antropoiogia filosofica nella
teologia del corpo di Giovanni Paolo II

Ad instar manuscript;
Copyright 2014 - Edif5es CNBB
ISBN: 978-85-7972-351-3

C748c Conferéncia Nacional dos Bispos no Brasil / Corpo e Transcendéncia a Antropojogia Filosåfica
na Teologia do Corpo de Såo Joäo II. Brasilia: Edisöes CNBB. 2014.

188 p.: 14x21 cm


ISBN•. 978-85-7972-351-3

Amor Humano Fenomenologia - Pessoa - Filosofia;


2.Tomismo de Karol Wojtyia — Corpo — Sinal Desafio;
3. Principio - Maternidade -- Paternidade — Norma;
4. Histåria - Diferenqa -- Dignidade — Percepqäo -Teologia.

CDU - 233

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SUMÅRIO

INTRODUCÄO
CAPfTULO I

O contexto filos6fico das catequeses sobre o amor humano 17


1. A experiéncia como primeira e insubstitufvel
fonte da filosofia 19
2. O encontro com a fenomenologia 25
3. O tomismo de Karol Wojtyla / Säo Joäo Paulo II 38
4. A teologia do corpo e a filosofia moderna 52
CAPiTULO II

Elementos para uma transformagäo do corpo 63


1. O corpo como Sinal da pessoa 64
2. O corpo como Sinal da imagem do Criador 76
CAPiTULO Ill

A solidäo original: génese da pessoa 81


1. O significado do principio 82
2. Solidäo como subjetividade 97
CAPfTULO IV
A unidade original: natureza comunhonal da pessoa 123
1. Pessoa: subståncia e relacäo 124
2. Diferenga ont016gica e diferenga sexual 130
3. A transcendéncia em diregäo ao terceiro:
maternidade e paternidade 141
CAPfTULO V
A nudez original: a ética personalfstica 147
1. A auséncia do pudor como plena percepgäo da
dignidade pessoal 148
2. A dignidade da pessoa e a norma personalista 160
3, A hermeneutica do dom 169
EPiLOGO
A pessoa na hist6ria 183
1. O desafio do historicismo 183
2. A articulacäo da hist6ria 185
INTRODUCÄO

A grande reflexäo de Säo Joäo Paulo II sobre o amor hu-


mano no plano divino possui um caråter fundamentalmente te-
016gico. O Papa, parte do diålogo de Cristo com os fariseus sobre

a indissolubilidade do matrimönio, no qual o pr6prio Cristo se


refere ao "princfpio". Diante da afirmagäo dos fariseus, que ape-
lam para a autoridade de Moisés, que permitiu ao esposo dar
para a esposa a carta de repådio, Jesus faz valer a autoridade
do proprio Deus, expressa no ato da criagäo "no princfpio näo
foi assim" (cf. Mt modo, Jesus näo aceita que a dis-

cussäo acerca da indissolubilidade do matrimönio, se desenvol-


va sobre o plano da pråxis historica do homem, marcada pelo
pecado original, mas a transfere para outro Plano, o plano da
situagäo proto-hist6rica, isto é, a situagäo antes do pecado ori-
ginal. Em outras palavras, Jesus convida os seus interlocutores
a ultrapassar o limiar do pecado original e buscar a verdade so-
bre o matrimönio na situagäo em que o homem viveu em ple-

na harmonia com o seu Criad0EJSeguindo esse convite de Jesus,


Säo Joäo Paulo II, na sua teologia do corpo, atravessa o limiar
do pecado original e desenvolve uma hermenéutica do principio
te016gico do homem.

Essa hermenéutica, porém, possui um s61ido fundamento


filos6fico. Em certo sentido podemos dizer que todo o itinerårio
filos6fico de Wojtyla, antes da sua eleigäo ao trono de Säo Pedro,
constituia uma preparagäo para a teologia do corpo desenvol-
Vida por ele como Joäo Paulo II. Em toda a sua produgäo filo-
s6fica Wojtyla era — como o definiu o seu mais ilustre discipu-

10, o Prof. Tadeusz Styczefi — "um fi16sofo das coisas humanas",

ou seja, buscava responder å pergunta: Quem é o homem? Jå o


seu primeiro ciclo de aulas, ministradas depois do seu retorno
dos estudos romanos, referia-se, exatamente, aos temas da
antropologia filos6fica.i Nessas aulas Wojtyla expöe, substan-
cialmente, a visäo filosöfica de Säo Tomås de Aquino, que depois
buscarå enriquecer e aprofundar utilizando-se dos métodos
elaborados na filosofia moderna. Da relagäo de Wojtyla com a
filosofia de Säo Tomås e, geralmente, das fontes da sua filosofia,

falaremos no primeiro capftulo do nosso livro.

Nesse ponto vale a pena recordar as palavras retiradas da


introdugäo å primeira edifäo polonesa do livro Pessoa e ato, isto

é, da "suma antropolögica" de Wojtyla, que foram omitidas na se-

gunda edigäo (e por esse motivo näo a encontramos na tradugäo


italiana do livro de Wojtyla), mas que em todo caso conservam
toda a sua validade: "O estudo sobre pessoa e ato deve ter o ca-
råter filosåfico. (...) Refletindo sobre a questäo de pessoa o autor

se då conta de que esse problema possui ao mesmo tempo uma


importåncia fundamental para a teologia O significado da
(...).

problemåtica personalista para a teologia é enorme. No presen-


te estudo näo quero de nenhuma maneira ultrapassar o limiar
dessa problemåtica. Talvez isso serå possivel no futuro depois de
uma preparagäo mais profunda".2 Podemos entäo dizer que exa-
tamente nas catequeses sobre o amor humano Säo Joäo Paulo II

Cf. K. Wojtyla, Rozwa2ania o istocie czlowieka (Consideragöes sobre a esséncia do


1
homeml, Wtdawnictwo WAM, Krak6w, 1999. O texto näo foi até agora traduzido em
portugués.
2 Cf. K. Wojtyla, Osoba i ezyn, Kraköw 1969, 24.
ultrapassa o limiar da teologia. Na do corpo temos, por-
teologia
tanto, a ver com uma visäo integral do homem que compreende
em si, seja a sua dimensäo experimental, dada na experiéncia e
analisada na reflexäo filos6fica, seja a sua dimensäo sobrenatural,
dada na revelagäo. Talvez também nesse sentido se poderia en-
tender a expressäo "a antropologia adequada", que Säo Joäo Paulo
II usa nas catequeses de quarta-feira. A antropologia adequada,
segundo a definiqäo do Pontffice, busca colher aquilo que no ho-
mem é especificamente humano, aquilo que o distingue de todos
os outros seres sobre a terra. O "specificum humanum" é, porém,
revelado profundamente, isto é, adequadamente, somente quan-
do é iluminado também pela luz, que vem "do alto".

A problemåtica do amor humano fascinou Wojtyla desde


o inicio do seu caminho sacerdotal e intelectual. É conhecida a
sua afirmacäo; "Aprendi a amar o amor humano". Como sacerdo-
te ele acompanhou os namorados e os casais jovens, ajudando

os seus amigos a compreender melhor aquilo que experimen-


tavam, mas ao mesmo tempo aprendendo da experiéncia deles,
Dessa sua proximidade com a experiéncia do amor humano nas-
ceu o livro Amor e responsabilidade, no qual buscava avinhar-
-se å experiéncia com os instrumentos conceituais da filosofia.

época, o livro suscitou interesse pela sua original abordagem


da problemåtica do amor e aquela da ética sexual, porque o au-
tor buscava partir da experiéncia vivida do sujeito e justificar as
normas morais a partir dessa experiéncia.

Nas catequeses de quarta-feira de Säo Joäo Paulo II, po-


demos ver uma continuagäo dessa abordagem. De resto, näo
que algumas problemåticas (p. ex., o problema
é dificil notar,
do pudor) säo analisadas em termos semelhantes seja no livro
Amor e responsabilidade ou nas catequeses. Podemos cons-
tatar que quase vinte anos depois da redagäo do livro, Karol
Wojtyla sentiu a necessidade de retornar å mesma problemåtica,
alargan o, porém, o seu horizonte, isto é, ultrapassando o limiar
da teologial@abemos hoje que a primeira parte das catequeses,
nas quais o autor parte do diålogo de Cristo com os fariseus
acerca da indissolubilidade do matrimönio, jå tinha Sido prepa-
rada ainda antes da eleigäo de Wojtyla ao trono de Säo Pedro.3
Portanto, em certo sentido, podemos dizer que esta primeira
parte das catequeses encontra-se também ela sobre o limiar en-
tre o pensamento filos6fico e te016gico do Cardeal Karol Wojtyla
e o magistério do Papa Joäo Paulo II. É essa a razäo pela qual
exatamente a primeira parte das catequeses é particularmente
interessante para quem busca identificar os nexos entre a
teologia do corpo e a antropologia de Wojtyla. Por outro lado,

näo se pode certamente entender as catequeses de quarta-


feira profundamente sem levar em consideragäo a preparagäo
remota a elas, que estå propriamente contida na antropologia
filos6fica de Karol Wojtyla.,

Neste livro n6s buscamos empreender um caminho in-

verso daquele realizado por Säo Joäo Paulo II. Buscaremos isso,

partindo da teologia do corpo, de enuclear a filosofia do homem


que ali estå contida. Por um lado, é interessante ver como vårios
elementos da filosofia do homem de Karol Wojtyla encontrem
entrada e constitua o fundamento da sua reflexäo te016gica so-
bre o amor humano.4 Por outro lado, porém, se pode também
buscar ver com a visäo filos6fica do homem pode ser também
enriquecida e aprofundada, quando o autor se deixa inspirar
pelo texto bfl)lico. Talvez também aqui temos a ver com uma si-
tuagäo semelhante åquela que se verificou na historia da me-
tafisica, quando os grandes pensadores cristäos, sobretudo

3 O texto original, escrito em polonés, dessa parte estå consenrado no arquivo de Säo
Joäo Paulo II na Casa Polonesa em Roma.
4 O texto fundamental no que se refere a visäo filos6fica do homem de Wojtyla é na-
turalmente o seu livro magistral Pessoa e ato, que nos servirå aqui como o principal
ponto de referéncia.
Säo Tomås de Aquino, foram inspirados pelo texto bfblico — nes-
se caso se tratava antes de tudo de Ex 3,14 — para descobrir a di-
ferenga entre ser e existéncia que pertence å reflexäo filos6fica.
Também no nosso caso devemos distinguir entre o contexto de
descoberta (the context of discovery) e o contexto de justificagäo
(the context ofjustification).Näo estå exclufdo que também na
antropologia o texto bfblico pode nos conduzir para as intuigöes
que depois podemos convalidar com a. ajuda dos métodos
pr6prios para a filosofia.

Neste sentido, é bom dizer algo quer seja sobre o método


de Karol Wojtyla quer sobre o de Säo Joäo Paulo II.Como dis-
semos, o Papa nas suas reflexöes parte do texto biblico, mas a

sua anålise certamente näo tem o caråter da exegese biblica no


sentido técnico do termo. O método de Säo Joäo Paulo II poderia
justamente ser definido como a hermenéutica fenomen016gica
do O texto biblico ajuda, neste contexto, a indagar esta
principio.
dimensäo da experiéncia humana - a qual se encontra além da
experiéncia historica do pr6prio homem — que ficaria dificilmen-
te acessfvel ao nosso conhecimento sem o apoio das Escrituras.
Dessa dimensäo, que Säo Joäo Paulo II chama de "proto-hist6-
rica", nos separa o pecado original, que constitui exatamente o
limiar entre a proto-hist6ria e a hist6ria do homem. O pecado
original - um conceito puramente te016gico - tern, porém tam-
43
bém o seu valor para a antropologia filos6fica. Como veremosno
decurso das nossas anålises, do pecado original dependem: as
modificagöes da mesma estrutura antica do homem, a mudan
ga do equilibrio entre aquilo que nele é material e aquilo que é
espiritual, o outro modo de realizar a personalidade do homem.
Por outro lado, Säo Joäo Paulo II estå convicto de que entre estes
dois estados: proto-hist6rico e hist6rico, existe também certa

continuidade que nos permite aproximar-se ao estado proto-


-hist6rico, å experiéncia que era pr6pria do homem antes do pe-
cado original, com os instrumentos conceituais elaborados pelo
homem hist6rico — como disse Säo Joäo Paulo II: a partir do a
posteriori hist6rico. É neste ponto que se encontram a teologia e
a fenomenologia. O método fenomen016gico, que busca chegar å
experiéncia mais elementar do homem, se torna um método que
em certa medida pode ajudar a compreender a experiéncia do
homem antes do pecado original. Especialmente a segunda nar-
rativa da criagäo do homem revela a sua rica carga fenomen016-

gica, a ponto de ser chamado por Säo Joäo Paulo II 'ta mais antiga
descrigäo e registro da autocompreensäo do homem". No nosso
contexto é interessante notar que segundo o Pontffice este texto
contém em si no nücleo "quase todos os elementos de anålise do
homem, aos moderna
quais é sensivel a antropologia filos6fica
e sobretudo contemporånea".5 É por este motivo que no decurso
nas nossas reflexöes a segunda narrativa da criagäo do homem
estarå no centro da atengäo; buscaremos também individuar ao
menos alguns dos seus nexos com a filosofia moderna.

Existe também outro ponto do método de Säo Joäo Paulo


II que queremos sublinhar. Nas suas anålises, sobretudo aquelas
que possuem mais valor filos6fico, o Papa analisa a experiéncia do
homem por assim dizer "a partir de dentro", isso assume a pers-
pectiva da subjetividade humana. Näo é dificil reconhecer aqui o
eco do postulado metod016gico assumido pela grande parte da
filosofia moderna a qual quer exatamente "partir do homem", da
sua experiéncia subjetiva. A filosofia com uma abordagem mais
como aquela tomista — considerou este postulado jus-
objetiva -
tamente como perigoso, vendo nele em resumo a via para o sub-
jetivismo. Como veremos, Wojtyla, jå como fi16sofo näo temia
assumir a perspectiva do sujeito, na convicgäo que esta aborda-
gem metod016gica pode enriquecer o nosso conhecimento do ho-
mem. Assim podemos saber näo somente que o homem é pessoa,

5 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö. Catechesi sull'amore tnnano, Cittå Nuova
Editrice. Libreria Editrice Vaticana, 1992, 37.

• 10 •
mas também como o homem é pessoa. Também as categorias me-
tafisicas, como aquela da causalidade, recebem um colorido di-

ferente, se vistas da perspectiva do sujeito agente. Sabemos que


coisa signifique ser causa de alguma coisa, porque somos sujei-

tos agentes que vivem a partir de dentro a pr6pria operabilidade.


Esse ponto de vista do sujeito agente que Wojtyla jå assumiu no
seu livro Pessoa e ato, o reencontramos também nas catequeses
de quarta-feira. Como disse o pr6prio Säo Joäo Paulo II, até agora
a teologia interpretou a narrativa biblica justamente com "o mé-
todo da objetividade pr6prio da metaffsica e da antropologia me-
taffsica", ao invés, o seu método busca levar em consideragäo em
maior medida a subjetividade humana. Também aqui, no que se
refere å questäo do método, encontramos um nexo estreito entre
a filosofia de Wojtyla e o magistério do Papa.

Para Säo Joäo Paulo II é a experiéncia do corpo que nos pöe


em contato com o estado proto-hist6rico e com o vivido pelo pri-
meiro homem (homem e mulher). Näo obstante o pecado original
e as suas consequéncias, a experiéncia do corpo conserva a sua
continuidade entre o estado proto-histårico e o estado hist6rico.
O homem sempre, experimentando a si mesmo, vive como "en-
carnado" e todas as suas experiéncias de alguma maneira estäo
ligadas å corporeidade. Como veremos na filosofia moderna esta
dimensäo do vivido humano foi, ås vezes, subestimada (naquilo
que queremos chamar o dualismo antrop016gic06), para depois
ser retomada e valorizada na filosofia contemporånea.

Ao revelar o conteüdo da experiéncia do corpo antes do pe-


cado original e das suas consequéncias para toda a visäo do ho-
mem, Säo Joäo Paulo II utiliza o método que poderia ser chamado

6 A expressäo "dualismo antrop016gico" a utilizamos no sentido especifico da neutrali-


zacäo ad016gica do corpo, ela pertence entäo ao campo da moral. Näo a utilizamos,
ao invés, no sentido difundido nas discussöes filosöficas contemporåneas, ou seja, no
sentido da distingäo ont016gica entre o espirito e o corpo.

• 11 •
"o método do contraste". Mesmo se näo dispomos do acesso dire-
to å experiéncia proto-hist6rica, porque toda a nossa experiéncia
é marcada pelo pecado original, podemos intuir o sentido desta

experiéncia a partir daquilo que nos foi dado quase per viam ne-
gationis. Estemodo de proceder é especialmente evidente na anå-
lise da nudez original, em que o pudor se revela como eco distante

da percepgäo do outro que foi perdida com o pecado original.

É evidente que as narrativas bfblicas näo nos oferecem o


relato do devir do homem entendido no sentido da ciéncia moder-
na. Eles utilizam a linguagem do mito, entendido, porém, no sen-
tido nobre deste conceito. O mito näo é uma fåbula, uma historia
simplesmente inventada por quem näo possufa ainda os instru-
mentos para a explicaqäo adequada (que seria aquela cientffica)
das coisas. No mito se trata justamente de preservar e comunicar
aqueles estratos da experiéncia que näo podem ser objetivados
na linguagem cientffica. Nesse sentido a filosofia tem alguma coi-
sa em comum com o mitp (näo por acaso que nos diålogos de Pla-
täo, S6crates utiliza dos mitos para comunicar as verdades filos6-

ficas). Desse modo, analisando a linguagem mitica das narrativas


biblicas sobre a criaqäo do homem. Säo Joäo Paulo II descobre
aqueles estratos da experiéncia humana que transcendem os con-
dicionamentos historicos e culturais e os quais também além da-
quilo que do homem podem dizer as ciéncias empfricas.
No decurso das nossas anålises buscaremos, como pri-

meira coisa, individuar o contexto no qual nasce a teologia do


corpo de Säo Joäo Paulo II. O contexto mais imediato é consti-
tufdo, naturalmente, da filosofia de Karol Wojtyla. No primeiro
capftulo buscaremos indicar as suas fontes e caracterizå-las na
sua impostaqäo geral. O contexto externo da teologia do corpo
é constitufdo daquela parte da filosofia moderna do corpo, que
pode ser denominada "o dualismo antrop016gico", ao qual dedi-
caremos um ponto å parte.

• 12 •
Segundo Säo Joäo Paulo II a situagäo proto-hist6rica do
homem pode ser descrita com trés coordenadas: a solidäo, a
unidade e nudez originais. Sobre essas trés coordenadas busca-
remos reconstruir a filosofia do homem implicada pela teologia
do corpo. A solidäo original exprime conjuntamente a constitui-
Gäo ont016gica do homem como tal e a sua génese como sujei-

to pessoal sobre o plano experimental. Trataremos aprofundar


este conjunto de problemas com a ajuda da filosofia da pessoa
elaborada no livro Pessoa e ato. A unidade original reenvia a
outro aspecto essencial do homem, ou seja, a sua abertura em
relaqäo ao outro. Na nossa reflexäo tentaremos responder å per-
gunta: Qual é - dentro do pensamento de Wojtyla e de Säo Joäo
Paulo II — a relagäo entre estas duas caracteristicas da pessoa,
ou seja, entre a sua subjetividade ont016gica e a sua abertura
interpessoal? Pode-se dizer que uma delas é mais fundamental
do que outra? Pode-se dizer, como afirma certa filosofia do diå-

logo, que o sujeito existe somente no espago que é constitufdo


pela relacäocom outro? Enfim, a nudez original reenvia aos pro-
blemas ligados å dimensäo moral do agir humano e as questöes
que pertencem a esse åmbito säo: Qual é a atitude justa de uma
pessoa em relagäo a outra? Qual é a relagäo mais original entre
uma relaqäo de concorréncia ou até mesmo de luta
as pessoas? É
como quer uma parte notåvel da filosofia moderna (de Hobbes
a Sartre)?O estado natural do homem é aquele da luta de todos
contra todos, como sustentava Hobbes ou sem negar o potencial
de agressäo presente nohomem possamos dizer que existe tam-
bém outra e mais profunda verdade do homem? Ou em caso de
resposta positiva, como poderemos descobri-la?

A existéncia da pessoa humana no corpo significa que o


homem existe no tempo e na hist6ria. Desde o inicio da sua exis-
téncia sobre a terra o homem vive também no horizonte da mor-
te a qual faz parte do seu destino natural. A estrutura natural

do corpo, como toda estrutura mais complexa, estå submetida

• 13 •
å lei da entropia. Por outro lado, porém, o homem näo quer
contentar-se da finitude inscrita no seu corpo e pöe a questäo
sobre a imortalidade e sobre o escopo da hist6ria. Essa questäo
o conduz sobre o limiar da religiäo e da teologia, mas ao mes-
mo tempo é radicada exatamente na sua experiéncia do corpo.
A essa perspectiva da teologia do corpo dedicaremos o ültimo
parågrafo do nosso livro.

Naturalmente, a mais de trinta anos da conclusäo das ca-


tequeses de Säo Joäo Paulo II, na literatura teolågica näo faltam
comentårios å teologia do corpo e os seus aprofundamentos. Uma
avaliagäo bibliogråfica das edicöes e traducöes das catequeses,
além dos comentårios, encontra-se na edigäo das catequeses de
quarta-feira organizada por Gilfredo Marengo (além da sua ampla
e instrutiva introducäo).7 Agora queremos assinalar somente dois
livros publicados em italiano: o livro Chiamati all'amore. La teo-
logia del corpo de Giovanni Paolo II de Carl Anderson e José Gra-
nados (Piemme, Miläo 2910), introduz com competéncia a toda a
teologiado corpo (aquilo que näo pretendemos fazer neste livro);
ao invés La carne si fa amore. II corpo, cardine della storia della
salvezza (Cantagalli, Siena 2010) de José Granados Garcia, toca do
ponto de vista te016gico alguns temas tratados também no nos-
so livro. Parece, contudo, que näo exista até agora uma tentativa
mais ampla de enuclear a visäo filos6fica do homem implicada
pela teologia do corpo - o escopo que nos pomos nesta pesquisa.
No fim desta Introdugäo queremos ainda acrescentar uma
observagäo. Como a grande descoberta do papel do ser no ente

7 L'amore umano nel piano divino. La redenzione del corpo e la sa-


Säo Joäo Paulo II,

cramentalitå del matrimonio nelle catechesi del mercoledi (1979-1984). (organizado


por Gilfredo Marengo), Libreria Editrice Vaticana, 2009, 511-524. No nosso texto uti-
lizamos ao invés a ediqäo das catequeses publicada pela primeira vez em 1995 Uomo
e donna 10 creö. Catechesi sull'amore umano, Cittå Nuova Editrice. Libreria Editrice
Vaticana, 1992 (Ill Ediqio), que contém uma divisäo das catequeses em vårios ciclos,
o que se torna ütil para a impostaqäo deste livro.

• 14 •
de Säo Tomås acontece sob o influxo do livro do Génesis, tam-
bém de per si ela pertence å ordem filos6fica, näo é ilicito pensar
que a filosofia de Karol Wojtyla näo teria Sido aquela que efeti-

vamente foi, se ele näo tivesse encontrado na sua Vida pessoal a


pessoa de Jesus Cristo. Creio que refletindo sobre sua teologia
näo podemos transcurar o seu encontro com Cristo - mesmo se
esse encontro näo pertence estritamente å ordem filos6fica, ele

pertence, porém a experiéncia vivida pelo homem Karol Wojtyla.


Como disse o Concflio Ecuménico Vaticano II, Cristo revelando a
verdade sobre Deus revela ao mesmo tempo a verdade sobre o
homem. Ou melhor, Ele é o verdadeiro modelo do homem e na sua
pessoa revela a verdade sobre o homem no modo mais perfeito.
A Sua encarnagäo é ato do pr6prio Deus, que desse modo quer
convencer o homem da sua dignidade: a dignidade do homem
é täo grande aos olhos de Deus para justificar uma intervengäo
de Deus neste nfvel. Tudo isso constitui o nücleo da fé cristä que
Wojtyla viveu de modo particularmente profundo (daqui pro-
vém também o seu antropocentrismo te016gico testemunhado
especialmente pela encfclica Redemptor hominis). Näo por acaso
sobre a primeira pågina da sua principal obra filos6fica, Pessoa e
ato, encontramos as palavras tomadas da constituigäo Gaudium
et spes do Concflio Vaticano II sobre a Igreja a qual é "conjunta-
mente o Sinal e a salvaguarda do caråter transcendente da pes-
soa humana" A auténtica experiéncia da fé cristä ilumina
(n. 76).

a experiéncia humana e constitui uma ajuda potente na tentativa


de compreendé-la profundamente; protege-nos contra a tenta-
gäo do ceticismo, täo difundida no mundo hodierno, e nos con-
vence da necessidade de passar "do fenömeno ao fundamento"
(Fides et ratio, n. 83). É isso que discutiremos neste livro.

15 •
CAPfTULO I

O CONTEXTO FILOS6FICO DAS


CATEQUESES SOBRE O AMOR HUMANO

Como jå nos referimos na Introducäo, nas catequeses so-


bre o amor humano de Säo Joäo Paulo II podemos ver o ponto de
chegada do seu longo itinerårio filos6fico, comegado nos anos
quarenta do século passado com o seu ciclo de aulas Conside-
ragöes sobre o homem Esse itinerårio desenvolveu-se sobretu-
do na Universidade Cat61ica de Lublin na Polönia, onde Wojtyla
foi professor de ética até sua eleigäo para o trono de Säo Pedro.
Teve ali uma série de aulas dedicadas aos fundamentos da éti-

ca, que depois foram publicadas sob o tftulo Aulas de Lublin.8


A aulas dadas em Lublin estäo também na base do seu livro

Amor e responsabilidade. Naquele tempo a principal orienta-


gäo filos6fica desenvolvida pelos professores da Universidade
de Lublin era o tomismo na sua interpretagäo proposta por E.

Gilson e J. Maritain, isto é, o tomismo existencial, que via na


descoberta do papel do actus essendi a principal caracterfstica

8 Cf. K. Wojtyla, Wyklady lubelskie, Wydawnictwo Towarzystwa Naukowego KUL,


Lublin, 1966.

• 17 •
da filosofia de Säo Tomås. A assim chamada "escola de Lublin"
enriqueceu essa interpretagäo sobretudo com a aprofundada
reflexäo metod016gica. A sensibilidade metod016gica, que en-
contramos muitas vezes seja nos textos filos6ficos de Wojtyla,
que nas suas catequeses de quarta-feira, provinham em parte
da forte presenga na cultura filos6fica polonesa dos resultados
obtidos pela escola "Leopoli-Vars6via", a qual no campo da pes-
quisa 16gica e metodolögica estava na vanguarda no seu tempo.
No nosso contexto é interessante também notar que os pensa-
dores da escola 'tLeopoli-Vars6via" tinham elaborado uma teoria
da ética autönoma, isto é, a ética independente seja da filosofia

que da teologia, que suscitou o interesse de Wojtyla e, sobretudo


do colaborador mais pråximo Tadeusz Styczefi e que influenciou
a proposta deles da ética personalista.9

Naturalmente, Wojtyla encontrou o pensamento de Säo


Tomås jå durante os seus estudos seminarfsticos e depois en-
quanto preparava a sua tese de doutorado na Universidade
Angelicum em Roma. Ele mesmo deixou o testemunho que näo
obstante as dificuldades iniciais ao entrar no mundo dos abs-
tratos conceitos de filosofia, o sistema metafisico do tomismo
tinha impressionado profundamente. Serå importante para nos
vermos, em qual medida o pensamento filosöfico de Säo Tomås
estå presente na visäo antrop016gica e ética de Wojtyla.

Na sua filosofia, Wojtyla busca, porém, enriquecer a abor-


dagem metaffsica com o método proprio da filosofia moderna,
isto é, com o método fenomen016gico. Em certo sentido se po-
deria dizer que ele busca construir uma ponte entre estas duas
orientagöes filos6ficas: entre a metaffsica clåssica e a fenome-
nologia. Encontrou essa ültima valorizando a possibilidade de

9 Para mais informaqöes sobre a proposta étiea da escola "Iæopoli-Vars6via" cf. C.


Porebski, Polish Value Theory, Jagiellonian University Press, Cracow, 1996.

• 18 •
construir a ética cristä na base do sistema ético de Max Sche-
len Näo obstante a resposta negativa å questäo principal da sua
pesquisa, Wojtyla encontrou no método fenomen016gico um
instrumento precioso seja para a antropologia que para a ética.

Näo é diffcil notar que exatamente a anålise das duas narrativas


bfblicas, que Säo Joäo Paulo II propöe nas catequeses sobre o
amor humano, desenvolve-se segundo a metodologia adotada
em Pessoa e ato. Nessa interpretagäo a primeira narrativa sobre
a criagäo do homem, que possui uma indole mais objetiva, con-
tém a verdade metaffsica sobre o homem, diz quem é o homem e
em que coisa consiste a sua especificidade, se confrontado com
os outros seres criados. Ao invés, a segunda narrativa é Iida em
chave fenomen016gica como uma discrigäo da experiéncia vivi-
da pelo homem e pela mulher antes do pecado originaUNaquilo
que segue queremos analisar mais detalhadamente estas fontes
do pensamento de Wojtyla e de Säo Joäo Paulo II, comegando
com o conceito da pr6pria experiéncia.

A segunda parte deste capftulo, dedicaremos ao contexto,


por assim dizer, externo da teologia do corpo, isto é, o contexto
filos6fico que vai além do pensamento do pr6prio Wojtyla.

1. A EXPERIÉNCIA COMO PRIMEIRA E INSUBSTITUiVEL


FONTE DA FILOSOFIA
Näo basta, porém, saber alguma coisa da filosofia de Wo-
jtyla. Aquilo que é indispensåvel é a fadiga de participar das suas
intuigöes, porque somente assim poderemos ir adiante na estra-
da que ele nos indicou. Vale a pena recordar as palavras que Jac-
ques Maritain tinha escrito na sua Carta sobrefilosofia no tempo
do Concilio, dirigida aos seus amigos poloneses Jerzy Kalinowski
e Stefan Swieüawski, professores da Universidade Cat61ica de
Lublin (isto é, colegas do pr6prio Wojtyla) e autores da obra Fi-
losofia no tempo do Concilio:

19 •
A infelicidade do ensino escolåstico ordinårio e sobretudo
dos manuais,foifeita para negligenciar praticamente este
elemento intuitivo essencial e para substitui-lo desde o ini-

Ciocom uma pseudodialética de conceitos e deförmulas.


Näo hå nada afazer até que o intelecto näo tenha visto,
até que o fi16sofo ou o aluno dofilösofo näo tenha tido a
intuigäo intelectual do ser.10

do grande fi16sofo francés, porque


Citei essas palavras

elas nos levam diretamente ao problema das fontes da filosofia


de Wojtyla e, conjuntamente, ao problema da base experimental
das catequeses de quarta-feira. Geralmente, quando falamos das
fontes de uma determinada posigäo filos6fica, pensamos aos fi-
16sofos que a inspiraram ou - estamos Iidando com a reflexäo
sobre um fragmento especial da realidade, por exemplo, com
o homem — pensamos aos sistemas filosåficos que determina-
ram essa reflexäo. Naturalmente, nenhum pensamento comeqa
do nada e — para utilizar uma expressäo conhecida somos so-

mente os anöes sobre as costas dos gigantes. Também no nosso


caso podemos indicar — e o faremos daqui a pouco autores, que

influenciaram o pensamento de Wojtyla. Creio, porém, que seja


justo dizer que a sua primeira fonte näo foi o pensamento de um
ou de outro filåsofo, mas a pr6pria experiéncia do homem. É esta
a experiéncia que ele quer escutar e indagar. Wojtyla quer estar
nesta experiéncia, a qual constitui ao mesmo tempo a inståncia
de controle das teses que o fi16sofo formula sobre o homem. T.

Styczefi descreve o primeiro postulado metod016gico de Wo-


jtyla, que encontramos nas påginas introdut6rias do livro Pessoa
e ato no seguinte modo:

A reflexäo antropolögica de Karol Wojtyla se distingue


pelofato que no inicio o autor estå como se näo soubesse

10 Cit. in: R. Buttiglione, II pensiero de Karol Wojtyla, Jaca Book, Miläo, 1982, 51.

• 20 •
quais serüo as suas opiniöes definitivas sobre o homern;
ele sabe somente que elas devem ser subordinadas sem
reservas å experiéncia do homem (...) Essa experiéncia,
essa intuigäo (Einsicht) precede a opiniüo (Ansicht), seja
sobre o mundo que sobre o homem, precede a ideologia

(Weltanschauung).ff_)

Nesse sentido a antropologia filos6fica de Wojtyla é um


saber radicalmente empirico. Devemos, porém, considerar que
o conceito daquilo que é "empfrico" sofreu na idade moderna
uma redugäo notåvel. 0 pensamento empfrico identifica-se com
um conjunto de impressöes sensfveis, que säo depois ordenadas
pelo intelecto. Wojtyla se opöe a essa concepgäo da experién-
cia baseado na pr6pria experiéncia. Tal redugäo acontece por-
que, desde o infcio, adotou-se um preconceito segundo o qual o
'tempfrico" é considerado idéntico ao "sensivel". Se, ao contrårio,

olhamos a nossa experiéncia sem preconceitos, vemos que ela é


muito mais rica e näo se reduz somente a meros dados sensfveis.
Wojtyla disse: "Objeto da experiéncia é o fenömeno momentåneo
sensfvel,mas também o pr6prio homem, que emerge de todas as
experiéncias e estå também presente em cada uma dela".i2 Em
outro fragmento da introdugäo å Pessoa e ato, Wojtyla sublinha
ao invés que a experiéncia vai sempre pari passo com a compre-
ensäo. Ela näo se reduz ao registro dos dados sensiveis e a cons-
ciéncia do homem näo pode ser vista somente como um espe-
lho, no qual se refletem fenömenos sensiveis. A experiéncia vai
sempre junto com a compreensäo, de modo que experimentar
um objeto significa ao mesmo tempo compreendé-lo de alguma
maneira. O intelecto humano, que participa da experiéncia hu-
mana, faz com que ele näo pare na superficie daquilo que é dado,

11 T. Stycæfi, Essere se stessi é transcendere se stessi, in id., Compredere I'uomo, Late-


ran University Press, 2005, 148.
12 K, Wojtyla, Persona e atto, in id., Metqfisica della persona, Tutte le operefilosofiche
e saggi integrativi, Bompiani, Miläo, 2003, 832.

• 21 •
mas desde o infcio "vai å profundidade", busca descobrir o senti-
do daquilo que experimentou. Jå uma simples observagäo: "Esta
coisa é uma mesa, este objeto é um cäo" implica a utilizagäo dos
conceitos que väo além do simples registro dos dados sensfveis
fenoménicos.13 Esta distingäo e esta visäo da experiéncia seräo
importantes naquele ponto das catequeses nas quais Säo Joäo
Paulo II fala da consciéncia e conhecimento do primeiro homem
no estado da solidäo original.

A primeira e mais importante fonte da antropologia de


Wojtyla é, portanto, a experiéncia do homem. Vale a pena su-
blinhar o fato que, o trago caracterfstico da antropologia elabo-
rada por Wojtyla consiste em pensar o homem nas categorias
que foram tomadas do sistema filos6fico mais geral (p. ex., da
metaffsica),mas naquelas que foram elaboradas a partir da pr6-
pria experiéncia do homem. Desse modo, ele acolhe o grande
postulado do pensamento moderno (mas ao mesmo tempo o
corrige) que quer filoso(ar a partir do homem. Na verdade, nos
näo conhecemos nada fora de n6s se näo fazemos, ao mesmo
tempo, a experiéncia de n6s mesmos. Escreve Wojtyla: "A expe-
riéncia de toda coisa situada fora do homem se associa sempre
å sua pr6pria experiéncia. E ele näo experimenta jamais algu-
ma coisa fora de sem de alguma maneira experimentar a si
si

mesmo " . filosofia moderna este fato conduziu muitas vezes

a negagäo da autonomia da realidade externa, isto é, ao idealis-

mo filos6fico. Se, ao invés, em Wojtyla a armadilha do idealismo


näo surge, é nova ente porque ele per anece profundamente

13 Neste ponto vale a pena notar que o subtitulo utilizado na ediqäo de Persona e atto
no parågrafo que se refere a esta problemåtica estå errado. O subtitulo "O ponto de
vista empirico näo se identifica com a atitude fenomenolégica" deveria apresentar:
"O ponto de vista empirieo näo se identifica com a atitude fenoménican. Wojtyla dis-
tingue claramente entre "o fenoménico" e "o fenomenolögico" e, enquanto critica a
concepqäo fenoménica da experiéncia aceita sua concepgäo fenomen016gica.
14 Ibidem, 831.

• 22 •
fiel å experiéncia, na qual o horizonte do ser tem sempre a prio-
ridade sobre o horizonte da consciéncia. Vemos isso claramen-

te na narrativa O mundo estå posto no ser do Criador e


biblica.

desse modo aparece o homem. Ele toma consciéncia disso, mas


o mundo jå é dado na sua configuragäo fundamental. Näo é o
homem a criar o mundo, nem a sua dimensäo axi016gica; Deus é
o criador que cria e as coisas säo boas antes de tudo em relagäo
å sua vontade. Tudo isso se revela importante para a compreen-
säo da intencionalidade pr6pria do conhecimento do homem. A
reflexäo (e a consciéncia com tal) se explica somente em fungäo
do objeto que é dado no ato intencional (retornarei a este ponto
quando falarei da transcendéncia e consciéncia do homem na
segunda narrativa sobre a criagäo do

A experiéncia do homem tem também a sua especificida-


de pela qual ela se difere de todas as outras formas de experién-
Cia. A expressäo "a experiéncia do homemn pode ser entendida
no sentido anålogo das experiéncias dos objetos näo humanos,
homem nos pode ser dado como objeto da nossa experi-
isto é, o

éncia. Nesse caso existe uma diferenca entre o sujeito e o objeto

da experiéncia. Mas o sujeito da experiéncia é sempre o homem.


A experiéncia do proprio 'teu" é diferente da experiéncia de todo
outro sujeito, porque neste caso o sujeito e o objeto da experi-
éncia säo ontologicamente idénticos. Esse fato cria uma situagäo
especial. E um finico caso n6s conhecemos um ser näo somente
de como conhecemos todos os outros objetos, mas o co-
fora,

nhecemos também a partir de dentro. Como mostrou Thomas


Negel em um famoso ensaio, o nosso conhecimento humano tem
limites, que jamais poderäo ser ultrapassados. Näo saberemos
jamais o que se experimenta ser um morcego, porque para sa-
ber isso é preciso ser um morcego.15 Mas no caso do homem nos

15 Cf. T. Nagel, Cosa si prova ad essere un pipistrello?, Castelvecchi Editore, 2013.

• 23 •
encontramosem uma situagäo privilegiada. N6s mesmos somos
homens e mesmo que a nossa experiéncia subjetiva permaneqa
sempre diferente da experiéncia subjetiva dos outros homens,
ela nos permite um acesso privilegiado näo somente aquele ser
que é o homem, mas também ao ser como tal. Aqui podemos
viver e observar a partir de dentro todas as fundamentais dis-
tingöes metafisicas, a partir daquela entre o ser e o existir. Näo
é talvez errado dizer que toda a pesquisa metafisica parte exa-
tamente desta experiéncia subjetiva do pr6prio "eu". O homem
antes de tudo pöe a questäo que se refere a sua existéncia, que
experimenta como precåria, contingente. No entanto, ultima-
mente, a essa questäo näo pode responder, se näo pöe a questäo
sobre o ser como tal, ou seja, a questäo metafisica. Nesse sentido
se poderia dizer que na visäo de Wojtyla antropologia aparece
como a filosofia primeira — näo no sentido aristotélico da filtima
explicagäo da realidade, mas no sentido heurfstico como o ponto
de partida da pesquisa filos6fica. De outro ponto de vista, recen-
temente tudo converge no saber sobre o homem.

Nas suas anålises, Wojtyla privilegia a experiéncia que cada


um de n6s tem de si mesmo. Essa experiéncia é de alguma manei-
ra incomensuråvel, porque é somente acessfvel ao pr6prio sujeito=)
Objeto de experiéncia é cada um para si de um modo ünico
e irrepetivel e nenhuma relagäo defora com nenhum ou-

tro homem pode substituir-se aquela relagäo experimental


que é parte do pr6prio sujeito.16

O fi16sofo, porém, näo pode deixar de aproveitar daquela


oportunidade finica de observar o homem, que é dada na sua pr6-
pria experiéncia. Naturalmente, deverå, pois, encontrar os instru-
mentos que lhe permitiräo objetivar o saber adquirido assim.

16 Wojtyla, Persona e atto, cit., 834.

• 24 •
Essa impostagäo metod016gica, que encontramos na in-
troduqäo a Pessoa e ato, encontra o seu eco no modo em que Säo
Joäo Paulo II analisa as narrativas bfblicas sobre a criagäo do ho-
mem, Também aqui parece que acentua sobretudo na anålise da
experiéncia subjetiva do homem, do modo como ela é descrita na
segunda narrativa. Além disso, o fato de que na narragäo biblica
a solidäo precede a unidade original, tem por ele um significa-

do importante. Falaremos ainda disso mais tarde, vale, porém,


desde agora sublinhar, que na visäo de Wojtyla e Säo Joäo Paulo
II o fato de ser uma subjetividade consciente de si do ponto de
vista ont016gico precede as relagöes do sujeito com os outros. A
J relagäo näo cria o sujeito, mas o pressupöe. A unidade é possfvel
sobre o fundamento da solidäo.

Tudo isso que dissemos até aqui, a prop6sito da experién-


cia, nos conduz na direqäo da outra fonte da filosofia de Wojtyla,
isto é, a fenomenologia.

2. O ENCONTRO COM A FENOMENOLOGIA


Era exatamente a fenomenologia, no infcio do século passa-
do, a descer em campo em defesa do caråter original da experiéncia
como contato imediato com os objetos de vårios tipos. Para a feno-
menologia tudo aquilo que se apresenta corporalmente (leibhaft)

é objeto da experiéncia. Desse modo existe näo somente a experi-


éncia sensfvel, mas também aquela estética, moral, religiosa ou do
homem (entendida no sentido que vai além dos dados fornecidos
pelas ciéncias empiricas), porque todos esses modos da experién-
cia se referem aos seus objetos proprios. Eram exatamente essas

ültimas formas da experiéncia - a experiéncia do homem, a experi-


éncia moral, a experiéncia religiosa - a interessar Wojtyla desde o
infcio da sua carreira académica. Näo é entäo surpreendente que a
fenomenologia, e sobretudo aquela forma de fenomenologia que foi
elaborada por Max Scheler, tenha suscitado o seu especial interesse.

• 25 •
Como Wojtyla encontrou o pensamento de Scheler e quais
foram os frutos desse encontro para a sua filosofia e para a sua
teologia? Antes de tudo devemos recordar que durante os seus
estudos na Universidade de Säo Tomås em Roma Wojtyla adqui-
riu um profundo conhecimento do pensamento do Aquinata,
testemunhado entre outros, pela sua tese de doutoramento de-
dicada a questäo de em Säo Joäo da Cruz (da sua relacäo com a

filosofia de Säo Tomås falaremos no ponto seguinte). Ao mesmo

tempo, porém, jå nesta tese näo é dificil reconhecer uma sensibi-


Iidade acentuada do autor å dimensäo subjetiva da experiéncia
da fé. Parece que Wojtyla jå entäo tivesse chegado å convicgäo
que enquanto a filosofia de Säo Tomås, com as suas categorias
metaffsicas fundamentais, constitui um instrumento precioso
para a interpretagäo da dimensäo objetiva da experiéncia da fé,

a sua dimensäo subjetiva permanece nela um pouco na sombra.


Em outras palavras, Säo Tomås mostra que tanto Deus quanto o
homem säo pessoas, mas na sua filosofia näo encontramos uma
descrigäo mais detalhada do modo em que o homem vive a si
mesmo como pessoa. Säo Tomås — afirma Wojtyla - "nos mostra
as faculdades individuais, sejam espirituais que sensitivas, gra-
gas ås quais se formam a inteira consciéncia e autoconsciéncia

do homem, a sua personalidade em sentido psic016gico-moral,


mas praticamente para aqui. Portanto, em Säo Tomås vemos be-
nissimo a pessoa na sua objetiva existéncia e agäo, mas é dificil

reconhecer as experiéncias vividas pela pessoa".17 Isso, ao invés,


é possivel, porque - como dissemos — o homem é o ünico ente

que n6s conhecemos a partir de dentro. Se for assim, podemos


näo somente demonstrar que o homem é um sujeito (uma pes-
soa), mas também descreve como o homem viva a sua subjetivi-

dade. Desse ponto de vista é também significativo o fato de que


falando da experiéncia de Deus no caso de um mfstico como Joäo

17 ibidem, 143.

• 26 •
da Cruz, Wojtyla näo quer utilizar o termo "objeto" (a escolha

que foi criticada no juizo sobre a tese por parte do seu mode-
rador, o famoso tomista padre R. Garrigou-Lagrange), provavel-

mente temendo que este termo poderia esconder mais do que


revelar a realidade pessoal de Deus.

Terminados os estudos em Roma, Wojtyla retornou para


Crac6via, onde iniciou o seu trabalho pastoral na par6quia, es-

pecialmente como pastor da juventude. Bem cedo, o bispo de


Crac6via lhe pediu para tomar a estrada do trabalho académico,
dando-lhe a permissäo para a preparagäo da sua Habilitationss-
chrift. Foi desse modo que Wojtyla comegou a estudar a fenome-
nologia e este encontro teria influenciado profundamente a sua
original filosofia do homem desenvolvida nos anos sucessivos.

Segundo algumas fontes, foi Ignacy R6iycki, professor de


dogmåtica na Universidade Jagiellonica de Crac6via, a sugerir
para Wojtyla escolher como tema do seu estudo a teoria ética de
Max Scheler na sua relacäo com a ética cristä.18 Ao mesmo tempo
vale a pena recordar que entre as personagens mais importantes
na Vida intelectual de Crac6via da época estava Roman Ingarden,
um dos mais estimados discfpulos do diretor de fenomenologia,
Edmund Husserl.

Segundo Husserl, a fenomenologia é, como primeira coisa,


descrigäo de tudo aquilo que é imediatamente dado å consci-
éncia, isto é, dos fenömenos. Ela se distingue da psicologia pelo
fato de que os fenömenos säo reduzidos ao essencial (a assim
chamada "reducäo eidética"). A redugäo desse tipo exige uma
espécie de purificagäo dos fenömenos daquilo que é meramen-
te empfrico (e, por isso, acidental), das influéncias das teorias
e tradigöes, e até mesmo pela convicgäo que se refere a real

18 Por. G. Weigel, Testimone della speranza, Mondadori, 2001, 157.

• 27 •
existéncia delas, (a assim chamada "epoché" fenomen016gica).
O passo que Husserl afrontou, consistia na questäo
sucessivo,
acerca do estatuto metaffsico dos fenömenos assim descritos.
Na segunda fase do desenvolvimento da fenomenologia desta
questäo metafisica conduziu o pr6prio Husserl para a estrada
do idealismo transcendental, cujos fenömenos säo ultimamente
vistos como produzidos pela consciéncia.

Ingarden (como de resto também Scheler) näo tinha


seguido Husserl na sua mudanga idealistica. A sua obra funda-
mental, com um titulo significativo: A controvérsia em torno da
existéncia do mundo, foi dedicada exatamente a discussäo com o
seu mestre acerca da possibilidade da fenomenologia realistica.

Do nosso ponto de vista devemos sublinhar que Wojtyla, desde


o inicio do seu encontro com a fenomenologia, tinha a encon-
trado na sua interpretagäo realistica. Nos anos sucessivos mui-
tos discfpulos de Wojtyla foram ao mesmo tempo discipulos de
Ingarden e vice-versa, näo obstante a diståncia de Ingarden em
relacäo å religiäo.19

Nas suas pesquisas, Ingarden se interessava sobretudo


por questöes ontolågicas, epistem016gicas e estéticas. Vale a

pena recordar que um dos seus mais famosos estudos foi de-
dicado ao fenömeno da responsabilidade.20 No decurso da sua
carreira universitåria, Ingarden por trés vezes ensinou também
nos cursos sobre ética — pela primeira vez nos anos trinta na

19 Nesse contexto vale a pena recordar que uma versäo da fenomenologia realistica, que
ao mesmo tempo se inspira na obra de Wojtyla e aquela de Ingarden. além dos escri-
tos de um outro discipulo de Husserl. Dietrich von Hildebrand, foi desenvolvida por
Josef Seifert, Rocco Buttiglione, John Crosby e outros da Academia Internacional de
Filosofia no Principado de Liechtenstein. Cf., por exemplo, J. Seifert, Essere e perso-
na, Vita e Pensiero Müano, 1989 .com uma interessante introduqäo de
na qual vem demonstrada como a fenomenologia de Seifert pös suas raizes seja na
fenomenologia realistica que no personalismo de Wojtyla).
20 Cf. R. Tngarden, Sulla responsabilitå, CESO Biblioteca, Bolonha, 1982. A questio da
responsabilidade constitufa também urn dos objetos das pesquisas de Wojtyla.

• 28 •
Universidade de Jan Kazimierz em Lvov, e depois no p6s-guerra
duas vezes na Universidade Jagiellonica de Crac6via. No nosso
contexto é interessante o fato de que uma parte das aulas de
Lvov foram dedicada a concepgäo da ética em Scheler. Tudo isso
torna plausivel a hip6tese que exatamente gragas ao influxo de
Ingarden na Polönia do p6s-guerra, periodo no qual a filosofia

era submetida å forte ideologizagäo marxista, estava presente


seja a fenomenologia que na figura de Scheler.

Wojtyla näo se ocupava do pensamento de Scheler em to-

dos os seus aspectos e todas as suas mudangas (ås vezes bastante


radicais), mas lhe interessa sobretudo como o autor do livro Der
Formalismus in der Erhik und die formale Wertethik. Como jå su-
gere o proprio tftulo, a obra de Scheler foi dedicada å discussäo
acerca da concepgäo de ética proposta por Emanuel Kant. Ao mes-
mo tempo, porém, o texto contém uma proposta positiva de como
construir a ética a partir da experiéncia. A esséncia da proposta
de Scheler pode ser expressa nos seguintes modos: a ética formal
de Kant vem contraposta a ética dos valores materiais. Devemos
recordar que os pressupostos epistem016gicos de Kant näo lhe
permitiam ver a ética como uma disciplina que partisse da expe-
riéncia. Näo obstante isso, Kant näo considerava o campo da mo-
ralidade como uma esfera totalmente subjetiva, arbitråria. Para

ele o subjetivismo da moral é garantido näo pela experiéncia, mas


do fato que o imperativo moral é a priori dado a todo ser racional
(a moral constr6i "o fato da razäo", que näo pode ser adquirido
por dados empiricos). As normas morais säo ao invés formula-
das em um procedimento da generalizagäo das måximas do agir, a
qual tem também um caråter estritamente formal — é uma espécie
da dedugäo das normas que näo parte do conteüdo, mas da for-

ma. Desse modo, porém, a normativa da ética é totalmente dividi-


da daquilo que é empirico (no sentido do termo descrito acima).
Podemos dizer entäo que, no caso da ética de Kant, estamos Iidan-
do com uma ética do caråter normativo, mas näo empirico.

• 29 •
É exatamente esta separacäo da experiéncia empirica que
provocou o protesto de Scheler. Em certo sentido a sua proposta
de ética pode ser descrita como o exato oposto da ética de Kant:
na verdade Scheler defende o caråter empfrico da ética, mas rejei-
ta o seu caråter normativo. Podemos, porém, indicar algo que une
Scheler a Kant, näo obstante as diferengas deles. Trata-se exata-
mente da sua concepgäo da experiéncia expressa no modo mais
Claro jå pelo grande predecessor de Kant, ou seja, David Hume: A
razäo é cega nos confrontos dos valores. Mas se é assim, é possfvel
salvar o caråter empfrico da ética? Enquanto a resposta de Kant
é negativa, aquela de Scheler é positiva. Na sua anålise fenome-
n016gica Scheler busca exatamente mostrar como os valores e a
hierarquia deles säo dados å pessoa pela experiéncia, mas essa
experiéncia é do tipo emocional. Säo as emogöes que nos pöem
em contato com o mundo dos valores. Segundo Scheler as emo-
Göes possuem o caråter intencional: as emocöes se referem a algo
e os seus objetos säo exatamente os

No entanto, o prep a pagar por tal defesa do caråter empfrico


da ética consistia em privå-la do seu caråter normativo. Na verdade,
as emogöes näo podem ser sujeitas a nenhuma norma, näo se pode
prescrever para ouvir. Eles aparecem no sujeito de modo totalmente
espontåneo. Ufilizando a linguagem introduzida por Wojtyla em Pes-
soa e ato, podemos dizer que as emogöes pertencem å esfera daquilo
que acontece no homem e näo constituem o seu ato no sentido pr6-
prio. Desse modo, Scheler chegou å convicgäo que no campo da experi-
éncia moral näo existe lugar para o momento normativo. Isso significa
que näo existe lugar para aquilo que segundo Kant constitufa a pråpria
esséncia da moralidade: o dever. Em um dos ensaios dedicados å com-

paragäo da ética de Kant com aquela de Scheler Wojtyla escreve:

Gchelervaitäolonge a ponto derenegaro deverna ética, qual


elemento substancial negativo e destnttivo. Somente o valor,

como conteüdo objetivo da experiéncia, tem significado ético.


Scheler näo persiste nem mesmo em pensar se o dever possa

• 30 •
constituir o conteüdo objetivo da experiéncia e no seu sistema
näo admite sequer a ideia que ele possa nascer do pråprio va-
lor. O valor e o dever de contrapöem mutuamente.?l

É exatamente por causa desse pressuposto emocionalfstico


que Wojtyla julga o sistema Scheler como um sistema näo adaptado
para a interpretagäo cientffica da ética cristä. Näo queremos agora
entrar nos detalhes da critica que Wojtyla faz a Scheler Cabe-nos
exatamente assinalar o projeto positivo da ética que Wojtyla come-
gou a elaborar a partir do seu confronto com a fenomenologia de
Scheler. Na verdade, o seu jufzo sobre a ética de Scheler näo é to-

talmente negativo. Na substancial tese negativa, que nos referimos


acima, ele acrescentou duas teses positivas. A primeira:

Scheler no seu sistema decididamente cancelou o caråter


normativo dos atos éticos, e esta é a compreensivel conse-
quéncia da separagäo dos valores da factualidade da pes-
soa. Isso é tanto mais surpreendente enquanto o pråprio
ato da consciéncia como experiéncia da pessoa é objeto
da experiéncia fenomenolögica. Se Scheler-fenomenölogo
através da anålise do ato da consciéncia näo chega å re-
lagäofactual da pessoa em relagäo aos valores éticos, isso

deve ter algum motivo além da suafenomenologia. O moti-


vo estå nas suas premissas emocionalisticas.

A segunda tese afirma:


Embora o sistema ético criado por Max Scheler näo se adapte
fundamentalmente para interpretar a ética cristä, porém nos
pode ser colateralmente de ajuda em um trabalho cientifico
sobre a ética crista. Facilita-nos a anålise dos fatos éticos

sobre o planofenomenoldgico "experimental".22

21 K. Wojtyla, II problema del distaceo dell'esperienza dall'atto nell'etica, in: idem,


Ifondamenti dell'ordine etico, Edizioni CSEO, Bolonha, 1980, 74-75.
22 K. Wojtyla, Valutazioni sulla possibilitå de costruire l'etica cristiana sulle basi del
sistema de Max Scheler, in ide, Metafisica della persona. Tutte le operefilosofiche e
saggi integrativi, op. cit., 441.446.

• 31 •
Como veremos, pelo jufzo negativo sobre o sistema de
Scheler näo segue um jufzo igualmente negativo sobre o método
fenomen016gico. Ou melhor, segundo Wojtyla o proprio Scheler
forgou muito a sua polémica com Kant, cancelando o momen-
to normativo embora sempre dado na experiéncia moral. Wo-
jtyla partilha plenamente o fundamento postulado por Scheler,
segundo o qual a ética deve partir da experiéncia. O defeito da
proposta de Scheler consiste em näo ter esgotado todos os recur-
sos do método fenomen016gico ao explorar a experiéncia moral.
Assim o projeto de Wojtyla, cujo primeiro esbogo encontramos
no estudo sobre Scheler, poderia ser descrito como a tentativa
de preservar os aspectos de verdade presentes seja em Kant que
em Scheler. Na verdade, no ensaio jå citado, descrevendo o carå-
ter da experiéncia moral Wojtyla afirma:

Toda essa experiéncia possui um profundo caråter empiri-


co e sobre essa experiéncia se baseia a ética qual ciéncia.
Ofato que ela seja normativa näo pode em nenhum caso
colocar na sombra o seu langar profundas raizes na expe-
riéncia. Portanto a ética, ciéncia normativa, é ao mesmo
tempo uma ciéncia experimental pelo de basear-se sobre
uma auténtica experiéncia ética.23

modo nasce a concepgäo de ética que busca conjugar o


Desse
seu caråter normativo com o seu caråter empfrico. Nos anos sucessi-
vos este projeto serå realizado pelo proprio Wojtyla e pelos seus alu-
nos, e serå conhecido como a escola de ética personalista de Lublin.24

É interessante notar como nas teses de Wojtyla sobre


Scheler jå aparecem alguns conceitos chave da sua filosofia

23 Ibidem, 63.
24 Entreos alunos de Wojtyla recordamos o prof. Tadeusz Styczeå, SDS, o seu sucessor
na cåtedra de ética em Lublin. Serå sobretudo ele a prosseguir e posteriormente de-
senvolver a visäo de ética proposta por Wojtyla. Cf. T. Styczefi, Comprendere l'uomo.
La visione antopologica di Karol Wojtyla, cit.

• 32 •
da pessoa desenvolvida no seu livro filos6fico mais conhecido
Pessoa e ato. Trata-se sobretudo do conceito de ato, que se tor-
narå para Wojtyla uma espécie de janela para a interioridade
da pessoa. É por meio de seu ato que a pessoa revela que é e ao
mesmo tempo realiza a si mesma. É verdade que também Sche-
ler fala do ato, mas fala do ato no sentido de ato intencional, e
näo no sentido da realizagäo da potencialidade interna da pes-
soa. O ato intencional nos apresenta um objeto que transcende
a nossa subjetividade (no caso do ato intencional emocional o
objeto que nos é dado é um valor). A ideia do ato intencional

era um ganho valioso da fenomenologia (que neste ponto — por


meio de Franz Brentano — se prendia å filosofia medieval) na
polémica com o subjetivismo. Wojtyla partilha plenamente a
ideia do ato intencional, mas ao mesmo tempo estå convicto
de que no campo da ética o ato da pessoa näo pode ser limi-

tado ao ato intencional (além disso, Wojtyla modifica o modo


de entender a intencionalidade presente na fenomenologia; fa-

laremos disso mais tarde analisando a génese da consciéncia


do primeiro homem no estado da solidäo original). 0 ato ético '

envolve a pessoa toda, mas acima de tudo aquilo que é o nü-


cleo da sua personalidade, isto é, a sua razäo e a sua vontade.
É exatamente este momento que falta na concepgäo de Scheler
Na sua polémica com Kant negligenciou o aspecto da verdade
sobre o agir humano, coisa que estava presente na concepgäo
do fi16sofo alemäo. Podemos exprimir isso no seguinte modo:
Nos confrontos dos valores o homem näo é somente um sujeito
do conhecimento mas, ao mesmo tempo, é um sujeito da agäo.
Aquilo que falta a ética de Scheler é exatamente a adequada
anålise da operabilidade da pessoa. O homem na verdade se
exprime como sujeito pessoal especialmente em ser causa das
pr6prias agöes. A experiéncia "alguma coisa acontece em mimo
se associa a experiéncia "eu ajo", na qual eu me vejo por dentro
como causa da minha agäo. As duas experiéncias säo acessiveis

• 33 •
ao método fenomen016gico. Desse modo Wojtyla busca corri-
gir Scheler no campo da pr6pria fenomenologia, ou seja, no
campo da pr6pria experiéncia do homem. Ainda mais, como
resulta da segunda das suas teses conclusivas sobre Scheler,
Wojtyla considera que o método fenomen016gico seja particu-
larmente adaptado para revelar como o homem é pessoa. Era
exatamente esse aspecto que permanecia embora em sobra na
concepgäo metaffsica de Säo Tomås. Assim nasce o postulado
wojtyliano de conjugal metafisica com a fenomenologia, reali-
zado depois em Pessoa e ato. Essa abordagem da metaffsica,
que parte da experiéncia do homem, conduz Wojtyla ås mes-
mas caracteristicas metaffsicas que estäo presentes na filosofia
aristotélico-tomista mas dando-lhe um colorido diferente. Na
verdade, uma coisa é dizer que todo ato é realizaqäo de uma
poténcia inserida no ser e outra é descrever a passagem da
poténcia ao ato partindo da pr6pria experiéncia. Isso, ao in-
vés, torna-se possivel porque em cada ato seu o homem vive
em mesmo essa passagem: sabemos o que significa dizer
si

"realizar uma poténcia" porque viver isso a partir de dentro.


O mesmo se poderia dizer a prop6sito do conceito de "cau-
sa". Exteriormente vemos somente a sucessäo dos eventos; o
que quer dizer essa "causa" o sabemos pela nossa experiéncia
interna porque a vivemos como causas eficientes das nossas
aqöes. Utilizada assim, a fenomenologia näo é autossuficiente

mas se torna uma espécie de transfenomenologia que, partin-


do do que é dado imediatamente, conduz ao limiar das reali-

dades que excedem o mero dado empirico e ao mesmo tempo


posteriormente o explicam.25

Retornemos ainda å critica da ética scheleriana para re-

velar onde, segundo Wojtyla, nasce o momento normativo da

25 Para o confronto ente Wojtyla e a fenomenologia e a ideia das transfenomenologia cf.

Rocco Buttiglione, II pensiero de Karol Wojtyla, Jaca Book, Miläo, 1982, 306-314.

• 34 •
experiéncia moral. O problema estå todo aqui: Mesmo que pos-
samos estar de acordo com Scheler que a emogäo me apresen-
ta um valor, devemos considerar que a emogäo näo me diz qual
atitude pråtica devo assumir nos seus confrontos. Pode aconte-
cer, e de fato acontece muitas vezes na nossa Vida, que sentimos
vivamente — em nfvel emotivo - a atragäo de um valor que por
vårios motivos näo deve se escolhido como regra da nossa aqäo.

Qual é, entäo, o critério que preside as nossas escolhas?


Para uma resposta precisa devemos reenviar o leitor ås anålises
desenvolvidas por Wojtyla em Pessoa e ato, especialmente na se-
gunda parte: "Transcendéncia da pessoa no ato"; agora queremos
apenas assinalå-la.fianålise da experiéncia moral mostra que as
nossas decisöes näo säo tomadas com base na forga emotiva do
16
valor, mas sobre a base da verdade delas. Segundo Wojtyla é exa-
tamente aqui que encontramos a fonte mais originåria da norma-
tiva da ética. É a verdade com a qual säo confrontadas, a verdade
que vejo e reconhego como tal que me obriga em consciéncia. O
valor me obriga näo porque o Sinto intensamente em um dado
momento, mas somente quando e enquanto o reconhego como
um valor verdadeiro. Sem esse momento normativo da verdade
näo podemos compreender profundamente a experiéncia do ho-
mem como tal. Escreve Wojtyla: "O verdadeiro poder normativo
da verdade contido na consciéncia moral, constitui quase a pedra
angular desta estrutura".26 Era exatamente este "momento de ver-
dade", como origem da normativa ética, que faltava na concepgäo
de Scheler. Wojtyla mostra, ao mesmo tempo, como a normativa
säo seja imposta å pessoa do lado de fora dela, mas nasce no seu
interior, é dada na pr6pria experiéncia: no ato de conhecimento
da verdade±esse modo, o dever moral se revela como uma ma-
nifestagäo experimental da dependéncia da pessoa da verdade.

26 K. Wojtyla, Persona e atto, cite, 1036.

• 35 •
Em outras palavras, o dever moral nasce da forga normativa da
verdade. O homem como pessoa é um ser livre — näo depende dos
objetos dos seus atos intencionais (como é no caso dos animais).
(Xliberdade da pessoa näo é, porém, uma independéncia total. A
pr6pria pessoa - e isso estå inscrito na dinåmica da sua liberdade,
que é liberdade de um ser racionalmente livre — reconhece espon-
taneamente a sua dependéncia da verdade conhecida e reconhe-
cida por si mesma. Basta um simples experimento mental para
convencer-nos da verdade dessas teses. Provemos negar diante
de n6s mesmos qualquer verdade que reconhecemos como tal.

Veremos que uma tentativa desse tipo provocaria uma ruptura,


uma espécie de contradigäo dentro de n6s: eu busco negar aqui-
NIO que ao mesmo tempo reconhego como verdadeiro. Por outro
lado acontece que fazemos isso quando, por exemplo, tal nega-
gäo nos resulta ütil. Se, porém, depois näo nos sentimos bem com
nos mesmos, se talvez sentissemos remorso na nossa consciéncia,
isso significaria que jå antes - por assim dizer in actu esercito —
nos reconhecemos como moralmente "vinculados" por esta ver-
dade (voltaremos ainda sobre este

Desse modo, Wojtyla reintroduz na ética o momento nor-


mativo que Scheler— injustamente — excluiu. Isso näo significa que
retornamos ao apriorismo de Kant. Exatamente porque o método
fenomen016gico lhe permite descobrir a normatividade dentro da
experiéncia do homem, o dever morar cessa de ser uma forma a
priori da racionalidade pråtica e se torna, por assim dizer, "o dever
moral". Dessa maneira, Wojtyla é capaz de evitar a unilateralidade
seja de Kant que de Scheler: propöe uma ética material de valores
(salvando a inståncia de Scheler), que ao mesmo tempo é uma éti-
ca normativa (preservando a inståncia de Kant).

O problema da ética nos reenvia necessariamente ao pro-


blema do homem, que segundo Kant reassume todas as ques-
töes filos6ficas. Kant escrevia: "o campo da filosofia pode nos

• 36 •
reconduzir aos seguintes problemas: O que eu posso saber?
1.

2. O que eu devo fazer? 3. O que eu posso esperar? 4. O que é o


homem? primeira questäo responde a metafisica, å segunda a
moral, å terceira a religiäo, å quarta a antropologia. Mas, no fun-
do, toda essa matéria poderia ser adscrita å antropologia, por-
que os primeiros trés problemas se referem ao quarto".27 Scheler

afrontou esse problema no seu famoso ensaio "A posigäo do ho-


mem no cosmo".2B Também Wojtyla, na abordagem das questöes
morais (no livro Amor e responsabilidade), se viu obrigado a pas-
sar a problemåtica antropolögica, que tinha exposto de modo
completo em Pessoa e ato. Naturalmente, as respostas dele säo
diferentes, Kant permanece no quadro do idealismo transcen-
dental, enquanto Scheler vai na diregäo de uma espécie de pan-
teismo. Para Wojtyla, ao invés, o problema do homem constitui

um ponto de partida para recuperar a metaffsica clåssica, vista,


porém, exatamente a partir do homem, ou seja retomando a ins-

tåncia da filosofia moderna e reintegrando-a no quadro da meta-


fisica clåssica. Como jå nos referimos no ponto de partida, o ho-
mem pöe a questäo sobre o seu proprio ser, mas a finica resposta
adequada a essa questäo consiste o questionamento radical do
ser, que encontra a sua ültima explicagäo no Absoluto do Ser.

Embora Wojtyla näo tenha dedicado nenhum estudo especial å


questäo metaffsica como tal, numerosas e interessantes dicas na
diregäo acima indicada podemos encontrå-la exatamente na te-
ologia do corpo. Escreve Säo Joäo Paulo II:

Näo se pode esquecer que exatamente este texto do livro do


Génesis tornou-se a fonte das mais profundas inspiragöes
para os pensadores que buscaram compreender o user" e

27 T.Kant, Antropologia dal punto de vista pragmaåco, organizado por P. Chiodi;


introdugåo deA. Bosi, TEA, Miläo, 1995.

28 "Aposiqäo do homem no cosmo", in La posizione dell'uomo nel cosmo e saggi,


organizado por Rosa Padellaro, "Filosofi contemporanei", volume 17, Fabbri, Milano,
1970, 153-224.

• 37 •
o "existir"... Nüo obstante algumas expressöes particula-
rizadas e plåsticas da citagäo, o homem é definido aqui
antes de tudo nas dimensöes do ser e do existir ("esse").

É definido de modo mais metafisico quefisico.29


Esse texto nos conduz para outra importante fonte do

pensamento wojtyliano.

3. O TOMISMO DE KAROL WOJTYLA / Säo Joäo Paulo II


No ponto precedente falamos da relac;äo de Wojtyla com a fe-
nomenologia. 0 relat6rio das fontes do seu pensamento seria, porém,
incompleto sem a referéncia å filosofia de Säo Tomås de Aquino. A
formulagäo do tftulo deste parågrafo sugere jå uma tese que exige

um desenvolvimento posterior. Podemos interpretå-la no seguinte


modo: Qual forma de tomismo estå presente no pensamento filos6-

fico polonés? Na linguagem metod016gica se trataria entäo da ques-


täo de complemento (question of complementation). Essa questäo —
como veremos — näo estå totalmente fora de lugar, mas penso que
se deva comegar com uma questäo mais fundamental, uma questäo
que antes de tudo coloca em questäo a mesma tese que no tftulo vem
dada como certa. Por esse motivo gostaria de comegar com a inter-

rogagäo: o Wojtyla fi16sofo pode ser considerado um tomista? Trata-


-se, uma pergunta de decisäo (decision question) e
antes de tudo, de
somente no caso de uma resposta positiva poderemos por a questäo
sobre a forma de tomismo presente em Wojtyla.

Que a pergunta acima näo estå totalmente privada de


fundamento, é confirmada pelas interpretagöes do pensamen-
to wojtyliano que foram propostas nos åltimos decénios, Que-
ro citar aqui somente uma recente. Na sua longa e interessante

29 Säo Joäo Paulo II, (Tomo e donna to creö. Catechesi sull'amore umano, Cittå Nuova
Editrice. Libreria Editrice Vaticana, 1992, 35.

• 38 •
introducäo inglesa das catequeses sobre o amor humano o Prof.
Michael Waldstein propöe a sua interpretagäo da filosofia de
Wojtyla e das suas rafzes. Vé no encontro do jovem sacerdote
com a teologia mfstica de Säo Joäo da Cruz, falando do persona-
lismo carmelita de Wojtyla que depois serå consolidado e desen-
volvido no confronto com o pensamento moderno representado
por Kant e Scheler.30 Aquilo porém que marca o leitor é exata-

mente o fato de que, nas cento e algumas påginas introdut6rias


de Waldstein, Säo Tomås é mencionado somente de passagem
e näo na ligagäo com a pr6pria filosofia de Wojtyla. No contexto
da nossa temåtica a tese subjacente parece entäo Näo se
esta:

pode falar de tomismo de Karol Wojtyla, porque Säo Tomås näo


faz parte das fontes principais as quais se inspira o pensamento
filosöfico de Wojtyla.

Para quem é ao menos um pouco familiarizado com o


pensamento de Wojtyla, esta tese aparece um tanto quanto
surpreendente, dado que nos seus escritos do proprio Wojtyla
o nome e o pensamento de Säo Tomås säo recordados muitas
vezes. É verdade, que olhamos o desenvolvimento do pensa-
mento do nosso autor, näo é diffcil observar que nos primeiros
escritos o pensamento de Säo Tomås estå presente de modo
muito mais forte e mais explicito que nos ensaios maduros. Se
tomarmos, por exemplo, o livreto Consideragöes sobre a essén-

cia do homem, que transmite as aulas dadas por Wojtyla aos es-
tudantes depois do seu retorno dos estudos romanos, veremos
que toda a reflexäo do autor é impostada sobre a tratativa do

30 Cf.John Paul II, Man and Woman He Created Them. A Theology of the Body, trans-
lation, introductionand index by Michael Waldstein, Pauline, Boston 2006. Näo estå
excluido que essa sua impostaqäo foi sugerida pela tradugäo inglesa da obra principal
de ou seja, Pessoa e ato, na qual a terminologia utilizada por Wojtyla vem
"fenomenologizada" å custa da terminologia metafisica. CE R. Buttiglione, II pensiero
de Karol Wojtyla, cit., 141-142.

• 39 •
homem presente na Summa Theologiae de Säo Tomås.31 Quan-
do examinamos as suas aulas, dadas no inicio do seu ensina-
mento na Universidade Cat61ica de Lublin, jå os pr6prios titu-
los säo testemunhas da forte presenga da inspiragäo tomista.
Esses titulos definem: "Ato e experiéncia ética", "Bem e valor",
'A questäo de norma e felicidade". Como é fåcil notar, uma parte
desses titulos reenvia sempre ao pensamento de Säo Tomås,
que vem, pois explicitamente tratado e cujas soluqöes per-
manecem para Wojtyla o ponto de referéncia na sua anålise
das impostagöes dos pensadores antigos e modernos.32 Näo é
diferente nos ensaios publicados por Wojtyla neste periodo.33
Nesses ensaios — que em medida preparam a formulaqäo
certa
da sua original concepgäo filos6fica do homem - ele se ocu-
pa das diferentes impostagöes do problema ético surgidas na
hist6ria, sobretudo dos pensadores como Hume, Kant, Sche-
ler, mas näo é dificil notar que sempre a soluqäo privilegiada é
aquela de Säo Tomås.

Por outro lado é também verdadeiro, como jå menciona-


mos, que com o passar do tempo Wojtyla chega sempre mais å
formulacäo original do seu pensamento e as referéncias explici-

tas a Säo Tomås se fazem sempre mais raras. Devemos, porém,


nos perguntar, se esse fato equivale ao total desaparecimento
da inspiragäo tomista do pensamento de Wojtyla. Ao menos em
linha de principio näo deve ser assim. O fato de que um pensa-
dor näo é explicitamente citado näo significa que a sua impos-
tagäo näo estå presente em um determinado sistema filos6fico.

Parece-me que isso acontece na filosofia wojtyiana, mesmo se,

como veremos ainda, Wojtyla näo quer simplesmente continuar

31 Cf. K. Wojtyla, Rozwaiania o istocie czlowieka, cit.

32 Cf. K. Wojtyla, Wyklady tubelskie, cit.


33 Em italiano esses escritos foram recolhidos no volume K. Wojtyla, I fondamenti
dell'ordine etico, Edizione CSEO, Bolonha, 1980.

• 40 •
e interpretar o sistema filos6fico tomista, mas em alguns pontos
se afasta da interpretagäo de Säo Tomås, ou a enriquece afron-
tando os mesmos problemas do seu ponto de vista.
Geralmente, podemos dizer que Wojtyla estå convicto de
que toda a hist6ria da filosofia moderna - de Descartes em dian-
te — que buscou fazer filosofia a partir do sujeito, näo é somente
uma grande aberracäo, um erro grosseiro que deve ser total-
mente rejeitado ou ignorado, Lendo, ås vezes, alguns autores to-
mistas do século passado se pode ter a impressäo que toda a fi-

moderna é considerada como uma via que conduz em um


losofia

beco sem saida e o ünico remédio consiste no retorno å filosofia


de Säo Tomås de Aquino tomada em seu estado puro. Näo é essa
a posigäo de Wojtyla. Ele acredita que na filosofia moderna po-
demos encontrar impostacöes vålidas que nos podem permitir
entender melhor os mesmos problemas que Säo Tomås punha
a si mesmo ou que nos revelam aspectos que näo encontramos
nas impostagöes tomistas. Como fi16sofo Wojtyla soube recolher
o semina veritatis espalhados nos diferentes sistemas filos6ficos,
porque a sua primeira lealdade näo se referia a este ou aquele fi-

16sofo, mas antes de tudo a pr6pria realidade como é dada na ex-


periéncia. Por outro lado jå que o nosso pensamento näo comega
ab ovo näo é lfcito perguntar se a filosofia de Wojtyla pertence
a uma determinada escola filosåfica e se - no caso da resposta
positiva - em que sentido ela pode ser chamada tomista?
Da presenga do pensamento de Säo Tomås no pensa-
mento filos6fico de Wojtyla jå falamos, mas vale a pena retor-
nar sobre isso ainda para entender melhor a sua abordagem
do pensamento do Aquinata. Como recorda o proprio Wojtyla,
a sua preparagäo antes de entrar no seminårio se concentra-
va sobretudo sobre a literatura, matéria que queria estudar
(e que tinha comegado a estudar na Universidade Jagellonica
de Crac6via, somente que näo tinha podido continuar os seus

. 41 •
estudos depois da explosäo da Segunda Guerra Mundial) e por
esse motivo o seu primeiro encontro com a filosofia — naqueles
anos nos seminårios se estudava a filosofia escolåstica - era
um encontro com um modelo de conceitos que a primeira vis-
ta lhe pareciam bastante intratåvel. Näo obstante a fadiga da
sua compreensäo esse estudo se revelou gratificante, de modo
que, em uma carta desse periodo Wojtyla exprime o seu estar
fascinado por uma visäo ordenada e coerente que encontrou
na metafisica clåssica. Também durante os seus estudos na
Universidade de Säo Tomås em Roma, Wojtyla teve modo de
aprofundar o seu conhecimento do pensamento de Säo Tomås,
tendo como mestre e orientador da sua tese o padre Reginald
Garrigou-Lagrange, uma das maiores autoridades nos estudos
tomisticos daquele tempo.

No seu retorno a Crac6via Wojtyla conheceu melhor uma


tentativa de atualizar a filosofia de Säo Tomås, a qual foi desen-
volvida pela assim chamada escola de Louven que na Polönia

era representada pelo antigo mestre e depois colega de Wojtyla,


padre Prof. Kazimierz L16sak, Com essa tentativa comecada pelo
Cardeal Mercier, buscou-se chegar å sintese da filosofia tomista
seja com a filosofia transcendental de Kant que com os resulta-
dos da ciéncia moderna. Mesmo se Wojtyla sempre permaneceu
interessado na pesquisa cientffica,34 jamais seguiu este modo de
"atualizagäo" do pensamento tomista. Pode se fazer a hip6tese
de que näo tenha feito isso por razöes metodolögicas, näo acre-
ditando na possibilidade de uma sfntese coerente entre as duas
impostagöes metodolögicas täo diferentes (mesmo se estava
convicto de que o fi16sofo tivesse que ser atualizado no que se
refere ao desenvolvimento da ciéncia).

34 Säo testemunhas disso os seminårios organizados por cle regularmente, primeiro em Cra-
e6via e depois — como Papa -- ern Castel Gandolfo nos quais os fi16sofos e te610gos se
encontravam com os cientistas.
A interpretagäo da filosofia de Säo Tomås, que atraiu
a atengäo de Wojtyla, era sobretudo aquela desenvolvida na
Universidade Cat61ica de Lublin da qual tinha se tornado pro-
fessor. A assim chamada escola filos6fica de Lublin inspirou-se
na interpretagäo da filosofia de Säo Tomås, desenvolvida antes
de tudo por Ettiénne Gilson e Jacques Maritain, cujos princi-
pais representantes em Lublin eram: o discfpulo de Maritain, o
Prof. Stefan Swieiawski, o Prof. Mieczyslaw Albert Krqpiec, OP,
autor de numerosos volumes que contribuiram para a difusäo
dessa interpretagäo em toda a Polönia, padre Prof. Stanislaw
Kamifiski, metod610go das ciéncias e da filosofia, que ensinou na
escola de Lublin com uma forte atengäo å questäo metod016gi-
ca. Näo é diffcil notar que também Wojtyla tinha dedicado uma
parte dos seus estudos aos problemas da metodologia da ética
e da antropologia. A outra figura da reflexäo filos6fica cultivada
na escola de Lublin é constituida pelo confronto critico com a
hist6ria da filosofia, desenvolvida na convicqäo de que os pro-
blemas filos6ficos fundamentais permanecem sempre os mes-
mos e encontram na historia do pensamento algumas questöes
essenciais que retornam sempre, novamente em diferentes ves-
tes e com novos argumentos (assim, por exemplo, o confronto
realismo-idealismo, a disputa entre objetivismo e subjetivismo,
etc. constituem uma constante de toda a hist6ria da filosofia).

Por outro lado, na visäo critica proposta pela escola de Lublin,


a filosofia näo era vista como uma forma de reflexäo critica que
se ocupa das questöes postas e näo resolvidas pela ciéncia, mas
como uma ciéncia autönoma, que dispöe do pr6prio ponto de
partida (porque parte da experiéncia que lhe é pr6pria) e do
proprio método. Nessa visäo a filosofia de Säo Tomås de Aquino
é vista sobretudo como uma filosofia do ser, isto é, como uma
metafisica. A novidade de Säo Tomås - o qual se tinha nutrido
principalmente da metaffsica aristotélica - consiste na desco-
berta do papel da existéncia no ser e assim na proposta da nova

. 43
concepgäo do pr6prio Em extrema sintese podemos dizer
ser.

que essa concepgäo consiste em assumir que a existéncia näo faz


parte da esséncia do ser contingente, mas a atualiza, lhe confere
o caråter real. Desse modo, o problema metaffsico se configura
como totalmente independente do problema cientifico e exige

uma resposta que seja adequada questäo posta pela realida-


de do ser (do seu ser dado, mas dado somente de modo contin-
gente). Em segundo lugar, a metaffsica pöe a questäo sobre as
estruturas fundamentais do ser, presentes em tudo aquilo que
existe, também no homem e isto — como ainda veremos — serå

importante na reflexäo antrop016gica de Wojtyla. Na sua filoso-

fia do homem reencontraremos os elementos da metafisica que


é pr6pria do tomismo existencial.

Näo queremos nos ocupar aqui do problema metaffsico,


mesmo porque dentro da escola de Lublin, Karol Wojtyla era
responsåvel sobretudo da ética e da antropologia filos6fica. Na-
queles anos o confronCo com o humano tinha, de resto, se tor-

nado um dos desafios principais para a cultura polonesa e para


a universidade cat61ica, dado que para todas as universidades
estatais tinha Sido imposto o marxismo. Jå que os marxistas sus-
tentavam que toda concepgäo ética e antrop016gica tivesse por
forga o caråter ide016gico, a elaboragäo da visäo do homem que
näo partisse das premissas tiradas da fé religiosa, mas da experi-
éncia acessfvel a todo homem e, ao mesmo tempo, estivesse em
sintonia com a experiéncia religiosa, defendendo aquilo que é
autenticamente humano no homem (no contexto polftico de en-
täo, sobretudo a sua liberdade de consciéncia como raiz de toda
outra liberdade), tornou-se uma tarefa de maior importåncia.
Em Lublin, era o pr6prio Wojtyla a cimentar-se com esse desa-
fio. Por outro lado ele tinha sempre permanecido marcado pela
concepgäo do ser do tomismo existencial e pela sua interpreta-
Gäo da contingéncia do ser que resulta na visäo do Ser absoluto,
de modo que em certo sentido, essa concepgäo atua como um

44 .
"horizonte transcendental" de todo o seu pensamento filos6fico.
Um dos testemunhos do seu compartilhamento da visäo meta-
fisica de Säo Tomås a encontramos no primeiro ciclo das cate-
queses sobre o amor humano, que citamos no fim do parågrafo
precedente. Quando Säo Joäo Paulo II comenta a primeira narra-
tiva da criagäo do homem se refere exatamente aos conceitos de
ser e existir (esse), de Säo Tomås. Näo é diffcil reconhecer aqui
toda a terminologia tomista que vem exatamente do tomismo
existencial e a estima pelos pensadores que souberam interpre-
tar o ser desse modo. E, depois, falando da contingéncia do ser
humano, Säo Joäo Paulo II acrescenta:

Por isso se pode dizer com certeza que o primeiro capitulo


do Génesis formou um ponto conclusivo de referéncia e a
s61ida base para uma metafisica e também para uma an-
tropologia e uma ética, segundo a qual tens et bonum con-
35

Essa ültima afirmagäo é fundamental para a filosofia de


Wojtyla, porque - como observa Rocco Buttiglione no seu es-
tudo dedicado ao pensamento do nosso autor ele lé a meta-
fisica tomista sobretudo como filosofia do bem, o que é legiti-
mado exatamente pelo axioma, segundo o qual "ens et bonum
36

Essa abordagem da metafisica revela um lado que na con-


cepgäo tradicional dos assim chamados transcendentais perma-
neceu um pouco na sombra (ou pelo menos toda dentro do al-

cance dessa afirmagäo näo foi esgotada). Dizer que o ser é bom
quer dizer que ele é querido por alguém ultimamente, que ele
é querido por Deus que com a sua vontade criadora o chama a
existéncia. Porém, se a metaffsica parte do nosso conhecimento

35 Säo Joäo Paulo II, e donna 10 creÖ, cit. 35.

36 Cf. R. Buttiglione, cit., 90.

. 45 .
comum do ser — segundo o axioma ens est primum quod cadit in
apprehensione (ST I-II, q. 94, a. 2) os transcendentais como o ver-
dadeiro, o bem e o belo näo säo dados ao sujeito que é ao mesmo
tempo ativo, que toma posigäo diante do ser, que o considera do
ponto de vista axi016gico (é um sujeito pessoal que reflete sobre o
ser como verdadeiro, bom e belo). Isso é de resto coerente com a

afirmagäo de Säo Tomås, segundo a qual o conhecimento humano


é integral: "non enim, proprie loquendo, sensus aut intellectus cog-
noscunt, sed homo per utrumque" (De veritate 2, e ad 3).37 0 sujeito
que toma tal posigäo diante do ser, é um sujeito pessoal, porque
somente a pessoa é capaz de se distanciar em relacäo aquilo que
lhe é dado e por a questäo sobre a sua verdade, bondade e bele-
za. Desse modo, dentro da metafisica clåssica encontramos uma
referéncia å experiéncia da pessoa, mas, sem essa referéncia näo
é possfvel formulå-la em toda a sua riqueza. O erro de certa fi-

losofia moderna consistia em separar o sujeito do conhecimento


da pessoa realmente dada (a partir do cogito cartesiano até o eu
transcendental de Husserl), o que conduzia a despersonalizagäo
do ponto de partida da reflexäo filos6fica e identificando-o como a
pura consciéncia fluia os vårios tipos de idealismo filos6fico. Esse
processo, näo é porém necessårio. Ao contrårio era exatamente
Wojtyla a demonstrar em Pessoa e ato que a consciéncia como tal
näo possui o caråter intencional e, por isso, näo pode agir como
sujeito conhecimento (no capftulo dedicado å solidäo original
buscaremos aprofundar este problema). Quem conhece é sempre
t uma pessoa completa, que é um sujeito real dos atos cognosci-
tivos. Se for assim, o partir do sujeito que conhece näo deve ne-
cessariamente conduzir å armadilha do subjetivismo e idealismo;
mas, a construgäo da metafisica clåssica exige o ponto de partida

37 Esse aspecto foi ressaltado por Wojciech Chudy no seu exeelente livro Rozwdj filo-
zofowania a "pulapka refleksji" (O desenvolvimento do filosofar e a "armadilha da
reflexäo"), Redakcja Wydawnictw KUL, Lublin 1993, 344-346.

. 46 •
personalfstico para constituir-se em toda a riqueza do seu conte-
üdo. Exatamente nisso consiste a tentativa, empreendida por Wo-
jtyla, de unir a clåssica filosofia do ser com a moderna filosofia da
consciéncia.A exigéncia dessa tentativa nasce, como procuramos
demonstrar, do interior da pr6pria metafisica, e ao mesmo tempo
enriquece especialmente a reflexäo filos6fica sobre o homem, que
pode se tornar assim uma verdadeira e pr6pria metafisica perso-
nalista. Essa observagäo nos conduz a um ulterior ponto da nossa
reflexäo, isto é, ao personalismo antrop016gico e ético de Wojtyla.

Em um dos seus escritos, intitulado O personalismo tomista,


Wojtyla afirma:

No sistema de Säo Tomås encontramos (...) näo somente


o ponto de partida, mas também uma série de elemen-
tos sucessivos que nos permitem examinar o problema
do personalismo segundo as suas categoriasfilosöficas e
teolögicas.38

É verdade que em Säo Tomås de Aquino o conceito de


pessoa näo aparece no tratado sobre o homem e o seu uso é
limitado ao tratado sobre a Trindade, mas isso näo nos deve
surpreender, dado que na hist6ria do pensamento o conceito de
pessoa foi cunhado para esclarecer - enquanto possivel duas
principais verdades da fé cristä: o mistério da Trindade e o misté-.

rio da Encarnaqäo. O modo de proceder de Säo Tomås justifica a )

aplicagäo desse conceito, que ele retoma de Boécio: persona est ra-
tionalis naturae individua substantia, também ao homem. Para ele
aquilo que no mundo representa uma verdadeira perfeigäo onde
encontrar-se também em Deus. Nesse contexto, ele afirma que a
mais alta perfeigäo que podemos encontrar no mundo é a pes-
soa: 'Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura"
(ST I, q. 29, a. 3). Segundo Wojtyla exatamente essa afirmagäo nos

38 K. Wojtyla, II personalismo tomista, in id., Ifondamenti dell'ordine etico, cit., 16.

• 47 •
permite falar do personalismo antrop016gico e ético do proprio
Säo Tomås, embora ele mesmo näo utilizasse esse termo. Mas,

a tratativa do homem segundo as categorias metafisicas de es-

séncia e existéncia, de matéria e forma, fornece os elementos


que nos defende contra o perigo da autonomizagäo e desperso-
nalizagäo da consciéncia da qual falaremos mais tarde. Na con-
cepgäo de Säo Tomås de fato, a consciéncia e a autoconsciéncia
na verdade näo säo senäo os atributos da natureza racional que
subsiste na pessoa. O sujeito do conhecimento e da agäo é sem-
pre a pessoa que é consciente do seu saber e do seu agir, e näo
mais a consciéncia como tal.

A pessoa vista desse modo é firmemente ancorada na rea-


Iidade, é uma subståncia concreta que realiza as suas potencia-

Iidades por meio das pr6prias agöes. Isso distingue Säo Tomås
de tantas concepgöes de pessoa desenvolvidas mais tarde, que
a definem somente por intermédio de algumas propriedades
mentais que existem ou näo existem em um homem concreto.
Essas definigöes de pessoa näo säo naturalmente privadas das
suas consequéncias pråticas: Se a pessoa é definida por meio de
algumas propriedades mentais, quem näo possui essas proprie-
dades näo é considerado pessoa e näo pode gozar do status que
cabe a quem é perfectissimum in tota natura. Se, ultimamente al-
guns fi16sofos avangaram na proposta de substituir a expressäo
"direito do homemn com a expressäo "direito da pessoa", essa
proposta fundamenta-se exatamente na concepgäo "atualistica"
de pessoa: Como pessoa com os direitos que lhe cabem pode
ser considerada somente quem possui as propriedades mentais
quais autoconsciéncia, mem6ria, a faculdade de autodetermi-
nagäo, etc. A visäo objetivista de Säo Tomås nos defende con-
tra essas propostas - cujas consequéncias säo para näo poucos
homens letais — porque, segundo essa concepgäo, todo homem
deve ser considerado pessoa em forga da sua natureza natu-

ral, que possui objetivamente, pelo fato de pertencer å espécie

. 48 •
humana (é, em que mede os atributos do seu
pois outra questäo,
ser pessoa se fazem efetivamente presentes; em todo caso a dis-
tingäo ente o atributo e a subståncia permite afirmar que a per-
sonalidade estå presente também naqueles que näo säo capazes
de exprimi-la, por exemplo, pelo fato de que näo desenvolveram
ainda determinada faculdade, näo a desenvolveram jamais, ou
perderam a sua posse).

Como veremos, a revelagäo da dimensäo metaffsica da


pessoa, o seu enraizamento ont016gico, é uma grande contribui-
gäo da concepgäo de Säo Tomås. Wojtyla aprecia isso e o retoma
em sua antropologia. No seu Pessoa e ato encontramos as ex-

pressöes que indicam claramente a inspiraqäo tomista, Ao mes-


mo tempo, porém Wojtyla cré que a concepgäo de Säo Tomås
pode ser enriquecida por algumas descobertas feitas pela filoso-
fia da consciéncia. Säo Tomås - afirma Wojtyla:

Mostra-nos as faculdades singulares, sejam espirituais que


sensitivas, gragas as quais se formam a inteira conscién-
cia e autoconsciéncia do homem, a sua personalidade em
sentido. psicolögico-moral, mas praticamente para aqui.
Portanto, em Säo Tomås vemos benfssimo a pessoa na sua
objetiva existéncia e agäo, mas é dificil reconhecer as expe-

riéncias vividas pela pessoa.39

Assim, por exemplo, Säo Tomås analisa a agäo conscien-


te da pessoa, mas näo examina a sua consciéncia da agäo. Ao
contrårio, o método fenomen016gico, adotado por Wojtyla em
Pessoa e ato, permite ao autor entrar nessa rica dimensäo da
experiéncia humana no qual o homem vive si mesmo de den-
tro como sujeito agente. Por isso "a consciéncia enquanto tal, a
consciéncia no sentido real e subjetivo, pode ser isolada na agäo
consciente, porque essa permeia profundamente toda a relacäo

39 Ibidem, 143.

• 49 •
pessoa-ato e de per si constitui dela um aspecto importante".40
Wojtyla estå convicto de que a reflexäo filos6fica sobre o homem
näo pode limitar-se å anålise objetiva - com as categorias pr6-
prias da metafisica - daquele ente especffico que é o ser huma-
no, mas deve levar em consideragäo o fato de que o homem viva
a pröpria humanidade a partir de dentro. Em um importante en-
saio, do qual jå o titulo é muito significativo: A subjetividade e a
irredutibilidade no homem. Wojtyla reivindica a necessidade de
"objetivar o problema da subjetividade do homem", recordando
ao mesmo tempo em que a subjetividade
uma espécie de termo evocativo dofato de que o homem na es-
é
séncia a ele pråpria näo se deixa reduzir nem explicar totalmente através

do género mais pröximo e a diferenga de espécie. (...) É precisofirmar-se


no processo de redugüo que nos conduz para a compreensäo do homem
no mundo (compreensäo de tipo cosm016gico), para poder compreender
o homem em si mesmo. Esse segundo tipo de compreensäo poderia ser
chamado personal(stico.41

Por esse motivo para Wojtyla a definigäo de pessoa de Bo-


écio constitui, por assim dizer, "0 terreno metafisico" que deve
ser ainda preenchido pela interpretagäo da subjetividade pesso-
al do homem. É exatamente isso que ele mesmo faz em Pessoa e
como um profundo analitico da subjetividade
ato, revelando-se

humana. E também isso que como Papa desenvolve nas cateque-


ses de quarta-feira, especialmente na anålise da segunda narra-
tiva homem. Tudo isso näo estå naturalmen-
sobre a criagäo do
te em contraposiqäo com a abordagem ao problema do homem
que encontramos em Säo Tomås, mas justamente constitui um
enriquecimento para ele. Por outro lado näo devemos esquecer
que também a subjetividade é algo que existe objetivamente no

40 K. Wojtyla, Persona e atto, cite, 867.

41 K. Wojtyla, La soggettivitå e l'irriducibilitå nell'uomo, in id.,Metgfisica dellapersona.


Tutte le operefilosofiche e saggi integrativi, cite, 1320, 1324,

• 50 •
mundo e que uma abordagem verdadeiramente realista näo a
pode deixar de fora da sua visäo do mundo.

Wojtyla foi profundamente marcado pela realidade da


pessoa — pelo seu logos e pelo seu ethos - que a pöe também
no centro da sua ética. Na formulagäo da sua ética personalista

näo hesita em retomar a formula do imperativo categ6rico de


Kant,vendo evidentemente nela uma expressäo que considera
bem a experiéncia moral do homem. A pessoa é um ser de tal
valor que vé-la em toda a sua realidade significa experimen-
tar o dever absoluto da sua afirmagäo: pessoa est affermanda
propter seipsam. Por isso a pessoa näo pode ser jamais tratada
somente como um meio, mas deve ser tratada sempre ao mes-
mo tempo como fim. Esse dever de afirmagäo da pessoa tem •

o caråter categ6rico e a agäo que dele brota é desinteressada


(em outras palavras: o ünico interesse que guia essa agäo é o
interesse no bem do seu destinatårio). Buscaremos desenvol-
ver esse aspecto ulteriormente, quando falaremos da nudez da
pessoa antes do pecado original.

Mesmo se em Säo Tomås a impostagäo geral da ética é di-


ferente - ele segue o modelo aristotélico que parte da aspiragäo
do homem å felicidade - creio que essa abordagem näo esteja
muito longe do seu pensamento mais original, expresso nesta
estupenda afirmaqäo, que jå citamos acima: Persona significat id
quod est perfectissimum in tota natura. Se a pessoa é o ser mais
em toda a natureza, isso näo significa que o seu valor näo
perfeito
pode ser instrumentalizado em fungäo de nenhum outro fim?
Creio que jå essa intuigäo de Säo Tomås fornega o fundamento
necessårio e suficiente para descobrir o seu personalismo ético.

Voltemos agora å questäo que colocamos no infcio da nos-


sa reflexäo. Em que sentido podemos falar do tomismo de Karol
Wojtyla? Parece-me que aquilo que dissemos até aqui nos leva å
conclusäo de que no caso da filosofia de Wojtyla näo podemos

• 51 •
falar de tomismo em sentido estrito. Ele tinha a sua pröpria, ori-
ginal abordagem da filosofia e para exprimi-la também elaborou
um vocabulårio totalmente pr6prio. Por outro lado, porém, ele
sempre conservou uma grande estima pela filosofia de Säo To-
mås e partilhou com ele algumas intuigöes fundamentais. Creio
que se possa dizer isso: Wojtyla - como de resto todos os gran-
des fi16sofos — näo se considerava pertencer a uma ou a outra
escola de pensamento (e, por isso podia com grande liberdade
retirar dos diferentes sistemas filos6ficos, que alguns conside-
ravam incompativeis — como a filosofia do ser e a filosofia da
consciéncia). Aquilo que interessava para ele näo eram as esco-
las e os textos de outros fi16sofos, mas a pröpria realidade tes-

tes e sistemas de filösofos lhe interessavam somente enquanto


o ajudavam a compreendé-la melhor. Nisso vejo também a sua
afinidade com Säo Tomås, o qual se limitou a repetir aquilo que
jå tinha dito Arist6teles, mas soube modificar originariamente a

sua concepgäo do ser, partindo da pr6pria intuigäo. Em todo ver-


dadeiro trabalho filos6fiCo näo basta simplesmente repetir aqui-
10 que disseram os fi16sofos. É necessårio justamente que cada
um reviva de maneira pr6pria as suas intuigöes, e que entre em
diålogo com ela enriquecendo a heranga que nos deixaram, com
as pr6prias. Somente assim permaneceremos fiéis ao espirito da
filosofia seja de Säo Tomås, seja de Karol Wojtyla.

4. A TEOLOGIA DO CORPO E A FILOSOFIA MODERNA


Comumente, admite-se que os termos do moderno deba-
te sobre a relagäo entre o espirito (mas segundo a impostagäo
filos6fica se pode falar também da alma ou da mente) e o corpo
foram estabelecidos por Descartes. Foi exatamente Descartes a
propor a solugäo do problema corpo-alma que entrou na his-

tåria do pensamento moderno sob o nome de dualismo. En-


quanto para Säo Tomås o homem é uma subståncia na qual a

• 52 •
relagäo entre alma e corpo é aquela da forma da matéria, para
Descartes o homem é composto de duas subståncias, ontolo„
gicamente independente entre elas. Uma é identificada com o
pensamento, com a consciéncia de si e, por isso é chamada res
cogitans (coisa pensante); a outra, ao invés, é constitufda pelo
nosso corpo material existente no espago e no tempo e, por
isso, é chamada res extensa (coisa estendida). Na sua tentati-

va de dar a filosofia um novo e Claro fundamento, Descartes


encontra no pensamento do sujeito uma esfera imune å prova
da düvida met6dica. Posso duvidar de tudo, mas também na
uma coisa permanece certa: o fato que es-
düvida mais radical
tou penando ("mesmo se duvido, sou"). A subståncia pensante
vem, pois, identificada com aquilo que é especificamente hu-
mano, ou seja, a subståncia espiritual.42

Qual é, entäo, a relagäo entre estas duas subståncias:


a subståncia espiritual e a subståncia material? Na realidade,
Descartes quer evitar uma relacäo totalmente extrfnseca entre
a alma e o corpo. Assim escreve na sua Sexta Meditagäo: "Eu näo
estou meramente presente no meu corpo como um timoneiro
em sua frota, mas de modo a compor uma coisa so com ele".
Ao invés, é exatamente na concepgäo cartesiana do homem
composto de duas subståncias, que essa unidade se tornou con-
Como duas subståncias
teståvel. totalmente diferentes podem
compor uma unidade e interagir entre elas? O proprio Descar-
tes teorizava a sua interagäo no cérebro, o que se torna muito
problemåtico, sendo o cérebro a parte material do corpo. É im-
portante, contudo, o fato de que partindo da coisa pensante Des-
cartes deve reconstruir a unidade do homem. Segundo muitos

42 Näo queremos analisar aqui a legitimidade dessas passagens (como a passagem do


pensamento å afirmaqäo da subståncia pensante). Vale, contudo a pena recordar que jå nos
tempos de Descanes elas foram contestadas. Uma parte consideråvel da filosofia modema
foi desenvolvida cimentando-se com este problema: prosseguindo a solugäo de Descartes ou

negando-a.

• 53 •
intérpretes do seu pensamento näo consegue fazer isso. Por isso,
a sua visäo pode ser considerada um dualismo antrop016gico.
Tem mais. O problema da relagäo entre a alma e o corpo
como tal näo nasceu na modernidade. Foi jå colocado pela filo-

sofia antiga, na qual também encontramos diferentes solugöes.


A solugäo que a primeira vista é muito semelhante ao dualis-
mo ont016gico de Descartes é aquela de Platäo. De fato, segundo
Platäo a alma vive no corpo em uma espécie de prisäo da qual
se separa depois da morte.43 Por outro lado, entre a concepgäo
de Platäo e aquela de Descartes existe uma nftida diferenga. En-
quanto para Platäo o corpo é um organismo vivificado pela alma
"nutritiva", para Descartes o corpo é um mero mecanismo (por
isso os animais näo säo mais que måquinas). Descartes, na ver-
dade, abandona a doutrina tradicional da alma como principio
vital, que encontrou a formulaqäo mais completa em Aristoteles.
como forma e ma-
Para Aristoteles a alma e o corpo säo ligados
téria, de modo que näo.pode existir um corpo humano vivente

näo organizado pela alma (dito å margem nos parece que, de


certa maneira, esta teoria metaffsica encontra a sua confirmagäo

na nossa experiéncia vivida, do corpo; buscaremos demonstrar


issono capftulo seguinte dedicado å fenomenologia do corpo).
Ao invés, em Descartes a Vida se torna um processo mecånico
que näo tem necessidade da alma. A alma cessa de ser forma
do corpo, porque na visäo filos6fica de Descartes as formas
näo existem. Ela perde assim a sua fungäo pr6pria e se torna -
como depois justamente dirå Gilbert Ryle na sua critica do du-
alismo cartesiano 'to espectro da måquina".44 Mesmo se Aris-
t6teles fala do corpo como de "um certo instrumento natural"
dado å alma, para ele esse instrumento näo se torna jamais algo

43 Cf. Platäo, Fédon, 66 b ss.


44 Cf. G. Ryale, Lo spirito come comportamento, Turim, Einaudi, 1955.

54 .
meramente material e externo (como outros instrumentos que
o homem pode usar), porque ele "tem em si mesmo o princfpio
do movimento e da quietude" 45 Para o homem, como para todos
os outros seres viventes existir no corpo näo é algo de acidental
(como, ao invés, parecia para Platäo), mas essencial, de modo
que Arist6teles pode dizer que a Vida - e se trata da Vida do cor-
po - é o pr6prio ser de um ser vivente. A formulagäo latina se

expressa: vivere viventibus esse.4å Naturalmente, para Aristoteles


a fungäo da alma se encerra em vivificar o corpo, de modo que
a sua existéncia acaba juntamente com a morte do corpo. Cer-
tamente esse fato foi um dos motivos pelos quais muitos pen-
sadores cristäos consideraram, justamente, a filosofia platonica

como aquela mais coerente com a revelagäo biblica. Foi, ao invés,


Säo Tomås a demonstrar que no åmbito da impostagäo aristoté-
lica é possfvel também defender a imortalidade da alma, susten-

tando que o homem na sua Vida corporea existe gravas ao ato da


existéncia (actus essend0 cujo sujeito é a alma. Desse modo, era
possfvel recuperar para a teologia cristä a visäo mais unitåria
do homem, aquilo que parece mais coerente com a experiéncia.

Quais säo as consequéncias do dualismo antropolögico


para a moral? Se aquilo que é verdadeiramente humano vem
identificado com a alma na sua acepgäo cartesiana, é fatal que
o corpo se torne algo de externo å verdadeira humanidade do
homem. O seu estatuto ont016gico é aquele de uma coisa priva-
da de um principio vital. Visto desse modo facilmente pode ser
tratado como um instrumento (isto é, objeto) do qual o senso
humano vem determinado pelo espfrito (isto é, sujeito). Mesmo
se vivo no corpo (e Descartes o admite sem dificuldade), eu näo
sou o corpo, mas o possuo. 0 corpo como tal fala uma linguagem

45 Arist6teles, De anima, II, 1412 b 16.


46 Ibidem, 4 415 b 13.

• 55 •
autenticamente humana, é justamente um instrumento mais
pr6ximo ao espirito, mesmo necessårio neste mundo, mas em-
bora sempre instrumento.

Naturalmente, tudo tem suas consequéncias para a proble-


måtica que nos interessa aqui, ou seja, para a compreensäo do
amor humano na sua dimensäo corp6rea, isto é, para a visäo da
sexualidade. Na sua dimensäo material a sexualidade pertence ao
corpo e partilha com ele a sorte. Ela pode servir para o escopo
da procriagäo, pode ser «usada" como instrumento de prazer, po-
rém — nesse ponto é importante para n6s — ela näo veicula em si,
desde o princfpio, o sentido verdadeiramente humano e, por isso,
moralmente vinculante. Assim na visäo dualfstica do homem a se-
xualidade se torna um mero instrumento para "usar .

Ao dualismo ont016gico de tipo cartesiano foram dirigidas


muitas criticas. Em tempos mais recentes ele foi criticado espe-

cialmente no åmbito da filosofia analftica, que parte da anålise


da linguagem e da fenonienologia, que parte da descrigäo da ex-

periéncia vivida, Näo é o caso de referir agora as vårias objegöes


dirigidas ao dualismo cartesiano. Basta constatar que em vastas
åreas da filosofia moderna o dualismo antrop016gico de molde
cartesiano parece superado. Pode-se falar enfim de um renovado
interesse na dimensäo corporal do homem, coisa que näo surpre-
ende, se consideramos uma forte posigäo antrop016gica de tanta
filosofia moderna. No åmbito da fenomenologia francesa pode-
mos recordar aqui os estudos de Maurice Merleau-Ponty,47 Michel
Henry,48 Jean-Paul Sartre49 e George Bataille50 no que se refere å
Ifngua francesa. Vale a pena mencionar também o estudo de Max

47 Cf., por exemplo M. Merleau-Ponty, II visibile e l'invisibile, Bompiani, 2007.


48 Cf. M. Henry, Incarnazione: unafilosofia della carne, Sei, Turim, 2001.
49 Cf. J-P. Sartre, L'essere e il nulla, II Saggiatore, 2007.
50 Cf. G. Bataille, L'erotismo, Miläo, Mondadori, 1969.

56 •
Scheler sobre o pudor,51 porque esse pode ser visto como um dos
pontos de referéncia na anålise do pudor primeiro no Amor e res-
ponsabilidade de Wojtyla e depois nas catequeses sobre o amor
humano de Säo Joäo Paulo II. Para Scheler somente o homem
pode provar pudor, exatamente porque ele estå, por assim dizer,
nos confins entre o mundo espiritual e o mundo material e isso se
manifesta exatamente na sua experiéncia do corpo. Entre os au-
tores de lingua alemä podemos mencionar também Arnold Geh-
len52 e Helmuth Plessnet,53 os quais afrontaram a problemåtica da
antropologia levando em consideragäo também as contribuigöes
das ciéncias empiricas sobre o homem. Todos esses estudos, em-
bora interessantfssimos, näo buscaram impulsionar além do nfvel
da consciéncia ou dos dados empiricos para chegar até as dimen-
söes da transcendéncia (ou Transcendéncia). Como nos resulta,

foi exatamente Säo Joäo Paulo, na sua teologia do corpo, a tentar


revelar os nexos mais profundos da experiéncia do corpo seja so-
bre o plano antrop016gico que te016gico.

contexto da superagäo do dualismo ont016gico digno


de uma anålise mais detalhada aparece, ao invés, o fato de que,

sempre em uma grande parte do pensamento contemporåneo


em vigor, permanece uma outra forma de dualismo que se refe-

Podemos chamå-lo dualismo axi016gico. Espe-


re å esfera moral.
cialmente no campo da sexualidade se continua a tratar o corpo
quase como instrumento para usar, näo lhe atribuindo nenhuma
verdade que precede a decisäo do sujeito e exige ser respeitada.
Instrutiva, nesse contexto, é a critica a moral sexual ensinada pelo
Magistério da Igreja, ocultada por alguns autores do assim cha-
mado biologismo — na sua moral sexual (principalmente aquele

51 Cf. M. Scheler, Pudore e sentimento delpudore, Mimesis, 2013.


52 Cf.AGehlen, L'uomo. La sua natura e il suo posto nel mondo. Mimesis, 2010.
53 Cf.H. Plessnetlgradide[l'organicoel'uomo.lntroduzioneall'antropologiafilosofica,
Bollati Boringhieri, 2006.
exposta na enciclica Humanae vitae) impöe å pessoa uma submis-
säo indevida ås leis da natureza bi016gica (no caso da enciclica

Humanae vitae se tratam das leis que presidem a procriagäo), O


homem, ao contrårio, enquanto pessoa — sujeito racional e livre
-, näo pode identificar as leis bi016gicas (que dizem como funcio-

nam determinados åmbitos do seu corpo) com as normas morais


(que se referem as suas decisöes livres): uma identificaqäo desse
tipo constituiria, exatamente, o caso do biologismo, que por sua
vez näo é mais que uma das formas do erro naturalistico, desco-
berto nos sistemas morais jå por David Hume. No erro natura-
Ifstico se trata da passagem, logicamente ilicita, das afirmagöes
descritivas ås afirmaqöes normativas. No nosso caso se passaria
entäo da descrigäo das regularidades bi016gicas, pr6prias da se-
xualidade humana, å formulagäo de norma moral que prescreva
respeitar tais regularidades. O erro naturalfstico na moral teria,

entäo, o seu paralelo na antropologia - que poderia ser chamado


"erro antropolögico" - e constituiria na redugäo da pessoa aquilo
que é natural (no sentidö bi016gico desse termo). Ainda em outros
termos, teriamos a ver com a naturalizagäo da pessoa.52
Um dos motivos que impulsionaram Säo Joäo Paulo II å
preparagäo da teologia do corpo consistia exatamente em reve-
lar e justificar ulteriormente o fundamento personalista da mo-
ral sexual e especialmente da norma da encfclica Humanae vitae.
A pr6pria encfclica é um texto bastante breve, no qual o Papa
confirma o ensinamento da lgreja, mas somente de modo muito
sucinto indica a sua justificagäo. A tarefa de tal aprofundamento
teorético cabe justamente aos fi16sofos e te610gos. Vale a pena
recordar que Wojtyla um ano depois da publicagäo da encfclica

Humanae vitae organizou em Crac6via um simp6sio dedicado

54 Mais sobre a objegäo do biologismo, cf. J. Merecki, SDS, Naturalizzazione della per-
sona o diritto naturale?, in Anthropotes 19 (2003), 3, 311-327.

. 58 .
ao ensinamento da encfclica,55 cuidou da publicagäo com o co-
mentårio preparado pelos te610gos de Crac6via56 e publicou ele
mesmo vårios textos nos quais buscava mostrar o sentido perso-
nalista do ensinamento do Papa Paulo VI.57

Em referéncia a objecäo do biologismo, dirigida pela en-


cfclica Humanae vitae, deve-se observar que existe também um
outro.58 Fazendo calar o corpo no campo moral, ou seja, privan-

do-O do sentido moralmente vinculante, näo se trata dele como


uma realidade somente bi016gica, privada do sentido especifica-
mente humano? Näo nos encontramos entäo em uma espécie de
"vazio axi016gico"? Em tal situagäo a razäo por forga deve con-
ferir ao corpo um sentido moralmente relevante, dado que näo
o pode encontrar no pr6prio corpo. Assim, no campo da ética
sexual a razäo deve se tornar axiologicamente "criativa", porque
na configuragäo sexual do corpo näo encontra nenhuma verda-
de moralmente vinculante.

Por outro lado näo devemos esquecer que a razäo por sua
natureza é receptiva. Quando se nega para ela a possibilidade de
"ler" a verdade inscrita na dimensäo mais profunda (autentica-
mente humana) do corpo, a razäo facilmente preenche esse va-
Zio axi016gico cedendo åquilo que se lhe impöe pela forga do seu
existir, ou seja, ås tendéncias naturais. Assim muitas vezes nos
encontramos diante de uma verdadeira e pr6pria heterogénese

55 Cf. T. Chmura, Ogölnopolska sesja naukowa teologöw-moralist6tv poSwiecona en-


cyklice 'Humanae vitae' [O simpösio nacional dos te610gos moralistas dedicado å en-
ciclica "Humanae vitae"J, in Analekta Cracoviensia, vol. I (1969), 452-455.
56 Ci Notificationes e Curia Metropolitana Cracoviensi no. 1-4 (1969).
57 Cf. Nauka encykliki "Humanae vitae" o milo'ci Canaliza tekstu) [O ensinamento da
enciclica "Humanae vitae" sobre o amor (a analise do texto)), in Analekta Cracovien-
sia vol. 1 (1969), p. 341-356; Prawda encykliki "Humanae vitae" [A verdade da encfc-
lica "Humanae vitae"l, in Miesi€cznik Pastorainy Plocki, no. 10-12(1969), 271-278.

58 Essa observagäo é ulteriormente desenvolvida por Andrzej Szotek, MIC, Natur — Ver-
nunft — Freiheit. Philosophische Analyse der Konzeption von schöpferischer Vernunft
in der zeitgenössischen Moraltheologie, Peter Lang Verlag, Frankfurt am Main, 1992.

59 .
dos fins. Ou seja, a tentativa de conferir ao homem o direito de
decidir pelo sentido do pr6prio corpo (contra o biologismo do
primeiro tipo), submete-o aos impulsos imediatos do corpo, näo
verdadeiramente assumidos e elaborados pela razäo. Parece-me
que esse dado de fato constitua uma das razöes do assim chama-
do pansexualismo que facilmente podemos constatar na nossa
cultura hodierna. Aponta-se — especialmente na publicidade —
sobre sexualidade näo elaborada no modo autenticamente hu-
mano, apresentada e vivida como um puro estimulo.
O problema, que se pöe neste ponto, refere-se å natureza
da razäo e ao mesmo tempo a natureza e a vocagäo do homem
como tal. O dominou a cultura moder-
conceito que largamente
na, é o conceito que Max Horkheimer tinha chamado "razäo ins-
trumental". É uma razäo que se faz eficazmente usar os meios,

mas näo é capaz de dizer nada sobre os fins. Um autor contem-


poråneo descreve assim as consequéncias de uma concepgäo
semelhante da razäo:

Enquanto o mundo se humaniza e se torna sempre mais


acolhedor para o homem, o homem se naturaliza e deriva
os seusfins sempre mais das paixöes incontroladas e sem-
pre menos de uma ideia reguladora do bem.59

Em uma concepgäo semelhante da razäo o corpo — tanto o


meu corpo quanto o corpo do outro — pode ser tratado somente
como instrumento. Qualquer vfnculo normativo que venha su-
gerido ao sujeito serå percebido com uma injustificada limitagäo
da sua liberdade.

Nesse ponto se impöe, porém, uma questäo: é licito tratar o


corpo do outro (mas também o pr6prio corpo) como um simples

59 R. Buttiglione, Plus ratioquam vis: consideragöes sobre o destino da ideia de razäo


no do século XXI, in A. Szostek, A. Wierzbicki, Codzienne pytania Antygony,
inieio
Instytut Jana Pawla II KIIL, Lublin, 2001, 145.

• 60 •
objeto de uso e do prazer? A resposta negativa que damos espon-
taneamente e essa questäo deveria, contudo, nos induzir a recon-
siderar a concepgäo da razäo instrumental. Ao menos como hipb-
tese podemos partir de uma diferente visäo da razäo, ou seja, de
uma visäo na qual — para permanecer na nossa temåtica a razäo
näo se limita a registrar as tendéncias naturais inscritas no corpo,
mas é capaz de descobrir o seu significado mais profundo e pro-
priamente humano.

É exatamente isso que encontramos na teologia do corpo


de Säo Joäo Paulo II. É preciso recordar que também na teologia
faltava uma verdade•ra e pr6pria reflexäo sobre o significado
te016gico do corpo. Naturalmente, a teologia catölica jamais
cedeu ås visöes de cunho maniqueu, na qual o corpo era visto
somente de modo negativo. Näo podia fazer isso pelo fato de
que o cristianismo acredita na ressurreigäo, isto é, estå convicto

de que o corpo näo é uma espécie de estorvo que em algum


momento deve ser deixado para trås, mas faz parte do destino
escat016gico do homem. É também verdade, porém, que seja na
teologia que na pregagäo estava sempre presente algum trago do
dualismo antrop016gico, de modo que se colocava a acentuagäo
sobretudo sobre a salvaqäo da alma, deixando o corpo um pouco
na sombra. Com a sua teologia do corpo Säo Joäo Paulo II buscou
entäo revelar o significado personalista do corpo e o seu nexo
com a transcendéncia.

• 61 •
CAPfTULO II

ELEMENTOS PARA UMA


TRANSFORMAGÄO DO CORPO

Recordamos antes as palavras de Säo Joäo Paulo II retira-

das da teologia do corpo e aquelas de Karol Wojtyla escritas em


Pessoa e ato. Escreve Säo Joäo Paulo II: "O corpo revela a pes-
soa. Essa formula concisa jå contém totalmente aquilo que sobre
a estrutura do corpo como organismo, sobre a sua vitalidade,
sobre a sua particular fisiologia sexual poderå jamais dizer a
ciéncia humana" (IX, 4). Dez anos antes, o fi16sofo Karol Wojtyla

escreveu: "O corpo humano, como é geralmente entendido, na


sua dinåmica visfvel, é terreno, e em certo sentido até mesmo
meio de expressäo da pessoa".60

Se dissermos que o corpo revela a pessoa, e se dizemos


que o corpo é terreno de expressäo da pessoa, ao mesmo tempo
assumimos que entre a pessoa - a pessoa humana, porque pelo
que sabemos no mundo em que vivemos somente os homens

60 K. Wojtyla, Metqfisica della persona. Tutte le operefilosofiche e saggi integrativi,


cit., 1091.

• 63 •
säo pessoas, e por outro lado pessoas como Deus e os anjos säo
seres puramente espirituais — e no seu corpo existe uma certa
relagäo, relaqäo também, como veremos muito intima, mas
-

näo identidade. Ser pessoa humana quer dizer existir no cor-


po, exprimir-se por meio do corpo, mas ao mesmo tempo ser
algo mais que somente o corpo. Para determinar essa relagäo no
modo mais exato buscaremos seguir o método utilizado por Ka-
rol Wojtyla no seu livro Pessoa e ato, ou seja, partiremos da des-
crigäo fenomen016gica para integrå-la, pois com a interpretagäo
metafisica. Ou seja: antes buscaremos analisar a nossa experién-
cia imediata do corpo, e depois mostraremos qual é a posigäo do
corpo na estrutura da pessoa humana.

1. O CORPO COMO SINAL DA PESSOA


No infcio citei as palavras de Säo Joäo Paulo II, segundo as
quais "O corpo revela a pessoa" e é o meio da sua expressäo. O
que queremos dizer com essas frases? O que pode acrescentar
a um fi16sofo que busca servir-se do método fenomen016gico?

Partamos das primeiras intuigöes para passar depois da


descrigäo fenomenolögica å interpretagäo metafisica. Quando
pensamos a uma pessoa, ou melhor: quando a imaginamos, aqui
que nos vem a mente é sobretudo a imagem exterior do seu corpo.
Näo nos interessa muito a estrutura interior do seu organismo,
mesmo se esta é importante para a ciéncia e um médico pode re-
conhecer a identidade de uma pessoa a partir de alguns traps
que normalmente n6s näo percebamos na nossa experiéncia co-
mum (p. ex., pelas impressöes digitais). Essa primeira intuigäo jå é
rica de conteüdo: por primeiro nos diz que espontaneamente näo
identificamos a pessoa com o espfrito (ou com a alma; geralmen-
tee. com aquilo que é espiritual), mas reconhecemos a sua identi-

dade a partir da imagem exterior do seu corpo. Essa identidade da


pessoa com o corpo na experiéncia vivida é confirmada por uma

64 •
outra intuigäo. Quando alguém toca uma parte do meu corpo, pos-
so dizer: 'tTocaste a minha mäo", mas igualmente posso também
constatar: "Tocaste-me" ou perguntar: "Quem me tocou?". Este
testemunho da nossa linguagem comum mostra que quem toca
o meu corpo näo entra somente em contato com uma "res exten-
sat', mas, näo entra em contato com uma res, alguma coisa, mas

com uma pessoa, alguém com um "eut Deveremos ainda retornar


a riqueza do presente conteådo nessa experiéncia. Å primeira
vista ela pode aparecer assaz banal, mas nela se exprime aquilo
que constitui a pr6pria esséncia do ser pessoa. Se a nossa lingua-
gem permite as duas expressöes: 'talguém toca a minha mäo" e
"alguém me toca", esse fato significa que vivemos a nossa relagäo
com o corpo segundo duas modalidades diferentes: possufmos o
nosso corpo (dizemos exatamente: o meu corpo), e somos o nosso
corpo. Na terminologia de Karol Wojtyla de Pessoa e ato diremos
que o eu é ao mesmo tempo imanente no seu corpo e transcen-
dente em relagäo ao seu corpo. O corpo — e aqui jå encontramos a
primeira dimensäo do corpo como Sinal - permite o contato ime-
diato com a pessoa do outro, constitui um Sinal que quase näo
percebemos (medium quo) no nosso contato com o outro, porque
normalmente a nossa atengäo näo se detém sobre o corpo como
objeto, mas espontånea e imediatamente a nossa atengäo se diri-
ge para a pessoa do outro, ou seja, para o sujeito. O corpo humano
näo é, entäo, objeto como os outros objetos no mundo (no Livro do
Génesis o primeiro homem sendo criado como corpo entre os ou-
tros corpos se descobre sozinho, isto é, diferente de todos os cor-

pos que o circundam), mas sendo expressäo do sujeito, que o vive


a partir de dentro, adquire ele mesmo o valor subjetivo no sentido
metaffsico desse termo. Por outro lado, o corpo de um animal näo
é somente expressäo de uma mesmo se
res; näo representa um
sujeito, näo o podemos tratar como uma simples coisa, aquilo que

infelizmente acontece nas nossas sociedades industriais; nesse


sentido a tradicional distingäo juridica entre persona e res seria

65 •
revista.61 0 animal, porém, näo tem consciéncia do seu corpo no
sentido de poder tomar as diståncias em relagäo a ele, experimen-
ta o seu corpo interiormente como experimentamos n6s, mas näo
é capaz de dizer: "Este é o meu corpo". Nesse sentido podemos
fazer a distingäo entre um ser carnal e um ser encarnado. Somen-
te os homens näo seres encarnados, porque somente o homem é
consciente do seu corpo como seu corpo.

Assim passamos ao segundo ponto. O corpo humano, pro-


priamente dito, näo é somente um organismo vivente. No nosso
conceito de corpo tem algo mais do que a simples referéncia å
Vida entendida no seu sentido bi016gico. É a ciéncia a tratar o cor-
po como organismo do qual descobre as leis pr6prias. O método
fenomen016gico nos permite, porém, mostrar que o nosso corpo
e os corpos dos outros säo percebidos por n6s näo como meros
organismos e que o conceito de organismo é justamente jå o fruto
da abstragäo cientffica. Na lingua alemä existe uma distingäo, ilu-

minadora no nosso contexto, entre o Körper e o Leib, poderemos


dizer: entre um corpo vivo e um O corpo humano,
corpo vivido.
propriamente dito, näo é somente um corpo vivo, mas um corpo
vivido por alguém a partir de dentro, por um "eu" que pode dizer:
este é o meu O principio unificante que faz do organismo
corpo.
vivente o corpo humano verdadeiro e proprio — um corpo vivido
por alguém como o seu corpo — näo pertence ao nfvel bi016gico e,
por isso, a nossa compreensäo do homem na sua corporeidade näo
pode ser confiada somente å ciéncia, mas deve chamar em causa a
filosofia e, ultimamente, como veremos, também a teologia.
Dissemos que o corpo vivido é algo a mais que um mero
organismo vivente. Essa constatagäo pode ser confirmada tam-
bém por uma outra distingäo que fazemos na nossa linguagem

61 Cf. R.Spaemann, Tierschutz und Menschenwiirde, in id., Crenzen. Zur ethischen


Dimension des Handelns, Klett-Cotta, Stuttgart, 2001, 467.

• 66 •
comum, a distingäo entre organismo e ataüde. No ataüde pode-
mos encontrar a Vida bi016gica, mas aquilo que falta é a verda-
deira e pr6pria Vida pessoal. Naturalmente, nos encontramos
naquela fronteira e ås vezes näo é fåcil dizer quando uma ge-
nuina Vida pessoal chega ao fim. Näo queremos e näo devemos
entrar aqui nessa diffcil discussäo; entretanto, em linha de prin-
cipio a distingäo nos parece Clara. Podemos dizer que o organis-
mo viveu como corpo, quando alguém o vive a partir de dentro
como o seu corpo. Por isso, a explicagäo da experiéncia do corpo
deve partir da descriGäo fenomenolågica, porque somente ela
nos då acesso ao modo no qual a pessoa vive a sua relacäo com a
sua corporeidade. Nesse sentido podemos dizer que o corpo tem
a sua natureza (a sua interioridade) näo somente biolågica, mas
também ont016gica — existe a estrutura ont016gica da pessoa da
qual faz parte também o corpo. Em outras palavras, o corpo pos-
sui a sua subjetividade näo somente bi016gica (as propriedades
e as leis indagadas pelas ciéncias empiricas), mas também a sua
subjetividade metaffsica, da qual se ocupa a filosofia. Existe, na
verdade, a estrutura objetiva da subjetividade humana, que pode
ser explorada com o método fenomenolögico seja no seu "esse"
que no seu "fieri". A anålise da segunda narrativa sobre a criagäo
do homem nos mostrarå como essa estrutura se constitui ao dis-
tinguir o homem de todas as outras coisas criadas. Em todos os
sentidos nesse momento podemos afirmar com Wojtyla:
A pertenga do corpo å pessoa humana é tüo estritamen-
te necessåria que ele entra na definigäo do homem, se näo
outro indiretamente como naquela assazfrequente 'ihomo
est animate rationale": no conceito animal estå compreen-
dido o corpo e a corporeidade.62

62 K. Wojtyla, Persona e atto, cit., 1090.

• 67 •
As primeiras intuigöes, que buscamos indicar, estäo con-

firmadas seja pelo modo em que percebemos o corpo do ou-


tro, seja pela relacäo com o nosso proprio corpo. É obvio que

na imagem exterior do corpo nem todas as suas partes tém a


mesma a mesma importåncia e a mesma fungäo. Karol Wojtyla
e depois Säo Joäo Paulo II analisou esta realidade a partir do
fenömeno do pudor sexual. Analisaremos o sentido mais pro-
fundo desse fenömeno mais tarde, mas jå agora vale a pena
assinalar aquilo que ele nos diz no que se refere å nossa per-
cepgäo do corpo. Se o homem, espontaneamente esconde os
seus 6rgäos sexuais, näo o faz, certamente, por vergonha de
possuf-los. Faz isso porque näo quer ser tratado apenas como
objeto de desejo, mas quer ser percebido e afirmado na sua
subjetividade ont016gica. O pr6prio fato de que o homem per-
ceba o seu corpo desse modo demonstra, que o vive como Sinal
do seu ser pessoa, como expressäo exterior da sua subjetivi-
dade. Naturalmente, nem todas as partes do corpo exprimem
isso da mesma maneira. Para algumas — especialmente o rosto
e os olhos — cabe um papel especial. O fato de que o homem
esconda os 6rgäos sexuais significa antes de tudo que ele/ela
quer afastar a atengäo do outro para essas partes do seu corpo
que exprimern a sua subjetividade (a sua transcendéncia pes-
soal) no modo mais imediato. No século passado era sobretudo
Emanuel Lévinas a demonstrar como no rosto humano se faga
presente a irrepetibilidade de todo ser humano e como pr6prio
encontro com o rosto do outro nos faz perceber a incondicio-
nalidade do apelo ético que emana dele.

Assim o corpo fala a sua linguagem pr6pria, a qual é, des-


de o infcio, uma linguagem pessoal. O conceito de linguagem
do corpo é hoje bastante difundido; näo é diffcil encontra livros
que falam dos significados de vårios gestos e comportamentos
humanos. Säo Joäo Paulo II o introduziu em suas catequeses
sobre o amor humano, näo se detendo somente sobre o nfvel

• 68 •
funcional (como acontece na maioria dos livros dedicados a
esse argumento), mas demonstrando dele o profundo valor on-
t016gico e moral. Todos nös compreendemos facilmente qual
estado de animo humano exprime o sorriso, uma caricia ou um
beijo. Compreendemos essa linguagem, mesmo se nos encon-

tramos em um pafs cuja lingua falada nos é desconhecida (por


outro lado uma parte dessa linguagem a partilhamos também
com o mundo animal). Näo é, entäo, uma linguagem inventada,
artificial, como as nossas linguagens faladas ou escritas, mas

exatamente uma linguagem que faz parte da natureza humana


partilhada por todos os homens. Os gestos, os comportamen-
tos humanos possuem — para dizé-la na terminologia fenome-
n016gica — o seu 'tnoema" (o seu conteüdo, comunicado) que
transmitem objetivamente, mesmo independentemente das
intengöes do sujeito, isto é, a intengäo do sujeito pode estar
de acordo ou näo com o significado objetivo do ato, mas näo
pode mudar o seu sentido objetivo. Todos n6s conhecemos a
expressäo 'to beijo de Judas" que se refere a um ato que é in-
trinsecamente falso, exatamente porque o significado objetivo
do gesto (o beijo exprime benevoléncia, amizade, amor) näo
corresponde ao estado de ånimo daquele que o realiza. 0 gesto
exprime, nesse caso, algo que o seu autor näo sente, mas é exa-
tamente o pr6prio corpo que fala. Um outro exemplo, essa vez
positivo: Nas suas catequeses de quarta-feira Säo Joäo Paulo II

mostra o significado objetivo do corpo, que chama o seu sig-

nificado esponsal e juntamente com ele o significado objetivo


do ato sexual, que significa e exprime o dom total de si a outra
pessoa e assim entra na constituigäo da nova realidade que é a
comunhäo das pessoas. Escreve o Papa:

De tal modo, a perene e cada vez mais nova "linguagem do


corpo", e näo somente o substrato, mas, em certo sentido, o
con teüdo constitutivo da comunhäo das pessoas. As pessoas
— homem e mulher se tornam por si um dom reciproco.

• 69 •
Tornam-se aquele na sua masculinidade e feminilidade,
descobrindo o significado esponsal do corpo e referindo-o
reciprocamente a si mesmos de modo irreversivel: da di-

mensäo de toda a vida.63

Nesse sentido podemos dizer que o corpo humano é uma


espécie de palavra, que comunica um noema: é uma manifesta-
Gäo sensfvel e objetiva daquilo que por natureza é subjetivo, isto

é, do "eu" humano.64 0 nosso agir no mundo näo pode prescindir


daquilo que disse o corpo, ou melhor: o pode fazer, mas com isso

mesmo ou engana o outro ou fere a sua dignidade de um outro


modo. Vemos aqui como o corpo e a sua linguagem adquirem o
valor moral. Se - como diz o conhecido principio da ética persona-

lista - persona est affirmanda propter seipsam, pela sua incompa-


råvel dignidade, a pessoa humana näo pode ser afirmada de outro
modo, senäo no seu corpo e por intermédio do seu corpo. Para dar
um exemplo: Näo se pode afirmar a sua dignidade sem afirmar
a sua Vida no corpo, exatamente porque a Vida no corpo é o seu
ser. Esse exemplo näo é por nada abstrato, dado que, nos ültimos
tempos se buscou (e se busca) justificar a legitimidade da morte
de algumas c asses e omens separando a dignidade e avida hu-
mana. A relativizagäo da Vida é, porém, por necessidade, relativi-

zagäo da pr6pria pessoa humana.65 0 sentido dos atos tipicos, nos


quais se exprime a afirmagäo da pessoa, jå é dado na estrutura do
seu corpo: afirmar a sua Vida bi016gica - dar-lhe de comer, dar-lhe
de beber, vesti-la, etc. — significa afirmar a sua dignidade pessoal.

Concentramo-nos, até agora, sobre a modalidade da rela-

gäo ao corpo que exprimimos na frase: "Eu sou o meu corpo",

63 Sio Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö. cit., 398.


64 Cf. R. Spaemann, Czyn a piekne iycie (Opoj€ciu natury czynu), [O ato e a Vida bela
(Sobre o conceito da natureza do ato)), Ethos 33-34 (1996), 31-41.
65 Para uma boa anålise desse fenömeno, cf. E. Picker, Menschenwürde und Menschen-
leben. Die Auseinanderdriftenfundamentaler Werte als Ausdruck der wachsenden
Relativierung des Menschen, Klett-Cotta, Stutgarden, 2002.

• 70 •
sublinhando a imanéncia da pessoa no seu corpo. Vale a pena,
porém, dizer ainda ao menos algumas palavras sobre outra mo-
dalidade da nossa relagäo ao corpo, expressa na frase "Eu pos-
suo omeu corpo". É verdade que quando o meu corpo estå mal,
näo sofre somente o meu corpo, mas sofro eu. Mas é igualmente
verdade que possa me distanciar no meu érgäo que sofre, posso
por assim dizer - retirar dele a minha subjetividade. Assim, por
exemplo, a amputagäo de uma parte doente do corpo näo dimi-
nui a minha subjetividade ont016gica e a minha dignidade pes-
soal. As vezes, vivo alguns estimulos que provém do meu corpo
como contrårios aos meus fins pessoais. Nem sempre aquilo de
que "me vem å vontade" é aquilo que eu verdadeiramente quero;
como recordamos, Säo Paulo distinguia entre os desejos da car-
ne que näo estäo de acordo com aqueles do espfrito.66 Creio que
na base dessa distingäo paulina esteja exatamente a experiéncia
da relagäo ao corpo de que falamos (mesmo se, por outro lado,

nos sentimos responsåveis também pelas agöes que provém "do


homem carnal" e isso é aquilo que manifesta novamente a nos-
sa imanéncia no corpo). Posso até mesmo imaginar-me como
existente em um outro corpo sem que isso signifique a perda da
minha identidade. Conhecemos a famosa historia de Franz Kafka
(A metamorfose), cujo protagonista numa manhä desperta como
um enorme inseto. "Q que aconteceu comigo?" — pensa Georg
Samsa. Entäo é sempre ele, a sua identidade pessoal näo foi per-
dida, mesmo se o seu aspecto exterior é totalmente diferente.
Aqui podemos somente acenar para essas intuicöes. Elas,
porém - presentes também nas culturas näo cristäs — demons-
tram a universalidade do conceito da pessoa que foi cunhado
no seio da teologia cristä e que exprime de modo teoricamente

66 uma rebeldia contra Deus: näo se submetem


"Portanto, as aspiraqöes da carne säo
nem poderiam submeter-se — å Lei de Deus. Os que vivem segundo a carne näo
podem agradar a Deus". Pan 8, 7-8.

• 71 •
aprofundado a relagäo do homem nos confrontos do seu corpo.
Os primeiros te610gos cristäos elaboraram a teoria da pessoa
para explicar o dado revelado. Segundo essa teoria o ser pessoa
consiste em possuir a pr6pria natureza, de modo que a natureza
divina é possufda pelas trés Pessoas Divinas e Cristo, sendo uma
Pessoa Divina, assumiu e possuiu conjuntamente duas nature-
zas: Divina ehumana. Aquilo que a teologia elaborou, partindo,
por assim dizer, do alto (isto é, a partir do dado revelado), a filo-
sofia e, especialmente a fenomenologia, pode adquiri-lo no que
se refere å compreensäo do homem - partindo de "baixo" (isto é,
a partir da experiéncia imediata; aquilo que de resto confirma,
a seu modo, a afirmagäo do Livro do Génesis sobre o homem
criado a imagem e semelhanga de Deus). É exatamente aquilo
que Karol Wojtyla prop6s no seu livro Pessoa e ato, que näo por
acaso comega com o capitulo dedicado å experiéncia. Wojtyla
demonstra que o homem é pessoa, mas ao
mesmo tempo como o
homem vive a si mesmo como pessoa. Com ele a fenomenologia
nos conduz ao limiar da ontologia e vice-versa: a ontologia ad-
quire a dimensäo fenomen016gica, experimental. Isso é demons-
trado bem em nosso caso, isto é, a anålise da relacäo do homem
com o seu corpo. Enquanto a definigäo ont016gica da pessoa
que propomos diz: "O ser pessoa consiste em possuir a pr6pria
natureza",67 nas anålises de Wojtyla essa definiqäo encontra
a sua expressäo e confirmagäo experimental nos conceitos de
autopossessäo e autodeterminagäo (o lugar dela na experiéncia
vivida serå analisado mais adiante). Exatamente possuindo a si
mesmo, exercitando o seu dominio sobre a natureza, aquilo que
é expresso na frase "Eu possuo o meu corpo" o homem vive e
realiza o seu ser pessoa.

67 Cf. R. Spaemann, Personen. Versuche über den Unterschied ztvischen "etwas und
jemand", Klett-Cotta, Stutgarten, 1996 (it. Persone. Sulla differenza tra "qualcosa" e
"qualcuno", Laterza, 2007).

• 72 •
No nosso contexto é importante, porém, considerar a dis-
gingäo dos dois pontos: fenomen016gico e ontolögico. O equivoco
da filosofia moderna — de John Locke a Derek Parfit - consiste

exatamente em ter confundido esses dois planos, identifican-

do a pessoa com as suas expressöes fenoménicas. Desse modo,


chegou-se å conclusäo de que quem näo vive atualmente a sua
relagäo de autopossessäo em relagäo ao seu corpo näo é ainda
pessoa ou jå näo o é mais Em certo sentido, podemos dizer que
a filosofia moderna — ou melhor, uma parte dela - na sua anålise
privilegiou a experiéncia da autopossessäo, deixando porém na
sombra a experiéncia da identidade da pessoa com o seu corpo.
A filosofia de Wojtyla é aqui mais realista, porque sabe que exis-
tem estruturas do homem que näo se apresentam imediatamen-
te na consciéncia, mas näo säo, por menos reais. Por isso,
isso,

na citagäo apresentada no infcio da minha intervengäo, Wojtyla


fala do corpo como "meio de expressäo da pessoa", consideran-
do que a pessoa humana é sempre conjuntamente imanente no
seu corpo e transcendente em relagäo a ele.
E verdade que, em determinados casos, sobre o plano
experimental, a estrutura de autopossessäo pode ser reduzida,
aquilo que Wojtyla descreve com o conceito de desintegragäo. Em
tal situagäo a pessoa näo é capaz de exercitar plenamente a sua
faculdade de autopossessäo por razöes sobre as quais näo tem
controle (p. ex., por causa de uma doenga). Mesmo nesse caso a
fundamental modalidade da relagäo com o corpo expressa na fra-
se: "Este é o meu corpo", näo deixa de existin Também uma pessoa
embora o corpo, justamente, impeca a
paralisada a pode repetir,
expressäo da sua subjetividade. Por outro lado, nenhum de nos
tem o pleno controle sobre o proprio corpo e para cada um ele

pode revelar-se também um instrumento de alienagäo. Posso per-


der o controle sobre uma parte do corpo da qual normalmente o
homem possui o controle. A experiéncia mais evidente da aliena-
gäo por meio do corpo é a morte. O sujeito näo é capaz de parar

• 73 •
o processo do progressivo esgotamento das forgas vitais e uma
vez que o seu existir sobre a terra se identifica com a Vida do cor-

po, isso significa quecom a morte do corpo a pessoa perde a sua


existéncia. Porque eu sou o meu corpo, com a morte do corpo näo

sou mais. A outra modalidade da minha relagäo com o corpo: "Eu


possuo o meu corpo", indica ao menos a possibilidade de existén-
cia também além da morte corporal, coisa que a filosofia - se quer

verdadeiramente responder as questöes do homem - näo pode


deixar inexplorada. Aqui näo é o lugar para prosseguir essa in-
dicagäo. Podemos, contudo, dizer que enquanto os pensadores
como Platäo privilegiam a experiéncia da posse do corpo e, por
isso, falam da morte no sentido de libertagäo das limitagöes que
a existéncia no corpo necessariamente comporta ("o corpo como
pöem a énfase justamente sobre
prisäo da alma"), outros fi16sofos
a identidade do homem com o seu corpo: eu sou o meu corpo,
identificando a morte do corpo com a morte da pessoa.

Neste ponto queremos acrescentar uma observagäo. Por


meio do nosso corpo n6s nos experimentamos como inseridos
no mundo. De alguma maneira o corpo participa de toda nossa
experiéncia, gracas ao corpo entramos em contato experimental
com o mundo. As coisas do mundo se tornam objetos da nossa
percepgäo intencional (da intencionalidade do conhecimento do
homem falaremos mais no capitulo seguinte). É preciso, porém,
salientar, desde o infcio, que a nossa relagäo com o mundo näo
é somente teorética, mas também pråtica, Näo podemos expe-
rimentar como perceba os objetos os seus atos intencionais um
espfrito privado do corpo, mas podemos certamente dizer que
a sua percepgäo é diferente da nossa. O nosso corpo é dotado
de inclinagöes, ou melhor, das inclinagöes, dado que, no caso do
homem, o instinto näo é uma lei que esteja totalmente fora do
nosso controle. Podemos nos distanciar em relagäo aos nossos
instintos e escolher o modo no qual queremos (ou näo quere-
mos) satisfazé-los. Por isso podemos dizer que o homem tem

• 74 •
necessidades que säo enraizadas na estrutura do seu corpo, mas
no seu caso essas necessidades se tornam desejos. O homem de-
seja satisfazer o seus instintos (e é melhor que esses sejam sa-
tisfeitos), mas nem todos os modos em que eles podem ser satis-
feitos parecem dignos de ser continuados. Existem modalidades
de satisfagäo dos instintos que poderemos, justamente, chamar
näo humanos (mesmo se os atos correspondentes säo realiza-

dos pelo homem). Por exemplo, näo consideramos o corpo de


um outro ser humano como um possfvel objeto de nutrigäo e do
estupro diremos que é exatamente o modo näo humano de satis-
fazer o instinto sexual. Esse modo de falar indica que o mesmo
conceito de homem é usado seja no sentido descritivo que nor-
mativo. Falar do homem implica jå de per si uma dimensäo mo-
ral que se refere também ao modo no qual o homem vive a sua

corporeidade (desenvolveremos estas intuigöes no capitulo V).

No nosso contexto é importante a conclusäo: o corpo é


para n6s um instrumento de percepgäo e de desejo. Por inter-
médio do corpo a nossa relacäo com o mundo é conjuntamente
cognitiva e pråtica: conhecemos os objetos do mundo e os de-

sejamos. As cosias atraem a nossa atengäo (nos parecem boas),


porque respondem aos nossos desejos que - ao menos em par-
ste - säo enraizados nas inclinagöes fundamentais do corpo: no
instinto de autoconservaqäo e no instinto sexual. O corpo possui
uma estrutura tele016gica - é protegido de alguma coisa, algu-
mas coisas lhe servem, outras lhe fazem mal. Esse fato deter-

mina, naturalmente, o nosso comportamento cognitivo e pråtico


em relagäo ao mundo. Na linguagem da filosofia medieval po-
deremos dizer que o mundo adquire desse modo a sua dimen-
säo axi016gica, a qual vem expressa no conceito de apetecfvel:
"bonum estappetibile". Se esse é o ünico modo pelo qual o homem
se relaciona com o bem, é outra questäo. Buscaremos aprofun-
då-la mais tarde.

• 75 •
Concluindo as nossas anålises desenvolvidas até aqui: o
estatuto fenomenolågico do corpo nos foi revelado como aquele
do Sinal e expressäo do eu humano; por outro lado, ao contrå-
rio, vimos que o seu estatuto metaffsico, åquele que pertence
å dimensäo do ser, consiste naquilo que para a pessoa humana
significa existir, ou seja, viver no corpo. Agora queremos entäo
acrescentar a dimensäo te016gica que é de resto sugerida pela
pr6pria metafisica.

2. O CORPO COMO SINAL DA IMAC,EM DO CRIADOR


É a metaffsica que nos conduz para uma ulterior dimensäo
do corpo humano, uma dimensäo que nos reenvia ao Absoluto
da existéncia. Se o homem existe e, ao mesmo temo, necessaria-
mente, näo existe, dado que a sua existéncia näo faz parte da sua
esséncia (é isso que a filosofia clåssica descreve com o conceito
de contingéncia), entäo a metafisica pode explicar esse fato so-

mente reenviando ao Absoluto da existéncia que quis compar-


tilhå-la com outros seres por Ele criados. Vale, porém, a pena
Qbservar que„ nascatequeses de Säo Joäo Paulo II sobre o amor
humano, o conceito da contingéncia adquire o valor fenomeno-
16gico nos conceitos dom e da doagäo, Na verdade, sobre o
do
plano experimental o homem descobre e vive a sua contingén-
cia — o seu ser e o seu näo dever ser - como dom de quem quis

chamå-lo å existéncia. Escreve Säo Joäo Paulo II:

Por isso a criagäo, como agäo de Deus, significa näo somen-


te chamar do nada å existéncia e o estabelecer a existéncia
do mundo e do homem no mundo, mas significa também,
segundo a primeira narrativa "beresit bara; doagäo, uma
doagäo fundamental e "radical t ou seja, uma doagäo na
qual o dom surge exatamente do nada.68

68 Sao Joäo Paulo IT, Como e donna 10 creå. cit., 73.

• 76 •
Nessa perspectiva também o corpo, na sua configuragäo
masculina e feminina, adquire a dimensäo do dom (a partir do
momento em que a pessoa näo o cria, mas o descobre como jå

dadoepropriamente doado, mas como o primeiro dom, porque


com dom da existéncia — como vimos, no mundo a pes-
idéntico
soa humana existe somente no corpo) que a pessoa é chamada
a aceitar e desenvolver segundo o desfgnio originårio inscrito
nele desde o principio pelo Criador.

Passando å dimensäo propriamente te016gica, devemos


antes de tudo recordar as palavras do Livro do Génesis sobre
o homem imagem e semelhanga de Deus. Se o homem,
criado å
como tal, é a imagem de Deus no mundo visfvel, entäo o corpo,
que revela a pessoa, que é o Sinal sensivel dele, revela-se como
Sinal do sinal, imagem da imagern. Tudo isso no contexto teo-

16gico nos faz pensar na nogäo de sacramento, que foi definido


exatamente como Sinal visivel da realidade invisivel. Essa intui-
gäo é de resto sugerida pelo pr6prio Joäo Paulo II, que nas cate-
queses sobre o amor humano escreve:

O sacramento ou a sacramentalidade — no sentido mais

geral desse termo - encontra-se com o corpo e pressupöe


a "teologia do corpo". O sacramento, na verdade, segundo
o significado geralmente conhecido, é um "Sinal visivel". O

"corpo"significatambém aquilo que é visivel, significa a "vi-


sibilidade"do mundo e do homem. Portanto, de alguma ma-
neira — mesmo se maisgeral — o corpo entre na definigäo do
sacramento, sendo ele "Sinal visivel de uma realidade invisi-
vel',' isto é, da realidade espiritual, transcendente, divina.69

Nesse sentido podemos ver no corpo até o sacramento


primordial, originårio, um tangivel e eficaz Sinal da presenga de
Deus no mundo. Na verdade, no seu ensaio sobre o fundamento

69 Tbidem, 345.

• 77 •
sacramental da existéncia cristä, Joseph Ratzinger fala dos sa-
cramentos originårios (Ursakramente) ou "sacramentos da cria-

gäo" (Shöpffungssakramente), sublinhando que:

O sacramento na sua forma histörico-universal 4 portan-


to, em primeiro lugar expressäo da experiéncia que Deus
encontra o homem de maneira humana: nos sinais da co-
munhäo humana e na transformagäo daquilo que é pura-
mente bi016gico em algo de humano que, no ato religioso,

experimenta a sua transformagäo em uma terceira dimen-


säo, a garantia do divino no humano.70

0 autor indica quatro momentos da Vida humana nos quais


estes sacramentos originais se fazem especialmente presentes: o
nascimento, a morte, a refeigäo e o ato sexual. Näo é diffcil no-
tar que todos esses momentos estäo ligados ao corpo, que nessa
perspectiva pode ser vistocomo um verdadeiro e pr6prio pré-
-sacramento. Por outro lado também a justa compreensäo dos
sacramentos entendidos em sentido estrito näo é possfvel sem
o pressuposto da compenetragäo entre aquilo que é material e
aquilo que é espiritual. esses dois componentes do ser humano
forem estritamente separados, isto é, se se assume uma espécie
de dualismo antrop016gico, se chega facilmente å tese de Bult-
mann, segundo o qual o espfrito näo pode ser nutrido material-
mente, ou seja, se mina o fundamento da pr6pria teologia sacra-

mental. Somente se o espfrito se exprime materialmente, somente


se o corpo material é expressäo e revelagäo da pessoa espiritual,
podemos verdadeiramente encontrar Deus nos sinais materiais,

entre os quais o primeiro Sinal natural é o pr6prio corpo humano.

"Gloria Dei vivens homo" - escreveu Santo Irineu. O ho-


mem - como vimos - é vivente somente no seu corpo. Por isso, a

70 J. Ratzinger, II fondarnento sacramentale dell'esistenza cristiana. Quereniana,


Brescia, 20052, 20-21.

• 78 •
afirmaqäo da g16ria de Deus mundo visivel näo pode prescindir
da afirmagäo do homem na sua corporeidade.
Concluindo essa parte das nossas anålises, podemos dizer
que nelas o corpo apareceu como um dåplice sinal: o Sinal da pes-
soa e ao mesmo tempo o Sinal visfvel da invisivel glåria de Deus.

• 79 •
CAPfTULO Ill

A SOLIDÄO ORIGINAL:
GENESE DA PESSOA

Dissemos que na origem da pesquisa filos6fica estå å ques-


täo do homem acerca do seu pr6prio ser. O homem, que vivendo
no corpo experimenta a precariedade do seu existir sobre a ter-
ra, pöe a questäo sobre o principio da sua existéncia e näo pode
responder a essa questäo, se näo puser outra questäo, ainda mais
radical - a questäo sobre o princfpio de toda a realidade, ou seja,
a questäo metafisica. Dito de outro modo: na sua Vida o homem
experimenta vårios tipos de contingéncia - contingéncia fisica,

que é ligada a estrutura especial do seu corpo, que ele contro-

la somente parcialmente, contingéncia cognoscitiva, visto que o


seu conhecimento é susceptfvel aos erros, contingéncia moral,
que Ovfdio expressou na frase Video meliora provoque, deteriora
sequor. A forma mais radical da contingéncia é, porém, aquela
existencial, pelo fato de que o homem näo possui plenamente a
sua existéncia e ultimamente näo pode näo perdé-la. Por outro
lado, a pr6pria contingéncia existencial refere-se a todo o mun-
do que existe, mas näo possui o princfpio da sua existéncia em
si mesmo. A resposta å questäo antrop016gica näo pode entäo
(9

• 81-.
prescindir da questäo metaffsica, da pergunta radical sobre o
ser. Na sua teologia do corpo, Säo Joäo Paulo II responde a essa
questäo partindo "do princfpio", que na sua reflexäo possui seja
o sentido te016gico que aquele filos6fico. Buscaremos aprofun-
då-los no primeiro ponto deste capftulo.

Para Säo Joäo Paulo II o principio possui näo somente o


valor metaffsico, mas também fenomen016gico. Na verdade, do
ponto de vista fenomenolågico a experiéncia do homem antes
do pecado original (isto é, na situagäo do seu principio te016-
gico) aparece como particularmente rica de conteådo. Poderia
se dizer que exatamente aqui nos tornamos quase testemunhas
oculares da génese da pessoa, isto é, do modo no qual se cons-
tituem as fundamentais estruturas pessoais e do modo no qual
o homem toma consciéncia dela. Todas as outras experiéncias
originais do homem säo relevantes para a sua fenomenologia,
mas no que se refere o constituir-se pela pessoa como tal, a im-
portåncia particular cabe.å solidäo original. Ela serå objeto das
nossas anålises na segunda parte deste capftulo.

1. O SIGNIFICADO DO prurqcimo
No seu diålogo com os fariseus, Cristo, por duas vezes
se refere ao princfpio. pergunta deles, se fosse lfcito para o
homem repudiar a pröpria mulher, Cristo responde que no prin-
cfpio o Criador os criou macho e fémea - indicando com isso a

original diferenga sexual — e que no matrimönio se tornam "uma


s6 carne". Å objecäo dos fariseus, os quais fazem referéncia å au-
toridade de Moisés, que permitiu dar para a mulher a carta de
div6rcio, Cristo, pela segunda vez invoca o principio, indicando a
dureza do coragäo como razäo dessa concessäo de Moisés, mas
dizendo ao mesmo tempo em que "no principio näo era assim"
(cf. Mt 3,195).

• 82 •
Qual é, entäo, o significado do principio ao qual se re-
fere Jesus? Na teologia do corpo "o princfpio" assume seja o
que aquele filos6fico. Naturalmente aqui
significado te016gico
nos interessamos mais no sentido filos6fico do principio, mas
vale a pena dizer algumas palavras também a prop6sito do seu
significado te016gico. Na perspectiva te016gica a referéncia ao
principio reenvia aos primeiros capitulos do Livro do Génesis,
os quais falam da criagäo do mundo. Voltar ao principio signi-
fica entäo, partir, na nossa visäo do homem, do ato criativo de
Deus e da situagäo de inocéncia que precede o pecado origi-

nal. Nesse sentido retornar ao principio significa - teologica-=


mente - que, na nossa visäo do homem, buscamos reconstruir
o designio original de Deus sobre o homem, que antes do pe-
cado foi vivido por ele na sua plenitude. A indicagäo de Jesus
recorda que o desfgnio divino precede a lei humana (no nosso
caso a permissäo de Moisés é devida å "dureza do coracäo")
e também na situagäo historica do homem mantém a sua vali-
dade e normativa.

Tudo isso possui também o seu significado filos6fico.


Na filosofia a referéncia ao desfgnio divino que precede a lei
humana pode ser Iida como prioridade da lei natural sobre a
lei positiva. Se a lei estabelecida pelos homens näo estå funda-

mentada sobre algo que a precede, que constitui a sua medida,


ela se torna facilmente a expressäo do poder, seja individual,
seja coletivo. É um fato bem not6rio que a lei, mesmo aquela

partilhada pela maioria, pode ser injusta. A lei positiva é boa,


se apoia sobre a justiqa, e aquilo que é justo ou näo justo näo
deriva das decisöes do homem, mas daquilo que o homem é;

na linguagem clåssica se diz: da sua natureza. Para respon-


der sobre a questäo sobre a justiga de uma determinada lei,

como primeira coisa, indagar a pr6pria nature-


é necessårio,
za do homem, ou seja, é preciso responde a questäo: Quem é
o homem? Se o direito natural serve como medida do direito

• 83 •
positivo, entäo podemos dizer que do ponto de vista filos6fico
estamos na pesquisa do principio do direito - mesmo aquele
que faz referéncia ao matrimönio e a familia.

Isso somente é possfvel quando se estå convicto de que essa


natureza é racional, ou seja, que estå presente na natureza - como
dizem os filösofos contemporåneos — um inteligent design. Na mo-
dernidade, ao invés, com a teoria da evolugäo, uma grande parte
da filosofia e em geral chegou a convicgäo de que a na-
da cultura
tureza näo continha em si nenhuma mensagem, näo fosse racio-
nal mas reduzida somente ås leis ffsicas. No infcio estaria como o
formula Richard Dawkins — 'turn relojoeiro cego" (é provavelmente
por acaso, mas um acaso significativo, que essa expressäo recorda
o titulo do primeiro drama de Wojtyla: A loja do ourives, na qual o
ourives näo é por nada cego, mas é ele que conhece toda a verdade
sobre o homem). Com essa convicgäo, o problema do direito näo
estå, porém, resolvido, mas ainda mais radicalizado. Jå nos anos
sessenta do século passadp E. W. Böckenförde escrevia que o Esta-
do liberal repousa seus pressupostos que ele pr6prio näo é capaz
de garantir71 e ultimamente o mostraram muito bem Jürgen Ha-
bermas e Joseph Ratzinger em seu diålogo sobre os Fundamentos
morais e pré-politicos do Estado liberal.±

Ao reenviar para o princfpio, um fenomenölogo como Wo-


jtyla podia ver presente, mesmo implicitamente, o postulado
husserliano de voltar ttås pr6prias coisas". Retornar ao principio
quer dizer entäo partir da experiéncia original no sentido fi-

los6fico desse termo, ou uma descrigäo da


seja, buscar fornecer
experiéncia maximamente livre dos elementos teoréticos. Como
jå vimos, para o fi16sofo Wojtyla, o retorno ao principio, nesse

71 E. W. Böckenförde, Die Entstehung des Staates als Vorgang der Sükularisation


[1967) in Recht, Staat, Freiheit, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1991, 112.

72 J.Habermas, J. Ratzinger, I fondamenti morali e prepolitici dello Stato liberale,


Humanitas, 2 (2004), 232-260.

84 •
sentido, constitufa um elemento essencial de toda auténtica fi-

losofia, mesmo de toda genuina filosofia do homem. Nesse sen-


tido, o postulado de retornar ao principio significa, por assim
dizer, buscar deixar falar as pr6prias coisas.73 Na fenomenologia
se trata, antes de tudo, de deixar fora os pressupostos teoréticos
(que provém seja da ciéncia seja da filosofia) e buscar descre-
ver o nosso "modo de Vida" (Lebenswelt). O mundo em que vive-
mos näo é o mundo de que nos falam a fisica e a biologia, mas o
mundo da nossa experiéncia imediata. Falando da experiéncia
do corpo vimos como nessa experiéncia o corpo se apresenta,
ante de tudo, na sua imagem exterior (e näo em vårios - embora
importantissimos — aspectos que säo investigados, por exemplo,
pela genética).

também de descrever como este modo de Vida é


Trata-se
dado na consciéncia do homem, porque somente por meio da
consciéncia é que podemos saber alguma coisa (isto é, trata-se
de descrever aquilo que é dado e como é dado — ao tema da cons-
ciéncia retornaremos ainda neste capitulo). O fi16sofo que retor-
na "as pr6prias coisas" deve buscar descrever o mundo em toda
a sua riqueza, nos diferentes aspectos, aproximar-se das coisas
por vårios pontos de vista. Esse estilo de filosofar o vemos bem
no modo no qual Wojtyla (e depois Säo Joäo Paulo II) desenvol-
ve a sua reflexäo. Ela se desenvolve muito tranquilamente, sem
pressa, o autor retorna ao mesmo argumento diversas vezes,
quase se näo quisesse deixar inobservado nenhum dos seus
aspectos. Poderia se dizer que faz multiplices aproximagöes ao
objeto do seu estudo antes de propor a sua explicagäo teorética.
Nesse sentido parte da origem, do princfpio.

73 Podemos ver que a fllosofia é aqui o exato oposto da ideologia que parte exatamente
de uma série de opiniöes que näo estå disposta a colocar em discussäo. No contexto
da ideologia marxista, na qual Wojtyla desenvolvia a sua filosofia do homem, a énfase
colocada sobre a experiéncia tinha adquirido um significado especial.

• 85 •
Na filosofia, "principio" significa näo somente um retorno
is fontes, ao infcio, mas também a busca daquilo que é essencial,
que além daquilo que se apresenta imediatamente, significa
vai
buscar a esséncia mais profunda do ser - no nosso caso do ser
humano, significa buscar a sua arché. Na fenomenologia o postu-
lado de ir ao essencial encontrou a sua expressäo na assim cha-
mada "variagäo eidética", na qual o fi16sofo busca identificar os
elementos de um determinado sen sem os quais ele deixaria de
ser si mesmo. Nesse sentido podemos dizer que, na sua teologia
do corpo Säo Joäo Paulo II com a ajuda da filosofia do homem
desenvolvida jå antes — procura identificar estes elementos es-
séncias do ser humano e ao mesmo tempo aquilo que é um
outro passo - de lhe dar a interpretagäo que vai além da des-
crigäo fenomen016gica, ou seja, propöe uma forma daquilo que
chamamos de t'fenomenologia". No caso da teologia do corpo, a
transfenomenologia transcende a descrigäo inicial para a inter-
pretagäo seja metafisica seja teolögica dos dados que o fi16sofo
encontrou na experiénCia.

A palavra grega "arché" nos reenvia, naturalmente, tam-


bém para os infcios da reflexäo filos6fica que tinha partido, exata-
mente, com a questäo acerca da arché da realidade. Os primeiros
fi16sofos gregos se interrogavam sobre o substrato primitivo de
tudo aquilo que existe, dando vårias respostas a essa pergunta.
Por exemplo, Tales via esse substrato primitivo na ågua, Heråclito,
no fogo, Anaxfmenes no ar e assim por diante. Nos expoentes do
pensamento grego - em Platäo e Aristoteles - a filosofia chega å

visäo muito sofisticada do mundo e do seu principio, chegando,


desse modo, a ideia muito refinada de Deus (näo é por acaso que
a teologia cristä dos primeiros séculos tinha entrado no frutuo-
so diålogo näo tanto com a religiäo grega, mas exatamente com a
filosofia). Na visäo de Platäo, Deus é entendido como Demiurgo
que ordena o mundo segundo as ideias, que säo eternas. Gragas
ås agöes de Deus-Demiurgo, a matéria da sua originåria condiqäo

86 •
ca6tica é transformada em um cosmos. Hierarquicamente, porém,
esse Deus é inferior ås ideias, elas näo säo feitas por ele, assim
como a matéria näo é o fruto da sua intervengäo criativa. Em
Aristoteles encontramos uma concepgäo muito elevada do Ab-
soluto, que ultimamente é identificado com o Pensamento que
pensa a si mesmo (noesis noeseos), dado que na visäo aristotélica

a atividade racional é uma atividade, a mais perfeita que possa


existir. Esse Pensamento constitui o vértice de todo o universo,
é absolutamente perfeito e autossuficiente: é o ato mais perfeito
(pensamento) da faculdade mais perfeita (a razäo) nos confron-
tos do objeto mais perfeito (o pr6prio Absoluto). Mas exatamente
a causa da sua perfeigäo, o Absoluto, permanece fechado em si

mesmo. Mesmo se atrai todas as esferas celestes, o Absoluto näo


se interessa pelomundo e nem mesmo pode interessar-se por ele,
porque isso significaria para ele uma imperfeigäo.

Aquilo que é importante no nosso contexto é a constata-


gäo de que para toda a filosofia grega o mundo näo foi criado e
Na visäo biblica, porém — como
a matéria existe eternamente.
vimos no caso de Santo Tomås - conduziu ås mais profundas
intuigöes metaffsicas seja naquilo que se refere å origem do cos-
mo, seja naquilo que se refere å estrutura öntica do ser, Deus
é criador no sentido mais radical da palavra "criar" (de fato, a
expressäo hebraica beresit barra é utilizada somente para expri-
mir esse ünico modo de agir divino, que näo pode ser repetido pelo
homem — o homem näo é capaz de criar assim). O Deus bfblico
näo tem necessidade da criagäo, o criado näo é entendido como
uma das emanagöes da divindade. Deus cria porque é bom e o
bem quer ser partilhado - segundo o adågio medieval: Bonum est
diffusivum sui. Escreve Joäo Paulo II.

O conceito da criagäo tem em si toda a profundidade näo


somente metafisica, mas também plenamente teolögica.

Criador é aquele que "chama do nada å existéncia'; e que


estabelece na existéncia o mundo e o homem no mundo,

• 87 •
porque Ele é amor (IJo 4,8). Para dizer a verdade, näo en-
contramos essa palavra amor (Deus é amor) na narrativa
da criaqäo; todavia essa narrativa repete muitas vezes:
'Deus viu o que tinhafeito, e eis que era uma coisa muito

boa". Através dessas palavras nös cornegamos a perceber


no amor o motivo divino da criagäo, quase a fonte de onde
ela brota: na verdade, somente o amor då infcio ao bem e
se compadece do bem (cf. 1 Cor 13).74

Nesse sentido, retornar ao principio entendido como o ato


da criagäo significa ver todo o criado na 6tica do dom. O mundo
— eo homem no mundo - existe näo por necessidade, mas por-
que querido pelo Criador. A contingéncia do ser encontra a sua
Ültima explicagäo na dimensäo pessoal: no ato em que se revela
a bondade de Deus. De resto, como mencionamos falando da fi-

losofia de Säo Tomås, na visäo metaffsica, segundo a qual ens et


bonum convertuntur essa referéncia å pessoa jå estava presen-
te. 9 ser é bom, porque permanece em relagäo com a vontade

d'Aquele que quis chamå-lo do nada å existéncia. Encontramos


aqui, novamente, o método adotado por Wojtyla em Pessoa e ato.
A pessoa se revela no ato e por intermédio do seu agir podemos
conhecer — dentro de alguns limites - a sua interioridade. Deus
também se revela no seu agir, mas, é essa a sua primeira revela-
qäo que precede aquela registrada na Escritura.

Ainda teremos a possibilidade de ver como o conceito de


dom, que descobrimos aqui na sua acepgäo metaffsica, seja fun-
damental para entender as mais significativas relagöes pessoais,
sobretudo matrimönio e familia que, na sua natureza mais pro-
funda outro näo säo que comunidade do dom. Nessa visäo tam-
bém o proprio homem aparece como dom - existe, mas näo ne-
cessariamente, existe porque a sua existéncia lhe foi dada, doada.

74 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö. cit., 72-73.

88 •
Consequentemente, se poderia afirmar que todo homem pode
descobrir uma doagäo no simples fato do seu existir. Cada um foi
doado a si mesmo e, nesse sentido, também confiado a si mes-
mo. Descobrindo a sua existéncia como dom do Primeiro Doa-
dor, o homem vé que para responder adequadamente ao Doador
deve ter cuidado desse bem que é ele mesmo, que - também na
sua estrutura öntica é aquela de autopossessäo näo pertence
somente a si mesmo.75 Nesse ponto parece muito apropriada a
observagäo de Robert Spaemann, segundo o qual "ética e metaff-
Sica säo constitufdas uno actu". Spaemann, na verdade, sustenta
que ver um ser como alguma coisa que näo faz somente parte do
meu ambiente, mas existe em
mesmo (Selbstsein), comporta
si

junto uma tese metaffsica (as coisas do mundo näo säo a minha
constituigäo, mas existem independe de mim e possuem a sua
estrutura pr6pria que eu näo crio, mas descubro), é uma tese
ética (vejo o modo no qual devo comportar-me para respeitar a

verdade das coisas).76 Com Säo Joäo Paulo II podemos ao invés


acrescentar que na pröpria metafisica existencial de Säo Tomås,
quando ela vem Iida å luz da hermenéutica do dom, jå estäo pre-
sentes os fundamentos mais profundos de toda ética. Por outro
lado, a ciéncia moderna, por causa da sua impostagäo metod016-
gica, näo pode jamais alcangar aquele ponto. As teorias cosmo-
16gicas ou a teoria da evolugäo säo sem düvida instrumentos pri-
vilegiados e nos conduzem longe na nossa tentativa de conhecer a
origem do mundo e do homem, mas param, no måximo, no limiar
da questäo metafisica. Näo obstante vårias tentativas de reduzir
a filosofia å metodologia da ciéncia ou å generalizagäo dos seus
resultados (diferentes formas de ceticismo ou minimalismo filo-

s6fico), a questäo, que se refere å pr6pria existéncia do universo

75 Cf. T. StyczefiSDS, Czlowiek darem [O homem como doml, in "Znak" 34 (1982)


n. 330, 339-362.

76 Cf. R. Spaemann, Felicitå e benevolenza, Vita e Pensiero, 1998.

89 •
e do homem, permanece sempre vålida e pode encontrar respos-
ta somente na reflexäo metaffsica. Na teologia do corpo, Säo Joäo
Paulo II indica a metafisica do ato de existéncia — "actus essendi,

esse" — como resposta adequada a essa questäo.

Nesse ponto desenvolvendo a hermenéutica do dom - o


Papa faz ainda umaA existéncia aparece na åltima
observagäo.
anålise como dom do Criador, mas os seres näo pessoais näo säo
capazes de compreender a linguagem do dom. Eles säo contin-
gentes, mas näo tém a capacidade de reflexäo racional näo po-
dem experimentar a sua contingéncia como dom. Por isso näo
säo capazes de responder ao Criador com a mesma linguagem.
Somente com a criaqäo do homem o fato da doagäo alcanga a sua
consciéncia. Escreve Säo Joäo Paulo II:

Na narrativa da criagüo do mundo visivel o doar tem


sentido somente em relagäo ao homem. Em toda obra da
criagäo, somente dele se pode dizer quefoi gratificado por
um dom: o mundo visivel foi criado "para ele". A narrati-

va biblica da criagäo nos oferece motivos suficientes para


uma tal compreensäo e interpretagäo: a criagäo é um dom,
porque nela aparece o homem que, como 'imagem de Deus;
é capaz de compreender o pröprio sentido do dom no cha-
mado å existéncia. E ele é capaz de responder ao Criador
com a linguagem dessa compreensäo.77

Assim a doac;äo é recfproca: o mundo é dado ao homem,


mas também o homem é dado para o mundo. Respondendo ao
Criador com a linguagem do dom ele representa todo o criado,
que näo pode ser consciente da doagäo. Isso reafirma também a
sua posigäo especial, privilegiada no mundo, que ainda analisa-
remos. Somente o homem mundo como sujeito, ou
aparece no
seja, como aquele que estå consciente do mundo e de si mesmo,

77 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö. cit., 73.

. 90 •
enquanto todo o mundo lhe é dado para que possa "subjugar e
encher" (cf. Gn 1,28). Vém aqui na mente as frases com as quais
Karol Wojtyla comega o livro Amor e responsabilidade:

O mundo em que vivemos se compöe de um grande numero


de objetos. 'Objeto'é aqui quase sinönimo de tser'. Esse näo 4
porém, o seu significado exato, porque, propriamentefalan-
do, 'objeto' denota aquilo um sujei-
que estå em relagäo com
to. Ora, o sujeito é também um ser, ser que existe e age de um

modo ou de outro. Pode-se, entäo dizer que o mundo em que


vivemos se compöe degrande nümero de sujeitos. Seria bom
até mesmofalar de sujeitos antes defalar de objetos.

Se invertemos essa ordem é para sublinhar, desde o inicio, o


caråter objetivo e, portanto, realista deste livro. Porque, co-

megamos do sujeito e particularmente daquele sujeito que é


o homem, se arriscaria facilmente considerar tudo isso que
se encontrafora dele, ou seja, o mundo dos objetos, de modo
puramente subjetivo, ou seja, enquanto penetra na consci-
éncia do sujeito e sefixa nela. É preciso, entäo, desde o inicio,
dar-se conta dofato de que todo sujeito é ao mesmo tempo
ser objetivo, é objetivamente alguma coisa ou alguém.78

Essas afirmagöes valem também para a teologia do corpo.


Dizer que o sujeito é objetivamente t'alguma coisa ou alguém"
significa que o sujeito possui também ele a estrutura objetiva

que pode ser indagada pela filosofia. A filosofia do homem de


Wojtyla consiste exatamente na tentativa de descrever esta "es-
trutura objetiva da subjetividade", de fornecer um saber objetivo
e universal sobre o sujeito, um saber que mantém a sua validade
näo obstante as diferengas culturais e temporais.

Falando do encontro de Wojtyla com a fenomenologia, jå


vimos que uma parte acabou por considerar as coisas do mundo

78 K. Wojtyla, Amor e responsabilidade, in Metqfisica della persona. Cite, 469.

. 91 •
"de modo puramente subjetivo". No ponto seguinte veremos,
ao invés, como na situagäo da solidäo original a consciéncia e a

autoconsciéncia do sujeito se constituem a partir do horizonte


do ser que jå é dado e ao mesmo tempo - e a partir do momento
que ens ed verum convertuntur - a partir da verdade originåria
do ser. O ser precede a consciéncia. Nesse sentido retornar ao
principio quer dizer buscar a verdade original do mundo que
precede seja a consciéncia que a liberdade do homem (mas,
como veremos, a consciéncia e a liberdade säo possiveis somen-
te sobre o fundamento da verdade que lhe precede). Em contras-
te com algumas concepgöes modernas -- ou talvez, ainda melhor,
p6s-modernas - na visäo filos6fica de Wojtyla no principio näo
estå o caos, o näo-sentido, do qual emergiria o sentido, mas ao
contrårio: no infcio estå o sentido, a verdade, o logos.

Nesse contexto podemos também entender melhor o


mandato de "subjugar" a terra, que o homem recebe de Deus.
0 mundo é dado ao homem, somente ele é sujeito neste mundo,
todos os seres do mundo podem se tornar "objetos" do seu co-
nhecimento e do seu agir, mas ele näo é um sujeito totalmente

autårquico ou tirånico. Naturalmente, näo podemos negar que


também isso aconteceu na hist6ria e alguns pensadores tinham
responsabilizado a Biblia. O mandato de subjugar a terra näo
pode, porém, ser entendido no sentido de que o homem tem a
com o mundo, tudo aquilo que lhe agrada. Ele
licenca de fazer,
é o dono do mundo, mas näo é um dono que possa ser arbitrå-
rio. O mundo recebeu a sua primeira forma do Criador e o ho-

mem realiza a sua vocagäo, quando conströi o seu mundo sobre


o fundamento da verdade originåria. O homem faz isso através
do seu agir, que lhe permite adquirir e manter o seu lugar no
mundo. Na linguagem da filosofia clåssica, a verdade originåria
das coisas e do pråprio homem foi expressa no conceito de na-
tureza, o qual se refere å esséncia de um ser enquanto principio
do seu agir e do agir dos outros em relacäo a ele. Nesse sentido

. 92 .
podemos dizer que o retorno ao principio significa também a
tentativa de identificar a natureza das coisas e do homem como
medida daquilo que é justo e injusto, lfcito e ilfcito em relagäo
a ele. Neste ponto é interessante observar que também um fi-

16sofo como Jürgen Habermas, um representante de destaque


da filosofia contemporånea que se define com p6s-metaffsica,
alerta sobre a necessidade de encontrar alguma medida objetiva
do agir humano diante das sempre mais potentes possibilidades
de intervenqäo na natureza humana entendida empiricamen-
te.79 Poderia se dizer que ultimamente também ele vé que näo
se pode desconsiderar algum princfpio. Aqui que jå foi em gran-
de medida conquistado em relagäo å natureza näo humana, por
exemplo, no movimento ecologista, ou seja, a convicgäo de que
o mundo da natureza näo humana ppssui a sua forma originåria
que deve ser respeitada, deve ser ainda readquirido em relaqäo
ao pråprio homem. Convidando-nos a ultrapassar o limiar do pe-
cado original na busca do principio do homem, Säo Joäo Paulo II

recorda a urgéncia dessa tarefa.

Podemos agora passar å especificidade das narrativas


sobre a criagäo do mundo. Recordamos que a nossa anålise,
também aqui, näo tem o caråter exegético, mas justamente
busca identificar o significado filos6fico da narragäo biblica.

Como vimos, Säo Joäo Paulo II se utiliza, nesse åmbito, da mes-


ma metodologia que jå tinha utilizado em Pessoa e ato, ou seja,
vé duas narrativas biblicas como duas abordagens-da-ünica
verdade do homem: o ponto de vista objetivo, metaffsico na
primeira narrativa e a
na segunda. A verdade que na primeira narrativa é expressa

79 Cf. J. Habermas, It futuro della natura urnana. I rischi della genetica liberale,
Einaudi, Torino, 2002; veja-se também S. Kampowski, Una libertå pitt grande: la
biotechnologia, l'amore e il destino umano. Un dialogo con Hans Jonas e Jürgen
llabermas, Cantagalli, Sena. 2010.

. 93
nas categorias objetivas, na segunda se torna objeto da experi-
éncia do primeiro homem e da primeira mulher. Seguindo com
o Papa a narragäo bli)lica, na segunda narrativa nos tornamos
quase testemunhas oculares da génese da subjetividade. A se-
gunda narrativa serå o objeto da nossa reflexäo nos parågrafos
seguintes, nesse momento queremos ver mais de perto a carga
metaffsica da primeira narrativa.

Na primeira narrativa, o ato da criagäo do homem é inseri-


do no ritmo da criagäo do mundo, mas ao mesmo tempo possui
o seu pråprio caråter ao criar o homem Deus para, "delibera",
quase quebra a regularidade do ritmo da criagäo e cria o homem
a sua imagem e semelhanga. Por um lado, na sua dimensäo ma-
terial, o homem é plasmado do solo da terra, portanto, faz parte
do cosmo e - como parece — poderia ser entendido da mesma
maneira dos outros seres do mundo. Essa forma de explicagäo
pode ser definida como redugäo cosm016gica do homem.80 Por
outro lado, porém, a narrativa biblica näo fala da semelhanga do
homem com os objetos do mundo, mas vé no homem a imagem
do Deus invisivel no mundo visfvel.

O que significa tudo isso para a reflexäo filos6fica? Nega-


tivamente, podemos dizer que nesse modo, na linguagem pro-
priamente da narrativa bfblica, foi expressa a impossibilidade de
explicar o homem somente a partir do cosmo; positivamente, ao
invés, podemos falar da necessidade da sua compreensäo per-
sonalista. Buscamos explicar essas duas afirmagöes com a ajuda
do ensaio publicado por Wojtyla nos anos setenta e intitulado
A subjetividade e a irredutibilidade no homem.8i

80 Lembre-se: O conceito de redugäo näo é entendido no sentido de um erro interpreta-


quando se fala da reduqäo de alguma coisa ad aliud genus), mas no senti-
tivo (p. ex.,
do de um procedimento met6dico que transmite p. ex. os efeitos, as suas causas ou os
fenömenos aos seus fundamentos 6nticos.
81 Cf. K. Wojtyla, Metafisica dena persona, cit., 1317-1328.

. 94 .
A reducäo cosm016gica do homem pode assumir duas for-
mas: cientifica ou filos6fica.As duas tém a sua justificagäo. Comojå
vimos, a ciéncia diz muito sobre o devir do homem do ponto de vista
material; devemos admitir que as modernas ciéncias bi016gicas po-
dem explicar o homem, mas ao mesmo tempo näo podem esquecer
que no homem existe sempre alguma coisa que näo pode ser reduzi-
da ao seu substrato material e nesse sentido permanece irredufreu/

Na filosofia temos, ao invés, o quefazer com uma outra


forma de redugäo cosm016gica — também essa justificada - a

qual encontrou a sua expressäo clåssica na definigäo aristotéli-


ca do homem: homo est animal rationale. Também nesse caso o
homem é reduzido a um dos objetos do mundo: é um ser vivente
(é o seu género mais pr6ximo) que se distingue pela sua raciona-
Iidade (a sua diferenga especifica). Essa definigäo, que mantém
toda a sua validade até hoje, näo considera, porém, daquilo que
no homem é unico e irredutfvel, aquilo pelo qual o homem foi

definidotambém como pessoa. O homem, de fato, näo é somente


exemplar de uma espécie natural, mas possui a pr6pria subjeti-
vidade que näo se presta å reducäo, ås categorias mais gerais.
A identidade de cada um é irrepetfvel; Paul Ricouer descreveu-
-a como a identidade narrativa, porque cada um tem a pr6pria
hist6ria, que pode ser somente recontada e näo pode ser colhida
nas categorias metaffsicas gerais. Wojtyla, ao invés, pöe a énfa-
se sobre a necessidade da interpretagäo personalista, que näo
é entendida como antftese da interpretagäo cosmolågica, mas
como o seu indispensåvel complemento (podemos acrescentar:
é como nas narrativas biblicas, ambas säo necessårias, se quere-
mos colher toda a riqueza da experiéncia do homem).
As consideragöes de Wojtyla vale a pena acrescen-
tar uma observagäofiambém para Arist6teles o homem näo
pode ser reduzido exaustivamente ao cosmo. O filösofo grego
näo desenvolve o tipo de interpretagäo que Wojtyla chama

. 95 .
personalista, estå, porém, convicto de que a alma intelectual
vem ao homem do exterior e a natureza da razäo é justamente
divina que näo c6smica. Escreve Arist6teles:

Näo resta nada mais que assumir que a razäo (a alma in-

telectual) entre [no embriäo] do exterior e que a pröpria


razäo é divina, como o agirfisico nöo tem nada em comum
com o agir da razäo.82—)

Talvez näo seja ilfcito — näo obstante todas as diferengas


ver aqui uma afinidade com a afirmagäo biblica, segundo a qual
o homem retirado do p6 da terra naquilo que é especificamente
humano, é mais semelhante a Deus do que ao cosmo.

Retornemos agora ao ensaio de Wojtyla. Segundo ele, a mo-


derna filosofia do sujeito pode dar uma importante contribuigäo å
filosofiado homem, exatamente porque busca indagar aquilo que
por sua natureza näo pode ser reduzido a nada mais que a si mes-
mo e pode ser somente mostrado. 0 momento em que se revela
essa irredutibilidade do homem é a sua experiéncia vivida.
Porsua natureza a experiéncia se opöe å redugäo, mas isso
näo significa que exilados da nossa consciéncia, Ela exige
somente ser conhecida de modo diferente, ou seja, com
um método, mediante uma anålise que seja tal a revelar
e mostrar a sua esséncia. O método da anålise fenome-

nolågica nos permite nos deter sobre a experiéncia como


irredutfvel.83

Com essas afirmaqöes jå estamos a caminho para a antro-


pologia adequada que consiste exatamente na "compreensäo e in-
84
terpretagäo do homem naquilo que é essencialmente humano .

Buscaremos seguir essa indicagäo no ponto sucessivo.

82 Arist6teles, De generatione animalum, 736b.


83 Cf. Wojtyla, La soggettivitå e l'irriducibilitå nell'uomo, 1327.
84 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creb. cit., 72.

• 96 •
Resumindo dizemos que na reflexäo sobre o principio des-
cobrimos a arché do mundo e do homem. Essa arché, essa verda-
de originåria, näo serå nunca cancelada do coragäo do homem e,
näo obstante o pecado original estarå presente também na sua
hist6ria. Aproximando-se do fim da sua peregrinacäo terrena no
Tritico romano Joäo Paulo II escreveu:

Porque exatamente daquele ünico dia se disse:


"Deus viu que aquilo que tinha criado era muito bom"?
Por que, entäo, parece que a histåria contradiga tudo isso?
Mesmo em nosso século vinte! E näo somente no vinte!
Porém, nenhum século conseguirå ofuscar a verdade
Sua imagem e semelhanva.85

2. SOLIDÄO COM0 SUBJETIVIDADE

'tNäo ébom que o homem esteja s6. Vou fazer-lhe uma auxiliar

que lhe corresponda" (Gn 2,18). Essa afirmagäo de Deus contém em


si a primeira caracterfstica da situagäo proto-hist6rica do homem -
a solidäo original. Mesmo que o primeiro homem se encontre em
meio ao mundo jå criado, entre os animais, plantas e coisas inani-
madas, ultimamente deve constatar que é sozinho. Pode-se dizer
que a solidäo original tem o significado negativo. A afirmagäo, que o
homem é sozinho, é precedida por uma avaliagäo desse estado: näo
é bom que seja assim. Tal avaliagäo conduz å criagäo do segundo
homem, da mulher, que lhe é semelhante na humanidade. A solidäo
original possui, porém, também uma outra dimensäo referente ao

mesmo ser do homem. O primeiro homem é sozinho, porque é dife-


rente de todo o criado e, näo obstante, tomado pelo p6 da terra näo
tem as condigöes de se identificar com nenhum dos seres visiveis

.com Heidegger se poderia dizer: go homem é jogado no mundo").

85 Säo Joäo Paulo II, Tritico Romano. Meditacöes, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 23.

. 97 •
A sua solidäo adquire aqui o sentido positivo: denota a sua inco-
mensurabilidade, incomunicabilidade, diversidade. O homem näo
se pode identificar com os outros seres do mundo, porque o seu
modo de existir é diferente. É diferente, porque somente ele no
mundo possui a estrutura antica de um sujeito, e essa sua estrutura
objetiva comega a experimentå-la como a sua subjetividade. Assim

na palavra 'ts6", pronunciada por Deus, é jå presente in germe todo


o problema antrop016gico, com que o homem se confronta sempre
de novo na sua hist6rim Esse problema, como observa Säo Joäo
Paulo II, é anterior å diferenga sexual, se refere ao homem como tal,
ao homem na sua pr6pria esséncia humana. Escreve o Papa:
Eis, o homem criado se encontra, desde o primeiro mo-
mento da sua existéncia, diante de Deus quase em busca
da prépria identidade, poderia se dizer: em busca da defi-

nigäo de si mesmo. um contemporåneo diria: em busca da


pr6pria "identidade" 86

Na segunda hist6ria vemos, portanto, como o homem


toma consciéncia da sua posigäo no mundo, do seu estado de
ser encarnado. A sua subjetividade inclui a sua autoconsciéncia.
A autoconsciéncia se desperta ao invés no contato cognoscitivo
com o mundo, quando o homem, por assim dizer, sai de si verso
o mundo que é jå constituido. Podemos dizer: o ser precede a
consciéncia. E saindo de si, transcendendo os limites da sua sub-
jetividade, ohomem é capaz de fazer a pergunta sobre a verdade
do ser. A consciéncia näo aparece aqui como um sujeito originå-
rio de conhecimento, mas "acontece" ou se atualiza no contato
cognoscitivo do sujeito humano com o ser.87 Assim - poderia se

86 Ibidem, 46. O texto em polonés ao invés da palavra "entidade" usa o termo "istota"
que significa "esséncia". Parece que tal traduqäo seria mais consona com o contexto.
87 Vem aqui em mente as palau•as de Säo Tomås: "Illud autem quod primo intellectus
concipit quasi notissimum, et in quo omnes conceptiones resolvit, est ens", Questio-
nes disputatae de veritate, I, 1, c.

• 98 •
dizer — sobre o plano fenomen016gico "nasce" aquela subjetivi-
dade que sobre o plano ont016gico estå presente desde o infcio.
"A subjetividade do homem se forma através da autocons-

ciéncia".88 Essas observagöes de Säo Joäo Paulo II contém em si

uma potente carga filos6fica, especialmente no contexto da filo-

Sofia moderna, em que a consciéncia é destacada do ser e assim


se é autonomizada. Buscaremos aprofundå-las com a ajuda das
anålises da natureza e fungöes da consciéncia realizadas por
Wojtyla em Pessoa e ato.
Além disso, o conceito de solidäo encerra em si também a
outra dimensäo que pertence å estrutura ont016gica de um ser
pessoal, isto é, a autodeterminagäo. Ela se constitui sobre o fun-
damento da autoconsciéncia, somente um ser consciente de si

pode decidir de si mesmo. No Livro do Génesis, a capacidade de


autodeterminagäo é expressa na imagem da årvore do conhe-
cimento do bem e do mal. Diante dessa årvore o homem pode
fazer a escolha, pode escolher entre a Vida e a morte, ou seja,

possui a capacidade de agir em um ou em outro. Isto, ao invés,


significa dizer que é livre.

Assim, na experiéncia da solidäo original encontramos as


caracterfsticas que diferenciam o homem do resto do criado: a
possibilidade de fazer a pergunta sobre a verdade do ser e a ca-
pacidade de decidir o curso do seu agir, isso significa, ao mes-
mo tempo, a capacidade de decidir sobre si mesmo. Wojtyla a
chama de auto teleologia do homem. Essas duas caracterfsticas

estäo estreitamente ligadas entre elas. Busquemos aprofundar


seu sentido fazendo referéncia å antropologia desenvolvida pelo
fi16sofo Wojtyla.

88 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, 46.

. 99 .
a) Consciéncia e autoconsciéncia

Na filosofia de Karol Wojtyla a anålise do papel da cons-


ciéncia na estrutura da pessoa humana se encontra, sobretudo,
no seu opus magnum antropolögico, isto é, no livro Pessoa e ato,

mas importantes observacöes estäo espalhadas também em ou-


tros textos, entre os quais precisa assinalar o jå citado livro La
soggettivitå e l'irriducibilitå nell'uomo.

As anålises de Wojtyla se desenvolvem no contexto e em


uma critica discussäo — com aquela corrente da filosofia moder-
na, que foi definida como filosofia da consciéncia. Também aqui-
10 que Säo Joäo Paulo II diz sobre o tema da consciéncia na teo-

logia do corpo possui o seu valor pelo confronto com a filosofia

da consciéncia e com a visäo do homem que por ela é implicada


(antes de tudo pelo mundo em que se pöe a questäo epistemo-
16gica). A filosofia da consciéncia tem as suas raizes na dåvida
cartesiana, no método de duvidar de Descartes, que com o teste

da dfivida busca identificar a esfera daquilo que é indubitåvel,


absolutamente certo — e encontra essa esfera no conteüdo da
consciéncia: cogito sum. Vale a pena sublinhar que a düvida de
Descartes era met6dica, isto é, näo nascia do ceticismo no que se
refere capacidade do homem de chegar å consciéncia da verda-
de. Descartes buscava, ao contrårio, de se opor ao ceticismo do
seu tempo com um argumento que fosse inconteståvel. Tratava-
-se de encontrar um tal ponto na consciéncia humana, em que
alguma düvida racional näo fosse possivel. Esse procedimento
metådico implicou, porém, numa série de relevantes conse-
quéncias näo somente na questäo epistem016gica, mas também
no que se refere å pr6pria ontologia da pessoa. Jå vimos (1,4) que
entre essas consequéncias teve aquela da divisäo do homem em
duas subståncias diversas, cuja ligagäo se tornou ultimamente
misteriosa. Por uma parte se encontrou a consciéncia, identifi-
cada com aquilo que é especificamente humano, e por outro o

• 100 •
corpo que foi considerado como elemento do mundo material.

Dessa visäo do homem composto por duas subståncias surgiu


aquilo que definimos "dualismo antropolögico".

A visäo cartesiana é carregada das consequéncias episte-


m016gicas, também aquelas que se referem å fungäo da consci-
éncia no processo cognoscitivo. Com muda, de fato, o senti-
ela
do da consciéncia - ela näo serå entendida mais como contato
com a realidade existente independente da consciéncia, mas ao
contrårio serå identificada com o pensar daquilo que é dado na
consciéncia (Tadeusz Stycen escreve que na reviravolta carte-
siana o "cognosco" é substituido pelo "cogito"89). Antes de Des-
cartes, na filosofia antiga e medieval, o posto da filosofia antes
pertencia å metaffsica, agora é a epistemologia a ocupar o seu
posto. É uma epistemologia entendida em um modo particular,
diferente de como era vista antes de Descartes. O seu ponto de
partida é a autoconsciéncia do sujeito. Wojciech Chudy, um estu-
dioso polonés, colaborador de Tadeusz Styczen, que por sua vez
era sucessor de Wojtyla na cåtedra de ética junto å Universidade
Cat61ica de Lublin, no seu estudo sobre a génese da filosofia mo-
derna da consciéncia escreve:

O caråter indubitåve/ do ato "penso" induz o autor do Dis-


curso sobre o método å aventura que toma o seu modelo em
Arquimedes. Descartes quer fundar epistemologicamente
todo o edificio do sistema filosöfico - entendido ainda no
modo tradicional — sobre a reflexividade da consciéncia coli-
gada com a estrutura individual do eu.90

Com a metåfora do espelho (que nos serå ütil tam-


bém nas anålises da consciéncia em Wojtyla) Chudy assim

89 Cf. T. Styczefi, Essere se stessi é trascendere se stessi. Sull'etica di Karol Wojtyla


come antropologia normativa, in K. Wojtyla, Metafisica delta persona, cit., 808-809.
90 Chudy, cit., 125.

101 •
descreve a reviravolta cartesiana no modo de entender a natureza

da consciéncia:
Analisando o espago entre os dois espelhos que estäo um
defrente para o outro, [Descartes] näo se concentra sobre
aquilo que constitui a causa eficiente e o inicial objetivo
dos reflexos, mas sobre os pröprios reflexos e sobre o pro-

cesso de se refletin9t

A partir de Descartes a prospectiva da consciéncia subje-


tiva, a consciéncia do eu (cogito) e daquilo que é dado na consci-
éncia (cogitationes), sempre mais marcarå o modo em que seräo
impostados problemas epistem016gicos, éticos, antrop016gicos

e metafisicos.

Pela nossa temåtica, isto é, pelo modo em que Wojtyla afron-


ta o problema da consciéncia, é importante o fato de que essa pros-
pectiva foi ultimamente adotada pelo pai da fenomenologia, isto é,
por Edmund Husserl. Se na filosofia do homem Wojtyla se propos
arriscar a aproximagäo metafisica da antropologia com os resul-
tados do método fenomen016gico, näo era para seguir Husserl na
sua reviravolta idealistica, a qual o levou em direqäo a uma for-

ma de idealismo transcendental. O método fenomen016gico pode


ajudar na descrigäo do modo em que os fenömenos se apresen-
tam na consciéncia, mas de per si näo determina ainda o seu es-

tatuto metafisico. Os fenömenos poderiam representar os objetos


reais, independentes da consciéncia, mas poderiam também ser
entendidos como constitufdos da pr6pria ciéncia. Confrontando
esse problema Husserl deu a resposta idealistica — os fenömenos
säo "produtos" da pura consciéncia. Andrzej Poltawski, aluno de
Roman Ingarden, renomado conhecedor da filosofia de Husserl e
ao mesmo tempo amigo e colaborador de Wojtyla, caracteriza a
epistemologia husserliana no seguinte modo:

91 Ibidem.

• 102 •
A concepgäo do conhecimento como sintese do objeto das
impressöes ultimamente levaram ao idealismo transcen-
dental. Defato, para Husserl a estrutura fundamental do
conhecimento é dada no esquema: imanente contido da
percepgäo — a sua tomada na intengäo (suposigäo) como
eventual objeto real transcendente em confronto da consci-
éncia em um sentido particular pela concepgäo de Husserl.
Consequentemente o conhecimento da realidade é somen-
te "o constituir-se" dos sentidos objetivos como correlatos
intencionais dos atos de "consciéncia pura". Tal concepgäo
exclui desde o inicio um auténtico, concreto contato do ho-
mem com o mundo circunstante - o exclui comofato ori-

ginårio seja da experiéncia, seja do ser do homem. Origi-


nariamente e em si o homem é uma "consciéncia pura". 92

Sabemos que historicamente essa reviravolta idealistica


de Husserl provocou a ruptura no sentido do movimento feno-
menolögico. Alguns discipulos de Husserl — como Roman Ingar-
den, Edith Stein ou Max Scheler - näo compartilhavam a escolha
do mestre, escolhendo o caminho da fenomenologia realfstica.

Significativo nesse contexto é o tftulo da obra que Ingarden de-


dicou å discussäo com o seu mestre: Controversia sull'esistenza
del mondo.93 Também Wojtyla, que encontrou a fenomenologia na
sua versäo realistica por meio da obra de Scheler, estava conven-

cido que Husserl ultimamente näo permaneceu fiel ao seu pos-


tulado metod016gico de "retornar ås pr6prias coisas" e que näo
exauriu até o fim o potencial do método fenomen016gico. Näo
pensava, isto é, que a reviravolta idealistica de Husserl seguisse
logicamente o uso desse método, antes era convicto que a sua
correta aplicagäo e a adequada interpretagäo metafisica dos seus

92 A. Péltawski, Segundo Husserl a consciéncia é um ser absoluto no sentido que "nulla


're' indiget ad existentum", enquanto todas as res transcendentes säo dependentes da
consciéncia.

93 CC R. Ingarden, DerStreit um die Existenz der Welt, De Gruyter, 1965.

• 103 •
resultados conduzisse a uma outra realistica versäo da filosofia
fenomen016gica. E pr6prio na anålise da esséncia e das func;öes
da consciéncia, Wojtyla se dissocia do mestre da fenomenologia.
Além do mais, o problema da consciéncia se revela como o ponto
chave näo somente para a questäo epistemolågica, mas para toda
a visäo da pessoa.

Vejamos, portanto, que as reflexöes sobre a origem da


consciéncia e autoconsciéncia desenvolvidas na teologia do cor-
po possuem a fundamental relevåncia filos6fica. Também vale a
pena notar que ao mesmo tema, Säo Joäo Paulo II retornou no
seu discurso tido å Universidade Cat61ica de Lublin e dirigido
aomundo académico durante a sua peregrinagäo em Polönia
em 1987. Também ali, referindo-se ao texto do Livro do Géne-
sis, o Papa busca revelar aquilo que constitui a "differentia spe-
cifica humana" refletindo sobre a original solicitude do homem.
Tomando consciéncia de sua solicitude o homem descobre a sua
tidiversidade e superioridade" (a expressäo de Tadeusz Styczen)
em confronto com o mundo.
Como o homem chega å consciéncia da sua alteridade e su-
perioridade? Como se torna um ser näo somente consciente, mas
também autoconsciente? Se a nossa interpretagäo näo é errada,
para Säo Joäo Paulo II nesse processo o ponto decisivo constitui o
momento da consciéncia especificamente humana. O homem co-
mega a se experimentar como sujeito, podemos dizer que o sobre
o plano experimental nasce como pessoa, no ato de conhecimen-
to. Busquemos aprofundar o sentido desse momento decisivo.

Em Pessoa e ato Wojtyla propöe uma sucinta definigäo


do ser pessoal: "Transcendéncia é o outro nome da pessoa".
Persona significa transcendéncia. Näo se trata naturalmente
da transcendéncia no sentido em que trata a filosofia da reli-

giäo, mas da fundamental estrutura do ser pessoal. Uma defi-

nigäo semelhante encontramos em um autor alemäo Hermann

• 104 •
Krings, que descreve o ser pessoal como "transcendéncia refle-
xiva", enquanto o autor polonés Stanislaw Judycki, sugere que
uma definiqäo ainda melhor recitaria: o sujeito pessoal é uma
retrotranscendéncia.94 Como veremos, essas definigöes tornam
explfcitas aquilo que é presente na definigäo de Wojtyla, a par-
tir do momento em que também para ele o tratado essencial
da transcendéncia que constitui o ser pessoal é a sua reflexi-

vidade (porém, com uma importante distincäo ao interno da


mesma reflexividade que ajudarå a colher melhor a natureza
da consciéncia).

O que queremos dizer definindo a pessoa como trans-


cendéncia? No sentido de Wojtyla transcendéncia — ou melhor,
transcendéncia horizontal, a partir do momento em que ele
falarå também da transcendéncia vertical consiste em sair do
sujeito de si mesmo em diregäo åquilo que é diferente dele, "o

atravessar o limite do sujeito em direcäo ao objeto".95 0 objeto


do conhecimento é refletido na consciéncia, mas é também ao
mesmo tempo interiorizado pelo sujeito. Propriamente através
desse processo o sujeito öntico assume a forma do concreto e ir-

repetivel tteu". Nasce assim, sobre o plano da experiéncia vivida,


a subjetividade pessoal.

Judycki a define "nascimento metafisico", nascimento que


é diferente do nascimento bi016gico, mesmo que tenha nele o
seu fundamento. Aqui nasce o sujeito que é capaz de se distin-
guir, de manter um destaque das outras trés esferas: da esfera
da matéria distinta da mutabilidade, mas também da esfera
dos imutåveis principios 16gicos ou matemåticos e, enfim, em
relacäo ao conteüdo da sua consciéncia (também nesse caso a

94 Cf. H. Krings, Transzendentale Logik, Kösel Verlag, München, 1964, 46-76. O livro de
Krings é citado S. Judycki in mg
i inne osoby. Pröba z zakresu teologiifilozoficznej [Deus

e outras pessoas. Um ensaio de teologia filcxs6fica), Wdrod7R, Poznafi ,2010, cit., 87.

95 Wojtyla, Persona e atto, cit., 982.

• 105 •
pessoa pode dizer que possui a pr6pria consciéncia, mas näo se
identifica completamente com ela).96

Como acontece esse nascimento? Na sua anålise da solidäo


original Säo Joäo Paulo II escreve: "A autoconsciéncia caminha
lado a lado com o conhecimento do mundo"97 mas na génesis da
pessoa existe aqui uma cronologia: é por intermédio da cons-
ciéncia do mundo que "aciona" consciéncia e autoconsciéncia.
No infcio se encontra aquilo que os medievais chamam simplex
apprehensio, um simples contato com a realidade e a primeira
assimilagäo do seu conteüdo. Nesse momento o homem assimila
o conteüdo do ato de conhecimento e ao mesmo tempo se dis-
tancia dele, experimenta a sua irredutfvel subjetividade: essa é
a sua consciéncia. Contudo, antes do conhecimento e da consci-
éncia existe jå o ser que agora se torna objeto do conhecimento
e entra na interioridade da pessoa como conteüdo da sua cons-
ciéncia. Assim também consciéncia e autoconsciéncia nascem
graqas a esse primeiro contato com o ser. Escreve Judycki:

Simplex apprehensio leva å constituigäo da esfera média


que entre o sujeito e aquilo que é (ser). (...) Consciéncia,
entendida como umfluxo dos estados mentais, é um modo
de realizagäo dessa esfera média. (...) O conhecimento
näo é nem sujeito — mesmo se, paradoxalmente, o sujeito
é um ser consciente nem um dos objetos, mas é relagäo
constituida a partir dessa relagäo fundamental que se
atualiza no momento de colher o primeiro conteüdo.99

O que é importante aqui é também a diståncia do sujeito


no que se refere ao conteÜdo do seu ato cognoscitivo. Sem a ca-

pacidade de se distanciar dos objetos dos seus atos intencionais

96 Cf. Judycki, cit., no.


97 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö, cit., 46.
98 Judycki, cit., 119.

• 106 •
o homem näo poderia viver a si mesmo como sujeito, näo po-
deria se experimentar como pessoa. Um animal, que näo pos-
sui essa capacidade, é totalmente imerso no seu habitat natural,
näo é capaz de se distanciar nem da matéria nem dos conteü-
dos da sua consciéncia. Portanto, vive - como o define Helmuth
Plessner — na "posigäo céntrica". Para um animal tudo adquire
importåncia enquanto referido ås suas necessidades radicadas
nos seus instintos — ele é o centro do seu mundo. O homem, ao
invés sempre segundo Plessner - vive na sua t'posigäo ecéntri-
ca", porque é capaz de se relativizar, de näo ver tudo somente do
seu ponto de vista, mas de colocar a pergunta sobre a verdade
objetiva daquilo que o circunda. Wojtyla escreve:

A orientagäo para diversos objetos possiveis do querer näo


é determinada nem por esses objetos nem por sua apresen-
tagäo. A pessoa é independente dos objetos da pröpria
(...)

agäo através do momento da verdade, que é contida em


toda auténtica decisäo ou escolha.99

É propriamente isso que na anålise de Säo Joäo Paulo II

acontece na solidäo original. Através do ato de conhecimen-


to, em que o homem comega a experimentar a si mesmo (na
autoconsciéncia que acompanha o conhecimento de qualquer
coisa)como diferente do mundo que o circunda, o homem "se
acorda" como pessoa e desse momento pode dizer "eu". Tere-
mos ainda oportunidade de ver que, segundo Wojtyla, esse é
também o ponto decisivo para a compreensäo do seu conceito
de liberdade.

Na sua dimensäo metaffsica a autoconsciéncia näo cons-


titui a personalidade, mas a revela e a torna presente sobre o
plano da experiéncia. É importante, sobretudo no contexto das
discussöes contemporåneas sobre o conceito de pessoa — que a

99 Wojtyla, Persona e atto, cit., 1007.

107 •
autoconsciéncia tem o seu fundamento na subjetividade öntica,
na particular estrutura daquele ser em que é escrita a potenciali-
dade de autoconsciéncia. Essa ordem é estrutural e cron016gica e
também nesse caso o ser precede a consciéncia. Como justamente
observa Robert Spaemann, ninguém de n6s se lembra do momen-
to em que se tornou autoconsciente. Quando dizemos que nas-
cemos em um determinado dia, näo queremos dizer que nasceu
um sujeito de autoconsciéncia — nasceu uma crianga que depois
se tornaria autoconsciente. Por outro lado, porém, sem uma real

potencialidade escrita no seu ser, a crianga näo poderia nunca


chegar ao momento em que é capaz de desenvolver a relagäo da
consciéncia com o pr6prio ser. Além disso, jå nas discussöes com
Descartes os seus opositores notaram que a descrigäo do fluxo da
consciéncia permite somente afirmar que existem cogitationes; o
passo cartesiano do cogito ao sum contém jå em si uma tese me-
tafisica, isto é, se passa da consciéncia ao sujeito da consciéncia.

Consequentemente podemos falar de dois horizontes, nos


quais se desvenda a experiéncia da pessoa: o horizonte do ser e
aquele do eu. O homem no seu conhecimento e nos seus desejos
é naturalmente dirigido verso o ser, que preenche a sua consci-
éncia e ao mesmo tempo o leva å experiéncia de si como sujei-

to de conhecimento e de desejo. Ao invés, a separagäo dos dois


horizontes conduz ou ås teorias em que o mundo é visto como
de qualquer modo "produto" da consciéncia (como acontece
em vårios tipos de idealismo filos6fico), ou å redugäo do ato de
consciéncia å particular modalidade de adaptagäo do organismo
ao ambiente (como acontece no evolucionismo epistemolögico).
Como observa W. Chudy:

O se dirigir do homem no ato reflexivo em diregäo a si


mesmo possui o seu "cenårio" na consciéncia do horizonte
do eu, realizado em statufieri, particular limite desse ato,
que garante a integridade do sujeito de experiéncia e do
pröprio ato. Por outro lado, esse se dirigir em diregäo a

• 108 •
simesmo é acompanhado do horizonte do ser, o qualfaz
com que todo o processo cognoscitivo seja radicado na
realidade objetiva.100

A relagäo cognoscitiva do homem com o mundo como mo-


mento, em que se constitui a subjetividade da pessoa, contém
em si ainda um momento que na anålise de Wojtyla se revela
como essencial. O contato cognoscitivo com o ser inclui em si o
momento do julgamento e aquele da assergäo: assim é (ou mes-
mo assim näo é). O homem, que no ato de consciéncia por assim
dizer sai de mesmo, objetiva o mundo, pöe a pergunta sobre a
si

sua verdade.10i É nesse momento realmente de transcendéncia


e a referéncia å verdade que näo depende do homem que difere
a pessoa de todos os outros seres näo pessoais, que a pöe sobre
o nivel "superior" em confronto com todos os seres do mundo
e explica a sua posigäo "mais alta". Na anålise de Säo Joäo Paulo
II dirigida no discurso em Lublin, que mencionamos, o Papa vé
essa "autorrevelagäo" do pr6prio homem no momento da refle-

xäo sobre o ato cognoscitivo. Diz o Papa:

Afonte da transcendéncia do homem em relagäo ao uni-

verso, em que ele vive, se encontra na verdade. Gragas å


reflexäo sobre o pröprio conhecimento o homem se revela
a si mesmo como o ünico ser no mundo, que vé a si mesmo

"do interior" obrigado pela verdade conhecida e, portan-


também obrigado ao seu reconhecimento, no caso sério
to,

também com os atos da sua livre escolha, com os atos do


testemunho da verdade. Essa é a capacidade de transcen-
der a si mesmo na verdade.i02

100 chudy, cit., 86-87.


101 Encontramo-nos aqui ås antipodas de uma grande parte da filosofia moderna, que é
sintetizada bem na frase de David Hume: "We never really advance one step beyond
ourselves".

102 Säo Joäo Paulo II, Discorso al mondo della cultura, Universitå Cattolica di Lublino,
9.06.1987.

109 •
Vejamos como na reflexäo do homem sobre o seu conhe-
cimento — recordamos: a pessoa é uma transcendéncia reflexiva
- constitui-se juntos o logos e o ethos da pessoa. A pessoa es-
pontaneamente comega a viver a si mesma como testemunha da
verdade, nessa experiéncia descobre a sua diversidade do mun-
do visfvel e ao mesmo tempo experimenta o dever de afirmar
a verdade que encontrou no ato cognoscitivo. Em Pessoa e ato
Wojtyla fala do "poder normativo da verdade", que estå na raiz
da experiéncia moral. Todo esse processo, em que se constituem
o logos e o ethos da pessoa, tem lugar na consciéncia, mas ao
mesmo tempo por sua natureza transcende a consciéncia, como
diz Wojtyla, no ato do conhecimento a pessoa experimenta a sua
transcendéncia na verdade. É esse o ponto que permite a Wo-
jtyla de escapar da "armadilha da reflexäo" (a expressäo é de W.
Chudy), isto é, ao fechamento da consciéncia em si mesma, täo
caracterfstico para a filosofia postcartesiana, ao se concentrar na
reflexäo "somente sobre a imagem refletida e sobre a ativida-

de de refletir" sem referéncia åquilo que gerou essas imagens.


Segundo Wojtyla, ao invés, näo podemos entender a existéncia
e a esséncia da consciéncia prescindindo daquilo que existe in-
dependente dela, ao contrårio, a consciéncia é possfvel somente
gragas å relacäo com aquilo que a transcende.
O ponto, em que Wojtyla se diferencia da maioria dos fe-

nomen610gos, é o problema da intencionalidade. É propriamente


aqui que o filosofo polonés supera o idealismo transcendental do
pai da fenomenologia. Segundo Husserl no ato intencional a cons-
ciéncia se refere ao sujeito, mas opermanece sempre um
sujeito
objeto intencional, é constitufdo na consciéncia e näo existe inde-
pendente. Wojtyla, ao invés, distingue entre conhecimento e cons-
ciéncia, negando å consciéncia a propriedade da intencionalidade.
Somente o conhecimento, caracterizada pela transcendéncia, é in-
tencional - o ato de conhecimento é enderegado verso o objeto
que lhe é externo, ele toca o ser que na sua existéncia näo depende

• 110 •
nem do conhecimento nem da consciéncia. É assim também na
situaqäo em que o sujeito se dirige verso si mesmo - temos entäo
a problemåtica do autoconhecimento. O autoconhecimento näo é
idéntico å autoconsciéncia, mesmo se a autoconsciéncia o acom-
panha e o interioriza. No entanto - como escreve Wojtyla - "näo se
pode, de fato, 'tornar consciente' do ato (nem de qualquer outra
coisa) por meio da consciéncia, mas somente intencionalmente,
portanto, através de um ato de autoconhecimento".103 0 conheci-
mento é um dinamismo que envolve toda a pessoa, os seus senti-
dos, as emogöes e a sua racionalidade. O sujeito de conhecimento
näo é, porém — podemos dizer como Säo Tomås — os sentidos ou
as emogöes e nem mesmo a consciéncia, mas a pessoa por meio
de suas capacidades. Em Wojtyla a consciéncia näo é intencional
e, portanto, näo pode ser sujeito do conhecimento. 0 seu papel é
muito importante, mas diferente.u

Wojtyla distingue duas fungöes da consciéncia, que podemos


chamar: a funcäo do refletir e a fungäo da interiorizagäo (ou mesmo
subjetivagäo). De um lado a consciéncia reflete em si o conteüdo do
ato de conhecimento (o homem "reflete seu pr6prio conhecimen-
to", como dizia Säo Joäo Paulo II no seu discurso em Lublin). Nes-
sa sua fungäo a consciéncia é refletiva, refletente. Por outro lado a
consciéncia é reflexiva, e essa sua reflexividade significa

quase um seu natural se dirigir para o sujeito (...). O se diri-


gir reflexivo da consciénciafaz com que o objetivo, pröprio
porque é ontologicamente sujeito, vivendo interiormente o
pråprio 'eu', vive contemporaneamente a mesmo como si

sujeito. A consciéncia näo é somente aspecto, mas tam-


bém dimensäo essencial ou o momento real daquele ser que
sou t'eu',' enquanto constitui a sua subjetividade em sentido
vivido. Se aquele ser e, portanto, o real objeto individual

103 Wojtyla, Persona e atto, cit., 879.

• 111 •
da sua fundamental estrutura 6ntica, corresponde åquilo
que nafilosofia tradicional era definido suppositum, entäo,
sem a consciéncia, o suppositum näo pode de algum modo
se constituir como "eu .

Na sua fungäo reflexiva a consciéncia näo consiste no ato de


se dirigir ao proprio conhecimento (tal ato seria um ato de auto-
conhecimento), mas acompanha o conhecimento, o compenetra, o
interioriza e faz com que o sujeito o viva como proprio (sem alguma

necessidade de uma reflexäo separada). Enquanto a reflexividade


torna possfvel o processo em que o homem chega ao conhecimento
da verdade (sempre posso perguntar se isto que foi refletido na mi-
nha consciéncia corresponde å realidade das coisas), a fungäo refle-
xiva da consciéncia é fundamental näo somente para o constituir-

-se do "eu", mas também para a experiéncia do seu ligame moral


com a verdade conhecida. A consciéncia e näo por aca.so_falamos
em italiano da consciéncia moral — näo é somente umespelho, mas
refletindo interioriza a verdade conhecida,atornæfrninha" no sen-
tido de que o 'ieu" se identifica com ela, dela toma responsabilida-
de, assim que — para recordar as palavras do discurso de Säo Joäo
Paulo II em Lublin — se sente obrigado ao seu reconhecimento, no
sério caso também com os atos da sua liberdade escolhida, com os
atos do testemunho da verdade. Segundo Tadeusz Styczen somente
se na nossa teoria da pessoa levarmos em conta todo esse processo
de espelhamento e de subjetivagäo, do processo de se transcender
da pessoa verso a verdade objetiva e da experiéncia do dever moral
que nasce no ato de conhecimento da verdade, poderemos tocar a
identidade da pessoa.

i¯Na anålise da solidäo original a consciéncia, que se acor-


da no contato com o mundo e por meio do qual sobre o plano
experimental se constitui a subjetividade, é radicada na cor-
poreidade do sujeito. Desde o infcio a consciéncia da pessoa

104 Ibidem, 886-890.

• 112 •
humana näo é uma consciéncia pura, desencarnada, mas é uma
consciéncia do sujeito encarnado que vive a sua corporeidade.
luz das consideragöes precedentes podemos dizer que a pes-
soa vive a sua corporeidade na consciéncia reflexiva, acompa-
nhante, é consciente da sua encarnagäo sem a necessidade de
uma explicita reflexägUNo texto javista, vemos como o homem

adquire essa consciéncia, por assim dizer, em ocasiäo da sua


comparagäo com o mundo e como ela o conduz å descoberta da
sua diversidade. Escreve Säo Joäo Paulo II:

A anålise do texto javista nos permite além de coligar a


solidäo originåria do homem com um conhecimento do
corpo, através do qual o homem se distingue de todos os
animalia e "se separa" deles, e também através do qual ele
é pessoa. Pode-se afirmar com certeza que aquele homem
assimformado tem contemporaneamente o conhecimento
e a consciéncia do sentido do pröprio corpo. E isto sobre a
base da experiéncia da solidäo originåria.105

Aqui, Säo Joäo Paulo II, fala explicitamente da "conscién-


cia do corpo" e parece que se trata propriamente da consciéncia
reflexiva. O homem espontaneamente comeqa a viver o corpo
como meio de expressäo da sua personalidade e, portanto, se
distingue e se separa dos animais.

Na situagäo da solidäo originåria o homem näo vive ainda


a diferenga sexual (como veremos, por Säo Joäo Paulo II esse fato
possui também o seu significado antrop016gico), que serå reve-
lada com a criagäo do segundo homem (a mulher). Antecipando
as anålises, que seräo desenvolvidas no capitulo seguinte, po-
demos jå aqui sublinhar que também a determinacäo sexual do
corpo faz parte do conteådo da consciéncia reflexiva. O homem
se vive como homem-mulher e homem-macho. A consciéncia (ou
também a alma cqmoübos seres espirituais existem para além

105 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit. 49.

• 113 •
da diferenga sexual) como tal näo é determinada sexualmente e
se torna masculino e feminino propriamente através da sua re-

lasåocom o corpo. O fato, que essa relagäo seja no primeiro mo-


mento näo-refletiva, mas reflexiva (no sentido explicado acima),
tem o seu significado no contexto das contemporåneas teorias
do género. Também nesse caso o ser precede a consciéncia.

b) Autopossessäo, autodomfnio e autodeterminagäo

No texto, em que Säo Joäo Paulo II define o conteüdo


do conceito de solidäo, contém em si seja auto-
lemos que ele
consciéncia que autodomfnio. O conceito de autodomfnio é um
outro conceito que tem as suas rafzes na filosofia de Wojtyla e
para compreendé-lo bem devemos vé-lo em relagäo com outros
dois desenvolvidos em Pessoa e ato: conceito de auto possesso e

conceito de autodeterminagäo. Desse modo podemos adquirir o


pleno perfil do ser pessoal e acrescentar å definigäo da sua fun-
damental estrutura ontolögica, que na solidäo original adquire a
dimensäo experimental e é vivida como subjetividade pessoal.

Em que consiste a subjetividade pessoal do homem?


O seu nucleo estå no fato de ser autor dos pr6prios atos. Como
jå acenamos antes, em Pessoa e ato Wojtyla distingue dois dina-
mismos diferentes que fazem parte da experiéncia do homem:
"qualquer coisa acontece no homem" e "o homem age". Enquan-
to a primeira estrutura é prépria da natureza e o homem a com-
partilha com outros seres viventes, na segunda, ao invés, se re-
vela propriamente a sua diferenga especifica, o seu ser pessoa:
o homem vive como causa dos seus atos, deles é autor. Nisso

consiste a experiéncia da sua liberdade.106

106 Vale a pena notar a diferenga no uso do conceito de ato em Wojtyla e na filosofia aris-
totélica. Enquanto nessa ültima o ato significa realizagäo de qualquer pontecialidade
escrita em um ente, ern Wojtyla o ato se refere somente a tais realizaqöes, em que é
presente o momento da liberdade.

• 114 •
Trata-se entäo de revelar o sentido da experiéncia da
liberdade que o primeiro homem faz descobrindo a sua subje-
tividade pessoal no contato cognoscitivo com o mundo(Qimos
jå como na anålise de Säo Joäo Paulo II o conhecimento prece-
de a consciéncia; agora
também a liberdade. A liberdade se ativa sobre o fundamento
da consciéncia que é ordenada å verdade objetiva. Vale a pena
observar que uma ideia semelhante se encontra também em
Jacques Maritain na sua anålise do primeiro ato de liberda-
de. Segundo o pensador francés o primeiro ato de liberdade
é realizado, quando o homem transcende as suas inclinagöes
naturais (aquilo que lhe é simplesmente agradåvel ou ütil) e
escolhe o bem pelo bem, em razäo da sua intrfnseca preciosi-
dade (isto é, quando descobre e escolhe o bem que a tradigäo
chamou bonum
A liberdade se revela na experiéncia "posso, mas näo sou
forgado", na qual entra o momento da vontade: "eu quero". Ä ex-

periéncia "eu quero" (que é estruturalmente diferente da experi-


éncia "me vem uma vontade") corresponde uma faculdade, que
é especificamente pessoal: a faculdade da vontade. Gragas a essa
faculdade o homem é capaz de decidir o seu ato. A liberdade é
vivida, porém, sobretudo como propriedade da pessoa e somente
em segundo como propriedade da vontade. De fato, para Wojtyla
"a existéncia da pessoa se identifica com a existéncia do centro
concreto da liberdade".10B Vemos que, desse modo, Wojtyla torna
sua a grande inståncia da filosofia moderna, que exatamente na
liberdade colocou o especffico do ser humano; torna-a sua, mas
ao mesmo tempo a corrige no seu ponto crucial, analisando o

107 fazer o bem pelo bem implica necessariamente que existe uma ordem ideal e
indeclinåvel dajusta consonåncia do nosso agir com a nossa esséncia, uma lei dos atos
humanos que transcende toda ordem factual", J. Maritain, La dialettica immanente
del primo atto di libertå, in id. Ragione e ragioni, Milano, 1982, 105.

108 Wojtyla, Persona e atto, cite, 999.

• 115 •
fenömeno da autodeterminaqäo na qual a liberdade é essencial-
mente vivida.

Devemos, de fato, constatar que na experiéncia da autode-


terminagäo a liberdade é vivida pela pessoa seja como independén-
cia, seja — antes de tudo como dependéncia. Em primeiro lugar se
trata da dependéncia do pr6prio "eu". É realmente essa relagäo que
Wojtyla descreve como transcendéncia vertical. Sou livre, "posso,

mas näo sou forgado", porque dependo de mim mesmo. E gragas


! å autodeterminagäo que o homem vive como objeto, como pessoa,
isto é, como um ser estruturalmente diferente de tudo aquilo que
encontra no mundo. E também por isso que no primeiro momento
homem experimenta a sua solidäo, que serå superada
da criacäo o
somente depois da criagäo do segundo homem (mulher).z

A transcendéncia vertical da pessoa é ligada a uma outra


forma da transcendéncia que Wojtyla chama horizontal. Essa for-

ma de transcendéncia é dada em cada ato cognoscitivo, em que o


homem superando os confins do pr6prio 'teu" ultrapassa a si mes-
mo, toca com a sua mente a realidade objetiva que na sua exis-

téncia näo depende dele$ontudo, a especificidade do homem


seus atos cognoscitivos näo de-
terminam o seu querer. O homem é livre, porque o seu querer
näo é determinado pelos objetosdosseus atos-intencionais. De
fato, na visäo de Wojtyla Iidamos com uma particular dialética

da dependéncia e independéncia no que se refere ao agir do ho-


mem. A vontade é uma tendéncia em direcäo ao bem, que como
tal näo pode näo ser desejado. Nessa prospectiva se poderia pen-
sar que a liberdade do homem vem simplesmente do seu imper-
feito conhecimento-daqui10Auepara ele é bom, da näo-evidéncia
duerdadeircbem. Se o homem o conhecesse, näo poderia näo
escolhé-lo. Ao invés, em Wojtyla o bem atrai a vontade, motiva o
querer, mas também o bem mais atraente näo determina a esco-
Iha da pessoa. Escreve Wojtyla:

116 •
O querer é tendéncia e como tal encerra em si uma cer-

ta forma de dependéncia dos ohjetos, a qual todavia näo


modo nenhum nem aniquila a independéncia, de
deströi de

onde encontramos a expressäo em cada simples "quero", e


mais ainda na escolha.109U

Na linguagem fenomen016gica podemos dizer que na ver-


dadeira decisäo pessoal Iidamos com uma resposta ao valor
(Wertantwort) que se apresenta na consciéncia da pessoa, po-
rém, essa resposta näo é uma simples reagäo, mas um verdadei-
ro e pr6prio ato da pessoa. Assim podemos dizer que no caso
do humano näo Iidamos nem com o determinismo e nem
agir

tampouco como indeterminismo, mas com a autodeterminagäo.

Como é possivel o ato de autodeterminaqäo? O fundamen-


to antico da autodeterminasäo é constitufdo por duas estruturas
do ser pessoal que Wojtyla chama autopossessäo e autodominio.
Jå na anålise da experiéncia do corpo vimos que o homem expe-
rimenta a sua realizagäo ao corpo como possesso ("eu possuo o
meu corpo"). Somente quem possui a si mesmo, somente um ser
que possui a pr6pria natureza, isto é, o ser pessoal, pode decidir
livremente as pr6prias agöes. Por essa razäo o homem se revela
também como uma subståncia particular em meio a todo o cria-
do: o homem é uma subståncia (metafisicamente falam) e vive
como tal tomando consciéncia das suas estruturas de autopos-
sessäo e autodomfnio. É, portanto, que o homem experimenta
a si mesmo como um finico e irrepetivel "eu" (e näo somentev_z
como um exemplar da espécie "homem"). Segue também que 46

quem é caracterizado pela estrutura de autopossessäo näo pode


ser feito propriedade alheia, outros näo o podem nem possuir,
nem dispor dele. A tradigäo acolheu essa verdade no conhecido
adågio: tthomo est sui iuris ed alteri incommunicabilis".

109 Ibidem, 1000.

• 117 •
Resumindo, no seu confronto cognoscitivo com o mundo
o homem se descobre livre — ele depende de si mesmo e näo

depende dos objetos do seu querer. A esse ponto é necessårio,


porém, acrescentar uma pergunta: quando na sua conscién-
cia se apresentam objetos, que motivam mas näo determinam
o seu querer, segundo qual modalidade ele escolhe um deles?
Simplesmente porque "eu quero assim";näo sendo forgado a ne-
nhuma escolha particular? Em outras palavras: a experiéncia da
liberdade se exaure no "posso, mas näo sou forgado" ou talvez hå
nela ainda qualquer coisa a mais?

Para responder a essas questöes precisa recordar aquilo


que no capftulo precedente falamos da precedéncia do ser so-

Na experiéncia da pessoa essa precedéncia se


bre a consciéncia.
traduz no poder normativo da verdade sobre o querer. O homem
experimenta a forga atrativa de vårios valores, por exemplo, di-

versos objetos o atraem, porque respondem aos instintos fun-


damentais escritos no se.u corpo quais o instinto de autoconser-
homem o principal
vagäo e o instinto sexual. Entretanto, para o
ponto de referéncia na sua decisäo näo säo nem os instintos nem
emogöes suscitadas por eles, mas o critério-principaLna escolha
é a verdade.

Busquemos explicar esse ponto com um exemplo muito


simples. Imaginemos ter recebido uma notfcia desconcertante:
alguém, que consideramos nosso amigo, ter-nos-ia trafdo de
modo muito pérfido. A nossa primeira reagäo é naturalmente
a indignagäo, a ira - talvez pensamos em como poderemos nos
vingar. Contudo, depois de um momento de reflexäo nos damos
conta que alguns particulares dessa notfcia estäo em contradi-
gäocom certos fatos que sabemos verdadeiros fora também al-
gumas düvidas. Consequentemente, chegamos å conclusäo que a
notfcia näo é verdade e o nosso amigo näo nos tinha trafdo. Nes-
se momento a nossa reagäo emocional de repente desaparece,

• 118 •
näo queremos nos vingar mais. O que aconteceu? A nossa reagäo
emocional e o nosso querer näo superaram a prova da verdade e,
portanto, näo podem constituir um fundamento da nossa aqäo.
O homem considera a sua aqäo verdadeira livre, quando näo é
vitima de uma falta e de um engano, mas quando pressupöe que
ela repousa sobre a verdade das coisas.

Esse simples exemplo mostra que espontaneamente o ho-


mem toma a verdade como critério do seu agir. Os grandes pen-
sadores medievais indicaram a relaqäo entre a liberdade e a ver-
dade definindo a vontade como appetitus rationalis, isto é, como
desejo do bem, que no caso do homem possui o caråter racional.
O bem da razäo é, ao invés, a verdade. Assim o modo humano de
se inclinar em diregäo ao bem é a busca da verdade — como diz
Wojtyla - da "verdade sobre o bem". O primeiro homem, con-
frontado com a realidade que o circunda, guarda os objetos do
ponto de vista da sua verdade objetiva e, portanto, o seu agir näo
é determinado no modo imediato por nenhum deles. O fi16sofo

Wojtyla explica:

O homem näo é somente um espelho passivo que reflete os


objetos, mas mantém em relagäo a eles uma especifica pre-

eminéncia por meio da verdade; se trata da "superioridade


na verdade" que implica uma certa diståncia dos objetos e
que é inserida na estrutura espiritual da pessoa.110_l

Na situagäo proto-hist6rica o homem, confrontado com o


mundo, comega a viver propriamente a sua preeminéncia por
meio da verdade. Desse modo, comega também a experimentar
a sua liberdade como uma dfiplice dependéncia: dependéncia de
si e dependéncia da verdade (a verdade sobre o bem). Nisso con-
siste o sentido pleno da transcendéncia da pessoa, que segundo
Wojtyla é um outro nome da pessoa.

110 Ibidem, 1032.

119 •
A esse ponto se poderia colocar uma objegäo: da nossa ex-
periéncia cotidiana, isto é, da experiéncia do homem hist6rico que
vive depois do pecado original, sabemos que nem sempre escolhe-
mos a verdade que conhecemos. Acontece, infelizmente muitas ve-
zes, que mesmo conhecendo a verdade sobre o bem a ignoramos
näo por erro, mas por fraqueza ou por maldade. Na linguagem reli-
giosa um ato que näo obedece å regra da dependéncia da verdade
sechama pecado, na linguagem da ética filos6fica falamos do ato
moralmente errado. Contudo — como observa Wojtyla - t'somente
a realidade da culpa, do pecado, do mal moral, revela plenamente
que na vontade humana estå inserida a referéncia å verdade e a in-
trinseca dependéncia dela"lll. Pedro indagado sobre o seu conheci-

mento de Jesus o nega por temor da sua Vida, porém, depois vé que
negando a verdade golpeou näo somente ela, mas aquilo que é mais
precioso nele mesmo, aquilo que constitui "o sacrårio da pessoaj', a
sua consciéncia moral É propriamente na consciéncia moralque o
ligame com a verdade se torna regra do agir da pessoa.
verdade, as nossas decisöes nem sempre seguem essa
regra. O ligame com a verdade — a possibilidade de conhecé-la e

uma capacidade que pertence å natureza da pessoa,


escolhé-la — é
mas näo é realizada em cada escolha concreta. O homem é livre -
"pode, mas näo é forgado". Todavia, a experiéncia da liberdade näo
se exaure no "posso, mas näo sou forgado". No momento do ato
cognoscitivo, em que o homem afirma uma verdade ao "posso, mas
näo sou forgado" se acrescenta o "devo" — devo permanecer fiel å
verdade que cheguei a conhecer. Para Wojtyla é nessa experiéncia
vivida que encontramos o momentoanais original da moralidade.
deyermoraléaforma experimental da dependéncia da verdade,
em que_estå sujeita a liberdade da pessoa".112 Transcendendo a si

111 Ibidem, 1008.


112 Ibidem, 1028.

120 •
mesmo na transcendéncia horizontal o homem espontaneamente
se identifica com a verdade. Portanto, a fidelidade a mim mesmo e
a fidelidade å verdade conhecida e afirmada näo podem ser separa-
das. E observe bem: se trata de cada verdade, também aquela que
å primeira vista pode parecer banal como o fato de conhecer um
certo homem. Cada verdade em uma determinada situagäo pode
revelar a sua forga normativa. Tadeusz Styczen fala da "armadilha

da verdade" que, por assim dizer, destrava em cada ato cognoscitivo.—l

11 anålise da experiéncia moral retornaremos ainda no


capftulo dedicado å nudez original.A esse ponto podemos dizer
que o ethos da pessoa, que o primeiro homem descobre junto
com a descoberta da sua identidade pessoal, da sua subjetivida-
de que contém em si o momento da autodependéncia, consiste
em se deixar depender da verdade. Assim o primeiro homem
descobre que ser pessoa significa ser testemunha da verdade.

121 •
CAPfTULO IV

A UNIDADE ORIGINAL:
NATUREZA COMUNHONAL DA PESSOA

Sobre o cenårio da solidäo existencial do homem, isto é,

sobre a base da sua irredutibilidade cosmolögica e a sua trans-


cendéncia em confronto com o mundo, emerge a segunda co-
ordenada da situacäo proto-hist6rica - a unidade original do
homem e da mulher. Na anålise de Säo Joäo Paulo II o sentido
da solidäo näo é, de fato, somente positivo, a partir do momen-
to em que exprime a subjetividade pessoal do homem, mas
também negativo. No Livro do Génesis, Deus mesmo exprime o
julgamento negativo sobre essa situagäo: "Näo é bom que o ho-
mem esteja s6" (Gn 2,18). Essa avaliacäo axiolågica conduz di-
retamente å criagäo do segundo homem, o qual se revela como
uma diferente encarnagäo da humanidade. No sucinto texto do
Livro do Génesis estäo subentendidos importantes problemas
filosåficos. Qual é a relagäo entre subjetividade e interpersona-
Iidade? Qual papel joga aqui a diferenga sexual? Falando mais
em geral, se vemos o problema no contexto da filosofia moder-
na,que de Hobbes, Hegel e Marx a Sartre focalizou o problema
da interpersonalidade em chave de conflito, vale a pena nos

• 123 •
perguntar: qual é o "estado natural", isto é, qual a relacäo ori-
ginåria de uma pessoa å outra? Säo as perguntas que buscare-
mos confrontar nesse capitulo.

1. PESSOA: SUBSTANCIA E RELACÄO

Do ponto de vista da filosofia é interessante o fato que na


narragäo biblica a solidäo preceda a unidade. Qual é o signifi-

cado desse fato? Parece que deve ser entendido näo tanto do
sentido temporal - a situagäo proto-histårica precede de qual-
quer modo o tempo hist6rico — quanto naquele ontolågico, isto

é, aquele que trata a estrutura da pessoa humana. É interessante


sublinhar que falando da diferenqa sexual, a qual aparece com
a criagäo do segundo homem, Säo Joäo Paulo II sublinha que é
posterior ao fato de que o homem seja corpo.
Embora o corpo humano, na sua normal constituigäo, leve
consigo os sinais do sexo e seja, por sua natureza, masculino
e feminino, todavia ofato que o homem seja "corpo" pertence å

estrutura do sujeito pessoal mais profundamente dofato que ele


seja na sua constituigäo somåtica também macho e fémeafror-
tanto, o significado da solidäo originåria, que pode ser referi-

do simplesmente ao "homem", é substancialmente anterior ao


significado da unidade originåria; essa ültima basea-se sobre a
masculinidade e sobre a feminilidade, quase como sobre duas
diferentes 'tencarnagöes", isto é, sobre dois modos de "ser corpo"
do mesmo ser humano, criado "å imagem de Deus" (Gn

A diferenga sexual tem o seu fundamento na corporeidade, a


qualifica ulteriormente como masculino e feminino. Agora, depois
da criagäo da mulher, o homem-macho näo estå mais sozinho, näo
é mais "um corpo entre outros corpos", mas comega a existir como

113 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 49.

• 124 •
fio corpo da pessoa diante do corpo de uma outra pessoa" e esse
fato entra na sua autoconsciéncia e a modifica. A pessoa comega a
viver a sua constitutiva abertura em diregäo ao outro e aquilo em
certo sentido leva å redefinigäo da sua identidade.

Essa identidade é jå dada anteriormente, o encontro com a


outra pessoa näo a cria, mas a modifica, mesmo se essa modifica-
gäo é decisiva. Na filosofia do ültimo século teve lugar um debate
entre a subståncia e a relacional teoria da pessoa. m uma certa
filosofiæd diålogo representada, por exem 10, por Martin Buber
a pessoa existe somente como relaqäo, ser pessoa o omenvse
constitui no espago "entre" dois polos tteu tu".114 Wojtyla bus-
ca, ao invés, afirmar ambasas dimenso essoafsubståncia e
ry!asäo, mas nele a subståncia (subjetividade metaffsjcaenas ca-

tegueses a solidäo) constituracondigäo ont016gica da relacäo.


Essa visäo é evidente também em Pessoa e ato, onde a anålise da
subjetividade pessoal precede a reflexäo sobre a interpersonali-
dade (na terminologia de Wojtyla — a participagäo).115

Para a pessoa a relacäo näo é somente alguma coisa de adi-


cional, algo que poderia também näo existir. A relacionalidade en-
tra na mesma subståncia da pessoa, tornando possivel a sua atu-
alizagäo sobre o plano experimental. A potencialidade de realizar
as qualidades pessoais é escrita no mesmo ser da pessoa; somen-
te porque ontologicamente essa potencialidade é jå dada, o ho-
mem pode tornar-se pessoa também sobre o plano experimental.
Um ser privado de tal potencialidade ont016gica nunca poderå se
constituircomo sujeito pessoal. Por outro lado, a ativagäo das po-
tencialidades pessoais, o se constituir do homem como especifica

114 Cf. M. Buber, Das dialogisc.he Prinzip, Heidelberg 1965.


11S No ensaio de Wojtyla Persona: soggetto e cornunitå lemos: "O 'tu' estå diante ao 'eu•
como verdadeiro e completo 'outro eu', constitufdo — pröprio como o meu 'eu' näo
somente da autoconsciéncia, mas sobretudo do autopossessäo e do autodominio", in
Wojtyla, Metafisica della persona, cit., 1368.

125 •
forma de transcendéncia horizontal e vertical, depende do encon-
tro com o outro.) Robert Spaemann sustenta ainda que uma pes-
soa solitåria näo é possfvel e que podem existir somente pessoas,
recordando que o mesmo conceito de pessoa foi cunhado pelos
primeiros teölogos cristäos para explicar as relagöes entre as trés
pessoas divinas.t16 Como devemos compreender essa tese de Spa-
emann no contexto do nosso problema, isto é, da relagäo entre
a solidäo (entendida como subjetividade ontolågica) e a unida-
de (entendida como relacionalidade) do homem? Queria propor
a seguinte interpretagäo: cada homem é dotado daquilo que os
medievais chamam o appetitus e assim diversas coisas do mundo
lhe aparecem como bona appetibili. Por isto o homem pode tratar
cada coisa como objeto do seu desejo e pode buscar se apoderar
de qualquer coisa. Isso comega jå no seu conhecimento, no qual o
homem assimila o mundo na sua interioridade, dela faz "o seu mun-
do". Essa capacidade humana foi descrita bem por Jean-Paul Sartre.

Sartre escreve que por meio do seu olhar o homem transcende as


coisas do mundo, porque somente ele é capaz de as observar desse
modo. O homem atribui os significados ås coisas do mundo, assim
tudo aquilo que encontra se torna para ele objeto. Ele observa o
mundo, mas o mundo näo o observa do mesmo modo. Esse modo
de se relacionar com o mundo Emmanuel Lévinas chama "totali-

dade". Somente o homem aparece no mundo como sujeito, que do


seu ponto de vista "totalizaj' toda a realidade. Ocorre, porém, nos
perguntar se desse modo o homem realiza verdadeiramente as
suas potencialidades especificamente pessoais?iiambém o animal
bserva o mundo do ponto de vista das suas necessidades, an-

tes, propriamente o animal totaliza o mundo tratando a si mesmo


como o seu centro, vivendo naquela posigäo céntrica, da qual fala
Plessner. 0 homem - enquanto o animal rationale - poderia mes-

mo ele permanecer na posigäo céntrica, referindo tudo a si, po-

116 Por esse motivo o titulo do seu livro sobre o conceito de pessoa recita Persone.

• 126 •
como um ser natural mais potente dos outros, porque
deria viver
dotado daquele sofisticado instrumento que é a razäo - mas nesse
caso a sua razäo seria reduzida å fungäo instrumental. Ele poderia
ver tudo somente como correlato ao seu apetite, que assim se tor-
naria o seu critério do bem e may
A situagäo muda, ao invés, radicalmente com a criagäo do
segundo homem. Agora o homem-macho encontra alguém que
lhe é semelhante, ohomem-mulher, de que se pode dizer "osso
dos meus ossos, carne da minha carne". Vemos
vez, como o corpo revela a pessoa: na dimensäo somåtica se ma-
nifesta a transcendéncia da pessoa em rela9äo a todo o resto do
mundo. Confrontado com o corpo da mulher, o homem-macho
deve reconhecerque agoraestådiantedealguém (e näo de qual-
quer coisarcomcy näo podeser reduzida
ao stat-usdeobjeto-porele„ porquetambémela é um sujeito.

IVara Säo Joäo Paulo II as palavras "osso dos meus ossos,


carne da minha carne" antes ainda de conduzir ao sentido da
diferenga sexual exprimem — através da homogeneidade somå-
tica de ambas as pessoas — a sua igual humanidade. A diferenga
sexual, em que se exprime a unidade do homem e da mulher:
o homem é para a mulher e a mulher para o homem, se apoia
sobre a unidade ainda mais fundamental — sobre a unidade na
humanidade. Escreve o Papa:

A mulher vem criada, em um certo sentido, sobre a base da


mesma humanidade. A homogeneidade somåtica, näo obs-
tante a diversidade da constituigäo ligada å diferenga se-
xual, é assim evidente que o homem (macho), acordado do
sonogenético, a exprime sübito, quando diz: "Dessa vez ela
é carne da minha carne e osso dos meus ossos! Ela se cha-
marå mulher, porquefoi tirada do homem" (Gn

117 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 57.

• 127 •
O encontro com com o outro "eu", enxerta
a outra pessoa,
uma nova_modalidade-de-relagäo com (j-mttndo. O outro, tam-
bém na sua ser visto somente do
ponto de vista do apetite, näo pode ser tratado somente como
um bonuma etibile. A outra pessoa aparece no mundo como
um bem que é antes de tudo um bonum_uffirmabile. O '"tu"

transcende o mundo no mesmo modo como o "eu" e, portanto,


näo pode ser usado com a medida das outras coisas do mundo.
A percepgäo desse valor, que Wojtyla chama o valor transcen-
dental da pessoa muda, porém, o proprio sujeito. E e nao pode
mais se ver como o centro do mundo, é chamado a deixar a sua
"pgsigämcéntricat Falandocom Lévinas, o encontro com a face
do outro revela um valor infinito. A facediÜTO nao me podes
matar", isto é, tu näo me podes tratar como um simples objeto.
Propriamente essa experiéncia realiza no sujeito uma poten-
cialidade claramente pessoal, ou seja, a capacidade de perce-
ber o bem como aquilo que chama o empenho pela liberdade, o
qual näo é motivado pelö interesse pr6prio, mas pela vontade
de fazer jus å grandeza do valor percebido.118 Como ainda ve-
remos, a percepgäo do outro como valor transcendental cul-

minarå no om e si feito@outraQessoæNesse momento nos


toca colocar o acento sobre o fato que, em certo sentido, no
encontro com o outro o sujeito transcendeasuatendéncia de se
apropriar donundoÄssim - na interpersonalidade - revela-se
plenamente como pessoa. luz dessas consideragöes podemos
entender a afirmagäo do Papa segundo que a busca pela identi-
dade humana daquele que ao infcio é sozinho, deve passar pela
dualidade, a comunhäo.119

118 Vale a pena recordar aqui a distinqäo entre dois movimentos da vontade que faz Duns
Scotus: affectio iustitiae e affectio commodi. Segundo ele ambos fazem parte da natu-
reza da vontade.

119 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö, cit., 58,

• 128 •
Na anålise de Säo Joäo Paulo II as palavras "osso dos meus
ossos, carne da minha carne" exprimem também a alegria do pri-

meiro homem ao encontrar alguém que lhe é semelhante. Com


o outro 'teu" ele pode entrar em comunicagäo, coisa que näo era
possfvel com os seres näo pessoais e esse fato é para ele um mo-
tivo de alegria. A comunicagäo encontrarå o seu culmine-naquela

acommunio personarum", em que duas pessoas, mesmo permane-


cendoasuæsolidäo-metaffsica, tornam-se "uma s6 carne". Retor-
naremos ainda a esse ponto; agora queremos sublinhar que na
alegria do primeiro homem ao encontrar a mulher podemos ver
a expressäo daquela afirmagäo da existéncia do outro, em que
consiste no mais profundo sentido do amor. ttBem que tu estejas"

- assim define o amor Josef Pieper.120 0 seu sentido ético näo se


refere a um conjunto de qualidade da pessoa amada, mas vai além
da qualidade e se refere å sua existéncia. Nesse sentido Robert
Spaemann escreve, que näo amamos realmente uma outra pessoa
até que podemos dizer porque a amamos,121 Cada "porque" tem
a sua razäo nas qualidades da pessoa amada, qualidade que ela
poderia também perder ou que uma outra pessoa poderia possuir
em uma medida ainda maior — assim o nosso amor permanece
sempre condicionado. 0 amor incondicionado se refere, ao invés,
å existéncia da pessoa, que näo é caracterizada pelas qualidades
- a existéncia é a pura facticidade, o mero existir. Como parece,
é propriamente a existéncia da mulher que suscita a alegria do
homem. A mesma consideragäo poderia ser referida a essa comu-
nicagäo entre as pessoas que estå na base da sua comunicagäo. Tal
comunicaqäo näo se refere a alguma das propriedades das pes-
soas, mas o seu pr6prio modo de ser. Stanislaw Judycki a chama
"comunicagäo existencial" e a caracteriza no seguinte modo:

120 Cf.Josef Pieper, Sull'amore, Morcelliana, 2012.


121 R Spaemann, Antinomien der Liebe, in id., Schritte uber uns hinaus. Gesammelte
Reden undA4fsätzeII, Klett-Cotta, Stuttgart, 2011, 13.

• 129 •
Existem situagöes, em que pessoas se comunicam entre
mas o objeto da comunicagäo näo é nenhuma coisa do
elas,

mundo, algum tratado do caråter, alguma situagäo, mas —


se podemos dizer assim — o objeto da suaxvnunicasäQ_é
constitu[do por seu pr6prio status öntico.1Z2

Nos nossos termos: o objeto da sua comunicagäo é a sua


pr6pria existéncia, as pessoas na sua relacäo se referem recipro-
camente å existéncia e a afirmam. A comunicasäo existencial é

diferente dos outros tipos de comunicagäo, porque nela aspes-


soas transcendem a totalidade(no sentido de_Lévinas), com que
é sempre ligado qualquer interesse pr6prio, e entram na dimen-
säo_da gratuidade. A afirmagäo da existéncia, que advém na co-

municagäo existencial, näo motivada pelo interesse pr6prio, por


um lucro que o sujeito pode ter, mas é des-interessada. Quando
Säo Joäo Paulo II fala da exaltagäo, que o homem-macho experi-
menta diante da mulher, parece ter propriamente em mente essa
atitude de estupor que em certos casos se assemelha å admiragäo
estética, caracterizada de Cato pela auséncia do interesse pr6prio.
Parece que esse seja o sentido mais profundo da capacidade de
participar å humanidade de cada homem que segundo Wojtyla
- constitui o nücleo de cada outro tipo de participagäo.123

2. DIFERENCA ONTOLOGICA E DIFERENCA SEXUAL


A criagäo do segundo 'teu" acontece na dimensäo da carne,
isto é, se exprime na diferenga sexual. A partir desse momento temos
duas encarnagöes da solidäo metafisica do homem e duas diferentes
e, ao mesmo tempo, complementares consciéncias do corpo. Vale a
pena refletir sobre a géneses da diferenga sexual comparando å visäo
biblica com a filosofia grega, que buscou descobrir a sua origem.

122 Judycki, cit., 153•

123 Cf. Wojtyla, Persona e atto, in Metafisica della persona, cite, 1208-1209.

• 130 •
Nesse contexto queria chamar a atenqäo para um fato
que me parece fundamental. Segundo meu parecer o cristia-

nismo colocou em destaque duas formas da diferenga que, ao


mesmo tempo, säo universais, isto é, encontram a sua expres-
säo particular em diversas culturas. Elas säo essenciais para a
mensagem cristä, assim que näo se pode pensar o cristianismo
sem pensar a essas duas formas da diferenga. Uma - mais 6b-
via — é a diferenga ontolögica, a outra — talvez menos 6bvia no
que se refere a sua pertenqa essencial å mensagem cristä é a
diferenga sexual.

A religiäo bfblica, com a mensagem do Livro do Génesis,


contém em como constata Säo Joäo Paulo II nas suas cate-
si -
queses sobre o amor humano — "uma potente carga metaffsica".
Para o pensamento grego o mundo é eterno e a agäo de Deus se
limita a ordenar a matéria que existe desde sempre. O Livro do

Génesis, ao invés, pensa Deus como criador que chama as coisas


å existéncia do nada. "Näo se esqueqa - continua Säo Joäo Paulo II
— que esse mesmo texto do Livro do Génesis se tornou a fonte
das mais profundas inspiragöes para os pensadores que bus-
cavam compreender 'o ser' e 'o existir"'.124 A temåtica teorética

daquilo que -- especialmente a partir do pensamento de Martin


Heidegger - costumamos chamar a diferenga ont016gica e que
na linguagem da metaffsica clåssica chamamos a contingéncia
do ser, remota a Säo Tomås de Aquino, que sobre a descoberta
do papel do ato de existéncia no ente real construiu toda a sua
metaffsica. Näo podemos naturalmente entrar aqui nos seus de-
talhes, mas podemos constatar ao menos isso: Sem pensar a di-
ferenga ont016gica näo é possivel pensar o cristianismo, porque
näo se pensa Deus como criador (e isto quer dizer: como alguém
que é essencialmente diferente do homem, o qual näo é capaz de

124 Säo Joäo Paulo II, Ihomo e donna 10 creö, cit., 35.

131 •
criardo mesmo modo). Nesse sentido a diferenga ontolögica é
essencial å mensagem cristä e cada tentativa da sua neutraliza-

Gäo equivaleria å neutralizagäo da diferenga cristä.

Mas o Livro do Génesis fala — no mesmo texto que contém


em si a intuigäo da diferenga ont016gica - da outra forma da di-

ferenga, que do meu ponto de vista é igualmente essencial para a


mensagem cristä. Na historia da criagäo é destacada a criagäo do
homem que é criado å imagem e semelhanga de Deus (mesmo se
tomado do p6 da terra se assemelha mais a Deus), mas nos é dito
ao mesmo tempo que o homem é a imagem de Deus enquanto
macho e fémea: "Deus criou o ser humano å sua imagem ( )
Homem e mulher ele os criou" (Gn 1,27). Aliås: como observa
Jacques Derida no seu texto Geschlecht, é interessante que na sua
analitica do Dasein de Heidegger substancialmente näo tematiza
o problema da diferenga sexual, como se ela näo fosse bastante
importante para compreender a sua existéncia. Por outro lado,
devemos admitir que tam>ém na historia da teologia até os tem-
pos recentes, a essa problemåtica näo se dedicou muita atengäo.
Ao como vimos, a Biblia desde o infcio define a identidade
invés,

do homem como identidade relacional, isto é, a identidade que


se constitui por meio do confronto com outro. O homem, no se-
gundo relato da criaqäo, é desde antes sozinho e essa sua solidäo
é para ele um motivo de tristeza. "Näo é bom que o homem esteja
so" — constata Deus — "Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corres-
ponda" (Gn fazer emergir melhor a originalidade da
mensagem bem comparar a uma outra narragäo so-
biblica faz

bre a origem da diferenga sexual, isto é, com o discurso de Aris-


töfanes no Simpösio de Platäo. No diålogo platönico, a originåria
natureza t'siamesa" do homem foi dividida por Zeus por punigäo.
"Portanto — diz Ariståfanes — é assim täo enraizado nos homens
o reciproco amor de uns com os outros que nos leva å antiga
natureza e busca fazer de dois um e de restaurar a natureza hu-
mana. Cada um de n6s, portanto, é como sfmbolo de homem,

• 132 •
dividido como é de um em dois" (191d). Enquanto no discurso
de Platäo a diferenga é derivada por uma unidade originåria, no
discurso biblico o homem é um ser dual desde o inicio ("macho
e fémea os criou"), a diferenga é originåria e é a partir dela que
se chega å unidade.125 No contexto cristäo esse dado se explica
ulteriormente enquanto o homem é pensado como imagem de
Deus, que em si näo é um Deus solitårio, mas Deus-comunidade
(de resto vale a pena observar que filosoficamente Deus pode
ser entendidocomo amor somente se é entendido como pessoa
e se permanece em relacäo com as outras pessoas divinas, como
se vé, por exemplo, em Aristöteles, Deus solitårio näo é amor). É
interessante aquilo que no comentårio å hist6ria da criagäo do
homem escreve Säo Joäo Paulo II:
O homem se torna imagem de Deus näo tanto no momento
da solidäo quanto no momento da comunhäo. Ele, defato, é
desde "o principio" näo somente imagem em que se reflete
a solidäo de uma Pessoa que rege o mundo, mas também,
e essencialmente, imagem de uma imperscrutåvel divina
comunhäo de Pessoas.126

A diferenga que conduz å comunhäo, em que se reflete o


seu modelo primeiro, é realmente a diferenga sexual. Por isso
considero que a diferenga sexual pertenga indiscutivelmente
åquilo que constitui a diferenga cristä, isto é, å sua identidade.

A diferenca sexual é também ela o ponto zero, isto é, um


dado de onde partir no concerne a explicagäo do homem. Pode-
mos dizer que a pessoa humana se "explica" através da outra pes-
soa, porque somente na outra pessoa encontra alguém com quem

pode entrar na relagäo de amor. Essa explicagäo näo é, porém,

125 Para ulterior desenvolvimento dessas intuiGöes cf. Emilio Baccarini, La persona e
i suoi volti. Etica ed antropologia, Anicia, 2003, 2A. ediqäo, 227-231.

126 Säo Joäo Paulo II, L'uomo e donna 10 creö, cit., 59.

• 133 •
definitiva. Também o amor_parßicipa å contingéncia do ser huma-
no e, portanto, deseja ser "ancorado" no Absoluto da existéncia
Esses säo naturalmente somente alguns acenos que näo podem
ser desenvolvidos nesse lugar, mas indicam de novo o ligame que
existe entre a diferenga sexual e a diferenga ont016gica.

Pode-se neutralizar essas duas formas de diferenga de que


falamos? Näo creio, mas menos buscar fazer. É uma
se pode ao
tentacäo muito antiga, de fato ela acompanha o homem desde o
infcio. Depois que os primeiros genitores comeram da årvore do

conhecimento do bem e do mal, a serpente diz å mulher - "De


modo algum morrereis." (Gn 3,4). No meu modo de ver, uma cer-
ta ide016gica inspirada pela ciéncia moderna nos ilude de fato
com a pretensäo de criar "um novo homem", o qual, na Kontin-
genzbewältigung, confia somente nas pr6prias forgas. Por outro
lado, a tentativa da pluralizagäo das identidades sexuais equi-
vale åmeutralizaqäo-dadiferengmsexual homem-mulher como
difgygpgp_orjginåria.

A superagäo da solidäo advém entäo na dimensäo do cor-


po. Com a criagäo da mulher se constituem ambas as dimensöes

fundamentais do ser pessoal, que estäo escritas no corpo: a di-

mensäo da solidäo metaffsica, isto é, o seu ser uma subståncia


separada de outras subståncias, e a dimensäo comunhonal que
é a abertura å outra pessoa, a possibilidade de superar a solidäo
na comunhäo. No drama de Wojtyla Raggi di paternitå, o narra-
dor (macho) diz: "Näo fizeste de mim um ser fechado, näo me
fechaste completamente. A solidäo näo estå absolutamente no
profundo do meu ser, mas emerge em um ponto bem preciso "127 .

distingäo e abertura: a matéria


separa, mastambém endere a em diregäoao outro. Jå o mesmo

127 K. Wojtyla, Frateilo del nostro Dio e Raggi di Paternitå, Libreria Editrice Vaticana,
1982, 138-139.

• 134 •
impulso sexual, escrito na estrutura do corpo e compartilhado
com os animais mais desenvolvidos, enderega o homem em di-
regäo å pessoa do outro sexo e possui, portanto, o sentido näo
somente natural, mas personalistico.128 0 homem e a mulher vi-
vem esse impulso na totalidade do seu ser pessoal: sobre o nfvel
somåtico, emotivo e espiritual. Assim a mesma tendéncia sexual
faz presente homem as palavras de Deus do
na experiéncia do
Livro do Génesis: "Näo é bom que o homem esteja sozinho".

Na experiéncia do corpo estå presente, portanto, a verdade


do ser pessoal, pelo qual a pessoa é uma substånciametaffsica
que tem necessidade de entrar em relagäo com outrapessoa (ou-
tras pessoas)para realizar plenamente aquilo que é. Essa relacäo
encontra o seu culmine naquilo que Wojtyla (e depois Säo Joäo
Paulo chama a "communio personarum", comunhäo das pes-
II)

soas. A comunhäo näo é uma simples comunidade, é mais pro-


funda, toca o mesmo nivel existencial da pessoa. Podemos dizer
que no Livro do Génesis, sobre a base da comunicagäo existencial
entre ohomem e a mulher ("é bom que tu existas"), se constitui a
sua comunhäo existencial ("se tornam uma so carne").

Podemos ver que aqui somos os antfpodas de um influen-


te filäo da filosofia moderna que vai de Hobbes a Marx e Sartre.

Também Thomas Hobbes, considerado o pai da moderna filoso-


fia polftica, parte, na sua reflexäo, do estado original do homem

(para ele esse estado é o estado natural, pré-politico) e também


homem se encontra no infcio na situagäo que poderemos
para o
chamar "a solidäo original". Em Hobbes o sentido da solidäo é,
porém, muito diferente daquilo que tfnhamos encontrado na

128 Ern Persona e atto Wojtyla faz a pergunta: "O significado dos impulsos na pessoa é
dado sobretudo pela forga subjetiva das reagöes somåticas que se liberam gragas a
eles, ou ao contrårio do valor objetivo dos fins com que o homem é por eles enderega-
dos? [...l Dado o caråter racional da pessoa humana ocorre propender, ao contrårio,

• 135 •
anålise de Säo Joäo Paulo II. O estado natural hobbesiano é carac-
terizado pelo inerente conflito que deriva da ilimitada liberdade
de cada homem. A liberdade sem limites contém em si também o
potencial de agressäo, também a possibilidade de matar o outro,
se ele de qualquer modo obstaculiza a minha liberdade de fazer
tudo o que quero. Assim a Vida do homem no estado natural é -
como a descreve Hobbes — "solitary, nasty, brutish and shore' 129

Nessa visäo do estado natural é, portanto, caracterizado pela ini-


mizada original daquela famosa guerra 'tde todos contra todos".
Na situagäo original o homem aparece como ameaqa para o outro
homem: "homo homini lupus". Ultimamente ninguém quer perma-
necer em tal situaGäo, porque também sobre o mais potente, que
poderia tentar submeter os outros å pr6pria vontade, pode pre-
valecer a massa. De qualquer modo nessa situagäo um tem tanto
direito quanto poder, e porque ninguém tem o poder absoluto,
ninguém pode se sentir seguro. Qual é entäo o remédio? Pode-se,
por assim dizer, antecipar o conflito, cada um pode renunciar å
parte da pr6pria liberdade, aquela que é capaz de ameagar a Vida
do outro. Tal renüncia se releva vantajosa para todos e ela estå na
base do contrato social. Desse modo nasce o estado politico - na
nossa terminologia diremos: o estado hist6rico, no qual se cons-
titui o espago que torna possfvel a Vida humana.

Encontramos a mesma ideia da inimizade original na fi-

losofia politica de Marx, em que ela é expressa nos termos do


conflito de classes sociais e representa a fundamental forga que
move a hist6ria.13D Também na antropologia de Sartre, em que
o homem confirma a pr6pria subjetividade transcendendo as
coisas com o seu olhar, a presenga do outro é percebida mais

129 Cf. Th. Hobbes, Leviathan, cap. XIII.


130 Como parece, em Marx a ideia do parafso é mmida do infcio ao fim no final da hist6-
riat e coincidiria com a introduqäo de uma sociedade sem classes. Contudo, o caminho

em diregäo a esse fun requer e justifica muitissimos sacrificios de vidas humanas que
de qualquer modo obstaculizam a realizaqäo dessa nobre meta.

136 •
como ameaga å pr6pria liberdade. Encontrando o outro, o su-
jeito se encontra (e se confronta) com uma outra subjetividade,
que olhando o mundo o objetiva no seu mundo; essa objetivagäo
incluitambém o proprio sujeito que assim se torna o objeto no
mundo do outro. Para Sartre tal situagäo é carregada de conflito
- o mesmo encontro com o olhar de uma outra pessoa constitui
o princfpio do conflito original. Nesse conflito se pode buscar
suprimir o olhar do outro, matando-o, mas também se pode ten-
tar mudar o sentido do seu olhar, forgando-o a aceitar a posigäo
do objeto no meu mundo, O clåssico exemplo de tal submissäo a
encontramos na famosa dialética escravo-paträo de Hegel. Näo é
diffcil encontrar essa visäo também naquela filosofia que teoriza
o fundamental conflito entre os sexos (ou mesmo a sua guerra).
naturalmente Säo Joäo Paulo II näo nega que no homem
exista a carga de agressäo, que pode levar ao conflito. No nosso
mundo o experimentamos muitas vezes. Para ele, porém, essa
carga näo é original, näo exprime a verdade original do homem;
o potencial agressivo é consequéncia do pecado, com que no co-
ragäo do homem entrou a concupiscéncia. Teremos ocasiäo de
ver como o pecado original constitui um tipo de choque antro-
p016gico, porque a concupiscéncia introduz um equilfbrio nas
forgas internas do homem e com aquilo também nas relagöes in-
terpessoais.Na situaqäo original, ao invés, o homem encontra a
afirmagäo da pr6pria humanidade näo na submissäo do outro å
pr6pria vontade, mas no dom de si ao outro que conduz å "com-
munio personarum". Na comunhäo a pessoa, cuja estrutura fun-
damental é aquela de autopossessäo, pertence å outra pessoa
sem, contudo, experimentar tal pertenga como limite imposto å
pr6pria liberdade, mas muito mais como a sua potencialidade.
Assim na "communio personarum" a liberdade encontra o seu
cumprimento no dom de si que profundamente muda a mes-
ma identidade da pessoa. O homem, que jå na solidäo original
estava em busca da pr6pria identidade, encontra-a plenamente

• 137 •
na comunhäo - a partir desse momento a sua identidade se tor-

na comunhonal. Na comunhäo as pessoas näo existem somente


uma ao lado da outra, mas uma existe "para" a outra.
Aqui de novo encontramos o significado antrop016gico da
diferenga sexual.A dinåmica da diferenga sexual é diferente da-
quela descrita em Hobbes ou Sartre. Ela guia o homem em dire-
gäo å mulher e a mulher em diregäo ao homem, de modo tal que
ambos encontram a afirmagäo daquilo que säo — isto é, macho
e fémea - somente na sua reciproca relagäo. No interior dessa
dinåmica o outro näo é experimentado como ameaga, mas como
o indispensåvel complemento. A feminilidade revela o sentido
da masculinidade e vice-versa. Escreve o Papa:

Realmente a fungäo do sexo, que é, em um certo sentido,

"constitutivo da pessoa" (näo somente "atributo da pessoa"),

demonstra quäo profundamente o homem, com toda a sua


solidäo espiritual, com a unicidade e irrepetibilidade prö•
pria da pessoa, seja con$itufdo do corpo como "ele"ou "ela".

A presenga do elementofamiliar, ao [ado daquele masculino


e junto com ele, tem um significado de um enriquecimento
para o homem em toda a prospectiva da sua histåria.ßl

O corpo aparece assim näo como um fator de distingäo e


separagäo, porém mais como principio de comunhäo: o homem
é para a mulher e a mulher é para o homem. Éjsso que Säo Joäo

chama o sentido esponsal docorpo. O corpo na sua


configuragäo sexual encerra em si "a capacidade de exprimir o
132
amor , a potencialidade de ser näo somente t'com", mas tam-
bém "para", que caracteriza a existéncia esponsal. Naturalmente,
também nesse caso näo se pode ignorar o fato de que o corpo de
uma outra pessoa possa ser abusado. No estado hist6rico essa

131 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 62.
132 Ibidem, 77,

• 138 •
possibilidade é real e dele faz fé o fenömeno do pudor sexual,
que analisaremos no capftulo seguinte. Mas - como ainda vere-
mos - o mesmo pudor reenvia åquele sentido originårio da dife-
renca sexual, pelo qual no corpo estå inscrito a necessidade da
comunhäo. "Näo é bom que o homem esteja s6".

Nessa prospectiva o ato sexual use tornam uma s6 carne"


- aparece como Sinal e realizagäo da unidade de homem e mu-
lher. Somente assim ele mantém todo o peso existencial que lhe
é pr6prio. Como jå vimos, no interior da linguagem do corpo o
ato sexual exprime o dom total de si å pessoa do outro sexo, rea-
liza aquela mütua pertenga das pessoas em que consiste o amor
esponsal. Para poder exprimir o amor entendido comodomde
si, o ato sexual deve também ele possuir a qualidadeutrans-
cendéncia. Trata-se desairdesjpara recebero outro como um
outro, de afirmar o outro por ele (ela) mesmo e näo de tratå-lo

somente commummeicparaarealizagäode simesmos. Portan-


to, o verdadeiro amor näo é possfvel para uma filosofia que pra-
ticamente nega a capacidade de autotranscendéncia. No interior
de tal filosofia qualquer "eu te amo" se traduz necessariamente
em expressäo do amor pr6prio. Se a realidade do homem fos-

se aquela como a descreve Hume — "we never advance one step


beyond ourselves" - o amor do outro seria uma ilusäo. Se, porém,
homens e mulheres vivem o amor como dom, isso significa que
a exigéncia de sair de si faz parte da sua experiéncia elementar.
A faculdade de transcendéncia horizontal, que temos analisado
acima, a possibilidade de sair de mesmo em diregäo å verda-
si

de, que näo depende de n6s, faz de tal modo que essa exigéncia

possa ser realizada.

Na experiéncia do amor como dom de si é envolvida


também a transcendéncia vertical da pessoa. O amor entre o
homem e a mulher que estå na base da sua comunhäo - amor
que se exprimemadimensäo do corpo, näo se desenvolve ao

• 139 •
nfvel é<indicado" pela tendéncia
natural inscrita no corpo), mas-aonfvel da pessoa.Retomando a
distingäo de Wojtyla introduzida em Pessoa e ato podemos dizer
que, visto nessa 6tica, o amor näo é somente "alguma coisa que
advém no homem", mas sobretudo é um verdadeiro e pråprio
ato da pessoa, em que é envolvida pela sua operatividade. Isso
é possivel porque a pessoa é caracterizada pela transcendéncia
vertical, isto é, possui a si mesma e pode decidir por si mesma.
Säo Joäo Paulo II escreve:

A mesma formulagäo de Gn 2,24 indica näo somente que


os seres humanos criados como homem e mulher foram
criados para a unidade, mas que propriamente essa unida-
de, por meio da qual se tornam "uma s6 carne", tem desde
o inicio um caråter de uniäo que deriva de uma escolha...

O corpo, que através da pröpria masculinidade e feminili-


dade, desde o infcio ajuda ambos Cuma ajuda que lhe seja
semelhante") a se encontrar em comunhäo de pessoas, se
torna, de modo particular, o elemento constitutivo da sua
uniäo, quando se tornam marido e mulher. Isso se atua, po-
rém, através de uma reciproca escolha.f33

A escolha é possivel
e autodeterminagäo. Quem näo possui a si mesmo, näo pode
decidir de se doaraooutro. Assim na unidade original, as estru-
turas-deautopossessäme autodeterminagäo, que foram consti-
tufdas na solidäooriginalxevelarmosewsenso mais profundo.
Eles tornam possfvel a superagäo da solidäo, que acontece na
"comunhäo de pessoas". Para citar ainda uma vez a poesia de
Wojtyla: "Estou convencido de näo ser 'isolado'. Sou muito mais
do ' '1134

133 Ibidem, 63-64.

134 Wojtyla, Raggidella paternitå, cit., 144.

• 140 •
Existe, contudo, ainda a terceira forma de transcendéncia
que pertence å esséncia da uniäo entre homem e mulher e å nature-
za do ato sexual. Trata-se da transsendénciaem diregäoaoterceiro.

3. A TRANSCENDENCIA EM DIRECÄO AO TERCEIRO:


MATERNIDADE E PATERNIDADE
Sobre a base da düplice transcendéncia da pessoa, que
torna possivel o amor como dom, realiza-se a unidade entre ho-
mem e mulher que encontra o seu culmine na maternidade e na
paternidade. Temos aqui em consideragäo uma outra forma de
transcendéncia, que é a transcendéncia em direcäo ao terceiro.
Essa dimensäo possui uma importåncia fundamental näo so-
mente pela interpretagäo filos6fica da relagäo homem-mulher,
mas para toda a visäo do homem. Vale a pena colocå-la em foco.
O simples fato de que, na narragäo biblica, o nascimento do
filho acontega depois do pecado original, é carregado de signifi-

cado. Se esse aspecto essencial da uniäo entre homem e mulher


se realiza depois do pecado, entäo a verdade original do homem,
mesmo se a sua mudada por causa do
situagäo foi radicalmente
pecado original, näo foi totalmente destrufda, mas permanece
sempre presente na sua hist6ria. É essa verdade que permane-
ce para ele o ponto de referéncia fundamental na busca da sua
identidade, que continua também na fase hist6rica. Também
aqui, na geragäo do outro, homem e mulher realizam a funda-
mental abertura em diregäo ao outro, que faz parte da estrutura
ont016gica do homem. Na experiéncia da mulher essa abertura
se torna muito concreta, enquanto o filho nos primeiros meses
da sua existéncia vive nela, pode nascer no mundo, porque ela o

aceitou na pröpria interioridade. Essa experiéncia, que inüme-


ras mulheres vivem no curso da hist6ria, possui um eminente
significado antrop016gico, que vale naturalmente também para
o homem-macho. Sempre de novo e näo obstante vårias formas

• 141 •
de fechamento, ela reafirma essa verdade original pela qual o
homem é capaz de levar em si o outro homem.
A transcendéncia em direcäo ao terceiro possui duas di-
mensöes. De uma parte é uma transcendéncia em diregäo ao
terceiro escrito com a minüscula, em diregäo ao filho, mas de
outra parte é também transcendéncia em direqäo ao Terceiro, o
Criador, que no ato conjugal se faz presente propriamente como
Criador. Escreve Säo Joäo Paulo II:

O homem é a mulher unindo-se entre eles (no ato conju-


gal) assim estreitamente a se tornar "uma s6 carnet re-

descobrem, por assim dizer, cada vez e em modo especial,

o mistério da criagäo, retornam assim åquela uniäo na hu-


manidade ("carne da minha carne, osso dos meus ossos"),
que lhes permite de se reconhecer reciprocamente e, como
135
a primeira vez, de se chamar por nome.

Podemos dizer que o Criador escolheu a uniäo entre o ho-


mem e a mulher para se fazer presente também na hist6ria como
criador de novas pessoas humanas. Cada vez que uma nova pes-
soa humana é chamada å Vida. Ele age como o primeiro doador
da
ortanto o si ifi ado de cola ora -o ao ato criativo de Deus.

A transcendéncia em direcäo ao terceiro, o filho, a atitude


que em Amor e responsabilidade Wojtyla descreve como cons-
ciente do fato que "posso me tornar mäe, posso me tornar pai",
ao mesmo tempo protege o ato sexual do perigo de se degenerar
no ato que impulsiona a usar o corpo do outro para o fim do pr6-
prio prazer. Isso näo significa naturalmente que cada ato sexual
moralmente justo deva ser fecundo, mas somente que a pros-
pectiva da transcendéncia em diregäo ao terceiro näo deve ser

135 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö, cit., 63.

• 142 •
intencionalmente excluida. Somente assim o ato sexual exprime
verdadeiramente o sentido original do eros, que jå Platäo via ao
sair do pr6prio restrito "eu" e ao abrir-se — podemos acrescentar
— åquela novidade mais radical, que é uma nova Vida humana.

É interessante ver o que acontece quando essa dimensäo


da transcendéncia em diregäo ao terceiro é negligenciada. A esse
respeito é instrutivo a comparagäo da visäo de Wojtyla com o
famoso O erotismo de Georges Bataille. O pensador francés
livro

desenvolve uma visäo do amor er6tico que tende å comunhäo


com o outro, mas ultimamente näo consegue alcangar. Também
para Bataille a individualidade, aquilo que ele chama desconti-
nuidade, significa solidäo, mas essa solidäo näo pode ser supe-
rada c- chegar å plena continuidade com o outro näo é possivel.
O corpo é aquele fator que nos separa um do outro. Assim dois
seres humanos, mesmo no ato er6tico, permanecem sempre dis-
tintos. A superagäo da descontinuidade consistiria na fusäo das
pessoas, porém, isso significaria o fim da sua existéncia indivi-
dual, isto é, a morte. O desejo da fusäo faz parte da dinåmica do
amor er6tico e por esse motivo conduz å violéncia. Trata-se de
superar a descontinuidade entre as pessoas, mas isso se pode
fazer somente violando a sua individualidade. Escreve Bataille:

Substancialmente o ämbito do erotismo é aquere da de-


sordem, do roubo.,. O que significa, de fato, erotismo dos
corpos se näo violagäo do ser dos participantes ao ato?
Violacäo que confina com a morte? Que confina com o
?136

A realizagäo da pretensäo presente no ato er6tico levaria, por-


tanto, ao desaparecimento da pessoa, aquilo que de resto estå pre-
sente em algumas formas do erotismo. Normalmente, porém, näo se
chega a uma consequéncia täo estrema. O que acontece entäo com o

136 G. Bataille, L'erotismo, cit., 21.

• 143 •
ato erötico? Segundo Bataille ele é vivido como uma forma do egois-
mo de duas pessoas, que näo conseguem superar a sua solidäo e säo
condenadas a permanecer fechadas em seu egoismo.

Sob o limiar dessa violéncia — å qual corresponde o senti-

mento da continua violéncia da individualidade desconti-


nua — comega a esfera do costume e do egoismo a dois, que
significa uma nova forma da descontinuidade.f37

Nessa prospectiva o homem näo é ultimamente capaz de


ultrapassar o abismo que o separa do outro homem. Assim nova-
mente reaparece a visäo no homem, em que "we never advance one
step beyond ourselves". Na experiéncia er6tica o homem ou deve
buscar suprimir a individualidade do outro homem, chegando a
um tipo de fusäo com ele (aquilo que ultimamente näo é possfvel),
ou mesmo deve se contentar com a 16gica da apropriagäo (como
diria Lévinas: O outro é aqui objetivado e dissolvido no Idéntico).
A esse ponto convém nos perguntar: Mas, estamos ver-
dadeiramente diante de tal alternativa? Como vimos antes, na

visäo antrop016gica de Wojtyla cada homem é separado, dis-


tinto de cada outro homem e nesse sentido estå sozinho (o pri-

meiro sentido da solidäo, que analisamos). Contudo, a solidäo


do corpo participa do ethos da pessoa, que por sua natureza é

comunhonal.fissim a corporeidade aparece ao mesmo tempo


como fator de separagäo e de comunhäo. Exatamente porque
o homem é pessoa (e näo somente um ser natural), ele (ela) é
capaz de transcender a si mesmo (a si mesma) e de entrar em
relacäo com o outro como outro. Desse modo o homem como
pessoa näo estå condenado ao egofsmo, mas é mesmo capaz
de doar a si mesmo å outra pessoa, aquilo que na prospectiva
delineada por Bataille näo aparece visfvep Vale a pena citar no-
vamente o poema de Wojtyla Raggi di paternitå:

137 Na traduqäo italiana do livro de Bataille essa frase foi inexplicavelmente omitida.

• 144 •
Quantos homens se convenceräo de que nenhum de nös é
uma totalidadefechada e definitiva? Levamos somente em
nös mesmos o significado que na sua forma absoluta nos
transcende, e a ele somos ligados, dele dependemos.f38

Por outro lado, Bataille näo estava toalmente errado falando


do desejo de fusäo inerente no ato er6tico, Mesmo se é verdade,
que esse desejo näo se pode realizar na fusäo real de duas pesso-
as, ele se realiza propriamente na transcendéncia em diregäo ao
terceiro, ao chamado å existéncia do filho. No entanto, essa dimen-
säo, a transcendéncia em diregäo ao terceiro, näo estå presente na
visäo de Bataille. Parece que justamente por essa razäo sua visäo
para diante a uma alternativa (suprimir ou usar o outro), de que
falamos acima. Em filtima anålise, porque normalmente a violagäo
da individualidade do outro näo aparece como uma solugäo prati-
cåvel, chega-se forgosamente åquilo que Bataille chama "egofsmo
a dois". Na nossa linguagem diremos - com o uso do corpo do outro
para a pr6pria satisfagäo. Também no ato heroico o sujeito se con-
firma como o centro do pr6prio mundo, näo sai de si mesmo, o ülti-
mo ponto de referéncia no seu agir permanece sempre o seu "ego".
O corpo permanece sempre um fator distingäo (na linguagem de
Bataille - da descontinuidade), o homem näo consegue superar a

sua solidäo ligada å corporeidade que o separa dos outros.

Tudo muda, ao invés, quando no horizonte do ato er6tico

aparece a possibilidade de transcendéncia em diregäo ao terceiro.


O filho (ou a filha), que une em si os tragos do pai e da mäe, é uma
verdadeira e pr6pria sintese das suas pessoas. Tal sfntese näo
consiste, porém, na violagäo da individualidade do outro, mas no
chamar å existéncia de um novo indivfduo, de uma nova pessoa.
A aparigäo de uma nova pessoa, da crianga que é confiada aos cui-
dados da mäe e do pai, conduz também å superagäo da tentagäo

138 Wojtyla, Raggi di paternitå, cit. 157.

• 145 •
egofstica. A presenga do terceiro desperta o sentimento de res-
ponsabilidade para o alto, que de per si consiste no transcender
os confins do pr6prio restrito eu (como de outra parte o faz cada
verdadeiro amor). Vale a pena recordar um fragmento do Triptico
romano, que Säo Joäo Paulo II escreveu ao final de sua Vida, retor-
nando ali mais uma vez mesmo se com uma linguagem diferente
— å problemåtica da teologia do corpo.

E quando se tornam "um Sö corpo"


- d, admiråvel uniäo
no horizonte desse conübio se abre
a paternidade e a maternidade.

Sabem que atravessaram o limiar da major


responsabilidade!139

Recapitulando podemos dizer que na antropologia de Wo-


jtyla a superagäo da solidäo advém na comunhäo das pessoas.
Mesmo se a solidäo estå "inserida na constituigäo do corpo", na
dimensäo pessoal é possfvel uma verdadeira e pr6pria comu-
nhäo (que, porém, näo equivale å fusäo). A comunhäo acontece
entre dois polos, que constituem o ser pessoal: entre a subjetivi-
dade antica e a relacionalidade, sem cancelar nenhum deles. Por
isso a superagäo da solidäo do corpo näo consiste na sua supres-
säo, mas na sua assungäo. "Essa superagäo contém em si certa
assungäo da solidäo do corpo do segundo feu' como pr6pr1a .

A superagäo da solidäo culmina, ao invés, na maternidade e pa-


ternidade, quando o homem e a mulher se transcendem em di-

regäo ao terceiro, å crianga. Conclufmos com um outro verso dos


Raggi di paternitå: "Assim se livram os homens dessa heranga
que é a comunidade mais estranha - a comunidade de solidäo".

139 Säo Joåo Paulo II, Trittico Romano. Meditazioni, Libreria Editrice Vaticana, Cittå del
Vaticano, 2003, 27.
140 Säo Joäo Paulo II, tJomo e donna 10 creö, cit., 63.

146 •
CAPfTULO V
A NUDEZ ORIGINAL:
A ÉTICA PERSONALfSTICA

A terceira coordenada da experiéncia proto-hist6rica do


homem é, enfim, constitufda da sua nudez original. Na Biblia en-
contramos somente um fragmento, em que a nudez näo é conexa
com o pudor, o nojo, a desaprovagäo. Trata-se do texto do Livro
do Génesis que recita: t'Estavam nus, mas näo se envergonhavam"
(Gn 2,25). Lidamos aqui com uma situagäo finica e irrepetfvel no
curso da hist6ria. É uma situaqäo, em que a configuragäo mascu-
lina e feminina do corpo e tudo aquilo que é ligado å fisionomia
sexual, exprime plenamente a dignidade pessoal e é percebido
como a expressäo da plena verdade da pessoa. Nessa situagäo näo
existe ainda o perigo de reduzir a pessoa a um sujeito do uso e,

portanto, a nudez do corpo näo suscita o sentimento do pudor.


hosoficamente esse texto biblico recorda a anålise do sentido
original do conceito de verdade desenvolvido por Martin Heide-
gger.14i Segundo Heidegger, a verdade antes de ser corr spondén-

141 (Y. M. Heidegger, Tempo ed essere, Longanesi, Milano, 2007.

• 147 •
cia entre a realidade e o pensamento reside no ser mesmo e con-
siste na sua näo-ocultagäo, no seu manifestar-se, abrir-se diante
do olhar. Em outras palavras: a verdade como manifestatio pre-
cede a verdade adequatio. Isso seria o sentido original da palavra
grega "a-létheia", em que o prefixo "a" teria o sentido privativo.
Originariamente a verdade — sempre segundo Heidegger — expri-
me, portanto, sinceridade, franqueza, abertura, o näo se esconder
das coisas. Näo é diffcil avistar aqui certa afinidade com a anåli-
se da nudez original desenvolvida por Säo Joäo Paulo II. Também
para ele a nudez exprime a plena verdade do homem e da mulher
e antes do peca o onginaTé1ä@tämbem percebida na sua plenitu-
de. Justamente por isso a nudez näo suscita nenhum sentimento
de pudor. Tudo muda depois do pecado original, quando a sexua-
Iidade comega a parar a atengäo somente sobre si mesma e assim,
ao invés, de revelar a verdade da pessoa, ao contrårio a escondQ%J
Nesse capftulo buscaremos aprofundar as implicagöes filos6ficas

seja da auséncia do pudor na situagäo proto-hist6rica, seja do seu


aparecimento na hist6ria hümana depois do pecado original.

1. A AUSÉNCIA DO PUDOR coM0 PLENA PERCEPGÄO


DA DIGNIDADE PESSOAL
A filosofia desde o seu infcio se interessou pelo sentimento
do pudor. Antes de tudo vale a pena observar que jå na mitologia
grega Aidos era a deusa da vergonha e da modéstia. Ela aparece
nos antigos dramas do teatro grego, por exemplo, no Prometeo
incatenato de Ésquilo. Na reflexäo filosåfica o sentimento do pu-
dor foi ligado com a percepgäo do bem e do mal. O homem bom
sente o pudor diante å possibilidade de cumprir aqöes malvadas.
Assim o pudor se tornou o fundamental sentimento moral, que
na linguagem da filosofia moderna poderia ser identificado com
o sentimento do dever moral. Esse modo de entender o conceito
de pudor o encontramos ainda em Säo Tomås de Aquino, o qual

• 148 •
vé o pudor como parte integrante da virtude da temperanga e o
define como "o temor das coisas indecentes, e, portanto, vitu-
peråveis" (ST I-II, q. 144, a. lc) ou "o medo de qualquer coisa de
indecente" (ST I-II, q. 144, a. 4c). O homem virtuoso diante das
coisas indecentes se sente inibido pelo sentimento da vergonha.
Envergonhar-se-ia de té-las cometido näo somente diante dos
outros, mas antes de tudo diante de si mesmo.

No curso da hist6ria do conceito de pudor foi sempre mais


estreitamente ligado å esfera da corporeidade e mais especifica-
mente da sexualidade, assim que a palavra latina "pudenda" ter-

minou por se referir aos 6rgäos sexuais (sobretudo femininos). 0


ligame do pudor com a corporeidade é evidente em dois fi16sofos
modernos que analisaram o sentimento do pudor: Vladimir Solo-
vjov e Max Scheler (esse ültimo é naturalmente de especial inte-
resse para n6s a partir do momento em que em uma certa medida
tinha inspirado a discussäo do pudor em Amor e responsabilidade
de Wojtyla).142 Seja Solovjov que Scheler veem no pudor um fenö-
meno claramente pessoal e humano — se envergonhar o pode so-
mente um ser em que se encontram o mundo material e o mundo
espiritual. Um animal pode sentir temor diante da ameaga de um
mal, mas exatamente falando näo pode sentir vergonha. O fenö-

meno do pudor pressupöe o destaque nos confrontos da pr6pria


natureza e tal destaque existe somente no ser pessoal. É também
diffcil pensar o pudor no caso de Deus. Deus é pessoa (Pessoas),
mas Ele näo pode cumprir algum ato contrårio å sua razäo de que

142 Vale a pena recordar que o pensamento de Scheler sobre o pudor foi analisado e
comparado com a abordagem de Santo Tomås de Aquino por Franciszek Sawicki
0877-1952), urn insigne teölogo e fi16sofo da histåria. Fm seu livro Fenomenologia
wstydliwogci (Fenomenologia do pudor), Wydawnictwro Mariackie, Krak6w 1949,
Sawicki se concentrou sobretudo sobre o pudor sexual. De aco S wic o
mem se envergonha da atividade sexual, porque essa lhe é cornurn com o mun o
animal e näg.gstå-dxetamenW_Jigada
GfaQ;nhCcido o pensamcnto de Scheler sobre o tema, através de Sawicki, mencionado
explicitamente no inicio do capitulo dedicado ao pudor em Amore e responsabilitå.
Cf. Wojtyla, Metafisica della persona, cit., 641.

• 149 •
deveria se envergonhar. Assim o pudor se revela como um senti-
mento que é caracteristico da pessoa humana.

De que coisa se envergonha o homem? Qual é a raiz desse


sentimento? Solovjov a vé em relagäo ao homem com a pr6pria na-
tureza. É propriamente a natureza que em certo sentido se torna
motivo de vergonha para a pessoa espiritual. Escreve Solovjov:

Independentemente de qualquer consideragäo sobre a


origem empirica do sentimento do pudor da humanidade,
esse sentimento tem o significadofundamental de estabe-
lecer a relagäo ética do homem com a natureza ffsica. O
homem se envergonha da sua senhoria sobre ele ou da sua
subordinagäo a ela (especialmente na sua maior manifes-
tagäo) e reconhece assim em relagäo a ela a sua indepen-
déncia interior e a sua alta dignidade, emforga da qual ele
deve dominar sobre ela e näo ser dominado.143

Uma semelhante concepgäo encontramos também em Sche-


ler, que sob esse aspecto mais ainda de Solovjov sublinha a oposigäo
entre a espiritualidade da pessoa e a materialidade do seu corpo.
Refletindo sobre a origem do sentimento do pudor Scheler afirma:

Condigäofundamental da origem do sentimento do pudor


é, portanto, um certo desequilibrio, uma certa desarmonia
do homem entre o significado e as exigéncias da sua pessoa
espiritual, por uma parte, e as suas necessidades corporais,
por outra. Somente porque o corpo é da esséncia do ho-
mem, esse pode se encontrar na situagäo de dever provar
pudor; e somente porque ele experimenta a essencial inde-
pendéncia do ser da pr6pria pessoa espiritual do pröprio
corpo e de tudo aquilo que pode derivar dele, ele pode, em
determinadas circunståncias, provar pudor.i44

143 V. Solovjov, II bene nella natura umana, Paravia, Torino, 1925, 15-16.
144 M. Scheler, Pudore e sentimento del pudore, Guida Editori, Napoli, 1979, 21 (itålico
no original).

• 150 •
Näo é diffcil avistar nesse texto de Scheler a distingäo entre
a imanéncia e a transcendéncia da pessoa nos confrontos do Seu
corpo, de que falamos em ocasiäo da nossa transfenomenologia do
corpo, mesmo que seja Solovjev que Scheler parecem mais proxi-
mos å visäo platonica da alma que habita no corpo. finforme seja,
Wojtyla compartilha a observagäo segundo a qual a pessoa pode se
envergonhar daquilo que somente acontece nela e que permanece
fora do seu controle. Isso pode se referir também ås reagöes sexuais
que näo estäo submetidas ao controle da sua vontade. Seria, porém,
errado pensar que o sentimento do pudor seja suscitado somente
por aquilo que um retém de qualquer modo "mal" ou ainda indigno
da pessoa. Em determinadas circunståncias se pode mesmo se en-
vergonhar daquilo que em si é bom. Como o serva Wojtyla, nesse
caso o pudor näo se refere a uma coisa ou a uma agäo boa, mas
muito mais o fato que "aquilo que deveria ficar no interior, por mo-
tivo da sua esséncia ou da sua finalidade, deixa a interioridade da
pessoa para se manifestar ao externo de um modo ou de outro".145 É
pro ri omem e a mulher
buscam esconder os 6rgäos sexuais certamente näo pela vergonha
de possuf-loYA fungao do pu or nesse caso pode ser compreen-
dida plenamente somente se ultrapassamos o nivel da descrigäo
fenomen016gica dos modos em que ele se manifesta e buscamos
com o
entendé-lo junto mesmo ser da pessoa, isto é, quando de-
senvolvemos uma metaffsica do pudor. Entäo podemos compre-
ender que o pudor sexual näo é somente uma questäo da cultura
(de que certamente dependem as suas vårias manifestagöes), mas
que é radicado no logos e ethos da pessoa humana. É propriamen-
te isso que nos propöe Wojtyla.

Na tentativa de compreender o sentido do pudor sexual, o


Livro do Génesis nos oferece uma ajuda preciosa. Também nesse

145 Wojtyla, Amore e responsabilitå, in id. Metgfisica delta persona, cit., 641.

• 151 •
caso queremos tratar o texto revelado muito mais como registro
da experiéncia humana, que em linha de principio pode ser com-
preendida por quem näo compartilha a fé religiosa no contexto
em que ele nasceu. De fato, trata-se da sua fundamental digni-
dade pessoal que estå å base de toda a experiéncia moral. Nesse
ponto da teologia do corpo de Säo Joäo Paulo II encontramos, em
certo sentido, uma sfntese de toda a ética personalistica desen-

volvida pelo fi16sofo Wojtyla e pelos seus discipulos.

Antes de tudo observamos que na visäo biblica o pudor sexu-


al um fenömeno originårio, isto é, originariamente o homem
näo é
que desde o inicio é um ser espiritual e material conjuntamente, näo
encontra motivo de se envergonhar da sua natureza, nem tampouco
dos sinais da sua natureza sexuada. A auséncia do pudor näo é nem
mesmo um Sinal d&subdesenvolvimento)ont016gico e moral do ho-
twp.. h t/ A mem, assim como se o homem näo fosse ainda plenamente acorda-

do enquanto pessoa. Em tal visäo o homem antes do pecado original


näo seria totalmente consciente do seu ser pessoal e da sua diferenga
em relacäo ao mundoanimal. Existir, no sentido pleno como pessoa,
significaria entäo sentir vergonha daquilo que uni o homem com o

mundo material. Parece, de fato, que na sua referéncia ao Livro do


Génesis Solovjov sugere propriamente uma semelhante interpreta-
gäo. O autor russo coloca na boca de Adäo as seguintes palavras:
Eu ouvi a voz divina, tive-medo-deacordar e da revelaqäo
da minha baixa natureza: eu me envergonho, portanto eu
existo; näo existo somenCe fi.sicament.eanas.também_mo-
ralmente, eu me enver_qonho da minha natureza animal,
portanto existo ainda como o homern.146

E Solovjov acrescenta: .Com a pr6pria agäo e a prova do


seu ser o homem atinge a autoconsciéncia moral" 147

146 Solovjov, cite, 10-11.

147 Ibidern.

• 152 •
Como vimos antes, na visäo de Säo Joäo Paulo II o homem
experimenta o seu nascimento e moral jå antes do despertar da
vergonha, no momento mesmo em que entra em contato cognos-
citivo com o mundo. Na situagäo proto-hist6ricæaauséncia do pu-

dor näo é ligada ao subdesenvolvimento moral do homem, masao


contråkiöfresulta da plenitude da compreensäo do sentido corpo.
O homem vive p enamente a sua estrutura de autopossessäo e au-
todominio e portantorpercebesejæo-propr.10GföÄUewcorpæ
do outro como Sinal transparente da sua e da outra pessoa. Näo
hå necessidade de se envergonhar da sua "natureza baixa" ou "na-
tureza animal", pprquemäo viye nen uma cisäo entre aquilo que é
pessoal e aquilo que é material. O corpo exprime aqui plenamente
a pessoa ea sua dignidade. Também os sinais a sua con guragäo
sexual näo param a atengäo sobre si mesmos, mas permanecem
transparentes - exprimem o sujeito pessoal que dele é o portador.
Por isso, a relacäo entre as pessoas é privada do temor, o olhar do
outro näo é vivido como perigo de objetivagäo (no sentido anali-
sado por Sartre, isto é, como a tentativa de reduzir o outro a ob-

jeto do pr6prio mundo, de fazer dele o objeto do pr6prio prazer),


mas muitomajs revela å pessoa o valor que ela pode possuir aos
olhos dos outros. Assim o encontro dos olhares é permeado de
da comuni-
caqäo pessoal. Escreve Säo Joäo Paulo II:

A esse prop6sito ainda, qualquer critério "naturalistico" é


destinado afalir, enquanto ao contrårio o critério "perso-
nalistico" pode ser degrande ajuda. Gn 2,25fala certamen-
te de algo de extraordinårio que estå além dos limites do
pudor conhecido por meio da experiéncia humana e que
junto decide a particular plenitude da comunicagäo inter-
pessoal, radicada no coragäo mesmo daquela communio,
que é assim revelada e desenvolvida.14B

148 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna to creö, cit., 70 (itålico em original).

• 153 •
---czz»-c-c,

Tornaremos ainda, no ponto seguinte, ao "critério perso-


nalfstico" que nos serve, nesse åmbito, como chave de leitura

da situagäo proto-hist6rica do homem. Como veremos, aque-


le critério näo perdeu a sua validade mesmo depois da radical
mudanga que aconteceu no coragäo do homem em seguida ao
pecado original. Antes, justo fenömeno do pudor sexual, que
aparece depois do pecado testemunha a presenga desse critério
também na experiéncia do homem pelo qual a nudez perdeu a
sua transparéncia em diregäo å plena verdade da pesso±C) Livro
do Génesis diz: "Entäo os olhos de ambos se abriram, e, como
reparassem que estavam nus" (3,7). Naturalmente, näo se trata
nesse caso do uso da vista e nem mesmo de tomar consciéncia
- para dizer como Solovjov - do possesso da natureza animal.
Trata-se muito mais da radical mudanga no olhar que o homem
dirige em diregäo ao outro homem (o homem em diregäo å mu-
lher e a mulher em diregäo ao homem). Teologicamente o pe-
cado original consiste na ruptura da alianga original do homem
com Deus, mas na prospectiva delineada por Säo Joäo Paulo II o
pecado original possui também uma dimensäo fenomenolögica
e antrop016gica. Em certo sentido podemos dizer que ele consti-
tui um tipo de choque antropo 6gico que treme n equilibriQ-das
homem .com aquilo que na
forgas presentes na interioridade do
linguagem te016gica se chama "concupiscéncia"). A partir desse
momento o homem necessitarå do esforgo moraliäFåFéådÅåi-
rir a original transparéncia do ce äo do corpo do
outro e do seu pr6prio corpo. De fato, com o pecado original o
homem perde a original certeza do seu ser a imagem de Deus
invisfvel no mundo visive . seu corpo näo o expenmentæmals
espontaneamente e imediatamente como "imagem da imagem ,

Sinal visivel da imagem de Deus que é ele mesmo. O corpo perde


para ele o estatuto do sinal&ansparente, de um "signum quo",
e se torna motivo do temor e da vergonha. "Fiquei com medo,
pp rq

• 154 •
O homem se esconde, porque näo quer ser visto nu. O cor-
po na sua configuragäo sexual comega a ser para ele muito mais
um "signum quod", que deve ser interpretado através da atitude
adequada ao seu estatuto ont016gico. Mas, isso exige jå um esfor-
go moral por parte do sujeito, näo lhe é dado com a mesma natu-
ralidade, com a qual percebia o corpo antes do pecado original.
Antropologicamente a mudanga no olhar que o homem dirige
em diregäo ao outro e sobre si mesmo tem a sua raiz 29_gyp-
tura da originåria unidade espiritual e somåtica do homem "149
Depois do pecado original säo constantemente ameagadas as
fundamentais estruturas do ser pessoal, de que falamos antes:
o autopossessäo e autodominio, isto é, aquelas estruturas que
constituem a mesma transcendéncia da pessoa. A partir desse
momento o autopossessäo e o autodomfnio requerem uma certa
medida fåtica por parte do homem que nem sempre consegue
desenvolver essa fungäo de modo adequado. Isso se manifesta
de vårios modos. As vezes, temos que Iidar com aquilo com que
em Pessoa e ato Wojtyla chama 'to emocional da consciéncia".
Acontece que as emogöes vividas pelo sujeito säo muito fortes,

e por assim dizer, invadem a consciéncia. A consciéncia näo as


porém se limita somente a refleti-la. O sujeito näo
objetiva mais,
as domina adequadamente, näo as submetem ao critério da ver-

dade, mas se deixa arrastar por elasAEscreve Wojtyla:

O emocional da consciéncia inicia quando no refletir de-

saparece o significado dos fatos singulares feitos emoti-


vos, como também dos objetos relativos a eles, quando as
sensagöes se elevam de qualquer modo å sua compreensäo
atual por parte do homem. É em pråtica a insuficiéncia da
autoconsciéncia.150

149 Ibidem, 130.


150 Wojtyla, Persona e atto, cit., 900.

• 155 •
Assim as emogöes experimentadas pelo sujeito — que per-
tencem åquilo que "acontece no homem" e em si mesmo näo säo
ainda o seu ato no sentido verdadeiro e proprio - envolvem a
vontade do sujeito e ultimamente condicionam o seu agir. Estamos
aqui diante de um paradoxo, que depois do pecado original na
Vida humana se verifica frequentemente. De modo incomparåvel
o expressou o poeta pagäo Ovfdio (confirmando a universalidade
dessa experiéncia): Video meliora provoque, deteriora sequor — Vejo
o melhor e o aprovo, mas Sigo o pior (Met. VII, 20-21). A nossa con-
digäo humana é caracterizada pela contingéncia moral. Näo basta
conhecer a verdade e o bem para fazer uma escolha justa. Além
do mais, nem sempre aquilo que fazemos é idéntico com aquilo
que queremos. Existe, de fato, a superficie do nosso eu, em que
ås vezes nos vem å vontade de fazer alguma coisa. Nem sempre,
porém, aquilo que temos vontade, coincide com aquilo que verda-
deiramente queremos. Existe também um eu profundo, em que es-
täo presentes os nossos verdadeiros desejos pessoais, aquilo que
verdadeiramente leva å nossa autorrealizaqäo. Cumprindo um ato
m_gralment--malosujeito introduz ao pr6prio eu algumacois-—qyg
apäo reforga a sua pessoa, mas ao contrårio o enfraquece, porque
r htai contra aquilo que a constitui na sua personalidade. A contin-
géncia moral o omem consiste no fato que o homem nem sem-
pre consegue agir seguindo aquilo que verdadeiramente quer, que
ås vezes cede åquilo que ele tem vontade. Além do mais, chegando
ås consequéncias extremas que, porém, säo possiveis, a pessoa é
capaz de considerar a mesmo como o centro do mundo e assim
si

subordinar tudo aos pröprios interesses. Isso é possivel em relacäo


ås outras pessoas humanas, antes, é mesmo possfvel em relagäo a
Deus. A pessoa humana pode se desinteressar de Deus, colocando
a si mesma ao centro do universo em um tipo de egofsmo absoluto,
pode se desinteressar também da verdade, pondo a si mesma como
principio de toda a realidade. De modo emblemåtico o expressou o
pai do niilismo moderno Friedrich Nietzsche:

• 156 •
A vontade de verdade que nos seduzirå ainda tem muitos
riscos, aquele celebre espfrito de verdade de que todos os
filåsofos, até hoje, falaram com devogäo.• essa vontade de

verdade, que nos induziu com muitas perguntas! Que cruéis,


bizarros e dificeis quesitos! É a hist6ria antiga, e mesmo as-

sim näo parecia, que tivesse apenas comegado? Qual estupor


se uma vez, enfim, nos tornamos desconfiados, perdemos a
calma e nos revoltamos impacientes? Que se deva aprender,
n6s mesmos, dessa esfinge a colocarperguntas? Quem é pro-
priamente que agora nos pöe perguntas? O que em n6s im-
pulsiona propriamente å verdade? — Na verdade, hå muito
tempo paramos diante do problema da causa desse querer —
até que terminamos de nos aprisionar completamente dian-
te de um problema ainda mais profundo. Interrogamo-nos
sobre o valor dessa vontade. Concedido mesmo que nös de-
sejamos a verdade: por que nüo ao contrårio a näo verdade?
E a incerteza? E mesmo a ignoråncia? - A pergunta sobre
o valor da verdade nos estaciona diante - e mesmo assim

somos n6s a afrontå-la? Quem de n6s, nesse caso, é Édipo?


Quem a Esfinge? Parece que se tenham dados, convengöo,
interrogagöes e pontos interrogativos. - E se nunca pudesse
crer na impressäo, surgida, enfim, em nös, que o problema
nunca tenha Sido até o momento afrontado — quefomos nås
os primeiros a té-lo vislumbrado, avistado, desafiado? Por-
que ele comporta um risco e talvez näo é do maior.fSJ

(įfilosofia moderna, especialmente na sua forma niilista, le-


vou essa capacidade da pessoa ås suas extremas consequéncias.
Quando o homem se entende como o centro do absoluto egofsmo
tratarå tudo aquilo que o circunda como objeto da sua satisfagéo.
Näo por acaso o conceito fundamental na filosofia de Nietzsche é
aquele da vontade de poténcia; recordamos também a anålise do
olhar desenvolvida por Sartre que descreve bem essa dinåmica.

ISI F. W. Nietzsche, A1 di tå del bene e del male, Rizzoli, 1992, i.

• 157 •
Quando o homem olha tudo aquilo que o circunda como objeto
para o seu crescimento, também a outra pessoa, e antes de tudo
o seu corpo, serå vista nessa 6tica de cumprimento egofstico. Na
sua famosa dialética servo-paträo, Hegel descreveu as relacöes
humanas em chave de luta moral dos seres autoconscientes, os
quais, para afirmar a pr6pria subjetividade, devem buscar escra-
vizar o outro, isto é, de reduzi-lo a objeto do proprio mundo.

Jå vimos que para Säo Joäo Paulo as relagöes humanas de-


pois do pecado original näo säo submetidas sem excegäo a essa
dialética,mas säo por ela constantemente ameagadas. Assim tam-
bém a relagäo homem-mulher depois do nascimento da concupis-
céncia no coraqäo humano sofre uma deformagäo que
tr6i, mas o ameaca. O corpo da mulher para o homem e o corpo do

homem para a mulher pode se tornar objeto do uso e com isso o


homem mesmo se torna objeto para o outro homem. Por causa da
concupiscéncia o homem tem dificuldade para perceber a digni-
dade da pessoa expressa nq corpo, os valores sexuais atraem a sua
atengäo de modo a ofuscar o valor do seu sujeitoo
A subjetividade da pessoa cede, em certo sentido, å obje-
tividade do corpo. Por motivo do corpo o homem se torna
objeto para o homem — afémea para o macho e vice-versa.
A concupiscéncia significa, por assim dizer, que as relavöes
pessoais do homem e da mulher acabam sendo redutiva e
unilateralmente vinculados ao corpo e ao sexo, no sentido
que tais relagöes se tornam quase inåbeis para acolher o
dom reciproco da pessoa. A concupiscéncia, que se ma-
nifesta como uma "constrigäo 'suigeneris' do corpo", limita

interiormente e restringe o autodominio de si, e por isso


mesmo, em certo sentido, torna impossivel a liberdade do
dom. (...) Sozinha, ela näo une, mas se apropria. A relagäo
do dom se muda na relagäo de apropriagäo.152

152 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna to creö, cit., 143-144.

• 158 •
Nessa situagäo, em que o homem é tentado a se apropriar
do outro homem por meio da apropriagäo do seu corpo, o pudor
sexual tem a fungäo de defesa. O pudor defende o caråter subje-
tivo da pessoa, que näo quer ser reduzida ao estatuto do objeto
do prazer pelo outro homem e, portanto, esconde aqueles valo-
res que poderiam induzir o outro a tratå-la O pudor
desse modo.
possui, porém, näo somente o sentido negativo da defesa, mas
sobretudo o sentido positivo de revela -o. Como fenömeno ex-

perimentado em diversas formas em todas as culturas, o pudor


se confirma como um locus anthropologicus ed ethicus, como uma
oportunidade de se aproximar em meio å hist6ria da verdade ori-

ginal do homem. Por esse motivo Säo Joäo Paulo II o chama de


experiéncia "de confim" ou a experiéncia timinar". Por primeiro,
t

o pudor por assim dizer då tempo para que o verdadeiro amor


possa se desenvolver. A atengäo da pessoa näuse-concentraråpl
do sobre os valores que de per si näo exprimem a subjetiyidadeda
pessoa (vgja a anålise da experiéncia do corpo, cap. 11,1), porém
se dirige em diregäo å sua totalidade, em direqäo ao seu valor on-
tolögico que transcende as suas
afirmado no amor. Trata-se daquele amor que näo se limita å ex-
periéncia sentimental, mas envolve toda a pessoa, fluindo no dom
de si ao outro, que estå na base da uniäo GGiGGRål.)Somente
nessa situagäo o pudor cessa de realizar a sua funcäo, a vergonha
vynabsorvidaElo amor. Precisa colocar o acento sobre esse as-
pecto.A lei da absorgäo da vergonha por parte do amor tem a sua
dimensäo subjetiva e objetiva, como de resto o mesmo amor é ao
mesmo tempo uma realidade subjetiva e objetiva. Subjetivamente
o pudor desaparece na situagäo em que a pessoa se sente acolhida
no amor, mas se devem verificar também das condigöes objetivas
em que tal sentimento é justificado. Objetivamente a situagäo, em
que o valor do outro é acolhido em toda a sua realidade, då-se
propriamente no matrimönio vivido como o dom mütuo entre as
pessoas. Falaremos disso no terceiro ponto desse capftulo.

• 159 •
Assim mais uma vez vemos que o sentido mais profundo
do pudor näo é negativo, mas positivo. O pudor existe em funcäo
" 153
do amor; como diz Wojtyla, "libera o caminho d

O significado antrop016gico da experiéncia do pudor


parece, porém, ainda mais amplo. Ele pode ser visto como o
ponto de partida experimental para compreender o valor de
cada pessoa humana. Em outras palavras, se eu näo quero ser
tratado como objeto do prazer de outra pessoansso näo é uma
consequéncia do fato que a minha posiqäo no mundo seja de
qualquer modo privilegiada. Honestamente näo posso dizer:

eu näo quero ser visto e tratado como objeto, porém é para


mim licito olhar e tratar outras pessoas como objetos. O pu-
dor me revela o valor da pessoa que näo pode ser instrumen-
talizado — näo somente na minha pessoa, mas em cada pessoa.
Visto dessa prospectiva o pudor nos diz: cada pessoa merece
ser afirmada por si mesma, Estamos assim no limiar dessa con-
cepgäo da ética, que Wojtyla chamou a ética personalista e que
constitui um dos contextos filos6ficos mais importantes da te-
ologia do corpo de Säo Joäo Paulo II. Vale a pena dedicar a esse

tema qualquer palavra.

2. A DIGNIDADE DA PESSOA E A NORMA PERSONALISTA


Na Polönia, depois da guerra, o desafio mais urgente foi
colocado pelo marxismo que como ideologia e sistema politico
se impös com forga å nagäo. Na pråtica o sistema comunista
desprezava os direitos do homem, sustentando que cada pre-
varicagäo nesse campo é justificada pelas leis superiores da
hist6ria, de que os marxistas se consideravam portadores. No
caminho em diregäo ao fim ültimo — na sociedade comunista

153 Cf. Wojtyla,Amore e responsabilitå, cite, 649.

• 160 •
— seria justificado sacrificar os homens singulares, especial-
mente se de qualquer modo freiam a marcha. No campo teo-
rético o marxismo sustentava que a ética näo era outra que a
expressäo da autoconsciéncia de uma determinada classe so-
Cial e, portanto, näo existe na ética um saber universalmente

vålido para todos. Também a ética cristä era vista como a ex-
pressäo dos interesses de uma certa classe social, e o seu man-
damento de amor era considerado muito mais nocivo, porque
- se dizia ela amortecia as tensöes sociais, as quais viriam, ao
contrårio, extremadas para estimular desse modo o potencial
revolucionårio.

Durante as repressöes dos anos cinquenta as faculdades


te016gicas foram expulsas das universidades e ås faculdades filo-

s6ficas foi imposta a filosofia marxista. Quem näo quisesse acei-


tå-la era relegado da universidade (essa sorte tocou, por exem-
plo, ao famoso fenomenölogo Roman A Universidade
Ingarden).
Catölica de Lublin (sigla: KUL) se tornou o ünico lugar em que a
filosofia näo era submetida ås restrigöes ideolögicas (assim em

forma de brincadeira se dizia: "De Berlim å Seul, a filosofia so-

mente em KUL). Propriamente nesses anos o jovem Prof. Karol


Wojtyla iniciava o seu ensinamento na KUL, levando consigo o
seu entusiasmo pela ética e pela antropologia filos6fica.

Como dissemos, o desafio do marxismo em campo te-

orético se referia ao estatuto metodolögico e epistemolögico


da ética. Perguntava-se: a ética é necessariamente ligada a um
certo sistema filos6fico ou a uma certa visäo do mundo? Qual
é a relaqäo entre ética e religiäo? Se um näo compartilha o cre-
do cristäo, é fatal que näo compartilhe a sua mensagem ética?

(Note bem: näo é diffcil discorrer aqui o mesmo problema que


nos anos sessenta serå discutido no interior da teologia mo-
ral e que se refere ao assim chamado proprium cristianum da
moral). Foi propriamente Karol Wojtyla e sua escola da ética

• 161 •
personalistææelaborar uma coerenteproposta de éticaque ao
mesmo tempo epistemologicamente autönoma e metodologi-
camente aberta å rela äo da filosofia e da teolo •a.

No seu caminho em diregäo å teoria ética, que encontra


o seu fundamento na experiéncia moral, Wojtyla encontrou a
proposta da ética autönoma elaboradas no interior da famosa
Escola Leopoli-Vars6via, sobretudo por Tadeusz Kotarbinski e
Tadeusz Czezowski.154 Kotarbinski - que era leigo e cuja posigäo
filos6fica era aquela do mais coerente materialismo - sustentava
que a ética como tal näo é ligada a nenhum proprium - näo de-
pende nem da filosofia nem da teologia nem da religiäo. Segun-
do Kotarbinski, como näo falamos da matemåtica ou fisica cristä

ou marxista, assim a ética näo devemos acrescentar nenhum


adjetivo. Assim como a ética dispöe da sua pråpria base experi-
mental, isto é, existe a experiéncia moral que em linha de princi-
pio é acessfvel a cada homem, independentemente do seu credo
filos6fico ou religioso, a ética como disciplina é nesse sentido

independente, autönoma. Pelos mesmos motivos, a ética é inde-


pendente das disciplinas empfricas; outro fi16sofo da mesma es-
cola, T. Czezowski, demonstrou como a ética é independente da
psicologia, com a qual era frequentemente ligada.155
As teses dos fi16sofos da Escola Leopoli-Vars6via näo po-
diam näo suscitar interesse em quem queria defender a ética
como a ideologizagäo operada pelo marxismo. A proposta de
Kotarbinski e Czezowski tinha ainda outra vantagem: a ética
f que parte da experiéncia moral é livre da acusagäo de cometer o
assim chamado erro naturalfstico, isto é, o erro que consiste na

154 Cf. T. Kotarbifiski, I principi di un'etica indipendente, "Rivista di Filosofia", L, 1, 1959,


pp. 3-14. Para ulteriores informaqöes sobre a Fscola Leopoli-Vars6via cf. J. Wolefiski,
Logic and Philosophy in the Lvov-Warsaw School, Dordrecht/Boston/London, 1989.
155 Cf.Etyka a psychologia i togika (A ética, psicologia e 16gica), in: MoralnoSé i spole-
czehstwo (A moral e sociedade), Warszawa, 1969, 27-30.

• 162 •
passagem - logicamente ilfcita - do ser ao dever ser. Na famosa
passagem do seu Human Nature (Ill, 1,1), D. Hume
Treatise on
observa que cada sistema ético, que vem deduzido do mais geral
sistema metaffsico, comete o erro 16gico, porque nas suas con-
clusöes se encontram termos de tipo normativo, que näo esta-
vam presentes nas premissas. Se, ao invés, a ética — como pro-
pöem Kotarbinski e Czezowski - parte da original experiéncia
moral, entäo jå no seu ponto de partida encontramos premissas
de tipo normativo.

Por esses motivos Wojtyla sentiu certa simpatia em rela-

Gäo å proposta ética independente de Kotarbinski e Czezowski,


mas ao mesmo tempo adverte que ela näo pode ser aceita sem
uma certa qualificagäo.l% Para interpretar de modo adequado a
independéncia da ética precisa como primeira coisa distinguir
na estrutura do julgamento as dimensöes: a dimensäo do dever
moral (bondade moral), da justeza moral e aquela existencial.

Ä pergunta: "É a ética uma ciéncia independente?" Näo se pode


dar uma resposta vålida para todos esses niveis, porque a res-
posta é diferente segundo o nivel do julgamento moral a que vem
referida. Assim o nivel do dever moral, isto é, o nivel da percep-
gäo do pr6prio fato moral, a ética é uma ciéncia independente,
porque dispöe da sua pr6pria experiéncia, que a coloca em con-
com o valor moral. Em outras palavras, a experiéncia
tato direto
moral como tal faz parte da natureza humana. O homem comum
näo deve esperar que os fi16sofos lhe digam o que é a moral; per-
cebe-a na sua consciéncia também se näo sabe nada de filosofia.
Nesse sentido a ética é outra coisa que a interpretagäo do fato
moral dado na consciéncia. Näo cria e nem tampouco deduz o
seu objeto pela teoria mais geral, mas o encontra como jå dado.

156 Å anålise desse problema um penetrante estudo foi dedicado pelo discipulo de Wojtyla e seu
sucessor na cåtedra de ética na Universidade Cat61ica de Lublin, cf. Etyka niezaleina?
(A ética independente?), Lublin, 1980.

163 •
Se a fungäo da ética se exaure na reflexäo sobre o fato mo-
ral, que existe independentemente dela, exatamente falando, a
ética se reduziria å metaética ou etologia (no sentido do estudo
dos costumes humanos), isto é, ela näo poderia dizer nada so-
bre as questöes da justiga da conduta moral, mas se limitaria
somente å anålise daquilo que n6s pensamos e dizemos da mo-
ral. Assim, de fato, entendido a fungäo da ética muitos fi16sofos
da escola analftica, reduzindo-a å anålise da linguagem moral.
Näo é essa a posigäo de Wojtyla.
coisa a dizer sobre a nossa conduta moral, mas fazendo-o näo
é mais independente, porque faz referéncia a um
do homem, isto ét a antropologiadFagamos um exemplo. Na por-
ta do hospital dois amigos discutem se devem dizer ou näo a

verdade sobre o estado de saüde do seu amigo, cuja doenqa é


terminal. Uma coisa é certa: ambos lhe querem bem, isto é, a sua
controvérsia näo se refere ao nivel do dever moral. Antes, ela é
possfvel somente porque eles estäo de acordo sobre o fato que
se deve agir para o seu bem. A controvérsia deles se refere, ao
invés, ao "como" desse modo de agir, isto é, ao modo da efetiva

afirmagäo da sua pessoa. Näo queremos entrar aqui no mérito


do seu debate; queremos somente constatar o fato que o acordo
ao primeiro nfvel do julgamento moral näo resolve ainda todos
os problemas morais e a ética, que quer responder ås perguntas
da pr6pria Vida, deve buscar um saber antrop016gico que seja
adequado ås suas exigéncias. Podemos entäo dizer que se no seu
ponto de partida a ética é epistemologicamente independente,
porque dispöe dos seus originais julgamentos experimentais,
no nfvel da justeza do agir moral a ética se torna metodologica-
mente dependente da antropologia, å qual é capaz de resolver os
problemas diante de quem nos pöe a pr6pria experiéncia moral.
No contexto do exemplo da controvérsia moral acima
mencionado, Wojtyla responde também a uma outra pergun-
ta. Qual é o primeiro motivo e a primeira razäo do agir moral?

• 164 •
Na hist6ria da reflexäo ética podemos distinguir duas funda-

mentais aproximagöes å questäo do critério pelo qual as agöes


humanas säo boas ou mås, justas ou injustas. Geralmente falan-
do — e naturalmente um pouco simplificando — podemos dizer
que a ética antiga e medieval partia do querer do homem, e mais
concretamente do seu desejo de felicidade, enquanto a ética mo-
derna se concentrou sobretudo sobre a experiéncia do dever e so-
bre a normatividade da moral. De fato, a critica de Kant, dirigida
å impostagäo tradicional da ética, partia da constatagäo que ela

deixou fora a atencäo do momento decisivo da experiéncia ética,


isto é, o momento do dever categ6rico e desinteressado. Wojtyla
compartilha da preocupacäo de Kant, mas, näo compartilha a sua
solugäo. Para Kant a experiéncia moral se reduz ao respeito do de-
vercomo dever (Pflicht aus Pflicht), å sua pura forma categ6rica,
sem alguma relacäo ao fim ou ao bem (isto que para Kant signi-
ficaria jå qualquer interesse pr6prio por parte do sujeito agente).
Wojtyla, ao invés. sustenta que o caråter desinteressado do dever
vem da percepgäo do bem - ou da verdade sobre o bem — que
Escreve Wojtyla:

Precisa considerar que a norma determina o fim (e pro-

vavelmente na ética precisa aceitar, dentro desses limites,

a posigäo de Kant), mas o primado da norma nasce no


momento mesmo sobre a base da teleologia e sobretudo

da autoteleologia do homem. A norma ética assim en-


(...)

tendida näo é outra que a objetivagäo (e ao mesmo tempo


concretizagäo) da verdade sobre o bem, do bem ligado a
uma dada agäo da pessoa, nela desejado e realizado.157

Para explicar melhor essa afirmagäo tornamos mais uma


vez ao nosso exemplo. O motivo do agir dos dois homens, que
querem o bem do seu amigo, näo é certamente a sua felicidade

157 K. Wojtyla, Lttomo nel campo della responsabilitå, in id. Metqfisica dena persona,
cit., 1269.

165 •
(portanto, a ética e teoria da felicidade säo duas teorias diver-
O motivo do seu agir näo consiste nem mesmo na ordem de
sas).

qualquer autoridade (divina ou humana). O ünico — necessårio e


suficiente — motivo do agir moral estå na percepgäo do valor da
pessoa - da sua dignidade que pode ser efetivamente reconhe-
cida. Desse modo Wojtyla chega å formulaqäo (reformulando o
famoso imperativo categ6rico de Kant) da primeira norma de
toda a ordem moral, que recita:

Cada vez que na tua conduta uma pessoa é objeto da tua


agäo, näo esquegas que näo deves tratå-la somente como
um meio, como um instrumento, mas levas em considera-

gäo ofato de que também ela tem, ou pelo menos deveria


ter, o pr6priofim.158

Na forma mais concisa a norma personalista pode ser ex-


pressa como segue: 'tÄ pessoa como pessoa é devida a afirmagäo".
Em outras palavras: Persona est affermanda propter seipsam.
Creio que näo por acaso venha escolhida aqui a palavra "afirma-
gäo", isto é, um termo que provém da 16gica. Desse modo se quer
sublinhar que Iidamos com uma especifica constatagäo de uma
verdade — da verdade sobre a dignidade da pessoa (ou a verdade
sobre o bem, a f6rmula que ele usa em Pessoa e ato) que pede
para ser reconhecida por intermédio da nossa agäo.

Vimos como na teologia do corpo de Säo Joäo Paulo II, o


homem descobre a sua singularidade entre todos os seres da ter-
ra jå no momento do seu "nascimento metafisico", quando vive
na situagäo da solidäo original, mas é tocado ainda mais pelos

valores da pessoa, quando se encontra diante de outra pessoa


humana: "Osso dos meus ossos, carne da minha carne". Sendo
tocado pelo valor da pessoa que estå diante dele, o homem des-
cobre existencialmente o sentido do mais profundo da norma

158 Wojtyla, Amore e responsabilitå, cit., 479.

• 166 •
personalista: "A pessoa é um bem em relacäo ao qual somente o
amor constitui a atitude adequada e vålida".1S9 Essa experiéncia,
que estå na base de toda a moral, repete-se sempre de novo na
hist6ria humana, mesmo depois do pecado original.

Podemos constatar que a descobre da unicidade da pes-


soa tem dois sentidos diversos, em que correspondem duas for-
mas do amor. Como jå observamos, no nivel mais fundamental
estå a descoberta da unidade da pessoa em meio a todos os se-
res näo-pessoais — das coisas e dos animais. Mesmo se tais se-

res possuem seu valor proprio (por exemplo, os animais sentem


dor e por isso näo podem ser tratados como simples objetivos
inanimados), eles näo säo pessoas e, portanto, em determinadas
situagöes, podem ser instrumentalizados. De fato, servimo-nos
dos animais para satisfazer o nosso instinto de autoconserva-
gäo o que, ao invés, näo é em relagäo ås pessoas humanas.
licita

Propriamente nisso consiste em seu ser "diverso e superior" em


relacäo a todo o criado, a sua unicidade entre todas as coisas do
mundo. Mesmo se, ås vezes, "nos servimos" das pessoas, näo é
nunca lfcito reduzir a pessoa somente ao estatuto do instrumen-
to para fins de outros. Nesse sentido o imperativo categ6rico de
Kant recita: "Age de modo a tratar a humanidade, tanto na tua
pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo
tempo como um fim, e nunca unicamente como um meio". Na
atitude pråtica, que afirma a verdade da pessoa como um fim
em si, consiste propriamente o mais fundamental sentido ético
do amor.

Na experiéncia humana, contudo, a descoberta da unici-


dade da pessoa näo tem somente esse sentido. Acontece mesmo
que uma pessoa descubra a unicidade de uma outra pessoa en-
tre todas as outras. Isso tem o seu fundamento jå no corpo, no

159 Ibidem, 495.

167 •
instituto sexual, que dirige o macho em diregäo å fémea e a fémea
em diregäo ao macho, passa por meio da experiéncia emocional
do apaixonar-se, mas encontra o seu culmine no ato da pessoa,
na sua livre decisäo. Quando na experiéncia do apaixonar-se se
descobre a unicidade de uma pessoa nomundo das pessoas,
entäo o homem e a mulher se pöem uma pergunta: como afir-
mar essa como responder a esse unico valor que essa
verdade,
pessoa tem para mim? Para responder a esse finico valor de
modo adequado näo basta o amor entendido no sentido mais
geral, o amor que toca a cada pessoa humana näo é suficiente.

É propriamente a partir da descoberta da unidade de uma pes-


soa em meio a outras pessoas, que no coragäo do homem ou da
mulher nasce o desejo de doar a si mesmo ou a si mesma ao ou-
tro. Na dinåmica do amor o dom de si — a decisäo de doar a si

mesmo ao outro - revela-se como forma adequada å afirmagäo


O da sua irrepetibilidadeJEsse dom envolve toda a pessoa — a sua
espiritualidade, a sua emotividade e a sua corporeidade. Assim
o homem e a mulher descobre o sentido mais profundo do seu
corpo, que Säo Joäo Paulo II chama "esponsal". O corpo na sua
configuragäo sexual, jå através do mesmo instinto sexual, diz que
a pessoa encontra o seu cumprimento no encontro com a outra
pessoa: o feminino com o masculino e o masculino com o femi-

nino. O dom do corpo exprime o dom da pessoa. Escreve o Papa:


O corpo humano, com o seu sexo, e sua masculinidade e fe-
minilidade, visto no pr6prio mistério da criagüo, näo é so-
mentefonte defecundidade e procriagäo, como em toda a
ordem natural, mas encerra desde "o principio" o atributo

"esponsal", isto é, a capacidade de exprimir o amor: aquele


amor defato no qual o homem-pessoa se torna dom e —
mediante esse dom — atua o sentido do seu ser e existir.160U

160 Säo Joäo Paulo IT, Como e donna 10 creö, cit., 77 (itålico em original).

168 •
O significado esponsal do corpo, vivido espontaneamente e
sem obståculos no estado da inocéncia original, quando "os dois
estavam nus, mas näo provaram vergonha", permanece presen-
te na experiéncia do homem mesmo depois do pecado original.
De fato, a lei do dom constitui uma das regras fundamentais das
relagöes entre as pessoas. Busquemos aprofundar o seu sentido.

3. A HERMENEUTICA DO D0M
Ä luz das consideragöes de Säo Joäo Paulo II na teologia
do corpo podemos dizer que a chave para compreender a
esséncia do dom ao nfvel da pessoa é constituida por duas pa-
lavras que aparecem na hist6ria da criagäo do homem: "s6" e

"ajuda". Como jå vimos antes, a palavra "s6" do ponto de vista


filos6fico indica o ser pessoal como uma subståncia, refere-se
å sua incomunicabilidade, solidäo, independéncia, autono-
mia, a isso que Säo Tomås indicou falando da pessoa como 'tsui
iuris et alteri incommunicabilis", e Duns Scott expressou na sua

definigäo da pessoa como "ultima solitudo". No entanto, nessa


ültima solidäo é inscrita ao mesmo tempo a abertura ao outro,
expressada na hist6ria biblica com a palavra 'tajuda". A pessoa
näo é capaz de realizar aquilo que é na sua esséncia sem a ajuda
de outra pessoa. Escreve Säo Joäo Paulo II:

Defato, o dom revela, uma particular ca-


por assim dizer,

racteristica da existéncia pessoal, antes da mesma essén-

cia da pessoa. Quando Deus-Adonai diz que "näo é bom

que o homem esteja s6" (Gn 2,18), afirma que por "sd" o
homem näo realiza totalmente essa esséncia. Realiza-a
somente existindo .com alguém" - e ainda mais profun-
damente e mais completamente: existindo "para alguém".
Essa norma do existir da pessoa é demonstrada no livro
do Génesis como caracteristica da criagäo, exatamente me-
diante o significado dessas duas palavras: "sö" e "ajuda".

169 •
Säo propriamente elas que indicam quäo fundamental e
constitutiva para o homem é a relagäo e a comunicagüo
das pessoas. Comunhüo das pessoas significa existirem re-
ciproco "para", em uma relagäo de reciproco dom. E essa
relagäo é realmente o cumprimento da solidäo original do
"homem v 161
.

Assim, o pleno sentido do ser pessoal se joga sempre en•

tre esses dois polos: subståncia e relagäo, solidäo e encontro


A definigäo clåssica do conceito de pessoa, rationalis naturae
individua substantia, colocava o acento muito mais sobre o pri•

meiro termo desse binömio, enquanto a filosofia moderna, so


bretudo a filosofia do diålogo e do encontro, privilegiou o segun•
do. Trata-se, ao invés, de manter o justo equilfbrio entre ambo:
os polos. A pessoa é conjuntamente subståncia e relagäo. Vale
pena recordar que o mesmo conceito de pessoa - näo presente
nesse sentido na filosofia antiga — foi cunhado pelos primeiro±
teölogos cristäos para explicar as relacöes que constitufam
Trindade Santa, mas é também significativo que o conceito gregc
— prosopon — foi emprestado pelo teatro: também aqui recitar c

papel em um drama quer dizer permanecer em relagäo com o:

outros personagens do mesmo drama. Na hist6ria biblica o ho


mem toma consciéncia de si, do seu ser diverso e superior, com
parando-se com o mundo, mas a plena consciéncia da sua pessoa
como até mesmo do sentido da sua masculinidade e feminilidade
é possfvel somente no momento do encontro com a outra pessoa

O homem é pessoa a partir do primeiro momento da sua existén


cia (cada um a partir do momento da concepgäo é jå uma individu

al subståncia, diversa de todas as outras subståncias), mas tom

consciéncia desta sua individualidade gracas ao encontro com a:


outras pessoas. Também nesse ponto vemos como a metaffsicz
se encontra com a fenomenologia. Cada homem é objetivamentc

161 Ibidem, 74.

• 170 •
pessoa, mas cada um também precisa tomar consciéncia desse
fato — e ser consciente de si mesmo näo é qualquer coisa de im-
portåncia secundåria para o ser humano. Contudo, justamente
esse processo de tomar consciéncia do seu ser pessoa acontece
em relagäo com outras pessoas. Ou seja, o homem se torna aquilo
que é por natureza somente nessa relagäo. Para ilustrar essa tese

podemQsrecordar um exemplo que nos é dado por Robert Spa-


emann. egundo Ariståteles o homem é por sua natureza um ser
falante. No entanto, mesmo se o dominio da linguagem pertence
å natureza humana, ninguém é capaz de aprender a falar sozinho.
Falamos porque antes alguém nos falou. Quando o imperador
Frederico II de Svevia queria saber qual era a linguagem original

da humanidade, fez educar alguns neonatos sem que alguém lhes


falasse. Na realidade as criangas näo comegaram a falar e logo

cedo morreram.162 0 homem se torna aquilo que é por natureza


somente com a ajuda de outras pessoas.

O exemplo do crescimento da crianga é particularmen-


te eloquente para o tema que nos interessa nesse parågrafo.
A crianga näo pode retribuir pelos servigos de que necessita,
os recebe gratuitamente porque é amada pelos seus genitores.
O amor lhes é dado como dom desinteressado. Essa experiéncia
do amor gratuito é fundamental para constituir-se da consciéncia
do sujeito. Gragas a ele a crianca pode cornegar a experimentar a
sua existéncia como justificada, näo se sente "colocado no mun-
do", que lhe aparece estranho ou mesmo hostil, mas o proprio
mundo é experimentado como uma realidade acolhedora, isto é,

boa. Aquilo que dissemos antes, sobre a existéncia do mundo e do


homem como dom do amor do Primeiro Doador, é experimentado
existencialmente mediante o amor que a crianga recebe da sua
mäe e do seu pai. Säo eles que transmitem ao pequeno homem

162 R. Spaemann, Essere persone, Editrice La Scuola, 2013, 47.

171 •
essa fundamental verdade metafisica e te016gica: o ser é bom, faz
bem ser. Desde o inicio da sua Vida o homem precisa experimentar
a gratuidade, a qual é uma marca essencial do dom.

A hermeneutica do dom concerne toda a realidade da pes-


soa, näo a podemos compreender e afirmar prescindindo da lei

do dom. A sociedade, na qual a lei do dom viria menos, se tor-

naria uma sociedade absolutamente desumana. Geralmente fa-

lando podemos dizer que a Vida social do homem é organizada


segundo duas leis fundamentais: a lei do mercado e a lei do dom.
Segundo a lei do mercado um deve pagar o prevo estabelecido
para os bens e os servicos de que necessita. A troca dos bens
que se chama "o livre mercado" apoia sob essa lei. Quando vou
para um neg6cio, näo posso pretender que as coisas me sejam
dadas gratuitamente, devo pagar o seu equivalente estipulado
pelo vendedor. Ao contrårio, na Vida humana existem bens que
pela sua natureza näo podem ser nem vendidos nem comprados.
Tais bens podem ser somente dados gratuitamente, podem ser
somente doados. O primeiro desses bens é a mesma pessoa hu-
mana. A pretensäo de vender ou comprar a pessoa humana (infe-
lizmente realizada na hist6ria) estå em direta contradigäo com
aquilo que a pessoa é: sui iuris et alteri incommunicabilis. Como
jå vimos, å pessoa säo constitutivas as estruturas de autoposses-
säo e autodeterminagäo. Justamente por causa dessa sua estru-
tura öntica, somente a pessoa interessada pode doar a si mesma
enquanto ela näo pode ser doada e nem tampouco vendida por
nenhum outro. O mesmo se refere ao corpo humano enquan-
to Sinal da pessoa humana — näo é lfcito vender ou comprar o
corpo da pessoa, porque isso significaria vender ou comprar a
pr6pria pessoa. Também
amor pela sua natureza pertence ao
o
åmbito da lei do dom. A pretensäo de comprar ou vender o amor
destr6i o proprio amon näo é mais amor o que se vende ou se
compra, mas um seu simulacro. O amor pode ser somente doado

gratuitamente.

• 172 •
A lei do dom pertence ao nåcleo do ethos humano. Ela nos
defende diante da ameaga, sempre presente na hist6ria do ho-
mem, de ser reduzido ao estatuto das coisas — ou ao estatuto
dos bens que säo submetidas å lei do mercado. A consciéncia
moral defende o homem diante de tal perigo. E, como observa
Wojtyla em Amor e responsabilidade, trata-se näo somente de
näo abaixar os outros ao nivel das coisas, mas também de näo
aceitar de ser abaixado a tal nfvel.163 Isso porque deve ser respei-
em cada homem e isso significa que
tada a dignidade da pessoa
a devo respeitar também em mim, na pessoa que sou eu. Pelo
contrårio, em certo sentido a minha pessoa me foi confiada em

um modo particular e, portanto, a minha responsabilidade nesse


caso é especial. Posso golpear outras pessoas em vårios modos,
mas somente a mim mesmo posso golpear na forma mais pro-
funda - através do mal moral que para ser tal deve envolver o
meu consenso. Por outro lado, porém, pelo mesmo motivo posso
também cumprir a minha pessoa no modo mais profundo — atra-
vés do bem moral, cuja forma mais alta é o pr6prio dom de si.,

Jå descobrimos o sentido metaffsico do dom, que consiste


no doar a existéncia por parte daquele que é o Absoluto da exis-

téncia. Visto por essa prospectiva, o pr6prio homem nos apare-


ceu como dom. Cada homem foi confiado a si mesmo, como dom.
O mais profundo sentido do ethos da pessoa consiste em aceitar
o dom, em responder ao dom com a mesma linguagem do doar
a si mesmo.

A anålise filos6fica do evento do dom revela a sua estru-


tura par excellence pessoal. Na estrutura do dom podemos dis-
tinguir o seu sujeito (quem doa), o seu objeto (a quem é dado o
dom) e a relagäo que o dom estabelece entre o sujeito e o objeto.

163 "Precisa que a pessoa näo aceite ser tratada como objeto de prazer egofstico, e que näo
se abaixe a uma outra pessoa a esse nfvel", Wojtyla, Amore e responsabilitå, cit., 650.

173 •
É Claro que se pode doar somente aquilo que possui. Ora, a pes-
soa é o ünico ser sobre a terra que permanece nos confrontos
da realizagäo de autopossessäo: existir como pessoa significa

possuir a pr6pria natureza. Porque a pessoa é livre "por" (pelos


objetos dos seus desejos, dos impulsos dos seus instintos), ela
pode ser também livre "para" (para o dom de si). luz daqui-
10 que dissemos, podemos afirmar que a liberdade da pessoa
aquele grande valor tanto elogiado na modernidade - existe
para tornar possivel o amor intenso como dom de si. A liberdade
é um valor fundamental, sem o qual a pessoa näo pode se reali-
zar como porém (contrariamente åquilo que sustentava
pessoa,
um certo tipo do existencialismo) a pessoa näo se cumpre pelo
mero exercicio da liberdade, mas quando encontra uma outra
pessoa (humana ou divina) em que pode doar a si mesmo no
amor. O amor é caracterizado por aquilo que Dietrich von Hil-
debrand chama a intentio unionis.fNo amor esponsal a intentio
unionis atinge o seu måximo grau, porque por meio do mütuo
dom de si se cria o ligame de mutua pertenga. Como diz von Hil-
debrand: "O amor reciproco inclui também uma reciproca 'in-
tengäo unitiva' e isso implica por sua vez que a uniäo seja causa
164
de felicidade para ambas as partes . É um ponto que vale a
pena sublinhar. A mütua pertenqa criada pelo dom de si leva å
felicidade. A pessoa que pertence a si mesmo no amor esponsal
quer pertencer å outra pessoa, mas essa pertenga näo a priva da
sua subjetividade, pelo contrårio a reforga e a leva å felicidade.
Na nossa cultura contemporånea somos muito mais levados a
contrapor liberdade e pertenga, entendendo a liberdade sobre-
tudo como independéncia. No amor esponsal, ao invés, o homem
quer pertencer ao outro e em um certo sentido depende dele,

mas esse tipo de dependéncia é para ele fonte de felicidade e näo


de alienagäo._l

164 D. von Hildebrand, Essenza dell'amore, Bompiani, 2003, 381.

• 174 .
O objeto do dom (de qualquer dom, a fortiori do dom de si)
é, portanto, também uma pessoa, porque somente a pessoa é
capaz de compreender o sentido do ato de doar e de responder
adequadamente ao dom. Assim o dom estabelece uma relagäo
interpessoal.; Quais säo os tragos dessa relagäo? Busquemos
identificar ao menos aqueles essenciais.165

O primeiro e mais evidente é a gratuidade. Como jå vimos,


a lei do dom é diversa da lei da troca dos equivalentes pelo fato
que qualquer coisa é dada por nada, sem a pretensäo de recom-
pensa. Naturalmente quem doa pode esperar que o seu dom seja
acolhido e recambiado, mas näo o pode exigir. Nesse sentido a
lei do dom diferentemente da lei do mercado, näo pertence å
esfera da justiga. Por outro lado se um doa alguma coisa, pode
também justamente esperar que o seu dom suscite uma respos-
ta, por exemplo, de gratidäo, mas a gratidäo do outro näo pode

constituir o motivo do seu agir, senäo o dom cessa de ser dom.


Nem tudo aquilo, porém, que é dado gratuitamente ao
outro pertence ao åmbito da lei do dom. Existem situagöes em
que somos moralmente obrigados a dar alguma coisa ao outro,
segundo a lei da justiga, pelo simples fato que ao homem é devi-
da a afirmagäo da sua dignidade. Isso, ås vezes, pode implicar a
obrigagäo de dar de comer, de beber etc. A ajuda — isto é, a obri-
gagäo de dedicar o pr6prio tempo e talvez também os recursos
materiais — de que fala Cristo na paråbola do bom Samaritano,
é devida åquele desgragado, que foi vftima dos assaltantes e,

portanto, näo faz parte da dom como dom é ca-


lei do dom. O
racterizado pela liberdade. Também nesse sentido o dom näo se
pode exigir, ele pode sair somente da livre iniciativa da pessom

165 Alguns (nem todos) traqos do dom, que indicamos a seguir, säo analisados por
Andrzej Szostek no artigo Czlowiek — darem [O homem como domJ, in id. Wokål
godno'ci, pratvdy i milo'ci [Sobre a dignidade, verdade e amorJ, RW
KUL, Lublin,
1995, 230-249.

• 175 •
Isso é especialmente evidente quando se fala do dom de si. Mes-
mo se o homem se cumpre no dom de si feito ao outro, ninguém
pode ser constrangido ou obrigado a fazer esse dom em rela-
gäo a uma determinada pessoa. Isso porque a pessoa possui a si
mesma, somente ela interessada pode decidir de se doar - näo
posso doar a outra pessoa, porque näo a posso possuir. O dom
permanece somente quando é respeitada a sua liberdade.

A ulterior propriedade do dom consiste na sua definitivida-


de. 0 dom é diferente, por exemplo, por um préstito, justamente
pelo fato que é irrevogåvel. O dom näo é como um contrato que
pode ser feito "por tempo". Quando doo uma coisa, näo sou mais
o seu proprietårio, renuncio ao meu direito de dispor dela/Con-
sequentemente aquilo que doei a uma pessoa, näo posso mais
doå-la a uma outra. Nesse sentido o dom é/irrepetivel. No caso do
dom de si, em que consiste o amor esponsal, essa caracterfstica
do dom se traduz na unidade e indissolubilidade do matrimönio.
0 dom de si no Sinal do corpo. ("os dois se tornam uma so carne")
näo pode ser anulado ou revogado, senäo o dom se transformaria
em uma troca equivalente. A pessoa, contudo, näo pode ser redu-
Zida ao nivel da mercadoria trocada, mesmo se os dois partners
consentissem. De resto, o caråter irrevogåvel do dom é inscrito na
dinåmica do amor, o qual - se é um verdadeiro amor esponsal - é
vivido por pessoas como o amor "para sempre". Dizer å pessoa
amada que a ama até o momento de encontrar uma opgäo mais
atraente, significaria que o verdadeiro amor nunca existiu.

O dom possui também a caracteristica de totalidade. No


caso do dom de si "onbjeto do dom" é toda a pessoa, sem reser-
vas ou restrigöes. Se um quer dar somente alguma coisa de si,
na verdade näo cumpre o dom de si, näo doa a si mesmo. Além
disso, a totalidade do dom se refere também ao ato do seu aco-

lhimento. rata-se de acolher o dom em toda a sua verdade. Se


o dom de si é feito através do Sinal do corpo, esse dom deve ser

• 176 •
aceito na plena verdade do corpo, isto é, com o seu sentido uni-
näo separando aquilo que se quer aceitar do
tivo e procriativo,
outro daquilo que näo se quer acolher.

O dom de si que constitui a comunidade matrimonial


possui também a caracterfstica de reciprocidade. Na prospecti-
va metaffsica se poderia dizer que o dom de si reenvia sempre
ao Primeiro Doador, porque aquilo que é doado a pessoa — é
também ele um dom: um doa aquilo que ele/ela mesmo recebeu
em dom. Nesse sentido o dom si revela verdadeiramente como
a propriedade mais profunda da existéncia da pessoa: a pessoa
que existe como dom encontra o seu cumprimento no amor, o
qual consiste no dom de si ao outro.

O dom de si -- encontra-se na resposta ao seu destinatårio

— coloca movimento uma peculiar dialética. Ninguém é obrigado


a responder å proposta de comunidade implicada no dom de si.
Se a pessoa acolhe essa proposta o faz livremente. Nesse senti-
do também a sua resposta é um dom, alguma coisa que podia
näo ser e ao invés existe gragas å livre decisäo da pessoa. Quem
doa, recebe ao mesmo tempo o acolhimento do seu dom - aquilo
que de novo, por parte de quem responde, é vivido como dom.
No seu artigo sobre o dom de si, José Noriega descreve essa ex-
periéncia como "dramaticidade do dom" e escreve: "Toda agäo
enquanto implica certa doagäo, tem uma natureza paradoxal: se
oferece a uma uma reciprocidade, mas
outra pessoa para gerar
näo pode forgå-la: deve esperå-la por sua vez como um dom que
o outro lhe oferece " 166 .

Todas essas caracterfsticas pertencem å gramåtica da


linguagem do dom que - como cada linguagem — é meio de

166 J. Noriega, La prospettiva morale del "dono si sé",


in G. Grandis, J. Merecki (a cura
de), L'esperienza sorgiva. Persona-Comunione-Societå. Studi in onore di Prof.
Stanislaw Grygiel, Cantagalli, Siena, 2007, 59.

• 177 •
comunicagäo. A linguagem do dom de si exprime o amor e cria
a comunhäo (nesse sentido possui a pr6pria dimensäo simb61i-
ca). E como qualquer outra linguagem também a linguagem do

dom tem a sua estrutura objetiva que deve ser interiorizada por
quem quer falar bem essa lingua.Qjm determinado sujeito pode
ser pouco competente no uso da linguagem do dom, pode igno-
mas com isso näo muda a estrutura da lingua-
rar as suas regras,
gem (como acontece também com outras linguagens), fornece
somente a prova que - intencionalmente ou näo - näo o sabe (ou
näo o quer) falar bem. Por esse motivo, o fato que as regras da
linguagem do dom näo raramente säo ignoradas, näo constitui o
argumento contra a sua validade. Nesse contexto vale também a
pena sublinhar que o discurso sobre a linguagem do dom, antes
de pertencer å ética ou å teologia moral, pertence å antropologia
filos6fica. A linguagem do dom exprime aquilo que a pessoa é na
sua natureza: um ser que se reconhecendo como doado encon-
tra a sua realizagäo no dom de sit
Na comunhäo conjugal o dom de si possui, enfim, a dimen-
säo de transcendéncia: torna-se fecunda no nascimento do filho.

Assim como jå falamos da transcendéncia em diregäo ao tercei-


ro, que caracteriza a uniäo conjugal, nesse lugar queremos diri-

gir a atengäosomente para alguns aspectos que no texto bfblico


analisado por Säo Joäo Paulo II säo filosoficamente relevantes.

O livro do Génesis diz: homem se uniu a Eva, sua mulher,


e ela concebeu e deu å luz Caim, dizendo: 'Ganhei um homem
com a ajuda do Senhor'" (Gn 4,1-2). É filosoficamente significati-
vo que o ato sexual venha descrito com a palavra "conhecimen-
to". Na anålise da subjetividade do homem, constatamos que o

ato do conhecimento se revela como um ato — por assim dizer -


"personogénico"v No ato do conhecimento se ativam diversas es-
truturas da pessoa e gragas å caracteristica da intencionalidade
a pessoa interioriza, torna pr6pr10, Jus mente aquilo_que vem a

• 178 •
conhecer e ao mesmo tempo se descobre moralmente obrigada
a afirmagäo da verdade que veio a conhecer. É nessa experiéncia
que se manifesta a alteridade e a superioridade da pessoa em
confronto com todas as coisas do mundoGra, se o ato sexual
é chamado propriamente com a palavra "conhecimento", isto

significa que ele näo exprime somente o instituto sexual, mas


que desde o infcio pertence å realidade pessoal.iC) ato sexual,
em que acontece uma uniäo por certos versos anålogos å uniäo
pr6pria do ato intencional, é aqui entendido como uma forma
de conhecimento da feminilidade por parte da masculinidade
e vice-versa. Também nesse conhecimento, como em cada
verdadeiro conhecimento, é dado uma verdade que os cönjuges
säo chamados a descobrir e reconhecer. E somente quando se
deixam guiar por essa verdade, vivem a sua corporeidade e se-
xualidade ao nivel da pessoa. Escreve Säo Joäo Paulo II:

O "conhecimento" em sentido biblico significa que a de-


terminagäo "biolögica" do homem, por parte do seu cor-
po e sexo, cessa de ser algo passivo, e atinge um nivel e

urn conteüdo especfficos ås pessoas autoconscientes e


autodeterminantes.167

No texto do Livro do Génesis apenas citado, a mulher diz:


"Ganhei um homem com a ajuda do Senhor". Essas palavras da
mulher exprimem a sua consciéncia que a transcendéncia em
diregäo ao terceiro (o filho) caminha lado a lado com a transcen-
déncia em direcäo ao Terceiro (o Criador). No ato procriativo é
presente o Criador. Do ponto de vista metaffsico sempre Ele, o
é
Criador, que då a existéncia. Assim a mesma sexualidade do ho-
mem é inserida na dinåmica originåria da doagäo: os genitores
cooperam com Aquele, a que exclusivamente pertence å potén-
cia de doar a existéncia.

167 Säo Joäo Paulo IT, L'uomo e donna 10 creö, cit, 98,

• 179 .
O fato que a geraqäo do filho acontece no corpo da mulher
veicula também uma importante verdade antrop016gica. A experi-
éncia da gravidez é uma experiéncia tipicamente feminina: "A mu-
lher estå diante do homem como mäe, sujeito da nova Vida humana
que nela é concebida e se desenvolve, e por ela nasce no mundo".168
0 fato mesmo que um homem se abre para receber em si um outro
homem, que gragas a uma tal abertura podc vir ao mundo, mostra
uma fundamental verdade humana, uma verdade referente a cada
homem, também o jå acenamos, a filosofia moderna
afrontou o tema da relagäo entre os homens sobretudo em Chave de
conflito, do antagonismo original cuja imagem emblemåtica éa fa-

mosa dialética servo-paträo. A experiéncia da gravidez oferece, ao


um paradigma diferente e conjuntamente mais fundamental.
invés,

+ ec Antes de entrar em conflito cada homem foi um filho (uma filha),


Walguém o recebeu e o gerou. Pensar o homem a partir dessa expe-
riéncia nos leva a uma visäo do homem originariamente aberto ao

outro, uma visäo também mpis consona com a origem do concei-


to mesmo de pessoa, o qual foi cunhado pelos primeiros te610gos
S cristäos propriamente para exprimir a comunhäo entre as pessoas
divinas em que uma pessoa é totalmente aberta å outra e presente
na outra. "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,3WVista e vivida assim a
maternidade näo pode ser reduzida somente å sua dimensäo bio-
16gica (como acontece, por exemplo, em Simone de Beauvoir, pela
qual a escritora francesa vé a dimensäo geradora do corpo femini-
no como obståculo ao desenvolvimento da liberdade da mulher169),
mas possui o significado altamente personalista que revela a verda-
de do homem como tal

O filtimo ponto que queremos relevar é que no texto bfbli-


co a geragäo do filho surge depois do pecado original. Assim o

168 Ibidem, 97.


169 Cf. S. de Beauvoir, II secondo sesso, II Saggiatore, Milano, 2008.

180 •
aspecto essencial do dom de sim, a sua transcendéncia, aparece
jå na fase hist6ria do evento humano. Qual é o significado desse
fato? Ele mostra que a lei do dom, vivida na sua plenitude no es-

tado proto-hist6rico, näo foi sobrecarregado pela concupiscén-


cia que entrou no coragäo humano junto com o pecado original.

No estado hist6rico tentou de olhar o outro como objeto do seu


desejo, mas näo é condenado ao conflito dos desejos descrito
com forga por Hobbes, Hegel ou Sartre como o estado original do
homem. Existe uma continuidade entre o estado proto-hist6rico
e a hist6ria do homem e essa continuidade se då propriamen-
te na experiéncia da gratuidade e transcendéncia do dom. Em
meio å "historia do pecado", que é a historia do homem, aparece
sempre de novo, com cada dom realizado pelas pessoas, a luz.

Queremos dedicar o ültimo ponto da nossa reflexäo ao modo


como essa luz é apresentada na histöria e as implicagöes da sua
presenga pela visäo da hist6ria.

• 181 •
EPfLOGO

A PESSOA NA HISTORIA

A hist6ria constitui um dos principais motivos da reflexäo


desenvolvida por Säo Joäo Paulo II nas suas catequeses sobre o
amor humano. Desse modo o autor busca responder ao grande
desafio do pensamento moderno, que fez da histåria o horizonte
indispensåvel — e ås vezes unico - para a compreensäo da exis-
téncia do homem sobre a terra. Ao mesmo tempo Säo Joäo Paulo
II propöe uma visäo da hist6ria, em que os principais protago-

nistas säo Deus e cada homem singular e cujo sentido se realiza


na escolha dos valores morais.

1. O DESAFIO DO IIISTORICISMO
Uma parte significativa da filosofia moderna buscou en-
contrar o principio racional da hist6ria no interior da pr6pria
hist6ria, movendo da convicgäo segundo o qual o seu sentido se
realiza no seu desenvolvimento imanente. Nas visöes em que se
buscou descobrir as inexoråveis leis que presidem o desenvol-
vimento da histåria, o homem singular perdeu o seu papel de
protagonista da prépria hist6ria e foi reduzido ao estatuto de

• 183 •
um dos seus elementos.€obretudo o marxismo, que em certo
sentido constitui o ponto de chegada do historicismo moderno,
o homem perde a sua esséncia universal e é constituido somente
pela totalidade das forgas produtivas, que obviamente säo con-
dicionadas historicamente. A hist6ria se desenvolve segundo a
sua presumida 16gica, evidenciada pelo marxismo na assim cha-
mada dialética da hist6ria, com que o individuo pode estar de
acordo ou näo; porém, o sujeito hist6rico näo é o individuo, mas
a luta das classes, que necessariamente conduz em direqäo å so-
ciedade comunista. Assim com o marxismo a filosofia chegou å
måxima despersonalizagäo da histöria, cujo desenvolvimento
ultimamente näo depende das decisöes dos homens singulares,
porque é jå predeterminado na sua imanente dialética. Com isso

se justificava também a aniquilagäo de quem näo era disposto a


se submeter ao pressuposto sentido objetivo da hist6ria. É tam-
bém interessante notar que Sartre, que buscava reivindicar a in-
dividualidade do homem contra as forgas supraindividuais da
hist6ria e da sociedade, mas limitando o seu horizonte somen-
te å sua existéncia hist6rica e negando qualquer sua esséncia
supra-hist6rica, ultimamente se encontrou com o marxismo na
concepgäo, segundo a qual a esséncia do homem é determinada
pela sua situacäo hist6rica.17_U

Por outra parte a filosofia aristotélico-tomista, renovada


depois pela enciclica Aeterni Patris de Leäo XIII, buscou contras-
tar o historicismo e o relativismo, defendendo a existéncia da
verdade objetiva e supra-histörica. No que concerne a antropo-
logia, essa filosofia se desenvolveu sobretudo como metaffsica
do homem, dedicando uma menor atengäo å questäo de como
o homem realiza a sua verdade metaffsica no concreto momen-
to historico em que vive. Em outras palavras, se olhava muito

170 Cf. J.-P. Sartre, Critica detla ragione dialettica, II Saggiatore, Milano, 1963.

• 184 •
mais em direcäo do céu das verdades metafisicas, sem buscar
ver como essas verdades se faziam valer na Vida e no agir do
homem (naturalmente näo podemos esquecer os pensadores
como Jacques Maritain que dedicaram uma parte notåvel das
suas reflexöes justamente sobre esse tema).

Jå na sua filosofia do homem, desenvolvida sobretudo no


seu livro magistral Pessoa e ato, Karol Wojtyla buscou evitar seja
uma certa "rigidez" da filosofia clåssica, seja o relativismo da
moderna filosofia da hist6ria. Na filosofia da pråxis humana, as-
sinalada jå no titulo do seu livro, Wojtyla mostra como o homem
se realiza por meio do seu agir, que por uma parte tem seus efei-

tos sobre o mundo, mas por outro plasma a sua interioridade,


conduzindo-o ou näo em diregäo ao seu verdadeiro autocumpri-
mento.171 Nas catequeses sobre o amor humano Säo Joäo Paulo II
alarga, ao invés, a prospectiva e nos propöe uma visäo integral
do homem, que compreende em uma coerente reflexäo sobre o
homem seja a dimensäo filos6fica que aquela teologia. Podemos
dizer que também nesse sentido Säo Joäo Paulo II busque desen-
volver uma antropologia adequada.

2. A ARTICULACÄO DA HISTORIA
Uma antropologia adequada näo poderia ser tal sem co-
locar em consideragäo a dimensäo histörica do homem. Nas
catequeses de Säo Joäo Paulo II a visäo da historia é articu-
lada segundo trés elementos que permitem de penså-la sem
ceder ao historicismo. A hist6ria é por assim dizer emoldurada
entre duas fases que a transcendem: a fase proto-hist6rica ("o
princfpio"), que constitui o ponto de referéncia eståvel para a

171 Cf. A. Wierzbicki, Unafiiosofia capace di pensare la storia, "TI Nuovo Areopago" 4
(2006) 6-19.

• 185 •
hist6ria, isto é, a verdade antes do mundo dada com o ato da
criagäo, e a fase p6s-hist6rica ("a ressurreigäo"),que constitui
o seu ponto de chegada. Assim a hist6ria näo é o unico ponto de
referéncia para o homem, mas em que o ho-
constitui o espago
mem realiza a verdade que ultrapassa a pr6pria hist6ria. Com
a sua pråxis ele näo cria essa verdade, mas a faz pr6pria atra-

vés da sua aqäo. Podemos ilustrar esse ponto com a reflexäo de


Säo Joäo Paulo II, sobre o principio proto-hist6rico. Podemos
dizer assim: Cristo näo aceita discursar sobre o matrimönio
sobre o plano hist6rico, assinalado pela debilidade e pelo pe-
cado do homem ("a dureza do coragäo"). Com as suas palavras
Jesus volta o nosso olhar em diregäo å verdade original do ho-
mem, expressa no ato da criagäo. Para compreender o homem
na sua plena verdade devemos retornar å sua situagäo antes
do pecado original (por assim dizer å situagäo "proto-hist6-
rica"), porque nessa situagäo o homem viveu a plenitude do

designio de Deus sobre si mesmo. Um eco dessa plenitude da


experiéncia do designio original de Deus foi preservada nos
primeiros capitulos do Livro do Génesis — trata-se dos capftu-
los que falam da situagäo do homem antes do pecado original.
Por outro lado, porém, esse eco é presente também na nossa
experiéncia do corpo. Como vimos, justamente a anålise dessa
experiéncia nos permite compreender a linguagem simb61ica
utilizada pelo autor biblico (que de outra forma seria para n6s
totalmente incompreensfvel).

A historia no sentido verdadeiro e proprio comega com o


pecado original. Ultrapassando o limiar do pecado do homem
- para dizer com Santo Agostinho — entre no espago da luta en-
tre dois amores: amor Dei usque ad contemptum sui e amor sui
usque ad contemptum Dei.172 Depois do pecado o homem perdeu

172 Cf. Sant'Agostino, De Civitate Dei, XTV, 28.

• 186 •
a sua inocéncia é chamadcmescolher o bem,
mesmwse näo raramente prefere o mal. Para Säo Joäo Paulo II

justo nessa lutmsexealizaodramamaisessencial dæhist6ria e


se realiza o sewsentido. A existéncia do homemsobreafterra é
assinaladaporaamæmultiforme contingéncia — existencial, fisi-

ca, emotiva, cognoscitiva. Contudo, do ponto de vista da reflexäo


somwcrsentfdo dih1st6ria a sua contingéncia mais essencial é
aquela moral. Portanto, o drama mais importante da historia se
realiza no coragäo do homem (näo por acaso o segundo ciclo
das catequeses sobre o amor humano leva o titulo A redengäo
do coragäo. Cristofaz apelo ao "coragäo" do homem). O coragäo
é entendido aqui no sentido bfblico — como lugar das decisöes
morais, o lugar da luta entre dois amores, o lugar em que se pode
realizar a vit6ria do amor sobre o egoismo. Nessa 6tica, o verda-
deiro e pr6prio sujeito da histåria se torna cada homem singular,
porque somente um homem concreto ésapaz de fazeruma_es-
colha moral Se näo existe um sentido
maior, em que um indivfduopossa sersubmetido ou sacrificado.
senti o da historia se cumpre por meio dos valores pessoais e
esses valores podem ser realizados somente no coragäo de cada
pessoa singular. Daqui se pode compreender a importåncia do
encontro interpessoal para a realizag.äo-dmsentido da historia.
O encontro com uma outra pessoa é uma oportunidade do amor,
uma oportunidade do dom de si em que cono diz o Conci-
lio Vaticano I mem encontra lenamente a si mesmo.173
Assim no livre ato do dom de si se cumpre o valor maior na is-

t6ria e se realiza o seu sentido mais profundo.174

173 "Piene seipsum invenire non posse nisi per sincerum sui ipsius donum", Gaudium
et spes, 24.

174 Cf. W. Chudy, Miedzy apoezqtkiem"a zmartwychwstanie,. Dzieje ezlowieka i ludzko-


'ci to o'wietleniu Jana Pawla II teologii eiala [Entre "o princfpio" e a ressurreigäo.
A historia do homem e da humanidade å luz da teologia do corpo de Joäo Paulo II],
in Roczniki filozoficzne xxxv-xxxvr, 2 (1987-1988), 53-95.

• 187 •
O lugar mais comum mesmo se näo ünico — do since-
ro dom de si å outra pessoa é o matrimönio. O matrimönio é
uma comunidade fundada por esse dom e ao mesmo tempo uma
comunidade que vive e realiza esse dom na Vida cotidiana, nas
mais comuns experiéncias da Vida. O mesmo vale naturalmente
para a familia. Assim o matrimönio e a familia assumem um pos-
to näo 01 ematiiåd&de
modo adequado. Do ponto de vista cristäo a hist6ria näo tem so-
mente o seu infcio e o seu fim, mas também o seu ponto central,
que é constituido pelo acontecimento da encarnagäo de Cristo.

"Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho ünico", diz Säo
Joäo (Jo 3,16). Cristo mesmo é o dom do Pai para o mundo. Ele
em toda a sua Vida (no seu user-para", "pro-existéncia") e sobre-
tudo na sua morte sobre a cruz restitui a verdade originåria do
homem no meio da hist6ria do pecado. É Ele que diz Udesde o
principio näo foi assim" (cf. Mt 19,3), recordando-nos que näo
é a nossa pråxis historica a criar a verdade da nossa existéncia
hist6rica, mas o desfgnio original de Deus que desde o principio
se exprime no dom. Por meio de Cristo cada homem participa da
hist6ria näo de modo parcial e acidental, mas de modo central.

Cada ato do dom de si participa do seu unico dom, através do


qual Ele reconciliou o mundo com o pai.

dimensäo humana da hist6ria näo existem conquistas


definitivas.A verdade descoberta e vivida em um dado momen-
to hist6rico pode ser esquecida e desprezada em um outro mo-

mento. Naturalmente, na hist6ria Iidamos com o progresso, por


exemplo, na ciéncia ou na técnica. No entanto, do ponto de vista
moral - e esse ponto de vista é essencial para o sentido da hist6-
ria - o progresso näo existe. O drama da liberdade comega com
cada homem.

• 188 •

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