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Corpo e
A antropologia filosöfica na
Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II
%OES
JAROSLAW ME-RECKI, SDS
Corpo e
Transcendéncia
A antropologia filos6fica na
Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II
Traduzido por
D. Hugo C. da S. Cavalcante, OSB e
Pe. Valdir M. dos Santos Filho, SCJ
ctöøø
Corpo e Transcendéncia
A antropologia filosöfica na Teologia do Corpo de Säo Joäo Paulo II
Edifäo-2014
Diretor Editorial:
Mons. Jamil Alves de Souza
Tradugäo:
D. Hugo C. da S. Cavalcante, OSB e Pe. Valdir Manuel dos Santos Filho, 5CJ
Supervisäo de Revisäo:
Leticia Figueiredo
Revisäo:
Raquel Cristina P. de Sousa
Ediqöes CNBB
Titulo Original: Corpo e trascendenzo. L'antropoiogia filosofica nella
teologia del corpo di Giovanni Paolo II
Ad instar manuscript;
Copyright 2014 - Edif5es CNBB
ISBN: 978-85-7972-351-3
C748c Conferéncia Nacional dos Bispos no Brasil / Corpo e Transcendéncia a Antropojogia Filosåfica
na Teologia do Corpo de Såo Joäo II. Brasilia: Edisöes CNBB. 2014.
CDU - 233
Nenhuma parte desta obra poderå ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma elou
EdifOes CNBB
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SUMÅRIO
INTRODUCÄO
CAPfTULO I
verso daquele realizado por Säo Joäo Paulo II. Buscaremos isso,
3 O texto original, escrito em polonés, dessa parte estå consenrado no arquivo de Säo
Joäo Paulo II na Casa Polonesa em Roma.
4 O texto fundamental no que se refere a visäo filos6fica do homem de Wojtyla é na-
turalmente o seu livro magistral Pessoa e ato, que nos servirå aqui como o principal
ponto de referéncia.
Säo Tomås de Aquino, foram inspirados pelo texto bfblico — nes-
se caso se tratava antes de tudo de Ex 3,14 — para descobrir a di-
ferenga entre ser e existéncia que pertence å reflexäo filos6fica.
Também no nosso caso devemos distinguir entre o contexto de
descoberta (the context of discovery) e o contexto de justificagäo
(the context ofjustification).Näo estå exclufdo que também na
antropologia o texto bfblico pode nos conduzir para as intuigöes
que depois podemos convalidar com a. ajuda dos métodos
pr6prios para a filosofia.
gica, a ponto de ser chamado por Säo Joäo Paulo II 'ta mais antiga
descrigäo e registro da autocompreensäo do homem". No nosso
contexto é interessante notar que segundo o Pontffice este texto
contém em si no nücleo "quase todos os elementos de anålise do
homem, aos moderna
quais é sensivel a antropologia filos6fica
e sobretudo contemporånea".5 É por este motivo que no decurso
nas nossas reflexöes a segunda narrativa da criagäo do homem
estarå no centro da atengäo; buscaremos também individuar ao
menos alguns dos seus nexos com a filosofia moderna.
5 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö. Catechesi sull'amore tnnano, Cittå Nuova
Editrice. Libreria Editrice Vaticana, 1992, 37.
• 10 •
mas também como o homem é pessoa. Também as categorias me-
tafisicas, como aquela da causalidade, recebem um colorido di-
• 11 •
"o método do contraste". Mesmo se näo dispomos do acesso dire-
to å experiéncia proto-hist6rica, porque toda a nossa experiéncia
é marcada pelo pecado original, podemos intuir o sentido desta
experiéncia a partir daquilo que nos foi dado quase per viam ne-
gationis. Estemodo de proceder é especialmente evidente na anå-
lise da nudez original, em que o pudor se revela como eco distante
• 12 •
Segundo Säo Joäo Paulo II a situagäo proto-hist6rica do
homem pode ser descrita com trés coordenadas: a solidäo, a
unidade e nudez originais. Sobre essas trés coordenadas busca-
remos reconstruir a filosofia do homem implicada pela teologia
do corpo. A solidäo original exprime conjuntamente a constitui-
Gäo ont016gica do homem como tal e a sua génese como sujei-
• 13 •
å lei da entropia. Por outro lado, porém, o homem näo quer
contentar-se da finitude inscrita no seu corpo e pöe a questäo
sobre a imortalidade e sobre o escopo da hist6ria. Essa questäo
o conduz sobre o limiar da religiäo e da teologia, mas ao mes-
mo tempo é radicada exatamente na sua experiéncia do corpo.
A essa perspectiva da teologia do corpo dedicaremos o ültimo
parågrafo do nosso livro.
• 14 •
de Säo Tomås acontece sob o influxo do livro do Génesis, tam-
bém de per si ela pertence å ordem filos6fica, näo é ilicito pensar
que a filosofia de Karol Wojtyla näo teria Sido aquela que efeti-
15 •
CAPfTULO I
• 17 •
da filosofia de Säo Tomås. A assim chamada "escola de Lublin"
enriqueceu essa interpretagäo sobretudo com a aprofundada
reflexäo metod016gica. A sensibilidade metod016gica, que en-
contramos muitas vezes seja nos textos filos6ficos de Wojtyla,
que nas suas catequeses de quarta-feira, provinham em parte
da forte presenga na cultura filos6fica polonesa dos resultados
obtidos pela escola "Leopoli-Vars6via", a qual no campo da pes-
quisa 16gica e metodolögica estava na vanguarda no seu tempo.
No nosso contexto é interessante também notar que os pensa-
dores da escola 'tLeopoli-Vars6via" tinham elaborado uma teoria
da ética autönoma, isto é, a ética independente seja da filosofia
• 18 •
construir a ética cristä na base do sistema ético de Max Sche-
len Näo obstante a resposta negativa å questäo principal da sua
pesquisa, Wojtyla encontrou no método fenomen016gico um
instrumento precioso seja para a antropologia que para a ética.
19 •
A infelicidade do ensino escolåstico ordinårio e sobretudo
dos manuais,foifeita para negligenciar praticamente este
elemento intuitivo essencial e para substitui-lo desde o ini-
10 Cit. in: R. Buttiglione, II pensiero de Karol Wojtyla, Jaca Book, Miläo, 1982, 51.
• 20 •
quais serüo as suas opiniöes definitivas sobre o homern;
ele sabe somente que elas devem ser subordinadas sem
reservas å experiéncia do homem (...) Essa experiéncia,
essa intuigäo (Einsicht) precede a opiniüo (Ansicht), seja
sobre o mundo que sobre o homem, precede a ideologia
(Weltanschauung).ff_)
• 21 •
mas desde o infcio "vai å profundidade", busca descobrir o senti-
do daquilo que experimentou. Jå uma simples observagäo: "Esta
coisa é uma mesa, este objeto é um cäo" implica a utilizagäo dos
conceitos que väo além do simples registro dos dados sensfveis
fenoménicos.13 Esta distingäo e esta visäo da experiéncia seräo
importantes naquele ponto das catequeses nas quais Säo Joäo
Paulo II fala da consciéncia e conhecimento do primeiro homem
no estado da solidäo original.
13 Neste ponto vale a pena notar que o subtitulo utilizado na ediqäo de Persona e atto
no parågrafo que se refere a esta problemåtica estå errado. O subtitulo "O ponto de
vista empirico näo se identifica com a atitude fenomenolégica" deveria apresentar:
"O ponto de vista empirieo näo se identifica com a atitude fenoménican. Wojtyla dis-
tingue claramente entre "o fenoménico" e "o fenomenolögico" e, enquanto critica a
concepqäo fenoménica da experiéncia aceita sua concepgäo fenomen016gica.
14 Ibidem, 831.
• 22 •
fiel å experiéncia, na qual o horizonte do ser tem sempre a prio-
ridade sobre o horizonte da consciéncia. Vemos isso claramen-
• 23 •
encontramosem uma situagäo privilegiada. N6s mesmos somos
homens e mesmo que a nossa experiéncia subjetiva permaneqa
sempre diferente da experiéncia subjetiva dos outros homens,
ela nos permite um acesso privilegiado näo somente aquele ser
que é o homem, mas também ao ser como tal. Aqui podemos
viver e observar a partir de dentro todas as fundamentais dis-
tingöes metafisicas, a partir daquela entre o ser e o existir. Näo
é talvez errado dizer que toda a pesquisa metafisica parte exa-
tamente desta experiéncia subjetiva do pr6prio "eu". O homem
antes de tudo pöe a questäo que se refere a sua existéncia, que
experimenta como precåria, contingente. No entanto, ultima-
mente, a essa questäo näo pode responder, se näo pöe a questäo
sobre o ser como tal, ou seja, a questäo metafisica. Nesse sentido
se poderia dizer que na visäo de Wojtyla antropologia aparece
como a filosofia primeira — näo no sentido aristotélico da filtima
explicagäo da realidade, mas no sentido heurfstico como o ponto
de partida da pesquisa filos6fica. De outro ponto de vista, recen-
temente tudo converge no saber sobre o homem.
• 24 •
Essa impostagäo metod016gica, que encontramos na in-
troduqäo a Pessoa e ato, encontra o seu eco no modo em que Säo
Joäo Paulo II analisa as narrativas bfblicas sobre a criagäo do ho-
mem, Também aqui parece que acentua sobretudo na anålise da
experiéncia subjetiva do homem, do modo como ela é descrita na
segunda narrativa. Além disso, o fato de que na narragäo biblica
a solidäo precede a unidade original, tem por ele um significa-
• 25 •
Como Wojtyla encontrou o pensamento de Scheler e quais
foram os frutos desse encontro para a sua filosofia e para a sua
teologia? Antes de tudo devemos recordar que durante os seus
estudos na Universidade de Säo Tomås em Roma Wojtyla adqui-
riu um profundo conhecimento do pensamento do Aquinata,
testemunhado entre outros, pela sua tese de doutoramento de-
dicada a questäo de em Säo Joäo da Cruz (da sua relacäo com a
fé
17 ibidem, 143.
• 26 •
da Cruz, Wojtyla näo quer utilizar o termo "objeto" (a escolha
que foi criticada no juizo sobre a tese por parte do seu mode-
rador, o famoso tomista padre R. Garrigou-Lagrange), provavel-
• 27 •
existéncia delas, (a assim chamada "epoché" fenomen016gica).
O passo que Husserl afrontou, consistia na questäo
sucessivo,
acerca do estatuto metaffsico dos fenömenos assim descritos.
Na segunda fase do desenvolvimento da fenomenologia desta
questäo metafisica conduziu o pr6prio Husserl para a estrada
do idealismo transcendental, cujos fenömenos säo ultimamente
vistos como produzidos pela consciéncia.
pena recordar que um dos seus mais famosos estudos foi de-
dicado ao fenömeno da responsabilidade.20 No decurso da sua
carreira universitåria, Ingarden por trés vezes ensinou também
nos cursos sobre ética — pela primeira vez nos anos trinta na
19 Nesse contexto vale a pena recordar que uma versäo da fenomenologia realistica, que
ao mesmo tempo se inspira na obra de Wojtyla e aquela de Ingarden. além dos escri-
tos de um outro discipulo de Husserl. Dietrich von Hildebrand, foi desenvolvida por
Josef Seifert, Rocco Buttiglione, John Crosby e outros da Academia Internacional de
Filosofia no Principado de Liechtenstein. Cf., por exemplo, J. Seifert, Essere e perso-
na, Vita e Pensiero Müano, 1989 .com uma interessante introduqäo de
na qual vem demonstrada como a fenomenologia de Seifert pös suas raizes seja na
fenomenologia realistica que no personalismo de Wojtyla).
20 Cf. R. Tngarden, Sulla responsabilitå, CESO Biblioteca, Bolonha, 1982. A questio da
responsabilidade constitufa também urn dos objetos das pesquisas de Wojtyla.
• 28 •
Universidade de Jan Kazimierz em Lvov, e depois no p6s-guerra
duas vezes na Universidade Jagiellonica de Crac6via. No nosso
contexto é interessante o fato de que uma parte das aulas de
Lvov foram dedicada a concepgäo da ética em Scheler. Tudo isso
torna plausivel a hip6tese que exatamente gragas ao influxo de
Ingarden na Polönia do p6s-guerra, periodo no qual a filosofia
• 29 •
É exatamente esta separacäo da experiéncia empirica que
provocou o protesto de Scheler. Em certo sentido a sua proposta
de ética pode ser descrita como o exato oposto da ética de Kant:
na verdade Scheler defende o caråter empfrico da ética, mas rejei-
ta o seu caråter normativo. Podemos, porém, indicar algo que une
Scheler a Kant, näo obstante as diferengas deles. Trata-se exata-
mente da sua concepgäo da experiéncia expressa no modo mais
Claro jå pelo grande predecessor de Kant, ou seja, David Hume: A
razäo é cega nos confrontos dos valores. Mas se é assim, é possfvel
salvar o caråter empfrico da ética? Enquanto a resposta de Kant
é negativa, aquela de Scheler é positiva. Na sua anålise fenome-
n016gica Scheler busca exatamente mostrar como os valores e a
hierarquia deles säo dados å pessoa pela experiéncia, mas essa
experiéncia é do tipo emocional. Säo as emogöes que nos pöem
em contato com o mundo dos valores. Segundo Scheler as emo-
Göes possuem o caråter intencional: as emocöes se referem a algo
e os seus objetos säo exatamente os
• 30 •
constituir o conteüdo objetivo da experiéncia e no seu sistema
näo admite sequer a ideia que ele possa nascer do pråprio va-
lor. O valor e o dever de contrapöem mutuamente.?l
• 31 •
Como veremos, pelo jufzo negativo sobre o sistema de
Scheler näo segue um jufzo igualmente negativo sobre o método
fenomen016gico. Ou melhor, segundo Wojtyla o proprio Scheler
forgou muito a sua polémica com Kant, cancelando o momen-
to normativo embora sempre dado na experiéncia moral. Wo-
jtyla partilha plenamente o fundamento postulado por Scheler,
segundo o qual a ética deve partir da experiéncia. O defeito da
proposta de Scheler consiste em näo ter esgotado todos os recur-
sos do método fenomen016gico ao explorar a experiéncia moral.
Assim o projeto de Wojtyla, cujo primeiro esbogo encontramos
no estudo sobre Scheler, poderia ser descrito como a tentativa
de preservar os aspectos de verdade presentes seja em Kant que
em Scheler. Na verdade, no ensaio jå citado, descrevendo o carå-
ter da experiéncia moral Wojtyla afirma:
23 Ibidem, 63.
24 Entreos alunos de Wojtyla recordamos o prof. Tadeusz Styczeå, SDS, o seu sucessor
na cåtedra de ética em Lublin. Serå sobretudo ele a prosseguir e posteriormente de-
senvolver a visäo de ética proposta por Wojtyla. Cf. T. Styczefi, Comprendere l'uomo.
La visione antopologica di Karol Wojtyla, cit.
• 32 •
da pessoa desenvolvida no seu livro filos6fico mais conhecido
Pessoa e ato. Trata-se sobretudo do conceito de ato, que se tor-
narå para Wojtyla uma espécie de janela para a interioridade
da pessoa. É por meio de seu ato que a pessoa revela que é e ao
mesmo tempo realiza a si mesma. É verdade que também Sche-
ler fala do ato, mas fala do ato no sentido de ato intencional, e
näo no sentido da realizagäo da potencialidade interna da pes-
soa. O ato intencional nos apresenta um objeto que transcende
a nossa subjetividade (no caso do ato intencional emocional o
objeto que nos é dado é um valor). A ideia do ato intencional
• 33 •
ao método fenomen016gico. Desse modo Wojtyla busca corri-
gir Scheler no campo da pr6pria fenomenologia, ou seja, no
campo da pr6pria experiéncia do homem. Ainda mais, como
resulta da segunda das suas teses conclusivas sobre Scheler,
Wojtyla considera que o método fenomen016gico seja particu-
larmente adaptado para revelar como o homem é pessoa. Era
exatamente esse aspecto que permanecia embora em sobra na
concepgäo metaffsica de Säo Tomås. Assim nasce o postulado
wojtyliano de conjugal metafisica com a fenomenologia, reali-
zado depois em Pessoa e ato. Essa abordagem da metaffsica,
que parte da experiéncia do homem, conduz Wojtyla ås mes-
mas caracteristicas metaffsicas que estäo presentes na filosofia
aristotélico-tomista mas dando-lhe um colorido diferente. Na
verdade, uma coisa é dizer que todo ato é realizaqäo de uma
poténcia inserida no ser e outra é descrever a passagem da
poténcia ao ato partindo da pr6pria experiéncia. Isso, ao in-
vés, torna-se possivel porque em cada ato seu o homem vive
em mesmo essa passagem: sabemos o que significa dizer
si
Rocco Buttiglione, II pensiero de Karol Wojtyla, Jaca Book, Miläo, 1982, 306-314.
• 34 •
experiéncia moral. O problema estå todo aqui: Mesmo que pos-
samos estar de acordo com Scheler que a emogäo me apresen-
ta um valor, devemos considerar que a emogäo näo me diz qual
atitude pråtica devo assumir nos seus confrontos. Pode aconte-
cer, e de fato acontece muitas vezes na nossa Vida, que sentimos
vivamente — em nfvel emotivo - a atragäo de um valor que por
vårios motivos näo deve se escolhido como regra da nossa aqäo.
• 35 •
Em outras palavras, o dever moral nasce da forga normativa da
verdade. O homem como pessoa é um ser livre — näo depende dos
objetos dos seus atos intencionais (como é no caso dos animais).
(Xliberdade da pessoa näo é, porém, uma independéncia total. A
pr6pria pessoa - e isso estå inscrito na dinåmica da sua liberdade,
que é liberdade de um ser racionalmente livre — reconhece espon-
taneamente a sua dependéncia da verdade conhecida e reconhe-
cida por si mesma. Basta um simples experimento mental para
convencer-nos da verdade dessas teses. Provemos negar diante
de n6s mesmos qualquer verdade que reconhecemos como tal.
• 36 •
reconduzir aos seguintes problemas: O que eu posso saber?
1.
• 37 •
o "existir"... Nüo obstante algumas expressöes particula-
rizadas e plåsticas da citagäo, o homem é definido aqui
antes de tudo nas dimensöes do ser e do existir ("esse").
pensamento wojtyliano.
29 Säo Joäo Paulo II, (Tomo e donna to creö. Catechesi sull'amore umano, Cittå Nuova
Editrice. Libreria Editrice Vaticana, 1992, 35.
• 38 •
introducäo inglesa das catequeses sobre o amor humano o Prof.
Michael Waldstein propöe a sua interpretagäo da filosofia de
Wojtyla e das suas rafzes. Vé no encontro do jovem sacerdote
com a teologia mfstica de Säo Joäo da Cruz, falando do persona-
lismo carmelita de Wojtyla que depois serå consolidado e desen-
volvido no confronto com o pensamento moderno representado
por Kant e Scheler.30 Aquilo porém que marca o leitor é exata-
cia do homem, que transmite as aulas dadas por Wojtyla aos es-
tudantes depois do seu retorno dos estudos romanos, veremos
que toda a reflexäo do autor é impostada sobre a tratativa do
30 Cf.John Paul II, Man and Woman He Created Them. A Theology of the Body, trans-
lation, introductionand index by Michael Waldstein, Pauline, Boston 2006. Näo estå
excluido que essa sua impostaqäo foi sugerida pela tradugäo inglesa da obra principal
de ou seja, Pessoa e ato, na qual a terminologia utilizada por Wojtyla vem
"fenomenologizada" å custa da terminologia metafisica. CE R. Buttiglione, II pensiero
de Karol Wojtyla, cit., 141-142.
• 39 •
homem presente na Summa Theologiae de Säo Tomås.31 Quan-
do examinamos as suas aulas, dadas no inicio do seu ensina-
mento na Universidade Cat61ica de Lublin, jå os pr6prios titu-
los säo testemunhas da forte presenga da inspiragäo tomista.
Esses titulos definem: "Ato e experiéncia ética", "Bem e valor",
'A questäo de norma e felicidade". Como é fåcil notar, uma parte
desses titulos reenvia sempre ao pensamento de Säo Tomås,
que vem, pois explicitamente tratado e cujas soluqöes per-
manecem para Wojtyla o ponto de referéncia na sua anålise
das impostagöes dos pensadores antigos e modernos.32 Näo é
diferente nos ensaios publicados por Wojtyla neste periodo.33
Nesses ensaios — que em medida preparam a formulaqäo
certa
da sua original concepgäo filos6fica do homem - ele se ocu-
pa das diferentes impostagöes do problema ético surgidas na
hist6ria, sobretudo dos pensadores como Hume, Kant, Sche-
ler, mas näo é dificil notar que sempre a soluqäo privilegiada é
aquela de Säo Tomås.
• 40 •
e interpretar o sistema filos6fico tomista, mas em alguns pontos
se afasta da interpretagäo de Säo Tomås, ou a enriquece afron-
tando os mesmos problemas do seu ponto de vista.
Geralmente, podemos dizer que Wojtyla estå convicto de
que toda a hist6ria da filosofia moderna - de Descartes em dian-
te — que buscou fazer filosofia a partir do sujeito, näo é somente
uma grande aberracäo, um erro grosseiro que deve ser total-
mente rejeitado ou ignorado, Lendo, ås vezes, alguns autores to-
mistas do século passado se pode ter a impressäo que toda a fi-
. 41 •
estudos depois da explosäo da Segunda Guerra Mundial) e por
esse motivo o seu primeiro encontro com a filosofia — naqueles
anos nos seminårios se estudava a filosofia escolåstica - era
um encontro com um modelo de conceitos que a primeira vis-
ta lhe pareciam bastante intratåvel. Näo obstante a fadiga da
sua compreensäo esse estudo se revelou gratificante, de modo
que, em uma carta desse periodo Wojtyla exprime o seu estar
fascinado por uma visäo ordenada e coerente que encontrou
na metafisica clåssica. Também durante os seus estudos na
Universidade de Säo Tomås em Roma, Wojtyla teve modo de
aprofundar o seu conhecimento do pensamento de Säo Tomås,
tendo como mestre e orientador da sua tese o padre Reginald
Garrigou-Lagrange, uma das maiores autoridades nos estudos
tomisticos daquele tempo.
34 Säo testemunhas disso os seminårios organizados por cle regularmente, primeiro em Cra-
e6via e depois — como Papa -- ern Castel Gandolfo nos quais os fi16sofos e te610gos se
encontravam com os cientistas.
A interpretagäo da filosofia de Säo Tomås, que atraiu
a atengäo de Wojtyla, era sobretudo aquela desenvolvida na
Universidade Cat61ica de Lublin da qual tinha se tornado pro-
fessor. A assim chamada escola filos6fica de Lublin inspirou-se
na interpretagäo da filosofia de Säo Tomås, desenvolvida antes
de tudo por Ettiénne Gilson e Jacques Maritain, cujos princi-
pais representantes em Lublin eram: o discfpulo de Maritain, o
Prof. Stefan Swieiawski, o Prof. Mieczyslaw Albert Krqpiec, OP,
autor de numerosos volumes que contribuiram para a difusäo
dessa interpretagäo em toda a Polönia, padre Prof. Stanislaw
Kamifiski, metod610go das ciéncias e da filosofia, que ensinou na
escola de Lublin com uma forte atengäo å questäo metod016gi-
ca. Näo é diffcil notar que também Wojtyla tinha dedicado uma
parte dos seus estudos aos problemas da metodologia da ética
e da antropologia. A outra figura da reflexäo filos6fica cultivada
na escola de Lublin é constituida pelo confronto critico com a
hist6ria da filosofia, desenvolvida na convicqäo de que os pro-
blemas filos6ficos fundamentais permanecem sempre os mes-
mos e encontram na historia do pensamento algumas questöes
essenciais que retornam sempre, novamente em diferentes ves-
tes e com novos argumentos (assim, por exemplo, o confronto
realismo-idealismo, a disputa entre objetivismo e subjetivismo,
etc. constituem uma constante de toda a hist6ria da filosofia).
. 43
concepgäo do pr6prio Em extrema sintese podemos dizer
ser.
44 .
"horizonte transcendental" de todo o seu pensamento filos6fico.
Um dos testemunhos do seu compartilhamento da visäo meta-
fisica de Säo Tomås a encontramos no primeiro ciclo das cate-
queses sobre o amor humano, que citamos no fim do parågrafo
precedente. Quando Säo Joäo Paulo II comenta a primeira narra-
tiva da criagäo do homem se refere exatamente aos conceitos de
ser e existir (esse), de Säo Tomås. Näo é diffcil reconhecer aqui
toda a terminologia tomista que vem exatamente do tomismo
existencial e a estima pelos pensadores que souberam interpre-
tar o ser desse modo. E, depois, falando da contingéncia do ser
humano, Säo Joäo Paulo II acrescenta:
cance dessa afirmagäo näo foi esgotada). Dizer que o ser é bom
quer dizer que ele é querido por alguém ultimamente, que ele
é querido por Deus que com a sua vontade criadora o chama a
existéncia. Porém, se a metaffsica parte do nosso conhecimento
. 45 .
comum do ser — segundo o axioma ens est primum quod cadit in
apprehensione (ST I-II, q. 94, a. 2) os transcendentais como o ver-
dadeiro, o bem e o belo näo säo dados ao sujeito que é ao mesmo
tempo ativo, que toma posigäo diante do ser, que o considera do
ponto de vista axi016gico (é um sujeito pessoal que reflete sobre o
ser como verdadeiro, bom e belo). Isso é de resto coerente com a
37 Esse aspecto foi ressaltado por Wojciech Chudy no seu exeelente livro Rozwdj filo-
zofowania a "pulapka refleksji" (O desenvolvimento do filosofar e a "armadilha da
reflexäo"), Redakcja Wydawnictw KUL, Lublin 1993, 344-346.
. 46 •
personalfstico para constituir-se em toda a riqueza do seu conte-
üdo. Exatamente nisso consiste a tentativa, empreendida por Wo-
jtyla, de unir a clåssica filosofia do ser com a moderna filosofia da
consciéncia.A exigéncia dessa tentativa nasce, como procuramos
demonstrar, do interior da pr6pria metafisica, e ao mesmo tempo
enriquece especialmente a reflexäo filos6fica sobre o homem, que
pode se tornar assim uma verdadeira e pr6pria metafisica perso-
nalista. Essa observagäo nos conduz a um ulterior ponto da nossa
reflexäo, isto é, ao personalismo antrop016gico e ético de Wojtyla.
aplicagäo desse conceito, que ele retoma de Boécio: persona est ra-
tionalis naturae individua substantia, também ao homem. Para ele
aquilo que no mundo representa uma verdadeira perfeigäo onde
encontrar-se também em Deus. Nesse contexto, ele afirma que a
mais alta perfeigäo que podemos encontrar no mundo é a pes-
soa: 'Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura"
(ST I, q. 29, a. 3). Segundo Wojtyla exatamente essa afirmagäo nos
• 47 •
permite falar do personalismo antrop016gico e ético do proprio
Säo Tomås, embora ele mesmo näo utilizasse esse termo. Mas,
Iidades por meio das pr6prias agöes. Isso distingue Säo Tomås
de tantas concepgöes de pessoa desenvolvidas mais tarde, que
a definem somente por intermédio de algumas propriedades
mentais que existem ou näo existem em um homem concreto.
Essas definigöes de pessoa näo säo naturalmente privadas das
suas consequéncias pråticas: Se a pessoa é definida por meio de
algumas propriedades mentais, quem näo possui essas proprie-
dades näo é considerado pessoa e näo pode gozar do status que
cabe a quem é perfectissimum in tota natura. Se, ultimamente al-
guns fi16sofos avangaram na proposta de substituir a expressäo
"direito do homemn com a expressäo "direito da pessoa", essa
proposta fundamenta-se exatamente na concepgäo "atualistica"
de pessoa: Como pessoa com os direitos que lhe cabem pode
ser considerada somente quem possui as propriedades mentais
quais autoconsciéncia, mem6ria, a faculdade de autodetermi-
nagäo, etc. A visäo objetivista de Säo Tomås nos defende con-
tra essas propostas - cujas consequéncias säo para näo poucos
homens letais — porque, segundo essa concepgäo, todo homem
deve ser considerado pessoa em forga da sua natureza natu-
. 48 •
humana (é, em que mede os atributos do seu
pois outra questäo,
ser pessoa se fazem efetivamente presentes; em todo caso a dis-
tingäo ente o atributo e a subståncia permite afirmar que a per-
sonalidade estå presente também naqueles que näo säo capazes
de exprimi-la, por exemplo, pelo fato de que näo desenvolveram
ainda determinada faculdade, näo a desenvolveram jamais, ou
perderam a sua posse).
39 Ibidem, 143.
• 49 •
pessoa-ato e de per si constitui dela um aspecto importante".40
Wojtyla estå convicto de que a reflexäo filos6fica sobre o homem
näo pode limitar-se å anålise objetiva - com as categorias pr6-
prias da metafisica - daquele ente especffico que é o ser huma-
no, mas deve levar em consideragäo o fato de que o homem viva
a pröpria humanidade a partir de dentro. Em um importante en-
saio, do qual jå o titulo é muito significativo: A subjetividade e a
irredutibilidade no homem. Wojtyla reivindica a necessidade de
"objetivar o problema da subjetividade do homem", recordando
ao mesmo tempo em que a subjetividade
uma espécie de termo evocativo dofato de que o homem na es-
é
séncia a ele pråpria näo se deixa reduzir nem explicar totalmente através
• 50 •
mundo e que uma abordagem verdadeiramente realista näo a
pode deixar de fora da sua visäo do mundo.
• 51 •
falar de tomismo em sentido estrito. Ele tinha a sua pröpria, ori-
ginal abordagem da filosofia e para exprimi-la também elaborou
um vocabulårio totalmente pr6prio. Por outro lado, porém, ele
sempre conservou uma grande estima pela filosofia de Säo To-
mås e partilhou com ele algumas intuigöes fundamentais. Creio
que se possa dizer isso: Wojtyla - como de resto todos os gran-
des fi16sofos — näo se considerava pertencer a uma ou a outra
escola de pensamento (e, por isso podia com grande liberdade
retirar dos diferentes sistemas filos6ficos, que alguns conside-
ravam incompativeis — como a filosofia do ser e a filosofia da
consciéncia). Aquilo que interessava para ele näo eram as esco-
las e os textos de outros fi16sofos, mas a pröpria realidade tes-
• 52 •
relagäo entre alma e corpo é aquela da forma da matéria, para
Descartes o homem é composto de duas subståncias, ontolo„
gicamente independente entre elas. Uma é identificada com o
pensamento, com a consciéncia de si e, por isso é chamada res
cogitans (coisa pensante); a outra, ao invés, é constitufda pelo
nosso corpo material existente no espago e no tempo e, por
isso, é chamada res extensa (coisa estendida). Na sua tentati-
negando-a.
• 53 •
intérpretes do seu pensamento näo consegue fazer isso. Por isso,
a sua visäo pode ser considerada um dualismo antrop016gico.
Tem mais. O problema da relagäo entre a alma e o corpo
como tal näo nasceu na modernidade. Foi jå colocado pela filo-
54 .
meramente material e externo (como outros instrumentos que
o homem pode usar), porque ele "tem em si mesmo o princfpio
do movimento e da quietude" 45 Para o homem, como para todos
os outros seres viventes existir no corpo näo é algo de acidental
(como, ao invés, parecia para Platäo), mas essencial, de modo
que Arist6teles pode dizer que a Vida - e se trata da Vida do cor-
po - é o pr6prio ser de um ser vivente. A formulagäo latina se
• 55 •
autenticamente humana, é justamente um instrumento mais
pr6ximo ao espirito, mesmo necessårio neste mundo, mas em-
bora sempre instrumento.
56 •
Scheler sobre o pudor,51 porque esse pode ser visto como um dos
pontos de referéncia na anålise do pudor primeiro no Amor e res-
ponsabilidade de Wojtyla e depois nas catequeses sobre o amor
humano de Säo Joäo Paulo II. Para Scheler somente o homem
pode provar pudor, exatamente porque ele estå, por assim dizer,
nos confins entre o mundo espiritual e o mundo material e isso se
manifesta exatamente na sua experiéncia do corpo. Entre os au-
tores de lingua alemä podemos mencionar também Arnold Geh-
len52 e Helmuth Plessnet,53 os quais afrontaram a problemåtica da
antropologia levando em consideragäo também as contribuigöes
das ciéncias empiricas sobre o homem. Todos esses estudos, em-
bora interessantfssimos, näo buscaram impulsionar além do nfvel
da consciéncia ou dos dados empiricos para chegar até as dimen-
söes da transcendéncia (ou Transcendéncia). Como nos resulta,
54 Mais sobre a objegäo do biologismo, cf. J. Merecki, SDS, Naturalizzazione della per-
sona o diritto naturale?, in Anthropotes 19 (2003), 3, 311-327.
. 58 .
ao ensinamento da encfclica,55 cuidou da publicagäo com o co-
mentårio preparado pelos te610gos de Crac6via56 e publicou ele
mesmo vårios textos nos quais buscava mostrar o sentido perso-
nalista do ensinamento do Papa Paulo VI.57
Por outro lado näo devemos esquecer que a razäo por sua
natureza é receptiva. Quando se nega para ela a possibilidade de
"ler" a verdade inscrita na dimensäo mais profunda (autentica-
mente humana) do corpo, a razäo facilmente preenche esse va-
Zio axi016gico cedendo åquilo que se lhe impöe pela forga do seu
existir, ou seja, ås tendéncias naturais. Assim muitas vezes nos
encontramos diante de uma verdadeira e pr6pria heterogénese
58 Essa observagäo é ulteriormente desenvolvida por Andrzej Szotek, MIC, Natur — Ver-
nunft — Freiheit. Philosophische Analyse der Konzeption von schöpferischer Vernunft
in der zeitgenössischen Moraltheologie, Peter Lang Verlag, Frankfurt am Main, 1992.
59 .
dos fins. Ou seja, a tentativa de conferir ao homem o direito de
decidir pelo sentido do pr6prio corpo (contra o biologismo do
primeiro tipo), submete-o aos impulsos imediatos do corpo, näo
verdadeiramente assumidos e elaborados pela razäo. Parece-me
que esse dado de fato constitua uma das razöes do assim chama-
do pansexualismo que facilmente podemos constatar na nossa
cultura hodierna. Aponta-se — especialmente na publicidade —
sobre sexualidade näo elaborada no modo autenticamente hu-
mano, apresentada e vivida como um puro estimulo.
O problema, que se pöe neste ponto, refere-se å natureza
da razäo e ao mesmo tempo a natureza e a vocagäo do homem
como tal. O dominou a cultura moder-
conceito que largamente
na, é o conceito que Max Horkheimer tinha chamado "razäo ins-
trumental". É uma razäo que se faz eficazmente usar os meios,
• 60 •
objeto de uso e do prazer? A resposta negativa que damos espon-
taneamente e essa questäo deveria, contudo, nos induzir a recon-
siderar a concepgäo da razäo instrumental. Ao menos como hipb-
tese podemos partir de uma diferente visäo da razäo, ou seja, de
uma visäo na qual — para permanecer na nossa temåtica a razäo
näo se limita a registrar as tendéncias naturais inscritas no corpo,
mas é capaz de descobrir o seu significado mais profundo e pro-
priamente humano.
• 61 •
CAPfTULO II
• 63 •
säo pessoas, e por outro lado pessoas como Deus e os anjos säo
seres puramente espirituais — e no seu corpo existe uma certa
relagäo, relaqäo também, como veremos muito intima, mas
-
64 •
outra intuigäo. Quando alguém toca uma parte do meu corpo, pos-
so dizer: 'tTocaste a minha mäo", mas igualmente posso também
constatar: "Tocaste-me" ou perguntar: "Quem me tocou?". Este
testemunho da nossa linguagem comum mostra que quem toca
o meu corpo näo entra somente em contato com uma "res exten-
sat', mas, näo entra em contato com uma res, alguma coisa, mas
65 •
revista.61 0 animal, porém, näo tem consciéncia do seu corpo no
sentido de poder tomar as diståncias em relagäo a ele, experimen-
ta o seu corpo interiormente como experimentamos n6s, mas näo
é capaz de dizer: "Este é o meu corpo". Nesse sentido podemos
fazer a distingäo entre um ser carnal e um ser encarnado. Somen-
te os homens näo seres encarnados, porque somente o homem é
consciente do seu corpo como seu corpo.
• 66 •
comum, a distingäo entre organismo e ataüde. No ataüde pode-
mos encontrar a Vida bi016gica, mas aquilo que falta é a verda-
deira e pr6pria Vida pessoal. Naturalmente, nos encontramos
naquela fronteira e ås vezes näo é fåcil dizer quando uma ge-
nuina Vida pessoal chega ao fim. Näo queremos e näo devemos
entrar aqui nessa diffcil discussäo; entretanto, em linha de prin-
cipio a distingäo nos parece Clara. Podemos dizer que o organis-
mo viveu como corpo, quando alguém o vive a partir de dentro
como o seu corpo. Por isso, a explicagäo da experiéncia do corpo
deve partir da descriGäo fenomenolågica, porque somente ela
nos då acesso ao modo no qual a pessoa vive a sua relacäo com a
sua corporeidade. Nesse sentido podemos dizer que o corpo tem
a sua natureza (a sua interioridade) näo somente biolågica, mas
também ont016gica — existe a estrutura ont016gica da pessoa da
qual faz parte também o corpo. Em outras palavras, o corpo pos-
sui a sua subjetividade näo somente bi016gica (as propriedades
e as leis indagadas pelas ciéncias empiricas), mas também a sua
subjetividade metaffsica, da qual se ocupa a filosofia. Existe, na
verdade, a estrutura objetiva da subjetividade humana, que pode
ser explorada com o método fenomenolögico seja no seu "esse"
que no seu "fieri". A anålise da segunda narrativa sobre a criagäo
do homem nos mostrarå como essa estrutura se constitui ao dis-
tinguir o homem de todas as outras coisas criadas. Em todos os
sentidos nesse momento podemos afirmar com Wojtyla:
A pertenga do corpo å pessoa humana é tüo estritamen-
te necessåria que ele entra na definigäo do homem, se näo
outro indiretamente como naquela assazfrequente 'ihomo
est animate rationale": no conceito animal estå compreen-
dido o corpo e a corporeidade.62
• 67 •
As primeiras intuigöes, que buscamos indicar, estäo con-
• 68 •
funcional (como acontece na maioria dos livros dedicados a
esse argumento), mas demonstrando dele o profundo valor on-
t016gico e moral. Todos nös compreendemos facilmente qual
estado de animo humano exprime o sorriso, uma caricia ou um
beijo. Compreendemos essa linguagem, mesmo se nos encon-
• 69 •
Tornam-se aquele na sua masculinidade e feminilidade,
descobrindo o significado esponsal do corpo e referindo-o
reciprocamente a si mesmos de modo irreversivel: da di-
• 70 •
sublinhando a imanéncia da pessoa no seu corpo. Vale a pena,
porém, dizer ainda ao menos algumas palavras sobre outra mo-
dalidade da nossa relagäo ao corpo, expressa na frase "Eu pos-
suo omeu corpo". É verdade que quando o meu corpo estå mal,
näo sofre somente o meu corpo, mas sofro eu. Mas é igualmente
verdade que possa me distanciar no meu érgäo que sofre, posso
por assim dizer - retirar dele a minha subjetividade. Assim, por
exemplo, a amputagäo de uma parte doente do corpo näo dimi-
nui a minha subjetividade ont016gica e a minha dignidade pes-
soal. As vezes, vivo alguns estimulos que provém do meu corpo
como contrårios aos meus fins pessoais. Nem sempre aquilo de
que "me vem å vontade" é aquilo que eu verdadeiramente quero;
como recordamos, Säo Paulo distinguia entre os desejos da car-
ne que näo estäo de acordo com aqueles do espfrito.66 Creio que
na base dessa distingäo paulina esteja exatamente a experiéncia
da relagäo ao corpo de que falamos (mesmo se, por outro lado,
• 71 •
aprofundado a relagäo do homem nos confrontos do seu corpo.
Os primeiros te610gos cristäos elaboraram a teoria da pessoa
para explicar o dado revelado. Segundo essa teoria o ser pessoa
consiste em possuir a pr6pria natureza, de modo que a natureza
divina é possufda pelas trés Pessoas Divinas e Cristo, sendo uma
Pessoa Divina, assumiu e possuiu conjuntamente duas nature-
zas: Divina ehumana. Aquilo que a teologia elaborou, partindo,
por assim dizer, do alto (isto é, a partir do dado revelado), a filo-
sofia e, especialmente a fenomenologia, pode adquiri-lo no que
se refere å compreensäo do homem - partindo de "baixo" (isto é,
a partir da experiéncia imediata; aquilo que de resto confirma,
a seu modo, a afirmagäo do Livro do Génesis sobre o homem
criado a imagem e semelhanga de Deus). É exatamente aquilo
que Karol Wojtyla prop6s no seu livro Pessoa e ato, que näo por
acaso comega com o capitulo dedicado å experiéncia. Wojtyla
demonstra que o homem é pessoa, mas ao
mesmo tempo como o
homem vive a si mesmo como pessoa. Com ele a fenomenologia
nos conduz ao limiar da ontologia e vice-versa: a ontologia ad-
quire a dimensäo fenomen016gica, experimental. Isso é demons-
trado bem em nosso caso, isto é, a anålise da relacäo do homem
com o seu corpo. Enquanto a definigäo ont016gica da pessoa
que propomos diz: "O ser pessoa consiste em possuir a pr6pria
natureza",67 nas anålises de Wojtyla essa definiqäo encontra
a sua expressäo e confirmagäo experimental nos conceitos de
autopossessäo e autodeterminagäo (o lugar dela na experiéncia
vivida serå analisado mais adiante). Exatamente possuindo a si
mesmo, exercitando o seu dominio sobre a natureza, aquilo que
é expresso na frase "Eu possuo o meu corpo" o homem vive e
realiza o seu ser pessoa.
67 Cf. R. Spaemann, Personen. Versuche über den Unterschied ztvischen "etwas und
jemand", Klett-Cotta, Stutgarten, 1996 (it. Persone. Sulla differenza tra "qualcosa" e
"qualcuno", Laterza, 2007).
• 72 •
No nosso contexto é importante, porém, considerar a dis-
gingäo dos dois pontos: fenomen016gico e ontolögico. O equivoco
da filosofia moderna — de John Locke a Derek Parfit - consiste
• 73 •
o processo do progressivo esgotamento das forgas vitais e uma
vez que o seu existir sobre a terra se identifica com a Vida do cor-
• 74 •
necessidades que säo enraizadas na estrutura do seu corpo, mas
no seu caso essas necessidades se tornam desejos. O homem de-
seja satisfazer o seus instintos (e é melhor que esses sejam sa-
tisfeitos), mas nem todos os modos em que eles podem ser satis-
feitos parecem dignos de ser continuados. Existem modalidades
de satisfagäo dos instintos que poderemos, justamente, chamar
näo humanos (mesmo se os atos correspondentes säo realiza-
• 75 •
Concluindo as nossas anålises desenvolvidas até aqui: o
estatuto fenomenolågico do corpo nos foi revelado como aquele
do Sinal e expressäo do eu humano; por outro lado, ao contrå-
rio, vimos que o seu estatuto metaffsico, åquele que pertence
å dimensäo do ser, consiste naquilo que para a pessoa humana
significa existir, ou seja, viver no corpo. Agora queremos entäo
acrescentar a dimensäo te016gica que é de resto sugerida pela
pr6pria metafisica.
• 76 •
Nessa perspectiva também o corpo, na sua configuragäo
masculina e feminina, adquire a dimensäo do dom (a partir do
momento em que a pessoa näo o cria, mas o descobre como jå
69 Tbidem, 345.
• 77 •
sacramental da existéncia cristä, Joseph Ratzinger fala dos sa-
cramentos originårios (Ursakramente) ou "sacramentos da cria-
• 78 •
afirmaqäo da g16ria de Deus mundo visivel näo pode prescindir
da afirmagäo do homem na sua corporeidade.
Concluindo essa parte das nossas anålises, podemos dizer
que nelas o corpo apareceu como um dåplice sinal: o Sinal da pes-
soa e ao mesmo tempo o Sinal visfvel da invisivel glåria de Deus.
• 79 •
CAPfTULO Ill
A SOLIDÄO ORIGINAL:
GENESE DA PESSOA
• 81-.
prescindir da questäo metaffsica, da pergunta radical sobre o
ser. Na sua teologia do corpo, Säo Joäo Paulo II responde a essa
questäo partindo "do princfpio", que na sua reflexäo possui seja
o sentido te016gico que aquele filos6fico. Buscaremos aprofun-
då-los no primeiro ponto deste capftulo.
1. O SIGNIFICADO DO prurqcimo
No seu diålogo com os fariseus, Cristo, por duas vezes
se refere ao princfpio. pergunta deles, se fosse lfcito para o
homem repudiar a pröpria mulher, Cristo responde que no prin-
cfpio o Criador os criou macho e fémea - indicando com isso a
• 82 •
Qual é, entäo, o significado do principio ao qual se re-
fere Jesus? Na teologia do corpo "o princfpio" assume seja o
que aquele filos6fico. Naturalmente aqui
significado te016gico
nos interessamos mais no sentido filos6fico do principio, mas
vale a pena dizer algumas palavras também a prop6sito do seu
significado te016gico. Na perspectiva te016gica a referéncia ao
principio reenvia aos primeiros capitulos do Livro do Génesis,
os quais falam da criagäo do mundo. Voltar ao principio signi-
fica entäo, partir, na nossa visäo do homem, do ato criativo de
Deus e da situagäo de inocéncia que precede o pecado origi-
• 83 •
positivo, entäo podemos dizer que do ponto de vista filos6fico
estamos na pesquisa do principio do direito - mesmo aquele
que faz referéncia ao matrimönio e a familia.
84 •
sentido, constitufa um elemento essencial de toda auténtica fi-
73 Podemos ver que a fllosofia é aqui o exato oposto da ideologia que parte exatamente
de uma série de opiniöes que näo estå disposta a colocar em discussäo. No contexto
da ideologia marxista, na qual Wojtyla desenvolvia a sua filosofia do homem, a énfase
colocada sobre a experiéncia tinha adquirido um significado especial.
• 85 •
Na filosofia, "principio" significa näo somente um retorno
is fontes, ao infcio, mas também a busca daquilo que é essencial,
que além daquilo que se apresenta imediatamente, significa
vai
buscar a esséncia mais profunda do ser - no nosso caso do ser
humano, significa buscar a sua arché. Na fenomenologia o postu-
lado de ir ao essencial encontrou a sua expressäo na assim cha-
mada "variagäo eidética", na qual o fi16sofo busca identificar os
elementos de um determinado sen sem os quais ele deixaria de
ser si mesmo. Nesse sentido podemos dizer que, na sua teologia
do corpo Säo Joäo Paulo II com a ajuda da filosofia do homem
desenvolvida jå antes — procura identificar estes elementos es-
séncias do ser humano e ao mesmo tempo aquilo que é um
outro passo - de lhe dar a interpretagäo que vai além da des-
crigäo fenomen016gica, ou seja, propöe uma forma daquilo que
chamamos de t'fenomenologia". No caso da teologia do corpo, a
transfenomenologia transcende a descrigäo inicial para a inter-
pretagäo seja metafisica seja teolögica dos dados que o fi16sofo
encontrou na experiénCia.
86 •
ca6tica é transformada em um cosmos. Hierarquicamente, porém,
esse Deus é inferior ås ideias, elas näo säo feitas por ele, assim
como a matéria näo é o fruto da sua intervengäo criativa. Em
Aristoteles encontramos uma concepgäo muito elevada do Ab-
soluto, que ultimamente é identificado com o Pensamento que
pensa a si mesmo (noesis noeseos), dado que na visäo aristotélica
• 87 •
porque Ele é amor (IJo 4,8). Para dizer a verdade, näo en-
contramos essa palavra amor (Deus é amor) na narrativa
da criaqäo; todavia essa narrativa repete muitas vezes:
'Deus viu o que tinhafeito, e eis que era uma coisa muito
88 •
Consequentemente, se poderia afirmar que todo homem pode
descobrir uma doagäo no simples fato do seu existir. Cada um foi
doado a si mesmo e, nesse sentido, também confiado a si mes-
mo. Descobrindo a sua existéncia como dom do Primeiro Doa-
dor, o homem vé que para responder adequadamente ao Doador
deve ter cuidado desse bem que é ele mesmo, que - também na
sua estrutura öntica é aquela de autopossessäo näo pertence
somente a si mesmo.75 Nesse ponto parece muito apropriada a
observagäo de Robert Spaemann, segundo o qual "ética e metaff-
Sica säo constitufdas uno actu". Spaemann, na verdade, sustenta
que ver um ser como alguma coisa que näo faz somente parte do
meu ambiente, mas existe em
mesmo (Selbstsein), comporta
si
junto uma tese metaffsica (as coisas do mundo näo säo a minha
constituigäo, mas existem independe de mim e possuem a sua
estrutura pr6pria que eu näo crio, mas descubro), é uma tese
ética (vejo o modo no qual devo comportar-me para respeitar a
89 •
e do homem, permanece sempre vålida e pode encontrar respos-
ta somente na reflexäo metaffsica. Na teologia do corpo, Säo Joäo
Paulo II indica a metafisica do ato de existéncia — "actus essendi,
. 90 •
enquanto todo o mundo lhe é dado para que possa "subjugar e
encher" (cf. Gn 1,28). Vém aqui na mente as frases com as quais
Karol Wojtyla comega o livro Amor e responsabilidade:
. 91 •
"de modo puramente subjetivo". No ponto seguinte veremos,
ao invés, como na situagäo da solidäo original a consciéncia e a
. 92 .
podemos dizer que o retorno ao principio significa também a
tentativa de identificar a natureza das coisas e do homem como
medida daquilo que é justo e injusto, lfcito e ilfcito em relagäo
a ele. Neste ponto é interessante observar que também um fi-
79 Cf. J. Habermas, It futuro della natura urnana. I rischi della genetica liberale,
Einaudi, Torino, 2002; veja-se também S. Kampowski, Una libertå pitt grande: la
biotechnologia, l'amore e il destino umano. Un dialogo con Hans Jonas e Jürgen
llabermas, Cantagalli, Sena. 2010.
. 93
nas categorias objetivas, na segunda se torna objeto da experi-
éncia do primeiro homem e da primeira mulher. Seguindo com
o Papa a narragäo bli)lica, na segunda narrativa nos tornamos
quase testemunhas oculares da génese da subjetividade. A se-
gunda narrativa serå o objeto da nossa reflexäo nos parågrafos
seguintes, nesse momento queremos ver mais de perto a carga
metaffsica da primeira narrativa.
. 94 .
A reducäo cosm016gica do homem pode assumir duas for-
mas: cientifica ou filos6fica.As duas tém a sua justificagäo. Comojå
vimos, a ciéncia diz muito sobre o devir do homem do ponto de vista
material; devemos admitir que as modernas ciéncias bi016gicas po-
dem explicar o homem, mas ao mesmo tempo näo podem esquecer
que no homem existe sempre alguma coisa que näo pode ser reduzi-
da ao seu substrato material e nesse sentido permanece irredufreu/
. 95 .
personalista, estå, porém, convicto de que a alma intelectual
vem ao homem do exterior e a natureza da razäo é justamente
divina que näo c6smica. Escreve Arist6teles:
Näo resta nada mais que assumir que a razäo (a alma in-
• 96 •
Resumindo dizemos que na reflexäo sobre o principio des-
cobrimos a arché do mundo e do homem. Essa arché, essa verda-
de originåria, näo serå nunca cancelada do coragäo do homem e,
näo obstante o pecado original estarå presente também na sua
hist6ria. Aproximando-se do fim da sua peregrinacäo terrena no
Tritico romano Joäo Paulo II escreveu:
'tNäo ébom que o homem esteja s6. Vou fazer-lhe uma auxiliar
85 Säo Joäo Paulo II, Tritico Romano. Meditacöes, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 23.
. 97 •
A sua solidäo adquire aqui o sentido positivo: denota a sua inco-
mensurabilidade, incomunicabilidade, diversidade. O homem näo
se pode identificar com os outros seres do mundo, porque o seu
modo de existir é diferente. É diferente, porque somente ele no
mundo possui a estrutura antica de um sujeito, e essa sua estrutura
objetiva comega a experimentå-la como a sua subjetividade. Assim
86 Ibidem, 46. O texto em polonés ao invés da palavra "entidade" usa o termo "istota"
que significa "esséncia". Parece que tal traduqäo seria mais consona com o contexto.
87 Vem aqui em mente as palau•as de Säo Tomås: "Illud autem quod primo intellectus
concipit quasi notissimum, et in quo omnes conceptiones resolvit, est ens", Questio-
nes disputatae de veritate, I, 1, c.
• 98 •
dizer — sobre o plano fenomen016gico "nasce" aquela subjetivi-
dade que sobre o plano ont016gico estå presente desde o infcio.
"A subjetividade do homem se forma através da autocons-
. 99 .
a) Consciéncia e autoconsciéncia
• 100 •
corpo que foi considerado como elemento do mundo material.
101 •
descreve a reviravolta cartesiana no modo de entender a natureza
da consciéncia:
Analisando o espago entre os dois espelhos que estäo um
defrente para o outro, [Descartes] näo se concentra sobre
aquilo que constitui a causa eficiente e o inicial objetivo
dos reflexos, mas sobre os pröprios reflexos e sobre o pro-
cesso de se refletin9t
e metafisicos.
91 Ibidem.
• 102 •
A concepgäo do conhecimento como sintese do objeto das
impressöes ultimamente levaram ao idealismo transcen-
dental. Defato, para Husserl a estrutura fundamental do
conhecimento é dada no esquema: imanente contido da
percepgäo — a sua tomada na intengäo (suposigäo) como
eventual objeto real transcendente em confronto da consci-
éncia em um sentido particular pela concepgäo de Husserl.
Consequentemente o conhecimento da realidade é somen-
te "o constituir-se" dos sentidos objetivos como correlatos
intencionais dos atos de "consciéncia pura". Tal concepgäo
exclui desde o inicio um auténtico, concreto contato do ho-
mem com o mundo circunstante - o exclui comofato ori-
• 103 •
resultados conduzisse a uma outra realistica versäo da filosofia
fenomen016gica. E pr6prio na anålise da esséncia e das func;öes
da consciéncia, Wojtyla se dissocia do mestre da fenomenologia.
Além do mais, o problema da consciéncia se revela como o ponto
chave näo somente para a questäo epistemolågica, mas para toda
a visäo da pessoa.
• 104 •
Krings, que descreve o ser pessoal como "transcendéncia refle-
xiva", enquanto o autor polonés Stanislaw Judycki, sugere que
uma definiqäo ainda melhor recitaria: o sujeito pessoal é uma
retrotranscendéncia.94 Como veremos, essas definigöes tornam
explfcitas aquilo que é presente na definigäo de Wojtyla, a par-
tir do momento em que também para ele o tratado essencial
da transcendéncia que constitui o ser pessoal é a sua reflexi-
94 Cf. H. Krings, Transzendentale Logik, Kösel Verlag, München, 1964, 46-76. O livro de
Krings é citado S. Judycki in mg
i inne osoby. Pröba z zakresu teologiifilozoficznej [Deus
e outras pessoas. Um ensaio de teologia filcxs6fica), Wdrod7R, Poznafi ,2010, cit., 87.
• 105 •
pessoa pode dizer que possui a pr6pria consciéncia, mas näo se
identifica completamente com ela).96
• 106 •
o homem näo poderia viver a si mesmo como sujeito, näo po-
deria se experimentar como pessoa. Um animal, que näo pos-
sui essa capacidade, é totalmente imerso no seu habitat natural,
näo é capaz de se distanciar nem da matéria nem dos conteü-
dos da sua consciéncia. Portanto, vive - como o define Helmuth
Plessner — na "posigäo céntrica". Para um animal tudo adquire
importåncia enquanto referido ås suas necessidades radicadas
nos seus instintos — ele é o centro do seu mundo. O homem, ao
invés sempre segundo Plessner - vive na sua t'posigäo ecéntri-
ca", porque é capaz de se relativizar, de näo ver tudo somente do
seu ponto de vista, mas de colocar a pergunta sobre a verdade
objetiva daquilo que o circunda. Wojtyla escreve:
107 •
autoconsciéncia tem o seu fundamento na subjetividade öntica,
na particular estrutura daquele ser em que é escrita a potenciali-
dade de autoconsciéncia. Essa ordem é estrutural e cron016gica e
também nesse caso o ser precede a consciéncia. Como justamente
observa Robert Spaemann, ninguém de n6s se lembra do momen-
to em que se tornou autoconsciente. Quando dizemos que nas-
cemos em um determinado dia, näo queremos dizer que nasceu
um sujeito de autoconsciéncia — nasceu uma crianga que depois
se tornaria autoconsciente. Por outro lado, porém, sem uma real
• 108 •
simesmo é acompanhado do horizonte do ser, o qualfaz
com que todo o processo cognoscitivo seja radicado na
realidade objetiva.100
102 Säo Joäo Paulo II, Discorso al mondo della cultura, Universitå Cattolica di Lublino,
9.06.1987.
109 •
Vejamos como na reflexäo do homem sobre o seu conhe-
cimento — recordamos: a pessoa é uma transcendéncia reflexiva
- constitui-se juntos o logos e o ethos da pessoa. A pessoa es-
pontaneamente comega a viver a si mesma como testemunha da
verdade, nessa experiéncia descobre a sua diversidade do mun-
do visfvel e ao mesmo tempo experimenta o dever de afirmar
a verdade que encontrou no ato cognoscitivo. Em Pessoa e ato
Wojtyla fala do "poder normativo da verdade", que estå na raiz
da experiéncia moral. Todo esse processo, em que se constituem
o logos e o ethos da pessoa, tem lugar na consciéncia, mas ao
mesmo tempo por sua natureza transcende a consciéncia, como
diz Wojtyla, no ato do conhecimento a pessoa experimenta a sua
transcendéncia na verdade. É esse o ponto que permite a Wo-
jtyla de escapar da "armadilha da reflexäo" (a expressäo é de W.
Chudy), isto é, ao fechamento da consciéncia em si mesma, täo
caracterfstico para a filosofia postcartesiana, ao se concentrar na
reflexäo "somente sobre a imagem refletida e sobre a ativida-
• 110 •
nem do conhecimento nem da consciéncia. É assim também na
situaqäo em que o sujeito se dirige verso si mesmo - temos entäo
a problemåtica do autoconhecimento. O autoconhecimento näo é
idéntico å autoconsciéncia, mesmo se a autoconsciéncia o acom-
panha e o interioriza. No entanto - como escreve Wojtyla - "näo se
pode, de fato, 'tornar consciente' do ato (nem de qualquer outra
coisa) por meio da consciéncia, mas somente intencionalmente,
portanto, através de um ato de autoconhecimento".103 0 conheci-
mento é um dinamismo que envolve toda a pessoa, os seus senti-
dos, as emogöes e a sua racionalidade. O sujeito de conhecimento
näo é, porém — podemos dizer como Säo Tomås — os sentidos ou
as emogöes e nem mesmo a consciéncia, mas a pessoa por meio
de suas capacidades. Em Wojtyla a consciéncia näo é intencional
e, portanto, näo pode ser sujeito do conhecimento. 0 seu papel é
muito importante, mas diferente.u
• 111 •
da sua fundamental estrutura 6ntica, corresponde åquilo
que nafilosofia tradicional era definido suppositum, entäo,
sem a consciéncia, o suppositum näo pode de algum modo
se constituir como "eu .
• 112 •
humana näo é uma consciéncia pura, desencarnada, mas é uma
consciéncia do sujeito encarnado que vive a sua corporeidade.
luz das consideragöes precedentes podemos dizer que a pes-
soa vive a sua corporeidade na consciéncia reflexiva, acompa-
nhante, é consciente da sua encarnagäo sem a necessidade de
uma explicita reflexägUNo texto javista, vemos como o homem
105 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit. 49.
• 113 •
da diferenga sexual) como tal näo é determinada sexualmente e
se torna masculino e feminino propriamente através da sua re-
106 Vale a pena notar a diferenga no uso do conceito de ato em Wojtyla e na filosofia aris-
totélica. Enquanto nessa ültima o ato significa realizagäo de qualquer pontecialidade
escrita em um ente, ern Wojtyla o ato se refere somente a tais realizaqöes, em que é
presente o momento da liberdade.
• 114 •
Trata-se entäo de revelar o sentido da experiéncia da
liberdade que o primeiro homem faz descobrindo a sua subje-
tividade pessoal no contato cognoscitivo com o mundo(Qimos
jå como na anålise de Säo Joäo Paulo II o conhecimento prece-
de a consciéncia; agora
também a liberdade. A liberdade se ativa sobre o fundamento
da consciéncia que é ordenada å verdade objetiva. Vale a pena
observar que uma ideia semelhante se encontra também em
Jacques Maritain na sua anålise do primeiro ato de liberda-
de. Segundo o pensador francés o primeiro ato de liberdade
é realizado, quando o homem transcende as suas inclinagöes
naturais (aquilo que lhe é simplesmente agradåvel ou ütil) e
escolhe o bem pelo bem, em razäo da sua intrfnseca preciosi-
dade (isto é, quando descobre e escolhe o bem que a tradigäo
chamou bonum
A liberdade se revela na experiéncia "posso, mas näo sou
forgado", na qual entra o momento da vontade: "eu quero". Ä ex-
107 fazer o bem pelo bem implica necessariamente que existe uma ordem ideal e
indeclinåvel dajusta consonåncia do nosso agir com a nossa esséncia, uma lei dos atos
humanos que transcende toda ordem factual", J. Maritain, La dialettica immanente
del primo atto di libertå, in id. Ragione e ragioni, Milano, 1982, 105.
• 115 •
fenömeno da autodeterminaqäo na qual a liberdade é essencial-
mente vivida.
116 •
O querer é tendéncia e como tal encerra em si uma cer-
• 117 •
Resumindo, no seu confronto cognoscitivo com o mundo
o homem se descobre livre — ele depende de si mesmo e näo
• 118 •
näo queremos nos vingar mais. O que aconteceu? A nossa reagäo
emocional e o nosso querer näo superaram a prova da verdade e,
portanto, näo podem constituir um fundamento da nossa aqäo.
O homem considera a sua aqäo verdadeira livre, quando näo é
vitima de uma falta e de um engano, mas quando pressupöe que
ela repousa sobre a verdade das coisas.
Wojtyla explica:
119 •
A esse ponto se poderia colocar uma objegäo: da nossa ex-
periéncia cotidiana, isto é, da experiéncia do homem hist6rico que
vive depois do pecado original, sabemos que nem sempre escolhe-
mos a verdade que conhecemos. Acontece, infelizmente muitas ve-
zes, que mesmo conhecendo a verdade sobre o bem a ignoramos
näo por erro, mas por fraqueza ou por maldade. Na linguagem reli-
giosa um ato que näo obedece å regra da dependéncia da verdade
sechama pecado, na linguagem da ética filos6fica falamos do ato
moralmente errado. Contudo — como observa Wojtyla - t'somente
a realidade da culpa, do pecado, do mal moral, revela plenamente
que na vontade humana estå inserida a referéncia å verdade e a in-
trinseca dependéncia dela"lll. Pedro indagado sobre o seu conheci-
mento de Jesus o nega por temor da sua Vida, porém, depois vé que
negando a verdade golpeou näo somente ela, mas aquilo que é mais
precioso nele mesmo, aquilo que constitui "o sacrårio da pessoaj', a
sua consciéncia moral É propriamente na consciéncia moralque o
ligame com a verdade se torna regra do agir da pessoa.
verdade, as nossas decisöes nem sempre seguem essa
regra. O ligame com a verdade — a possibilidade de conhecé-la e
120 •
mesmo na transcendéncia horizontal o homem espontaneamente
se identifica com a verdade. Portanto, a fidelidade a mim mesmo e
a fidelidade å verdade conhecida e afirmada näo podem ser separa-
das. E observe bem: se trata de cada verdade, também aquela que
å primeira vista pode parecer banal como o fato de conhecer um
certo homem. Cada verdade em uma determinada situagäo pode
revelar a sua forga normativa. Tadeusz Styczen fala da "armadilha
121 •
CAPfTULO IV
A UNIDADE ORIGINAL:
NATUREZA COMUNHONAL DA PESSOA
• 123 •
perguntar: qual é o "estado natural", isto é, qual a relacäo ori-
ginåria de uma pessoa å outra? Säo as perguntas que buscare-
mos confrontar nesse capitulo.
cado desse fato? Parece que deve ser entendido näo tanto do
sentido temporal - a situagäo proto-histårica precede de qual-
quer modo o tempo hist6rico — quanto naquele ontolågico, isto
113 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 49.
• 124 •
fio corpo da pessoa diante do corpo de uma outra pessoa" e esse
fato entra na sua autoconsciéncia e a modifica. A pessoa comega a
viver a sua constitutiva abertura em diregäo ao outro e aquilo em
certo sentido leva å redefinigäo da sua identidade.
125 •
forma de transcendéncia horizontal e vertical, depende do encon-
tro com o outro.) Robert Spaemann sustenta ainda que uma pes-
soa solitåria näo é possfvel e que podem existir somente pessoas,
recordando que o mesmo conceito de pessoa foi cunhado pelos
primeiros teölogos cristäos para explicar as relagöes entre as trés
pessoas divinas.t16 Como devemos compreender essa tese de Spa-
emann no contexto do nosso problema, isto é, da relagäo entre
a solidäo (entendida como subjetividade ontolågica) e a unida-
de (entendida como relacionalidade) do homem? Queria propor
a seguinte interpretagäo: cada homem é dotado daquilo que os
medievais chamam o appetitus e assim diversas coisas do mundo
lhe aparecem como bona appetibili. Por isto o homem pode tratar
cada coisa como objeto do seu desejo e pode buscar se apoderar
de qualquer coisa. Isso comega jå no seu conhecimento, no qual o
homem assimila o mundo na sua interioridade, dela faz "o seu mun-
do". Essa capacidade humana foi descrita bem por Jean-Paul Sartre.
116 Por esse motivo o titulo do seu livro sobre o conceito de pessoa recita Persone.
• 126 •
como um ser natural mais potente dos outros, porque
deria viver
dotado daquele sofisticado instrumento que é a razäo - mas nesse
caso a sua razäo seria reduzida å fungäo instrumental. Ele poderia
ver tudo somente como correlato ao seu apetite, que assim se tor-
naria o seu critério do bem e may
A situagäo muda, ao invés, radicalmente com a criagäo do
segundo homem. Agora o homem-macho encontra alguém que
lhe é semelhante, ohomem-mulher, de que se pode dizer "osso
dos meus ossos, carne da minha carne". Vemos
vez, como o corpo revela a pessoa: na dimensäo somåtica se ma-
nifesta a transcendéncia da pessoa em rela9äo a todo o resto do
mundo. Confrontado com o corpo da mulher, o homem-macho
deve reconhecerque agoraestådiantedealguém (e näo de qual-
quer coisarcomcy näo podeser reduzida
ao stat-usdeobjeto-porele„ porquetambémela é um sujeito.
117 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 57.
• 127 •
O encontro com com o outro "eu", enxerta
a outra pessoa,
uma nova_modalidade-de-relagäo com (j-mttndo. O outro, tam-
bém na sua ser visto somente do
ponto de vista do apetite, näo pode ser tratado somente como
um bonuma etibile. A outra pessoa aparece no mundo como
um bem que é antes de tudo um bonum_uffirmabile. O '"tu"
118 Vale a pena recordar aqui a distinqäo entre dois movimentos da vontade que faz Duns
Scotus: affectio iustitiae e affectio commodi. Segundo ele ambos fazem parte da natu-
reza da vontade.
119 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö, cit., 58,
• 128 •
Na anålise de Säo Joäo Paulo II as palavras "osso dos meus
ossos, carne da minha carne" exprimem também a alegria do pri-
• 129 •
Existem situagöes, em que pessoas se comunicam entre
mas o objeto da comunicagäo näo é nenhuma coisa do
elas,
123 Cf. Wojtyla, Persona e atto, in Metafisica della persona, cite, 1208-1209.
• 130 •
Nesse contexto queria chamar a atenqäo para um fato
que me parece fundamental. Segundo meu parecer o cristia-
124 Säo Joäo Paulo II, Ihomo e donna 10 creö, cit., 35.
131 •
criardo mesmo modo). Nesse sentido a diferenga ontolögica é
essencial å mensagem cristä e cada tentativa da sua neutraliza-
• 132 •
dividido como é de um em dois" (191d). Enquanto no discurso
de Platäo a diferenga é derivada por uma unidade originåria, no
discurso biblico o homem é um ser dual desde o inicio ("macho
e fémea os criou"), a diferenga é originåria e é a partir dela que
se chega å unidade.125 No contexto cristäo esse dado se explica
ulteriormente enquanto o homem é pensado como imagem de
Deus, que em si näo é um Deus solitårio, mas Deus-comunidade
(de resto vale a pena observar que filosoficamente Deus pode
ser entendidocomo amor somente se é entendido como pessoa
e se permanece em relacäo com as outras pessoas divinas, como
se vé, por exemplo, em Aristöteles, Deus solitårio näo é amor). É
interessante aquilo que no comentårio å hist6ria da criagäo do
homem escreve Säo Joäo Paulo II:
O homem se torna imagem de Deus näo tanto no momento
da solidäo quanto no momento da comunhäo. Ele, defato, é
desde "o principio" näo somente imagem em que se reflete
a solidäo de uma Pessoa que rege o mundo, mas também,
e essencialmente, imagem de uma imperscrutåvel divina
comunhäo de Pessoas.126
125 Para ulterior desenvolvimento dessas intuiGöes cf. Emilio Baccarini, La persona e
i suoi volti. Etica ed antropologia, Anicia, 2003, 2A. ediqäo, 227-231.
126 Säo Joäo Paulo II, L'uomo e donna 10 creö, cit., 59.
• 133 •
definitiva. Também o amor_parßicipa å contingéncia do ser huma-
no e, portanto, deseja ser "ancorado" no Absoluto da existéncia
Esses säo naturalmente somente alguns acenos que näo podem
ser desenvolvidos nesse lugar, mas indicam de novo o ligame que
existe entre a diferenga sexual e a diferenga ont016gica.
127 K. Wojtyla, Frateilo del nostro Dio e Raggi di Paternitå, Libreria Editrice Vaticana,
1982, 138-139.
• 134 •
impulso sexual, escrito na estrutura do corpo e compartilhado
com os animais mais desenvolvidos, enderega o homem em di-
regäo å pessoa do outro sexo e possui, portanto, o sentido näo
somente natural, mas personalistico.128 0 homem e a mulher vi-
vem esse impulso na totalidade do seu ser pessoal: sobre o nfvel
somåtico, emotivo e espiritual. Assim a mesma tendéncia sexual
faz presente homem as palavras de Deus do
na experiéncia do
Livro do Génesis: "Näo é bom que o homem esteja sozinho".
128 Ern Persona e atto Wojtyla faz a pergunta: "O significado dos impulsos na pessoa é
dado sobretudo pela forga subjetiva das reagöes somåticas que se liberam gragas a
eles, ou ao contrårio do valor objetivo dos fins com que o homem é por eles enderega-
dos? [...l Dado o caråter racional da pessoa humana ocorre propender, ao contrårio,
• 135 •
anålise de Säo Joäo Paulo II. O estado natural hobbesiano é carac-
terizado pelo inerente conflito que deriva da ilimitada liberdade
de cada homem. A liberdade sem limites contém em si também o
potencial de agressäo, também a possibilidade de matar o outro,
se ele de qualquer modo obstaculiza a minha liberdade de fazer
tudo o que quero. Assim a Vida do homem no estado natural é -
como a descreve Hobbes — "solitary, nasty, brutish and shore' 129
em diregäo a esse fun requer e justifica muitissimos sacrificios de vidas humanas que
de qualquer modo obstaculizam a realizaqäo dessa nobre meta.
136 •
como ameaga å pr6pria liberdade. Encontrando o outro, o su-
jeito se encontra (e se confronta) com uma outra subjetividade,
que olhando o mundo o objetiva no seu mundo; essa objetivagäo
incluitambém o proprio sujeito que assim se torna o objeto no
mundo do outro. Para Sartre tal situagäo é carregada de conflito
- o mesmo encontro com o olhar de uma outra pessoa constitui
o princfpio do conflito original. Nesse conflito se pode buscar
suprimir o olhar do outro, matando-o, mas também se pode ten-
tar mudar o sentido do seu olhar, forgando-o a aceitar a posigäo
do objeto no meu mundo, O clåssico exemplo de tal submissäo a
encontramos na famosa dialética escravo-paträo de Hegel. Näo é
diffcil encontrar essa visäo também naquela filosofia que teoriza
o fundamental conflito entre os sexos (ou mesmo a sua guerra).
naturalmente Säo Joäo Paulo II näo nega que no homem
exista a carga de agressäo, que pode levar ao conflito. No nosso
mundo o experimentamos muitas vezes. Para ele, porém, essa
carga näo é original, näo exprime a verdade original do homem;
o potencial agressivo é consequéncia do pecado, com que no co-
ragäo do homem entrou a concupiscéncia. Teremos ocasiäo de
ver como o pecado original constitui um tipo de choque antro-
p016gico, porque a concupiscéncia introduz um equilfbrio nas
forgas internas do homem e com aquilo também nas relagöes in-
terpessoais.Na situaqäo original, ao invés, o homem encontra a
afirmagäo da pr6pria humanidade näo na submissäo do outro å
pr6pria vontade, mas no dom de si ao outro que conduz å "com-
munio personarum". Na comunhäo a pessoa, cuja estrutura fun-
damental é aquela de autopossessäo, pertence å outra pessoa
sem, contudo, experimentar tal pertenga como limite imposto å
pr6pria liberdade, mas muito mais como a sua potencialidade.
Assim na "communio personarum" a liberdade encontra o seu
cumprimento no dom de si que profundamente muda a mes-
ma identidade da pessoa. O homem, que jå na solidäo original
estava em busca da pr6pria identidade, encontra-a plenamente
• 137 •
na comunhäo - a partir desse momento a sua identidade se tor-
131 Säo Joäo Paulo II, Como e donna 10 creö, cit., 62.
132 Ibidem, 77,
• 138 •
possibilidade é real e dele faz fé o fenömeno do pudor sexual,
que analisaremos no capftulo seguinte. Mas - como ainda vere-
mos - o mesmo pudor reenvia åquele sentido originårio da dife-
renca sexual, pelo qual no corpo estå inscrito a necessidade da
comunhäo. "Näo é bom que o homem esteja s6".
de, que näo depende de n6s, faz de tal modo que essa exigéncia
• 139 •
nfvel é<indicado" pela tendéncia
natural inscrita no corpo), mas-aonfvel da pessoa.Retomando a
distingäo de Wojtyla introduzida em Pessoa e ato podemos dizer
que, visto nessa 6tica, o amor näo é somente "alguma coisa que
advém no homem", mas sobretudo é um verdadeiro e pråprio
ato da pessoa, em que é envolvida pela sua operatividade. Isso
é possivel porque a pessoa é caracterizada pela transcendéncia
vertical, isto é, possui a si mesma e pode decidir por si mesma.
Säo Joäo Paulo II escreve:
A escolha é possivel
e autodeterminagäo. Quem näo possui a si mesmo, näo pode
decidir de se doaraooutro. Assim na unidade original, as estru-
turas-deautopossessäme autodeterminagäo, que foram consti-
tufdas na solidäooriginalxevelarmosewsenso mais profundo.
Eles tornam possfvel a superagäo da solidäo, que acontece na
"comunhäo de pessoas". Para citar ainda uma vez a poesia de
Wojtyla: "Estou convencido de näo ser 'isolado'. Sou muito mais
do ' '1134
• 140 •
Existe, contudo, ainda a terceira forma de transcendéncia
que pertence å esséncia da uniäo entre homem e mulher e å nature-
za do ato sexual. Trata-se da transsendénciaem diregäoaoterceiro.
• 141 •
de fechamento, ela reafirma essa verdade original pela qual o
homem é capaz de levar em si o outro homem.
A transcendéncia em direcäo ao terceiro possui duas di-
mensöes. De uma parte é uma transcendéncia em diregäo ao
terceiro escrito com a minüscula, em diregäo ao filho, mas de
outra parte é também transcendéncia em direqäo ao Terceiro, o
Criador, que no ato conjugal se faz presente propriamente como
Criador. Escreve Säo Joäo Paulo II:
135 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna 10 creö, cit., 63.
• 142 •
intencionalmente excluida. Somente assim o ato sexual exprime
verdadeiramente o sentido original do eros, que jå Platäo via ao
sair do pr6prio restrito "eu" e ao abrir-se — podemos acrescentar
— åquela novidade mais radical, que é uma nova Vida humana.
• 143 •
ato erötico? Segundo Bataille ele é vivido como uma forma do egois-
mo de duas pessoas, que näo conseguem superar a sua solidäo e säo
condenadas a permanecer fechadas em seu egoismo.
137 Na traduqäo italiana do livro de Bataille essa frase foi inexplicavelmente omitida.
• 144 •
Quantos homens se convenceräo de que nenhum de nös é
uma totalidadefechada e definitiva? Levamos somente em
nös mesmos o significado que na sua forma absoluta nos
transcende, e a ele somos ligados, dele dependemos.f38
• 145 •
egofstica. A presenga do terceiro desperta o sentimento de res-
ponsabilidade para o alto, que de per si consiste no transcender
os confins do pr6prio restrito eu (como de outra parte o faz cada
verdadeiro amor). Vale a pena recordar um fragmento do Triptico
romano, que Säo Joäo Paulo II escreveu ao final de sua Vida, retor-
nando ali mais uma vez mesmo se com uma linguagem diferente
— å problemåtica da teologia do corpo.
139 Säo Joåo Paulo II, Trittico Romano. Meditazioni, Libreria Editrice Vaticana, Cittå del
Vaticano, 2003, 27.
140 Säo Joäo Paulo II, tJomo e donna 10 creö, cit., 63.
146 •
CAPfTULO V
A NUDEZ ORIGINAL:
A ÉTICA PERSONALfSTICA
• 147 •
cia entre a realidade e o pensamento reside no ser mesmo e con-
siste na sua näo-ocultagäo, no seu manifestar-se, abrir-se diante
do olhar. Em outras palavras: a verdade como manifestatio pre-
cede a verdade adequatio. Isso seria o sentido original da palavra
grega "a-létheia", em que o prefixo "a" teria o sentido privativo.
Originariamente a verdade — sempre segundo Heidegger — expri-
me, portanto, sinceridade, franqueza, abertura, o näo se esconder
das coisas. Näo é diffcil avistar aqui certa afinidade com a anåli-
se da nudez original desenvolvida por Säo Joäo Paulo II. Também
para ele a nudez exprime a plena verdade do homem e da mulher
e antes do peca o onginaTé1ä@tämbem percebida na sua plenitu-
de. Justamente por isso a nudez näo suscita nenhum sentimento
de pudor. Tudo muda depois do pecado original, quando a sexua-
Iidade comega a parar a atengäo somente sobre si mesma e assim,
ao invés, de revelar a verdade da pessoa, ao contrårio a escondQ%J
Nesse capftulo buscaremos aprofundar as implicagöes filos6ficas
• 148 •
vé o pudor como parte integrante da virtude da temperanga e o
define como "o temor das coisas indecentes, e, portanto, vitu-
peråveis" (ST I-II, q. 144, a. lc) ou "o medo de qualquer coisa de
indecente" (ST I-II, q. 144, a. 4c). O homem virtuoso diante das
coisas indecentes se sente inibido pelo sentimento da vergonha.
Envergonhar-se-ia de té-las cometido näo somente diante dos
outros, mas antes de tudo diante de si mesmo.
142 Vale a pena recordar que o pensamento de Scheler sobre o pudor foi analisado e
comparado com a abordagem de Santo Tomås de Aquino por Franciszek Sawicki
0877-1952), urn insigne teölogo e fi16sofo da histåria. Fm seu livro Fenomenologia
wstydliwogci (Fenomenologia do pudor), Wydawnictwro Mariackie, Krak6w 1949,
Sawicki se concentrou sobretudo sobre o pudor sexual. De aco S wic o
mem se envergonha da atividade sexual, porque essa lhe é cornurn com o mun o
animal e näg.gstå-dxetamenW_Jigada
GfaQ;nhCcido o pensamcnto de Scheler sobre o tema, através de Sawicki, mencionado
explicitamente no inicio do capitulo dedicado ao pudor em Amore e responsabilitå.
Cf. Wojtyla, Metafisica della persona, cit., 641.
• 149 •
deveria se envergonhar. Assim o pudor se revela como um senti-
mento que é caracteristico da pessoa humana.
143 V. Solovjov, II bene nella natura umana, Paravia, Torino, 1925, 15-16.
144 M. Scheler, Pudore e sentimento del pudore, Guida Editori, Napoli, 1979, 21 (itålico
no original).
• 150 •
Näo é diffcil avistar nesse texto de Scheler a distingäo entre
a imanéncia e a transcendéncia da pessoa nos confrontos do Seu
corpo, de que falamos em ocasiäo da nossa transfenomenologia do
corpo, mesmo que seja Solovjev que Scheler parecem mais proxi-
mos å visäo platonica da alma que habita no corpo. finforme seja,
Wojtyla compartilha a observagäo segundo a qual a pessoa pode se
envergonhar daquilo que somente acontece nela e que permanece
fora do seu controle. Isso pode se referir também ås reagöes sexuais
que näo estäo submetidas ao controle da sua vontade. Seria, porém,
errado pensar que o sentimento do pudor seja suscitado somente
por aquilo que um retém de qualquer modo "mal" ou ainda indigno
da pessoa. Em determinadas circunståncias se pode mesmo se en-
vergonhar daquilo que em si é bom. Como o serva Wojtyla, nesse
caso o pudor näo se refere a uma coisa ou a uma agäo boa, mas
muito mais o fato que "aquilo que deveria ficar no interior, por mo-
tivo da sua esséncia ou da sua finalidade, deixa a interioridade da
pessoa para se manifestar ao externo de um modo ou de outro".145 É
pro ri omem e a mulher
buscam esconder os 6rgäos sexuais certamente näo pela vergonha
de possuf-loYA fungao do pu or nesse caso pode ser compreen-
dida plenamente somente se ultrapassamos o nivel da descrigäo
fenomen016gica dos modos em que ele se manifesta e buscamos
com o
entendé-lo junto mesmo ser da pessoa, isto é, quando de-
senvolvemos uma metaffsica do pudor. Entäo podemos compre-
ender que o pudor sexual näo é somente uma questäo da cultura
(de que certamente dependem as suas vårias manifestagöes), mas
que é radicado no logos e ethos da pessoa humana. É propriamen-
te isso que nos propöe Wojtyla.
145 Wojtyla, Amore e responsabilitå, in id. Metgfisica delta persona, cit., 641.
• 151 •
caso queremos tratar o texto revelado muito mais como registro
da experiéncia humana, que em linha de principio pode ser com-
preendida por quem näo compartilha a fé religiosa no contexto
em que ele nasceu. De fato, trata-se da sua fundamental digni-
dade pessoal que estå å base de toda a experiéncia moral. Nesse
ponto da teologia do corpo de Säo Joäo Paulo II encontramos, em
certo sentido, uma sfntese de toda a ética personalistica desen-
147 Ibidern.
• 152 •
Como vimos antes, na visäo de Säo Joäo Paulo II o homem
experimenta o seu nascimento e moral jå antes do despertar da
vergonha, no momento mesmo em que entra em contato cognos-
citivo com o mundo. Na situagäo proto-hist6ricæaauséncia do pu-
148 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna to creö, cit., 70 (itålico em original).
• 153 •
---czz»-c-c,
• 154 •
O homem se esconde, porque näo quer ser visto nu. O cor-
po na sua configuragäo sexual comega a ser para ele muito mais
um "signum quod", que deve ser interpretado através da atitude
adequada ao seu estatuto ont016gico. Mas, isso exige jå um esfor-
go moral por parte do sujeito, näo lhe é dado com a mesma natu-
ralidade, com a qual percebia o corpo antes do pecado original.
Antropologicamente a mudanga no olhar que o homem dirige
em diregäo ao outro e sobre si mesmo tem a sua raiz 29_gyp-
tura da originåria unidade espiritual e somåtica do homem "149
Depois do pecado original säo constantemente ameagadas as
fundamentais estruturas do ser pessoal, de que falamos antes:
o autopossessäo e autodominio, isto é, aquelas estruturas que
constituem a mesma transcendéncia da pessoa. A partir desse
momento o autopossessäo e o autodomfnio requerem uma certa
medida fåtica por parte do homem que nem sempre consegue
desenvolver essa fungäo de modo adequado. Isso se manifesta
de vårios modos. As vezes, temos que Iidar com aquilo com que
em Pessoa e ato Wojtyla chama 'to emocional da consciéncia".
Acontece que as emogöes vividas pelo sujeito säo muito fortes,
• 155 •
Assim as emogöes experimentadas pelo sujeito — que per-
tencem åquilo que "acontece no homem" e em si mesmo näo säo
ainda o seu ato no sentido verdadeiro e proprio - envolvem a
vontade do sujeito e ultimamente condicionam o seu agir. Estamos
aqui diante de um paradoxo, que depois do pecado original na
Vida humana se verifica frequentemente. De modo incomparåvel
o expressou o poeta pagäo Ovfdio (confirmando a universalidade
dessa experiéncia): Video meliora provoque, deteriora sequor — Vejo
o melhor e o aprovo, mas Sigo o pior (Met. VII, 20-21). A nossa con-
digäo humana é caracterizada pela contingéncia moral. Näo basta
conhecer a verdade e o bem para fazer uma escolha justa. Além
do mais, nem sempre aquilo que fazemos é idéntico com aquilo
que queremos. Existe, de fato, a superficie do nosso eu, em que
ås vezes nos vem å vontade de fazer alguma coisa. Nem sempre,
porém, aquilo que temos vontade, coincide com aquilo que verda-
deiramente queremos. Existe também um eu profundo, em que es-
täo presentes os nossos verdadeiros desejos pessoais, aquilo que
verdadeiramente leva å nossa autorrealizaqäo. Cumprindo um ato
m_gralment--malosujeito introduz ao pr6prio eu algumacois-—qyg
apäo reforga a sua pessoa, mas ao contrårio o enfraquece, porque
r htai contra aquilo que a constitui na sua personalidade. A contin-
géncia moral o omem consiste no fato que o homem nem sem-
pre consegue agir seguindo aquilo que verdadeiramente quer, que
ås vezes cede åquilo que ele tem vontade. Além do mais, chegando
ås consequéncias extremas que, porém, säo possiveis, a pessoa é
capaz de considerar a mesmo como o centro do mundo e assim
si
• 156 •
A vontade de verdade que nos seduzirå ainda tem muitos
riscos, aquele celebre espfrito de verdade de que todos os
filåsofos, até hoje, falaram com devogäo.• essa vontade de
• 157 •
Quando o homem olha tudo aquilo que o circunda como objeto
para o seu crescimento, também a outra pessoa, e antes de tudo
o seu corpo, serå vista nessa 6tica de cumprimento egofstico. Na
sua famosa dialética servo-paträo, Hegel descreveu as relacöes
humanas em chave de luta moral dos seres autoconscientes, os
quais, para afirmar a pr6pria subjetividade, devem buscar escra-
vizar o outro, isto é, de reduzi-lo a objeto do proprio mundo.
152 Säo Joäo Paulo II, Uomo e donna to creö, cit., 143-144.
• 158 •
Nessa situagäo, em que o homem é tentado a se apropriar
do outro homem por meio da apropriagäo do seu corpo, o pudor
sexual tem a fungäo de defesa. O pudor defende o caråter subje-
tivo da pessoa, que näo quer ser reduzida ao estatuto do objeto
do prazer pelo outro homem e, portanto, esconde aqueles valo-
res que poderiam induzir o outro a tratå-la O pudor
desse modo.
possui, porém, näo somente o sentido negativo da defesa, mas
sobretudo o sentido positivo de revela -o. Como fenömeno ex-
• 159 •
Assim mais uma vez vemos que o sentido mais profundo
do pudor näo é negativo, mas positivo. O pudor existe em funcäo
" 153
do amor; como diz Wojtyla, "libera o caminho d
• 160 •
— seria justificado sacrificar os homens singulares, especial-
mente se de qualquer modo freiam a marcha. No campo teo-
rético o marxismo sustentava que a ética näo era outra que a
expressäo da autoconsciéncia de uma determinada classe so-
Cial e, portanto, näo existe na ética um saber universalmente
vålido para todos. Também a ética cristä era vista como a ex-
pressäo dos interesses de uma certa classe social, e o seu man-
damento de amor era considerado muito mais nocivo, porque
- se dizia ela amortecia as tensöes sociais, as quais viriam, ao
contrårio, extremadas para estimular desse modo o potencial
revolucionårio.
• 161 •
personalistææelaborar uma coerenteproposta de éticaque ao
mesmo tempo epistemologicamente autönoma e metodologi-
camente aberta å rela äo da filosofia e da teolo •a.
• 162 •
passagem - logicamente ilfcita - do ser ao dever ser. Na famosa
passagem do seu Human Nature (Ill, 1,1), D. Hume
Treatise on
observa que cada sistema ético, que vem deduzido do mais geral
sistema metaffsico, comete o erro 16gico, porque nas suas con-
clusöes se encontram termos de tipo normativo, que näo esta-
vam presentes nas premissas. Se, ao invés, a ética — como pro-
pöem Kotarbinski e Czezowski - parte da original experiéncia
moral, entäo jå no seu ponto de partida encontramos premissas
de tipo normativo.
156 Å anålise desse problema um penetrante estudo foi dedicado pelo discipulo de Wojtyla e seu
sucessor na cåtedra de ética na Universidade Cat61ica de Lublin, cf. Etyka niezaleina?
(A ética independente?), Lublin, 1980.
163 •
Se a fungäo da ética se exaure na reflexäo sobre o fato mo-
ral, que existe independentemente dela, exatamente falando, a
ética se reduziria å metaética ou etologia (no sentido do estudo
dos costumes humanos), isto é, ela näo poderia dizer nada so-
bre as questöes da justiga da conduta moral, mas se limitaria
somente å anålise daquilo que n6s pensamos e dizemos da mo-
ral. Assim, de fato, entendido a fungäo da ética muitos fi16sofos
da escola analftica, reduzindo-a å anålise da linguagem moral.
Näo é essa a posigäo de Wojtyla.
coisa a dizer sobre a nossa conduta moral, mas fazendo-o näo
é mais independente, porque faz referéncia a um
do homem, isto ét a antropologiadFagamos um exemplo. Na por-
ta do hospital dois amigos discutem se devem dizer ou näo a
• 164 •
Na hist6ria da reflexäo ética podemos distinguir duas funda-
157 K. Wojtyla, Lttomo nel campo della responsabilitå, in id. Metqfisica dena persona,
cit., 1269.
165 •
(portanto, a ética e teoria da felicidade säo duas teorias diver-
O motivo do seu agir näo consiste nem mesmo na ordem de
sas).
• 166 •
personalista: "A pessoa é um bem em relacäo ao qual somente o
amor constitui a atitude adequada e vålida".1S9 Essa experiéncia,
que estå na base de toda a moral, repete-se sempre de novo na
hist6ria humana, mesmo depois do pecado original.
167 •
instituto sexual, que dirige o macho em diregäo å fémea e a fémea
em diregäo ao macho, passa por meio da experiéncia emocional
do apaixonar-se, mas encontra o seu culmine no ato da pessoa,
na sua livre decisäo. Quando na experiéncia do apaixonar-se se
descobre a unicidade de uma pessoa nomundo das pessoas,
entäo o homem e a mulher se pöem uma pergunta: como afir-
mar essa como responder a esse unico valor que essa
verdade,
pessoa tem para mim? Para responder a esse finico valor de
modo adequado näo basta o amor entendido no sentido mais
geral, o amor que toca a cada pessoa humana näo é suficiente.
160 Säo Joäo Paulo IT, Como e donna 10 creö, cit., 77 (itålico em original).
168 •
O significado esponsal do corpo, vivido espontaneamente e
sem obståculos no estado da inocéncia original, quando "os dois
estavam nus, mas näo provaram vergonha", permanece presen-
te na experiéncia do homem mesmo depois do pecado original.
De fato, a lei do dom constitui uma das regras fundamentais das
relagöes entre as pessoas. Busquemos aprofundar o seu sentido.
3. A HERMENEUTICA DO D0M
Ä luz das consideragöes de Säo Joäo Paulo II na teologia
do corpo podemos dizer que a chave para compreender a
esséncia do dom ao nfvel da pessoa é constituida por duas pa-
lavras que aparecem na hist6ria da criagäo do homem: "s6" e
que o homem esteja s6" (Gn 2,18), afirma que por "sd" o
homem näo realiza totalmente essa esséncia. Realiza-a
somente existindo .com alguém" - e ainda mais profun-
damente e mais completamente: existindo "para alguém".
Essa norma do existir da pessoa é demonstrada no livro
do Génesis como caracteristica da criagäo, exatamente me-
diante o significado dessas duas palavras: "sö" e "ajuda".
169 •
Säo propriamente elas que indicam quäo fundamental e
constitutiva para o homem é a relagäo e a comunicagüo
das pessoas. Comunhüo das pessoas significa existirem re-
ciproco "para", em uma relagäo de reciproco dom. E essa
relagäo é realmente o cumprimento da solidäo original do
"homem v 161
.
• 170 •
pessoa, mas cada um também precisa tomar consciéncia desse
fato — e ser consciente de si mesmo näo é qualquer coisa de im-
portåncia secundåria para o ser humano. Contudo, justamente
esse processo de tomar consciéncia do seu ser pessoa acontece
em relagäo com outras pessoas. Ou seja, o homem se torna aquilo
que é por natureza somente nessa relagäo. Para ilustrar essa tese
171 •
essa fundamental verdade metafisica e te016gica: o ser é bom, faz
bem ser. Desde o inicio da sua Vida o homem precisa experimentar
a gratuidade, a qual é uma marca essencial do dom.
gratuitamente.
• 172 •
A lei do dom pertence ao nåcleo do ethos humano. Ela nos
defende diante da ameaga, sempre presente na hist6ria do ho-
mem, de ser reduzido ao estatuto das coisas — ou ao estatuto
dos bens que säo submetidas å lei do mercado. A consciéncia
moral defende o homem diante de tal perigo. E, como observa
Wojtyla em Amor e responsabilidade, trata-se näo somente de
näo abaixar os outros ao nivel das coisas, mas também de näo
aceitar de ser abaixado a tal nfvel.163 Isso porque deve ser respei-
em cada homem e isso significa que
tada a dignidade da pessoa
a devo respeitar também em mim, na pessoa que sou eu. Pelo
contrårio, em certo sentido a minha pessoa me foi confiada em
163 "Precisa que a pessoa näo aceite ser tratada como objeto de prazer egofstico, e que näo
se abaixe a uma outra pessoa a esse nfvel", Wojtyla, Amore e responsabilitå, cit., 650.
173 •
É Claro que se pode doar somente aquilo que possui. Ora, a pes-
soa é o ünico ser sobre a terra que permanece nos confrontos
da realizagäo de autopossessäo: existir como pessoa significa
• 174 .
O objeto do dom (de qualquer dom, a fortiori do dom de si)
é, portanto, também uma pessoa, porque somente a pessoa é
capaz de compreender o sentido do ato de doar e de responder
adequadamente ao dom. Assim o dom estabelece uma relagäo
interpessoal.; Quais säo os tragos dessa relagäo? Busquemos
identificar ao menos aqueles essenciais.165
165 Alguns (nem todos) traqos do dom, que indicamos a seguir, säo analisados por
Andrzej Szostek no artigo Czlowiek — darem [O homem como domJ, in id. Wokål
godno'ci, pratvdy i milo'ci [Sobre a dignidade, verdade e amorJ, RW
KUL, Lublin,
1995, 230-249.
• 175 •
Isso é especialmente evidente quando se fala do dom de si. Mes-
mo se o homem se cumpre no dom de si feito ao outro, ninguém
pode ser constrangido ou obrigado a fazer esse dom em rela-
gäo a uma determinada pessoa. Isso porque a pessoa possui a si
mesma, somente ela interessada pode decidir de se doar - näo
posso doar a outra pessoa, porque näo a posso possuir. O dom
permanece somente quando é respeitada a sua liberdade.
• 176 •
aceito na plena verdade do corpo, isto é, com o seu sentido uni-
näo separando aquilo que se quer aceitar do
tivo e procriativo,
outro daquilo que näo se quer acolher.
• 177 •
comunicagäo. A linguagem do dom de si exprime o amor e cria
a comunhäo (nesse sentido possui a pr6pria dimensäo simb61i-
ca). E como qualquer outra linguagem também a linguagem do
dom tem a sua estrutura objetiva que deve ser interiorizada por
quem quer falar bem essa lingua.Qjm determinado sujeito pode
ser pouco competente no uso da linguagem do dom, pode igno-
mas com isso näo muda a estrutura da lingua-
rar as suas regras,
gem (como acontece também com outras linguagens), fornece
somente a prova que - intencionalmente ou näo - näo o sabe (ou
näo o quer) falar bem. Por esse motivo, o fato que as regras da
linguagem do dom näo raramente säo ignoradas, näo constitui o
argumento contra a sua validade. Nesse contexto vale também a
pena sublinhar que o discurso sobre a linguagem do dom, antes
de pertencer å ética ou å teologia moral, pertence å antropologia
filos6fica. A linguagem do dom exprime aquilo que a pessoa é na
sua natureza: um ser que se reconhecendo como doado encon-
tra a sua realizagäo no dom de sit
Na comunhäo conjugal o dom de si possui, enfim, a dimen-
säo de transcendéncia: torna-se fecunda no nascimento do filho.
• 178 •
conhecer e ao mesmo tempo se descobre moralmente obrigada
a afirmagäo da verdade que veio a conhecer. É nessa experiéncia
que se manifesta a alteridade e a superioridade da pessoa em
confronto com todas as coisas do mundoGra, se o ato sexual
é chamado propriamente com a palavra "conhecimento", isto
167 Säo Joäo Paulo IT, L'uomo e donna 10 creö, cit, 98,
• 179 .
O fato que a geraqäo do filho acontece no corpo da mulher
veicula também uma importante verdade antrop016gica. A experi-
éncia da gravidez é uma experiéncia tipicamente feminina: "A mu-
lher estå diante do homem como mäe, sujeito da nova Vida humana
que nela é concebida e se desenvolve, e por ela nasce no mundo".168
0 fato mesmo que um homem se abre para receber em si um outro
homem, que gragas a uma tal abertura podc vir ao mundo, mostra
uma fundamental verdade humana, uma verdade referente a cada
homem, também o jå acenamos, a filosofia moderna
afrontou o tema da relagäo entre os homens sobretudo em Chave de
conflito, do antagonismo original cuja imagem emblemåtica éa fa-
180 •
aspecto essencial do dom de sim, a sua transcendéncia, aparece
jå na fase hist6ria do evento humano. Qual é o significado desse
fato? Ele mostra que a lei do dom, vivida na sua plenitude no es-
• 181 •
EPfLOGO
A PESSOA NA HISTORIA
1. O DESAFIO DO IIISTORICISMO
Uma parte significativa da filosofia moderna buscou en-
contrar o principio racional da hist6ria no interior da pr6pria
hist6ria, movendo da convicgäo segundo o qual o seu sentido se
realiza no seu desenvolvimento imanente. Nas visöes em que se
buscou descobrir as inexoråveis leis que presidem o desenvol-
vimento da histåria, o homem singular perdeu o seu papel de
protagonista da prépria hist6ria e foi reduzido ao estatuto de
• 183 •
um dos seus elementos.€obretudo o marxismo, que em certo
sentido constitui o ponto de chegada do historicismo moderno,
o homem perde a sua esséncia universal e é constituido somente
pela totalidade das forgas produtivas, que obviamente säo con-
dicionadas historicamente. A hist6ria se desenvolve segundo a
sua presumida 16gica, evidenciada pelo marxismo na assim cha-
mada dialética da hist6ria, com que o individuo pode estar de
acordo ou näo; porém, o sujeito hist6rico näo é o individuo, mas
a luta das classes, que necessariamente conduz em direqäo å so-
ciedade comunista. Assim com o marxismo a filosofia chegou å
måxima despersonalizagäo da histöria, cujo desenvolvimento
ultimamente näo depende das decisöes dos homens singulares,
porque é jå predeterminado na sua imanente dialética. Com isso
170 Cf. J.-P. Sartre, Critica detla ragione dialettica, II Saggiatore, Milano, 1963.
• 184 •
mais em direcäo do céu das verdades metafisicas, sem buscar
ver como essas verdades se faziam valer na Vida e no agir do
homem (naturalmente näo podemos esquecer os pensadores
como Jacques Maritain que dedicaram uma parte notåvel das
suas reflexöes justamente sobre esse tema).
2. A ARTICULACÄO DA HISTORIA
Uma antropologia adequada näo poderia ser tal sem co-
locar em consideragäo a dimensäo histörica do homem. Nas
catequeses de Säo Joäo Paulo II a visäo da historia é articu-
lada segundo trés elementos que permitem de penså-la sem
ceder ao historicismo. A hist6ria é por assim dizer emoldurada
entre duas fases que a transcendem: a fase proto-hist6rica ("o
princfpio"), que constitui o ponto de referéncia eståvel para a
171 Cf. A. Wierzbicki, Unafiiosofia capace di pensare la storia, "TI Nuovo Areopago" 4
(2006) 6-19.
• 185 •
hist6ria, isto é, a verdade antes do mundo dada com o ato da
criagäo, e a fase p6s-hist6rica ("a ressurreigäo"),que constitui
o seu ponto de chegada. Assim a hist6ria näo é o unico ponto de
referéncia para o homem, mas em que o ho-
constitui o espago
mem realiza a verdade que ultrapassa a pr6pria hist6ria. Com
a sua pråxis ele näo cria essa verdade, mas a faz pr6pria atra-
• 186 •
a sua inocéncia é chamadcmescolher o bem,
mesmwse näo raramente prefere o mal. Para Säo Joäo Paulo II
173 "Piene seipsum invenire non posse nisi per sincerum sui ipsius donum", Gaudium
et spes, 24.
• 187 •
O lugar mais comum mesmo se näo ünico — do since-
ro dom de si å outra pessoa é o matrimönio. O matrimönio é
uma comunidade fundada por esse dom e ao mesmo tempo uma
comunidade que vive e realiza esse dom na Vida cotidiana, nas
mais comuns experiéncias da Vida. O mesmo vale naturalmente
para a familia. Assim o matrimönio e a familia assumem um pos-
to näo 01 ematiiåd&de
modo adequado. Do ponto de vista cristäo a hist6ria näo tem so-
mente o seu infcio e o seu fim, mas também o seu ponto central,
que é constituido pelo acontecimento da encarnagäo de Cristo.
"Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho ünico", diz Säo
Joäo (Jo 3,16). Cristo mesmo é o dom do Pai para o mundo. Ele
em toda a sua Vida (no seu user-para", "pro-existéncia") e sobre-
tudo na sua morte sobre a cruz restitui a verdade originåria do
homem no meio da hist6ria do pecado. É Ele que diz Udesde o
principio näo foi assim" (cf. Mt 19,3), recordando-nos que näo
é a nossa pråxis historica a criar a verdade da nossa existéncia
hist6rica, mas o desfgnio original de Deus que desde o principio
se exprime no dom. Por meio de Cristo cada homem participa da
hist6ria näo de modo parcial e acidental, mas de modo central.
• 188 •