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DOM BOSCO:

HISTÓRIA E CARISMA
1
ORIGEM: DOS BECCHI A VALDOCCO
(1815-1849)

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Arthur J. Lenti

DOM BOSCO:
HISTÓRIA E CARISMA
1
ORIGEM: DOS BECCHI A VALDOCCO
(1815-1849)

EDB

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Título da obra original: Don Bosco: history and spirit. 1. Don Bosco’s formative years in
historical context. 2. Birth and early development of Don Bosco’s oratory. 3. Don Bosco
educator spiritual master and founder of the salesian society.

©2007. LAS Librería Ateneo Salesiano, Roma. Editor da obra original: Aldo Giraudo.
©2010. Editorial CCS, Madri. Editores da edição espanhola: Juan José Bartolomé e Jesús
Graciliano González.
©2012. Editora Dom Bosco. Brasília.

Traduzido da edição espanhola Don Bosco: historia y carisma. 1. Origen: de i Becchi a


Valdocco (1815-1849) pelo padre José Antenor Velho.

Edição de texto: Luiz Eduardo Pinheiro Baronto


Revisão: Cristina Kapor
Adaptação da capa e diagramação: Tiago Muelas Filú

Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas

LENTI, Arthur J.

L547 Dom Bosco: história e carisma. 1a edição. Brasília-CIB, 2012.


632 p.

Isbn 978-85-7741-246-4

1. Biografia 2. Vida espiritual cristã

CDD 010

Todos os direitos reservados à editora EDB

EDITORA DOM BOSCO


SHCS CR Q. 506 Bl. B Ss. 65/66 Asa Sul
70350-525 Brasília (DF)
Tel.: (61) 3214-2300
Fax: (61) 3242-4797
cisbrasil@salesianosdobrasil.org.br

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Siglas e abreviaturas

ASC Arquivo Salesiano Central


BS Bollettino Salesiano. Edição italiana
BSe Boletín Salesiano. Edição espanhola
Documenti 45 volumes de documentos para escrever a história de
Dom Bosco. Compilados por João Batista Lemoyne.
Epistolario Ceria Epistolário de Dom Bosco. 4 volumes publicados por
Eugênio Ceria. Turim: SEI, 1955-1959.
Epistolario Motto Epistolário: introdução, textos críticos e notas. 4 volumes
editados por Francesco Motto. Roma: LAS, 1999.
FDB Fondo Don Bosco. Microfichas
F. Desramaut, Don Bosco Francis Desramaut, Don Bosco en son temps. Turim:
SEI, 1996.
F. Desramaut, Memorie Francis Desramaut, Les memorie I de Giovanni Bat-
tista Lemoyne: etude d’un auvrage fondamental sur la
jeunesse di saint Jean Bosco. Lyon: Maison d’etudes
Saint Jean Bosco, 1962.
G. Bonetti, Storia Giovanni Bonetti, Storia dell’Oratorio. Publicada em
capítulos no Bollettino Salesiano, entre 1879 e 1886.
Publicada depois em um volume com o título: Cin-
que lustri di Storia Salesiana. Turim: Tipografia Sa-
lesiana, 1892 (há uma tradução em espanhol: Cinco
lustros de historia salesiana. Buenos Aires: Tipografía
e Librería Salesiana, 1897).
MB Memorie Biografiche di Don Bosco. 19 volumes: volu-
mes I-IX editados por João Batista Lemoyne; volume
X editado por Ângelo Amadei; volumes XI-XIX, edi-
tados por Eugênio Ceria.

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MBe Memorias Biográficas de San Juan Bosco. Traduzidas
para o espanhol por Basilio Bustillo. Madri: Editorial
CCS, 1981-1989.
MO São João Bosco, Memórias do Oratório de São Francisco
de Sales 1815-1855. 3ª edição. Tradução: Fausto Santa
Catarina. Edição revista e ampliada, aos cuidados de
Antônio da Silva Ferreira. São Paulo: Salesiana, 2005.
MO Silva Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Frances-
co di Sales dal 1815 al 1855. Texto crítico editado por
Antônio da Silva Ferreira. Roma: LAS, 1991.
MO Ceria Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Fran-
cesco di Sales dal 1815 al 1855. Editado por Eugênio
Ceria. Turim: SEI, 1946.
OE Giovanni Bosco, Opere edite. 38 volumes. Roma:
LAS, 1977 e 1988.
P. Stella, Vita Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità
cattolica: vita e opere. Roma: LAS, 1979.
P. Stella, Spiritualità Pietro Stella, Don Bosco: mentalità religiosa e spiritua-
lità. Zurich: PAS-Verlag, 1969.
P. Stella, Canonizzazione Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità
cattolica: la canonizzazione. Roma: LAS, 1988.
P. Stella, Economia Pietro Stella, Don Bosco nella storia economica e socia-
le. Roma: LAS, 1980.
RSS Ricerche Storiche Salesiane. Revista semestral do Instituto
Histórico Salesiano (ISS). Roma: LAS, a partir de 1982.

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Direção Geral Obras de Dom Bosco
Via della Pisana 1111 - 00163 Roma
O Reitor-Mor

Apresentação do Reitor-Mor

Desde a minha primeira intervenção pública como Reitor-Mor, na Boa-


-Noite de 3 de abril de 2002, dia da minha eleição, não deixo de repetir que
nós salesianos temos, hoje, uma responsabilidade histórica, ou seja: “somos
chamados a encarnar Dom Bosco”, e essa tarefa não será possível sem “co-
nhecer Dom Bosco, até convertê-lo em nossa mens, em nosso ponto de vista,
em nosso modo de trabalhar diante das necessidades dos jovens [...]. É o dom
mais precioso que Deus nos concedeu: Dom Bosco, caminho seguro para a
realização humana e, sobretudo, para o seguimento de Cristo. Esta é a mi-
nha exortação: conhecê-lo, amá-lo, imitá-lo, porque somos todos herdeiros e
transmissores do seu espírito”.1
O CG 26, que se interrogou “sobre a nossa capacidade de ser ‘Dom
Bosco’ em nosso tempo”,2 considerou a estação em que vivemos como tempo
de graça no caminho para o bicentenário do nascimento do nosso Fundador
e oportunidade favorável para “retornar a Dom Bosco”, o que significa “amá-
-lo, estudá-lo, imitá-lo, invocá-lo e torná-lo conhecido, aplicando-se ao co-
nhecimento de sua história e ao estudo das origens da Congregação”. Sendo
certo que estamos em melhores condições de conhecê-lo, pois “a riqueza das
fontes e dos estudos salesianos permite-nos aprofundar as motivações que o
levaram a determinadas opções, metas e projetos que se foram esclarecendo
aos poucos em sua ação, a síntese original de pedagogia e pastoral que ele
alcançou inspirando-se em São Francisco de Sales”,3 não é menos certo que
a sua pessoa, a sua época e o entorno religioso cultural em que viveu estão
ficando sempre mais distantes e menos familiares para nós.
São urgentes, portanto, os estudos sobre Dom Bosco que no-lo restitu-
am sem negligenciar a distância temporal e cultural que nos separa dele, e as
1
CG 25, 179.
2
CG 26, p. 23.
3
CG 26, 1.

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Dom Bosco: história e carisma 1

biografias que conjuguem o apreço fundado pela sua pessoa e sua obra com
uma descrição objetiva da sociedade e da Igreja em que ele surgiu e atuou.
Após anos de estudo e docência, Arthur J. Lenti, biblista hábil conver-
tido em sua maturidade à salesianidade, conseguiu oferecer uma biografia
exemplar de Dom Bosco, na qual soube unir harmoniosamente uma visão
atualizada de Dom Bosco, baseada na própria pesquisa e na melhor e mais
recente historiografia (Stella, Braido, Desramaut, Prellezo etc.), com uma in-
vejável clareza expositiva. O resultado é um amplo e documentado manual,
sete volumes na edição original em inglês, três na edição espanhola, com o
mérito de localizar Dom Bosco em sua época e entre os seus contemporâ-
neos. A originalidade genial do personagem e da sua obra fica assim melhor
enquadrada e exposta.
Ao mesmo tempo em que agradeço de coração ao padre Lenti pelos seus
longos anos de dedicação ao estudo sério e ao ensino entusiasmado de Dom
Bosco e da história da Congregação, felicito os editores, o padre Aldo Girau-
do, pela edição em inglês, e os padres Juan José Bartolomé e Jesús Graciliano
González pela edição espanhola, pelo desejo de colocar esta obra valiosa nas
mãos do maior número de salesianos. Dom Bosco abençoe esta obra e seus
editores. Eu o faço em seu nome.

P. Pascual Chávez
Reitor-Mor
24 de junho de 2010,
onomástico de Dom Bosco.

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Apresentação do autor

Dom Bosco: história e carisma


Uma visão da vida e da obra de São João Bosco (1815-1888)
Os capítulos que compõem esta obra, em três volumes, são uma recons-
trução da vida e da época de São João Bosco, enquadrada e marcada pelos
fatos que introduziram a Igreja e o mundo ocidental nos tempos modernos.
Intitulei-a Dom Bosco: história e carisma. “História”, porque a vida e a
obra de Dom Bosco desenrolaram-se num contexto de acontecimentos inevi-
táveis que criaram um novo mundo religioso e político, conformando assim
seu pensamento e ação. “Carisma”, porque através do seu discernimento,
interpretação e aceitação, ele descobriu o sentido desse novo mundo e res-
pondeu com audácia aos seus desafios: sua vocação.
Esta obra nasceu, por assim dizer, nas aulas. A “história” é fruto de
leituras pessoais e do meu magistério. Contudo, o “carisma” emergiu de
uma intensa reflexão crítica, que precisou da colaboração entre estudantes
e professor.
Para a publicação muitos materiais foram revistos, a redação foi restau-
rada para facilitar a leitura e foram acrescentados alguns apêndices a bom
número de capítulos. Os apêndices oferecem esboços biográficos de figuras
consideradas relevantes para a temática tratada. Contêm, também, textos ne-
cessários ou úteis para maior compreensão da matéria em questão.
Esta obra está em dívida em muitos pontos e, às vezes, de forma consi-
derável, com o trabalho de numerosos estudiosos, muitos para serem mencio-
nados, que trabalharam com muita diligência e espírito crítico no campo dos
estudos salesianos e em outros temas relacionados com eles. A todos, a minha
gratidão e o meu reconhecimento.
Ao padre Aldo Giraudo, do Centro de Estudos Dom Bosco da Universi-
dade Pontifícia Salesiana de Roma, meu mais sincero agradecimento pelo seu
interesse e apoio. Consagrou seu tempo precioso e sua solicitude à leitura e à
edição de meus apontamentos.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Reconheço com gratidão a contribuição do padre Morand Wirth, da


Universidade Pontifícia Salesiana de Roma, que pacientemente revisou o tex-
to em inglês.
Sinto-me muito honrado e agradecido aos que preparam a edição em
espanhol, Juan José Bartolomé e Jesús Graciliano González, que fizeram, com
a liberdade que lhes concedi com prazer, um grande trabalho de redução,
organização e adaptação da obra ao público de língua espanhola.
Mantenho uma grande dívida de gratidão para com o padre Pascual
Chávez, Reitor-Mor, o padre Francesco Cereda, Conselheiro Geral para a
Formação, e o padre Pier Luigi Zuffetti, da Procuradoria Missionária de Tu-
rim, por aprovar e apoiar o projeto.
Fico agradecido, enfim, ao diretor e à equipe de Don Bosco Hall pelo
apoio de tantos anos.

Arthur J. Lenti
Instituto de Espiritualidade Salesiana
Don Bosco Hall
Berkeley, Califórnia (EUA)

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Apresentação dos editores
de língua espanhola

Contar a vida de Dom Bosco e dar a razão da sua genialidade não é uma
empresa fácil. Além de travar conhecimento de forma verdadeira e atualizada
com a sua figura histórica, os atributos característicos da sua personalidade e
os aspectos mais significativos da sua obra, requer-se grande esforço de síntese
para integrar e conjugar os muitos fatores que confluem num personagem tão
complexo. As Memórias Biográficas, fonte inesgotável de informações, pedem
hoje uma leitura crítica que nem todos são capazes de fazer. Os valiosos escri-
tos críticos sobre temas concretos, a edição crítica das fontes e dos escritos de
e sobre Dom Bosco, além de serem parciais, não estão ao alcance de todos;
pressupõem uma preparação que nem sempre se tem e exigem um tempo e
uma concentração não fáceis de encontrar em quem está inserido plenamente
na atividade pastoral ou educativa.
É verdade que são muitas, em espanhol, as biografias populares de Dom
Bosco, laudatórias em geral, e que tampouco faltam estudos científicos de
valor reconhecido, mas até agora não dispomos de uma apresentação funda-
mentada, ampla e documentada sobre a sua pessoa e a sua obra, que recolha
os resultados consolidados da pesquisa historiográfica dos últimos decênios,
enquadrando-os no marco histórico, social e político da Itália do século XIX.
Sente-se, pois, a necessidade de uma biografia, suficientemente ampla e fun-
damentada na mais recente pesquisa crítica, e que seja, por sua vez, de fácil e
agradável leitura, didaticamente bem apresentada e com um conteúdo o mais
atualizado possível.
Pareceu-nos encontrá-lo na recente publicação de Arthur J. Lenti. Por
isso, crendo que valeria a pena colocar esta obra à disposição do público de
língua espanhola, nós assumimos a sua edição.
O Dom Bosco de Lenti não foi escrito para estudiosos, mas é obra de um
bom estudioso. Nascida da docência, embora revista para a sua publicação, a
obra demonstra facilmente a sua origem escolar: clareza na exposição, riqueza

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Dom Bosco: história e carisma 1

informativa e juízos ponderados de valor, ainda que com óbvia dependência


de fontes e interpretações já conhecidas e de estudos feitos por outros. Por
outro lado, a proximidade afetiva do autor com o biografado e uma nem
sempre necessária repetição de temas e esquemas podem dilatar demais a
obra.
Não obstante, é nossa convicção que ela pode converter-se em obra de
referência para os que desejam aproximar-se da figura de Dom Bosco com
rigor e simpatia. A síntese equilibrada de estudos historiográficos mais críti-
cos, o recurso às informações dos primeiros cronistas e compiladores das Me-
mórias, o conhecimento e a utilização de boa parte da literatura sobre Dom
Bosco, podem converter-se em alicerce e guia de leitura para os que desejam
conhecer Dom Bosco a fundo. Esse é o nosso anseio.
Como editores da versão em espanhol, agradecemos ao autor, ao seu edi-
tor e à editora italiana LAS pela liberdade que nos concederam de modificar
a obra segundo o nosso critério, suprimindo repetições ou temas de pouco
interesse para os leitores de língua espanhola, abreviando exposições de me-
nor valor e reorganizando os temas tratados. Isso permitirá tornar mais ágil
a leitura e reduzir a três os sete volumes da edição original, sem perder nada
do essencial. Neles, a biografia de Dom Bosco propriamente dita é precedida
da apresentação das fontes, da sua avaliação e de uma crônica, sucinta, mas
completa, da historiografia. E será completada pelo elenco das obras sobre
Dom Bosco editadas em espanhol até o momento.
Caminhando como estamos para a celebração do bicentenário do nasci-
mento de Dom Bosco, foi nosso desejo colocar nas mãos de todos os Salesia-
nos e membros da grande Família Salesiana de língua espanhola, uma válida
e documentada biografia de Dom Bosco, convencidos de que quanto mais
se conhece Dom Bosco mais se pode amá-lo. E sendo amado de verdade ele
será mais bem imitado.

Juan José Bartolomé


Jesús Graciliano González
Roma, 24 de junho de 2010

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Apresentação do Primeiro volume
Origem: dos Becchi a Valdocco (1815-1849)

Este primeiro volume da obra Dom Bosco: história e carisma abarca os


trinta e quatro primeiros anos da vida do santo, ou seja, do seu nascimento nos
Becchi (1815) até a consolidação da sua obra, o Oratório de Valdocco (1849).
Antes de iniciar a narração da vida, são introduzidas e avaliadas as fontes
e a documentação que se tem à disposição. Dom Bosco, caso notável entre
os santos do século XIX, dispõe de uma amplíssima e constante historiogra-
fia, de insólita riqueza documental, embora de valor crítico desigual. Sua
apresentação e uma primeira avaliação crítica formam o conteúdo dos três
primeiros capítulos da Primeira Parte da obra.
O quarto capítulo dá início à Segunda Parte, com a narração biográ-
fica da vida e obra de Dom Bosco. Após uma rápida descrição do contexto
político, o período da Restauração na Itália e, em especial, no reino da
Sardenha e do Piemonte, que se seguiu à queda do império napoleônico,
e do entorno geográfico, Castelnuovo d’Asti e os Becchi, no qual João
Melquior Bosco nasceu, narram-se as origens da família Bosco, a infância
de João e os primeiros passos da sua formação, profundamente marcada
pela religiosidade de sua mãe viúva e pela proximidade de um pequeno
grupo de sacerdotes mestres-escola.
A infância (1815-1824) e a adolescência (1824-1830) de João transcor-
rem em tempos difíceis, de grande inquietação social e instabilidade política.
Seu esforço para continuar os estudos, fruto de uma prematura decisão vo-
cacional, leva-o a deixar a família e a completar os estudos secundários, pri-
meiro em Castelnuovo (1830) e depois em Chieri (1831-1835), cuja escola
pública estava sob a tutela da Igreja.
Em Chieri, novamente tem um sonho e inicia um doloroso processo de
discernimento vocacional (1834-1835) que o leva a preferir o seminário ao
noviciado. O seminário de Chieri, pertencente à diocese de Turim, será sua
casa durante seis longos anos, não isentos de provas e tribulações. Nele, João

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Dom Bosco: história e carisma 1

Bosco recebe uma formação teológica básica, embora, talvez, não totalmente
completa, que o prepara para a ordenação sacerdotal (1841).
Recém-ordenado padre, Dom Bosco entra no Colégio Eclesiástico de
Turim, seguindo o conselho do padre Cafasso; ali aprenderá a ser padre de
verdade. Durante esse tempo de exercício e aprendizagem pastoral (1841-
1844) amadurecerá a opção preferencial pelos jovens em situação de risco
e a concretizará escolhendo o Oratório como campo ordinário de trabalho
apostólico.
Saber quem eram os meninos “pobres e abandonados” na Turim da dé-
cada de 1840 e qual fosse a situação política vivida pela região do Piemonte
após a Revolução Liberal de 1848, ajuda a contextualizar melhor o período
em que Dom Bosco, primeiramente residente e estudante no Colégio Ecle-
siástico (1841-1844) e, depois, capelão a serviço das instituições caritativas
da marquesa Barolo (1844), faz a opção definitiva de trabalhar pelos jovens e
começa a se ver como padre para os jovens na direção de oratórios.
Depois de uma penosa peregrinação (1844-1846), o Oratório de Dom
Bosco encontra residência permanente na casa Pinardi, onde ao pequeno local
em que se estabelece o Oratório festivo, logo será acrescentada uma pequena
casa de acolhida para órfãos (1847), uma igreja, a capela de São Francisco de
Sales (1852), a casa de Dom Bosco e as primeiras oficinas (1853) que, uma
vez demolido o telheiro inicial e aumentada a casa Pinardi (1856), acolherá
uma escola secundária e um pensionato para estudantes (1855-1856).
Enquanto o Oratório de Valdocco expandia-se com rapidez, Dom Bos-
co foi-se responsabilizando de outros dois Oratórios diocesanos de Turim,
São Luís, de Porta Nova (1847), e Anjo da Guarda, no bairro Vanchiglia
(1849), dos quais em 1852 será nomeado oficialmente diretor espiritual por
dom Fransoni. Encerra-se assim um período de buscas e incertezas, com um
Dom Bosco totalmente consagrado a realizar a sua vocação.
Tão logo consolidada a obra dos Oratórios, Dom Bosco sentiu a urgên-
cia de contar com colaboradores e organizar a vida diária dos jovens. Embora
o trabalho crescesse sob a sua responsabilidade direta, ele encontrou tempo
para um novo e eficaz apostolado, a boa imprensa (1844-1849), que lhe dará
muitas satisfações como também dificuldades, e que maravilha ainda hoje
pela variedade dos temas tratados e o sucesso obtido. Dom Bosco escritor é
uma das facetas mais “modernas” de sua personalidade.

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Parte I

Fontes

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Capítulo I

As fontes: uma apresentação

A reconstrução crítica da biografia de Dom Bosco supõe a individuali-


zação prévia e a avaliação adequada das fontes documentais em que se baseia.
As fontes normalmente são: (1) os arquivos oficiais e pessoais; (2) as informa-
ções de arquivos, transmitidas por testemunhas presenciais, tais como crôni-
cas, memórias etc.; (3) a correspondência pessoal; (4) os escritos autorizados
pela pessoa em questão; (5) o corpus biográfico, tradição que no caso de Dom
Bosco surgiu e se manteve durante a sua vida e culminou na obra monumen-
tal das Memórias Biográficas; (6) os arquivos históricos contemporâneos; (7) a
literatura sobre a vida e o tempo do biografado.

1. Visão global das fontes


Omitindo a discussão teórica do método, neste e nos demais capítulos,
fazemos uma breve análise de três áreas importantes do material documental:
as crônicas, os Documenti, as Memórias Biográficas e as Memórias do Oratório,
do próprio Dom Bosco. Antes, porém, de falar especificamente das crônicas
dos arquivos, apresentamos uma rápida visão das diversas fontes.

Arquivos
São de interesse fundamental (1) os arquivos centrais salesianos, na Casa
Geral de Roma (ASC);1 (2) os arquivos do Oratório de São Francisco de
Sales, em Valdocco, Turim (AV); (3) os arquivos centrais do Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora, em sua Casa Geral de Roma; (4) vários arquivos
vaticanos; (5) os arquivos de algumas congregações surgidas no século XIX;

1
As seções sobre Dom Bosco, sobre o padre Rua e uma parte das seções de Mazzarello-FMA em ASC
estão disponíveis em microfichas. As de Dom Bosco têm a denominação de Fundo Dom Bosco (FDB).

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Dom Bosco: história e carisma 1

(6) os arquivos de várias cúrias diocesanas; e (7) vários arquivos estatais e


municipais, em primeiro lugar, os da cidade de Turim.

Dom Bosco como fonte


Quando as fontes, publicadas ou não, estão organizadas em uma ordem
lógica, deve-se considerar como fonte primeira o próprio Dom Bosco: suas
palavras, seus escritos, seus documentos etc.
Sob este ponto de vista, devem-se mencionar, em primeiro lugar, as co-
municações orais de Dom Bosco, feitas a Salesianos ou outras pessoas, em
conversações formais ou informais. Estas comunicações são encontradas fa-
cilmente nos relatos feitos pelos cronistas e primeiros biógrafos. Obviamen-
te, os manuscritos de Dom Bosco e suas inúmeras cartas são sobremaneira
importantes.2 A volumosa produção literária de Dom Bosco é também uma
fonte de importância fundamental.3
Dom Bosco foi autor de uma série de escritos que tratavam da origem
e natureza da obra do Oratório e da Sociedade Salesiana, tais como vários
resumos e memorandos históricos. A obra mais importante nesta categoria é,
sem dúvida, as Memórias do Oratório.
Embora Dom Bosco não tenha sido seu autor, a História do Oratório,
de João Bonetti, é uma obra considerada como continuação das Memórias
do Oratório.

2
Encontra-se uma primeira coleção das cartas de Dom Bosco em Eugenio Ceria, Epistolario di
San Giovanni Bosco, 4 volumes, Turim: SEI, Vol. I, 1955; Vol. II, 1956; Vol. III, 1958; Vol. IV, 1959.
Está em andamento a edição crítica, mais extensa, a cargo de Francesco Motto, Giovanni Bosco, Epistola-
rio: introduzione, testi critici e note. Roma: LAS, Vol. I, 1991; Vol. II, 1996; Vol. III, 1999; Vol. IV, 2003.
3
O elenco bibliográfico das obras de Dom Bosco encontra-se em Pietro Stella, Gli scritti a stampa
di San Giovanni Bosco. Roma: LAS, 1977, e em Francis Desramaut, Don Bosco en son temps (1815-1888).
Turim: SEI, 1996, 1369-1377.
Coleção de textos: Centro Studi Don Bosco. Opere edite. Ristampa anastatica. Série primeira:
Libri e Opuscoli, 37 volumes, Roma: LAS, 1977; Série segunda, Vol. 38: Contributi [...] Roma: LAS,
1987. Alberto Caviglia, Opere e scritti editi e inediti di Don Bosco nuovamente pubblicati e riveduti
secondo le edizioni originali e manoscritti superstiti, 6 volumes. Turim: SEI, 1929 a 1943, e póstumos,
1965. Estes volumes contêm o texto de seis obras importantes e um extenso estudo sobre cada uma de-
las. Pietro Braido (ed.), Don Bosco educatore. Scritti e testimonianze. Roma: LAS, 1992. Joseph Aubry,
Scritti spirituali di San Giovanni Bosco. Roma: Nuova Editrice, 1976.
Textos independentes: parte das obras importantes de Dom Bosco apareceu separadamente em
edições críticas de professores do Istituto Storico Salesiano em Ricerche Storiche Salesiane. Em espanhol
foram publicadas algumas obras de Dom Bosco. Ver o elenco completo em Jesús-Graciliano Gonzá-
lez, Bibliografía general de Don Bosco y de otros temas salesianos. Roma: Aracne, 2008, títulos 1-120.

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As fontes: uma apresentação

Primeiras fontes salesianas


Por volta de 1860, aproximadamente, alguns Salesianos que viviam com
Dom Bosco, convictos de que entre eles estava acontecendo algo de total-
mente extraordinário, começaram a anotar o que viam e ouviam. Esses re-
pórteres recebem o nome genérico de “cronistas”. Suas anotações são de dois
gêneros: crônicas e memórias. Crônica é um relato redigido no momento em
que o fato se deu ou muito próximo dele, normalmente num caderno, na for-
ma de registros datados. Memória é um relato recolhido por uma testemunha
presencial num momento muito posterior ao acontecimento.
Cerca de duas dezenas desses escritos (crônicas e memórias) que, em
sua extensão, vão de algumas a centenas de páginas, estão em ASC.4 Os mais
importantes entre os cronistas são: Júlio Barberis (1847-1927), Joaquim Ber-
to (1847-1914), João Bonetti (1838-1891), João Batista Lemoyne (1839-
1916), Domingos Ruffino (1840-1865) e Carlos Viglietti (1864-1915).
Também oferecem informações importantes as Atas do Capítulo Supe-
rior (hoje, Conselho Geral), as Atas das Assembleias dos Capítulos Gerais da
Congregação Salesiana e as crônicas locais.5

Depoimentos de testemunhas no Processo de


Beatificação e Canonização
A Congregação dos Ritos publicou entre 1899 e 1932 a cópia pública das
Atas do Processo de Beatificação e Canonização.6 Elas contêm as seguintes partes:

1. Processo ordinário, ou diocesano (1890-1896). Das 28 testemunhas regula-


res ouvidas, 13 eram Salesianos; os demais eram, em geral, simpatizantes da
causa. Foram convocadas ex officio 17 testemunhas adicionais.7
2. Nunca foi objeto de veneração (1907). Das 12 testemunhas ouvidas, 6
eram Salesianos.8

4
ASC A000-A011: Cronachette, FDB 792-1,294.
5
As atas são, em princípio, obra dos secretários, Júlio Barberis e João Batista Lemoyne: ASC
04: Conferenze Generali, FDB 1,869-1,873; ASC 04: Capitoli generali presieduti da Don Bosco, FDB
1,831-1,868; ASC 0592: Consiglio Superiore, Verbali, FDB 1,873-1,880.
6
Copia Publica transumpti Processus Ordinaria auctoritate constructi in Curia Ecclesiastica Tauri-
nensi super fama sanctitatis vitae, virtutum et miraculorum Servi Dei Joannis Bosco Sacerdotis Fundatoris
Piae Societatis Salesianae. FDB 2,323-2,430.
7
FDB 2,330 E3 - 2,430 A12.
8
FDB 2,435 E7 - 2,438 B8.

19

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Dom Bosco: história e carisma 1

3. Processo Apostólico, Parte 1 (1909-1913). Das 13 testemunhas ouvidas, 8


eram Salesianos; os demais, adidos à causa.9
4. Notoriedade da santidade de vida. Virtudes e Milagres (1913). Das 9 testemu-
nhas ouvidas, 3 eram Salesianos; os demais, simpatizantes da causa.10
5. Processo Apostólico, Parte 2 (1916-1918). Foram ouvidas 19 testemunhas, das quais
2 eram Salesianos e um grupo de religiosas e leigos relacionados com os milagres.11
6. Pequeno Processo (1916ss.) para anexar ao processo sobre as virtudes e os mi-
lagres do Venerável Servo de Deus, João Bosco, sacerdote e fundador da Pia
Sociedade Salesiana. Trata-se de uma investigação realizada contra Dom Bos-
co pelo cônego Manoel Colomiatti, da Cúria de Turim, concluída em 1922.12
7. Sobre os milagres (1927-1932). Foi decretada uma investigação em cinco
dioceses nas quais ocorreram os milagres para a beatificação e canonização.13

A tradição biográfica de Dom Bosco


A partir de 1880, Dom Bosco teve a honra de contar, ainda em vida,
com narrações biográficas, algumas bastante extensas. Em certa ocasião, o
próprio Dom Bosco pôs-se a escrever uma autobiografia.
Em 1881, o doutor Carlos d’Espiney publicou em francês uma curta
biografia episódica de Dom Bosco, primeiro ensaio biográfico “sério” escrito
em forma de livro.14 Obteve sucesso imediato e notável, e chegou a numerosas
edições no tempo do Santo. A trigésima e última edição apareceu em 1924.
A obra contribuiu significativamente para a popularidade de Dom Bosco,
sobretudo na França. Traduções e adaptações apareceram em diversas línguas.
Em 1884, o escritor católico, Alberto Du Boÿs, com a aprovação dos Sa-
lesianos, escreveu uma vida popular de Dom Bosco, cujo rascunho o próprio
Santo leu, editando-a em parte.15
Em 1888, foi publicada na França por Jacques-Melchior Villefranche a
primeira biografia completa de Dom Bosco.16

9
FDB 2,444 C10 - 2,481 C1.
10
FDB 2,487 A1 - 2,494 D1.
11
FDB 2,498 A10 - 2,525 C3.
12
FDB 2,520 D6 - 2,523 D1.
13
FDB 2,523 D2 - 2,564 E12.
14
Charles d’Espiney, Dom Bosco. Nice: Typographie et lithografie Malvano-Mignon, 1881, 180 p.
15
Albert Du Boÿs, Dom Bosco et la pieuse Societé des Salésiens. Paris: Jules Gervais Libraire-Editeur,
1884, VI-378 p.
16
Jacques-Melchior Villefranche, Vie de Dom Bosco fondateur de la Société salésienne. Paris: Bloud
et Barral, 1888, XII-356 p.

20

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As fontes: uma apresentação

Desde meados dos anos oitenta do século XIX, João Batista Lemoyne,
secretário geral da Congregação, trabalhou intensamente recolhendo material
para escrever uma biografia. Começou a recolher as fontes disponíveis numa
antologia impressa para uso pessoal, que chegaria a 45 volumes, com o título
de Documenti. Os Documenti foram a principal fonte das monumentais Me-
mórias Biográficas, cujos autores foram o próprio Lemoyne e seus sucessores,
os padres Ângelo Amadei e Eugênio Ceria.

2. Cronistas e crônicas
Ao dizer “crônicas” referimo-nos aqui aos documentos escritos, con-
temporâneos, redigidos por Salesianos próximos de Dom Bosco, que foram
testemunhas do que ele disse e realizou. Esta iniciativa não foi uma ativida-
de ocasional de alguém, mas nasceu da consciência comum e do trabalho
de um grupo.

O período Ruffino-Bonetti (1861-1864)


Criação de um Comitê
Há em ASC alguns breves relatos anteriores a 1860. O exemplar mais
antigo é uma anotação de João Bonetti, datado em 17 de outubro de 1858.17
Depois de 1860, um grupo de discípulos de Dom Bosco criou, provavelmen-
te por sugestão do padre Miguel Rua, um “comitê” permanente, cuja tarefa
era conservar e transmitir o que tinham ouvido e visto de Dom Bosco, espe-
cialmente se lhes parecesse “extraordinário”.
Temos o relato de Ruffino sobre algumas reuniões desse Comitê. A pri-
meira delas se deu provavelmente nos primeiros dias de março de 1861. As
atas iniciam com uma solene declaração de objetivos que reflete a noção e a
convicção compartilhada de que Deus agia na vida de Dom Bosco:

Os fascinantes e magníficos dons de Dom Bosco, as coisas extraordinárias que


realizou e o seu estilo único de conduzir os jovens pelos complexos caminhos da
virtude são realmente admiráveis e surpreendentes. Os grandes planos que tinha

Praticamente, não consta nenhum relato contemporâneo em ASC com data anterior a 1860.
17

Uma razão pode estar no fato de serem poucos os Salesianos dispostos a aceitar essa tarefa, por estarem
muito ocupados e, provavelment e, por não perceberem sua importância. Outra razão pode ter sido a
desconfiança e hostilidade das autoridades civis contra a Igreja e suas instituições nos tempos da uni-
ficação da Itália (1859-1861). A polícia fez perquisições internas no Oratório e, para evitar qualquer
problema, Dom Bosco pode ter decidido destruir “papéis comprometedores”. Pode-se ler um relato das
perquisições internas em MB VI, 537-551.

21

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Dom Bosco: história e carisma 1

em mente e atuou para o futuro [da Sociedade] são sinais claros da assistência so-
brenatural e predizem um futuro glorioso para ele e para o Oratório. Isso faz com
que recaia sobre nós o grave dever da gratidão. Temos a obrigação de não relegar
ao esquecimento nada do que se refira a Dom Bosco. Portanto, devemos fazer o
possível a fim de conservar esses fatos para a posteridade, de modo que algum dia,
quais tochas reluzentes, possam iluminar o mundo todo para a salvação dos jovens.
Essa é a finalidade pela qual instituímos este comitê. Seguem os nomes dos
membros fundadores: padre [Vitório] Alasonatti, padre [Miguel] Rua, padre
[Ângelo] Sávio, padre [João] Turchi, cavalheiro Frederico Oreglia di Santo
Stefano, clérigo [João] Cagliero, professor [João Batista] Francesia, professor
[Celestino] Durando, professor [Francisco] Cerruti, professor [João Batista]
Anfossi, professor [Francisco] Provera, clérigo [João] Bonetti, clérigo [Carlos]
Ghivarello e clérigo [Domingos] Ruffino.18
Ruffino continua:
Na primeira reunião [não há data], nomearam-se três membros que atuassem
como principais repórteres: Ghivarello, Bonetti e Ruffino. Na segunda reu-
nião, realizada em 30 de março de 1861 (estando ausentes Cagliero, Anfossi e
Durando), os membros procederam à eleição do presidente, do vice-presiden-
te e do secretário do Comitê. Foram eleitos respectivamente para esses cargos
padre Rua, padre Turchi e Ruffino.19

Ruffino continua a informar sobre as reuniões posteriores, realizadas


nos dias 1o de abril e 1o e 7 de maio de 1861.20 Aos poucos, porém, a
iniciativa foi perdendo o entusiasmo, provavelmente porque os membros
do comitê estavam muito ocupados em outros trabalhos. Assim, um ano
depois, em 1862, Bonetti lamenta-se dessa omissão e propõe remediar a si-
tuação.21 A situação, sem dúvida, tornou-se pior quando os membros mais
ativos do comitê passaram a ser nomeados para algum cargo fora de Turim.
Bonetti, por exemplo, foi enviado ao colégio de Mirabello em 1863, e Ru-
ffino, recém-ordenado, foi nomeado diretor do colégio de Lanzo em 1864;
morreria um ano depois.
Durante este primeiro período (1861-1864), dos catorze membros do Co-
mitê apenas Ruffino e Bonetti redigiram crônicas importantes que chegaram

18
Croniche III, Ruffino, 1, em ASC A008s: Cronachette, Ruffino, FDB 1,211 A10. Cf. MB VI, 862.
19
Ibid., 1-2, FDB 1,211 A10-11.
20
Ibid., 2-3, FDB 1,211 A11-12.
21
Cf. Bonetti, Annali II, 59, abril 21, 1862, em ASC A004-5: Cronachette, Bonetti; FDB, 922 C5-6.

22

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As fontes: uma apresentação

até nós. Temos também alguns breves relatos de Provera.22 A “breve crônica” de
Turchi, mencionada por Lemoyne nas Memórias Biográficas,23 não chegou até
nós, como também os relatos possivelmente feitos por Ghivarello.

As crônicas de Ruffino
Durante sua breve vida como Salesiano, Ruffino esforçou-se por anotar
os fatos e as palavras de Dom Bosco, e, em vários cadernos, deixou-nos cinco
Crônicas do Oratório e dois Livros de experiência sobre sua permanência em
Lanzo em 1864. Conservados em ASC (A008-13), estão no FDB, aparente-
mente em não perfeita ordem:
1. Caderno 1: Crônica do Oratório [...] N° 1, [1859]-1860.24
2. Caderno 2: Crônica do Oratório [...] N° 2, 1861.25
3. Caderno 3: Oratório de São Francisco de Sales, Nº 3. Crônica, Ruffino, 1861.26
4. Caderno 4: padre Ruffino, Crônica de 1861, 1862, 1863.27
5. Caderno 5: padre Ruffino, 1861, 1862, 1863, 1864.28
6. Livro de experiência: 1864, padre Ruffino.29
7. Livro de experiência: 1865, padre Ruffino, em Lanzo.30

As reservas críticas sobre as crônicas de Ruffino referem-se à cronologia, ou


seja, à sequência dos registros, uma vez que nem sempre são seguros, e à forma
e o estilo desses registros. Foram esses os problemas enfrentados por Lemoyne,
nem sempre solucionados, ao transcrever e organizar as informações de Ruffino.

As crônicas de Bonetti
Como principal membro do “Comitê histórico” de 1861, Bonetti con-
tinuou bastante sistematicamente o que iniciara já em 1858, ou seja, recolher
as palavras e os feitos de Dom Bosco. Suas crônicas preenchem cinco cadernos
que chegaram até nós. Podem ser vistos em ASC-FDB como segue:

ASC A008-013: Cronachette, Provera, FDB 1, 205 C2-II.


22

MB VI, 453.
23

24
ASC A008-013: Cronachette, Ruffino, FDB 1,206 A5-E1.
25
FDB 1,210 D1 - 1,211 A8.
26
FDB 1,209 B2 -1,210 C12.
27
FDB 1,206 E2 -1,209 B1.
28
FDB 1,211 A9-1,212 A10.
29
FDB 1,212 A11, 213 C1.
30
FDB 1,213 C2-D7: Esta é mais curta por causa da morte inesperada do autor; está em ASC-FDB.
Transcrição reorganizada pelo padre Lemoyne das crônicas de Ruffino em três cadernos (FDB 1,213 D8-
1,217 A3) e também 20 páginas sem título, separadas, manuscritas, de Ruffino (FDB 1,217 A4-B11).

23

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Dom Bosco: história e carisma 1

1. Caderno 1 (contém os primeiros registros de Bonetti, antes do comitê): 17


de outubro, 1858, Informações sobre vários fatos.31
2. Caderno 2: Anais I [1860, 1861].32
3. Caderno 3: Anais II [1861, 1862).33
4. Caderno 4: Anais III [1863].34
5. Caderno 5: Crônica de 1864. Este caderno conserva apenas uma homilia
e uma conferência de Dom Bosco. Recorde-se que em 1864 Bonetti era
professor no colégio de Mirabello.35

O Arquivo Central possui outros relatos de Bonetti. Ao mesmo tempo em


que é o autor das crônicas, também o é de artigos, opúsculos e livros. Entre estes
escritos, merece interesse especial a História do Oratório, publicada em capítulos
no Boletim Salesiano; foi publicada mais tarde na forma de livro com o título
Cinco lustros de história do Oratório Salesiano fundado pelo padre João Bosco.36
A obra principal de Bonetti como cronista cobre, portanto, o período
1858-1863. Como no caso de Ruffino, as questões críticas referem-se à cro-
nologia e, também, porque a crônica parece ser uma transcrição de anotações
originais, com critérios editoriais.
Apesar de seus defeitos, tanto as crônicas de Bonetti como as de Ruffino
são de importância fundamental para o conhecimento de Dom Bosco na
década de 1860.

O período Barberis-Berto (1875-1879)


O despertar da consciência e o esforço renovado de informar
Em 1864, o padre Lemoyne uniu-se ao Comitê, mas o grupo pratica-
mente desapareceu quando, em 1864, ele sucedeu ao padre Ruffino como
diretor em Lanzo; à morte de Ruffino em 1865, Lemoyne encorajou o padre
Rua a tomar alguma iniciativa:

Reúna novamente o antigo Comitê, pois se não me engano, ninguém está


recolhendo informações dos feitos de Dom Bosco. Essas coisas são demasiado

31
ASC A008-012: Cronachette, Bonetti, FDB 919 A2 - 920 A12.
32
FDB 920 B1 - 921 C6: Annali I.
33
FDB 921 C7 - 922 E7: Annali II.
34
FDB 922 E8 - 924 B2: Annali III.
35
FDB 924 B3-D1: Cronaca 1864.
36
Cf. p. 11 nota 55.

24

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As fontes: uma apresentação

preciosas para se perderem [...]. Nomeie secretários com a tarefa específica de


registrar detalhadamente o ocorrido.37

O Arquivo Central conserva relatos esporádicos do próprio padre Rua


sobre os anos 1867-1869 dos quais Lemoyne se serviu nas Memórias Biográfi-
cas.38 Entretanto, parece que não se tomou qualquer decisão até 1875 quando,
segundo Amadei, biógrafo do padre Rua, se criou um novo comitê:
O Servo de Deus [padre Rua] decidiu nomear um comitê que continuasse
a recolher as lembranças [sobre Dom Bosco] e que se reunisse regularmente
para examiná-las conjuntamente e publicá-las com a maior fidelidade pos-
sível. O comitê era formado pelo padre Ghivarello, padre Barberis, padre
Berto, padre Cibrario, sob a presidência do padre Rua. Temos um dever de
gratidão para com [o padre Rua], por terem chegado até nós as lembranças
daqueles anos, muitas do padre Barberis e algumas do padre Berto.39

Até 1875, padre Rua encarregara-se na prática da administração dos as-


suntos da Congregação e começava a ser reconhecido como alter ego de Dom
Bosco. Seus compromissos logicamente não lhe deixavam tempo para mais
nada. E novamente não nos ficaram relatos de Ghivarello ou de Cibrario.
Devemos a Barberis e a Berto os amplos relatos das palavras e dos feitos de
Dom Bosco desse período que chegaram até nós.

Barberis e suas crônicas


Em ASC podem-se encontrar quatro coleções principais de Barberis.
1. A “Pequena crônica” (Cronachetta),40 autógrafa, é o relato mais importante
de Barberis. Trata-se de uma coleção de informações datadas de 10 de
maio de 1875 a 7 de junho de 1879. São de Barberis em sua totalidade,
com exceção de algumas matérias aí inseridas (de várias origens). Sem dú-
vida, como ele mesmo afirma, e é evidenciado no texto, trata-se de uma
cópia das notas originais passada a limpo (não mais existente), anotada de
memória ou talvez também por informações de outras pessoas.
2. A “Pequena crônica das conversações de Dom Bosco” (Cronachetta
discorsi)41 consta de 20 cadernos numerados e 14 cadernos não numerados,
em parte de Barberis e em parte de outros.

37
Lemoyne a Rua, Lanzo, Novembro 23, 1868, in ASC Rua V, 1, FDB 3,758 E3-4.
38
ASC 110: Cronachette, Rua, FDB 1,205 E6-1,206 A4. Cf. MB VIII, 204-205.
39
A. Amadei, Il Servo di Dio I, 253-254.
40
ASC A000-003: Cronachette, Barberis, FDB 833-849.
41
FDB 849-871.

25

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Dom Bosco: história e carisma 1

3. “Crônica de vários autores” (Cronachetta varie mani).42 Com a ajuda dos


seus noviços, mas sem dúvida sob a sua supervisão, Barberis publicou e au-
mentou a Pequena crônica de vários modos e com critérios não totalmente
claros. Este relato é formado por várias séries de folhas soltas, numeradas
com números romanos de I a XXXVIII. Algumas séries, todas ou em par-
te, foram perdidas e não estão em ASC.
4. Barberis também é autor de uma Cronachetta anteriore ou Cenni sulla vita
del M. R. Sac. Giovanni Bosco […] (“Pequena crônica dos primeiros tem-
pos” ou “Notas sobre a vida do Reverendíssimo padre João Bosco”). Este
relato procedente de várias fontes antigas consta de 12 cadernos com ma-
terial dos anos 1815 a 1875.

Berto e seus relatos


Berto também redigiu a crônica de diversos eventos e colecionou me-
mórias ao longo de muitos anos; sua colaboração resulta mais valiosa, sem
dúvida, por ter sido secretário de Dom Bosco. Nessa tarefa, era sua primeira
obrigação distribuir a grande quantidade de trabalho que chegava diariamen-
te à sua mesa de secretário. Ao mesmo tempo, ele também era designado para
acompanhar Dom Bosco em muitas viagens a Roma, quando o Fundador
estava inteiramente empenhado nos assuntos da Congregação, da Igreja e do
Estado. Os relatos dessas viagens, especialmente sobre a atividade de Dom
Bosco durante as prolongadas permanências na Cidade Eterna, cobrem a
década 1873-1882 e se encontram em ASC-FDB como segue:
1. Resumo da viagem de Dom Bosco a Roma, 18 de fevereiro de 1873, acom-
panhado de um padre do Oratório [padre Berto].
2. Anotações sobre a viagem de Dom Bosco a Roma, 1873.
3. Breves anotações sobre a viagem de Dom Bosco a Roma em 1873-1874:
Comentários com atenção especial ao tema dos emolumentos para os bis-
pos italianos e a aprovação definitiva da Sociedade Salesiana e das Cons-
tituições.
4. Memória da viagem a Roma, iniciada em 18 de fevereiro de 1875.
5. Breve anotação sobre a viagem a Roma, 1876.
6. Anotações sobre a viagem a Roma, 1877, com referência especial à Refor-
ma das Concepcionistas, confiada pelo Papa a Dom Bosco.
7. Uma crônica, sem título, das atividades de Dom Bosco em Roma, que
iniciava assim: “Hoje, 29 de janeiro de 1878, em que se teve a primeira
assembleia dos Salesianos Cooperadores”.

42
FDB 792-831.

26

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As fontes: uma apresentação

8. Anotações da viagem de Dom Bosco a Roma, 1879-1880.


9. Memória de 1882. Algumas notícias sobre a viagem a Roma, 1882, com
outros assuntos de 1882-1883-1884.43

O segundo comitê histórico deixou de cumprir seus objetivos pratica-


mente quando o padre Barberis deixou Turim em 1880, por causa da mu-
dança do noviciado para San Benigno, e também pelo serviço do padre Berto
como secretário de Dom Bosco, unido à gradual deterioração da sua saúde
mental, que levou ao seu afastamento.

O período Lemoyne - Viglietti (1884-1888)


As crônicas dos últimos anos de Dom Bosco
Embora Barberis, Berto, Bonetti e outros continuassem a recolher os
acontecimentos e as palavras de Dom Bosco, o trabalho sistemático de regis-
trá-las sofreu um declínio no início da década de 1880. Seu ressurgimento
vigoroso só se deu quando foram nomeados padre João Batista Lemoyne e
o seminarista Carlos Maria Viglietti, respectivamente como secretário-geral
da Congregação e secretário pessoal de Dom Bosco. Sempre ao lado de Dom
Bosco, com a ajuda de outros Salesianos, os dois deixaram-nos um relato
continuado das atividades de Dom Bosco durante os anos 1884-1888.

Lemoyne e suas crônicas


João Batista Lemoyne (1839-1916), recém-ordenado padre, viera de
Gênova em 1864 para ficar com Dom Bosco no Oratório. Ficou tão apai-
xonado pela santidade e a extraordinária personalidade de Dom Bosco que,
independente do histórico comitê, começou a anotar o que via e ouvia. São
estes os seus principais e importantes relatos:

1. Um Caderno sem título, com registros que vão da sua chegada ao Oratório,
em 18 de outubro de 1864, até abril de 1865, testemunha o compromisso
imediato de Lemoyne à causa.44 À morte de Ruffino, em julho de 1865,
Lemoyne foi escolhido para sucedê-lo como diretor do vizinho colégio de
Lanzo, visitado com frequência por Dom Bosco. Ali, ele continuou sua
atividade de cronista.

ASC A004-013: Cronachette, Berto, FDB respectivamente: (1) 906 C8-907 D7; (2) 907 D8
43

-908 B4; (3) 908 B5-911 A8; (4) 911 A9 - D3; (5) 911 D4 - 912 A9; (6) 912 A10 - C11; (7) 912
C12 - 913 B12; (8) 913 C1 - 916 B9; (9) 916 B10 - 918 C12.
44
ASC A006-007: Cronachette, FDB 1,219 A7 - 1,221 B4 (está erroneamente sob o nome de Sala).

27

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Dom Bosco: história e carisma 1

2. Um segundo caderno intitulado Memórias 1868 contém a narração de


alguns sonhos e palavras de Dom Bosco, dos anos 1867-1868.45
Em 1877, Lemoyne foi nomeado diretor espiritual das Filhas de Ma-
ria Auxiliadora na casa-mãe de Mornese e, desde 1879, em Nizza,
cidades muito menos acessíveis, que estavam a considerável distância
de Turim. Naqueles anos de “exílio”, ele teve, inclusive, a oportuni-
dade ocasional de aumentar suas crônicas. Em 1883, ele retornou ao
Oratório como secretário do Capítulo Superior, podendo dedicar-se
pessoalmente a reunir a documentação histórica sobre Dom Bosco.
Sua nomeação inaugura um período fértil de sua atividade de reunir
relatos colhidos até a morte do Fundador, em 1888. Lemoyne foi um
incansável coletor de material, anotado por ele em numerosos cader-
nos.46 Um deles merece menção especial.
3. Caderno de Lemoyne intitulado Ricordi di gabinetto (Lembranças de escri-
tório). É basicamente um rascunho da crônica de 1884.47
Além disso, depois de 1885, provavelmente por ordem do padre Rua, come-
çou a reunir e obter todos os antigos relatos já pensando numa grande obra.
4. Os Documenti,48 que ele havia mandado imprimir para uso pessoal.
Esta compilação lhe serviria mais tarde de base para sua obra monu-
mental, ou seja,
5. As Memórias Biográficas,49 das quais publicou os nove primeiros volumes.

45
FDB 1,221 C8 - 1,222 B6 (também referido erroneamente a Sala).
46
Cf. FDB 860-963.
47
Ricordi di gabinetto é uma agenda iniciada em 1846, utilizada em parte por Lemoyne durante
seus anos de seminário e, novamente, para pequenos acontecimentos, quase quarenta anos depois! É
um caderno de formato pequeno com 402 páginas. Como acompanhava Dom Bosco nas pequenas
caminhadas pelos pátios do Oratório, ele conservou na memória, anotando mais tarde em seu caderno,
as lembranças dessas caminhadas com o Santo. As anotações originais conservam, entre outras coisas, o
último encontro de Dom Bosco com o cão Grigio [Cinzento] em Bordighera em 1883 (!), detalhes dos
problemas com o arcebispo Gastaldi, seu horário de dormir durantes os anos de atividade, a orientação
que desejava dar aos Salesianos Cooperadores etc., dados que não se encontram em outros lugares. O ca-
derno está em ASC A006-7: Lemoyne 4, mas pelo seu estado lamentável, não foi reproduzido no FDB.
48
Documenti per scrivere la storia di D. Giovanni Bosco, dell’Oratorio di San Francesco di Sales e
della Congregazione Salesiana, 45 volumes, impressos em cópia única para uso pessoal, em San Benigno
Canavese ou em Turim, Valdocco, desde 1885 (é citado como Documenti). Foi reproduzido em ASC
110: Cronachette, Lemoyne-Doc, e em FDB 966 A8 - 1,201 C12.
49
Memorie Biografiche di Don Giovanni Bosco, San Benigno Canavese e Turim: I-IX (1898-1917)
por João Batista Lemoyne; X (1939), por Ângelo Amadei; XI-XIX (1930-1939), por Eugenio Ceria.
Edição espanhola: Memorias Biográficas de San Juan Bosco (MBe), Volumes I-XX, Madri: Editorial
CCS, 1981-1998; traduzido do original por Basilio Bustillo.

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As fontes: uma apresentação

As crônicas de Viglietti
O colaborador mais fiel de Lemoyne, a quem devemos o conhecimento
de Dom Bosco nos últimos anos, é Carlos Maria Viglietti (1864-1915). O
jovem Carlos sentiu-se cativado por Dom Bosco quando ainda era aluno
no colégio de Lanzo. Mais tarde, em 1884, Dom Bosco escolheu-o como
secretário e companheiro de viagem. Tanto por amor ao seu mestre como
por sugestão de Lemoyne, ele escreveu e conservou ciosamente os relatos do
que via e ouvia.
Viglietti foi responsável, sobretudo, pela anotação dos acontecimentos
das várias longas viagens feitas pelo Fundador em seus últimos anos, mas não
se esqueceu de anotar as coisas “de casa”, embora outros também o fizessem.

1. Sua obra fundamental é a Crônica de Dom Bosco, em sua forma original em


8 cadernos, com registros que vão de 20 de maio de 1884 a 31 de janeiro
de 1888, dia da morte de Dom Bosco.50
2. Em seguida, Viglietti transcreveu a obra original com acréscimos, reprodu-
zindo a Crônica de Dom Bosco, apresentando-a em duas partes e chegando
a 5 grandes cadernos, que abrangem o mesmo período.51 Ele também pre-
parou outras edições posteriores parciais de sua crônica.
3. Viglietti ainda escreveu um Diário, que é uma grande coleção de episódios,
sonhos etc., abrangendo vários períodos da vida de Dom Bosco.52

Comentário conclusivo
Apresentamos, resumidamente, as linhas mais importantes e os princi-
pais períodos dos relatos de testemunhas, voltando nossa atenção a personali-
dades relevantes. Deve-se levar em conta que chegaram até nós muitos outros
relatos de testemunhas, breves, mas significativos, sobre fatos relativos a Dom
Bosco. Em parte, eles preenchem os vazios de períodos importantes.
As numerosas recordações pessoais e as memórias, algumas bastante ex-
tensas, conservadas em ASC, também não foram detalhadas aqui. Elas pro-
porcionam um considerável conhecimento do Fundador, embora não tenham
o estatuto de testemunhas contemporâneas. A mais ampla delas é a memória
do coadjutor José Enria, ajudante de quarto de Dom Bosco enfermo.53

50
ASC A010-011: Cronachette, Viglietti, FDB 1,222-1,227.
51
ASC A010-011: Cronachette, Viglietti, FDB 1,232-1,240.
52
ASC A010-011: Cronachette, Viglietti, FDB 1,231 D5 – 1,232 C4.
53
ASC A013: Cronachette, “Enria Pietro Giuseppe nato il [...]”, FDB 932 D12 - 937 C8.

29

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Apêndice

NOTAS BIOGRÁFICAS DOS CRONISTAS SALESIANOS

Domingos Ruffino (1840-1865)


Domingos Ruffino era um jovem cordial e afetuoso, cuja “piedade e vida
angélica emulavam as de São Luís”.54 Nascera em Giaveno (Turim) no dia 17
de setembro de 1840. Em contato com Dom Bosco, ainda estudante secun-
dário, entrou no Oratório em meados de outubro de 1859, depois de residir
no seminário diocesano por pouco tempo. Em seguida, completou os estudos
teológicos enquanto dava aulas em período integral. Foi ordenado em 15 de
novembro de 1863 e Dom Bosco nomeou-o diretor espiritual (catequista)
da Pia Sociedade, uma escolha notável que o elevou, aos 22 anos, ao tercei-
ro lugar na hierarquia da Congregação. Em outubro de 1864, foi nomeado
diretor do recém-fundado colégio salesiano de Lanzo. Morreu menos de um
ano depois, em 16 de julho de 1865, aos 24 anos de idade, provavelmente
por causa de uma broncopneumonia.
Em sua breve vida salesiana, Ruffino dedicou-se a redigir a crônica dos
acontecimentos e das palavras de Dom Bosco; como membro do primei-
ro “Comitê Histórico” de 1860, deixou-nos alguns cadernos: 5 crônicas do
Oratório de Turim e 2 livros de experiências da sua permanência em Lanzo.
Lemoyne, que sucedeu a Ruffino como diretor do colégio de Lanzo, copiou e
organizou as crônicas, afortunadamente, sem destruir os originais.55

João Bonetti (1838-1891)


João Bonetti, Salesiano de grande valor e inteligência, nasceu em Ca-
ramagna no dia 5 de novembro de 1838. Entrou no Oratório em 1855 aos

54
Palavras de Dom Bosco, como foram recolhidas pelo padre Viglietti em sua crônica sobre
Dom Bosco, dos anos 1884-1885, em ASC A 010-011: Cronachette, Viglietti, FDB 1,229 A10; cf.
MB VIII, 147s.
55
Os sete livros de Ruffino estão em ASC A010-011: Cronachette, Ruffino: [I] FDB 1,206 A5 –
E1; [II] FDB 1,210 D1 - 1,211 A8; [III] FDB 1,209 B2 -1,210 C12; [IV] FDB 1,206 E2 -1,209 B1;
[V] FDB 1,211 A9 -1,212 A10; [VI] FDB 1,212 A11 -1,213 C1; [VII] FDB 1,213 C2 - D7. Os livros
de Ruffino são acompanhados imediatamente da transcrição de Lemoyne: FDB 1,213 D8 - 1,217 A3.

30

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As fontes: uma apresentação

17 anos. Permaneceu ali por dois anos, deixando-o para receber o hábito
clerical em sua cidade natal e entrar no seminário diocesano de Chieri. Em
1858, no entanto, uma espécie de saudade fê-lo retornar ao Oratório. Ali
começou a redigir uma crônica de fatos notáveis. Em 18 de dezembro de
1859 participou da primeira reunião da Sociedade Salesiana e foi eleito se-
gundo Conselheiro. Fez a profissão religiosa trienal em 14 de maio de 1862;
ficou ao lado do Fundador até a abertura do colégio de Mirabello, em 20 de
outubro de 1863, quando Dom Bosco o destinou para lá como professor,
tendo padre Rua como diretor. Foi ordenado em 21 de maio de 1864 e fez a
profissão perpétua em 15 de novembro de 1865. Já padre, substituiu padre
Rua como diretor do colégio de Mirabello em outubro de 1864, cargo que
ocupou até 1877, quando o colégio foi transferido para o próximo Borgo
San Martino.
Chamado novamente a Turim, ele exerceu cargos de responsabilidade na
Sociedade Salesiana: diretor do Boletim Salesiano (1877); diretor do Oratório
das Filhas de Maria Auxiliadora, em Chieri, de 1878 a 1883; comprometido
pessoalmente na controvérsia com o arcebispo Lourenço Gastaldi. Em 1886
foi eleito pelo Capítulo Geral IV para suceder ao bispo João Cagliero como
Diretor Espiritual da Sociedade Salesiana e das Filhas de Maria Auxiliadora.
Além de escrever importantes relatos e crônicas, foi autor de artigos, opúscu-
los e livros. De especial interesse para os Salesianos é a sua História do Orató-
rio, publicada em capítulos no Boletim Salesiano.56
Após a morte de Dom Bosco em 1888, foi nomeado postulador das
causas de beatificação e de canonização do Fundador. Como tal, recebeu do
padre Rua o encargo de reunir testemunhos e lembranças dos Salesianos so-
bre Dom Bosco. Morreu repentinamente em 5 de junho de 1891, aos 53
anos de idade.
Membro principal do “Comitê Histórico” de 1861, Bonetti continuou
de forma bastante sistemática o que iniciara em 1858. Suas crônicas preen-
chem cinco cadernos que chegaram até nós e abrangem os anos 1858-1863.
Apesar das questões de crítica que possam suscitar, as crônicas de Bo-
netti e de Ruffino são de fundamental importância para o conhecimento de
Dom Bosco na década de 1860.

56
G. Bonetti, La storia dell’Oratorio di San Francesco di Sales, publicada em capítulos no Boletim
Salesiano entre 1878 e 1886. Após a morte de Bonetti em 1891, foi publicada em forma de livro com o
título Cinque lustri di storia dell’Oratorio salesiano fondato dal sacerdote D. Giovanni Bosco. Turim: Tip.
Salesiana, 1892. A obra abrange os anos 1841-1865. O livro foi traduzido em espanhol como Cinco
lustros de historia del Oratorio Salesiano, Buenos Aires, 1897. O texto está em parte nas Memórias do
Oratório, de Dom Bosco, e em outros documentos de arquivo e de testemunhos.

31

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Dom Bosco: história e carisma 1

Júlio Barberis (1847-1927)


Nascido em Mathi, nas proximidades de Turim, no dia 7 de junho de
1847, entrou no Oratório em 1861. Sua mãe apresentou-o a Dom Bosco. Ele
assim relembra o seu encontro com o Santo: “Bendito seja aquele dia de mar-
ço de 1861, quando minha mãe me levou até Dom Bosco. Foi o momento
decisivo da minha vida, porque marcou o primeiro passo da minha vocação.
O bom pai colocou sua mão sobre a minha cabeça e, com palavras cujo som
permaneceu indelevelmente impresso em minha mente e no meu coração,
disse-me: ‘Nós seremos sempre amigos; e tu serás meu assistente’”.57
O que mais o impressionava na vida do Oratório era o espírito de família
ali reinante, a solicitude paterna e a presença pessoal de Dom Bosco entre os
meninos; e, também, os sonhos e as experiências extraordinárias do Santo. A
grande igreja de Maria Auxiliadora estava sendo construída e a Congregação
Salesiana, em processo de aprovação.58 Não é de estranhar que Júlio decidisse
“ficar com Dom Bosco”. Fez o noviciado “em família”, isto é, de maneira
informal, e a sua primeira profissão religiosa, em 1865. Como presente es-
pecial, Dom Bosco entregou-lhe uma “regra de vida”, que terminava com as
palavras: “Faze todo o possível e suporta com gosto todas as penas para salvar
almas para o Senhor”.59
Enquanto trabalhava em tempo integral no colégio e no Oratório de
Valdocco, completou os estudos de teologia e conseguiu laurear-se na Facul-
dade de Teologia da Universidade de Turim em 1873. Depois da aprovação
das Constituições Salesianas em 1874, foi nomeado diretor dos noviços,
cargo que, naqueles tempos, fazia dele um membro do Capítulo Superior.
Manteve o cargo por quase vinte e cinco anos, até 1901, formando gerações
de Salesianos durante a vida de Dom Bosco. Sob sua direção, o noviciado
evoluiu e consolidou-se, primeiro no Oratório e, depois de 1879, na casa de
San Benigno, nas proximidades de Turim.
Mais tarde, foi Inspetor (Provincial). Em 1910 foi eleito Diretor Es-
piritual da Congregação. Como tal, viajou por toda a Europa em visita aos
Irmãos, antes e depois da Primeira Guerra Mundial. Essas viagens eram can-
sativas, e nos últimos anos sua saúde se deteriorara. Morreu em 24 de novem-
bro de 1927, com 80 anos de idade.

E. Ceria, Profili, 306.


57

A igreja de Maria Auxiliadora começou a ser construída em 1863 e foi inaugurada em 1868. A
58

Sociedade Salesiana, fundada em 1859, recebeu o decreto de louvor em 1864 e foi aprovada em 1869.
Suas Constituições foram aprovadas definitivamente em 1874.
59
E. Ceria, Profili, 308.

32

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As fontes: uma apresentação

Em sua crônica, padre Barberis recolhe as palavras ditas por Dom Bosco
em certa ocasião:
Ele me disse: “Serás sempre o meu melhor amigo”. “Assim o espero certa-
mente”, respondi-lhe. “Serás o báculo da minha velhice (baculus senectutis
meae)”, insistiu Dom Bosco. Garanti-lhe: “Farei de muito boa vontade tudo
o que puder para ajudar”. Em seguida, Dom Bosco continuou: “Caberá a vós
concluir a obra que eu iniciei; eu fiz o desenho, vós terminareis o quadro”.
Respondi-lhe: “Espero que não destruamos a obra”. “Não, vós não a mutila-
reis”. “Eu estou fazendo simplesmente o rascunho da Congregação; a cópia
definitiva será tarefa dos que persistirem”.60

Padre Barberis contribuiu muito na consolidação da obra do Fundador.


Seu trabalho de organizar o programa do noviciado, a influência espiritual
que exerceu sobre a geração dos jovens Salesianos foi o seu grande triunfo.
Ele é recordado como alguém extremamente afável e comunicativo,
com um “coração de ouro”. Sua simplicidade e bonomia, que chegava à
elegância, eram proverbiais. Tinha, também, outros recursos que o torna-
vam apreciado por todos. Embora não brilhante, era dotado de inteligência
prática e vontade que o capacitaram para ir bem longe. Foi um trabalhador
incansável e perseverante.
Padre Barberis foi autor de muitos livros, alguns dos quais implicaram
considerável pesquisa. Além de manuais para religiosos e de formação sale-
siana, obras de devoção e muitas vidas de santos, publicou algumas obras de
história e geografia, temas que lhe agradavam.61
Os Salesianos têm para com ele talvez uma dívida de gratidão pela sua
atividade de secretário e cronista, com que enriqueceu os arquivos salesianos
de uma enorme quantidade de documentação testemunhal sobre Dom Bosco
e o Oratório, além da sua atividade de mestre dos noviços.

60
J. Barberis, Crônica autógrafa, 19 de maio de 1875, Caderno I, 15, FDB 833 C1 . “Serás o
báculo da minha velhice”, são palavras de encorajamento ditas por Dom Bosco também a outros Sale-
sianos, por exemplo, ao padre Lemoyne e ao seminarista Viglietti, conforme seu testemunho pessoal.
61
Entre outras, pode-se mencionar: Storia antica orientale e greca [História do Antigo Oriente
Médio e Grécia]. Turim: Tipografia Salesiana, 1877, 18ª ed. 1908; La terra e i suoi abitanti [A terra e
seus habitantes]. Turim: Libreria Salesiana, 1890. É especialmente notável o livro sobre a Pagatônia,
escrito para ser apresentado por Dom Bosco às autoridades eclesiásticas em Roma, em defesa das
missões salesianas, e publicado criticamente: La Patagonia e le terre australi del continente americano
[A Patagônia e as terras do sul do continente americano]. Introdução e texto crítico de Jesús Borrego,
Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 11. Roma: LAS, 1988.

33

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Dom Bosco: história e carisma 1

Joaquim Berto (1847-1914)


Joaquim Berto nasceu no dia 29 de janeiro de 1847 em Villar Alme-
se (Turim) e entrou no Oratório em 16 de setembro de 1862. Formou-se
professor em 1865. Antes de ser ordenado em 1871, foi escolhido por Dom
Bosco como secretário, cargo que conservou até quando, em 1884, sua saúde
o obrigou a retirar-se. Depois, trabalhou como arquivista da Sociedade; ani-
mado pelo padre Lemoyne, recolheu cuidadosamente e conservou qualquer
retalho de informação que lhe chegasse sobre o Fundador. Ele também é
autor de inúmeros livros de devoção.
Sua contribuição mais valiosa deu-se como secretário de Dom Bosco.
Além de desobrigar-se da enorme e cansativa quantidade de trabalho que
chegava à sua mesa, anotava diversos fatos sobre Dom Bosco e o Oratório.
Mais decisivo ainda foi acompanhar Dom Bosco nas viagens a Roma e outros
lugares, no tempo em que o Santo estava envolvido em numerosos assuntos
de Estado. Como membro ativo do segundo “Comitê Histórico”, seus valio-
sos relatos dessas viagens, em especial da atividade de Dom Bosco durante
as longas permanências na Cidade Eterna, abrangem a década 1873-1882.
Nove desses relatos são conservados em ASC.62
Depois que padre Barberis deixou Turim em 1880, e com o crescente
envolvimento de Berto como secretário de Dom Bosco, junto com a deterio-
ração da sua saúde mental que o levou à inatividade, o “Comitê histórico” da
década de 1870 deixou de funcionar, sendo restaurado pelo padre Lemoyne
apenas na década de 1880.
Padre Berto morreu no Oratório em 21 de fevereiro de 1914.

Carlos Viglietti (1864-1915)


Carlos Viglietti nasceu em Susa (província de Turim) no dia 18 de
maio de 1864. Em 1882, o próprio Dom Bosco impôs-lhe o hábito cleri-
cal e, desde então, o teve em grande estima. Escolheu-o como secretário
pessoal quando ainda era clérigo e quis que o acompanhasse durante sua
viagem triunfal à Espanha; sobre isso, ele escreveu uma crônica detalhada.
Foi ordenado padre em 18 de dezembro de 1886. Assistiu Dom Bosco em
sua última enfermidade. Era profundamente piedoso, otimista e trabalha-
dor incansável.

ASC A004-5: Cronachette, Berto, FDB respectivamente: [I] 906 C8 - 907 D7; [I] 907 D8 -
62

908 B4; [III] 908 B5 - 911 A8; [IV] 911 A9 - D3; [V] 911 D4 - 912 A9; [VI] 912 A10 - C11; [VII]
912 C12 -913 B12; [VIII] 913 C1 - 916 B9; [IX] 916 B10 - 918 C12.

34

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As fontes: uma apresentação

Após a morte de Dom Bosco, foi enviado a fundar a casa de Bolonha,


onde foi diretor de 1896 a 1904. Ergueu ali o Santuário do Sagrado Coração
e deu vida ao periódico do Santuário. Em seguida, foi diretor em Savona
(1904-1906) e, finalmente, em Varazze (1906-1912). Ali aconteceram, du-
rante o seu diretorado, os lamentáveis “fatos de Varazze”. Padre Viglietti sou-
be manter-se sereno e com grande dignidade em meio à tempestade, até que
os fatos fossem esclarecidos: tudo não passara de uma trama caluniosa urdida
por anticlericais que se opunham à escola católica na Itália. Passou os últimos
anos no Oratório de Turim, afetado por uma dolorosa enfermidade. Morreu
em 8 de novembro de 1915.
Viglietti escreveu vários livros, quase todos sobre temas salesianos. Sua
obra fundamental, como se disse, é a Crônica de Dom Bosco, original em 8
cadernos, que vai de 20 de maio de 1884 a 31 de janeiro de 1888, dia da
morte de Dom Bosco.63

63
Cf. Carlos Maria Viglietti, Cronaca di Don Bosco, Prima redazione (1885-1888). Introdução,
texto crítico e notas por Pablo Marín Sánchez. Roma: LAS, 2009.

35

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Capítulo II

A TRADIÇÃO BIOGRÁFICA DE DOM BOSCO

A segunda fonte importante para o conhecimento de Dom Bosco é a


tradição biográfica. Iniciada nos ensaios biográficos publicados durante sua
vida, ela chegou ao seu apogeu com o monumental trabalho das Memórias
Biográficas, de João Batista Lemoyne.

1. As primeiras biografias
A tradição biográfica de Dom Bosco teve início na década anterior à sua
morte, em 1888. O que caracteriza essa tradição, talvez caso único no gênero
hagiográfico, é que o mesmo Dom Bosco, ainda em vida, não só tivesse sido
motivo de várias biografias, como também, em ao menos um caso, fosse seu
próprio editor.

Os primeiros esboços biográficos de Dom Bosco


Padre Pedro Ricaldone, quarto sucessor de Dom Bosco, estudou em
sua obra Dom Bosco educador, a literatura biográfica sobre o Santo e enu-
merou nela uma lista de 100 títulos em diversas línguas. Entre estes, estão
alguns esboços biográficos, precoces e modestos, de Dom Bosco e do seu
trabalho, pensados para alcançar — ou parece que só tenham realmente
alcançado — uma audiência limitada. Podem-se mencionar, entre eles, as
breves biografias de Bardessono dei Conti di Nigra (1871), de Carlos Co-
nestabile (1878), de monsenhor Antônio Belásio (1879), de Luís Mendre
(1879), de Luís Biginelli (1883) e de Johannes Jansen (1885).1
Os primeiros trabalhos que podem ser qualificados como biográficos
foram escritos em francês. Dois deles, de León Aubineau e de um “antigo

1
Pedro Ricaldone, Don Bosco educador, 2 vols. Buenos Aires: Edit. Don Bosco, 1954.

36

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A tradição biográfica de Dom Bosco

magistrado”, anônimo, foram apresentados após a bem-sucedida viagem de


Dom Bosco a Paris em 1883.2 Outras duas biografias, de Carlos d’Espiney
(1881) e de Alberto Du Boÿs (1883), foram escritas igualmente em francês e
tiveram maior repercussão.

“Don Bosco”, de Carlos d’Espiney


Em 1881, o doutor Carlos d’Espiney3 publicou, em francês, uma bio-
grafia episódica de Dom Bosco. É o primeiro ensaio biográfico “sério” publi-
cado em forma de livro.4 A obra, de pequenas dimensões, com 180 páginas,
era uma biografia de orientação taumatúrgica e hagiográfica, embora pusesse
em relevo uma importante introdução histórica da vida de Dom Bosco e da
sua obra. Seguiam-na dois breves capítulos que tratavam, respectivamente,
dos Cooperadores Salesianos e de Maria Auxiliadora dos Cristãos, que cor-
respondiam à dupla intenção do livro. O livro, de fato, pretendia obter ajudas
para Dom Bosco e a sua obra na França e mostrar que, através da intervenção

2
León Aubineau, Dom Bosco, sa biographie, ses oeuvres et son séjour à Paris. Paris: Josse, 1883. Un
Ancien Magistrat, Dom Bosco à Paris, sa vie et ses oeuvres. Paris: Libraire Ressaire, 1883.
3
O autor, Charles d’Espiney, nasceu em Bourg-en-Bresse (Ain) em 1824, estudou medicina em
Avinhão, Montpellier e Marselha e estabelecera-se em Nice, onde exerceu durante muitos anos a profis-
são de médico, mantendo excelentes relações profissionais e humanas. Seus contatos com Dom Bosco
datam ao menos de 1869. Em sua obra, ele narra o caso de um médico incrédulo que se apresentou a
Dom Bosco para que o curasse da epilepsia. D’Espiney conta com detalhes a conversa de Dom Bosco
com o médico e conclui com estas palavras sublinhadas no texto: “Nunca mais se repetiu o menor sinto-
ma daquela doença; e veio com frequência agradecer a Maria Auxiliadora, que o curou de corpo e alma”
(p. 101). As Memórias Biográficas repetem o fato, tomando-o, porém, da obra de d’Espiney, única tes-
temunha, parece, do que acontecera. Isto levou alguns a suspeitarem que se tratasse dele mesmo, apesar
das declarações de incredulidade do médico (“Eu não creio em Deus, nem na Virgem, nem na oração,
nem nos milagres”) não serem atinentes em absoluto à mentalidade do doutor d’Espiney, que naquele
momento já era um homem maduro, com 45 anos de idade. De qualquer forma, se não se tratava dele,
tudo leva a crer que ele estivesse presente no momento do fato e que, desde então, sua admiração e de-
voção por Dom Bosco foram constantes, tendo sido ele a introduzir Dom Bosco no círculo da nobreza
de Nice. Em 1879, acompanhou-o na visita ao conde Villeneuve, a quem Dom Bosco curou de uma
lesão recebida na cabeça ao cair de um cavalo. Poucos dias depois, também esteve presente à cura “mi-
raculosa” da condessa Villeneuve, deixando um atestado médico a testemunhar o fato. Em 16 de março
de 1881, organizou uma reunião de Salesianos Cooperadores, tendo lido uma poesia sua em que pedia
ajuda econômica para as obras salesianas. Em 6 de março de 1884, em Nice, atendeu a Dom Bosco que
se sentira enfermo, diagnosticando-lhe uma congestão hepática, e, por isso, os Salesianos chamaram o
doutor Combal, professor da Universidade de Montpellier, que nos deixou um detalhado diagnóstico
sobre o estado de saúde de Dom Bosco naquele momento. Por proposta de Dom Bosco, o Papa conce-
deu a d’Espiney a Ordem dos Cavaleiros de São Gregório Magno. Morreu em 13 de abril de 1891. Este
resumo da vida de d’Espiney foi tomado do artigo de Jesús-Graciliano González, publicado no Peru na
primeira tradução do “Dom Bosco” de Charles d’Espiney, em RSS 49 (2006) 397-413.
4
Charles d’Espiney, Dom Bosco. Nice: Tipografia e litografia Malvano-Mignon, 1881, 180
p. [citado como d’Espiney].

37

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Dom Bosco: história e carisma 1

miraculosa de Maria Auxiliadora, era Deus que agia na vida de Dom Bosco.
Em consonância, a maior parte do livro, cerca de 100 páginas, era uma com-
pilação de “fatos miraculosos”, curas e outros feitos extraordinários.
A obra de d’Espiney tinha um atrativo autenticamente popular e ob-
teve grande sucesso. O livro foi impresso várias vezes, com não menos de
dez edições durante a vida de Dom Bosco; a décima terceira e última surgiu
em 1924. Ao rever a décima edição desta obra (1888), o padre salesiano
Luís Cartier realçou as credenciais do seu autor: “O relacionamento íntimo
e constante de d’Espiney com Dom Bosco, com o padre Rua [...] e com o
Patronato de São Pedro em Nice, dão a seu relato uma autoridade na qual o
leitor pode confiar com toda segurança”.5
Juízo excessivamente generoso, uma vez que a obra criou dificulda-
des para Dom Bosco e os Salesianos por causa das muitas inexatidões. Por
exemplo, um episódio narrava o fato de Dom Bosco ter recebido inespe-
radamente de presente uma grande soma em dinheiro num momento de
extrema necessidade. O nome do doador e os fatos relativos ao caso foram
totalmente alterados, produzindo o protesto do doador.6 Também grave era
o tom demasiado laudatório e a constante referência aos milagres. O episó-
dio da ressurreição do jovem Carlos também enfrentou objeções do próprio
Dom Bosco, que lançou sobre o doutor d’Espiney a responsabilidade da sua
narração, embora nunca tenha negado a veracidade do fato. A história não
apareceu mais na edição revista do livro em 1883; apesar de suas objeções,
Dom Bosco nunca desautorizou o livro. A décima edição, de 1888, comple-
tamente revista e reestruturada cronologicamente, obteve enfim a aprovação
dos Salesianos.

O “Don Bosco” de d’Espiney traduzido para o espanhol e adaptado


O livro do doutor d’Espiney foi a primeira biografia de Dom Bosco a
circular amplamente pelo mundo. Na França, as edições do Don Bosco de
d’Espiney, antes e depois da morte do Santo, multiplicaram-se, ampliando-
-se sempre mais com novos e inéditos episódios e milagres. Em 1888, ano
da morte de Dom Bosco, foi publicada a 10ª edição, com 507 páginas; a

Bulletin Salésiene 10 (1888) 97.


5

O doador era Francisco Viancini, de Viancino, “destacado cavalheiro do Piemonte” e generoso


6

benfeitor do Oratório (MB IX, 762). Como resposta, Dom Bosco pediu ao conde que deixasse os bo-
atos de d’Espiney, garantindo-lhe que ele mesmo falaria com o médico na próxima visita a Nice [carta
de 18 de dezembro de 1881, em Epistolario Ceria IV, 99-100]. O relato da ressurreição do jovem Carlos
também não agradou a Dom Bosco. Este chamou a atenção de d’Espiney por ter falado do aconteci-
mento, embora nunca tenha negado que tivesse acontecido.

38

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A tradição biográfica de Dom Bosco

primeira edição possuía 180 páginas. Na Espanha, a “vida” foi conhecida e


lida no original francês e, logo depois, em 1884, traduzida para o espanhol
por um missionário franciscano do convento dos descalços de Lima (Peru).7
Nesse mesmo ano, 1884, o então bispo de Milo e auxiliar de Sevilha,
dom Marcelo Spínola, recolhendo dados do Boletin Salesiano e da obra de
d’Espiney, compôs uma nova biografia em espanhol com o título Dom Bosco
e sua obra, que circulou por toda parte e deu a conhecer a obra de Dom Bosco
na Espanha. Morrendo Dom Bosco, o salesiano chileno Camilo Ortúzar fez
uma nova tradução para o espanhol do livro Don Bosco de d’Espiney, tendo
como base não mais a quarta, mas a décima segunda edição francesa, notavel-
mente corrigida e aumentada. A obra foi publicada em 1889 em Turim, aon-
de também veio à luz em 1891 uma segunda edição.8 Em 1894, foi publicada
a terceira edição da tradução de Camilo Ortúzar, mas desta vez na Tipografia
de Barcelona-Sarriá, onde se publicaram depois outras edições.9

“Don Bosco” de Alberto Du Boÿs


Uma nova e significativa biografia surgiu em 1885. O escritor francês
Alberto Du Boÿs é o autor de uma vida de Dom Bosco de caráter popular
que, dada a sua qualidade e o seu caráter quase oficial, destinava-se a su-
plantar, embora sem removê-los, todos os ensaios anteriores.10 A obra, ape-

7
Trata-se do padre Luís Torra, nascido em Manresa (Barcelona) em 20 de novembro de 1851,
que ainda muito jovem foi para o Peru. Exerceu sua atividade sacerdotal na capital e em outros lugares
do Peru, pregando missões populares. Depois de alguns anos passados na Espanha, onde foi superior
do Convento de Loreto, perto de Sevilha, retornou ao Peru. Esteve também no Equador e trabalhou
nas missões mantidas pelos franciscanos entre os jívaros de Zamora. Era superior em Guayaquil quan-
do adoeceu e morreu santamente em 20 de setembro de 1900 aos 49 anos de idade. A circunstância
que, como ele mesmo disse, o levou e até o obrigou a imprimir a sua “deficiente” tradução foi uma
intervenção miraculosa em um naufrágio, no qual ele e seus companheiros imploraram os auxílios do
céu, formulando o voto de que, se saíssem com vida e sem lesões, fariam uma novena a Maria Auxilia-
dora e trabalhariam em favor da obra de Dom Bosco. Saindo indenes, cumpriram o voto e publicaram
em espanhol a obra de d’Espiney, que muito contribuiu para tornar conhecido Dom Bosco e sua obra
no Peru. Outros dados sobre essa tradução, cf. artigo citado de J. G. González, publicado no Peru...
(cf. capítulo 1, nota 3).
8
Don Bosco, pelo doutor Charles d’Espiney, Cavalheiro da Grande Cruz da Ordem Pontifícia
de São Gregório Magno; obra aprovada pela Congregação Salesiana. Segunda edição em espanhol,
traduzida da décima segunda edição francesa pelo presbítero da mesma Congregação, Camilo Ortúzar,
Turim: Tipografia e Livraria Salesiana, 1891; a obra foi publicada em português com o título Dom
Bosco pelo Dr. Charles d’Espiney. Niterói: Escolas Profissionais Salesianas, 2ª ed., 1928, 307 p.
9
Charles d’Espiney, Don Bosco. Barcelona: Tipografia e Livraria Salesiana, 1894.
10
Albert Du Boÿs, Dom Bosco et la pieuse Societé des Salésiens. Paris, Jules Gervais Libraire-
-Éditeur, 1884. O trabalho conciso de VI-378 páginas, formato médio, foi imediatamente traduzido
para o italiano por Giuseppe Novelli como Don Bosco e la Pia Società Salesiana. San Benigno Canavese:

39

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Dom Bosco: história e carisma 1

sar de importante, ainda não se enquadra no modelo atual de biografia, mas


seu autor dava passos nessa direção. Du Boÿs escreveu a pedido dos Salesia-
nos e sob a orientação do próprio Dom Bosco. Este já se tinha convertido
em lenda, mas Du Boÿs queria a todo custo aproximar-se do personagem
como “historiador”. Sendo este seu objetivo, passou algum tempo no Ora-
tório de Turim para conhecer pessoalmente o personagem. Obteve assim
informações de primeira mão e adquiriu algum conhecimento do mundo
espiritual e educativo dos Salesianos.11 Valeu-se também de fontes escritas;
utilizou os artigos do padre Bonetti (Storia dell’Oratorio), publicados no
Boletim Salesiano; serviu-se dos Regulamentos das Casas e, em relação ao
método educativo de Dom Bosco, tomou abundantes notas da “Biografia”
de Luís Colle, publicada por Dom Bosco (1882).12 Du Boÿs havia captado
a intenção básica da obra de Dom Bosco e os aspectos característicos do seu
método educativo.
A obra de Du Boÿs foi imediatamente traduzida para o italiano e as pro-
vas tipográficas foram remetidas a Dom Bosco para sua revisão e correção. A
cópia corrigida foi conservada e podem-se contar espalhados ao longo de 256
páginas, não menos de 89 acréscimos e correções da mão de Dom Bosco.13
O relato sobre Dom Bosco e sua obra é uniforme e sério; contudo, o
trabalho ainda permanece na tradição taumatúrgica e laudatória de suas fon-
tes. Du Boÿs, é certo, absteve-se de alardear episódios miraculosos, mas deixa
perceber um fascínio pelo “extraordinário”. Além disso, dado que era católico

Tipografia e Libreria Salesiana, 1884. Para a crítica da obra de Du Boÿs, veja-se Piera Cavaglià, Don
Bosco lettore della sua biografia: osservazioni al volume di A. Du Boÿs, Don Bosco e la Pia Società Sale-
siana (1884). RSS 22 (1984) 193-206. Albert Du Boÿs (1804-1889) nasceu em Metz numa família
monarquista conservadora, estudou em Paris e foi em seguida nomeado magistrado de Grenoble. Com
a queda da monarquia em 1830, abandonou a profissão legal e dedicou-se ao estudo das artes. É autor
de muitos livros jurídicos e históricos e vidas de santos. Foi amigo íntimo do bispo Dupanloup de
Orleáns, com quem compartilhou interesses histórico-literários e com ele assistiu ao Concílio Vaticano
I, momento culminante da sua carreira. Expressou, do ponto de vista conservador, as preocupações
políticas, religiosas e culturais do século XIX.
11
Esta visita é recordada pelo biógrafo Du Boÿs, mas aparentemente não foi registrada nos cír-
culos salesianos, cf. P. Cavaglià, Don Bosco, 200.
12
Cf. MB XV, 74-78, 90ss.
13
Cf. P. Cavaglià, Don Bosco, 200-203. Algumas revisões de Dom Bosco são muito pessoais.
Assim, onde Du Boÿs escrevera “santo padre”, Dom Bosco corrigiu para “pobre padre”. Na primeira
parte, Capítulo 6, “A preocupação caridosa de Dom Bosco pelos aprendizes do Oratório”, Du Boÿs
escrevera que quando os aprendizes retornavam para o almoço, punham-se em fila “enquanto Mamãe
Margarida servia a sopa de uma grande panela”. A adição lê “[Mamãe Margarida] e o próprio Dom
Bosco”. Onde o autor descreve os recreios e as atividades do Oratório, uma nota à margem explica:
“Dom Bosco interessou-se pessoalmente em aprender a tocar cada instrumento musical, para assim ser
capaz de instruir pessoalmente os jovens nos rudimentos desta arte”.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

conservador, tinha uma tese a provar: a caridade cristã ainda não desaparece-
ra, mas brilhava radiosa na vida extraordinária de Dom Bosco.14

“Vida de Dom Bosco” de Villefranche


A primeira biografia depois da morte de Dom Bosco surgiu em 1888,
publicada em francês. Era uma obra de Jacques-Melchior Villefranche.15
Villefranche interessou-se por Dom Bosco durante a visita do Santo a
Paris e Lille em 1883, levado inicialmente pela curiosidade e logo conquis-
tado pela admiração diante das realizações e da santidade de Dom Bosco.
Mais tarde, Villefranche pôs-se a trabalhar numa biografia “completa” de
Dom Bosco, com a intenção de aperfeiçoar biografias já existentes e ilustrar
aspectos da atividade do Santo que ainda não tinham sido explicitados ao
público. É provável que desejasse publicar sua obra enquanto ainda vivia o
herói, como fizera com a biografia de Pio IX. Contudo, Dom Bosco morreu
quando Villefranche ainda trabalhava nos últimos capítulos. O prefácio traz
a data de 29 de maio de 1888.
14
Albert Du Boÿs era um escritor católico muito mais sensível do que d’Espiney em relação aos
aspectos sociais e educacionais que se davam no mundo. Dividiu a sua obra em três partes, apresentan-
do clara e distintamente a figura e a obra de Dom Bosco na Europa (I parte), nas missões da América
(II parte), completando-a com uma visão sintética da organização salesiana, do Sistema Preventivo, do
espírito dos ensinamentos dos salesianos (III parte). Du Boÿs atenuava os episódios extraordinários,
deixando de lado os fatos miraculosos e as profecias, mas sublinhando as injustiças, as dificuldades e os
atentados devidos aos “revolucionários” anticlericais de Turim. Em vez de um taumaturgo, esta nova
biografia apresentava Dom Bosco como um homem genial, sensível às questões sociais e extraordinário
mestre da juventude. A nova vida agradou em Valdocco. Conta-se que Dom Bosco chegou a dizer que
a vida escrita por d’Espiney servia bem para conseguir dinheiro, mas que, para tornar conhecida a obra
salesiana como ela é, a de Du Boÿs era muito melhor. Narram as Memórias Biográficas que, quando
ofereceram a Dom Bosco o Reformatório de Santa Rita, de Madri, planejado segundo o estilo das
conhecidas casas correcionais, o senador Lastres e seu secretário foram falar com padre João Branda,
que lhes respondeu que a obra não entrava na finalidade dos Salesianos e deu-lhes de presente o livro
de d’Espiney, para que se inteirassem do sistema de Dom Bosco. Teria preferido dar-lhes a obra de Du
Boÿs, mas não tinha nenhum exemplar dela. Mais tarde, ao referir a Dom Bosco o detalhe dos livros,
o Santo lhe disse: “Nesses casos, é melhor oferecer o de Du Boÿs. O doutor d’Espiney é bom para as
pessoas piedosas e leva a abrir as bolsas, enquanto o outro permite conhecer melhor o nosso sistema e
acertou ao interpretar o espírito da nossa Sociedade”. Cf. MB XVII, 596 [Nota dos editores].
15
Jacques-Melchior Villefranche, Vie de Dom Bosco fondateur de la Societé salésienne, Paris:
Bloud et Banal, 1888, XII-356. Jacques Melchior Villefranche (1829-1904) nasceu em Couzon (Rhô-
ne, França). Depois de uma boa educação, pensava fazer-se jesuíta. Entretanto, chegou a ser admi-
nistrador de uma agência dos correios e telégrafos. Depois de participar da guerra da Crimeia (1854-
1856), iniciou a carreira de escritor e repórter gráfico. Em 1870, adquiriu um periódico, o Journal de
l’Ain, de cujas páginas combateu nas batalhas conservadoras e antirrepublicanas. Depois de escrever
uma história da telegrafia na França, seus escritos se dedicaram a temas religiosos: vidas de mártires,
biografias de grandes católicos do século XIX. Uma biografia de Pio IX (1876) granjeou-lhe o reconhe-
cimento do clero e dos católicos conservadores. Depois disso tudo, conheceu Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Como biografia, a obra de Villefranche é formada por 28 capítulos e


cobre a vida e as obras de Dom Bosco. Depois de uma breve visão de con-
junto dos primeiros anos até o sacerdócio (capítulos 1 e 2), uma ampla seção
central do livro é dedicada à descrição da obra do Fundador. Em seguida,
sua atenção concentra-se em Domingos Sávio, Miguel Magone e Francisco
Besucco (capítulo 12); na atividade de Dom Bosco como educador (capítu-
los 14, 15 e 17); nos Salesianos Cooperadores (capítulo 21); e nas Missões
Salesianas (capítulos 20 e 23). O livro todo é bem sortido de episódios; im-
portantes seções são dedicadas aos ataques sofridos por Dom Bosco contra a
sua vida, aos episódios do Grigio e às curas “extraordinárias”.
Ao receber cópias da obra do autor, padre Rua respondeu com uma car-
ta de louvor e estímulo. Contudo, a biografia de Villefranche, infelizmente
e sem razão, não obteve a aceitação dos Salesianos franceses. Acusaram-no
de copiar documentos salesianos franceses sobre Dom Bosco e causou-lhes
espécie a presunção de uma pessoa estranha ao círculo dos Salesianos poder
interpretar o espírito de Dom Bosco.16
A obra de Villefranche, sem dúvida, supera em amplidão e profundi-
dade as biografias produzidas até então. A extensão, a variedade e a apresen-
tação geral são, em seu conjunto, de ordem superior à obra de d’Espiney e,
inclusive, a de Du Boÿs. Villefranche acertou no que seria, num tempo ainda
por chegar, o modelo biográfico de muitas vidas de Dom Bosco que viriam
depois; modelo reforçado pela famosa biografia do padre Agostinho Auffray,
escrita para a beatificação em 1929. Apresenta aos leitores o escritor, o editor,
o milagreiro, o construtor de igrejas, o educador, o fundador de Congrega-
ções religiosas etc.; e tudo é generosamente temperado com muitas histórias
extraordinárias pelas quais Dom Bosco se tinha transformado em lenda.
O nível alcançado — deve-se ressaltar — é o de uma biografia
“informativa”, não o de uma biografia “crítica”. Villefranche e praticamente
todos os que o seguiram mantiveram-se dentro da tradição hagiográfica.

A atitude ambivalente de Dom Bosco perante a sua própria biografia


É insólito exaltar com relatos biográficos alguém ainda vivo, mesmo
em se tratando de santos. O que Dom Bosco pensava sobre isso? Ele estava
plenamente convencido de que, por intervenção de Nossa Senhora, Deus

Os ataques provinham, em grande parte, do padre Cartier e do diácono Luís Roussin, diretor
16

do Boletim Salesiano francês em Turim. A obra foi praticamente condenada ao ostracismo pelos Salesia-
nos franceses; contudo, Villefranche viveu para ver sua obra publicada em inglês (1890) e em alemão
(1894). Para a crítica detalhada do curioso incidente, veja-se F. Desramaut, Mise à l’index, 72-82.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

trabalhava nele com resultados “extraordinários”. Nada do que fazia era seu.
Como é lógico, devia sentir-se em situação difícil diante do que se dizia dele
ao público em geral, sobretudo com escritos extremamente laudatórios e que
encantavam narrando “milagres” e outros fatos “extraordinários”.
Dom Bosco não viveu para ler a obra de Villefranche. Podemos apenas
especular sobre o que poderia ter pensado dela. Sabemos, todavia, o que pensa-
va do livro do doutor d’Espiney e a atitude ambivalente diante daquela obra.17
Os sentimentos contrastantes de Dom Bosco são evidenciados nas cartas
escritas a Du Boÿs ao responder-lhe depois da publicação do livro. Numa
delas, depois de agradecer-lhe pelo “nobre, culto e importante trabalho” que
realizara, acrescentava: “Através da leitura do livro, senti-me muitas vezes
confundido, pois não mereço de modo algum esses louvores. Devem-se à sua
bondade, comprovada de muitas maneiras no passado, que o senhor queira
honrar a nossa humilde Congregação com este eminente trabalho”.18
Com o tempo, Dom Bosco aceitou a publicidade; talvez até lhe agra-
dasse, desde que ela contribuísse para promover a glória de Deus. Em 1885,
ao expressar sua preferência pela obra de Du Boÿs, Dom Bosco disse ao pa-
dre João Branda, diretor da obra salesiana de Barcelona-Sarriá: “Inicialmente
Dom Bosco sentia repugnância ao deixar publicar as coisas que se referiam
a ele; agora, porém, que a sorte foi lançada, é preciso ir adiante. O Du Boÿs
deve ser difundido o quanto mais se puder, vendê-lo, presenteá-lo, se for pre-
ciso, para que se faça conhecer a nossa verdadeira aparência”.19
Mencionou-se anteriormente a preferência pelo realce do miraculoso
nas antigas biografias de Dom Bosco. Ao apresentar agora o padre João Batis-
ta Lemoyne, o biógrafo que contribuiu, mais do que nenhum outro, para a
tradição biográfica de Dom Bosco, será preciso discorrer sobre uma forma de
fazer biografia que recorda a hagiografia medieval. Embora produto do século
XIX, esse modo de fazer biografia encerra uma mentalidade que conserva o
fascínio pelo sobrenatural, embora se sirva, em diversos graus, dos modernos
instrumentos de trabalho. Apesar de recorrer às fontes e à documentação,
esses escritos biográficos ainda prevalecem na tradição hagiográfica.
No caso de Dom Bosco, o propósito básico de Lemoyne consistia em
demonstrar que as graças extraordinárias do céu, além ou até mesmo em con-
tradição com as leis da natureza, atuavam continuamente. Essa era, inclusive,

Cf. P. Cavaglià, Don Bosco, 196-199.


17

Carta de 2 de outubro de 1884, nos arquivos da família Du Boÿs, citada por P. Cavaglià,
18

Don Bosco, 198.


19
MB XVII, 223.596.

43

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Dom Bosco: história e carisma 1

a convicção pessoal de Dom Bosco, igual à dos Salesianos e jovens que o rode-
avam, já que ele pertencia a esse entorno cultural e vivia e trabalhava com essa
mentalidade. Mentalidade que se pode qualificar de “pré-científica”. Há que
se aproximar, então, de todas as primeiras biografias de Dom Bosco, inclusive
a do padre Lemoyne e seus sucessores, com a compreensão exata de suas raízes
medievais, populares e religiosas.20

2. João Batista Lemoyne, biógrafo de Dom Bosco


O projeto de uma biografia e a opção de Lemoyne para o trabalho
Os trabalhos biográficos que acabamos de descrever, embora dignos de elo-
gio, não se comparam ao novo e gigantesco empenho de João Batista Lemoyne.
Lemoyne encontrara-se com Dom Bosco em 1864 quando recém-orde-
nado. Seu trabalho de cronista foi constante, apesar de ter sido nomeado di-
retor do colégio de Lanzo, em 1865, e mais tarde capelão das irmãs Salesianas
em Mornese e Nizza Monferrato (1877-1882). Quando Lemoyne retornou
a Turim em 1883, como secretário geral, Dom Bosco e os Salesianos que o
rodeavam já tinham pensado cuidadosamente na história da Obra Salesiana.
O próprio Dom Bosco dera o exemplo com as Memórias do Oratório, que
descreviam brevemente o processo da sua ação até 1854. Padre João Bonet-
ti seguira-lhe o exemplo, com uma publicação em capítulos da História do
Oratório de São Francisco de Sales no Boletim Salesiano, cobrindo o período
1841-1856.
Ao mesmo tempo, padre Miguel Rua, braço direito de Dom Bosco, que
seria depois seu Vigário com direito de sucessão (1884), percebeu a necessidade
de um trabalho mais amplo e sistemático. A quem confiar o empreendimen-
to? Lemoyne parecia ter qualidades e tempo para ocupar esse lugar. Ele gozava
da reputação bem-merecida de incansável coletor de informação histórica e de
testemunhos sobre Dom Bosco e sua Obra. O serviço de secretário deixava-lhe
“tempo livre”. Era ortodoxo, conservador, digno de confiança, esmerado, e esta-
va devotamente apegado a Dom Bosco. Seus trabalhos anteriores como escritor
constituíam um mérito a mais. Era o homem certo para essa tarefa.21

Cf. P. Stella, Le ricerche, 383.387-388.


20

Em alusão à iniciativa do padre Rua, no prefácio do primeiro volume das Memórias Biográfi-
21

cas, padre Lemoyne escreveu: “Por outro lado, eu tinha ordem do nosso venerando Reitor-Mor padre
Miguel Rua de não omitir nada de quanto viesse ao meu conhecimento porquanto pudesse ser julgado
neste momento de alguma importância” (MB I, p. X).

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Recolhendo a documentação
Padre Lemoyne pôs-se imediatamente a recolher a documentação que,
de algum modo, pudesse contribuir para contar a história de Dom Bosco.
Buscou todos os documentos existentes e acessíveis; para ele, o valor supre-
mo era a “história” narrativa. Estava especialmente interessado em tudo que
favorecesse a finalidade do seu trabalho: ressaltar a grandeza de Dom Bosco.
Como parte da história, tinham precedência as cartas, os relatos de sonhos,
as boas-noites e outras palavras de Dom Bosco. Além disso, para aproveitar
as fontes disponíveis, e com a finalidade de colecionar a maior quantida-
de possível de material, Lemoyne começou a interrogar sistematicamente as
testemunhas; primeira delas, o próprio Dom Bosco. Dessas pesquisas, por
exemplo, chegaram-nos os relatos sobre a mãe de Dom Bosco, Margarida
Occhiena, cuja biografia ele publicou em 1886, e uma considerável quantida-
de de materiais incluídos no primeiro volume dos Documenti e nas Memórias
Biográficas (MB).
Foram levadas também na devida consideração as atas do Capítulo Su-
perior (desde 1859), as atas das reuniões gerais dos diretores salesianos (desde
1864) e as atas dos Capítulos Gerais celebrados durante a vida de Dom Bosco
(1877, 1880, 1883 e 1886). Lemoyne fora o autor dessas atas desde 1883.
Lemoyne utilizou muitas crônicas e muitos memorandos feitos pelos
primeiros Salesianos. Serviu-se também dos relatos de muitas testemunhas
ouvidas no Processo de beatificação de Dom Bosco recolhidos no processo
Ordinário (1890-1897), que estiveram à sua disposição, apesar da natureza
restrita dessa informação.22

Os Documenti de Lemoyne
Após um período de pesquisa e coleta de material biográfico, ainda nas
primeiras etapas do projeto, Lemoyne decidiu organizar a obra em ordem
cronológica, distribuindo-a pelos anos da vida de Dom Bosco e imprimindo-
-as, para sua maior legibilidade. O resultado foi uma série de grandes e grossos
volumes — chegaram a 45 — que trazem o título Documenti (documentos).23

22
Cf. F. Desramaut, Memorie, 218-219; P. Stella, Canonizzazione, 111-112. Os clérigos salesianos
do Colégio de Valsalice dedicaram-se à transcrição das declarações sob a supervisão do padre Barberis.
23
Documenti per scrivere la storia di don Giovanni Bosco, dell’Oratorio di San Francesco de Sales
e della Congregazione Salesiana. Impressos para uso pessoal em San Benigno Canavese ou em Turim-

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os 40 primeiros volumes dos Documenti contêm material distribuído cronolo-


gicamente ao longo dos anos 1815-1890. A eles acrescentaram-se outros qua-
tro volumes que recolhiam material adicional abrangendo o mesmo período.
O último volume contém material relativo ao conflito entre Dom Bosco e o
arcebispo de Turim, dom Gastaldi.
Ao longo do tempo foram acrescentados outros materiais, pois cada pá-
gina contém apenas uma coluna, impressa separadamente e unida à página
em branco da folha de registro. Esta coluna, com apenas seis centímetros de
largura, deixa grande espaço para acréscimos posteriores, anotações, recortes
de periódicos, artigos de revistas etc. Com o tempo, alguns destes volumes
assumiram o aspecto de um álbum de recortes.
Lemoyne afirmava no prefácio dos Documenti:

Escrevi a história do nosso amantíssimo pai Dom Bosco. Não creio que
tenha existido homem algum que mais amou a juventude e fosse amado
por ela. Reuni, não só tesouros admiráveis de fatos, palavras, trabalhos e
dons sobrenaturais como também incluí pequenos episódios que pode-
riam parecer sem importância, mas que, sem dúvida, ajudarão a formar
um juízo historicamente favorável sobre Dom Bosco e seu caráter. Não
omiti nada que me tenha chamado a atenção, já que tudo o que tivesse a
ver com ele era-me carinhosamente querido. São recortes de um álbum,
talvez desordenado; contudo, um índice ajudará sua consulta. Algumas
notícias são repetidas. As provas tipográficas não foram corrigidas ade-
quadamente. Isso se deve ao enorme trabalho de buscar e organizar os
documentos e atende, ao mesmo tempo, às ocupações que a obediência
ou a necessidade me impuseram. O tempo era essencial. Algumas passa-
gens careciam de correção crítica, especialmente aquelas que se referem
aos sonhos de Dom Bosco ou às predições sobre o futuro; porque se tem
a impressão de que a sua modéstia lhes deu certo relevo, ou talvez porque
não tenham sido corretamente entendidos por aqueles que conservaram
o relato ou a memória dos fatos. De minha parte, fiz constar com exa-
tidão o que muitos jovens, padres e seminaristas do Oratório deram-me
por escrito e o que eu mesmo vi e ouvi dos lábios de Dom Bosco. Acres-
centaria uma palavra de advertência. Estas provas tipográficas não são
mais do que um manuscrito, uma lembrança pessoal. Nelas, refiro-me a
muitas pessoas pelo nome, com a finalidade de estabelecer o caráter efe-

-Valdocco, a partir de 1885: ASC A 006-007: Chronachette-Lemoyne-Doc, FDB 966 A8 - 1.201 C12.
Os volumes estão encadernados com tecido preto, com o título em dourado no dorso.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

tivo dos fatos da história. Entretanto, proíbo absolutamente a publicação


desses nomes [...]. Trabalhei nesta obra por amor a Dom Bosco, aos meus
irmãos e aos nossos jovens. Estes volumes contêm o próprio espírito de
Dom Bosco, o seu coração, o seu método de educação, e só Deus sabe o
que me custou. Por conseguinte, peço aos meus irmãos que lerem estas
páginas que se lembrem de mim diante do altar de Maria Auxiliadora dos
cristãos e peçam pelo descanso eterno de minha alma.24

Destas palavras, como do título, brota a conclusão de que Lemoyne pre-


parava este trabalho como passagem intermédia que servisse de base, a ele e
aos seus eventuais sucessores, para uma biografia de Dom Bosco que tomaria
a forma das Memórias Biográficas.

As Memórias Biográficas: a etapa de Lemoyne


Lemoyne começou a impressão reservada dos Documenti por volta de
1885. À sua morte, em 1916, a série inteira de 45 volumes estava completa.
Após a morte de Dom Bosco, em 31 de janeiro de 1888, Lemoyne exa-
minou os papéis do Santo, descobrindo mais documentos originais. Fizeram-
-se pesquisas, não exaustivas, em diversos lugares relacionados à vida de Dom
Bosco e de sua obra. Padre Rua pediu aos irmãos que enviassem qualquer
material sobre Dom Bosco que pudessem obter diretamente ou de testemu-
nhas oculares.
Para reunir todo o material adicional à disposição, os Documenti pre-
cisariam ser reeditados ou, então, acrescentar novos volumes. Além disso,
aconteciam mudanças sociais e institucionais no interior da Congregação
Salesiana. Com a morte do Fundador, a conservação e a transmissão do seu
espírito converteram-se na prioridade mais importante da primeira década
do reitorado do padre Rua (1888-1910). Lemoyne não demorou a perceber
essa alteração e adequar-se a ela. Nesse contexto, ele passou do seu propó-
sito original de criar um depósito de documentos para os futuros biógrafos
(os seus Documenti) ao projeto das Memórias Biográficas, certamente com
o consentimento do padre Rua. Reelaborando o trabalho e acrescentando
novos materiais aos Documenti, começou a trabalhar numa ampla narrativa
biográfica escrita em ordem cronológica e amplamente documentada. O tra-
balho é, na verdade, um repertório, uma compilação organizada em forma
de narração continuada que apresenta uma “interpretação” coerente da vida,
obra e espírito do Fundador.

24
Documenti I, 1, FDB 966 A 10.

47

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os primeiros 8 volumes das Memórias Biográficas apareceram entre 1892


e 1912. Apesar da saúde precária, Lemoyne continuou a trabalhar no seu
projeto até a morte, em 1916. O volume IX foi publicado depois da sua mor-
te, em 1917. Por sua vez, o volume X, que recebera de Lemoyne sua forma
original, foi confiado ao padre Ângelo Amadei, mas a publicação foi adiada
por muitos anos.

As Memórias Biográficas: a etapa Amadei-Ceria


São muitas as razões que explicam o pouco êxito e a demora dessa
publicação: o trabalho de Amadei no Boletim Salesiano, sua pesquisa para
escrever uma biografia do padre Rua, seus numerosos trabalhos sacerdo-
tais, seu modo de trabalhar reflexivo e meticuloso e, de modo especial, o
fato de o volume X abranger os anos mais difíceis e controvertidos da vida
e da obra de Dom Bosco (1871-1874).25 Além disso, Amadei serve-se de
materiais de arquivo e outros documentos de maior alcance que os Docu-
menti de Lemoyne e o projeto inicial. O material de Lemoyne foi comple-
tamente refundido e dotado de uma reorganização temática. Decorre daí
que o volume perdesse sua organização cronológica linear e o encanto da
“história” de Lemoyne.
A publicação das Memórias Biográficas, então, foi descontínua após
a morte de Lemoyne, para grande decepção dos Salesianos do mundo
todo. Nos dias da beatificação de Dom Bosco (1929) essa decepção con-
verteu-se em impaciência, e os pedidos de continuação do trabalho não
podiam ser desatendidos por mais tempo. Por isso, o Reitor-Mor, padre
Felipe Rinaldi, nomeou padre Eugênio Ceria para continuar a obra. Ce-
ria trabalhou com diligência ao longo da década de 1930 e completou
um volume a cada ano, de 1930 a 1939 (volumes XI-XIX). Ampliou,
também, o material dos Documenti com muita documentação. E voltou
ao formato “histórico” cronológico de Lemoyne, com um estilo ameno
e fácil de ler.26
Mais tarde, em 1939, foi publicado o volume X, último a ser editado
dentro da série. Assim, a monumental empresa chegou à sua conclusão.

25
Cf. prefácio de Amadei: MB X, p. IV-VI.
26
Cf. Eugenio Valentini, “Don Ceria scrittore”, Salesianum 19 (1957), 325.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

ESQUEMA DA PUBLICAÇÃO HISTÓRICA DAS


MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS NA EDIÇÃO ORIGINAL ITALIANA

Autor Volume - Páginas Anos tratados Ano da publicação


Lemoyne I - 547 1815 - 1841 1898
Lemoyne II - 597 1841 - 1847 1901
Lemoyne III - 663 1847 - 1850 1903
Lemoyne IV - 766 1850 - 1853 1904
Lemoyne V - 953 1854 - 1857 1905
Lemoyne VI -1.102 1858 - 1861 1907
Lemoyne VII - 931 1862 - 1864 1909
Lemoyne VIII - 1.110 1865 - 1867 1912
Lemoyne IX -1.032 1868 - 1871 1917 (póstumo)
Amadei X - 1.387 1871 - 1874 1939
Ceria XI - 617 1875 1930
Ceria XII - 706 1876 1931
Ceria XIII – 1.010 1877 - 1878 1932
Ceria XIV - 849 1879 - 1880 1933
Ceria XV - 867 1881 - 1882 1934
Ceria XVI - 724 1883 1935
Ceria XVII - 902 1884 - 1885 1936
Ceria XVIII - 879 1886 - 1888 1937
Ceria XIX - 452 1888 - 1938 1939 (janeiro)
Total 16.094 páginas

Conclusão
O método dos biógrafos de Dom Bosco e o valor histórico das Memórias
Biográficas serão comentados a seguir. Aqui, basta dizer, como conclusão, que
Lemoyne e seus sucessores deram à luz uma história edificante e fiel para a
Família Salesiana. Foi assim que, sem exceção, os Salesianos que conheceram
Dom Bosco perceberam e reconheceram o trabalho de Lemoyne. Padre Albe-
ra, Reitor-Mor de 1910 a 1921, revisou pessoalmente as provas tipográficas
de Lemoyne antes da publicação, com exceção do volume VIII, que foi exa-
minado pelo padre Júlio Barberis.
A obra não é, absolutamente, uma biografia crítica. Por conseguinte,
uma nova geração de historiadores salesianos ocupou-se em colocar as ba-
ses dos conhecimentos críticos. Uma das finalidades dos estudos salesianos

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Dom Bosco: história e carisma 1

contemporâneos consiste em construir uma biografia completa de Dom


Bosco, de modo crítico e com rigor. A condição prévia é o exame crítico
consciencioso das fontes e dos escritos que nos foram legados pela tradição,
incluídas, com certeza, também as Memórias Biográficas.27
O Centro de Estudos Dom Bosco, criado pelo padre Pedro Stella na
Universidade Pontifícia Salesiana de Roma, e o Instituto Histórico Salesia-
no, fundado na Casa Geral de Roma, sob a direção de estudiosos salesianos,
deram significativas contribuições a este projeto. O Instituto Histórico Sale-
siano dedica-se, como indicado em seus estatutos, à edição crítica e ao estudo
de outros materiais de arquivo que no futuro possam servir como base para
uma biografia crítica completa. Francis Desramaut, do Centro de Estudos
Salesianos de Lyon, França, publicou sua mais importante pesquisa crítica
numa substanciosa biografia com cerca de 1.500 páginas.28 O melhor estudo,
porém, realizado até hoje sobre bases críticas foi feito por Pietro Braido em
sua magnífica obra: Dom Bosco padre dos jovens no século da liberdade, em dois
volumes respectivamente de 616 e 743 páginas.29
Embora tenha havido e haja opiniões diversas sobre a confiabilidade
histórica das Memórias Biográficas, esta obra, em seu conjunto, permanece
como ponto indispensável de referência.30

27
Cf. P. Braido, Perspectivas, 537-546.
28
Francis Desramaut, Don Bosco en son temps (1815-1888). Turim: Società Editrice Interna-
zionale, 1996.
29
Pietro Braido, Dom Bosco padre dos jovens no século da liberdade. São Paulo: Salesiana, 2008.
30
Notem-se os títulos seguintes sobre o tema. Em defesa de Lemoyne, veja-se Ceria, Prefácio a MB
XV, 5-12; Prefacio a MB XVIII, 8-10; e em “Carta ao Diretor do Estudantado Teológico de Bollengo sobre
o Valor das Memórias Biográficas”, Turim, 9 de março de 1953. Na mesma categoria está a mais extensa apo-
logia, de Guido Favini, Don G. B. Lemoyne, Salesiano di Don Bosco: biografo onesto (Primo grande biografo
di Don Bosco), Turim: Scuola Grafica Salesiana, 1874. Um breve estudo erudito sobre a mesma questão
serve de introdução à edição crítica do texto de 20 cartas de Lemoyne: Pietro Braido - Rogelio Arenal
Llata, “Don Giovanni Battista Lemoyne attraverso 20 lettere a don Michele Rua”, RSS 7 (1988), 87-170.

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Apêndice

BREVE CRÔNICA DA Historiografia DE DOM BOSCO31

Como qualquer outra literatura, é natural que também a que se refere a


Dom Bosco precisou submeter-se às leis da história e da vida, especialmente
à lei da evolução. Ao se querer fazer brevemente uma crônica da historiografia
salesiana devem-se assinalar três períodos.

1. O primeiro, e mais longo, é o período inicial (1860-1960), que


chegou ao seu apogeu com os escritos que apareceram na época da
beatificação e da canonização, tendo as Memórias Biográficas como
ponto de referência.
2. O segundo período, mais breve (1960-1982), surgido, pode-se
dizer, durante o imediato pós-Concílio Vaticano II, serviu para o
estudo e a reflexão da história salesiana dos critérios científicos
próprios do momento histórico. A produção do padre Pedro Stella
é, sem dúvida, o principal ponto de referência.
3. O último período (mais ou menos a partir de 1983) que, sem aban-
donar o critério científico da fase anterior, caracteriza-se pela gran-
de atenção dada à pesquisa e à edição crítica das fontes, realizadas
principalmente pelo Instituto Histórico Salesiano (ISS), de Roma.

1. A historiografia antiga, uma “narração histórica” (1860-1960)


Inspirada na leitura teológico-episódica e taumatúrgica da vida e da obra
de Dom Bosco, esta historiografia que se poderia definir como historiografia
analítica, narrativa, comemorativa, brotou da convicção, respeitável e funda-
mental, da importância decisiva da experiência salesiana, surgida e consolida-
da durante a vida do Fundador.

31
Este resumo foi tomado do artigo de F. Motto, Una breve introducción, 57-82.

51

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Dom Bosco: história e carisma 1

Viu a luz no mesmo ambiente de Valdocco, quando alguns jovens Sale-


sianos, convencidos de que “algo extraordinário” estava acontecendo diante
de seus olhos, constituíram-se, em 1860, numa “sociedade” para recolher e
controlar colegialmente tudo que se relacionasse com a vida e a atividade
de Dom Bosco: “Os grandes e luminosos dotes que resplandecem em Dom
Bosco, os fatos extraordinários que aconteceram e que todos nós admiramos,
seu modo singular de dirigir a juventude pelo árduo caminho da virtude, os
grandes projetos futuros que ele demonstra estar cogitando revelam-nos que
há algo de sobrenatural nele e nos fazem pressagiar dias mais gloriosos para
ele e para o Oratório. Isso nos impõe como dever de gratidão a obrigação de
impedir que venha a cair no esquecimento tudo o que se relacione com Dom
Bosco, e fazer o que estiver ao nosso alcance para conservar sua memória, de
forma que resplandeça como raio de luz e ilumine o mundo todo para o bem
da juventude. Esse é o objetivo da sociedade que nós criamos”.32 Eles também
queriam documentar-se o mais possível sobre os acontecimentos do passado,
dos quais, evidentemente, não podiam ser testemunhas presenciais.
A sociedade, embora iniciada sob a direção do padre Rua, teve vida
curta. Sob sua orientação, porém, surgiram crônicas, memorandos, anais,
recordações, declarações redigidas pelas próprias “testemunhas”. São as “cro-
nachette” (pequenas crônicas), conservadas no Arquivo Salesiano Central, e
que confluíram depois nas Memórias Biográficas; nelas, o aspecto do “extraor-
dinário” incidiu muito na seleção e na coleta do material documental, acom-
panhando Dom Bosco, que também acentuava este aspecto nas Memórias do
Oratório escritas por ele na década de 1870.
Ao lado desses manuscritos, vivendo ainda Dom Bosco, surgiram outras
publicações, das quais se falará mais adiante, como as de Carlo d’Espiney,
Alberto Du Boÿs, João Bonetti, Jacques-Melchior Villefranche, João Batista
Lemoyne etc. Seguiram-se depois os Documenti recolhidos por Lemoyne e
as Memórias Biográficas, a cargo de três conhecidos compiladores: Lemoyne,
Amadei e Ceria.
Enquanto isso, o Boletim Salesiano, publicado em várias línguas, conti-
nuava a apresentar de forma entusiasta a atividade de Dom Bosco e dos Sa-
lesianos. Dom Bosco era sempre proclamado “um prodígio do século XIX”,
“um dos raros homens que a Providência dá à Igreja ao longo dos séculos”...
Admirava-se seu poder de iniciador de um movimento que, em todas as
partes e situações, em todos os contextos e sob todos os céus, continuava a
expandir-se a serviço da obra juvenil ou popular. Os Salesianos do mundo
inteiro sentiam-se instrumentos de um vasto programa concebido por Dom
32
ASC A008: Cronaca Ruffino 1861-1864, 1-3.

52

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Bosco e abençoado pelo Céu. Dom Bosco era celebrado, admirado e amado
nos passos de Salesianos simpáticos, competentes, dotados para o trabalho
missionário com os mais humildes.
Estudiosos de sociologia, pedagogia e ciências históricas foram se inte-
ressando, embora lentamente, pelo fenômeno Dom Bosco durante os anos
entre as duas grandes guerras. O educador de Turim era admirado por reno-
mados estudiosos como Salvemini,33 como apóstolo da caridade, expressão da
“Itália mística”. Por ocasião da canonização em pleno período fascista, a figu-
ra do “mais italiano dos santos e o mais santo dos italianos” foi instrumen-
talizada politicamente. Com a inserção de Dom Bosco entre os pedagogos
católicos propostos na escola, iniciou-se nessa época uma notável literatura
histórica e pedagógica, mas que durou apenas cerca de trinta anos. Ao mesmo
tempo, pedagogos estrangeiros, sobretudo na Alemanha, interessaram-se pela
pedagogia salesiana e contribuíram com exposições teóricas independentes,
que nada tinham a ver com as contingências nacionais, com as leituras con-
fessionais ou com as instrumentalizações fascistas.

Um juízo de valor
Até a década de 1950, os esquemas históricos mais comuns na menta-
lidade dos Salesianos eram os que dependiam do documento, valioso sem
dúvida, das Memórias do Oratório. Dom Bosco era apresentado como “ins-
trumento do Senhor, segundo as necessidades do seu tempo”, em favor da
juventude pobre e abandonada. “Desígnios da Providência, caminhos do
Senhor, sonhos proféticos”: tudo era visto a partir dessa ótica. Na trilha dos
documentos de Valdocco, cheios de pathos, particularmente sensíveis ao fas-
cínio do personagem, embora preocupados com a objetividade histórica, a
maior parte dos escritos sobre Dom Bosco e as “vidas” de outros Salesianos
(Rua, Cagliero, Albera etc.) colocou-se entre a crônica pormenorizada e as
intervenções miraculosas, entre os dons da graça e sua correspondência. A
expansão da obra salesiana pelo mundo era sinal evidente da bênção de Deus
sobre a Congregação.
A figura de Dom Bosco teve enorme ressonância no mundo inteiro a par-
tir da década de 1920 e, sobretudo, depois da apoteose da canonização na
basílica de São Pedro, em 1934. Dado o tom dominante de aclamação do per-
sonagem, caiu-se em ilusões óticas que converteram Dom Bosco no inicia-
dor dos Oratórios de Turim, inventor da escola noturna, primeiro divulgador
do sistema métrico decimal, primeiro autor de contratos para aprendizes etc.

33
G. Salvemini, Lezioni di Harvard. Milão: Feltrinelli, 1966.

53

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Dom Bosco: história e carisma 1

Chegou-se a criar o mito de Dom Bosco precursor de tudo, que soubera “criar”
tudo do nada.
Por outro lado, convertido em “figura legendária”, Dom Bosco foi con-
siderado, com justiça, um santo popular; aumentaram as práticas de devoção
entre as classes populares, pois ele era recebido como personagem e aconteci-
mento significativos. Em meio ao otimismo dos últimos decênios do século
XIX e os primeiros do século XX, os católicos, conscientes de suas forças e
da eficácia de suas intervenções, viram em Dom Bosco um precursor de suas
atuações. Além disso, a literatura “dombosquiana” do tempo oferecia docu-
mentos históricos de notável valor, embora não só porque alimentada pelo
conhecimento direto de Dom Bosco.
Há que se reconhecer a honestidade a toda prova dos primeiros bió-
grafos ou compiladores de memórias, pelo rigor e o cuidado que tiveram de
transmitir à geração seguinte tudo o que tinham como “verdadeira” história
de Dom Bosco.
Dito isto, deve-se acrescentar ainda que não se tratava de uma “história”,
nem como esta era entendida no final do século XIX, historiografia positi-
vista e historicista, nem, muito menos, como se entende hoje. O fascínio
do personagem levara a negligenciar a realidade do ambiente em que vivera
Dom Bosco, as forças vivas e operantes do seu tempo, o contexto em que
estivera inserido como iniciador, organizador e gerador de obras, muitas vezes
já existentes ou em vias de realização também por outros.
Única voz fora do compasso foi a de um estudioso salesiano, padre
Borino que, poucos anos depois da canonização de Dom Bosco, criticou
a apresentação do Santo em chave exclusivamente episódica, taumatúrgica,
teológica, edificante, como “colcha de retalhos de memórias” ou, pior ainda,
predominantemente retórica. Ansiava-se pelo surgimento de um “afortunado
autor” que pudesse ter a tríplice fortuna de “uma completa informação, uma
plena liberdade para escrever e certa sensibilidade artística: a arte de saber
imaginar bem e saber escrever bem”.34

2. A nova historiografia salesiana (1960...)


As gerações de novos Salesianos começaram a manifestar na década de 1950
uma viva inquietação quanto à literatura hagiográfica do passado. Ressentia-se da
falta de um estudo do Fundador que não pretendesse tanto a edificação do leitor,
quanto a veracidade da figura de um homem santo em todos os seus múltiplos
34
G. B. Borino, Don Bosco, sei scritti e un modo di vedere. Turim, 1938.

54

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A tradição biográfica de Dom Bosco

aspectos. Ou seja, sentia-se a necessidade de promover a revisão da história de Dom


Bosco, que fosse filologicamente atenta, endossada pelas fontes e feita historica-
mente segundo uma metodologia atualizada. Os estudantes salesianos de Bollengo
começaram a questionar o valor histórico das Memórias Biográficas. Perguntava-se
se o padre Lemoyne não teria sido mais um novelista histórico do que um bió-
grafo; se muitos fatos poderiam resistir a uma crítica rigorosa; se Dom Bosco, em
suas Memórias, não teria acrescentado ou modificado alguns acontecimentos com
motivação pedagógica; se os volumes das Memórias Biográficas, escritos pelo padre
Lemoyne, também os preparados pelo padre Ceria, eram plenamente históricos e
não só encomiásticos e laudatórios. O velho padre Ceria precisou empenhar-se a
fundo para responder em seu nome e no de seus “colegas”, mas sem pleno sucesso.
Estudiosos sérios e bem formados nas ciências históricas se perguntavam
que sentido tiveram algumas ideias de Dom Bosco no contexto em que surgi-
ram e qual o significado delas nos anos do Concílio. Como qualquer conceito
histórico, também as ideias e realizações de Dom Bosco relacionavam-se com
o ambiente sociocultural em que surgiram e, embora mantivessem para os
Salesianos um “núcleo” válido constante, era preciso “interpretá-las”, expres-
sando-as em linguagem nova, “moderna”.
Os espíritos mais críticos dos inícios da década de 1960 começaram a
ver clara uma dualidade de elementos: o elemento substancial/permanente e
o elemento relativo/variável, ambos necessariamente presentes no “carisma”
de Dom Bosco. Ao longo de décadas, os Salesianos e também seus historia-
dores, conservaram mesclados o relativo e o essencial. Seria preciso rever a
leitura de Dom Bosco em sintonia com a acelerada evolução dos ambientes
socioculturais, pois a distância cultural em relação aos tempos de Dom Bosco
aumentava sempre mais.
Impunha-se a consciência de se ter uma melhor definição da própria
figura histórica de Dom Bosco segundo os novos critérios historiográficos.
Já não era aceitável um Dom Bosco “ilha” no “mar” do seu tempo; a fim de
entendê-lo em profundidade, seria preciso examinar com atenção a maneira
como ele vivera concretamente suas convicções, seus valores, sob quais in-
fluências ele trabalhara, quais as reações coletivas e pessoais produzidas com
sua atuação. Em outras palavras, seria preciso conferir suas ideias e estruturas
mentais em relação aos diversos níveis da sua vida e ação.
A leitura teológica das fontes devia ser completada com a social, eco-
nômica e política, e conduzida com métodos adequados. Não era possível
explicar Dom Bosco por inteiro só com a intervenção sobrenatural; seria pre-
ciso levar em conta também os elementos e fatores naturais, como a explosão
demográfica, a industrialização incipiente, a mortalidade precoce que deixava

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Dom Bosco: história e carisma 1

muitos órfãos, o abandono dos filhos pelos pais devido ao trabalho, as classes
emergentes, o aumento do clero, a demanda do emprego juvenil..., todos “fa-
tos” que não podiam ser levados adequadamente em consideração até então.
Enfim, a historiografia devia situar Dom Bosco num quadro complexo, mais
amplo daquele no qual havia sido proposto até o momento.
O novo clima cultural do final da década de 1960, mediante avaliações,
orientações e instrumentos modernos de pesquisa, compartilhados com a
mais séria ciência historiográfica, levou ao aprofundamento do conhecimen-
to de Dom Bosco e do patrimônio herdado, individualizou-se o significado
histórico do personagem e da sua mensagem e foram identificados os inevitá-
veis limites pessoais, culturais, institucionais que, de forma quase paradoxal,
simbolizaram (e ainda simbolizam) as condições de vitalidade no presente e
no futuro.
Uma nova historiografia veio a surgir, então, graças a alguns estudos
decisivos, sobretudo de Francis Desramaut, para a pesquisa filológica e lite-
rária das Memórias Biográficas, de Pietro Braido, para a dimensão educativa
(Roma, 1964), e de Pietro Stella, para a reinterpretação global do persona-
gem.35 A historiografia precedente, fruto delicado de um momento histórico,
a ser respeitada e utilizada, era considerada como um entre muitos outros
materiais à disposição do historiador para voltar a repensar os fatos e inter-
pretá-los segundo os métodos em voga no mundo científico daqueles anos.36

Um juízo de valor
A “nova historiografia”, superando brilhantemente os limites da histo-
riografia anterior, libertou Dom Bosco dos angustos limites da esfera salesiana
de referência introduzindo-o no circuito da comunidade dos pesquisadores,
eclesiásticos e civis. A reconstrução histórica do personagem Dom Bosco, da
sua atuação entre os homens do seu tempo, com as qualidades e limitações
pessoais e no interior das coordenadas socioculturais e políticas do tempo,
reproduziram suas dimensões humanas e cristãs, oferecendo uma imagem
mais completa e mais verossímil: um santo, filho do seu tempo, ao qual deu
muito, mas do qual também recebeu muito.

35
P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, 3 vols. Roma: LAS, 1969-1988; id.
Don Bosco nella storia economica e sociale 1815-1870. Roma: LAS, 1980.
36
É sintomático que os estudos pioneiros de P. Stella, incluído no título, tenham preferido não
apresentar o protagonista como “poderoso e solitário”, mas em seu contexto preciso, colocando-se
assim nos antípodas dos critérios adotados pelo padre Ceria, que escrevia: “Antes de tudo, renunciei a
qualquer veleidade de enquadrar a vida do Beato no cenário dos tempos que foram os seus” (MB XI, 7).

56

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Entretanto, os resultados da nova historiografia encontraram e continu-


am a encontrar não poucos obstáculos para serem aceitos dentro do ambiente
salesiano e fora dele. Não faltou quem falasse de demitização do santo educa-
dor, de um perigoso questionamento dos episódios com maior carga de sim-
bolismo salesiano, de reducionismo da “nova historiografia”, uma vez que, a
seu juízo, prescinde da santidade de Dom Bosco e do seu carisma fundacio-
nal. Não é fácil, certamente, mudar de mentalidade quem cresceu à sombra
das míticas Memórias Biográficas, ou, o que é pior, de uma hagiografia adoci-
cada e de sensacionalismo milagreiro, de biografias edificantes carregadas de
sagrados malefícios e excessivamente indulgentes com o extraordinário.
Tratava-se, porém, de um caminho sem volta. Por isso, na década de
1980, o Capítulo Geral decidiu pela fundação do Instituto Histórico Sale-
siano que, continuando os passos da historiografia precedente, continuasse a
disponibilizar os documentos do rico patrimônio espiritual deixado por Dom
Bosco e ampliado pelos seus continuadores de forma ideal e tecnicamente vá-
lida, e promovesse de forma mais congruente o seu estudo, comprovação e
difusão, mediante várias coleções: Fontes, Estudos, Bibliografia.

3. As edições críticas das fontes e da história da


Congregação (1982...)
Ponto de partida e exigência inevitável de qualquer estudo crítico é, sem
dúvida, a disponibilidade de fontes, apresentadas na maneira mais correta e
confiável possível, depuradas de erros de interpretação e distorções involun-
tárias que, concretamente, são frequentes em obras narrativas hagiográficas.
A partir de 1960, a melhor historiografia conseguira superar o que, à
primeira vista, as fontes ofereciam à leitura superficial, mas não pudera fazer
a revisão dos documentos, ainda não disponíveis em edições críticas. Não é
casual que os estudos históricos mais consistentes e válidos dos últimos vinte
anos sejam obra de pesquisadores que trabalharam longamente sobre docu-
mentos originais conservados nos arquivos de Turim e de Roma.
Nesse sentido, havia muito a caminhar. Tratava-se de recuperar o maior
número possível de fontes, não só conservadas no Arquivo Salesiano Cen-
tral de Roma, como em muitos outros arquivos. Atualmente, a classificação
e reorganização dos arquivos periféricos salesianos, a consulta aos arquivos
públicos e privados, que se tornou possível pela colocação à disposição de in-
ventários e repertórios impressos ou digitalizados, a maior disponibilidade de
pessoal, salesiano ou não, para trabalhar no setor das edições críticas permitiu

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Dom Bosco: história e carisma 1

um notável enriquecimento das fontes para a pesquisa historiográfica; esta,


graças também aos modernos instrumentos de comunicação e reprodução,
tornou-se mais acessível hoje do que no passado, mesmo recente.
Já estão à disposição de todos na forma impressa, e muitos também
on-line, quase todos os principais escritos pedagógicos e espirituais de Dom
Bosco em edições críticas, garantidos em sua autenticidade e valor, permi-
tindo a indispensável e, às vezes, também sofisticada análise filológica. Esse
material todo, recuperado há pouco ou muito tempo, e escrupulosamente
apresentado agora, permite pesquisas de grande valor e originalidade.
A historiografia salesiana não se deteve em Dom Bosco, mas estendeu-
-se ao estudo do ambiente, dos Salesianos que trabalharam com ele, da sua
formação, da sua correspondência epistolar com o Fundador. Foram publi-
cados os epistolários de Dom Bosco, do arcebispo Fransoni, dos missionários
padres Francisco Bodrato, Domingos Tomatis e Luís Lasagna, dos visitadores
na América, padres Paulo Albera e Calógero Gusmano, além das circulares e
dos programas do padre Francisco Cerrutti.
Deve-se assinalar, juntamente com o Instituto Histórico Salesiano de
Roma, a importância da ACSSA (Associação dos Cultores de História Sa-
lesiana), que atua no mundo todo e, com sensibilidade histórica, tem pro-
movido interessantes estudos através de congressos e seminários celebrados
periodicamente, cujas atas são recolhidas em volumes e nas coleções mantidas
por essa Associação.

Sem retorno..., para o futuro


Mais de quarenta anos depois do Concílio, deve-se aceitar, em primeiro
lugar, que a pesquisa histórica e crítica da experiência humana e espiritual
de Dom Bosco, embora com limites, fez progressos notáveis no intento de
mostrar a verdadeira face de Dom Bosco e sua real grandeza de homem, de
educador, de promotor de inúmeras obras a serviço dos jovens e das classes
populares, de santo.
É também lógico não ter sentido conferencistas, hagiógrafos, pregadores,
escritores, periodistas, superiores, capítulos gerais e inspetoriais continuarem
a se servir de textos não comprovados criticamente, às vezes inseguros, muitas
vezes retocados e interpolados. Quem o faz cai em leviandades, enganos ou
falsas atribuições que se acreditava já superadas há tempo.
À luz dos estudos dos últimos cinquenta anos, deveria ser evidente a
todos que a fidelidade a Dom Bosco é algo muito diferente da constan-
te citação de episódios das Memórias Biográficas, sem diligências culturais

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A tradição biográfica de Dom Bosco

intensas e preventivas. As legendas áureas de Dom Bosco devem dar lugar


à pesquisa científica, que não só não é um obstáculo ao conhecimento de
Dom Bosco, mas, muito mais, ajuda a descobrir, para fazê-la nossa, a tensão
que ele viveu entre o ideal e a realização, entre o sentido do moderno que
ele intuiu e a encarnação dessa intuição no tecido social em que precisou
trabalhar. O próprio Reitor-Mor, padre Pascual Chávez, percebeu o perigo
da difusão de uma imagem de Dom Bosco na Congregação segundo lugares
comuns, episódicos, e pediu repetidamente aos Salesianos que o conheçam
como mestre de vida, fundador, educador, legislador.37
A figura poliédrica de Dom Bosco deve ser repensada e, sobretudo, ree-
laborada segundo os modelos cognoscitivos utilizados atualmente; há que se
revisitá-la continuamente, mediante metodologias sempre mais perspicazes e
atualizadas no contexto da história, recorrendo também às ciências hoje dispo-
níveis, como a antropologia cultural, a pedagogia, a sociologia, a economia etc.
A história caminha, e o mesmo acontece com a historiografia. Cabe à
Família Salesiana atualizar seus membros no desenvolvimento da historiogra-
fia “dombosquiana” e contribuir, dessa forma, para ampliar os horizontes de
compreensão com o estudo dos personagens de primeiro plano que o ajuda-
ram em sua ação fundacional ou estenderam a sua obra nos diversos países
ou ambientes; diga-se o mesmo da história das obras salesianas surgidas sob o
impulso do carisma salesiano.
Cabe aos estudantes de “salesianidade” preparar-se com instrumentos
novos e adequados para a compreensão correta do patrimônio documental
que herdaram e oferecer a todos uma rigorosa imagem histórica de Dom
Bosco e da sua obra e, principalmente, uma versão carregada de propostas e
questionamentos, que correspondam à nossa bagagem científica e, em espe-
cial, às interpelações da cultura emergente em cada momento histórico.

NOTAS BIOGRÁFICAS DOS AUTORES DAS


MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

João Batista Lemoyne (1839-1916)38

37
Pascual Chávez, “‘Da mihi animas, cetera tolle’: Identidade carismática e paixão apostólica”,
ACG 394 (2006).
38
Ainda não foi escrita uma crítica biográfica séria sobre Lemoyne. Podem-se ver: Eugenio Ceria,
Don G. B. Lemoyne, em Profili dei Capitolari Salesiani morti dal 1865 al 1950, Colle Don Bosco (Asti):
LDC, 1952, 382-400; Lemoyne, Giovanni Battista, em Dizionario Biografico dei Salesiani, 166ss.; P.
Braido; R. Arenal Llata, Lemoyne, 87-170 (resumo crítico); F. Desramaut, Memorie, 29-46.

59

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Dom Bosco: história e carisma 1

Primeiros anos
João Batista Lemoyne nasceu em Gênova, Itália, em 2 de fevereiro de
1839; era o mais velho dos seis filhos de Luís, médico de certo nível, e da
condessa Ângela Prasca. A família provinha de Châlons-sur-Marne, França,
de onde fugira havia duas gerações, antes do início do Reino do Terror, e
vivia em situação tranquila. Luís Lemoyne, além de manter uma rica clien-
tela, ocupava posições importantes na medicina, primeiramente na cidade e,
depois, no restante da província de Gênova.
Não se sabe muito da infância e juventude de João Batista ou de sua vida
familiar e educação dos primeiros anos. O pouco que se sabe encontra-se, so-
bretudo, em cartas familiares que chegaram até nós entre seus documentos pes-
soais. Parece que manteve estreita relação com os irmãos Vicente e Inácio, e que
gostava muito da irmã, Maria Bianca. Contudo, três pessoas teriam exercido, de
maneira particular, uma influência maior em sua infância: a avó, a mãe e o pai.
O ambiente cultural do entorno da família Lemoyne serviu de estímulo a
João Batista através dos estudos primários e secundários. Em 1856-1857, aos 17 e
18 anos, concluiu brilhantemente o Bacharelado e o Magistério (o que equivalia,
aproximadamente, ao grau universitário e ao diploma de professor). Não demorou
muito para vestir o hábito clerical e pedir para entrar no seminário de Gênova.

A formação do seminário e a ordenação sacerdotal


Parece que os cinco anos de teologia no seminário (1857-1862) foram
uma experiência ambígua para ele. Diversamente dos seminários do Piemon-
te, o de Gênova mantinha-se mais na tradição benigna em relação à teologia
e à prática pastoral. Presumimos, por isso, que João Lemoyne, ao contrário de
Dom Bosco, não precisou superar grandes preconceitos rigoristas. Não obs-
tante, parece ter sentido a disciplina do seminário excessivamente restritiva.
Numa anotação do diário de 18 de outubro de 1860, ele fala de pequenas
regras sem importância “promulgadas” pelo Reitor.
Recém-ordenado padre, pensava ingressar numa congregação religiosa,
do que desistira. Escreve numa memória pessoal: “Agora que deixei o semi-
nário e consegui minha liberdade (embora admita ter passado alguns anos
felizes) acreditas que vou encerrar-me outra vez entre quatro paredes?”.39
Como seminarista, João Batista Lemoyne foi modelo exemplar de di-
ligência e piedade, e viveu sua vida espiritual de maneira profunda, embora

39
ASC A006-A007 Cronachette, Lemoyne, “Nell’autunno del 1864”, 1, em FDB 947 B5. Contudo,
depois de se unir a Dom Bosco, suas cartas tornaram-se líricas sobre a vida do Oratório.

60

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A tradição biográfica de Dom Bosco

com certa acentuação peculiar. Testemunham-no os propósitos tomados an-


tes da ordenação do subdiaconato, em 16 de março de 1862:

Viva Maria! Querida mãe, rogo-te que abençoes estes propósitos. (1) Prometo
manter-me casto até meu último respiro. (2) Recitarei o ofício divino pro-
nunciando as palavras com clareza e distinção. (3) Aplicar-me-ei ao estudo e
não ocuparei o tempo com coisas inúteis. (4) Cumprirei com fidelidade todos
os meus deveres de subdiácono. (5) Amarei a Jesus como o meu amigo mais
íntimo. (6) Farei tudo para a glória de Deus. (7) Trabalharei intensamente
na vinha do Senhor. (8) Testemunharei que sou servo do meu Senhor Jesus
Cristo pelo modo de vestir, atuar, falar e caminhar.
Ó Maria, Vós me concedestes muitas graças, Vós vistes claramente minhas
batalhas! Ó, se pudesse levar adiante uma vida santa e jamais consentir num
pecado venial! Ó Maria, peço-vos que me obtenhais de Deus esta graça. Sei
que a obtereis para mim, porque fostes uma mãe para mim. Viva Maria! Viva
Jesus! Viva Pio IX! Teu humilde filho J. B. Lemoyne, que está para ser ordena-
do subdiácono, e pede que lhe alcances todas as graças de Deus.40

Sem dúvida, estas palavras revelam uma profunda vida espiritual, com
intensa orientação mariana. Entende-se sua devoção ao Papa e ao papado
particularmente no contexto da unificação da Itália (1861), obtida, em parte,
pela invasão e anexação dos Estados Pontifícios.
Reflete, de forma geral, a mentalidade conservadora que adquirira da
tradição e educação familiar. A família de Lemoyne era conservadora, o que
se compreende pela sua história e situação social. Desde a infância, porém,
João Batista também vivera as experiências da revolução liberal; e a rigorosa
educação católica devia ter contribuído para o sentimento de solidariedade
com o Papa, a quem os liberais, especialmente os republicanos, atacavam com
particular virulência. Os pontos de vista conservadores de Lemoyne foram se
arraigando mais profundamente com a evolução inexorável da revolução e,
em última instância, manifestam-se em sua obra de biógrafo e historiador.
Em comentários espalhados cá e acolá nos 9 volumes das Memórias Biográfi-
cas escritos por ele, encontram-se repetidamente censuras não só aos excessos
como também ao próprio fato da revolução liberal e do seu programa.
Lemoyne foi ordenado padre em 14 de junho de 1862. Não nos restou
nenhuma recordação de como passou os primeiros anos de padre antes de

40
Documento de arquivo citado em F. Desramaut, Memorie, 32, nota 19. [Nota do tradutor: a
mudança de tratamento consta do original].

61

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Dom Bosco: história e carisma 1

se encontrar com Dom Bosco em fins de 1864. Normalmente, os padres


novos passavam os dois primeiros anos de sacerdócio assistindo conferências
morais e de teologia pastoral para preparar-se ao ministério, especialmente das
confissões, enquanto ajudavam em alguma paróquia. Não há razão para supor
que o padre Lemoyne fosse uma exceção. Tem maior relevância o fato de ele ter
considerado nesse período a entrada em alguma ordem religiosa, embora não
soubesse por qual decidir-se. Durante esse tempo, ele estava em pleno discerni-
mento vocacional: para o que Deus o estava chamando, agora que já era padre?

Encontro com Dom Bosco. Decisão vocacional


Temos o testemunho pessoal de Lemoyne sobre seu encontro com Dom
Bosco e como ficou com ele; nesse encontro, ele se refere a si mesmo em
terceira pessoa, como um “jovem padre”. Dom Bosco percorria o sul do Pie-
monte e a Ligúria com um grupo numeroso de meninos, naquele que parecia
ser o último passeio de outono. As Memórias Biográficas apresentam uma
narração detalhada das várias etapas da excursão que levou Dom Bosco e seus
meninos a Gênova.41 Retornando a casa, foram de Gênova a Mornese, onde
Dom Bosco se encontrou pela primeira vez com as Filhas de Maria Imacu-
lada e com Maria Mazzarello, sendo hóspede do padre Domingos Pestarino,
diretor espiritual das futuras irmãs.

No outono de 1864, um jovem padre procurava discernir a vontade de Deus


sobre o próprio futuro. Certo domingo à tarde, enquanto visitava a vila de
Belforte, foi rezar diante do altar de Nossa Senhora do Santo Rosário na igreja
do lugar. Pediu a Nossa Senhora que o fizesse conhecer sua vocação. No dia da
ordenação sacerdotal, um colega da turma de diaconato tinha-lhe perguntado
confidencialmente:
— Estás realmente feliz?
— Estou muito feliz —, respondeu o neossacerdote.
— Contudo, teu coração não está totalmente satisfeito, não é verdade?
— E por que não? Como sabes o que há em minha mente?
— Eu apenas sei que não nasceste para ser padre diocesano — replicou o amigo.
— Que diabos estás a dizer?
— Sê sincero contigo mesmo. No fundo, sentes que deves ser religioso, não
é verdade?

41
Sobre a excursão de outono de 1864, veja-se MB VII, 749-783.

62

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A tradição biográfica de Dom Bosco

— De fato, mas agora que recuperei minha liberdade, embora admita ter pas-
sado alguns anos felizes no seminário, crês que vou encerrar-me novamente
entre quatro paredes? Por outro lado, para ser inteiramente sincero contigo,
não é uma ordem religiosa que eu quero [...].
— Pois bem! Nossa Senhora gosta tanto de ti que, se nenhuma das ordens
religiosas chamar a tua atenção, ela haverá de te apresentar uma que te seja
adequada, uma com que te comprometerás; verás logo.
Passaram-se dois anos desde aquela conversa. E eis que pela manhã, depois
de rezar o Rosário para obter luzes de Nossa Senhora, um pouco adormecido
[aquele jovem padre], ouviu uma voz que sussurrava aos seus ouvidos:
— Vai a Lerma, e ali encontrarás Dom Bosco.
Quando despertou totalmente, aquelas mesmas palavras ressoavam em sua
mente. Ele jamais ouvira falar de Dom Bosco, exceto uma vez. Não conhecia
nenhum amigo de Dom Bosco naquela parte do país. Se o Papa visitasse aqueles
lugares, seria seguramente mais aguardado do que Dom Bosco, pois aqueles lu-
garejos eram muito afastados do caminho normal. Por isso, chamou três amigos
e relatou-lhes a estranha experiência. Eles responderam:
— Lerma está a apenas uma hora de caminho; podes ceder à tua vontade.
Foi então a Lerma com um de seus amigos, mas não se atrevendo a perguntar por
receio de parecer ridículo, indagou a um padre seu amigo se tinha ouvido algo re-
lacionado com Dom Bosco, de Turim. O padre respondeu-lhe que, recentemente,
não tinha ouvido nada, mas poderia perguntar ao pároco, que estava em contato
pessoal com o fundador do Oratório. Perguntaram, então, na casa do pároco e,
para surpresa, disseram-lhes que Dom Bosco visitaria Lerma dentro de oito dias. O
jovem padre pulou de alegria ao ouvir notícia tão admirável. Voltou para casa [em
Belforte] onde os outros amigos o esperavam no pátio do grande castelo. Rindo do
que acreditavam ser uma pilhéria muito engraçada, gritavam lá de cima:
— Então, Dom Bosco vem ou não vem?
— Vem, sim — ressoou a resposta lá de baixo.
Desceram correndo ao encontro dos amigos e não podiam acreditar que o so-
nho fosse realidade. No domingo seguinte, Dom Bosco chegou a Mornese. No
outro dia, depois da cerimônia religiosa da tarde, o pároco de Lerma, arcipreste
[Raimundo] Olivieri, e o jovem padre, que tinha sido seu hóspede naquela
ocasião durante alguns dias, foram a Mornese. O padre Pestarino pediu-lhes
que ficassem para o jantar. Antes que Dom Bosco pusesse os olhos sobre aquele
padre que o olhava com ansiedade, perguntou-lhe:
— Como te chamas?
O padre disse o seu nome.
— De onde vens?

63

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Dom Bosco: história e carisma 1

Disse-lhe de onde vinha.


— Bem, vem comigo a Turim — acrescentou Dom Bosco.
— Não me seria difícil, respondeu o jovem padre. Depois de conversar sobre
mais alguma coisa, puseram-se a jantar.
No dia seguinte, o grupo todo [Dom Bosco e seus meninos] apresentou-se
em Lerma, onde o arcipreste Olivieri organizara uma esplêndida recepção a
Dom Bosco. O jovem padre pôs-se a caminhar com Dom Bosco e, na hora
do almoço, o padre Olivieri colocou-o perto do homem de Deus. Com isso,
ele pôde falar do seu futuro e do Oratório de Turim, mas sem chegar a enten-
dimentos concretos, já que a conversa versou sobre os meios de salvaguardar
a juventude dos muitos perigos que a assediavam.
— Eu me sentiria muito feliz de ir a Turim com o senhor — disse o jovem
padre a Dom Bosco.
— E qual é o motivo para querer vir comigo?
— Para ajudá-lo em tudo o que puder.
— Não — respondeu Dom Bosco com firmeza —, a obra de Deus não
precisa da ajuda de nenhum homem.
— Eu irei e ajudarei no que o senhor mandar.
— Vem apenas com vistas ao bem da tua alma.
— Irei com essa condição — respondeu o padre.
De volta a Mornese, o padre fez novamente todo o trajeto a sós com Dom Bosco.
Pôde, assim, contar toda a sua vida passada e tudo o que tinha feito e pensado até
o momento presente. Foi o retorno mais satisfatório. No dia seguinte, pelo meio
do almoço, aproveitando um respiro na conversa, Dom Bosco falou de repente,
elevando a voz, de modo que todos o ouvissem. Disse ao jovem padre:
— Escreve ao teu pai e à tua mãe, informa-os da tua partida para Turim e da
tua decisão de ficar com Dom Bosco.
— Eu deveria comunicá-lo aos meus pais, evidentemente. Tenho por certo
que minha mãe daria o seu consentimento.
Dom Bosco não falou mais sobre o assunto. Na quarta-feira, contudo, an-
tes de partir para Capriata com seus jovens, despediu-se do jovem padre e
perguntou-lhe:
— Quando irás a Turim?
— Dentro de uma semana. Na próxima quarta-feira estarei lá — respondeu.
E cumpriu a sua promessa.42

ASC A006-007 Cronachette, Lemoyne, “Nell’autunno del 1864”, em FDB 947 B5 e 3. Este resu-
42

mo é correlato (com mais detalhes) com o testemunho em primeira pessoa dado no Processo. Há uma tercei-
ra narração do acontecimento nas Memórias Biográficas, mais curta, porém comovedora (MB VII, 768-769).

64

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Em 18 de outubro de 1864, padre Lemoyne chegou ao Oratório de


Valdocco, em Turim. E assim começou sua vida salesiana e sua profunda
devoção a Dom Bosco.

Um ano com Dom Bosco e a profissão perpétua


Quando Lemoyne entrou no Oratório, aos 25 anos de idade, os Sa-
lesianos eram cerca de 80, dos quais 11 padres e alguns irmãos. Os demais
eram “clérigos”, ou seja, seminaristas que estudavam para serem ordenados,
enquanto trabalhavam o dia todo na obra salesiana. Com exceção de Dom
Bosco, que tinha 49 anos, e do padre Vitório Alasonatti, que tinha 52 e en-
trara na Congregação cerca de dez anos antes, todos eles tinham menos de
30 anos. A Sociedade Salesiana, oficialmente fundada em 1859, obtivera o
decretum laudis [decreto de louvor da Santa Sé] em julho de 1864 e já tinha
fundado suas duas primeiras escolas fora de Turim: Mirabello (1863) e Lanzo
(1864). Em Valdocco, a igreja de Maria Auxiliadora dos cristãos estava co-
meçando a surgir de suas fundações. Dom Bosco já começara a ser uma “le-
genda”. Aumentava sempre mais a crença de que ele fosse dotado de poderes
extraordinários, não só entre seus filhos, mas também entre o povo. Jovens
Salesianos, como Domingos Ruffino e João Bonetti, uniram-se para fazer a
crônica das palavras admiráveis e dos feitos de Dom Bosco. Padre Lemoyne
ficou totalmente cativado.
Ainda não havia um lugar apropriado e nem um programa para o novi-
ciado. Padre Lemoyne fez sua formação, sua “prova”, trabalhando o dia todo
com os demais. A chamada década heroica tinha chegado ao fim nos anos de
1860, mas a vida no Oratório ainda era cheia de heroísmo no grau mais ele-
vado. Nenhum dos padres diocesanos que ocasionalmente se tinham unido
a Dom Bosco conseguiu suportar o difícil desenrolar da vida do Oratório.
Padre Alasonatti fora o primeiro; padre Lemoyne seria a segunda notável
exceção. Em seguida, ele foi enlaçado pelo lema “trabalho e temperança”.
Sentiu-se feliz e jamais olhou para trás.43
Pouco mais de um ano depois da sua entrada no Oratório, em 10 de
novembro de 1865, Lemoyne fez a profissão perpétua. Foi o primeiro a emi-
tir os votos perpétuos na Congregação, cinco dias antes dos Salesianos da
primeira hora, como Miguel Rua (1837-1910), João Cagliero (1838-1926),
João Batista Francesia (1838-1934), Carlos Ghivarello (1835-1913) e João

Em uma carta aos pais, de 24 de dezembro de 1864, escreve: “Sinto-me sempre mais feliz em
43

minha nova situação [...]. Estou extremamente ocupado e não tenho um só minuto para perder tempo;
trabalhamos e trabalhamos com todas as nossas energias [...]” [Carta de 24 de dezembro de 1864, ASC
B538: Lemoyne, citado em F. Desramaut, Memorie, 35, nota 37].

65

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Dom Bosco: história e carisma 1

Bonetti (1838-1891), que foram os membros fundadores da Congregação


em 1859 e estavam no grupo dos primeiros vinte e dois que fizeram votos
temporários em 1862.44

Diretor do colégio salesiano de Lanzo (1865-1877)


O motivo pelo qual padre Lemoyne professou antes dos demais se de-
veu à urgente necessidade de preencher o cargo de diretor do colégio sale-
siano de Lanzo, vacante pela morte improvisa do padre Domingos Ruffino,
primeiro diretor daquela obra. Lemoyne ocupou o cargo por doze anos, até
1877; o colégio prosperou sob a sua direção. A começar dos cursos elemen-
tares e de um modesto número de alunos, o programa do colégio foi-se am-
pliando até a escola média em 1868, com um aumento crescente dos alunos
nos anos sucessivos.
Até essa data — deve-se adverti-lo — Lemoyne passara apenas um ano
com Dom Bosco. Lanzo distava poucos quilômetros de Turim, por isso ele
costumava visitar Dom Bosco com frequência e, embora não fosse alvo de
qualquer censura ao tomar sozinho alguma decisão, sempre consultava Dom
Bosco sobre os problemas que surgiam. Este, por sua vez, não o perdia de
vista, atento à escola e à comunidade salesiana, e visitava-os com frequência.
Dessa forma, o padre Lemoyne pôde em sua permanência em Lanzo con-
tinuar a observar em primeira mão as palavras e os feitos de Dom Bosco,
atividade em que, com a colaboração dos outros Salesianos do Oratório, ele
se tinha envolvido desde o início.

Diretor espiritual local das Filhas de Maria Auxiliadora em Mornese


e em Nizza (1877-1883)
Em 1874, padre Tiago Costamagna foi nomeado diretor espiritual das
Filhas de Maria Auxiliadora em Mornese permanecendo três anos no cargo.45
Como pedira para ser missionário, convenceu o padre Lemoyne a apresentar-
-se como voluntário para aquele serviço. De fato, este foi nomeado diretor
espiritual local das Irmãs da Comunidade de Mornese, cargo que exerceu

44
Cf. MB VIII, 241, e MB VII, 160.
45
À morte do padre Pestarino (1874), Dom Bosco nomeou o padre José Cagliero (1847-1874)
para sucedê-lo como diretor espiritual local das Irmãs, mas este faleceu dois meses depois. Padre Tiago
Costamagna (1846-1921) foi, então, nomeado para substituí-lo. Em 1877, porém, ele foi chamado
a dirigir a terceira expedição missionária à América do Sul, onde se distinguiu como missionário e
superior salesiano e, enfim, como Vigário Apostólico de Méndez y Gualaquiza, no Equador. O cargo
de diretor espiritual local (na realidade, capelão) das Irmãs distinguia-se do de diretor espiritual geral.

66

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A tradição biográfica de Dom Bosco

até 1883. Após a difícil direção do padre Costamagna, chegou-se a grande


progresso espiritual e institucional sob o padre Lemoyne, devido ao seu trato
amável. Em princípios de 1879, ele dirigiu a transferência da Casa Mãe das
Filhas de Maria Auxiliadora para Nizza e, em 1881, assistiu Madre Mazza-
rello em sua última enfermidade e morte.
Padre Lemoyne, contudo, não se sentia feliz nesse cargo, pois estava
profundamente ligado aos meninos de Lanzo e agradava-lhe muitíssimo a
vida cheia de atividades do colégio. A dificuldade que tinha com a presença
feminina fez da longa permanência com as Irmãs uma espécie de tormento.
Ainda mais porque, sendo Mornese e Nizza mais distantes de Turim do
que Lanzo, ele se sentia “desterrado” de Dom Bosco e do Oratório. Como
consequência, as atividades de Lemoyne como cronista também sofreram
algum contratempo.

Secretário de Dom Bosco e do Capítulo Superior (1883-1916)


Em 1883, padre Luís Bussi foi nomeado diretor espiritual local das Ir-
mãs de Nizza, e Lemoyne, livre de suas muitas ocupações,46 foi chamado a
Valdocco como editor chefe do Boletim Salesiano e secretário do Capítulo
Superior. Conservou este último cargo com os sucessores de Dom Bosco pra-
ticamente até sua morte. Passará, então, quatro anos ao lado de Dom Bosco
como seu confidente. Foram anos de pura alegria profunda e de crescimento
humano, anos da sua maturidade cristã e salesiana.
Sua única preocupação era servir ao pai e mestre, e reunir para a pos-
teridade tudo que se relacionasse com ele. Seu apego pessoal a Dom Bosco
era lendário, não muito menos do que o do seu jovem extraordinário cola-
borador, o “clérigo”, logo padre, Carlos Viglietti, que foi secretário pessoal e
companheiro de viagem do Santo, de 1884 até sua morte em 1888.
Dom Bosco apreciava a devoção e confiança do padre Lemoyne e corres-
pondia com a mesma moeda. Ceria informa sobre as palavras de Dom Bosco
a Lemoyne, quando este regressou ao Oratório, em 1883.

“Quanto tempo pretendes permanecer com Dom Bosco no Oratório?”, per-


guntou Dom Bosco. “Até o fim do mundo”, respondeu padre Lemoyne. “Pois

46
Padre Lemoyne escreve à sua mãe: “Fui transferido a Turim [...]. Dom Bosco deseja que eu es-
teja perto dele, como seu ajudante especial e colaborador. Nosso Senhor não poderia designar-me para
um lugar mais desejável. Eu estarei em contato diário também com Maria Auxiliadora dos Cristãos, de
quem também serei secretário [...]. No que me cabe, não seria mais feliz, se fosse um rei [...]” [Carta de
18 de dezembro de 1883 em ASC B538ss, Lemoyne, citado em F. Desramaut, Memorie, 40, nota 65].

67

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Dom Bosco: história e carisma 1

bem, eu te confio meu pobre ser. Cuida de mim com carinho, especialmente
quando se tratar de ouvir-me. Não guardarei nenhum segredo de ti, nem os
do meu coração nem os da Congregação. Quando chegar a minha última
hora, sentirei necessidade de um amigo íntimo com quem possa falar minhas
últimas palavras com plena confiança”.47

O relacionamento de Lemoyne com Dom Bosco era tão íntimo, que


mantiveram um perfeito entendimento e afeto e uma profunda e mútua co-
municação como duas almas gêmeas. Escreve Desramaut: “Esse padre [Le-
moyne] sentia grande necessidade de ternura, e essa necessidade foi satisfeita
pelo seu Pai espiritual. Seria difícil imaginar um afeto íntimo maior, compar-
tilhado por dois seres”.48
A familiaridade de Lemoyne com Dom Bosco capacitou-o a adquirir o
verdadeiro conhecimento do mestre, do seu método, do seu espírito, a ponto
que conseguir fazer seu o estilo de Dom Bosco. Converteu-se em intérprete
perfeito do Santo. Quando Dom Bosco precisava escrever uma carta aos me-
ninos ou aos Salesianos, encarregava muitas vezes o padre Lemoyne para que
o fizesse por ele, com a certeza de que o seu amor e a sua preocupação seriam
expressos à perfeição. Nos últimos anos, o padre Lemoyne viveu em contato
íntimo com Dom Bosco e gozou do privilégio de acompanhá-lo em algumas
viagens. Digna de menção é a viagem à Cidade Eterna em 1884, fato mais
memorável ainda porque deu ocasião para escrever a carta [de Roma] que
Lemoyne redigiu em nome de Dom Bosco.49
Através dos anos de profundo relacionamento com Dom Bosco, Lemoy-
ne tantas vezes quantas podia acompanhava-o em amigável conversação. Em
um desses entardeceres, como escreve Ceria:

Dom Bosco parou de repente, voltou-se e disse-lhe confidencialmente: “Um


glorioso futuro te espera”. E, depois de uma pausa, continuou: “O que sofres-
te até agora não é nada comparado aos sofrimentos que te esperam no futuro.
Entretanto, coragem, nada neste mundo dura para sempre, e afinal... depois
de tudo... há o Paraíso!”.50

MB XVI, 419.
47

F. Desramaut, Memorie, 45.


48

49
Em abril de 1884, padre Lemoyne acompanhou Dom Bosco em sua viagem a Roma [cf. MB
XVII, 73-123]. Pelo final de sua permanência na Cidade Eterna, Dom Bosco teve um sonho sobre o
Oratório, e padre Lemoyne o redigiu e enviou por carta ao padre Rua, em Turim. Trata-se da famosa
“Carta de Roma”. Talvez, seja o exemplo mais excelente de que o padre Lemoyne entendeu perfeita-
mente o espírito de Dom Bosco.
50
E. Ceria, Profili, 398.

68

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A tradição biográfica de Dom Bosco

À medida que nesses anos aumentava o compromisso pessoal de Lemoy-


ne com o Fundador e a Sociedade Salesiana, ele assumiu o compromisso de
reunir a documentação sobre Dom Bosco num projeto que acabou por ser
a sua obra monumental, as Memórias Biográficas, trabalho de amor e, certa-
mente, de ingente esforço.
Após a morte de Dom Bosco, parecia que Lemoyne, em certo sentido,
também morria. Entendido e apreciado por uns, mas mal compreendido e
criticado por outros, atormentado por dores físicas e sofrimentos espirituais
e emocionais, viveu praticamente como recluso o resto da vida. Levantava-se
infalivelmente às quatro da manhã e trabalhava até altas horas da noite, orga-
nizando e editando a incalculável mole de material biográfico que acumulara
sobre Dom Bosco através dos anos e trabalhando incansavelmente no projeto
das Memórias Biográficas.51
Com incrível tenacidade e dedicação, perseverou no seu trabalho de
amor por mais de trinta anos, até a morte, em 14 de setembro de 1916, aos
77 anos de idade.

Ângelo Amadei (1868-1945)


Ângelo Amadei nasceu em Chiaravalle, província de Ancona, Itália, em
22 de maio de 1868. Após cursar a escola primária e a faculdade (ginásio e
liceu) e estudar teologia no Seminário Diocesano de Senigaglia, entrou no
colégio salesiano de Faenza em 1887. Visitou o Oratório de Turim e encon-
trou-se com Dom Bosco, momento decisivo em sua vida.
Professou em 1888 e continuou seus estudos de teologia, enquanto ensi-
nava em tempo integral no colégio salesiano de Borgo San Martino, de 1888
a 1892, ano de sua ordenação sacerdotal.
Depois de desempenhar várias atribuições em diversos colégios, foi
nomeado em 1908 pelo padre Rua para suceder ao padre Domingos Mingu-
zzi como editor do Boletim Salesiano, cargo que ocupou por vinte anos com
grande distinção enquanto, ao mesmo tempo, se ocupava do ministério das
confissões e era diretor espiritual.

51
O trabalho monumental de Lemoyne como cronista e autor de biografias é explicado à parte.
Lemoyne escreveu a dom Cagliero em 7 de dezembro [1886]: “Trabalho dia e noite, não tenho descan-
so, jamais deixo meu quarto, recuso qualquer outro trabalho, estou quase sempre sozinho. Contudo,
confio que meus irmãos rezarão do fundo do coração uma oração por mim quando eu morrer. Creio
que precisarei disso, pois compreenderás que esta vida é totalmente contrária à minha inclinação natu-
ral”. Cf. F. Desramaut, Memorie, 42, nota 73.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Após a morte do padre Rua em 1910, padre Amadei começou a compilar


as memórias biográficas do Superior falecido que, mais tarde [1931-1934],
publicaria em três volumes. Quando padre Lemoyne faleceu em 1916, Ama-
dei surgiu como o legítimo candidato à sua sucessão na obra das Memórias
Biográficas; foi, então, que o Reitor-Mor, padre Paulo Albera, confiou-lhe este
encargo. Ele supervisionou a publicação do volume IX e compilou o volume
X, que só apareceu em 1939, último da série.
No caminhar das coisas, viu-se que Amadei não era o autêntico sucessor
de Lemoyne. Afastado dessa responsabilidade, ficou livre para trabalhar na
biografia do padre Rua. O padre Eugênio Ceria foi, então, nomeado pelo
Reitor-Mor, padre Felipe Rinaldi, para continuar as Memórias Biográficas.
Padre Ângelo Amadei morreu em Turim em 1945, aos 76 anos de idade.

Eugênio Ceria (1870-1957)


Eugênio Ceria nasceu no dia 4 de dezembro de 1870 em Vercelli, Itá-
lia; recebeu sua primeira educação com os Irmãos das Escolas Cristãs e os
Padres do Oratório. Entrou no noviciado em 1885. Professou em 1886 e foi
ordenado em 1893. Desde então e até 1929 foi destinado, ao menos, a dez
colégios salesianos, dedicado ao ensino na escola secundária, como professor
e escritor. Obteve títulos e adquiriu certa notoriedade no estudo dos clássicos.
Mais tarde, já como erudito, dedicou-se ao estudo de autores cristãos, campo
no qual muitas publicações levaram o seu nome.
Embora padre Ceria não tenha tido preparação como historiador, em
1929, padre Felipe Rinaldi chamou-o de Roma a Turim para continuar a
obra das Memórias Biográficas. De 1939 até sua morte em 1957, maduro,
erudito e cortês dedicou seu talento exclusivamente aos estudos salesianos e
à sua publicação.
De 1930 a 1939, a começar pelos Documenti de Lemoyne e procedendo
com esmerado exame de todo o material de arquivo então acessível publicou
os volumes XI a XIX das Memórias Biográficas. O volume XIX é a história do
Processo de Beatificação (1929) e Canonização (1934) de Dom Bosco. Seu
estilo caracteriza-se pela beleza simples e pela clareza dos clássicos latinos.
Embora o padre Ângelo Amadei tenha editado o volume X das Memórias Bio-
gráficas, publicado em 1939, o padre Ceria é considerado como o verdadeiro
e digno sucessor do padre Lemoyne.
Padre Ceria é autor, também, de numerosos e importantes escritos
“salesianos”; podemos mencionar, primeiramente, um relato da história da

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Sociedade Salesiana, os Anais, em quatro volumes,52 abrangendo o reito-


rado de Dom Bosco, do padre Miguel Rua e do padre Paulo Albera. Em
seguida, pôs em circulação a primeira edição das Memórias do Oratório,
de Dom Bosco, transcrita dos manuscritos de arquivo, com introdução e
comentário.53 Além disso, publicou a partir dos manuscritos de arquivo,
uma coleção de cartas de Dom Bosco em quatro volumes.54 Publicou ainda
várias biografias e notas biográficas de Salesianos, sem esquecer o célebre
livro Dom Bosco com Deus.55
Morreu em 21 de janeiro de 1957.

AS MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS E SUA


CONFIABILIDADE HISTÓRICA

Depois de apresentar a tradição biográfica de Dom Bosco, descrever o pro-


cesso pelo qual se formaram as Memórias Biográficas e oferecer um resumo da
vida de seus redatores, parece oportuno expor o método historiográfico adotado
por Lemoyne ao escrever os seus volumes das Memórias Biográficas (I ao IX),
método que será, basicamente, da obra toda em seu conjunto.56

Coleta e organização dos documentos


A coleta, interpretação e utilização dos documentos são as três etapas crí-
ticas das obras históricas e, portanto, de qualquer biografia. Estas atividades
revelam o profissionalismo do biógrafo de Dom Bosco.
Lemoyne buscou e recolheu todo tipo de documentos, por mínimos que
fossem, mas que pudessem servir para enriquecer seu relato sobre Dom Bosco
e sua obra. Apesar da amplidão da obra (19 volumes) e do considerável uso
dos documentos, o interesse principal de Lemoyne era a “história-narração”
de Dom Bosco. Sua primeira, senão única preocupação, foi recolher tudo que
pudesse ter algum interesse narrativo. Tendia a ignorar, por exemplo, projetos
edilícios, fotografias, livros de contabilidade, atas escolares e o que fosse de

52
E. Ceria, Annali della Società Salesiana. Turim: SEI, 1941, 1943, 1946, 1951.
53
San Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco di Sales dal 1815 al 1855 [...].
Turim: SEI, 1946. Em português: São João Bosco, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales,
1815-1855, Tradução: Fausto Santa Catarina, 3ª. ed., revista e ampliada, aos cuidados de Antônio da
Silva Ferreira. São Paulo: Salesiana, 2005.
54
Epistolario di San Giovanni Bosco […]. Turim: SEI, 1955, 1956 e, póstumo, 1958, 1959.
55
Lisboa: Editora SDB, 1962.
56
F. Desramaut, Cómo trabajaron, 37-65.

71

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Dom Bosco: história e carisma 1

interesse mais específico. Preferia, primordialmente, os relatos de testemu-


nhas oculares, que testemunhavam o que Dom Bosco tinha dito e realizado.
Uma avaliação crítica exige a análise da grande quantidade de documentos
sobre Dom Bosco recolhidos por Lemoyne. As principais fontes documentais são:

1. Grande quantidade de escritos do próprio Dom Bosco: as Memórias do


Oratório, o Testamento Espiritual, cartas e circulares pessoais, as biografias
de Luís Comollo, Domingos Sávio, Miguel Magone, Francisco Besucco e
José Cafasso. De Dom Bosco já se tinham publicado ou estavam ainda para
publicar relatórios do trabalho dos Salesianos, dos registros policiais, da sua
viagem a Roma em 1858, da consagração da igreja de Maria Auxiliado-
ra, dos “prodígios” e “graças” atribuídos à sua intercessão. Assim como os
regulamentos e constituições do Oratório, da Congregação Salesiana, das
Filhas de Maria Auxiliadora e da União dos Salesianos Cooperadores. Esses
e outros escritos autênticos, ainda que breves, recolhidos pelo padre Berto
(1847-1914), encontraram seu lugar na coleção do padre Lemoyne.
2. Os escritos daqueles que tinham vivido com Dom Bosco e o ouviram, que
tiveram contato com ele e escreveram o que tinham visto ou ouvido. O
primeiro é, provavelmente, a História do Oratório, de João Bonetti (1838-
1891), publicada em capítulos no Boletim Salesiano durante a vida de Dom
Bosco. Seguiu-se depois no mesmo Boletim Salesiano, nos últimos anos de
Dom Bosco, uma série sobre os Passeios outonais (1848-1864).
3. As Atas das reuniões dos diretores salesianos, do Capítulo Superior (Conse-
lho Geral) e dos Capítulos Gerais (1877, 1880, 1883 e 1886).
4. Lemoyne dava muita importância às “crônicas” ou cadernos de recordações dos
Salesianos que foram testemunhas oculares das palavras e atividades de Dom
Bosco, e cujos relatórios estão no arquivo central: Domingos Ruffino (1840-
1865), João Bonetti (1838-1891), Antonio Sala (1836-1895), Joaquim Ber-
to (1847-1914), Júlio Barberis (1847-1927), Francisco Cerruti (1844-1917),
João Garino (1845-1908), José Lazzero (1837-1910), Francisco Provera (1836-
1874), Carlos Maria Viglietti (1864-1915), Pedro Enria (1841-1898), João
Batista Francesia (1838-1930) e Segundo Marchisio (1857-1914). Deve-se
colocar nessa lista o próprio Lemoyne.57 Padre Rua também havia compilado
um pequeno Livro de experiência e um Necrológio, além de frequentes notas em
pequenos pedaços de papel. Dever-se-ia acrescentar a esta lista as crônicas locais
das casas e a coleção de episódios e “sonhos”.

57
Contra uma persistente e falsa opinião, Lemoyne não se desfez de suas anotações pessoais nem
das de outras pessoas depois de utilizá-las.

72

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Essas testemunhas e seus relatos não são necessariamente fiéis pelo fato
de terem estado com “a fonte”, como se a proximidade com Dom Bosco
devesse garantir de modo absoluto a objetividade, lucidez ou exatidão de
suas afirmações. Isso deve ser comprovado em cada caso. As testemunhas
levantam problemas interessantes; devem-se distinguir, por exemplo, relatos
de primeira mão e outros de referências mais ou menos distantes; as teste-
munhas diretas, das indiretas; a ata, da testemunha posterior; o sonho, da
parábola onírica; os testemunhos autênticos, dos comentários sobre eles; uma
afirmação original, de uma elaboração posterior da mesma.
Poder-se-iam aduzir centenas, milhares quem sabe, de erros de Lemoy-
ne ao tratar dessas questões.58 Quando Bonetti (entre 1861 e 1863) ou Vi-
glietti (entre 1884 e 1885) recolhiam dos lábios de Dom Bosco lembranças
de sua vida pessoal, que se apressavam a escrever em seus cadernos, eram
testemunhas diretas, embora muito posteriores aos fatos referidos e, por-
tanto, expostos a todas as reconstruções não seguras da memória. Contudo,
as mesmas testemunhas puderam anotar também histórias que circulavam
no ambiente, que outros, talvez, teriam negado se chegassem a conhecê-las.
Eram coisas que “se contavam”, como escreve Ruffino, no início de alguns
episódios sobre Dom Bosco. Bonetti recapitulou seis relatos extraordiná-
rios num de seus cadernos: a admirável conversão de um ateu, o jovem
[Carlos] ressuscitado dos mortos, Dom Bosco e seus canários, o cão Grigio,
a multiplicação das castanhas e a multiplicação das hóstias consagradas.59
São episódios de veracidade incerta, mas gravadas na tradição salesiana e
contadas, quem sabe, como apoio à santidade do Fundador e que devem
ser devidamente avaliadas.
O mesmo se poderia dizer das deposições de muitas testemunhas ocula-
res (em sua maioria, simpatizantes de Dom Bosco), chamadas a testemunhar

58
Desramaut, ao comentar a nota escrita pelo padre Rua sobre o primeiro uso do título “Sale-
siano”, afirma que não se trata em absoluto de uma espécie de ata da reunião do “grupo dos quatro”,
de 26 de janeiro de 1854, “mas de uma anotação do padre Rua, provavelmente pedida pelo biógrafo
quarenta ou cinquenta anos depois do fato”. Segundo Desramaut, Lemoyne dá uma impressão equivo-
cada quando escreve: “O clérigo Rua recorda-se dela [da ata] em um escrito seu que ainda se conserva
em nossos arquivos” (MB V, 9). Entretanto, a única razão dada pelo crítico, é que ela não aparece nos
Documenti. Não parece uma razão suficiente, pois há muitas outras hipóteses que explicariam a exis-
tência da anotação, embora Lemoyne não a tivesse recolhido nos Documenti. Por exemplo, o padre Rua
pode tê-la escrito e retido como recordação pessoal. A anotação em questão está hoje no ACS. Isso nos
adverte de que é preciso acolher com cuidado as afirmações dos críticos, pois também eles correm o
risco de converter suas hipóteses em teses o que, sem provas convincentes, não é lícito a um historiador
sério [Nota dos editores da edição em espanhol].
59
MB IV, 156 [admirável conversão de um ateu]; III, 442 [multiplicação das hóstias]; IV, 710 [his-
tória do cão Grigio]; IV, 291 ss.; III, 575 [ multiplicação das castanhas]; III, 672 [o jovem ressuscitado].

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Dom Bosco: história e carisma 1

no processo de canonização e usadas nas Memórias Biográficas. Seria preciso


seguir a gênese de cada elemento dessas deposições, esforçando-se para buscar
a fonte de informação e levando em conta as atitudes mentais de cada teste-
munha. As afirmações mais notáveis sobre a vida ascética de Dom Bosco — e
é um exemplo — provêm do padre Berto, pessoa escrupulosa e um pouco
obsessiva. Os padres Berto e Barberis fizeram amplas deposições juramenta-
das a partir dos Documenti do padre Lemoyne, que podiam consultar e copiar
facilmente em Valdocco. Às vezes, utilizavam-nos de maneira subserviente.
Por isso as abordagens e até mesmo os erros de suas fontes reapareciam em
suas deposições, mais alargadas do que corrigidas. Fizeram-no, sem dúvida,
com a maior boa fé do mundo; isso, porém, indica que algumas testemunhas
tinham uma história complexa que deve ser corretamente avaliada.
Quanto às crônicas e atas de Lemoyne, usadas por ele de maneira exa-
gerada nas Memórias Biográficas, é preciso uma observação. Dessas atas temos
provas seguras — textos transcritos e editados — que diferem da redação ori-
ginal. Em relação às crônicas, o caso mais interessante é o de Carlos Maria
Viglietti em seu relatório sobre os últimos anos de vida de Dom Bosco (1884-
1888). Distribuído em vários cadernos, revisado e copiado várias vezes, o rela-
to apresenta ao biógrafo historiador muitos problemas específicos. A “versão”
primitiva parece mais confiável. Sem dúvida, há algumas passagens que foram
acrescentadas mais tarde e servem para o conhecimento de Dom Bosco.
Quanto às atas, em geral, o secretário designado toma nota do que ouve
ou compreende na medida em que a reunião se realiza; em seguida, compõe
um texto oficialmente aceitável. Impõem-se normalmente acréscimos, modi-
ficações, supressões. As atas do Conselho Geral ou dos Capítulos Gerais, ano-
tadas depois de tê-las ouvido pela primeira vez, foram transcritas e editadas
várias vezes com a ajuda da memória, para torná-las mais legíveis e completas.
As atas da primeira sessão do Capítulo Geral de 1877, editadas pelo padre
Barberis, são uma prova disso. No primeiro rascunho aparecem muitas frases
riscadas ou acrescentadas, o que revelaria o processo da discussão. O valor das
correções, algumas feitas pelo próprio Dom Bosco, por muito preciosas que
possam ser, precisam de um cuidadoso exame.

Compreensão e utilização dos documentos


Nem Lemoyne nem seus sucessores Amadei e Ceria foram sensíveis a
esta problemática. Bastava-lhes que a testemunha fosse “honesta”, qualidade
valorizada em função de critérios morais. Lemoyne assumia a versão em sua
forma mais acabada, glosava-a, alinhando todos os detalhes no mesmo pla-
no, destacava, comparava passagens paralelas, recolhia todas as informações

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A tradição biográfica de Dom Bosco

e detalhes que lhe eram novos e distribuía-os em função da trama geral da


obra que era, possivelmente, cronológica. Para ele, a melhor história de Dom
Bosco seria a que reunisse o maior número de informações sobre ele, ates-
tadas por testemunhas honestas. Julgava que não podia esquecer nada, nem
sequer uma palavra ou frase. A obsessão pela mera quantidade que pudesse
dar “solidez” à sua obra era uma tendência que, com outros aspectos, revela o
seu critério pré-científico.60 Isso também vale, em geral, para Amadei e Ceria,
que utilizaram os Documenti de Lemoyne e se serviram deles como base para
os seus respectivos volumes. Lemoyne colecionou tudo o que pôde assimilar
de suas fontes e incorporou todos os dados no interior de sua obra, mesmo
quando isso pudesse supor o risco de repetir um fato várias vezes, já que este
lhe chegara de diversas formas. De aí encontrarmos duplicados e triplicados
relatos do mesmo acontecimento.61
Alguns poucos exemplos podem ser ilustrativos. Nas Memórias do Ora-
tório, Dom Bosco, por alguma razão, não quis mencionar que sendo adoles-
cente de 13-14 anos (1828-1829) passara dezoito meses trabalhando como
ajudante no estábulo do sítio dos Moglia, em Moncucco. Os Moglia, em
1888, foram questionados pelo Salesiano padre Segundo Marchisio e, mais
tarde, pelos examinadores no processo informativo dos anos de 1890. Es-
ses camponeses (Doroteia, João e Gregório Moglia) ficaram impressionados,
entre outras coisas, pelo extraordinário perfil [moral] do jovem adolescente.
João recusara-se a cuidar da filha pequena da senhora Moglia, embora lhe
tenha sido determinado com firmeza. Ao narrar o fato, o padre Lemoyne de-
frontou-se com ao menos sete relatos, sem contar outros dois que falam dessa
negativa em termos muito mais gerais.62 Uma das testemunhas expressou a
negativa de modo diferente, e Lemoyne fez dela outra ocorrência, ficando o
acontecimento duplicado nas Memórias Biográficas.63 Todas as testemunhas,

60
Cf. G. Bachelard, La formation de l’esprit scientifique: contribution à une psychoanalyse de la
connaisance objective, 13ª ed., Paris, 1986; 1ª ed., 1938, 131-133. Quanto ao “obstáculo substancia-
lista”, este autor escreve: “Por instinto natural, a mente reúne pré-cientificamente num determinado
objeto tudo aquilo que o objeto realizou num determinado papel, ignorando qualquer jerarquia de
importância nesses papéis. Une assim, diretamente, a substância com as diversas qualidades, o superfi-
cial com o profundo, o óbvio com o oculto”. A pessoa preocupa-se “com a experiência externa óbvia,
evitando instintivamente qualquer exame crítico” [Ibid., 99].
61
Veja-se F. Desramaut, Memorie, 213-266, no capítulo, “La lecture et l’ordonnance de
la matiere”.
62
O Salesiano coadjutor José Rossi, por exemplo, testemunhou: “As mães confiavam-lhe o cuidado
de seus filhos, e Dom Bosco fazia-o com muita alegria, exceto quando se tratasse de meninas pequenas” [G.
Rossi. Proceso ordinario della Curia di Torino, 2511] (A Sra. Doroteia era a única “mãe” no sítio!).
63
Esta deposição, provavelmente oferecida por Gregório Moglia, foi incluída por Lemoyne nos
Documenti XLIII, 3.

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Dom Bosco: história e carisma 1

menos uma, estão de acordo com o que disse Doroteia [ao referir a resposta
de Joãozinho]: “Dá-me os meninos que quiseres, e eu cuidarei deles, mas não
posso cuidar das meninas”. O relato da variante diz: “Eu não estou destinado
para isso”, respondeu tranquilamente Dom Bosco.64
A vontade de ser exaustivo levou-o, por exemplo, a duplicar o diálogo de
Joãozinho Bosco com padre Calosso em novembro de 1829, enquanto cami-
nhavam de Buttigliera aos Becchi. Padre Calosso pedira que o menino falasse
do assunto do sermão que fizera sobre o jubileu, e João respondeu-lhe. Padre
Lemoyne tem três narrações à disposição: uma de Dom Bosco nas Memórias
do Oratório, outra da crônica de Ruffino e outra ainda dos Annali I de Bonetti,
sendo as duas últimas praticamente idênticas. Cada uma delas conhecia apenas
um diálogo sobre um único sermão escutado. Mas, posto que a versão de Ruffi-
no-Bonetti (João falava durante dez minutos) diferia das Memórias do Oratório
de Dom Bosco (João falava durante meia hora), Lemoyne, acreditando que isso
serviria à causa da verdade, fez constar as duas versões. Apresenta Dom Bosco
discorrendo sobre um sermão “durante mais de meia hora” e, pouco depois,
mostra-o falando dez minutos sobre um segundo sermão.65
Duas curas em tudo semelhantes, de uma senhora paralítica, durante a
consagração da igreja de Maria Auxiliadora de Turim, em 1868, têm origem
semelhante. A primeira procede de um relato feito por Dom Bosco ao padre
Lemoyne em 1884.66 A segunda está três páginas adiante, no volume IX das Me-
mórias Biográficas, e provém de um folheto impresso no ano da consagração.67
Há outras duplicações, talvez não tão evidentes, mas quase igualmente
certas. Um exemplo está no episódio dos meninos que se ensoparam com a
chuva durante um passeio e foram atendidos pelo cavalheiro Marcos Gonella.
O episódio aparece no volume VI das Memórias Biográficas, tomado da versão
de Dom Bosco na vida de Miguel Magone. Em seguida, aparece no volume
VII, em ano diferente, baseado num episódio recolhido em 1884.68

Falta de conhecimentos de crítica na interpretação


Lemoyne parece confundir dois planos: o plano da vida ou da história
como ela foi vivida e o plano da narração ou da vida narrada, que inclui a
documentação que atesta a história. Ele julgou que os dois planos coincidem.
64
MB I, 199.
65
Cf. MB IX, 258-259.
66
Veja-se o caderno de Lemoyne, Ricordi di gabinetto, anotação de 22 de fevereiro de 1884,
incluído em MB IX, 257.
67
Cf. G. Bosco, Remembranza di una solennità in onore di Maria Ausiliatrice, Turim, 1868, 49-
50, incluído em MB IX, 258-259.
68
Provavelmente duplicado: MB VI, 54, tendo por base a Vida de Miguel Magone (1861), cap. XII;
MB VII, 278.531, baseado em G. B. Lemoyne, Ricordi di gabinetto, anotação de 22 de fevereiro de 1884.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Um reflete o outro. Supõe que as mediações dos documentos são transpa-


rentes e as suas mensagens, óbvias. Entretanto, “não é fácil compreender um
documento, saber o que ele é, o que diz e o que significa”.69
O biógrafo de Dom Bosco esquece que suas fontes documentais se li-
gam a indivíduos ou grupos de pessoas que falaram ou escreveram num de-
terminado momento, expressaram o próprio ponto de vista, passaram por
alto sobre alguns detalhes ou alteraram outros para que fossem mais bem en-
tendidos. Com boa fé, às vezes, os biógrafos imaginaram coisas e permitiram
que suas emoções e desejos pessoais colorissem o quadro.
Quem está familiarizado com textos históricos prevê as consequências
de preocupar-se com detalhes na interpretação sistemática das narrações des-
ses textos. Na verdade, o texto é um produto acabado; deve ser calibrado
como objeto “manufaturado”. Jamais pode ser tratado como se fosse uma
janela transparente aberta à realidade tratada. Se, por exemplo, esse método
ingênuo fosse aplicado à Bíblia, poder-se-ia arriscar a confundir passagens
didáticas com narrações históricas, lendas com acontecimentos reais, e assim
por diante.
Tomemos por exemplo a história do barbeiro de Castelnuovo; nele se
conta que Dom Bosco não permitiu que uma mulher lhe cortasse os cabelos.
O episódio está num dos cadernos do padre Bonetti, que escreve:

Há dez dias [fevereiro de 1862], duas pessoas da cidade de Dom Bosco, Ânge-
lo Sávio e o subdiácono Cagliero, contaram-me esta história sobre ele. Certo
dia, em Castelnuovo, Dom Bosco percebeu que precisava cortar os cabelos e
entrou na barbearia [...]. Notando [que a empregada era uma mulher], levan-
tou-se logo, pegou o chapéu e saindo disse-lhe: “Jamais permitirei que uma
mulher me pegue pelo nariz”.70

Trata-se de uma historieta amena, contada pela gente do lugar, mas con-
vém ser cauto em considerar a cena isoladamente e as palavras pronunciadas
realmente por Dom Bosco, e, para mim, muito menos chegar à conclusão de
que foi uma prova da “castidade selvagem” de Dom Bosco. Lemoyne assumiu
a história de Bonetti; este, porém, ouvira-a de duas pessoas de Castelnuovo,
que, por sua vez, contavam uma historieta que corria entre o povo. Lemoyne
assumiu-a como lhe chegou.
69
Henri I. Marrou, De la connaissance historique, Paris: Èditions du Seuil, 1954, 101.
70
G. Bonetti, Annali II, 36s. A passagem aparece em MB V, 161-162.

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Dom Bosco: história e carisma 1

As consequências de um erro como esse podem ser sérias. Assim, por


exemplo, Lemoyne e, mais tarde, Ceria, deveriam ter submetido a um exame
crítico os relatos de “bilocação” de Dom Bosco em 1878 e 1886. Enquanto
estava em Turim nas duas datas, as Memórias Biográficas fazem-no aparecer,
no primeiro caso, em Saint-Rambert d’Albon (França) em 14 de setembro
de 1878; no segundo, em Sarriá, nas proximidades de Barcelona (Espanha),
na noite de 5 de fevereiro de 1886. No primeiro caso, o biógrafo deu crédi-
to à carta de uma senhora de nome Adèle Clément. No segundo, aceitou o
testemunho do padre João Branda, o diretor salesiano envolvido na questão.
O testemunho de madame Clément é mera suposição, sem qualquer funda-
mento sério. O testemunho do padre Branda pode ser apenas sinal de uma
visão, não de uma bilocação propriamente dita de Dom Bosco.71
Os biógrafos de Dom Bosco erraram, portanto, na avaliação adequa-
da dos testemunhos. Trabalharam com mentalidade pré-científica e com
forte aceitação da tradição; foram incapazes de apurar criticamente suas
fontes e recusar os relatos duvidosos, por receio de atenuar o esplendor
do Santo. Alegar que os autores das Memórias Biográficas eram “homens
do seu tempo” seria uma defesa inadequada. No campo da hagiografia,
os bolandistas tinham vivido e atuado mais de 250 anos antes de o pa-
dre Lemoyne publicar o primeiro volume das Memórias Biográficas. Eles
tinham aperfeiçoado constantemente seus métodos ao tratar das fontes
relativas às vidas dos santos. Nos séculos XVII e XVIII, os historiadores
jansenistas de Port-Royal tinham ajudado a transformar a hagiografia em
verdadeira história.
Sem dúvida, os piedosos hagiógrafos dos séculos XVIII e XIX escreveram
com mentalidade pré-científica, preocupados que estavam em proporcionar a
edificação mais do que apresentar a verdade histórica. Entretanto, curiosamente,
o retorno a técnicas mais rigorosas em textos históricos coincidiu com o surgi-
mento das Memórias Biográficas. Nesse momento Luís Duchesne (1843-1922)
e Hipólito Delehaye (1859-1941) atacavam com virulência as “lendas piedosas”
no Bulletin Critique e em suas publicações acadêmicas. O magnífico estudo in-
trodutório do bolandista Charles de Smedt, Principes de la critique historique, foi
publicado em 1833. Contudo, esse método científico, que não se impôs nem
mesmo na França, parece não ter chegado à Itália. Os antimodernistas dos iní-
cios do século XX consideraram-no muito pouco ortodoxo.

Para o fato de Saint-Rambert, veja-se Documenti XLIII, 335-336, que foi editado tendo por
71

base uma carta de madame Adèle Clément, de 13 de abril de 1891. A informação foi posteriormente
confirmada pela sua filha (Lyon, 13 de abril de 1932). A história foi editada em MB XIV, 681-682.
Para o fato de Sarriá, veja-se Documenti XXXI, 86-89.

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Pietro Scoppola escreve sobre o tema:

Atendo-nos aos relatos e observações feitas no século XIX pelos eruditos, [...]
o nível da cultura eclesiástica [nos seminários italianos] era medíocre [...]. A
qualidade da formação dos seminaristas, com suas sérias deficiências, foi de-
nunciada por Rosmini nas Cinque piaghe della santa Chiesa [As cinco chagas
da Santa Igreja], continuou a ser muito pobre, apesar de algumas evoluções.
Em geral, os professores não eram escolhidos pela competência e, com raras
exceções, descuidavam-se dos estudos empíricos [...].72

Os biógrafos de Dom Bosco da segunda metade do século XIX e da pri-


meira do século XX compartilharam a mentalidade pré-científica. Lemoyne
acreditava ter posto os fundamentos para um trabalho realmente “racional”;
ele escrevia no prólogo do volume I das Memórias Biográficas:

Não foi a fantasia que ditou estas páginas, mas o coração guiado pela fria ra-
zão, depois de longas pesquisas, correspondências, comparações [dos textos].
As narrações, os diálogos, tudo aquilo que acreditei digno de memória, não
são senão a fiel exposição literal do que os textos nos expuseram.73

Lamentavelmente, ele confundia perfeição “racional” com acúmulo da


quantidade ou dos conteúdos. Em outras palavras, ele reuniu relatos docu-
mentais sem qualquer análise de crítica sistemática.

O emprego dos documentos


Para a primeira geração de biógrafos salesianos, o importante era reco-
lher documentos e apresentá-los de forma legível. Foi o que fizeram Lemoy-
ne, Ceria e Amadei ao redigirem as Memórias Biográficas. A dimensão do
trabalho indica a abundância dos documentos convertidos numa espécie de
enciclopédia histórica salesiana dos primeiros tempos.
Temos uma dívida de gratidão com Lemoyne, notadamente por ter reu-
nido diligentemente e editado nos Documenti cartas pessoais e circulares, arti-
gos de periódicos e folhetos. Prestou um inestimável serviço aos historiadores
de Dom Bosco. Por sua vez, seus continuadores, Amadei e Ceria, incluíram
uma grande quantidade de material original em seus volumes (X-XIX) das
Memórias Biográficas.

72
P. Scoppola, “Italie: periode contemporaine”, Dictionnaire de spiritualité, VII, Parte 2, Paris,
1971, colunas 2296-2297.
73
MB I, IX ss.

79

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os documentos reunidos com letra pequena por Ceria nos apêndices de


seus volumes (XI-XIX), sempre mais abundantes na medida em que a vida do
Santo continuava, foram de grande ajuda para os pesquisadores através dos anos.
Por exemplo, o itinerário da longa viagem de Dom Bosco pela França, na pri-
mavera de 1883, é descrito cuidadosamente com informações de primeira mão
em mais de 70 itens (cartas, artigos, relatos de reuniões, artigos de periódicos),
reunidos por Ceria no apêndice ao volume XVI das Memórias Biográficas.
Entretanto, no texto compilado, o material válido mescla-se confusamente
com informações de menor valor e mais questionáveis. Isso se deve ao método
editorial que agora começamos a entender. Para Lemoyne, de modo particular,
o texto histórico consistia em recolher todos os relatos disponíveis, organizando-
-os e inserindo-os para enriquecer a narração. A ideia de Ceria e Amadei quanto
ao modo de compor um relato histórico era não menos pré-científica do que a
de Lemoyne. Em sua opinião, os documentos simplesmente abalizavam a his-
tória, e sua forma específica não supunha qualquer diferença entre eles. Tudo o
acreditavam ser necessário era organizá-los e apresentá-los de maneira coerente;
estavam obcecados com os detalhes do conteúdo.
Um método realmente científico está atento à forma, e aceita com hu-
mildade o provável e o verossímil, especialmente em campo histórico. É um
procedimento errôneo, porém, tratar determinado documento como se não im-
portasse o seu gênero literário. Por isso, o testemunho devidamente atribuído a
uma pessoa indicada pelo nome pode ser enriquecido com informações paralelas.
O relato de um sonho narrado tardiamente pode ser modificado e completado
com a recordação de outras pessoas; um discurso pronunciado em determinada
circunstância pode ser corrigido e complementado com a ajuda, não só de lem-
branças complementares sobre o discurso como também com aspectos que se
referem a fatos nele apresentados, e assumir formas de proporções extraordinárias
que teriam causado admiração em pessoas não prevenidas. Ou, se o gênero dos
testemunhos for revestido de relativa pouca importância, construir-se-á um relato
em primeira pessoa e, se necessário, este será colocado nos lábios ou na pena de
Dom Bosco para dar colorido ou dramatizar um capítulo ou um parágrafo.
Desde que os detalhes sejam exatos e estejam todos ali, a escolha de
um subgênero literário (citação de texto, testemunho pessoal, discurso etc.)
importa muito pouco. Será só uma questão de estética. Às vezes, para efeito
estilístico, um relato pode ser convertido numa narração em primeira pessoa
ou em forma de diálogo. Lemoyne, sem adverti-lo, fará Dom Bosco falar em
primeira pessoa. E o faz através de textos autorizados por Dom Bosco ou de
relatos de suas falas anotadas rapidamente pelos ouvintes. Assim, de maneira

80

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A tradição biográfica de Dom Bosco

totalmente involuntária, converte o estilo simples e direto de Dom Bosco em


estilo de falar e escrever que lhe era bastante alheio.
Nas Memórias Biográficas, Lemoyne introduz a narração da ordenação
de Dom Bosco e da primeira missa em 6 de junho de 1841 referindo-se di-
retamente às Memórias do Oratório: “Em conhecido manuscrito, Dom Bosco
ainda escreve o que segue [...]”. Em seguida, cita a breve narração autobiográ-
fica do Santo, ampliada com material adicional de várias fontes, mas que ele
atribui a Dom Bosco. (Os acréscimos estão em cursivo.)7475

Memórias do Oratório, de Dom Bosco74 Memórias Biográficas, de Lemoyne75


Celebrei minha primeira Missa na igreja Em conhecido manuscrito, Dom Bosco ainda
de São Francisco de Assis, onde o padre escreve o que segue:
Cafasso era diretor de estudos. Esperavam- “O dia da minha ordenação era a vigília da
-me ansiosamente em minha terra natal: Santíssima Trindade, 5 de junho, e foi realizada
havia anos que não se celebrava aí uma pelo arcebispo dom Luís Fransoni na residên-
Missa nova. Preferi, todavia, celebrá-la em cia episcopal. Celebrei a minha primeira missa
Turim, sem alarde, e posso dizer que foi na igreja de São Francisco de Assis, [anexa ao
esse o dia mais belo da minha vida. No me- Colégio Eclesiástico], do qual era diretor o pa-
mento daquela Missa inolvidável procurei dre José Cafasso, meu insigne benfeitor e diretor.
recordar devotamente todos os meus pro- Era ansiosamente esperado em minha terra na-
fessores, benfeitores espirituais e tempo- tal onde há vários anos não se celebrava mais
rais, e de modo especial o pranteado padre uma Missa nova; preferi, todavia, celebrá-la em
Calosso, que lembrei sempre como grande Turim, sem rumores, no altar do Santo Anjo da
insigne benfeitor. Guarda, que está nessa igreja do lado do Evange-
lho. Nesse dia a Igreja universal celebrava a festa
da Santíssima Trindade, a arquidiocese de Turim,
a do milagre do Santíssimo Sacramento, e a igreja
de São Francisco de Assis, a festa de Nossa Senhora
das Graças, ali honrada desde tempos muito anti-
gos, e posso chamá-lo o dia mais belo da minha
vida. No memento daquela Missa memoranda
procurei recordar devotamente todos os meus
professores, benfeitores espirituais e temporais,
e de modo especial o pranteado padre Calos-
so, que sempre recordei como grande e insigne
benfeitor. É uma piedosa crença que o Senhor
conceda infalivelmente a graça que o neossacerdo-
te lhe peça ao celebrar a primeira Missa: eu pedi
fervorosamente a eficácia da palavra para poder
fazer o bem às almas. Parece-me que o Senhor ou-
viu minha humilde oração”.

74
MO, 111.
75
MB I, 519; MB I, 518.

81

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Dom Bosco: história e carisma 1

O fragmento autobiográfico de Dom Bosco foi gradualmente amplia-


do por etapas, desde os Documenti II (1885) até as Memórias Biográficas I
(1898). Nos Documenti, Lemoyne citava as linhas trazidas sobre a primeira
missa nas Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e acrescentava em seguida a
parte sobre o dom da eloquência.76 Este acréscimo, que parece provir de um
testemunho escrito desconhecido, sobrecarregava a narração simples de Dom
Bosco. Mais tarde, Lemoyne retocou as linhas de Dom Bosco acrescentando
o nome (José) do padre Cafasso e a frase “meu insigne benfeitor e diretor”.
Estes pequenos acréscimos provêm do Testamento Espiritual de Dom Bosco
(1884-1886).77 A declaração do padre Ascânio Sávio (1895) no processo de
beatificação proporcionou a inclusão “para poder fazer o bem às almas”, ago-
ra unida à frase sobre “a eficácia da palavra”.78 O texto de Dom Bosco foi de-
pois ampliado com uma informação obtida do padre Lourenço Romano, que
escreveu a Lemoyne em nome do reitor da igreja de São Francisco de Assis,
padre Luís Dadesso. A carta, com data de 11 de dezembro de 1891, especifi-
cava o altar em que se celebrou a missa e os vários acontecimentos litúrgicos
que ocorriam nesse dia, 6 de junho de 1841.79
A explicação dessa surpreendente compilação de testemunhos de fon-
tes variadas, todas anexadas ao “conhecido manuscrito” de Dom Bosco, está
no método de recompilação de Lemoyne. Indiferente à natureza e origem
dos fragmentos heterogêneos à sua disposição, ele serviu-se deles na forma
adequada ao seu estilo narrativo. Os testemunhos são informativos, mas a
recompilação de Lemoyne não é fiel ao caráter, estilo, memória, e nem aos
bem conhecidos sentimentos de Dom Bosco. Não é preciso inventar algum
manuscrito perdido de Dom Bosco sobre o período. A passagem, como apa-
rece nas Memórias Biográficas, é criação de Lemoyne, procedimento adotado
por ele em numerosas ocasiões.
As citações, mesmo procedentes de Dom Bosco, são raramente fiéis
e nunca seguras. Quando havia narrações paralelas de um acontecimen-
to, o texto era retocado e interpolado com detalhes de outro. Como
os outros dois biógrafos, Ceria e Amadei, se apoiaram basicamente nos
76
Documenti II, 6.
77
Ver a edição crítica, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli Salesiani [Tes-
tamento Espiritual], preparada por Francesco Motto, RSS 4 (1985), 73-130. Também MB I, 518-519.
78
Este acréscimo provém, sem dúvida, do testemunho de Ascânio Savio, que também propor-
cionou a continuação do texto, sem citação, presente em MB I, 519. Sávio testemunhou: “Eu só posso
testemunhar que, como ele me disse, na ocasião de sua ordenação, entre as graças que tinha pedido
estava o dom da palavra para ser capaz de fazer o bem às almas. Segundo meu modo de ver, ele obteve
essa graça abundantemente” (Ascânio Sávio, Processo ordinário da Cúria de Turim, 4552).
79
Lorenzo Romano a G. B. Lemoyne, Turim, 11 de dezembro de 1891; narrado em Documenti XLIII.

82

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Documenti de Lemoyne, as citações que fazem devem ser tidas do mesmo


modo “contaminadas”.
A história do Santuário de São Miguel (Sagra di San Michele) é outro
exemplo. Lemoyne conta, nas Memórias Biográficas, a história do passeio de
Dom Bosco e seus meninos a esse santuário em 1850. Diz-se nessa ocasião, que
Dom Bosco apresentou aos meninos uma erudita e detalhada história do famo-
so lugar. Sua “conferência” ocupa uma página inteira: começa com a primeira
ermida pelo ano 990 d.C. e continua com a construção de uma magnífica igre-
ja gótica e um mosteiro beneditino no século XIV. A abadia passou ao controle
e proteção dos duques de Saboia até a invasão napoleônica nos inícios do século
XIX. Em sua exposição erudita, o narrador inclui a história do Vale de Susa e
um relato da vitória de Carlos Magno contra os lombardos. Lemoyne coloca
toda a história entre aspas, como se fossem palavras de Dom Bosco.80
O leitor fica impressionado com a notável erudição e memória de Dom
Bosco. Contudo, de fato, é efeito da técnica narrativa de Lemoyne. A narrativa
do passeio é tomada da História do Oratório, de Bonetti, e a história do santuário
aparece em nota de rodapé, provavelmente tirada por Bonetti de alguma enci-
clopédia.81 Lemoyne, que se serviu da História de Bonetti como fonte para as
Memórias Biográficas, transcreveu a nota como palavras de Dom Bosco.
Em outro exemplo, Lemoyne descreve como “testamento” de Dom Bos-
co aos Cooperadores uma composição, diz ele, encontrada entre os papéis
do Santo, e etiquetada “para se enviar depois da minha morte”. Lemoyne
imprimiu-a nos Documenti com as palavras: “Este é o precioso documento”.82
Ceria transcreveu-o nas Memórias Biográficas, introduzindo-o com as pala-
vras: “Dom Bosco dizia”.83 Mais tarde, Ceria reconhecerá que o documento
foi na verdade composto pelo padre Bonetti.84
Em outras ocasiões, Lemoyne unia vários fragmentos, justapondo-os ou
intercalando-os, segundo o interesse daquilo que ele pensava ser a verdade to-
tal. Em outros casos, esse procedimento ocasionou uma falsa caracterização,
devido à forma totalmente nova que dava à sua fonte.
Um dos exemplos mais enganosos é a história da audiência, inteira-
mente imaginada, que Pio IX supostamente concedeu a Dom Bosco em 10
de fevereiro de 1870. Cada um dos trechos reunidos é “substancialmente”

80
MB IV, 119-120.
81
G. Bonetti, “Storia dell’Oratorio” [...], BS (abril 1881) 15, nota 1.
82
Documenti XL, 324-332.
83
MB XVIII, 621-623; MB XVIII, 569.
84
Cf. Epistolario Ceria IV, 393, nota.

83

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Dom Bosco: história e carisma 1

autêntico, mas o quadro geral resultante é completamente fictício. Esta au-


diência nunca aconteceu.85
Apesar das deficiências do método, Lemoyne tentou ser um narrador
fiel. Sua compilação recolhia, com frequência, as mesmíssimas palavras de
Dom Bosco refletindo o espírito do Fundador.

A fisionomia “carismática” de Dom Bosco


Lemoyne teve por finalidade descrever, com a ajuda de uma multidão de
testemunhas, a vida de um homem extraordinário. Movido pela admiração
por esse homem, ele procurou examinar a vida interior do Santo de modo
que suas descrições se converteram em “explicações”. Ao trabalhar com mo-
delos conceituais, Lemoyne sobrepôs ao sujeito a imagem idealizada da sua
concepção pessoal. Ele, provavelmente, não estava ciente disso; acreditava ser
tão objetivo, que não sentiu qualquer necessidade de analisá-la criticamente.
O exame crítico da fisionomia idealizada ajudaria o historiador a entender a
mentalidade refletida nas Memórias Biográficas, mentalidade que configurou
profundamente a “psique” salesiana.
Refiro-me aqui a um aspecto relevante da questão. Lemoyne viu Dom
Bosco como um carismático, no sentido weberiano da palavra. Desde seu pri-
meiro encontro — a experiência de Lerma —, ele atribuiu poderes sobrena-
turais a Dom Bosco e, mais tarde, essa atitude influenciou a sua interpretação
do Santo. Xavier Thévenot, referindo-se a Dom Bosco, escreveu:

A força carismática é considerada como dom extraordinário de Deus e sobrena-


tural quando aquele que a possui é um crente. Quem possui essa força afirma
acreditar que lhe foi confiada uma missão que se transforma numa espécie de
urgência interior e sinal da vontade de Deus [...]. A partir desse ponto de vista
psicanalítico, pode-se dizer que um líder carismático se considera alguém dota-
do de conhecimento e poder especiais. Como seus discípulos o idealizaram, ele
aparece diante deles perfeito e capaz de triunfar onde os outros fracassam. Como
consequência, creem-no infalível e onipotente e, com frequência, também al-
guém que conseguiu um controle extraordinário sobre seus desejos agressivos e
sexuais. Admitir que, de fato, o líder está sujeito a esses desejos seria uma negação
dolorosa da necessidade infantil de onipotência que está na raiz da idealização.86

F. Desramaut, “Le récit de l’áudience pontificale du 12 février 1870 dans les Memorie biografiche
85

de Don Bosco”, RSS 6 (1987) 81-104. Esta audiência imaginária é descrita em MB IX, 815, 826-827.
86
Xavier Thévenot, Don Bosco éducateur et le système préventif (Colloque universitaire de Lyon,
1988). Esta apresentação também está em Orientamenti Pedagogici 25 (1988), 704-705.

84

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Quando Dom Bosco refletia sobre sua vida passada, sentia certamente
que Deus e a Virgem Maria o tinham guiado, iluminado e sustentado em
suas difíceis empreitadas, enfim coroadas de sucesso. Segue-se disso que o
biógrafo o visse como objeto de uma espécie de “predeterminação” divina.
Além disso, Dom Bosco afirmava ter visto num sonho Nossa Senhora que
lhe indicava um local de Valdocco e uma grande igreja que ali surgiria, com a
frase: “Esta é a minha casa, de aqui sairá a minha glória”. Ele, porém, nunca
afirmou que recebera desde o início instruções divinas ou uma vocação tão
clara ou como entendê-la e depois segui-la ao longo da sua vida. Essa inter-
pretação ignora as forças históricas e as causas secundárias, outro aspecto
típico da mentalidade pré-científica. Priva-se assim a vida do Santo do seu
significado histórico real. Essa é precisamente a imagem de Dom Bosco que
Lemoyne projeta nas Memórias Biográficas. Confirma-o um estudo recente
de Braido e Arenal sobre Lemoyne historiador, citando um pequeno trabalho
feito por ele a respeito do papel de Maria na vida de Dom Bosco. Tudo se
resume numa simples regra: “Sempre que Dom Bosco projetava um novo
empreendimento, costumava falar como se visse claramente todas as suas
etapas mais ou menos triunfantes [...], como o capitão de um barco [...] que
conhece antecipadamente toda a travessia, mesmo antes de o barco deixar o
porto. Ó, quão boa é a Virgem!”.87
Lemoyne escreveu isso em 1889. Quatro anos antes, ele expressara quase
a mesma ideia nos Documenti, em relação à visita de Dom Bosco ao padre
Antonio Rosmimi, em cuja congregação pensava entrar. Lemoyne escreve:

Ele, por sua vez, estava disposto a total obediência a alguém que lhe dissesse
o que fazer, e teria preferido continuar seu projeto sob a autoridade de algum
outro; em outras palavras, guiado pela obediência a um superior. Entretanto,
a Virgem Maria, numa visão, indicara-lhe o campo do seu trabalho. Ele tinha
um plano predisposto e preordenado do qual não podia e não devia desviar-se
livremente; era inteiramente responsável pelo seu resultado; e tinha uma visão
clara do caminho a seguir e dos meios a empregar para o empreendimento ter
sucesso. Não podia, portanto, pô-lo em perigo confiando-o ao julgamento e
aos desejos de outros. Naquele ano, ele simplesmente queria estudar se pode-
ria levar a cabo a sua obra em algum instituto existente, mas logo percebeu
que não [...].88

87
G. B. Lemoyne, La Madonna di Don Bosco: ossia Relazioni di alcune grazie concesse da Maria
Ausiliatrice ai suoi devoti. Turim: Tipografia Salesiana, 1889, 17-19, em Pietro Braido - Rogélio Are-
nal Llata, Lemoyne, 113.
88
Documenti III, 151.

85

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Dom Bosco: história e carisma 1

Cresce, nas Memórias Biográficas, o poder persuasivo dessas conside-


rações, atribuindo-as diretamente ao próprio Dom Bosco. Para tanto, ser-
ve-se de uma passagem da crônica de Barberis de 1º de janeiro de 1876,
em que o cronista conta a explicação de Dom Bosco sobre o motivo pelo
qual tinha considerado entrar entre os rosminianos. Ele cita Dom Bosco
em primeira pessoa explicando a questão a alguns Salesianos, incluído o
padre Barberis:

“É verdade, reverendo Dom Bosco, que [o senhor] esteve alguns dias como
noviço entre os dominicanos?” “Não [com os dominicanos], mas eu tinha
pensado em unir-me aos oblatos aqui em Turim, aos rosminianos [...].
Quanto ao que me dizia respeito, creio que poderia ter vivido em harmo-
nia, sob a obediência, em qualquer comunidade religiosa. De fato, teria
sido feliz por tê-lo feito. Entretanto, já tinha criado um plano bem elabo-
rado, ao qual não podia e não devia renunciar. Considerei a possibilidade
de colocar aquele plano em execução numa congregação já existente, mas
percebi que isso não se podia concretizar. Por conseguinte, não me uni a
nenhuma congregação, mas decidi-me a reunir pessoalmente um grupo de
irmãos ao meu redor, de modo que lhes pudesse comunicar o espírito que
eu sentia tão profundamente [...], porque tinha uma clara compreensão da
direção a tomar e dos meios a usar para chegar à meta”.

Em seguida, Barberis acrescenta a própria interpretação carismática,


“sobrenatural”, das palavras de Dom Bosco, fazendo o Fundador falar no-
vamente em primeira pessoa:

A esta altura, Dom Bosco parecia confuso, como que incapaz de encontrar
palavras adequadas para explicar o que queria dizer, mas também sem reve-
lar muito. Para expressá-lo com palavras simples, creio que ele queria dizer
isto: “A Virgem Maria mostrara-me numa visão o campo em que fora cha-
mado a trabalhar, assim como os meios a usar para chegar à meta. Como
estava sozinho e não tinha ninguém para ajudar-me, pensei em unir-me a
alguma congregação em que pudesse levar adiante o plano que a Virgem
me havia confiado e conseguisse colaboradores para aquele fim. Descobri,
porém, que o espírito daquelas congregações, por mais santo que fosse, não
se adequava ao que eu tinha em mente. Assim, preferi trabalhar sozinho, e
abandonando a ideia de servir-me de colaboradores já formados, recrutei
meus próprios operários”. Não precisamos demonstrar tudo isso. Sabemos
que, ao menos desde 1843-1844 Dom Bosco criara planos bem elaborados,
isto é, planos que lhe tinham sido confiados pela Virgem Maria. Esse foi o

86

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A tradição biográfica de Dom Bosco

ano da famosa visão em que lhe foi dada a faixa (da obediência) com que
amarrar a cabeça de seus colaboradores.89

Dom Bosco falou do “seu plano”. Interpretando, Barberis falou de “pla-


nos que lhe tinham sido confiados pela Virgem Maria”. Nas Memórias Biográ-
ficas, Lemoyne acompanha ou imita Barberis e refunde o texto dos Documen-
ti pondo-o na primeira pessoa: “A Virgem Maria”, dizia-nos Dom Bosco mais
tarde, “tinha-me indicado numa visão o campo em que eu devia trabalhar. Eu
tinha, portanto, um plano concreto, preordenado, completo”.90 Dessa forma,
o plano “humano” converteu-se em plano “revelado”.
As Memórias Biográficas também registram outras declarações do preor-
denamento divino, que atribuem a Deus ou a Maria os planos concebidos
e realizados por Dom Bosco em determinadas circunstâncias da vida. Por
exemplo, quanto à pretendida nova edição do sonho vocacional de Sussam-
brino em 1837, Lemoyne escreve:

A esta altura não podemos deixar de fixar o olhar no progressivo e racional


suceder-se dos vários sonhos surpreendentes. Aos 9 anos, João Bosco veio a
conhecer a grandiosa missão que lhe será confiada; aos 16, escuta a promessa
de meios materiais, indispensáveis para acolher e nutrir inúmeros jovens; aos
19, uma ordem imperiosa faz com que entenda não ser livre de recusar a
missão que lhe foi confiada; aos 21, é-lhe revelada a classe de jovens cujo bem
espiritual deverá ter em especial cuidado; aos 22, é-lhe indicada uma grande
cidade, Turim, onde deverá dar início aos seus trabalhos apostólicos e às suas
fundações. E, como veremos, essas misteriosas indicações não acabarão aqui,
mas continuarão em intervalos até que seja realizada a obra de Deus. Poder-
-se-ia dizer, então, que estes sonhos são meras combinações da fantasia?91
A “progressão lógica” dos surpreendentes sonhos aos 16, 19, 21 anos etc. é
certamente inventada, uma conclusão à qual o biógrafo chega segundo os
diversos textos do sonho da vocação concatenados de forma acrítica.92

Estas interpretações, mais ou menos gratuitas, da vida de Dom Bosco como


“sobrenaturais” diminuem ou destroem o verdadeiro alcance da autêntica história

89
J. Barberis, Crônica autógrafa, Caderno III, janeiro 1, 1876, 55 FDB 835 E6 e 55-56, FDB
835 E6-7. A “faixa da obediência” refere-se ao sonho de 1844, como referido por Barberis a partir da
narração de Dom Bosco, em 1876.
90
MB III, 247.
91
MB I, 426.
92
Desramaut explicou profusamente a duplicação do sonho da vocação de Dom Bosco aos 9
anos, em Memorie, 250-256.

87

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Dom Bosco: história e carisma 1

de Dom Bosco. A busca, as incertezas, as lutas, os erros e descobertas, os contra-


tempos transitórios diante do êxito final parecem encenações. Dom Bosco confiou
certamente na graça de Deus e na intercessão de Maria, e acreditou na orientação
divina das circunstâncias de sua vida terrena, mas não do tipo que Lemoyne relata
em sua vida. Esses prejulgamentos impedem o conhecimento genuíno de Dom
Bosco, pois criam uma falsa imagem dele. O que aconteceu com o autêntico
Dom Bosco, que constantemente buscava e constantemente se adaptava?
A idealização permitiu a Lemoyne ressaltar outros aspectos do caráter
de Dom Bosco, especialmente as virtudes como a humildade, a doçura, a
amabilidade etc., como parte do legado carismático do herói. Essas qualida-
des influíram tanto no biógrafo, talvez inconscientemente, que encobriram
a apresentação das palavras e ações do seu herói. Qualquer impulso agressi-
vo foi sistematicamente minimizado. Por exemplo, Lemoyne nunca admitiu
que Dom Bosco ficasse ressentido alguma vez. Substituía sistematicamente a
palavra raiva por indignação. Nem jamais admitiu que tivesse demonstrado
alguma vez aspereza em relação a um aluno, inclusive nos sonhos.
Essa idealização é uma das muitas graves deficiências de um trabalho,
em muitos aspectos, gigantesco.

O método de Amadei e de Ceria


A forma de narrar e interpretar adotada por Ângelo Amadei no volume
X das Memórias Biográficas é semelhante ao de Lemoyne. Em geral, não difere
muito na sensibilidade e no estilo da narração.
Depois, com o volume XI, muda o tom. Os nove volumes (XI-XIX),
compilados pelo padre Ceria seguem o mesmo padrão; são interessantes e
bem escritos; essas qualidades, porém, são insuficientes para satisfazer a de-
manda de um enfoque mais crítico. Poder-se-ia esperar que em sua obra bio-
gráfica, o método de Ceria tivesse evoluído para algo mais conforme às atuais
legítimas expectativas.
Ele trabalhou em tempo recorde o que tinha de historiar (os anos 1875-
1888). Apesar da grande quantidade de documentos, conseguiu publicar um
volume por ano. Essa façanha foi possível porque seguiu fielmente os Docu-
menti de Lemoyne, que já eram uma razoavelmente bem articulada história
de Dom Bosco, exposta ano por ano em cerca de 30 volumes infólio. O mate-
rial relativo a 1875 estava em Documenti XV. Ele fez algumas, poucas, pesqui-
sas extras. Modificou o texto de Lemoyne de várias maneiras, embora nunca
tenha recusado, e nem sequer comprovado, as construções particulares do
seu predecessor; jamais quis identificar as fontes das quais Lemoyne se serviu.

88

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Bastará um exemplo entre muitos. No volume XVIII das Memórias Bio-


gráficas, ele copiou o diálogo e os comentários originais, mas sem qualquer re-
ferência à fonte, da história de uma inesperada visita de um advogado francês a
Dom Bosco em 3 de fevereiro de 1886. O advogado fez-lhe algumas perguntas
bastante indiscretas sobre os reis da casa Bourbon. O relato conclui assim:

Alguém suspeitou que fosse um agente da polícia francesa enviado para in-
vestigar as ideias políticas de Dom Bosco [em especial, sobre a possibilidade
de restaurar a monarquia francesa]. Em todo caso, as respostas do Santo não
podiam levantar suspeitas ou dar motivo para uma acusação. Fora sempre sua
diretriz não se imiscuir em política.

As palavras dessa conclusão são transcritas quase literalmente dos Documenti.93


Sem dúvida, diversamente de Lemoyne, Ceria não achou oportuno
incluir os pequenos detalhes em sua história. De fato, aos poucos, tomou
a liberdade de resumir passagens ou frases importantes. Tratava-se de uma
liberdade editorial que Lemoyne jamais havia tomado. Seja como for, os
princípios de interpretação que regeram os dois biógrafos eram semelhantes.
Ceria, como Lemoyne, sustentava que todos os testemunhos constituem uma
reflexão sobre a vida e que, assumidos como se apresentam, podem servir para
reconstruir a vida. Por conseguinte, falhou em analisar a vida de Dom Bosco
como ela se desenrolava no mundo real, sem examinar criticamente o espírito
e a substância do que as testemunhas escreveram.
A familiaridade de Ceria com a literatura greco-romana, porém, incli-
nava-o a desconfiar de Lemoyne, quando este narrava diálogos e relatos em
primeira pessoa. Ceria alterava-os, com frequência, para uma narração em
terceira pessoa.
Quando se comparam as Memórias Biográficas de Ceria com as suas fon-
tes nos Documenti, percebe-se que, diversamente de Berto e Lemoyne (os
outros redatores dos Documenti), Ceria dava menos importância às predições
e profecias de Dom Bosco.
Pode-se dizer que, em geral, Ceria introduziu os testemunhos originais
(dos Documenti) em sua narração sem qualquer alteração. Por isso, nem todas
as inexatidões, algumas certamente lamentáveis, devam ser-lhe atribuídas.94

A fonte é Documenti XXXI, 44-45, usada em MB XVIII, 28-29.


93

Por exemplo, Ceria, ao citar os Documenti, faz Dom Bosco dizer no Capítulo Geral III (1883)
94

que o Bolletino Salesiano deveria ser difundido “como um periódico público” (MB XVI, 412). As atas
do capítulo, redigidas sem dúvida por Marenco, que Ceria teve diante dos olhos, assinalavam justa-
mente o oposto: “Não devia ser promovido como um periódico” [ASC 046, CG 1883, 6].

89

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Dom Bosco: história e carisma 1

Ele foi mais moderno do que Lemoyne no enfoque, pois normalmente não
insistia muito nos prodígios. Havia algum progresso entre a geração de Le-
moyne e a seguinte. Não obstante, embora Ceria tenha sido mais prudente e
cauteloso na leitura de suas fontes, não pôde livrar-se totalmente da qualifi-
cação de “pré-científico” que se aplicou ao seu predecessor.
O texto dos volumes IX-XIX das Memórias Biográficas demonstra a ha-
bilidade literária de Ceria. O material relativo aos diversos anos da vida de
Dom Bosco está bem organizado, não agrupado aleatoriamente pelo gosto
da cronologia. Cada capítulo tem seu próprio título, que corresponde ao
conteúdo. O estilo é claro e a história desenvolve-se com fluidez. Para apre-
ciar essa qualidade literária bastaria retroceder e ler (pelo gosto de comparar)
algumas páginas do volume X, de Amadei. É como passar de um jardim
regular e ordenado a um bosque inculto. Para qualquer leitor das Memórias
Biográficas, os anos 1871-1874 da vida de Dom Bosco são incompreensíveis
na forma como Amadei os narrou no volume X.
Diversamente, o relato de Ceria dos anos 1875-1888 recolhe os aconte-
cimentos característicos de cada ano, que incluem a expedição dos primeiros
missionários, as fundações na França, que obtiveram sucesso ou não, os es-
forços de Dom Bosco para resolver os problemas com o arcebispo Gastaldi,
o assunto da Concórdia imposta por Leão XIII, as grandes viagens a Paris em
1883 e à Espanha em 1886, e os dolorosos últimos meses da vida de Dom
Bosco. Ceria apresenta estes acontecimentos de forma clara e cuidadosa.
Sem dúvida, algumas das decisões de Ceria como compilador das Me-
mórias Biográficas são questionáveis. Ele atenuou alguns episódios difíceis,
suavizou algumas conversas e, ocasionalmente, suprimiu os aspectos menos
agradáveis de alguns personagens. Era basicamente uma questão de diploma-
cia! Em 12 de agosto de 1952, padre Ceria disse-me pessoalmente [Desra-
maut] que em 1930 um cônego da cúria de Turim lhe negou o imprimatur
para o volume XI das Memórias Biográficas (o primeiro volume de autoria de
Ceria), porque o livro apresentava o arcebispo Gastaldi de um ponto de vista
desfavorável. Ceria pedira conselho ao jesuíta padre Rosa, da Civiltà Cattoli-
ca, que lhe aconselhara a publicar o trabalho pro manuscripto [privadamente],
instrumento jurídico que o dispensava de qualquer revisão da chancelaria
turinense. Assim, ele pôde publicar a obra, e o fato serviu-lhe de lição: padre
Ceria levou em consideração as reações de alguns eclesiásticos, o que pode
explicar seu silêncio sobre alguns temas em várias ocasiões.95

95
No mesmo dia ele me falou [Desramaut] sobre um incidente similar que foi de grande impor-
tância. Em 1930, um “revisor oficial” (um cardeal, se bem me recordo) disse ao padre Ceria que ele devia

90

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A tradição biográfica de Dom Bosco

A versão de Ceria sobre os acontecimentos é sempre moderada. Por


exemplo, ele não se detém na emocionante cerimônia de despedida dos mis-
sionários para Quito, quando as fontes falam dos suspiros e soluços de Dom
Bosco e da multidão reunida na igreja de Maria Auxiliadora;96 suaviza as pro-
postas de Dom Bosco ao Capítulo Superior sobre os internos em Valdocco.97
As palavras “muitos Salesianos não têm espírito salesiano para nada”, que
Dom Bosco disse numa reunião do Capítulo Superior em 5 de novembro de
1883, foram alteradas por Ceria nas Memórias Biográficas por “alguns Salesia-
nos [...]”.98 Consequentemente, a fisionomia resultante carece do vigor que
agradaria hoje.
Apresentar a visão de Ceria sobre a vida de Dom Bosco exigiria muitos
outros exemplos e um estudo comparado mais cuidadoso do que aqui é possí-
vel. Contudo, parece-me que se possa fazer este comentário. Em sua interpre-
tação habitual da vida de Dom Bosco, apesar da dependência em relação aos
relatos e comentários dos Documenti, Ceria evitou os excessos de Lemoyne e
uma sistematização a priori.99 Ele, sem dúvida, esforçou-se por se livrar das
explicações piedosas e “sobrenaturais” das quais Lemoyne era partidário. Em
geral, seguiu suas fontes e ofereceu, embora mais brevemente, uma versão de
Dom Bosco idêntica à que fora dada por Lemoyne.

Comentário final
Concluindo estas observações sobre o método de trabalho dos três au-
tores das Memórias Biográficas, é oportuno considerar as duas categorias de
pessoas que se aproximam deste trabalho, com intenções muito diversas. De
um lado, estão os que buscam alimento espiritual na leitura contínua das

suprimir o capítulo inteiro sobre o arcebispo Gastaldi no primeiro rascunho do seu magnífico livro, San
Giovanni Bosco nella vita e nelle opere. Ele o fez com grande reticência. De fato, na página 283 (no final
do capítulo XXXIV sobre a igreja de São João Evangelista), ele acrescentou estas palavras: “Este foi ape-
nas um dos episódios muito dolorosos, uma pequena parte da grande história de sofrimento que, devido
à sua duração e consequências, foi a provação mais severa que o Santo precisou suportar”. A passagem
conclui simplesmente: “Contudo, outras considerações de maior peso sugerem que a narração destes
assuntos deve ser postergada para um momento e lugar mais oportunos”.
96
Cf. Documenti XXXVI, 77 (da crônica de Viglietti), e MB XVIII, 430.
97
Cf. Documenti XXX, 521-523, e MB XVII, 197 ss.
98
Cf. Documenti XXX, 571 e MB XVII, 586.
99
Ele omite, por exemplo, a comparação inapropriada feita nos Documenti entre os intercâmbios
epistolares de Dom Bosco e a condessa Parisina Cessac e o relacionamento de São Francisco de Sales com
Chantal. Lê-se nos Documenti XLIV, 461: “Eram como os de São Francisco de Sales e Chantal […]”.
Veja-se também MB XVI, 231, onde Ceria escreve: “...e parece que tenha recebido dele muitas cartas de
direção espiritual. É o que se diz, mas até agora nós não conhecemos nem sequer uma delas”. Ceria está
certamente falando do que se narra nos Documenti que ele tinha diante dos olhos enquanto escrevia.

91

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Dom Bosco: história e carisma 1

Memórias Biográficas, usadas como livro de devoção. Depois, os que exami-


nam detidamente esses grossos volumes para encontrar material-fonte para o
estudo de Dom Bosco.
O primeiro grupo encontrará nas Memórias Biográficas, excluído o vo-
lume X, de Amadei, uma narração da vida de Dom Bosco que não é nem
mais nem menos “autêntica” do que todas as histórias, no sentido popular do
termo: história atraente, edificante, cheia de colorido e rica de episódios. A
história é pensada para enriquecer o espírito. A leitura ingênua das Memórias
Biográficas suportou a prova de um século, e seus benefícios, de muitas for-
mas, são óbvios. Este modo de ler a obra não é, em absoluto, uma perda de
tempo; ao contrário. Embora admitindo que, mesmo neste nível, possa haver
quem prefira leituras mais “verdadeiras” e documentadas sobre Dom Bosco.
Dirijo-me, agora, principalmente à segunda categoria, aos leitores que se
dedicam em maior ou menor medida ao estudo de Dom Bosco. Para eles, o
meu conselho é outro. Verão que os volumes das Memórias Biográficas cons-
tituem uma coleção útil de documentos relativos a Dom Bosco. Desramaut
cita, mais ou menos literalmente, um comentário que o padre Ceria em sua
velhice fez a ele e a muitos outros: “Aconselho a quem estiver pensando em
elaborar uma tese sobre Dom Bosco que escolha outro tema. Quem sabe, isso
possa ser possível mais tarde, quando as cartas de Dom Bosco tiverem sido pu-
blicadas”. Segundo Desramaut, Ceria reconhecia que as suas Memórias Biográ-
ficas, que muitos viam como fonte definitiva para um sério estudo sobre Dom
Bosco, não podiam servir de base para um rigoroso estudo sobre o Santo.
À exceção dos apêndices de documentos publicados sem avaliação crítica de
Ceria e Amadei no final de seus volumes, elas continuam válidas ainda hoje.100
Os volumes de Lemoyne e seus sucessores foram redigidos segundo as
normas de composição e interpretação pré-científicas. Por conseguinte, não
se garante a autenticidade de episódios que costumam gozar da preferência
dos leitores, como são as palavras do Santo ou os relatos das testemunhas
mais imediatas da sua vida, como as crônicas, por exemplo.
A partir disso é que seria preciso fazer mais pesquisas, sobretudo em re-
lação às fontes da vida e obra de Dom Bosco. Os pesquisadores deveriam
recorrer aos escritos e publicações pessoais de Dom Bosco, às suas cartas, às
crônicas e atas, publicadas ou não. Seriam evitados então os escolhos aos quais
se sujeitaram muitos dos que se serviram apenas das Memórias Biográficas.
Desramaut cita, por exemplo, o Capítulo Geral Salesiano de 1984, quan-
do foi renovado o texto das Constituições Salesianas. No primeiro artigo das
100
O artigo de Desramaut é de 1990, mas seu raciocínio ainda é válido [Nota dos editores].

92

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A tradição biográfica de Dom Bosco

Constituições renovadas, os Salesianos fizeram uso de uma fórmula atribuída


a Dom Bosco nas Memórias Biográficas, citando-a textualmente. O artigo diz
assim: O Espírito Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou São
João Bosco. Formou nele um coração de pai e mestre, capaz de doação total:
“Prometi a Deus que até meu último alento seria para meus pobres jovens” (MB
XVIII, 258). Na verdade, a fonte dessa expressão é a crônica de Carlos Vi-
glietti (inalterada na transcrição da sua crônica). Nela se diz que Dom Bosco
prometera a Deus que “até seu último alento” ele dedicaria a própria vida “para
seus pobres órfãos”, não para seus “pobres jovens”. Em outras palavras, ele ti-
nha prometido empregar toda a sua vida para os jovens abandonados em cujo
pai se tinha convertido. Há uma grande diferença entre “viver para os pobres
jovens” e “viver para os jovens abandonados”.

93

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Capítulo III

AS MEMÓRIAS DO ORATÓRIO, DE DOM


BOSCO, E A HISTÓRIA DO ORATÓRIO,
DO PADRE BONETTI

Nossa reflexão sobre a historiografia de Dom Bosco deve incluir o exame


da narrativa de Dom Bosco sobre a origem e o primeiro desenvolvimento do
Oratório, as Memórias do Oratório, escritas entre 1873 e 1875. Acrescentaremos
a esta obra fundamental, como complemento, uma breve descrição da História
do Oratório, do padre João Bonetti, escrita nos anos 1879-1886 sob a supervi-
são do próprio Dom Bosco e publicada em capítulos no Boletim Salesiano.

I. MEMÓRIAS DO ORATÓRIO DE SÃO


FRANCISCO DE SALES
1. Origem e publicação
O texto das Memórias do Oratório foi composto por Dom Bosco no
arco de tempo que se estende de 1873 a 1875.1 Foi passado a limpo com
boa caligrafia pelo seu secretário, padre Joaquim Berto, e revisado, corrigido
e completado pelo próprio Dom Bosco em diversos momentos, até 1879. O
exame dos manuscritos evidencia que a maior parte do rascunho de Dom
Bosco foi feito nos anos 1873-1875. O restante, talvez, nos anos seguintes,
principalmente em 1877. Padre Bonetti, para escrever sua História do Ora-
tório, a partir de janeiro de 1879, serviu-se da cópia corrigida das Memórias
do Oratório; isso significa que padre Berto copiou o original de Dom Bosco
pouco depois de ele o ter escrito.

1
Para tratar das Memórias do Oratório, de Dom Bosco, usaremos o ensaio de Pietro Braido,
“Memorie del futuro”, RSS 20 (1992), 92-127. Cf. também a introdução feita por Aldo Giraudo à
edição das Memorias del Oratorio. Madri: Editorial CCS, 2010. Pode-se consultar também o tratado
de F. Desramaut, Memoire, 115-134, e id., Don Bosco, 1005-1008. Veja-se ainda a Introdução de
Antônio Ferreira da Silva, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales 1815-1855. 3ª edição, São
Paulo: Salesiana, 2005.

94

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

Reservado inicialmente — como adverte na apresentação — aos seus


“muito amados filhos Salesianos, proibindo que, assim antes como depois
da minha morte, se dê publicidade aos assuntos aqui apresentados”, Dom
Bosco, sem dúvida, percebeu que, se os Salesianos iam ter acesso ao texto,
logicamente, a obra impressa acabaria por circular na Congregação.
De fato, permitiu ao padre Bonetti que utilizasse seu texto no Boletim
Salesiano. Lemoyne também se serviu dele, como documento de arquivo, nos
Documenti e nas Memórias Biográficas. Contudo, a obra só apareceu impressa
em 1946, quando padre Ceria publicou uma esplêndida, embora não crítica,
edição do manuscrito do padre Berto corrigido por Dom Bosco. Recente-
mente, foram publicadas, pelos Salesianos do Instituto Histórico Salesiano,
algumas edições críticas do texto e edições em várias línguas.2

Intenção expressa de Dom Bosco e propósito implícito


Dom Bosco enumera no prefácio três intenções da obra:

Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições


do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas
as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos
quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai.3

Estes propósitos são vistos ao longo de toda a narração, que em muitos


pontos é divertida ou didática, consagrada totalmente a demonstrar que o
Oratório foi fruto da ação direta de Deus.
A obra, entretanto, tem uma finalidade mais ampla e fundamental, não
indicada no prefácio e que parece ter dado inspiração e estímulo à história.

2
O manuscrito original de Dom Bosco é conservado em ASC A220ss: Autografi-Oratorio, “Memo-
rie dell’Oratorio”. FDB 57-60. A cópia de Berto com as correções de Dom Bosco e os acréscimos: ibid.,
FDB 60-63. A obra foi publicada pela primeira vez com notas dos manuscritos de Berto sob o título de
San Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855, edição de Eugenio
Ceria. Turim: SEI, 1946 [MO Ceria]. A edição crítica foi publicada pelo Instituto Histórico Salesiano
com o título G. Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815-1855. Introduzione, note
e testo critico a cura di Antonio da Silva Ferreira. Roma: LAS, 1991 [MO Silva]. Em espanhol, foi
traduzida e publicada em Quito, por F. Peraza, e, em Madri, com introdução de Aldo Giraudo, em
edição preparada por José Manuel Prellezo. Madri: Editorial CCS, 2003, com o título de Memorias del
Oratorio de San Francisco de Sales de 1815 a 1855. O mesmo José Manuel Prellezo cuidou também da
edição da obra em Juan Bosco, El sistema preventivo en la educación: memorias y ensayos. Madri: Biblioteca
Nueva, 2004, 97-248. Em português, foi traduzida por Fausto Santa Catarina, revista e ampliada por
Antônio da Silva Ferreira, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales 1815-1855. 3ª edição. São
Paulo: Salesiana, 2005. As citações neste trabalho com a sigla MO são desta edição em português.
3
MO 23.

95

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Dom Bosco: história e carisma 1

Trata-se da preocupação de descrever a origem e o desenvolvimento gradual


de uma “experiência espiritual-educativa”, que assumindo a forma de Orató-
rio, tornou-se meio muito eficaz para enfrentar as necessidades de uma nova
geração de jovens. Parece que foi esta a prioridade absoluta do autor, como a
narração o revela. Trata-se da “intenção oculta” de Dom Bosco. Os objetivos
fixados no prefácio, especialmente o segundo (a orientação divina), estariam
em relação com a finalidade implícita.
A prioridade de Dom Bosco era, pois, apresentar aos seus seguidores
a experiência espiritual-educativa representada pelo Oratório, e que deveria
servir de programa normativo da vida e da atividade salesiana no futuro.
Esta história do Oratório, tão deliciosa, poética e, às vezes, também divertida
parece ter sido entendida como o contexto vital das páginas do tratado sobre
o Sistema Preventivo na educação da juventude, escrito por Dom Bosco em
1877, pouco depois das Memórias, para a abertura do Orfanato de São Pedro
em Nizza; por isso, leva em consideração, sobretudo o internato.
Esse propósito, entretanto, parece mais claro quando se percebe que
Dom Bosco se desdisse quanto à decisão de manter as Memórias em família,
permitindo ao padre Bonetti a publicação no Boletim Salesiano da maior par-
te do material abrangendo os anos 1841-1845. Um dos objetivos da História
de Bonetti é, com efeito, recomendar a todos (à Família Salesiana) o método
educativo de Dom Bosco para a educação da juventude. Em 1880, o mé-
todo já era conhecido dos seguidores de Dom Bosco e considerado como
uma criação da experiência educativa de Dom Bosco e do seu compromisso
de colocar a vida a serviço da juventude e vivido através do Oratório. Padre
Bonetti escreve:

Pode-se entender com facilidade o exemplo aqui relatado [o modo de Dom


Bosco tratar os jovens], como também pelos casos mencionados aqui e
alhures em capítulos anteriores, qual era e é o método de Dom Bosco de
educar os jovens. Ele os educa não com o sistema repressivo, mas com o
preventivo. Ele provou que este sistema é efetivo para a educação moral da
juventude, e tentou inculcá-lo praticamente nos colaboradores, catequistas,
professores e assistentes.4

As Memórias do Oratório devem ser lidas tendo presente a intenção do


autor ao contar a história do Oratório. É também o caso da História do Ora-
tório, de Bonetti.
4
Storia dell’Oratorio di S. Francesco di Sales, cap. XXI, BS 4 (1880) 9. Cf. G. Bonetti, Cinque
lustri, 136-137.

96

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

As circunstâncias da redação
Em sua introdução, Dom Bosco diz que escrevia por obediência “à auto-
ridade de quem me aconselhava”,5 referindo-se às palavras de Pio IX em 1858
e, novamente, em 1869. O motivo da obra deve ser buscado na sugestão de
Pio IX a Dom Bosco durante a histórica audiência de 1858, quando Dom
Bosco falou pela primeira vez ao Papa sobre a sua ideia de fundar uma con-
gregação religiosa. Como se lê nas Memórias Biográficas, a conversa versara
sobre Domingos Sávio, falecido recentemente, e os dons “sobrenaturais” com
que o jovem fora agraciado:

Esta revelação [a visão de Domingos Sávio sobre a conversão da Inglater-


ra] fez surgir uma dúvida na mente de Pio IX que, olhando fixamente para
Dom Bosco, perguntou-lhe se também ele, por acaso, teve alguma indicação
celeste para continuar na obra que tinha fundado; e, como lhe pareceu que
Dom Bosco titubeasse um pouco, insistiu que lhe contasse minuciosamente
todas as coisas que tivesse apenas aparência de sobrenatural. Dom Bosco,
com abandono filial, contou-lhe o que se apresentou à sua fantasia em sonhos
extraordinários, que em parte já se tinham verificado, a começar do primeiro,
quando ele tinha cerca de 9 anos. O Papa ouviu-o com viva atenção, e muito
comovido, não escondendo que lhe dava muita atenção; e recomendou-lhe:
“Ao voltar a Turim, escrevei estes sonhos e todas essas coisas que me expu-
sestes agora, minuciosamente e no seu sentido natural; conservai-as como
patrimônio para a vossa Congregação; deixai-as para encorajamento e norma
aos vossos filhos”.6

Em 1869, Pio IX transformou o primeiro convite numa ordem.7 A “or-


dem de uma pessoa de alta autoridade” pode ter sido um incentivo, mas não
deve ter sido o único, e nem sequer o principal, pois, em seguida, Dom Bosco
enumera as motivações que podem ser resumidas na “bondade” ou “necessi-
dade” da Congregação, em tempos de sua consolidação jurídica e espiritual
(a década de 1870). De qualquer forma, não as escreveu quando em 1858
recebeu pela primeira vez a sugestão ou, em 1869, a “ordem”. Por que retar-
dou a redação até meados da década de 1870? A referência de Dom Bosco à
alta autoridade pode ser uma argúcia para valorizar o texto, utilizada também
em outros escritos, por exemplo, na introdução ao pequeno tratado sobre o
Sistema Preventivo e na introdução da memória das Perquisições internas.
5
MO, 5.
6
MB V, 882.
7
MB VIII, 587.

97

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Dom Bosco: história e carisma 1

A época dos escritos intencionais de Dom Bosco


As Memórias devem ser entendidas como o resultado da preocupação do
Fundador numa época de consolidação da sua obra e de reflexão sobre ela.
Dom Bosco, com frequência, falava das “grandes coisas” que Deus realiza-
ra com a primitiva obra do Oratório e da Congregação Salesiana. Também
escreveu sobre elas; seus escritos sobre o tema se concentram sobretudo em
duas épocas.
A primeira época vai de 1854 a 1864 e coincide com o período da cria-
ção e da primeira estruturação da Congregação, que obteve o decretum laudis
em 23 de julho de 1864. O segundo período, de 1873 a 1878, é o da conso-
lidação da Congregação como entidade jurídica, com organização institucio-
nal e estruturas disciplinares e educativas.
Entram no primeiro período, muitos dos escritos que se referem à ins-
tituição e não foram publicados no tempo de Dom Bosco: a “Introdução”
ao esboço de Regulamento do Oratório de 1854 (Piano di Regolamento), as
Notas históricas (Cenno storico) de 1854 dos mesmos regulamentos e das No-
tas históricas (Cenni storici), de 1862.8 Acrescentem-se ainda as palavras de
Dom Bosco nas primeiras crônicas de Domingos Ruffino e João Bonetti, que
representam os ensinamentos formativos do Fundador e sua preocupação
de apresentar a experiência do Oratório. As três biografias (Sávio, Magone,
Besucco) publicadas por Dom Bosco entre 1859 e 1864, tomadas em seu
conjunto, mostram os resultados educativos do método de Dom Bosco.
Entra no segundo período, de profunda reflexão do Fundador, uma sé-
rie importante de escritos: primeiramente, as Memórias do Oratório (1873-
1875), o Sistema Preventivo na educação da juventude (1877) e outro texto
com o mesmo título, embora com conteúdo diverso (1878).9 Seria preciso
acrescentar também a memória das Perquisições internas (1875).10 Nessa épo-
ca, em 1877, começou-se a publicar o Boletim Salesiano e, em setembro-
-outubro do mesmo ano, celebrou-se o Primeiro Capítulo Geral. Enfim, em

8
O texto crítico destes três documentos foi publicado por Pietro Braido. Don Bosco per i giova-
ni: “l’oratorio” - una “congregazione degli oratori”. Documenti. Roma: LAS, 1988, 7-77. Tradução em
espanhol: Pietro Braido (ed.), Juan Bosco, el arte de educar: escritos y testimonios. Madri: Editorial CCS,
1994. As duas Notas históricas sobre o Oratório foram reproduzidas por J. M. Prellezo em Juan Bosco,
El sistema preventivo, 74-95.
9
Os dois textos foram editados criticamente: G. Bosco, Il sistema preventivo nella educazione
della gioventù. Introdução e textos críticos de P. Braido. Roma: LAS, 1985. Publicados na Espanha em
Pietro Braido (ed.), Juan Bosco, el arte de educar: escritos e testimonios. Madri: Editorial CCS, 1994, e
reproduzidos por J. M. Prellezo, Juan Bosco: el sistema preventivo, 249-260.
10
Cf. P. Braido - F. Motto, Don Bosco, 111-200.

98

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

1879, Bonetti, certamente por insinuação de Dom Bosco, começou a publi-


car no Boletim Salesiano a “apologia” do Oratório e da Congregação Salesiana
para a Família Salesiana e o público em geral.11
Entre os escritos do segundo período, as Memórias do Oratório são da
máxima importância. Não foi por acaso que Dom Bosco trabalhara com
grande sacrifício durante vários anos em sua composição: de 1873 a 1875,
para o primeiro rascunho e, até 1877, numa cuidadosa revisão, que supôs
muitas correções e acréscimos. Esta obra é importante por várias razões: (1)
pelo sujeito do seu argumento, o Oratório; (2) pela sua finalidade, a trans-
missão da experiência do Oratório; (3) pela sua forma e estilo literários.
O exame da forma e do estilo não é irrelevante. A forma e o estilo lite-
rários das Memórias fazem com que sejam únicas: um estilo muito distinto
daquele dos documentos que tratam do mesmo sujeito, ou seja, a origem e
a finalidade do Oratório e da Congregação Salesiana. Nesses documentos,
Dom Bosco delineia a história da sua instituição. E, embora essa história seja,
às vezes, ampliada e organizada com a finalidade de defender determinadas
ideias e experiências, o estilo é sério e concreto. As Memórias, ao contrário,
têm a forma literária de uma “saga”; seu estilo é narrativo e repleto de histó-
rias e aventuras.

Forma literária das Memórias: autobiografia?


Como a obra trata do Oratório de São Francisco de Sales, Dom Bosco
deveria ter iniciado a história a partir de 1841, quando começou a reunir os
jovens em situação de risco. Também poderia ter tomado 1844 como ponto
de partida, quando um grupo de jovens chegou ao Oratório de São Francisco
de Sales. Não obstante, iniciou a narrativa em 1815, ano do seu nascimento,
a indicar que, em sua reflexão de meados da década de 1870, ele identifica-
va o Oratório (com tudo o que significasse: missão, espiritualidade, método
educativo etc.) com a sua própria vida. Afinal, ele já estava “fazendo oratório”
e teve o sonho vocacional aos 9 anos de idade.
Dom Bosco estava convencido de que, por disposição de Deus e sob sua
guia desde o início, a vida dele estava inseparavelmente unida ao Oratório e à
Congregação Salesiana. Isso faz das Memórias uma autobiografia, mas só mate-
rialmente, pois ele percebeu que, se quisesse escrever sobre o Oratório, deveria
falar necessariamente de si mesmo.12 Aceitou o “risco”, embora, formalmente,
11
Conhecida como História do Oratório. Dom Bosco enfatiza repetidamente que o Boletim
Salesiano ia ser o seu instrumento pessoal para que os Salesianos Cooperadores pudessem receber os
ensinamentos e diretrizes do Fundador.
12
Cf. MO, 23.

99

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Dom Bosco: história e carisma 1

não pretendesse escrever uma autobiografia. O título do livro não nos deixa
qualquer dúvida a respeito; por isso, não se pode interpretar como “memórias
pessoais” ou “memórias autobiográficas”, mas com o que querem ser: “memó-
rias do Oratório”.13
O Oratório estava intimamente ligado à sua pessoa; isso, porém, não
significa que as realidades sejam intercambiáveis. A história da obra não é
idêntica à história de quem a realiza, e menos ainda quando, como neste caso,
o agente humano sempre se apresenta em segundo plano em relação ao Agen-
te Divino. Nas Memórias, a missão do Oratório não é considerada assunto
pessoal. Isso seria confundir o “ideal” inspirado por Deus (que possivelmente
vai assumindo formas históricas progressivas) com o indivíduo concreto, cha-
mado a trabalhar pelo ideal em circunstâncias históricas particulares.
Na introdução ao Esboço de Regulamento do Oratório (1854), Dom Bos-
co apresenta o Oratório como uma instituição sagrada, no sentido de ser
obra da Divina Providência. O Oratório era destinado a ser um instrumento
a partir do qual, nas novas circunstâncias históricas, a “santa religião do Filho
de Deus” iria trabalhar a favor da juventude.14 Por essa razão, Dom Bosco fala
sem rodeios do Oratório, porque em sua mente é o novo modo inspirado por
Deus para ajudar a juventude, como o “exigem os novos tempos”. Ao fazê-lo,
deve falar também de si mesmo, mas só enquanto sua vida se liga à obra do
Oratório, e pouco mais.
Dom Bosco fizera do Oratório, assim concebido, o tema de escritos
e discursos muito antes de escrever as Memórias. Por exemplo, nos docu-
mentos de 1854 e 1862 e nas conferências e conversas familiares com que
ia formando seus Salesianos nos anos de 1860, falava do Oratório com
os mesmos termos “carismáticos”. O tema do Oratório também funciona
como leitmotiv na “carta-declaração” do Comitê histórico em sua fundação

13
As Memórias na edição inglesa trazem o subtítulo de Autobiografia de São João Bosco. Na edição
francesa, de Francis Desramaut, intitula-se Souvenirs autobiographiques. Desramaut trata de esclarecê-
-lo. Escrevendo Memórias, 120-121.131-133, ele usa o termo “autobiographie”, mas só aparentemente
relacionado com a segunda finalidade (para entretenimento) e com os elementos históricos pessoais,
não necessariamente relacionados com o principal propósito educativo. Ademais, “esta autobiografia
é um pequeno tratado sobre o método educativo em vigor” (p. 121). O mesmo autor escreve em Don
Bosco, 1005-1008: “Para começar [Dom Bosco] não escrevia suas memórias pessoais como seria apre-
ciado pelos franceses; não presumia [...] escrever uma história do Oratório” (p. 105). Especula dizendo:
“Terá Dom Bosco nos deixado em suas Memórias uma autobiografia dissimulada no estilo de Gil Blas?
[O caráter autobiográfico das Memórias] poderá ser discutido por muito tempo no futuro” (p. 107)
[Gil Blas é uma novela picaresca talvez com base autobiográfica]. Sem dúvida, é obrigatório conceder
à obra de Dom Bosco o título de “autobiografia”. Isso colocaria Dom Bosco entre as grandes figuras
históricas que legaram uma “autobiografia” à posteridade.
14
Cf. P. Braido, Don Bosco I, 30-31.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

de março de 1861. Nela, o Oratório é considerado como obra da Divina


Providência, que atua de maneira nova e extraordinária mediante Dom
Bosco a favor da juventude.15
Do ponto de vista da história do pensamento religioso, a concepção
“teológica” do Oratório deve ser entendida desde a religiosidade popular.
Tende a ver a mão de Deus atuando nos acontecimentos ordinários e ex-
traordinários, levando o plano da salvação de Deus além das expectativas
humanas. Dom Bosco fala assim sobre a queda de Napoleão, o retorno de
Pio VII a Roma, as perquisições internas e o castigo de seus autores. Essa é a
mentalidade religiosa que preside a história do Oratório e da ação de Dom
Bosco nele. Não se diz uma só palavra sobre as forças sociais e históricas que
influíram no surgimento e desenvolvimento do Oratório.

Plano narrativo
A narrativa da história apresenta-se dividida em décadas. A divisão é
deliberada e cuidadosamente elaborada, criando um paralelo entre os mo-
mentos significativos da vida de Dom Bosco e o desenvolvimento crucial da
experiência do Oratório. Contudo, os momentos biográficos só têm relevân-
cia enquanto servem de base da experiência do Oratório, que é o interesse
central das Memórias. Dom Bosco deixa-o claro: “Apresento estas memórias
divididas em décadas, ou períodos de dez anos, porque em cada uma delas
se produziu um notável e sensível desenvolvimento de nossa instituição”.16
Na prática, a divisão é determinada por acontecimentos reais ou simbóli-
cos que, embora façam parte da história pessoal do autor, têm significado en-
quanto demarcam um cenário no desenvolvimento da experiência do Oratório.
Os dez anos do período da infância (1815-1824/1825) são tratados tão
brevemente, que nem sequer os considera como décadas, mas situam o “apa-
recimento” do Oratório.
A primeira década (1824/1825-1834/1835) abre-se com o primeiro
sonho vocacional. Olhando para trás, Dom Bosco interpreta e apresenta o
sonho intencionalmente como uma investidura divina da missão oratoriana.
O compromisso imediato de João Bosco com os meninos do seu ambiente
acompanha aquilo que o sonho sugere. Durante os estudos secundários em
Chieri (1831-1835), seu compromisso floresce no apostolado entre os com-
panheiros. Aqui, o Oratório assume o lugar central.

15
Cf. Croniche, Ruffino.
16
MO, 23.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A segunda década (1834/1835-1844/1845) tem uma nota introdutória


afirmando que o sonho se repetiu, embora não se diga que se repetisse nesse
momento. Essa menção relaciona-se com a decisão vocacional que eleva sua
vocação oratoriana a outro nível: “Deixei de fazer-me de saltimbanco [...].
Continuei, porém, a ocupar-me com os meninos, entretendo-os com contos,
agradáveis distrações, cantos sacros. [...] Era uma espécie de oratório”.17 A
década começa quando Dom Bosco recebe o hábito clerical ao entrar no se-
minário; alcança o seu auge, em Turim, com a ordenação e a “descoberta” dos
“pobres e abandonados” no inverno de 1841-1842. Entrara naquele tempo
no Colégio Eclesiástico. O encontro simbólico com Bartolomeu Garelli em
8 de dezembro de 1841 assinala o início do “verdadeiro” Oratório: “Essa é a
origem do nosso Oratório”,18 que prospera gradualmente em São Francisco
de Assis até 1844.
A terceira e última década (1844/1845-1854/1855) tem uma introdução
que repete o sonho e a opção de Dom Bosco pelos jovens ao trocar o Colé-
gio Eclesiástico pelo Refúgio da marquesa Barolo. A década começa com o
estabelecimento da “primeira igreja do Oratório” em 8 de dezembro de 1844
no Pequeno Hospital [de Santa Filomena] da marquesa Barolo, e o Oratório
transforma-se em Oratório de São Francisco de Sales.19 A mão de Deus faz-se,
então, mais evidente: conduz o Oratório itinerante ao lugar do seu destino.20
Nesse tempo, a opção de Dom Bosco pelos jovens torna-se exclusiva e irre-
vogável, quando decide abandonar a “segurança” do emprego da marquesa
Barolo para viver somente para os seus meninos. Ele diz à marquesa:

Deixarei oficialmente o cargo [que me oferece] e me dedicarei inteiramente


ao cuidado dos meninos abandonados [...]. A minha vida está consagrada ao
bem da juventude. Agradeço-lhe as ofertas que me fez, mas não posso afastar-
-me do caminho que a Providência me traçou.21

17
MO, 81.
18
MO, 125.
19
MO, 135.
20
Sobre os vários locais do Oratório, cf. MO, 135-159. Dom Bosco estava firmemente conven-
cido de que Deus estava na obra do Oratório tanto para levar à salvação dos jovens por meio do Ora-
tório como para castigar a quem se opusesse à obra. Ao falar na primeira profissão em 14 de maio de
1862, Dom Bosco disse: “A tarde toda não bastaria para enumerar os dons especiais da proteção divina
demonstrada ao nosso Oratório desde seus inícios. Nisso está a nossa certeza de que Deus está conosco.
Portanto, podemos ir adiante com a certeza de que estamos realizando a santa vontade de Deus” (G.
Bonetti, Annali III, 4, em ASC A004s, 922 E12].
21
MO, 158. Há um problema real quanto ao início da terceira década. Nos manuscritos origi-
nais da edição crítica de 1991, dão-se dois limites cronológicos da terceira década. O primeiro diz: “3º
Memórias do Oratório de 1845 a 1855” [MO Silva, 134], seguido da história dos diversos lugares onde

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

1854 como terminus ad quem da narração


Apesar do título, Memórias do Oratório [...] 1815-1855, a obra termina
de fato em 1854 quando, de acordo com as palavras de Dom Bosco, iniciava
uma nova história que, ao ser escrita, poderia se chamar de Memórias da So-
ciedade de São Francisco de Sales. Deste modo, quando descreve (em 1848!)
os esforços para cuidar de “algumas pessoas com inclinação à vida de comu-
nidade”, acrescenta: “Desse assunto se haverá de falar à parte na História da
Sociedade Salesiana”.22
Temos confirmação posterior de que Dom Bosco pensou o ano de 1854
como divisor de águas na saga da sua fundação. Em 1852, Dom Bosco obteve
do arcebispo Luís Fransoni, exilado em Lyon, um decreto em que o nomeava
diretor único dos três oratórios. Começou imediatamente a criar uma série
de regulamentos para a obra do Oratório (1852-1854). Em 26 de janeiro de
1854, reuniu as quatro primeiras pessoas que se propuseram a “fazer [...] uma
experiência de exercício prático de caridade com o próximo”, e, de acordo
com uma anotação posterior do padre Rua, e do padre Lemoyne que assim o
interpreta, assumiram pela primeira vez o nome de “Salesianos”.23 Olhando
para trás, esse acontecimento representaria a primeira experiência significati-
va que levaria à fundação da Congregação em 1859. A importância do ano
1854 surge da passagem da crônica de Barberis redigida precisamente quan-
do Dom Bosco concluiu o rascunho das Memórias:

Esta tarde, o Reverendo Dom Bosco ouviu algumas confissões [...]. Após
o jantar, entreteve-se a conversar sobre os primeiros anos do Oratório [...].
“Quando os oratórios tiveram início, aconteceram muitos fatos importantes

o Oratório se foi estabelecendo (1845-1846). A segunda diz: “Memórias do Oratório de São Francisco
de Sales de 1846 a 1856” [MO Silva, 157]. A segunda revisão é feita depois da localização no terreno
do senhor Pinardi (março-abril, 1846) e vem seguida da história da bênção da capela da casa Pinardi
(“uma nova igreja”). A dupla informação da terceira década pode ser explicada pelo fato de Dom Bosco
ter a intenção de estabelecer um ponto adequado para o próximo passo. Poderia estar refletindo se isso
aconteceu quando deixou o Pequeno Hospital Barolo em 1845 (tempo do Oratório itinerante) ou
quando do assentamento na propriedade Pinardi (1º de abril de 1846). Deve-se levar em consideração
que o compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco com os “pobres e abandonados” aconteceu
durante o terrível inverno de 1845 (portanto, antes do seu assentamento na casa Pinardi), quando,
apesar da doença e da oposição, optou por continuar com o Oratório.
22
Cf. MO, 205.
23
Cf. MB V, 9. A anotação do padre Rua sobre o uso do termo “Salesiano” pela primeira vez
não era realmente um original da reunião acontecida em fevereiro de 1854, mas uma nota mais tardia
que o padre Rua escreveu provavelmente a pedido de Lemoyne por volta de 1891. Lemoyne dá uma
impressão errada quando escreve: “O clérigo Rua guardou memória disso num escrito pessoal, que
ainda se conserva nos arquivos” (MB V, 9).

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Dom Bosco: história e carisma 1

e poéticos que me levaram a sentir o desejo de reunir um grupo [de Salesia-


nos] e contar-lhes a história com detalhe. Entretanto, já naquele tempo, tinha
escrito algumas dessas coisas [nas Memórias]. Será preciso que nos reunamos
algum dia para decidir o que se devesse publicar e o que manter em privado.
Há, de fato, muitas coisas que seriam muito instrutivas para nós, mas que não
se podem publicar, ao menos no momento [...]. Até agora, porém, já escrevi
as coisas mais importantes e levei a história até o ano de 1854. Porque foi ao
redor desses anos que o Oratório conseguiu estabilidade e, aos poucos, foi
assumindo a forma atual. Poder-se-ia dizer que naquele ano acabou o período
poético e teve início o [período] ordinário”.24
Naqueles dias, Dom Bosco estava continuamente rodeado pelos diretores
[reunidos para as Conferências anuais de São Francisco de Sales] e por nós
[...]. Numa das conversas familiares após o jantar [...] concordamos que era
importante para a nossa congregação contar com um historiador. [Dom Bos-
co disse:] “A necessidade mais urgente é que cada diretor escreva um resumo
da história da própria casa desde a fundação até agora [...], e isso deve ser feito
o quanto antes. Em seguida, essa crônica deverá continuar ano após ano e ser
transcrita num grande livro conservado nos arquivos da casa. Além disso, uma
cópia da crônica deverá ser enviada a Turim, caderno por caderno, para nos
inteirarmos do que acontece nas casas e servir de fonte para a história geral
da congregação [...]. Quanto a mim, já deixei um resumo dos fatos relacionados
com o Oratório, desde os inícios até o presente; e, até 1854 [nas Memórias], em
muitos casos, a narração entra em detalhes. A partir de 1854, o tratado começa
a ser sobre a congregação, e os assuntos começam a ser mais amplos e tomam um
aspecto diferente. Eu creio que uma história será muito útil para os que virão
depois de nós e redundará na maior glória de Deus; portanto, eu tentarei
escrevê-la. Já não se trata de levar Dom Bosco ou qualquer outra coisa em
consideração. Percebo agora que a vida de Dom Bosco está totalmente ligada
à vida da Congregação e, por isso, nós devemos falar de tudo. A maior glória
de Deus, a salvação das almas e o desenvolvimento da Congregação exigem
que as coisas sejam conhecidas [...]”.25

24
Julio Barberis, Croniche autobiografiche, Caderno III A, 46-47 (sábado, 1º de janeiro de
1876), FDB 835 D9-10.
25
Julio Barberis, Croniche autobiografiche, Caderno IV A, 38-41 (quarta-feira, 2 de fevereiro de
1876), FDB 837 C12 - D1 (os cursivos são meus). Nunca se escreveu nem sequer se tentou escrever
uma História da Sociedade Salesiana, a não ser que se creia que o Testamento Espiritual de Dom Bosco
que traz o título de Memórias do Oratório de 1841 a 1884-5-6 seja a continuação das primeiras Memó-
rias do Oratório, o que é improvável. Dom Bosco começou a unir “testamento e memória” nos inícios
de 1886. As páginas iniciais têm o aspecto de memória e oferecem pequenos dados e acontecimentos

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

É historicamente acertado tomar o ano de 1854 como ponto de chegada


e de partida do desenvolvimento da obra de Dom Bosco. Entretanto, nem
tudo o que Dom Bosco escreve nas Memórias está de acordo com a realidade,
inclusive no sentido puramente cronológico. De fato, foram introduzidos
elementos que já são parte da “mensagem meta-histórica”, destinada a ante-
cipar acontecimentos futuros.26 Seria possível citar como exemplo os dados
do sonho de 1844 ou a afirmação de Dom Bosco segundo a qual já nos anos
1841-1848 ele estava formando alguns jovens para que fossem seus colabora-
dores.27 O que levanta a questão da historicidade das Memórias.

2. A intenção de Dom Bosco e sua base histórica


O caráter histórico dos escritos de Dom Bosco sobre a origem e o de-
senvolvimento de sua obra ressente-se das preocupações declaradas por ele
no prefácio das Memórias e pela sua não revelada “intenção”. Isso já está
claro nas Notas históricas de 1854 a 1862 e nas anotações de diversas épo-
cas para “explicar” a Congregação. É certo, especialmente, nas Memórias do
Oratório. Como escreve na época crucial da Congregação Salesiana (tempo
da sua aprovação oficial, da luta pelos privilégios, da oposição declarada do
arcebispo Gastaldi etc.),28 o Fundador queria apresentar uma “apologia” do
carisma original e uma norma “ideal” para o futuro. Essa determinação tem
consequências sobre a historicidade do relato.

As Memórias, parábola e meta-história29


As Memórias oferecem-nos sua mensagem, sobretudo como parábola e
meta-história; seu objetivo, moral e “edificante” é oferecido mediante uma
deliberada e sistemática introdução de conceitos espirituais e educativos.
Aproximar-se das Memórias do ponto de vista puramente histórico cria difi-
culdade em relação à datação, à cronologia e, principalmente, à forma original
e ao alcance dos acontecimentos narrados. Não nos referimos apenas a falhas

pessoais, iniciando com a ordenação sacerdotal. Logo depois, apesar disso, o escrito transforma-se em
exortação e advertência em estilo de testamento. De aí o título de “Testamento espiritual”. Cf. Fran-
cesco Motto, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli salesiani (Testamento
Spirituale). Piccola Biblioteca dell’ISS 4. Roma: LAS, 1985.
26
Por esta razão, Braido, paradoxalmente, intitula seu ensaio como Memórias do futuro.
27
MO, 126 e 204.
28
Considere-se que Lourenço Gastaldi, um dos primeiros benfeitores e colaboradores do Orató-
rio, não é mencionado nas Memórias, embora o seja sua mãe, Margarida Gastaldi (MO, 191).
29
O termo “meta-história” refere-se aqui a uma narração cujo alcance “transcende” os fatos his-
tóricos e interpreta o espírito ou o caráter simbólico dos acontecimentos.

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Dom Bosco: história e carisma 1

de memória (muitas datas estão incorretas) ou a “exageros” e “ênfases” com


que se narram certos episódios. Indicamos algumas partes essenciais da nar-
ração assumidas pelo escritor, preocupado como estava em apresentar a obra
do Oratório de modo que instruísse, fortalecesse e desse segurança aos seus
seguidores. As Memórias são uma “meta-história” a serviço de uma mensagem
para o futuro dos Salesianos, o que cria problemas ao historiador e ao biógrafo.

Episódios convertidos em categorias


Episódios narrados com determinada intenção convertem-se em fatos
exemplares que aparecerão em biografias sucessivas e se transformaram em
lugares-comuns. Logicamente, precisam ser avaliados criticamente e, às vezes,
também corrigidos. Como exemplo, oferecemos um breve comentário sobre
alguns dos estereótipos mais frequentes.

Oposição dos párocos a Dom Bosco


Os obstáculos dos párocos locais são relatados com certa “impaciência”,
como exemplos de má vontade, de obstrução deliberada. Dom Bosco, de
fato, encontrou-se com essa oposição, especialmente nos inícios, embora isso
não se devesse ser exagerado. Não parece que faltassem razões aos párocos
levando-se em conta a determinação e a busca de autonomia total da parte de
Dom Bosco em seu trabalho no Oratório. Ele apresentava-se como um “es-
tranho” que reunia os jovens nas periferias da cidade, à margem da estrutura
paroquial. Fazia parte de um programa pastoral (o Colégio Eclesiástico), que
ainda estava tentando encontrar aceitação entre o clero de Turim.

Perseguido como “revolucionário” pelas autoridades civis


Nas Memórias, como nas Notas históricas, de 1854, o vigário da cidade
de Turim, marquês Miguel de Cavour, é retratado com dureza como contrá-
rio à obra de Dom Bosco.30 Não obstante, sua intransigência parece menos
crível quando se olha com atenção a documentada e leal defesa e a deferên-
cia de Cavour pela autoridade constituída. Dom Bosco ensinava catecismo
30
MO, 152, 178, e as Notas históricas de 1854. Talvez as Notas Históricas servissem de fonte
para essas passagens das Memórias [1874-1875]. O marquês Miguel de Cavour [1781-1850] era pai
do [marquês] Gustavo e do [conde] Camilo [futuro primeiro-ministro e líder político da unificação da
Itália]. O marquês exerceu o cargo de Vigário real (Vigário e superintendente de política e polícia), ma-
gistrado que governava a cidade em nome do Rei de 1835 a 1847. Antes de 1848, ano das revoluções
e constituições, a cidade era governada pelo Vigário, nomeado pelo Rei, ajudado por dois “síndicos” e
um Conselho da cidade de cinquenta e sete oficiais. Depois de 1848, a cidade foi governada por um
prefeito (sindaco) nomeado também pelo Rei, e um Conselho de cidade.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

aos jovens com a permissão e ajuda dessa autoridade: o respeitado arcebispo


Fransoni e o rei Carlos Alberto, para nomear apenas as mais altas autorida-
des. Além disso, Dom Bosco trabalhava com a colaboração de leigos e padres
de comprovada linha conservadora, relacionados com a Casa Real: o conde
José Provana di Colegno, os padres José Cafasso, João Borel e Sebastião Pac-
chiotti; os dois últimos foram os auxiliares mais próximos de Dom Bosco no
ministério do Oratório, quase desde o início.31 A descoberta de uma carta di-
rigida por Dom Bosco ao marquês em 13 de março de 1846, tendo no verso
uma breve nota deste, torna menos crível a hostilidade de Cavour.32

Abandonado e sozinho
Apresenta-se ainda mais duvidoso o retrato dramático de um Dom Bos-
co abandonado e sozinho com seus jovens no prado Filippi. É certo que Dom
Bosco passou por dificuldades e esteve em desacordo com os colaboradores,
primeiramente ao criar o Oratório e, depois, pelo modo de agir, como com o
padre Pedro Ponte. Nestes casos, o arcebispo Fransoni colocou-se a favor de
Dom Bosco com o Decreto de 31 de março de 1852. Contudo, não se devem
generalizar as dificuldades. A presença contínua, ao lado de Dom Bosco, de
colaboradores de confiança, tanto padres como leigos, é documentada duran-
te os primeiros quinze anos do Oratório. Essas pessoas ajudaram-no em seu
trabalho e prestaram-lhe ajuda moral e econômica. Escreve Bracco:

“Pareceu-me óbvio desde o momento em que comecei a buscar nos arquivos da


cidade documentos relativos a Dom Bosco: ele nunca esteve sozinho. Trabalha-
va com um grupo de padres que pareciam compartilhar o mesmo objetivo, ou
seja, fazer alguma coisa pelos não privilegiados e em relação ao mal-estar social,
usando métodos que, anteriormente, já tinham sido tentados com sucesso”.33

Em conversas familiares, como recorda Barberis em sua crônica autógra-


fa, Dom Bosco falou várias vezes do último domingo no prado Filippi e da
oferta do senhor Pinardi. Sua história, contada sempre com novos detalhes,
difere, em geral, da narração melodramática das Memórias, e confirma as
afirmações de Bracco e a carta de 1846 ao marquês Cavour.

31
Cf. G. Bracco, Don Bosco y la sociedad civil, 231-236; id. Don Bosco e le istituzioni, 123-126
(Dom Bosco e o padre Borel).
32
G. Bracco, Don Bosco y la sociedad civil, 241; com maior detalhe, Don Bosco e le istituzioni,
126-128 (texto da carta), 128-130 (comentários). A carta, cuja edição crítica pode ser vista no Episto-
lario Motto I, 66-68, revela, entre outras coisas, que Cavour fora simpatizante no passado e que Dom
Bosco tinha razão em crer que o magistrado mostraria sua boa vontade quando o Oratório estava para
se assentar na casa Pinardi.
33
G. Bracco, Don Bosco y la sociedad civil, 241.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Memórias do Oratório34 Crônica de Barberis35


Enquanto acontecia o que acima expus, che- A casa [do senhor Pinardi] era uma casa
gou o último domingo em que ainda me per- de mulheres [de má fama]. O proprietário
mitiam organizar o Oratório no prado (15 de colocara-a à venda em várias ocasiões. [...]
março de 1846). Eu calava, mas todos sabiam Contudo, pedia uma soma exorbitante.
de minhas dificuldades e espinhos. Na tarde Era o último domingo em que podia
desse dia contemplei a multidão de meninos usar o prado [dos Filippi] e então, ele
a brincar, e pensava na messe abundante que [Pinardi] apresenta-se novamente. Eu
se ia preparando para o sagrado ministério. estava passeando pelos limites do cam-
Vendo-me agora tão só, falto de colaborado- po, absorto em meus pensamentos,
res, forças esgotadas, saúde em estado deplo- quando o teólogo Borel estava fazendo
rável, sem saber onde no futuro reunir meus uma pregação.
meninos, senti-me profundamente comovido.
Afastando-me um pouco, pus-me a passe- Acontecia uma terrível briga na casa e,
ar sozinho, e pela primeira vez quiçá senti- nesse momento, um oficial da polícia,
-me comovido até as lágrimas. Caminhando com a cabeça quebrada, jazia numa poça
e erguendo os olhos ao céu, exclamei: “Meu de sangue, a curta distância da rua abaixo.
Deus, por que não me mostrais o lugar em O proprietário aproximou-se de mim
que desejais que reúna esses meninos? Dai-mo muito angustiado. “Assim não posso
a conhecer ou dizei-me o que devo fazer”. aguentar mais”, disse-me. “Eu não posso
Nem bem terminei esse desabafo, chegou um aguentar mais. Estas brigas precisam aca-
homem chamado Pancrácio Soave [...]. bar. Quero vender” [...].36

O não envolvimento político de Dom Bosco


Nos anos anteriores à revolução liberal, Dom Bosco — segundo se lê
nas Memórias — foi perseguido como revolucionário. Mais tarde, nos anos
da Revolução Liberal (1848-1850), a imprensa marcou Dom Bosco como
padre intolerante e reacionário (e o era em alguns aspectos).37 As páginas das
Memórias que tratam desse tempo têm uma clara finalidade didática em vista
dos Salesianos da década de 1870. É o caso da resposta ao marquês Roberto
D’Azeglio, com palavras que encontram confirmação na crônica das Perqui-
sições internas. Quando D’Azeglio insistiu que Dom Bosco participasse das
celebrações da Constituição de 1848, Dom Bosco respondeu-lhe:
34
MO, 160.
35
Croniche III: FDB 835 D12-E1.
36
Nessa passagem da crônica de Barberis, Dom Bosco amplia claramente os acontecimentos,
pois a compra da casa Pinardi aconteceu em 1851, e não em 1846, quando só se tinha alugado o
telheiro. O importante a notar é que Dom Bosco (como ele mesmo afirma) não estava sozinho no
prado Filippi naquele domingo. O teólogo Borel estava fazendo um sermão e, possivelmente outros
colaboradores do Oratório também estavam com os meninos.
37
Dom Bosco, nas Memórias, qualifica o periódico moderadamente liberal L’Opinione, assim
como todos os que estiveram relacionados com a Revolução, de “imorais”, no sentido de “política,
social e religiosamente corruptos” (cf. MO, 200-201).

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

Senhor marquês, é meu firme propósito conservar-me afastado de tudo quanto


se refere à política. Nem a favor, nem contra [...]. Convide-me para qualquer
coisa em que o padre possa exercer a caridade, e me verá pronto a sacrificar vida
e haveres; quero, porém, manter-me agora e sempre à margem da política.38

Está comprovado que Dom Bosco considerava a “retórica” da Revolução


(“emancipação”, “liberdades civis”, “democracia” etc.), como também os seus
“princípios”, maus em si mesmos e em suas consequências, sendo o resultado
da perversão do pensamento e da ação. Parecia pensar que a Revolução Libe-
ral de 1848 e as mudanças introduzidas por ela arruinaram a vida política e
social em toda a Europa.
Apesar disso, na prática, a postura política de Dom Bosco, tanto nos
anos 1848-1850 como nos anos de 1870 não é tão clara como ele declarava
ao marquês. De um lado, ele adotou uma proximidade pragmática dos acon-
tecimentos sociais e políticos; de outro, é improvável que, à medida que o
tempo passava, persistisse na total recusa da Revolução Liberal.
Seja como for, tinha a peito uma solução prática exemplar: a “política das
obras de caridade” com a juventude. Essa obra ia mais além do catecismo;
incluía um componente essencial, o exercício prático da caridade, tanto espi-
ritual como material. Quanto a isso, Dom Bosco queria estar na vanguarda,
sempre o primeiro. Para insistir nesse compromisso, Dom Bosco não duvi-
dou em reclamar várias e duvidosas “primazias”: o caso das aulas noturnas e
da música.39

Ataques contra a vida de Dom Bosco por parte dos “protestantes”


Os últimos capítulos das Memórias relatam vários episódios nos quais se
narram “a fúria dos protestantes” (valdenses) diante do sucesso das Leituras
Católicas e os atentados contra a vida de Dom Bosco, organizados por eles
e pelos maçons.40 Esse material também precisa ser examinado e avaliado.41

38
MO, 215-216.
39
Sobre as “primazias”, Dom Bosco as declara com tonalidades mais modestas nas Notas histó-
ricas, de 1862. Do mesmo modo, no rascunho original das Memórias não se atribui essas primazias;
apesar disso, ele o faz nas correções e acréscimos. Padre Bonetti, na História publicada no Boletim
Salesiano, dá-lhes mais ênfase. Talvez nos anos de 1870 e 1880, quando a administração de Turim era
menos favorável ao Oratório, fosse necessário fazer essas atribuições.
40
MO, 235-238; 239-246. Episódios da “miraculosa” intervenção do Grigio enquadram-se nes-
te contexto, MO, 247-250.
41
Desramaut, em sua biografia crítica de Dom Bosco, claramente e com alguns detalhes, qualifica
esse estereótipo tradicional considerando-o em seu contexto: F. Desramaut, Don Bosco, 302-309, 353-374.

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Dom Bosco: história e carisma 1

As Memórias, uma história que garante a Providência de Deus


e ratifica o caráter carismático do Oratório
As Memórias também são uma narrativa que recorda experiências passadas
para instruir e garantir aos Salesianos que a Providência de Deus garante a vitória
final do bem. Esta concepção de história estava enraizada no meio cultural de
Dom Bosco; inspirava-se em Bossuet e em Santo Agostinho. A história humana,
particular e geral, “orienta-se” para Deus e “será julgada” por Ele. Stella escreve:

É Deus quem domina os acontecimentos humanos, embora os humanos se-


jam seus atores. Prova clara e indiscutível é dada pelas intervenções extraordi-
nárias [de Deus], revelações, predições e milagres [...]. Outra prova do poder
divino é o fato que [...] apesar de todos os erros e conflitos [postos pelo mal]
o bem sempre obtém sucesso.42

Constata-se um ponto de vista similar no relato de Dom Bosco sobre


as Perquisições internas, apesar da afirmada objetividade.43 Contudo, todo o
relato é uma constante “acusação” que culmina, na parte final, num julga-
mento divino mediante aquele Deus que “derruba os poderosos de seus tro-
nos e levanta os humildes”. O último capítulo traz por título: “Resultado das
perquisições: triste fim de alguns investigadores”.44 Depois disso tudo, como
Dom Bosco poderia permanecer neutro e objetivo num mundo que, segundo
diz o Evangelho, tudo está sob o maligno?45
Esse é também o ponto de vista das Memórias do Oratório; essa é a
percepção religiosa da realidade que Dom Bosco quer criar em seus leitores
Salesianos. A sucessão de acontecimentos e aventuras, felizes e tristes, com
que Deus conduz Dom Bosco a um destino, que vai além do alcançável pelo
poder humano, é a garantia de que o projeto do Oratório (e da Congregação
Salesiana) é desejado, sustentado e desenvolvido por Deus. Portanto, não
existe ser humano malvado capaz de detê-lo. Dez anos antes, confidenciara
aos Salesianos:

Foi Deus quem nos revelou estes projetos e eu fui sempre adiante com essa cer-
teza. Esta é a fé que me deu a motivação de tudo que fiz. Esta é também a razão

42
P. Stella, Vita, 67.
43
Dom Bosco escreve: “É minha intenção compor uma narração dos fatos simplesmente como
ocorreram naqueles tempos de prova; eu os descreverei como aconteceram e segundo a verdade, sem
tentar desculpá-los ou acusar alguém” (P. Braido - F. Motto, Don Bosco tra storia, 143).
44
P. Braido - F. Motto, Don Bosco tra storia, 187-192. Note-se que no título do capítulo Dom
Bosco chama as perquisições internas da casa ou investigações de “perseguições”.
45
P. Braido - F. Motto, Don Bosco tra storia, 144.
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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

pela qual entre oposições e perseguições, e apesar dos mais graves obstáculos,
nunca tive medo. O Senhor sempre esteve conosco.46

Dom Bosco assinala, nas Memórias do Oratório, três aspectos da especial


guia providencial: (1) Dom Bosco é “ensinado” e guiado pelo céu através de
sonhos, (2) Dom Bosco é protegido dos que lhe querem fazer mal; seus ini-
migos são castigados e (3) Dom Bosco, como um “vidente” entre profecia e
realidade, antecipa o futuro do Oratório e da Congregação.

Instruído e guiado através dos sonhos


O sonho de Dom Bosco aos 9 anos de idade é narrado com finalidade
claramente educativa.47 As imagens que vê e as palavras que ouve no sonho
são outras tantas lições com que Dom Bosco é “instruído” e se dá aos Sale-
sianos uma norma para sua atividade educativo-pastoral. Assim, também se
demonstra que a vocação salesiana teve origem sobrenatural.
É difícil definir o exato impacto histórico do sonho. Nas Memórias, Dom
Bosco parece aceitar seu caráter de revelação, embora com reservas. Por isso,
não é possível determinar que influência exercesse em seu pensamento e em
suas decisões vocacionais. Ele está de acordo com sua avó que acha que não se
deve fazer caso dos sonhos, mas a partir de então, não mais poderá tirá-lo do
pensamento.48 Posteriormente, escreverá que o sonho ficara profundamente
impresso em sua mente e que se repetiria outras vezes em termos mais claros,
aludindo à sua vocação ao sacerdócio, mas continuou sem lhe dar grande
crédito.49 O fato é que nunca falou dele, nem sequer na evocação frequente
da sua infância, antes de 1858, quando o mencionou a Pio IX (e a alguns
Salesianos). Escreveu sobre ele pela primeira vez nas Memórias, em 1873.
Dom Bosco manifesta a mesma reserva em relação ao sonho de 1844,
um “apêndice” do seu primeiro sonho, que também narra pela primeira vez
nas Memórias e ao padre Barberis em 1875. Escreve: “Por então pouco com-
preendi o significado, porque não lhe dava crédito”. Aos poucos, percebeu
sua importância. “Posteriormente, junto com outro sonho, serviu-me de pro-
grama em minhas decisões”.50 Quando escreveu as Memórias (1873-1875),
Dom Bosco chegou a ver estes sonhos como guia sobrenatural.
46
Ruffino, Croniche 5, 53 [Assembleia geral dos membros da Sociedade de São Francisco de
Sales, 38-53] e (quase idêntica) Bonetti, Crônica do ano 1864, 2-22, em ASC A004s, FDB 924 B5 -
D3 (conferência de Dom Bosco).
47
Os textos do sonho vocacional serão comentados nos capítulos seguintes.
48
MO, 30.
49
MO, 79.
50
MO, 134.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Proteção e retribuição divina


Quanto às intervenções extraordinárias de Deus para proteger Dom
Bosco e castigar os que a ele se opunham, as Memórias do Oratório são menos
drásticas do que a descrição das Perquisições internas. Apesar disso, o conceito
reaparece; os fatos são narrados com este propósito. Fala da morte infeliz do
“secretário” no episódio dos Moinhos Dora, e do capelão e sua criada em São
Pedro in vinculis. Inclusive na entrevista com o marquês Miguel de Cavour,
mantém a afirmação de que o Oratório é obra de Deus e que se cuidem aque-
les que a ele se opõem!51 Os episódios do Grígio manifestam as atuações da
Divina Providência que intervém para proteger Dom Bosco e a sua obra.52

Profecia e realidade
Dom Bosco, às vezes, apresenta como predições ou premonições os pla-
nos normais para o estabelecimento do Oratório e o seu desenvolvimento.
Ao contestar o teólogo Borel, que lhe sugerira a conveniência de esperar uma
oportunidade, Dom Bosco diz: “Não é preciso aguardar novas oportunida-
des. O lugar está preparado. Temos um pátio espaçoso, uma casa com muitos
meninos, pórticos, igreja, padres e clérigos. Tudo à nossa disposição”. Quan-
do o teólogo Borel o interrompe: “Mas onde está isso tudo?”, Dom Bosco
responde: “Não sei dizer onde, mas certamente existe e é nosso”.53

As Memórias, relato divertido e estimulante


O caráter histórico das Memórias torna-se problemático também quando
a narrativa de Dom Bosco se converte em literatura imaginativa, quase atrevida
em sua liberdade. Nesses casos, deve-se levar em consideração que a finalidade
do escritor é entreter e, ao mesmo tempo, fazer que o leitor sorria e chore. Os
mesmos episódios em que Dom Bosco narra o castigo aos opositores, ele faz
com que pareçam divertidos enquanto corroboram o que afirmou. Ele tem
uma inventiva livre e imaginação nas caricaturas da mãe do pequeno Jonas,
a maga Lili;54 a perplexidade do cônego Burzio; o desafortunado charlatão; a
criada do padre Tésio; a astuta “loucura” de Dom Bosco.55 Nestas passagens, o
pai recorre ao estilo das narrações populares para entreter os seus filhos.

MO, 137, 141, 143, 145.


51

MO, 247-250.
52

53
MO, 156. Estes elementos fazem parte do sonho de 1844, tal como narrado nas Memórias e
na Crônica de Barberis.
54
MO, 69. O nome da mãe de Jonas é Bella Pavia. Não podia ter mais do que 45 anos, e nos
perguntamos como uma mulher tão feia podia ser mãe de um jovem que, nas palavras não usuais de
Dom Bosco, era de “bonito aspecto” (um verdadeiro Apolo!).
55
MO, 73-75, 75-77, 145, 159-160.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

3. Intenção educativa: as Memórias, prelúdio narrativo


do tratado sobre o Sistema Preventivo
Os aspectos que, para o historiador, se apresentam como problemáticos
servem para enaltecer a carga ideal da mensagem que Dom Bosco quer trans-
mitir. O resultado final é que as Memórias podem muito bem ser o livro mais
importante e enriquecedor de Dom Bosco. Deve ser assim entendido em
relação com o seu método educativo: as Memórias são um manual educativo,
algo como um programa espiritual, escrito em forma narrativa. As Memórias
são uma história educativa imaginativa e brilhante, completamente diferente
de um normal tratado escolar para um internato como é o Sistema Preventi-
vo, ou dos artigos gerais do Regulamento das Casas. A narrativa inspira-se no
carisma “original” (o Oratório), dando atenção apenas secundária à residên-
cia (a casa) ou ao internato.
Em seguida, resumimos a força educativa da narração das Memórias.

“Educar” a juventude, vocação de Deus


Educar, em sentido cristão, é uma vocação dada por Deus, vocação que
exige uma inclinação inata e a possibilidade de alguém dedicar-se à juventu-
de, especialmente se for pobre e abandonada. A origem divina, no caso de
Dom Bosco, é expressa em forma de sonho-visão. A inclinação e a capacidade
inatas são percebidas na força relevante da dedicação aos jovens desde seus
primeiros anos.56

O Oratório, primeiro veículo da vocação a serviço dos jovens


O Oratório é apresentado como o primeiro veículo pelo qual se realiza
a vocação a serviço dos jovens. É descrito como uma instituição abrangente e
versátil, desenhada para os jovens, com uma mescla atrativa de “devoções, jo-
gos e excursões”.57 Contudo, mais do que uma instituição, é uma experiência
de e com os jovens. Isso se percebe na descrição beatífica feita por Dom Bosco
de um dia no Oratório.58 Do ponto de vista pastoral, o Oratório é descrito
como uma paróquia da juventude sem paróquia.59 Entretanto, também é uma

56
MO, 28-30, 48, 131: “Minha propensão é para cuidar da juventude [...]. Neste momento
parece-me estar no meio de uma multidão de jovens que me pedem ajuda”.
57
MO, 174, 181: “O fato de dispormos de local estável, os sinais de aprovação do arcebispo, as fun-
ções solenes, a música, a notícia da existência de um pátio para jogos, atraíam meninos de todos os cantos”.
58
MO, 173-178.
59
MO, 147.

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Dom Bosco: história e carisma 1

escola, uma oportunidade onde os jovens podem passar o tempo livre, um


centro a partir do qual apoiar e assistir os jovens em seu local de trabalho.60

A “casa anexa ao Oratório”: casa e refúgio como segundo


instrumento educativo
As Memórias também dão a motivação e a descrição de um segundo ins-
trumento de educação: a casa anexa ao Oratório, criada em 1847 como amplia-
ção da primeira.61 Com sua criação, desenvolveu-se a aplicação mais especiali-
zada e concreta do método educativo, no qual o caráter protetor e defensivo do
método vai além de uma finalidade simplesmente promocional e de apoio.62
Após a primeira experiência, encontrou nela hospedagem um grupo
sempre mais numeroso de jovens “entre os mais abandonados e em perigo”.
Depois de voltarem do trabalho à tarde, Dom Bosco fazia-lhes um sermãozi-
nho familiar, que tendia a eliminar as más influências do dia. Finalmente, fo-
ram criadas algumas oficinas em casa, a fim de proteger os jovens da crescente
“confusão de ideias e pensamentos” da cidade. Surgiu ainda uma residência
escolar para proteger dos mesmos perigos os estudantes alojados na casa.63
Como Dom Bosco escreve nos anos em que os internos passaram de
700, ele ressalta cá e acolá, sem identificá-los, vários aspectos da prática
educativa da residência. Como, por exemplo, a estrita vigilância em rela-
ção aos maus companheiros e às más conversas, o juízo crítico negativo
sobre as férias, as motivações para expulsar os alunos (blasfêmia, escânda-
lo dado por atitudes ou conversas imorais, conduta irreligiosa, infrações
disciplinares sérias).

Assistência: atividade integral de caridade em favor dos jovens


A atividade caritativa em favor dos jovens é chamada de “assistência”.
A palavra e o conceito estão espalhados pelas Memórias; é o termo anterior
60
MO, 181-186; 144-147; 149, 152. As palavras “casa, igreja, escola e pátio” reúnem com pre-
cisão a ideia de Dom Bosco sobre o Oratório.
61
MO, 195-198, 200-206. O nome preferido por Dom Bosco para o internato era “Casa anexa
ao Oratório de São Francisco de Sales”.
62
MO, 195-198-146: “Muitos rapazes [...] mostravam-se cheios de boa vontade de se dedicarem
a uma vida honesta e laboriosa; todavia, convidados a fazê-lo, costumavam responder que não tinham
pão, nem roupa, nem casa onde morar por pouco tempo que fosse. [...] Percebendo que para muitos
meninos era inútil qualquer apostolado caso não se lhes desse abrigo, apressei-me em alugar outros
quartos, ainda que a preço exorbitante. Assim, além do internato, pôde-se iniciar a aula de canto gre-
goriano e de música vocal”.
63
MO, 203. Gradualmente, nos anos 1853-1862 e 1855-1859, foram sendo criadas oficinas e
escola para os internos.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

ao de Sistema Preventivo, adotado por Dom Bosco em 1877 para descrever


o seu método educativo. Os dois termos, “método de assistência” e “sistema
preventivo”, compartilham um significado em dois níveis fundamentais: no
conteúdo e na finalidade; os dois indicam o que se faz para “resolver as ca-
rências espirituais e materiais dos jovens”; e, em nível de método educativo
e estratégia disciplinar, ambos fazem referência à “vigilância e presença” do
educador entre os jovens.
A palavra e o significado de “assistência” aparecem logo nas Memórias.
Dom Bosco fala da “assistência” de sua mãe quando vivenciou o sacramento
da confissão e recebeu o da comunhão e da sua própria “assistência” a outros
estudantes de Chieri.64 Contudo, o sistema é especialmente apropriado para
a “nova” geração dos jovens de Turim. As primeiras tentativas de Dom Bosco
para ajudar os jovens em perigo assumiu a forma de “assistência” no mais
amplo sentido possível:

Pude então constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso en-
contrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure arran-
jar-lhes emprego com bons patrões e vão visitá-los de quando em quando ao
longo da semana, tais rapazes dão-se a uma vida honrada, esquecem o passado,
tornam-se bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso Orató-
rio [...] Consagrava o domingo inteiro à assistência dos meus meninos; duran-
te a semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas. Isso muito
consolava os rapazes, que viam um amigo interessar-se por eles; e agradava aos
patrões, que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assis-
tidos durante a semana e sobretudo nos domingos, os dias mais perigosos.65

Fica claro, portanto, que a “assistência” no sentido estrito de “super-


visão” não faz justiça ao conceito de Dom Bosco. Com essa palavra, Dom
Bosco queria indicar “presença” e “disponibilidade” aos jovens, a todos que
o precisassem. Logicamente, isso inclui a “supervisão”, de modo especial nas
obras residenciais.

Cuidar dos jovens em perigo implica satisfazer todas as suas


verdadeiras necessidades
Junto da assistência ideal e até certo ponto real, as Memórias mostram
que, para Dom Bosco, cuidar dos jovens em situação de risco significava satis-
fazer todas as suas carências: alimento, roupa, refúgio e alojamento, trabalho,

64
MO, 51, 56, 93. Em todos estes casos, Dom Bosco usa intencionalmente a palavra “assistir”.
65
MO, 125, 128, referidas de acordo com o original.

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Dom Bosco: história e carisma 1

oportunidade de educação e estudo, emprego útil do “tempo livre” e, como


prioridades, a “moralidade” e a “religião”. Ou seja, a promoção ou desenvolvi-
mento humano em sua totalidade, o que define o programa educativo que, no
pensamento de Dom Bosco, levaria à maturidade dos seres humanos, “bons
cristãos e honestos cidadãos”.

Religião como fundamento ou prioridade


As Memórias mostram que, na prática real de Dom Bosco e mais tarde na
“teoria” do tratado do Sistema Preventivo, a religião é considerada o fundamento.
Ele tinha grande apreço pelo sistema educativo e disciplinar de Chieri, embora
se baseasse na reforma reacionária de 1822 do rei Carlos Félix; eram abundantes
as práticas religiosas, as mesmas que, mais tarde, seriam encontradas nas insti-
tuições de Dom Bosco.66 Entre essas práticas, dava-se lugar proeminente aos
“santos sacramentos”, isto é, além da “Santa Missa”, a confissão e a comunhão,
que são “o elemento fundamental da nossa instituição” [o Oratório].67
Dom Bosco dá um lugar preferencial à Virgem na vida religiosa do Ora-
tório; sua presença e auxílio são experimentados em todas as situações do
desenvolvimento do Oratório.
Ainda no programa religioso do Oratório, o “catecismo” é de suma im-
portância, a razão de ser da obra educativa de Dom Bosco. O termo refere-se
tanto à instrução progressiva do catecismo em sentido estrito, com seus livros
habituais, incluindo a História Bíblica, quanto à educação cristã em sua to-
talidade. As Memórias também mencionam a criação da Companhia de São
Luís, protótipo de várias outras associações juvenis religiosas.68
Considere-se que as práticas religiosas não eram separadas da vida real,
mas caminhavam de mãos dadas com o cumprimento dos deveres de cada
um e com a “moralidade”. O termo “moralidade” designa não só a “conduta
casta”, mas também a “boa conduta” em geral, sobretudo a obediência e a
disciplina. Dom Bosco escreve, por exemplo: “Todos queriam entrar nela [na
Companhia de São Luís]. Para isso exigiam-se duas condições: bom proce-
dimento na Igreja e fora dela; evitar as más conversas e frequentar os santos
sacramentos. Notou-se logo sensível melhora nos costumes”.69

MO, 57-60. Para as práticas religiosas similares no Oratório (capela Pinardi), cf. MO, 175. O
66

documento da reforma escolar do rei Carlos Félix será comentado adiante.


67
MO, 142. Segundo a teoria sacramental do tempo, a “comunhão” era pensada separadamente
do “sacrifício da missa”.
68
MO, 192-193.
69
MO, 193.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

O método ou estilo da caridade pastoral (embora não se lhe dê


esse nome) é evidente nas Memórias
Desde o início, o Oratório foi realmente uma missão educativa. O
modo de dirigir-se aos meninos, cumprimentando-os, estando com eles e
solucionando suas carências reais com perspicácia humana e cristã, construiu
o “método educativo” das Memórias, embora nelas não se dê uma formulação
teórica. Dom Bosco tentará dar essa formulação no tratado sobre o Sistema
Preventivo. Contudo, é claro o propósito do autor de apresentar sua descri-
ção. Esse propósito está tão disseminado em toda a obra que constitui sua
essência. É o método da caridade pastoral, do amor demonstrado no cuidado
e afeto inspirado e sustentado pelo amor cristão.
Esta é, provavelmente, a razão pela qual Dom Bosco situa o sonho dos
9-10 anos no início do relato. Mais do que em função de uma premonição do
futuro, o sonho expressa a alma de uma experiência que, em meados de 1870,
ele acreditava já estar madura para ser transmitida aos seus seguidores. Diz-
-se no sonho: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que
deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a
fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”.70
Os “estereótipos” do relato das Memórias e o método aí descrito devem ser
revestidos de um novo e importante significado pela “experiência de oratório”.
Assim acontece quando o jovem João foi ao encontro dos jovens, antes em sua
aldeia natal e, mais tarde, na escola de Chieri; já padre, Dom Bosco, com uma
nova consciência, foi ao encontro dos jovens em perigo pelas ruas de Turim.
Nas Memórias, o termo “amabilidade” [amorevolezza, carinho, amor de-
monstrado], pedra angular do método, é usado apenas uma vez, no episódio
de Garelli.71 Dom Bosco prefere exemplificá-la em sua narração por meio
de fatos e pessoas. Em sua narração, os métodos e a linguagem afetiva são,
às vezes, exuberantes. O jovem João Bosco, ao ser privado da sua infância,
mostra-se carente de amizade e de afeto. Lamenta, sobretudo, o fato de não
ter podido aproximar-se dos seus “superiores”. Sobre essa desilusão em sua
juventude e mais tarde no seminário, ele escreve:
Via alguns bons padres trabalhar no sagrado ministério, mas não podia con-
trair com eles nenhuma familiaridade. Aconteceu encontrar-me muitas vezes
pelo caminho com o pároco e seu coadjutor. Cumprimentava-os de longe,
e quando mais de perto fazia também uma inclinação. Eles, contudo, retri-
buíam sérios e corteses a saudação e continuavam andando. Repetidas vezes,

70
MO, 29.
71
MO, 123. “Já ouviste missa? — disse-lhe com a maior amabilidade que pude”.

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Dom Bosco: história e carisma 1

chorando, disse de mim para mim e também a outros: “Se eu fosse padre,
agiria de outro jeito. Gostaria de aproximar-me dos meninos, dizer-lhes uma
boa palavra, dar-lhes bons conselhos”. [...] Quantas vezes queria falar, pedir-
-lhes conselho ou solução de dúvidas, e não podia fazê-lo. [...] Isso avivava
em meu coração o desejo de ser quanto antes padre, para ficar no meio dos
jovens, assisti-los e ajudá-los no que fosse preciso.72

Nas Memórias, a descrição do final de um “dia no Oratório” mostra, sem ne-


nhuma formulação téorica, mas com claro realismo, o amor com que a educação
deveria estar presente entre os jovens e o amor com que eles podem retribuir.73

Viver para os jovens e deixá-los “ser jovens”


“Viver para os jovens” inclui não só estar disponível para eles e oferecer-
-lhes o que é importante na vida, mas também satisfazer suas necessidades
de distrações e diversões agradáveis. O Oratório é “catecismo”, mas é tam-
bém “pátio”. As funções religiosas e as diversões são mencionadas no mesmo
nível. Neste assunto, Dom Bosco não faz referência, nem de passagem, ao
exemplo de São Felipe Neri, como o faz no Sistema Preventivo. Nas Me-
mórias, o pátio com o estilo das brincadeiras que ele proporciona aparece
como uma invenção de Dom Bosco. Os gritos de alegria dos jovens, suas
risadas, correrias e cantos ecoam em muitas páginas das Memórias. Além dis-
so, mencionam-se caminhadas e excursões fora da cidade e pelas montanhas
dos arredores. O memorável e ruidoso passeio pela colina do santuário de
Superga é apresentado como exemplo.74

A relação educativa
Mediante o envolvimento afetivo na vida dos jovens e a participação em
suas brincadeiras, cria-se uma particular relação educativa. O educador toma
a iniciativa e assume a responsabilidade; os jovens correspondem espontane-
amente com o afeto, que os leva à obediência e aceitação voluntária. Dom
Bosco escreve:

Impossível descrever o entusiasmo que esses passeios despertavam nos rapa-


zes. Contentes com essa mistura de devoções, brinquedos e passeios, afeiço-
avam-se tanto a mim, que não só obedeciam fielmente às minhas ordens,

72
MO, 48; 93.
73
MO, 149-152.
74
MO, 145-146.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

mas desejavam vivamente que lhes desse alguma incumbência. [...] De fato, a
obediência e o afeto dos meus alunos raiava pela loucura.75

O surgir dessa forma de relação de camaradagem, brotada da amizade,


da familiaridade e da confiança recíproca, permitia a Dom Bosco dizer “pala-
vrinhas” muito pessoais aos jovens, especialmente quando estavam brincan-
do. Ele escreveu:

Servia-me daqueles agitados recreios para insinuar aos meus alunos pensa-
mentos religiosos e convidá-los a frequentar os santos sacramentos. Com uma
palavrinha ao ouvido recomendava a uns maior obediência ou maior pon-
tualidade nos deveres do próprio estado; a outros, que tomassem parte no
catecismo, viessem confessar-se e coisas que tais.76

Essas citações revelam claramente a existência de uma relação edu-


cativa em cujos elementos incidem, com equilíbrio e tensão, o carisma
pessoal e o método. Os elementos mais importantes e evidentes são os
valores inegociáveis e o objetivo desta vida e da futura. Depois, o edu-
cador situa-se como alguém comprometido com esses valores e com a
sua transmissão. O estilo educativo também demonstra ser isso o que faz
do Oratório uma “família”, na qual a alegria e o afeto recíprocos estão
em toda parte. Enfim, os jovens aparecem como membros obedientes e
responsáveis dessa família.
Dom Bosco descreve essa relação educativa dinâmica com alguns modelos.
Encontramo-los no padre Calosso, com quem João Bosco contrai um estreitís-
simo relacionamento.77 O professor padre Pedro Banaudi, em Chieri, aparece
como modelo de professor que praticava o sistema preventivo (!);78 o padre José
Cafasso é modelo de diretor espiritual.79 O teólogo João Borel é o constante,
heroico colaborador de Dom Bosco no trabalho do primeiro Oratório.80
Coerente com a finalidade educativa das Memórias, Dom Bosco em
1844 escolheu como modelo de educador e patrono do Oratório, São Fran-
cisco de Sales, o santo da amabilidade e do amor.

MO, 152. Literalmente, beirava à loucura. Note-se a palavra “alunos”.


75

MO, 176. Note-se novamente a palavra “alunos”.


76

77
Cf. MO, 40-43.
78
Cf. MO, 64-65.
79
Cf. MO, 46-47, 116, 120-121.
80
Cf. MO, 106, 132, 135ss. Considere-se que, apesar disso, Dom Bosco, às vezes, ignora total-
mente o teólogo Borel (ou Borrelli, como ele o chama).

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Dom Bosco: história e carisma 1

Havíamo-nos colocado sob a proteção deste santo [São Francisco de Sales]


para que nos alcançasse de Deus a graça de imitá-lo em sua extraordinária
mansidão e na conquista das almas.81

Conclusão
Procuramos oferecer uma interpretação das Memórias do Oratório de São
Francisco de Sales tal como emerge da mesma narrativa. Ressaltamos, especial-
mente, a ampla presença de uma finalidade “educativa”; vimos que, em essência,
a narração trata o “Oratório” como a raiz e o instrumento original do serviço
dos Salesianos para a educação dos jovens. O Oratório é uma obra educativa,
cujo caráter específico se manifesta num método educativo todo especial.
É verdade que nas Memórias aparecem elementos narrativos de todo
tipo como também dados históricos e outros acontecimentos. Apesar disso,
a narrativa em seu conjunto, tanto quantitativa quanto qualitativamente, é
valiosa, mais para compreender a mentalidade, a espiritualidade e o estilo
educativo de Dom Bosco, do que pelos seus outros aspectos.
Temos, portanto, basicamente diante de nós uma declaração valiosa,
não teórica, mas descritiva do método educativo que, mais tarde, Dom Bos-
co descreverá como Sistema Preventivo para a educação da juventude. Dessa
forma, está afirmando que, na verdade, o sistema nasceu da experiência “do
Oratório”. Foi “método oratoriano” antes de ser “Sistema Preventivo”.

II. A HISTÓRIA DO ORATÓRIO, DO PADRE BONETTI


Pouco depois de padre Berto passar a limpo as Memórias do Oratório de
Dom Bosco, entre 1879 e 1886, padre João Bonetti (1838-1891) publicou um
relato da obra de Dom Bosco no Boletim Salesiano, do qual era editor-chefe,
com o título de História do Oratório de São Francisco de Sales.82
Padre Bonetti estava particularmente qualificado para essa tarefa. Além
de ter vivido “no centro” e em contato com o Fundador desde 1855, atuara
como principal cronista e desempenhara altos cargos na jovem Congregação.

81
MO, 137. É possível pensar que, historicamente, deram-se outras razões para essa escolha, e
que os motivos aduzidos reflitam uma reflexão posterior.
82
Bollettino Salesiano 3:1 (janeiro de 1879) 6-8, e, em capítulos, até 1886. A série também apa-
receu nas edições francesa e espanhola do Boletim, segundo a estratégia estabelecida por Dom Bosco, a
fim de manter a seção principal idêntica em todas as edições. Como se sabe, essa história foi publicada
no volume Cinque lustri di storia dell’Oratorio salesiano, traduzido em espanhol com o título de Cinco
lustros de historia del Oratorio salesiano, Buenos Aires, 1897.

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As Memórias do Oratório, de Dom Bosco, e a História do Oratório, do padre Bonetti

Mais decisivo ainda, ele estava escrevendo sob a supervisão de Dom Bosco e
tinha as próprias Memórias do Oratório à sua disposição.
A História do Oratório pode ser dividida em duas partes. A primeira, ca-
pítulos 1-40, quase inteiramente baseada nas Memórias, apresenta a história
do Oratório desde seus inícios, em 1841, até sua consolidação em 1854. A
segunda parte, capítulos 41-58, trata do desenvolvimento do Oratório e da
sua continuação na Congregação Salesiana, fundada em 1859 e confirmada
com o Decreto de Recomendação em 1864.
Advirta-se que a segunda parte inicia com uma discussão sobre o mé-
todo educativo salesiano, a partir da visita do ministro Urbano Ratazzi ao
Oratório, em 1854; menciona-se aí, anacronicamente, o método educativo
como Sistema Preventivo; em seguida, fala da sua eficácia e narra o episódio
da Generala.
Não resta dúvida de que a intenção direta da História, como publicada
no Boletim Salesiano, era oferecer aos Cooperadores e ao público em geral
uma exposição substancial e confiável da obra de Dom Bosco: o Oratório
tinha continuidade na Congregação Salesiana. Entretanto, como elemento
irmão e continuação das mesmas Memórias de Dom Bosco, a obra comparti-
lha as preocupações e finalidades das Memórias.
A autoridade pessoal de padre Bonetti, assim como das suas fontes, dão
à sua obra um lugar privilegiado, de modo que a História serviu como fonte
importante para os trabalhos biográficos que a seguiram.

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Parte II

vida

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Capítulo IV

DA REVOLUÇÃO FRANCESA AO
CONGRESSO DE VIENA

Quando João Melquior Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815, acabara


de encerrar-se o Congresso de Viena. Nessa reunião histórica, após a queda
do imperador Napoleão, os monarcas das principais nações da Europa e seus
ministros elaboraram um novo acordo político para a Europa.
Caminhava-se, então, para o período da Restauração em que os po-
deres legítimos depostos por Napoleão foram restabelecidos em seus do-
mínios, voltando ao antigo regime (Ancien Régime). A Restauração, sem
dúvida, teve vida efêmera; não pôde deter as forças de mudança, e os acon-
tecimentos que a precederam estavam destinados a mudar para sempre a
face da Europa ocidental.

1. A Itália sob Napoleão


Durante o período napoleônico (1812), a Itália apresenta-se dividida
política e administrativamente em três partes.
Ao norte, havia o Reino da Itália, que compreendia inicialmente a Lom-
bardia, a Emília, os Estados Pontifícios e as Marcas. Depois da batalha de
Austerlitz (1805), acrescentaram-se Veneza e o Vêneto. O soberano era o
mesmo Napoleão, que governava por meio de um vice-rei, o general Eugênio
de Beauharnais, filho do primeiro casamento de Josefina.
Ao sul, havia o Reino de Nápoles, com José Bonaparte como regente.
O marechal Joaquim Murat substituiu-o quando José foi nomeado rei da
Espanha em 1808.1
Havia, enfim, a parte da Itália diretamente anexada à França, incluindo o
Piemonte, a Ligúria (Gênova), a Toscana e Roma com o Patrimônio de São Pedro,

A ilha da Sicília fizera parte desse Reino, mas estava sob a ocupação britânica. Os reis da
1

Casa de Saboia, Carlos Emanuel IV e Vítor Emanuel I, permaneceram na ilha da Sardenha durante
o período napoleônico.

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Dom Bosco: história e carisma 1

isto é, os territórios papais ao redor de Roma (Lácio), que não faziam parte do
Reino da Itália. Eram governados como províncias do Império francês.
A Revolução Francesa, cujas ideias básicas foram transmitidas por Napo-
leão ao resto da Europa ocidental, junto com a experiência da Itália sob o go-
verno de Napoleão no campo político, social, militar, econômico e ideológico,
influenciaram o pensamento italiano e a evolução futura do Ressurgimento.

O legado napoleônico
Há que se reconhecer que o papel de Napoleão na Itália teve conse-
quências danosas. A imposição a muitos italianos que se arrolassem no seu
exército, levou à perda de dezenas de milhares de vidas. A carga de pesados
impostos foi um peso intolerável para a população e provocou aflições e in-
tranquilidade. O saque dos tesouros de arte, só em parte devolvidos pelos
acordos do Tratado de Paris, depois da sua queda, causou um profundo furor.
A forma brutal com que tratou Pio VII revelou-o um déspota cruel.
Deve-se conceder-lhe, sem dúvida, o mérito de ter introduzido medidas
positivas. Por exemplo, a obtenção dos ofícios dependeu mais do talento pes-
soal do que das influências, os administradores nomeados eram competentes,
eficientes e não corruptos, a bandidagem foi punida.
Essas reformas começaram a transformar a sociedade italiana. Em geral,
a vitalidade do governo foi uma experiência nova em contraste com o papel
absolutista que prevalecera antes de Napoleão e que continuaria depois, du-
rante o período da Restauração.
Embora em 1812 o conjunto da península italiana dependesse da Fran-
ça, as reformas napoleônicas não foram concluídas do mesmo modo em to-
das as partes: o sul continuou à margem das reformas, na forma de imobili-
dade; em contrapartida, o norte, ou seja, o Reino da Itália, que ia de Milão
a Veneza e Bolonha foi cenário de reformas importantes e duradouras. Nessa
região, o povo, sobretudo os intelectuais, preferiu o governo de Napoleão,
apesar do seu despotismo, à Áustria ou ao Papa, e as forças políticas puderam
desenvolver o que Napoleão iniciara. O vale do rio Pó converteu-se numa
zona econômica extraordinária e prosperou comercialmente. Milão, a capital
napoleônica, foi o centro financeiro do vale e, ao mesmo tempo, converteu-se
em capital cultural e intelectual não só da região, mas de toda a península.
A partir de Milão, Napoleão fez uma revolução econômica e social que teve
sucesso permanente na vida italiana.
Essas realizações serão devidas, em primeiro lugar, ao novo modo de
administrar. Procedeu-se, em todas as partes, à reforma administrativa, com

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

critérios lógicos, deixando de lado as motivações históricas. Introduziram-se


novos sistemas de contabilidade e exerceu-se um controle escrupuloso dos
funcionários. Houve também melhorias no desenvolvimento urbano. Cria-
ram-se novas escolas e construíram-se novas estradas. Eliminaram-se territó-
rios pantanosos, convertidos em áreas de cultivo; a agricultura e a indústria
viram-se estimuladas.
Decreto após decreto, sempre com o apoio das armas francesas, Napo-
leão transformou a vida italiana. As leis feudais, sobretudo as da propriedade,
foram suprimidas; aboliram-se as leis restritivas contra os judeus e o uso da
tortura; separaram-se as jurisdições civil e criminal. O sistema judicial foi
reorganizado, de modo que fossem introduzidos os julgamentos públicos en-
quanto os advogados defendiam suas causas no tribunal, e não só enviando
documentos escritos.
O Código Civil (Code Napoleón, de 1804 a 1810) foi um marco histó-
rico. As leis civis e criminais na Itália e em toda a Europa eram até então um
acúmulo desordenado de costumes vindos de antigas tradições e códigos,
“resquícios dos tempos bárbaros”. O Código era severo, detalhado e claro,
promoveu a ordem, a unidade e a igualdade legal, sem levar em conta posição
ou linhagem. Entre outras novidades, o Código permitiu o casamento civil
e o divórcio.
A consequência mais importante do domínio francês foi ter semeado na
mente do povo a ideia de que uma revolução liberal poderia ter sucesso e que
a Itália poderia converter-se numa nação unida. Isso foi importante, porque
o principal obstáculo para o movimento patriótico era a impossibilidade de
imaginar a “Itália”, mesmo entre os intelectuais, como um estado e uma na-
ção. Cada região tinha, desde tempos imemoráveis, a própria idiossincrasia
(língua, tradições, características etc.), como também cada uma delas manti-
nha uma vida política, social e cultural distinta. A reorganização política e ad-
ministrativa da península feita por Napoleão reduziu a fragmentação regional
e alimentou a ideia da unidade.

A política eclesiástica de Napoleão


Os acontecimentos que se precipitaram durante a Revolução Francesa e
o período napoleônico mostram que subjazia neles o desejo de romper total e
radicalmente com a tradição, tanto política quanto religiosa.
Ao menos no início, pode-se notar o desejo de romper com as raízes cris-
tãs, também com o próprio cristianismo. Por exemplo, em 1792 o calendário
cristão foi abolido na França, e, em 1793, estabeleceu-se, para ser adorada,

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Dom Bosco: história e carisma 1

a “deusa Razão”. O projeto não obteve êxito, mas foi uma tentativa séria de
enfraquecer a Igreja a fim de convertê-la em instrumento do Estado e sem
força na sociedade.
Ao eliminar a Igreja na França, os revolucionários pensavam que a fa-
riam entrar em colapso e, com ela, o cristianismo. À morte de Pio VI no
exílio (1799), celebraram-se funções públicas “pela morte da Igreja”. Esta,
na verdade, despojada do poder temporal, sobreviveu graças à força do seu
poder espiritual.
Apesar dos laços iniciais com os revolucionários franceses, Napoleão se-
guiu um caminho diferente em sua política eclesiástica. Na Itália, seguiu a
linha da concordata francesa, com toda sua rigidez galicana. Mediante uma
série de decretos emanados em Milão, no tempo da sua coroação, ele reor-
ganizou a estrutura eclesiástica no norte da Itália, sem qualquer referência a
Roma. Os limites paroquiais foram redefinidos e muitas paróquias foram su-
primidas como desnecessárias. As Ordens religiosas ou aceitavam as reformas
ou eram completamente suprimidas. Sob o Código Civil, introduziram-se
medidas sobre o casamento civil e o divórcio, que supuseram a libertação da
vida familiar do controle da Igreja.
Algumas vezes, Pio VII protestou, mas Napoleão nem sempre lhe res-
pondeu de modo adequado. Numa carta ao tio, cardeal José Fesch, que o
representava em Roma, expressou-lhe com nitidez a sua atitude despótica e
galicana: “Espero que o Papa se adapte às minhas exigências. Se tudo correr
bem, não farei mudanças externas; caso contrário, eu o rebaixarei à condição
de Bispo de Roma”.2

2. O Congresso de Viena
Depois da prisão de Napoleão na ilha de Elba (1814), os governantes das
principais potências europeias e seus ministros reuniram-se em Viena (Áustria)
com a finalidade de restaurar, na medida do possível, a antiga ordem política
da Europa. O Congresso de Viena foi celebrado de 1º de setembro de 1814 a
9 de junho de 1815. Foi interrompido devido à volta de Napoleão ao poder
dos Cem Dias e reuniu-se novamente depois da sua prisão em Santa Helena.
Os acordos mais importantes foram recolhidos nas Atas do Congresso e
podem ser assim resumidos:

2
George Martin, The red shirt and the house of Savoy: the story of Italy’s “Risorgimento” (1748-1871).
New York: Dodd, Mead & Co., 1969, 154.

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

1. As monarquias da Áustria e Prússia foram restauradas com nume-


rosas adições e ajustes. Por exemplo, na Itália, com o domínio sobre
Milão (Lombardia), a Áustria recebeu a região de Veneza, formando
o Reino Lombardo-Vêneto.
2. O Reino dos Países Baixos, integrado por Holanda e Bélgica, foi
formado no quadro do antigo governo hereditário, reinando en-
tão Guilherme I.
3. Uma Confederação alemã foi criada para substituir a Confedera-
ção do Rin (Rheinbund) do tempo de Napoleão e o antigo Impé-
rio que compreendia 39 estados soberanos.
4. A Rússia recebeu a maior parte do Grão-Ducado de Varsóvia (Rei-
no da Polônia), enquanto Cracóvia, ao sul, tornou-se um estado
independente.
5. O Reino Unido manteve Malta, Helgoland (pequena ilha no mar
do Norte), uma parte das colônias da França e dos Países Baixos e a
República das Sete Ilhas Jônicas, posteriormente cedidas à Grécia.
6. A Suécia manteve a Noruega, adquirida anteriormente por força de
um tratado.
7. Os 19 cantões da Suíça passaram a 22 mediante a adição de Gene-
bra, Neuchâtel e Wallis.
8. As dinastias da Espanha e dos estados regionais italianos foram
restauradas.
9. A Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, Prússia e Rússia mantiveram
a fórmula congressual na “Quádrupla Aliança”.

A Restauração na Itália
A península italiana, então com uma população de quase 20 milhões
de habitantes, era um mosaico de 10 estados regionais. A nova organização
política ficava assim estabelecida:
1. O Reino da Sardenha, com uma população de 3.814 milhões de
habitantes, foi formado pelo Piemonte, Saboia, Nice, Sardenha
e Ligúria, recém-adquiridos, ficando sob o domínio do rei Vítor
Manuel I, da Casa de Saboia.
2. O Reino Lombardo-Vêneto, com uma população de 4.065.000
habitantes, ficou sob o domínio do imperador da Áustria, que go-
vernava através de um vice-rei residente em Milão.
3. O Ducado de Parma e Piacenza, com uma população de 383 mil
habitantes, foi colocado temporariamente sob o domínio de Maria
Luísa da Áustria, filha do imperador da Áustria e segunda esposa

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Dom Bosco: história e carisma 1

de Napoleão. À sua morte, o ducado voltaria aos Bourbon de Par-


ma, a quem pertencia legitimamente.
4. O Ducado de Lucca, com uma população de 131 mil habitantes,
foi entregue temporariamente aos Bourbon de Parma. À morte de
Maria Luísa da Áustria, os Bourbon de Parma recuperariam seu
ducado enquanto Lucca se uniria à Toscana.
5. O Grão-Ducado da Toscana, com uma população de 1.264 mi-
lhões de habitantes, foi entregue a Fernando III de Habsburgo-
-Lorena, irmão do imperador da Áustria.
6. O Ducado de Módena e Réggio, com uma população de 375 mil
habitantes, foi dado ao arquiduque austríaco, Francisco IV de Ha-
bsburgo-Este.
7. O Ducado de Massa e de Carrara, com uma população de 20 mil
habitantes, foi posto sob o domínio de Maria Beatriz Cybo, também
de Habsburgo-Este.
8. Os Estados Pontifícios, com uma população de 2.425 milhões de
habitantes, foram devolvidos a Pio VII. Compreendiam, além de
Roma e o patrimônio de São Pedro (Úmbria e Lácio), Benevento e
Pontecorvo, as Marcas e as Legações (Bolonha, Ferrara e Ravena).
A Áustria continuou com o direito de proteção e manutenção de
guarnições em algumas localidades.
9. A República de San Marino, com uma população de 7 mil habi-
tantes, foi restaurada em sua tradicional situação pré-napoleônica.
10. O Reino das Duas Sicílias, com uma população total de 6.766 mi-
lhões de habitantes, que compreendia o conjunto dos reinos de Ná-
poles e da Sicília, ou seja, o sul da Itália, foi entregue ao domínio de
Fernando I, dos Bourbon espanhóis, relacionados com o imperador
da Áustria e a ele vinculados politicamente.
O extremo norte e o noroeste da Itália (Trento, Tirol do Sul e Veneza Jú-
lia) mantiveram-se sob a Áustria. O Reino da Sardenha (Saboia e Piemonte)
era o único Estado verdadeiramente independente na Itália. Todos os outros,
direta ou indiretamente, estavam sob o domínio dos Habsburgo da Áustria
ou dos Bourbon, aliados da Áustria.

O reino da Sardenha e a Casa de Saboia


O Reino da Sardenha, também chamado Reino de Saboia, ou do Pie-
monte-Sardenha ou do Piemonte, era domínio da Casa de Saboia. Além do
Piemonte e da Sardenha, o reino incluía a Saboia, terra original da dinastia,
Nice e a Ligúria, e a antiga República de Gênova, que a ele se uniu em 1815.

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

A Casa de Saboia adquirira o título real em 1720. A chegada do duque Ví-


tor Amadeu II (1666-1732) marcou a maioridade do Ducado de Saboia. A Paz
de Utrecht, em 1713,3 acrescentou ao ducado a região central, o Monferrato, e
o sudeste da região do Piemonte, e também fixou a fronteira franco-piemontesa
(ao norte de Nice) na divisão de bacias hidrográficas dos Alpes. Mais importan-
te, ainda, concedeu o Reino da Sicília a Amadeu, sendo-lhe transferido o título
de rei. Entretanto, pelo Tratado de Londres de 1718, as grandes potências obri-
garam-no a ceder a Sicília aos Habsburgo da Áustria. Em contrapartida, rece-
beu a Sardenha, até então sob o domínio espanhol. A partir desse momento, e
até 1861, data da proclamação do reino unificado da Itália, ele e seus sucessores
foram reconhecidos como reis da Sardenha, embora a sede do poder, a riqueza
e a residência habitual estivessem no Piemonte, com sua capital em Turim.
Embora a Sardenha proporcionasse o título de rei, era uma região po-
bre e atrasada. Por outro lado, as terras ao norte dos Alpes (França e Suíça),
que já tinham chegado à organização política, não ofereciam perspectivas de
expansão para a Saboia. Por isso, o Piemonte, tendo Turim como a capital
do reino, converteu-se na verdadeira sede dos “reis da Sardenha”. O Piemon-
te transformou-se em poder real, núcleo a partir do qual podia acontecer a
maior expansão ao sul e a leste, e finalmente a unificação da Itália.
A Revolução Francesa e as guerras napoleônicas foram catastróficas para
a Casa de Saboia. Embora Vítor Amadeu III (1726-1796) tenha obtido al-
gum sucesso inicial contra os franceses no início dos anos noventa do século
XVIII, a campanha de Napoleão de 1796 obrigou-o a ceder a Saboia e Nice
à França e a permitir ao francês a livre passagem através do Piemonte. Seu
filho e sucessor, Carlos Emanuel IV (1751-1819), viu-se obrigado a aceitar
uma guarnição francesa em Turim, teve que abdicar e retirou-se na Sarde-
nha (1798). Seu sucessor Vítor Emanuel I (1759-1824) precisou enfrentar
as guerras napoleônicas. Em 1806, ele também se retirou para a Sardenha,
com toda a casa real, retornando à península depois da primeira queda de
Napoleão. O Congresso de Viena devolveu aos governantes legítimos os seus
domínios e restaurou a velha ordem política, que não tardaria a entrar em
colapso devido à pressão das ideias liberais e à revolução.
No recentemente restaurado Reino da Sardenha, a pouca distância de
sua capital, Turim, João Melquior Bosco veio à luz em 16 de agosto de 1815.
3
A Paz de Utrecht (1713) consistiu numa série de tratados que puseram fim à Guerra de Sucessão
da Espanha. O disputado trono da Espanha foi entregue ao contendor Filipe V, francês, embora estivesse
proibido que os reinos da Espanha e da França fossem regidos pela mesma pessoa. A Grã-Bretanha con-
servava Maiorca e Gibraltar, ocupadas durante a guerra (mais tarde, porém, Maiorca passaria novamente
à Espanha). À Casa de Saboia foram devolvidas a Saboia e Nice, ocupadas pela França durante a guerra;
além disso, recebeu a Sicília, cedida pela Espanha.

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Apêndice

NOTA BIOGRÁFICA DO PAPA PIO VII (1742-1823)

Luís Barnabé Chiaramonte nasceu em 14 de abril de 1742. Beneditino,


professor de teologia e bispo de Tívoli, foi eleito cardeal em 1785. Eleito Papa
em 14 de março de 1800, faleceu em 20 de julho de 1823.
Devido à agitação das guerras napoleônicas, o Conclave que o elegeu
Papa foi celebrado em Veneza, com a presença de 35 cardeais, tendo durado
três meses e meio. O cardeal Chiaramonte foi o candidato de consenso. Após
a sua eleição, nomeou o brilhante diplomata de 34 anos Hércules Consalvi
como cardeal secretário de Estado.
Pio VII firmou concordatas com vários países (como com a França, Rús-
sia e Prússia), quase sempre com desvantagens para a Igreja. A concordata
entre Napoleão e a Santa Sé, assinada em 16 de julho de 1801, vigorou por
mais de cem anos apesar das mudanças introduzidas unilateralmente por Na-
poleão em 1802 (os assim chamados Artigos Orgânicos), totalmente galica-
nas, às quais se seguiram outras alterações em 1817.
Contra o conselho dos cardeais, Pio VII assistiu a coroação de Napoleão
em Paris no dia 2 de dezembro de 1804, reduzindo-se a um espectador a
mais. A invasão francesa e a anexação dos Estados Pontifícios em 1808 foi
uma nova humilhação, como o foi a insistência de Napoleão em 1806, para
que Consalvi fosse afastado do seu cargo.
A inútil excomunhão dos invasores franceses levou à prisão do Papa no
mês seguinte. Ele permaneceu prisioneiro durante cinco anos. Enfim liberta-
do por Napoleão, Pio VII restaurou Consalvi em seu cargo, que interveio no
Congresso de Viena de 1814 para que se restaurassem os Estados Pontifícios
e os enclaves papais na França (exceto Avinhão e o Condado Venaissino).
Ao regressar a Roma após o desterro, Pio VII deteve-se em Savona (Ligúria)
e, em ação de graças, coroou a imagem da Virgem Maria. No ano seguinte, insti-
tuiu a festa de Maria Auxiliadora dos Cristãos.

132

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

Numa época dominada pela política, a postura vigorosa de Pio VII foi
eclipsada pelo turbilhão das guerras e pela revolução. Sem dúvida, apesar da
sua oposição política, do seu substrato pessoal rigorista e das influências an-
tijesuíticas, restaurou a Companhia de Jesus em 7 de agosto de 1814. Desde
então, os jesuítas converteram-se numa força importante no crescimento do
ultramontanismo durante o século XIX.4

Mapa 1: Apogeu do Império napoleônico

4
“Ultramontanismo” (além das montanhas, em referência aos Alpes que separavam a Itália e Roma
do resto da Europa) é um termo ambíguo: para os italianos eram ultramontanos os nascidos além do seu
território; para os franceses, alemães e qualquer outro povo situado ao norte dos Alpes, são ultramonta-
nos os romanos e os italianos. Num sentido mais eclesiástico, o termo passou a designar o catolicismo
integrista, partidário de uma eclesiologia conservadora. No século XIX, aplicava-se aos partidários do
pensamento predominante em Roma, seguidores do Papa, defensores da sua infalibilidade e contrários a
toda forma de regalismo e à excessiva autonomia dos bispos à margem da autoridade papal.

133

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os sentimentos cristãos de Pio VII podem ser medidos pelo fato de ter
enviado seu capelão para conceder a absolvição geral a Napoleão antes que
morresse prisioneiro em Santa Helena, em 1821. Provavelmente o fez tam-
bém em reconhecimento porque Napoleão, apesar de tudo, restabeleceu a
Igreja na França mediante a Concordata de 1801.
Mecenas das artes e das ciências, Pio VII desejou sinceramente a recon-
ciliação do catolicismo com as aspirações liberais, mas a reação da Restau-
ração e a pressão conservadora que prevaleceram nos últimos anos do seu
pontificado evitaram qualquer abertura nessa direção.
A intenção de enfrentar os problemas da Igreja diante do colapso do
Ancien Régime, como também a coragem e paciência diante das dificuldades
e humilhações sofridas, dá a impressão, sem dúvida, de que Pio VII foi um
grande homem e o seu pontificado, construtivo.

METTERNICH E A DOMINAÇÃO AUSTRÍACA DA


ITÁLIA (1815-1848)
Klemens Wenzel Nepomuk Lothar von Fürst Metternich-Winneburg
(1773-1859) foi, provavelmente, o homem de estado mais influente na Eu-
ropa nos anos que vão do Congresso de Viena (1815) às revoluções liberais
(1848), quando foi forçado a abandonar o poder e exilar-se. Como ministro
dos Assuntos Exteriores da Áustria, desempenhou papel-chave na reorganiza-
ção da Europa central durante o Congresso.
Na primeira fase do Ressurgimento italiano foi o “cão de guarda” dos Es-
tados regionais italianos, pois a influência da Áustria dominava a península.
Sua estratégia conservadora destinava-se a prevenir qualquer ressurgimento
dos movimentos revolucionários, intervindo na Itália em numerosas ocasiões
contra os revolucionários. Assim, quando a revolução estourou em Nápoles
em 1820, Metternich enviou imediatamente um exército para enfrentar os
revolucionários e abolir a constituição que o rei Fernando I concedera de-
baixo de coação. A revolução de Nápoles expandira-se até o Piemonte, onde
Carlos Alberto, regente do rei Carlos Félix, também aceitara uma constitui-
ção em 1821. O poderio militar de Metternich sufocou a rebelião e foram
restabelecidos a ordem e o domínio absolutista.
Ao longo da sua carreira, lutou contra o liberalismo e a revolução para
garantir a sobrevivência dos legítimos monarcas absolutistas. Entretanto,
Metternich, como muitos outros, não soube discernir os sinais dos tempos e
as forças que emergiam para criar uma nova Europa.

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

Significado de alguns termos políticos


Muitos termos políticos desse período comportavam, em tempos de
Restauração e Ressurgimento, um significado especificamente diverso do que
lhes atribuímos em nossos dias.

Política liberal
Liberal é o mais fundamental desses termos. Político liberal era a pessoa
que defendia a abolição do Antigo Regime absolutista. Os liberais opunham-
-se à “origem divina” da realeza. Como consequência, recusavam “o princípio
da legitimidade”, princípio que defendia a ideia de que somente um membro
da dinastia podia exercer a autoridade de modo legítimo.
A Revolução Liberal era um ato de força dos liberais com o objetivo de
pôr fim ao regime absolutista e estabelecer uma nova ordem política. A cons-
tituição e o estabelecimento de um parlamento (em geral, com duas câmaras)
que representasse os cidadãos, foram a primeira e fundamental expressão da
ordem política liberal.
A monarquia constitucional era uma ordem política que mantinha o
monarca como chefe do Estado. A autoridade era compartilhada ou exercida
por um parlamento e um gabinete presidido pelo primeiro-ministro, segun-
do os termos da Constituição liberal adotada por esse Estado. Na verdade, o
poder do monarca era limitado pela Constituição.

República
A República era o sistema político que acabava com a monarquia e suas
reivindicações.
A República federativa era uma federação ou união de regiões mais ou
menos independentes ou de Estados de uma região sob a presidência de uma
autoridade central, como fosse definido na Constituição. Para a unificação da
Itália, alguns filósofos políticos liberais propugnavam uma união federativa
dos Estados italianos presidida pelo Papa ou pelo rei do Piemonte.
A República unitária era aquela em que o Governo central (parlamento e
gabinete) representava diretamente o povo (não os estados da região). Os go-
vernantes absolutistas regionais eram suprimidos e a Constituição da República
era uma criação do povo mediante a Assembleia constituinte eleita pelo povo.
No período da Restauração e das revoluções liberais, este era o único sentido
atribuído ao termo república. Seu modelo era a ordem política idealizada e cria-
da pela Revolução Francesa. A França foi, porém, a única nação que conservou

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Dom Bosco: história e carisma 1

essa ordem republicana. A Itália conseguiu a unidade através da sua Revolução


Liberal, não como uma república federativa (como a Alemanha), nem como uma
república unitária (como a França), mas pela anexação (por conquista ou plebisci-
to) dos estados regionais. A unificação da Itália por anexação nos anos 1859-1861
significava que o rei do Piemonte convertia-se em rei da Itália e a Constituição do
Piemonte tornava-se (basicamente) a Constituição da Itália.
Na Itália, a monarquia dos Saboia acabou em 1946, mediante um re-
ferendo. A Itália converteu-se, então, em república unitária centralizada, de
estilo francês.

“Ressurgimento”
Na Itália, de modo particular, a Revolução Liberal não só tendia a acabar
com o governo absolutista e estabelecer uma ordem parlamentar constitucio-
nal. Tinha, também, como objetivo pôr fim à dominação estrangeira, como
requisito prévio para a unificação nacional. De fato, no período da Restau-
ração e das revoluções liberais, a Itália estava dividida em estados regionais,
dominados em sua maior parte pela Áustria. O movimento liberal com vistas
à libertação da Áustria e a unificação da Itália como estado-nação recebe o
nome de “Risorgimento” (ou Ressurgimento, isto é, o “ressurgir” da nação).
Não havia unanimidade sobre o modo de se chegar a esse objetivo. Um
dos projetos, o mais extremo, pretendia uma rebelião do povo em toda a
Itália para expulsar os austríacos, libertar a Itália dos governantes regionais
absolutistas (incluído o papado) e estabelecer uma república democrática no
estilo da Revolução Francesa. Era o objetivo perseguido por Mazzini e sua
sociedade secreta, por Garibaldi e outros. Embora parecesse nobre, esse pro-
grama não era realista. Os estados regionais italianos jamais poderiam unir-se
num levante único, pois eram tão diversos culturalmente que não comparti-
lhavam do mesmo sentido de nação.
Outro plano propunha a formação de um estado federativo com a união
dos diversos estados regionais sob a autoridade do Papa ou de outro dirigente.
Outro plano ainda buscava a união de todos os estados sob a autoridade do Rei-
no da Sardenha-Piemonte. A Casa de Saboia era considerada como o único líder
possível no momento de libertação e unificação. Depois da Revolução Liberal de
1848, o rei Carlos Alberto comprometeu-se a lutar contra os austríacos, com a
ajuda de levantes nas regiões dominadas pela Áustria no norte da Itália (Primeira
Guerra da Independência), acabando, porém, em catástrofe.
A guerra, contudo, uniu as regiões e permitiu o que evidentemente o
Piemonte não podia conseguir sozinho: o governo piemontês, do primeiro-
-ministro Cavour, aceitou a ajuda da França por mais que o seu soberano,

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Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena

Napoleão III, tivesse finalidades pessoais. Foi essa a forma pela qual se obteve
a libertação e unificação em 1861. A unificação foi obtida, em parte, pela
anexação voluntária dos estados regionais do norte ao Piemonte e, em parte,
pela conquista do centro e do sul da Itália.
Dom Bosco nasceu e cresceu no Piemonte e recebeu toda a sua educação
e formação no período da Restauração, antes da Revolução Liberal de 1848.
Ele teve de aceitar a realidade da Revolução Liberal (constituição, parlamen-
to, gabinete de ministros etc.), mas nunca se solidarizou com os movimentos
liberais e o Ressurgimento; principalmente, porque os liberais começaram a
atacar a Igreja e o papado. Manteve-se até o fim como um piemontês da “an-
tiga ordem”, uma questão de lealdade ao seu rei, cuja autoridade, assim pen-
sava, estava sendo corroída pelas perversas instituições da Revolução Liberal.

Mapa 2: A Itália em 1815, após o Congresso de Viena

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Capítulo V

A TERRA NATAL E A FAMÍLIA DE


DOM BOSCO

1. O Piemonte e a capital Turim


A grande região do Piemonte estende-se pelo semicírculo dos Alpes do
norte e noroeste numa área de 29.356 quilômetros quadrados, ocupando
a parte mais elevada do vale do rio Pó. Piemonte, em italiano, sugere uma
posição ao pé do monte. A maior parte da região (50%) é montanhosa,
incluindo a zona elevada do Monte Bianco, com 4.810 metros de altura. A
região baixa (23%) tem a forma de uma grande ferradura, situada no semi-
círculo dos Alpes. Envolvido pelos Alpes e no centro da ferradura localiza-se
o país das colinas (27%), formado em grande parte pelas regiões do Mon-
ferrato e das Langhe.
Turim, capital do Piemonte e do reino da Sardenha, está no centro da
ferradura, nos limites entre a planície e as colinas centrais, e pouco mais
para o sudoeste do centro do Piemonte. O rio Pó, com um par de afluentes,
determinou em tempos antigos a localização da aldeia. Em 1790, ao estalar
da Revolução Francesa, Turim contava com pouco mais de 92 mil habitan-
tes, número que baixou a aproximadamente 81 mil em 1800, durante as
guerras napoleônicas. Com o advento da Restauração, a população voltou a
recuperar-se. Por volta de 1821, chegara até ao redor de 130 mil habitantes.1
A situação demográfica, portanto, tinha se alterado drasticamente.
Embora sua história remonte aos tempos de Roma, Turim nunca foi
uma cidade comparável às grandes urbes do Renascimento da Itália, como
Florença, Roma, Veneza etc. Adquiriu, porém, uma considerável beleza
como sede da mais antiga dinastia da Europa: os condes, depois duques e
reis de Saboia.

Harry Hearder, Italy in the age of the Risorgimento 1790-1870. London-NovaYork: Longman,
1

1983, 43. Cf. o verbete “Torino”, na Enciclopedia italiana di scienze, lettere ed arti. Vol. XXXIV. Roma:
Treccani, 1949, 31.

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A terra natal e a família de Dom Bosco

Turim. Vista do Monte dos Capuchinos, 1837 (Centro de Estudos Dom Bosco, Roma).

Chieri e Castelnuovo
A 12 quilômetros a sudeste de Turim está Chieri, bela cidade que re-
monta também à época romana, com uma população ao redor de 9 mil habi-
tantes no tempo da Restauração. Em Chieri, João Bosco fez o antigo ginásio
e cursou os estudos eclesiásticos no seminário local.
Conforme o primeiro testemunho que temos, nos primeiros anos do
século XVII, os membros da família Bosco viviam como camponeses em par-
ceria perto de Chieri. Nos inícios do século XVIII, um ramo deles emigrou
para Castelnuovo, povoado e paróquia com uns 3 mil habitantes, situada a
pouco mais de 10 quilômetros a leste de Chieri. Este grupo, porém, embora
pertencendo a Castelnuovo, não vivia na sede do município. O território de
Castelnuovo, cujo município era o distrito central, estava dividido em quatro
agrupamentos menores, cada qual com um povoado como centro: Bardella e
Nevissano ao norte, Ranello a oeste e Murialdo ao sul, a quase 4 quilômetros
da sede municipal. A população dessas povoações nunca chegou a mais de
200 habitantes. Cada uma tinha a própria igreja ou capela, sem ser paróquia.
Todas as gestões oficiais eclesiásticas e civis (como a administração dos sacra-
mentos) aconteciam na sede municipal e paróquia de Castelnuovo. Murialdo
tinha uma igreja dedicada a São Pedro, onde se celebrava a missa nos fins de
semana e se oficiavam diversas celebrações piedosas.
A família Bosco pertencia ao povoado de Murialdo, mas não residiam
nele. Viviam e trabalhavam perto de uma das aldeias de Murialdo chamada

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Dom Bosco: história e carisma 1

de Becchi, pequeno agrupamento de casas de camponeses situadas 1,5 qui-


lômetro ao sul de Murialdo. A aldeia dos Becchi estava aglomerada ao sopé
de uma colina oblonga que se elevava a uns 70 metros em direção ao sul,
conhecida hoje como Colle Don Bosco.
No cimo da colina elevava-se uma aldeia maior, uma cascina ou sítio
pertencente ao senhor Jacinto Biglione. Ali, Francisco e sua família viviam
e trabalhavam como agricultores arrendatários e onde, acredita-se, nasceram
seus filhos.
Pela metade do caminho, subindo a colina, havia uma aldeia chamada
Canton Cavallo, que tinha anexo, um galpão que, depois da morte de Fran-
cisco Bosco, seria convertido numa pequena casa para Margarida, a esposa de
Francisco, e sua família.

A “cascina” e o sistema de parceria no Piemonte no século XIX


A “cascina” (sítio) não era o sistema mais comum de propriedade da terra
e da agricultura. A terra era dividida em pequenas parcelas, em sua maior
parte nas mãos de pequenos agricultores que viviam na sede do município,
em suas povoações e aldeias. Os pequenos agricultores possuíam normalmen-
te um determinado número de pedaços de terra espalhados para usá-los em
diversos cultivos. Essa distribuição possibilitava ao camponês diversificar os
plantios, de acordo com a situação do campo e a natureza do solo de cada
pedaço de terra. As grandes propriedades eram exceção.
A cascina faz referência à aldeia, maior, e às suas terras circundantes. Era
uma unidade social-agrícola, normalmente de dimensões moderadas (mais
ou menos 49,5 hectares), com uma casa central que em sua origem acomo-
dava uma numerosa família. O nome original, que podia ser do primeiro
proprietário, mantinha-se, geralmente, embora fosse outro o dono do sítio. A
quem administrava o sítio e vivia com sua família em algum lugar da aldeia
ou em alguma casa adjacente, dava-se o nome de administrador. Em muitos
casos, os donos nem dirigiam nem viviam na propriedade. Neste caso, os
Biglione eram profissionais que viviam em Turim e tinham contratado um
arrendatário que residia na cascina com sua família. Os sítios deste tipo ser-
viam para muitas utilidades. Parte da casa acomodava as pessoas; outra parte
era predisposta para estábulo, celeiro e depósito.
O camponês arrendatário era meeiro, porque trabalhava as terras, com-
partilhando a colheita. Segundo a lei não escrita do Piemonte, a quem tra-
balhasse pela metade do produto dava-se o nome de mezzadro (meeiro), pois
produzia meio a meio com o proprietário. Os antepassados de Dom Bosco,

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A terra natal e a família de Dom Bosco

segundo consta na primeira notícia que se tem sobre eles e que remonta ao
século XVII, viviam e trabalhavam em grande parte como meeiros.
Felipe Antônio Bosco, avô de Dom Bosco, mudara-se para a região de
Murialdo-Becchi como agricultor arrendatário da Cascina Biglione na segun-
da metade do século XVIII. Depois da sua morte, seu filho Francisco Luís,
pai de Dom Bosco, continuou na mesma situação.

A terra e os cultivos
A região Turim-Chieri-Castelnuovo situa-se no extremo noroeste da
zona central das colinas. Turim fica na fronteira entre as zonas da planície
baixa e das colinas. As colinas começam a leste de Turim, do outro lado do
rio Pó, e estendem-se a leste, até a cidade de Asti e mais além (o Monferrato)
e ao sul, até as cidades de Alba e Acqui (as Langhe). Em sua maior parte são
baixas, com outeiros deliciosamente arredondados que favorecem o habitat
humano e a agricultura.2
O clima da zona das colinas é mais continental do que mediterrâneo.
Os Alpes oferecem proteção ao norte, mas ao sul os Apeninos cortam a costa
marítima. O inverno é intenso e nevado; o verão é quente e úmido. A média
de chuva por estação é de mais ou menos 442 centímetros cúbicos; a falta de
irrigação diminuía o uso da terra e reduzia a variedade de possíveis cultivos.
O granizo e outras tormentas de verão e as secas periódicas aumentavam a
incerteza e a vida dos agricultores.
Os Bosco viviam e trabalhavam nas terras das colinas. Colheitas de
produtos de primeira necessidade absorviam elevados percentuais das ter-
ras de cultivo: cereais (23%), leguminosas (24%), uva (22%), forragem
de feno e pastos permanentes (22%) e outros (20%). Entre os cereais, o
trigo era o mais importante. Contudo, desde sua introdução sistemática, o
milho teve um papel sempre mais decisivo, chegando a ser praticamente o
único produto básico na dieta dos agricultores durante o inverno. É preciso
destacar as uvas, cujas muitas variedades eram cultivadas para a produção
de vinhos excelentes.
A região onde Dom Bosco nasceu era e é uma bonita terra. As suaves co-
linas onduladas, os pequenos vales férteis e as planícies cobertas por cultivos
intensivos sustentam uma população robusta, de princípios claros, endureci-
da no trabalho, enraizada em sua tradição e de profunda fé.

2
Pietro Landini, “Piemonte”, em Enciclopedia italiana. Vol. XXVII. Roma: Treccani, 1949, 179-181.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Mapa 3: A terra de Dom Bosco.

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A terra natal e a família de Dom Bosco

2. A família Bosco
Os Bosco trabalharam como camponeses, arrendatários ou meeiros, em
dois sítios localizados perto de Chieri, primeiramente na Cascina Croce di
Pane e mais tarde na Cascina San Silvestro. O primeiro antepassado de Dom
Bosco do qual se tem memória é um personagem chamado João Bosco, que
se casou na catedral de Chieri em 1627.
Três gerações depois, os irmãos João Francisco Bosco (1699-1763) e
Felipe Antônio Bosco [I] (1704-1735) viviam como meeiros na Cascina San
Silvestro perto de Chieri. Felipe Antônio Bosco [I] casou-se com Cecília
Dassano em 1733, mas morreu antes do nascimento do filho, que também
se chamava Felipe Antônio Bosco [II]. Poucos anos depois, a viúva, Cecília
Dassano casou-se com Mateus Berruto, viúvo com filhos, tendo ido com o
novo marido e seus 2 filhos para outro lugar, deixando Felipe Antônio aos
cuidados do tio e padrinho, João Francisco Bosco, que se casou em 1748 com
Maria Masera. Felipe Antônio foi adotado pelos tios como filho. Em 1751, a
família mudou-se para Castelnuovo, nas proximidades de Chieri, para serem
agricultores independentes.
Felipe Antônio Bosco [II] (1735-1802), que virá a ser o avô de Dom
Bosco, casou-se com Domingas Barosso, em Castelnuovo, em 1758; dela
teve 6 filhos. Depois da morte de Domingas em 1777, casou-se pela segunda
vez com Margarida Zucca, também em Castelnuovo. O quarto dos seis filhos
desse segundo matrimônio, Francisco Luís Bosco, será o pai de Dom Bosco.
Os tempos difíceis e a grande família forçaram Felipe Antônio a deixar
a pequena atividade agrícola iniciada em Castelnuovo pelo tio João Francisco
e buscar uma nova vida. Em 1793 trabalhou como meeiro num sítio que
arrendou, situado a 1,85 quilômetro ao sul de Castelnuovo, na região de
Murialdo-Becchi, que pertencia ao senhor Jacinto Biglione.
O avô de Dom Bosco, Felipe Antônio [II], morreu em 1802, mas a fa-
mília, à frente da qual estava então seu filho mais velho Paulo (1764-1838),
continuou cuidando da terra e vivendo numa parte do grande sítio ou em
algum local adjacente. Pouco depois, Paulo e os outros irmãos deixaram o
sítio Biglione para trabalhar como autônomos. Restou Francisco Luís Bosco,
pai de Dom Bosco, que aos 20 anos encarregou-se da exploração do sítio.3
A propriedade pertencia à família Biglione. Era administrada pelo senhor
Jacinto Alberto Biglione, advogado de profissão, que residia em Turim. A terra
3
Sobre os antepassados de Dom Bosco, consulte-se Secondo Caselle, Cascinali e contadini in Mon-
ferrato: I Bosco di Chieri nel sec. XVIII. Roma: LAS, 1975; Michele Molineris, Don Bosco inedito: quello che
le Memorie di San Giovanni Bosco non dicono. Castelnuovo Don Bosco: Istituto Salesiano, 1974, 19-31.

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Dom Bosco: história e carisma 1

cultivável (vinhedos, pastos e campos de cultivo) media 12 hectares. A casa, que


estava na parte mais elevada da colina dos Becchi, era um grande edifício (30 x
7 metros) em três níveis. A parte inferior servia de depósito. O primeiro andar
tinha a cozinha e a sala de estar, com um estábulo contíguo, provavelmente, sob
um mezanino que servia de celeiro. O segundo andar da casa tinha vários quar-
tos. O terceiro andar servia de depósito de grãos. Como arrendatários, os Bosco
viviam certamente numa parte dessa casa, ou talvez em algum local próximo.

Francisco Bosco e sua família


Em 1805, aos 21 anos, Francisco Luís Bosco casou-se em primeiras núpcias
com Margarida Cagliero. Desse casamento nasceram Antônio José (2 de fevereiro
de 1808) e Teresa Maria (16 de fevereiro de 1810), que morreu dois dias depois.4
Margarida Cagliero morreu em 28 de fevereiro de 1811, deixando viúvo
Francisco de 27 anos e um filho de 3 anos, Antônio José. Nesse mesmo ano,
ele conheceu Margarida Occhiena, de Capriglio,5 com quem se casou em 6
de junho de 1812. Desse casamento nasceram José Luís (17 de abril de 1813)
e João Melquior, ambos, como anteriormente Antônio José, no sítio Biglione.

Data de nascimento e batismo de João Melquior Bosco


A quarta-feira, 16 de agosto de 1815, foi o dia feliz em que nasceu o
segundo filho de Francisco Luís e Margarida Occhiena Bosco. O menino foi
batizado no dia seguinte na igreja paroquial de Castelnuovo, sua cidade natal,
recebendo o nome de João Melquior.6
Dom Bosco afirma nas Memórias do Oratório7 ter nascido no dia 15
de agosto, festa da Assunção da Virgem. Foi o que pensaram os primeiros
Salesianos até 1889: padre Bonetti indica 15 de agosto como data do nasci-
mento de Dom Bosco na História do Oratório, publicada no Boletim Salesiano
(1879);8 fazem o mesmo padre Rua no pergaminho colocado no sarcófago
de Dom Bosco (1888)9 e os Ex-Alunos salesianos na placa comemorativa que
lhe dedicaram em 11 de agosto de 1889.10

4
Segundo o recenseamento de 1808, a família Bosco era composta no sítio Biglione pelos se-
guintes membros: Francisco Luís Bosco (de 24 anos), Margarida Cagliero Bosco (de 24 anos), Marga-
rida Zucca Bosco (mãe de Francisco, de 55 anos), Teresa Maria (irmã de Francisco, de 17 anos).
5
Capriglio era um pequeno município situado a cerca de 3 quilômetros ao sul dos Becchi.
6
João era um nome comum entre os antepassados do ramo paterno de Dom Bosco. Melquior
também o era no ramo materno.
7
MO, 24.
8
Bollettino Salesiano, 7 de janeiro de 1879 e 31 de março de 1887.
9
MB XVIII, 836.
10
Bollettino Salesiano, outubro de 1889, 132.

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A terra natal e a família de Dom Bosco

Em 1889, padre Miguel Rua enviou dois salesianos, padres Segundo


Marchisio e João Batista Francesia, para indagarem sobre os primeiros anos
de permanência de Dom Bosco em Castelnuovo. Houve, então, a descoberta
de que, nos registros paroquiais, constava 16 de agosto como a data do nasci-
mento de Dom Bosco. A anotação do batismo, escrita em latim, conservada
nos arquivos da igreja de Santo André de Castelnuovo é clara: João Melquior,
nascido na tarde do dia 16, foi batizado na tarde de 17 de agosto.

17 de agosto de 1815. – João Melquior Bosco, filho de Francisco Luís e de


Margarida Occhiena Bosco, casados segundo a lei, nasceu ontem à tarde e foi
solenemente batizado nesta tarde pelo Reverendo Padre José Festa, Assistente.
Os padrinhos foram Melquior Occhiena, de Capriglio, e Margarida Bosco,
viúva do senhor Segundo Occhiena, desta cidade [Castelnuovo]. – José Segis-
mundo, Pároco, Vigário Forâneo.11

Sítio Biglione.

11
A partir de 1866, no Piemonte, e depois na unificação da Itália, as anotações civis começaram a
ser registradas nos órgãos municipais das cidades. Antes dessa data, nascimentos, falecimentos etc. eram
anotados pelos párocos num registro paroquial especial. Até 1838, fazia-se em latim, sem um padrão
formal e de acordo com algumas normas que, em parte, datavam do concílio de Trento. As datas do
nascimento de João Melquior Bosco e o seu batismo registrados nos livros paroquiais devem ser aceitas
como definitivas. O padrinho de João, Melquior Marcos Occhiena (1752-1844), era o pai de Margari-
da. A madrinha, Maria Madalena Bosco (1773-1861), era a tia viúva de João pelo ramo paterno.

145

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Dom Bosco: história e carisma 1

Morte de Francisco Luís Bosco


Francisco e Margarida Bosco, com o trabalho duro e a ajuda dos empre-
gados diaristas, continuaram a cumprir as obrigações do contrato feito com
os patrões. A mãe de Francisco, Margarida Zucca, embora com deficiência
física, estava apta para cuidar dos meninos. Entretanto, Francisco e Margari-
da pensavam no futuro e em melhorar a situação presente. De fato, Francisco
tinha comprado dois pedaços de terra nas proximidades e aumentado a sua
área de cultivo.
Pouco depois, houve uma tremenda seca, no tempo em que as relações
entre Francisco e o proprietário começaram a se deteriorar, sobretudo por-
que o senhor Biglione encerrara com Francisco o arrendamento de boa parte
das terras, obrigando-o a pensar mais em si mesmo e em sua família. Como
aspirasse a uma eventual independência, adquiriu por 100 liras, em 17 de
fevereiro de 1817, do senhor Francisco Graglia, uma pequena casa, na zona
conhecida como Canton Cavallo (Propriedade Cavallo); ela estava a certa
distância da casa Biglione, colina abaixo para quem olha em direção ao norte,
e a um tiro de pedra da pequena aldeia dos Becchi, mais ao norte ainda, no
início do declive.
A pequena casa era, na realidade, um galpão malconservado, que se
apoiava na parede de trás da casa grande; constava, no momento da compra,
de um ambiente mais baixo e um pequeno estábulo contíguo, com um depó-
sito de feno, também pequeno, sobre ele.
O galpão carecia, logicamente, de reformas e ampliação, pois devia con-
verter-se em moradia da numerosa família de Francisco, o que era, sem dúvida,
desejado por ele. Entretanto houve a tragédia. Francisco Bosco morreu em 11
de maio de 1817, aos 33 anos de idade. Dom Bosco, que ainda não tinha 2
anos, recorda o triste fato numa comovedora página das Memórias do Oratório:

Lembro apenas, e é o primeiro fato de minha vida que guardo na memória,


que todos saíam do quarto do falecido e eu queria ficar lá a todo o custo.
– Vem, João, vem comigo – insistia minha aflita mãe.
– Se papai não vem, eu também não vou – retorqui.
– Pobre filho – continuou mamãe –, vem comigo, já não tens pai.
Ditas essas palavras, prorrompeu em soluços, tomou-me pela mão e levou-me
para fora, ao passo que eu chorava porque a via chorar. Naquela idade não po-
dia evidentemente compreender a grande desgraça que é a perda de um pai.12

12
MO, 25. Parece que o texto não recolha aqui uma lembrança pessoal de Dom Bosco, mas o
que mais tarde chegou a ser informado por sua mãe ou por outro membro da família.

146

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A terra natal e a família de Dom Bosco

O lugar do nascimento de Dom Bosco


Os filhos de Francisco Bosco – Antônio, José e João – não nasceram
naquela que hoje se chama pequena casa de Dom Bosco [casetta di Don Bosco]
porque foi adquirida quando João Melquior já tinha mais de um ano; eles
nasceram no sítio do senhor Biglione, onde vivia a família Bosco.
Se até pouco tempo atrás se pensava que Dom Bosco tivesse nascido na
pequena casa dos Becchi (Canton Cavallo), isso se deve a Dom Bosco que
sempre falava da pequena casa como a “sua” casa, embora nunca, parece, te-
nha usado a expressão “a casa em que eu nasci”. Pode ser que, na experiência
e subconsciente de Dom Bosco, a pequena casa de Margarida ocupasse o lugar
central e a casa Biglione perdesse logo o seu significado.
Depois de 1817, a sorte dos Biglione declinou. A propriedade passou
às mãos do senhor José Chiardi em 1818 e, mais tarde, em 1845, ao senhor
Damevino. Permaneceu como propriedade da família Damevino até que os
salesianos a adquiriram em 1929, ano da beatificação de Dom Bosco.
As pequenas propriedades do entorno da pequena casa foram passando
às mãos dos salesianos. Padre Felipe Rinaldi, então Reitor-Mor, pensara em
adquirir toda a colina para os salesianos. Foi essa a razão pela qual se adquiriu
a casa Biglione e a propriedade, não porque se acreditasse que Dom Bosco
tivesse nascido nela. Já como propriedade dos salesianos, a casa veio a fazer
parte da Escola Salesiana – Istituto Bernardi – Semeria –, edificada na ladeira
sul da colina, tendo sofrido desde então sucessivas modificações e ampliações.
A casa foi demolida em 1958, para dar lugar à nova igreja de São João
Bosco no alto da colina. Não se sabia ainda que essa era a casa em que Dom
Bosco tinha nascido! Uma ampla e cuidadosa pesquisa nos arquivos locais,
levada a termo pelo prefeito de Chieri, senhor Segundo Caselle, nos anos
1960-1970, deu a conhecer a realidade dos fatos. Pôde-se, assim, seguir a pis-
ta dos antepassados de Dom Bosco e dos lugares onde viveram e trabalharam.
Pôde-se afirmar, também, que Dom Bosco nascera na casa Biglione, onde seu
pai era administrador e meeiro, e que sua família mudara para a pequena casa
apenas depois da morte do pai em 1817.13

A pequena casa dos Becchi


Após a morte do esposo, Margarida Bosco precisou batalhar para con-
cluir a colheita e, em seguida, preparar a mudança do sítio Biglione. Come-
çou logo a preparar o galpão que seu esposo comprara e transformou-o numa
13
Cf. S. Caselle, Cascinali, 30-41.

147

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Dom Bosco: história e carisma 1

pequena casa adequada para ser habitada. O andar térreo tornou-se uma sala
multiúso e cozinha. O estábulo contíguo, capaz de alojar apenas uma vaca e
sua cria, não sofreu alteração. O depósito de feno sobre o estábulo foi trans-
formado em dois pequenos quartos, aos quais se subia por uma escada exter-
na ou, por dentro, por uma abertura no teto. Ao lado do estábulo ficava um
espaço que podia ser usado como depósito de feno ou celeiro.
A família Bosco instalou-se na pequena casa em novembro de 1817.
Formavam a família Margarida Occhiena Bosco, 29 anos, seu enteado An-
tônio José, 9 anos, seus filhos José Luís, 4 anos, e João Melquior, 2 anos, e a
sogra semi-inválida, Margarida Zucca Bosco, de 65 anos.
Em 1826, morreu a avó, mas mesmo sem a sua presença, a casa era
incômoda, já que os meninos estavam crescendo. Em fevereiro de 1828,
Margarida comprou uma parte adicional contígua ao edifício unindo-a à
pequena casa. Consistia num pórtico adjacente à cozinha com um quarto
sobre ele. Com essa remodelação, a casa chegou quase plenamente à sua
forma definitiva.
Assim, a pequena casa dos Becchi, como será conhecida mais tarde, pas-
sou a ser a casa onde João encontraria carinho e alimentação em sua infância
e adolescência. Aqui, sob a firme, mas amável orientação de Margarida, João
recebeu a primeira educação e também a iniciação espiritual e cristã. A ora-
ção, o trabalho proporcional às forças e capacidades de cada um, o estilo duro
de vida, que excluía mimos e complacências, e a atitude aberta aos demais
converteram João numa pessoa confiante em si mesma, cheia de iniciativas e
criativa desde seus primeiros anos.

A situação de Francisco Luís Bosco14


Francisco Bosco viveu no sítio Biglione de 1793 a 1817, e trabalhou
a terra como arrendatário. Como a maioria de seus antepassados, não era
proprietário autônomo, mas simples trabalhador contratado como mão de
obra agrícola, que ganhava um escasso salário para ele e sua família. Não era,
pois, um pobre reconhecido publicamente como tal e, por isso, não recebia o
subsídio com que a municipalidade ajudava os que possuíssem o “atestado de
pobreza” fornecido pelos seus párocos.
O arrendamento era um modo comum e aceito de ganhar a vida. Era
também o caminho para chegar a ser proprietário. De fato, como se disse

14
Cf. P. Stella, Economia, 15ss. Ver documentos públicos em S. Caselle, Cascinali, 96ss.

148

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A terra natal e a família de Dom Bosco

anteriormente, Francisco Bosco tinha a intenção de ser independente e já


adquirira algumas terras próprias.
O inventário dos bens, feito depois de sua morte por um notário local,
mostra que era dono de nove pequenos pedaços de terra nas proximidades dos
Becchi, nos quais cultivava uva, trigo, milho e feno; o total era de uns 1.117
metros quadrados, avaliados em 686 liras. Possuía também alguns animais
avaliados em 445 liras. Calculando o preço de diversas ferramentas agrícolas,
utensílios domésticos, móveis etc., o valor total, oficialmente calculado, era
de aproximadamente 1.331 liras. Tudo parece indicar que Francisco estivesse
cuidando da própria independência.15
À sua morte, Francisco deixou dívidas que chegavam a 446 liras, en-
quanto a pequena casa, avaliada em 100 liras, ainda não fora paga.16

A pequena casa dos Becchi.

15
Francisco era proprietário de uma junta de bois (avaliados em 200 liras); 2 bezerros (avaliados
em 120 liras); 1 vaca (avaliada em 30 liras); 1 vaca com cria (avaliada em 60 liras) e 1 égua (avaliada
em 35 liras).
16
As grandes dívidas de Francisco podem ser devidas, não à insolvência, mas ao costume de
saldar dívidas por temporadas com mercadorias e serviços, mais do que com dinheiro. Foi assim, pro-
vavelmente, que pagou o dote de Margarida. Era costume entre os camponeses no Piemonte estipular
um dote para o casamento da noiva. Os Occhiena tinham aceitado que a noiva entregasse 150 liras
a Francisco Bosco. Contudo, eles pagaram apenas 22 liras em dinheiro enquanto o restante foi pago
com o trabalho de um dos irmãos de Margarida durante duas temporadas de 1815-1816; os Occhiena
seriam demasiadamente pobres para pagar em dinheiro vivo.

149

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Dom Bosco: história e carisma 1

A situação de Margarida Bosco após a morte do esposo


Após a morte de Francisco Bosco, a situação econômica da família en-
cabeçada por Margarida deteriorou-se consideravelmente, sem contar os dois
anos de estiagem e carestia. De fato, havia no estábulo da pequena casa apenas
uma vaca e um bezerro. As dívidas de Margarida chegavam ao valor de todos
os animais de Francisco. Além disso, Margarida sofreu outras cobranças.17
As primeiras páginas das Memórias são uma listagem de pobreza e difi-
culdades. Dom Bosco emprega bastante espaço para falar da grande estiagem
e carestia que assolou a região nos anos 1816-1818.18 Essas calamidades eram
um fato na vida real do país, mas esta parece que foi especialmente dura.
Encontraram-se pessoas mortas pelas estradas com a boca cheia de capim.
Dom Bosco escreve:

Mamãe contou-me várias vezes que alimentou a família enquanto pôde. De-
pois deu dinheiro a um vizinho chamado Bernardo Cavallo, para que fosse
à procura de comestíveis. O amigo percorreu diversos mercados e nada en-
controu, mesmo a preços exorbitantes. Voltou dois dias depois, pelo anoite-
cer, ansiosamente aguardado por todos. Quando comunicou que só trazia
o dinheiro de volta, o medo se apoderou de todos porque como se haviam
alimentado muito mal nesse dia, eram de temer as funestas consequências da
fome naquela noite.

Ele acrescenta que, depois de pôr a família toda de joelhos e ter rezado,
sua mãe disse: “Em casos extremos deve-se empregar meios extremos”. Em
seguida, com a ajuda do mencionado senhor Cavallo, foi ao estábulo, matou
um bezerro, coisa arriscada, pois este era o seguro da família.19
Dom Bosco conta, também, que nessa ocasião sua mãe recebeu uma
proposta muito vantajosa de um senhor que ele não nomeia; a oferta, porém,
não incluía os filhos. “Insistiram que os filhos seriam confiados a um bom
tutor, que havia de cuidar muito bem deles”, mas ela replicou logo em segui-
da: “Um tutor é um amigo, ao passo que eu sou a mãe dos meus filhos. Não
os abandonarei jamais, ainda que me oferecessem todo o ouro do mundo”.20

17
Certa senhora Lúcia Pennaro, reclamava o pagamento de uma pensão estabelecida a seu favor
pelos Biglione, como retenção preventiva pelos ganhos do sítio, e o senhor Biglione iniciou ações legais.
O caso, que finalmente foi impugnado, trouxe mais gastos às exíguas reservas de Margarida.
18
MO, 25-26.
19
MO, 26.
20
MO, 27.

150

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A terra natal e a família de Dom Bosco

Não resta dúvida de que a proposta era de casamento, fato normal para
uma jovem viúva, embora Dom Bosco não o diga expressamente. As teste-
munhas que se apresentaram no processo diocesano de beatificação de Dom
Bosco corroboram que sua mãe, viúva aos cinco anos de casamento, recusou
uma proposta de voltar a casar-se, para ficar livre e poder dedicar-se exclusi-
vamente à educação dos filhos, José e João, e do enteado Antônio.

Ela mesma me disse que, sendo viúva aos 29 anos, recusou várias propostas
vantajosas de casamento para dedicar-se inteiramente à educação de seus fi-
lhos. Isso exigiu dela um trabalho duro e ininterrupto, renúncias diárias e
sacrifícios sem conta.21

Foi uma decisão corajosa de Margarida. As viúvas, como os órfãos, no


século XIX ainda eram, como na antiguidade, a parcela mais frágil da socie-
dade. Muitas viúvas teriam aceitado a oferta. Sua decisão foi heroica e foram
afortunados os filhos de Francisco Bosco. Na mesma situação, três gerações
antes, Felipe Antônio Bosco, o avô já mencionado, não fora tão feliz; sua mãe
viúva casou-se novamente, deixando-o aos cuidados do tio.
Margarida sabia o que a esperava: em sua situação de real pobreza, deve-
ria ser ela a ganhar o pão de cada dia. Ela só conseguiria ter uma saída honrosa
para que as contas quadrassem e pudesse dar de comer a uma família de cinco
pessoas por meio do trabalho mais duro e a custo de imensos sacrifícios pes-
soais. Antes de seis anos, não podia esperar que Antônio desse qualquer ajuda
relevante. José precisaria de mais dez anos e João, ainda uma dúzia de anos.
Além da menção de Dom Bosco sobre a dificuldade pela qual a sua família
passou durante os dois anos de estiagem e carestia, não temos outra documenta-
ção para aquilatar o que a família atravessou exatamente. Os pequenos pedaços
de terra que possuíam eram escassamente suficientes para dar-lhes de comer.
Mesmo nos anos de boa colheita, o rendimento da terra nunca era elevado. O
solo estava esgotado pelos muitos anos de aridez; os métodos de cultivo eram
antiquados. Os preços de mercado dos cereais e do vinho mantinham-se baixos
devido à política protecionista da agricultura, desenhada para alijar do mercado
a produção de outros países mediterrâneos e da Rússia. Dessa forma, mesmo
havendo um aumento na produção de trigo, milho e centeio para venda, estes
só eram aceitos em quantidades insignificantes.
Realmente, não havia salvação. Além de tudo, a maior parte do dinheiro
disponível deveria ser empregada na compra de roupas e, ocasionalmente,

21
Processus Ordinarius Curiae Taurinensis (POCT), bispo João Cagliero, Sessão 143, 1893, e
padre Félix Reviglio, Sessão 79, 1892.

151

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Dom Bosco: história e carisma 1

num par de sapatos, e em ferramentas para a agricultura. Era preciso guardar


um pouco de dinheiro para alguns artigos necessários, tais como azeite, sal e
açúcar, monopólios do Estado, e para o queijo ou as conservas, que eram o
complemento diário usual do pão de cada dia.
Por outro lado, toda a comida, um prato básico pobre, era tirada da
terra: pão de cevada e milho no inverno e pão de trigo no verão, sopa, ver-
duras da horta e frutas do tempo plantadas entre as lavouras e os vinhedos.
A vaca do estábulo proporcionava leite; as galinhas, alguns ovos. As aves do
galinheiro acrescentavam ocasionalmente um suplemento à dieta. Carne de
vaca ou bezerro era acessível poucas vezes no ano. Os vinhedos produziam
uva suficiente para que o vinho durasse toda a temporada a ser bebido pelos
adultos, normalmente misturado com água, e se conservasse um pouco para
vender ou envelhecer para ocasiões especiais.
A família precisou batalhar durante a década de 1820. Antônio e José
iam se tornando aos poucos capazes de dar uma mão no trabalho, à medida
que cresciam, dando assim algum descanso a Margarida. Eles, de fato, ajuda-
vam-na a cultivar os pequenos pedaços de terra e proporcionavam à família
ajudas extras com trabalhos temporários. A repartição dos bens do pai (a pe-
quena casa, terras e equipamentos), estabelecida em 1830, entre Antônio de
um lado e José - João juntos, de outro, acentuou a dureza da vida; sobretudo
quando Antônio e José se casaram e formaram família.22

Conclusão
Os Bosco, até a chegada de Francisco Luís Bosco, pai de Dom Bosco, não
foram proprietários, mas meeiros que trabalhavam terras alheias e recebiam
a metade da produção. Embora pobres, não passavam grandes necessidades.

22
Antônio casou-se em 1831. Construiu uma casa com um só quarto para sua família, na
parte norte do curral, acrescentada aos quartos em uso na pequena casa. Pôde ampliar um pequeno
suplemento aos seus pobres ganhos, trabalhando como empregado contratado, mas parece que vivia
em pobreza extrema. José trabalhou como meeiro num sítio próximo, em 1830-1831. Margarida e
João foram viver com ele. Casou-se em 1833 e retornou aos Becchi em 1839. Parece que teve mais
sucesso; começou a construir uma casa aceitável, que foi aumentando aos poucos com a ajuda de Dom
Bosco. Apesar disso, quando em 1840 a propriedade conjunta de José e João foi inventariada em vista
do subsídio eclesiástico necessário para sua ordenação, esta não cobria a quantia exigida. O valor total
do capital chegava a 2.510 liras, com uma renda anual de 125 liras. Para cobrir a soma requerida para
o dote eclesiástico de João, que chegava a 250 liras, o sócio anterior de José, João Febbraro, deu como
garantia 1 prado e 4 pequenas vinhas no valor de 3.156 liras e uma renda anual de 67 liras.

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A terra natal e a família de Dom Bosco

Contudo, não tinham casa própria, seus filhos nasceram em casas alheias, emi-
graram de um lado a outro, conforme encontravam sítios para arrendar. Ape-
sar disso, tiveram a oportunidade de se tornarem independentes.
Após a morte de Francisco Bosco, a família presidida por Margarida
ficou numa situação de imensa pobreza, mas nunca recebeu subsídio do mu-
nicípio. Os pequenos pedaços de terra que possuíam e trabalhavam, uma
vaca e um bezerro etc. serviram-lhes para sobreviver. A melhor medida da
pobreza de Margarida está no fato de que não pôde contribuir em nada para
a educação de João. Ele precisou pedir e obter ajuda de benfeitores, competir
por prêmios e servir-se de suas habilidades para sobreviver como estudante.
Dom Bosco, em 1883, corrigiu as provas tipográficas da sua biografia es-
crita por Alberto Du Boÿs; quando o autor falou sobre os familiares de Dom
Bosco, dizendo que “eram camponeses de posição bastante boa”, o Santo
corrigiu, anotando: “eram camponeses pobres”.23 A experiência pessoal de
pobreza estava destinada a ser um elemento do seu compromisso vocacional
pelos pobres, assim como da sua espiritualidade.

23
MB XV, 72.

153

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Apêndice

DISCUSSÃO SOBRE O LUGAR DE NASCIMENTO DE


DOM BOSCO

Surgiu recentemente uma discussão sobre o lugar exato do nascimento


de Dom Bosco no sítio Biglione.
Francis Desramaut sustentou que Francisco Bosco viveu e trabalhou até
a sua morte, não na casa principal de Biglione, mas num “anexo” situado
pouco mais adiante, para o sul, numa localidade chamada Monastero, na
ladeira de Meinito (Mainito). Aí seria o lugar em que Dom Bosco nascera.
A casa provavelmente foi demolida durante o século XIX. Os argumentos
aduzidos em apoio a essa teoria foram logo recusados. Em geral, os demais
estudiosos salesianos, especialmente padre Natale Cerrato, creem sem dúvida
que a casa Biglione foi o lugar do nascimento de Dom Bosco.24
Francis Desramaut apresenta duas “provas” principais:
1. Uma lápide que os Alunos Salesianos colocaram à porta da casa de
José, nos Becchi, em 11 de agosto de 1889. A inscrição da lápide menciona
como “demolida” a casa onde Dom Bosco tinha nascido. Contudo, em 1889,
nem a casa Biglione nem a pequena casa tinham sido demolidas.
Cerrato contradiz o primeiro argumento de Desramaut mostrando
que a inscrição inteira – Desramaut cita apenas uma parte dela – refere-se,
na realidade, à pequena casa que está nas proximidades, que se pensava fosse
a casa natal de Dom Bosco. Esta casa, embora não tivesse sido demolida,
podia ser dada como tal, pois ficara quase em total ruína; seria restaurada
pelo padre Rua em 1891. A inscrição inteira diz:

24
Cf. Francis Desramaut, “Études I”, Cahiers Salésiens, 32-33 (abril de 1994), 23 e 52-53, nota
23. Id., Don Bosco, 12, 16 e 34, nota 23; 35, nota 43. Criticado por Natale Cerrato, Critica di una
nuova ipotesi [...] (tipografado). Id., “Dov’è nato Don Bosco?”, Il Tempio di Don Bosco, 49.1 (1995),
8-9; 49.2 (1995), 6-7; 49.3 (1995), 4-5. Cerrato reuniu todos os elementos de discussão num opúscu-
lo, id., Dove è nato Don Bosco. Monte Oliveto: Salesiani, 1996.

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A terra natal e a família de Dom Bosco

Nascido numa casa próxima, agora destruída / em 15 de agosto de 1815, / o


padre João Bosco / passou aqui seus primeiros anos, / em admirável pobreza.
/ Aqui, entre seus amigos, aos 15 anos de idade / iniciou a sua obra educativa
/ pela qual seu nome / iria alcançar renome por toda a Europa e por todo o
mundo. / Ele faleceu em Turim no dia 31 de janeiro de 1888 / Esta placa foi
colocada em sua memória pelos seus alunos / 11 de agosto de 1889.25

A segunda parte da inscrição refere-se seguramente à pequena casa, o que


se confirma pelas palavras que o professor A. Fabre em nome dos alunos dissera
ao padre Rua (24 de junho). Ele falava da intenção dos alunos dedicarem uma
lápide a Dom Bosco na “casa onde tinha nascido e vivido muitos anos”. Quan-
do a lápide colocada na casa de José foi inaugurada em 11 de agosto, padre Félix
Reviglio falou em nome dos alunos, indicou a “pequena casa” no meio do pá-
tio, e disse: “Esta mesma casa, tão pobre e sem brilho, que agora está quase em
ruína, (é a casa) em que [Dom Bosco] nasceu e viveu”.26 (A crença generalizada
na época era que Dom Bosco nascera na pequena casa dos Becchi.)
2. Como segunda “prova” de que Dom Bosco nascera na zona de Monaste-
ro, aldeia de Meinito, e não na casa principal de Biglione, Desramaut menciona
dois documentos oficiais: o testamento de Francisco Bosco e o inventário dos
bens depois da sua morte. Ambos estabelecem que Francisco Bosco e, depois da
sua morte, seus filhos pequenos viveram “na casa do senhor Biglione, situada
na zona de Monastero, aldeia de Meinito”.27 Um inventário oficial do sítio de
Biglione na região, com data de 1773, demonstra que este senhor possuía terras
em diversas localidades, mas somente uma casa, localizada em Sbaconatto.28
Cerrato demonstra que, nos documentos, os nomes das localidades (como
Castellero, Sbaconatto, Sbarüau, Monastero, Meinito, Valgongone etc.) são fre-
quentemente permutados, porque muito próximos uns dos outros. Por exem-
plo, no testamento e inventário de Francisco Bosco diz-se que a casa Biglione
está situada em Monastero, mas no inventário do senhor Biglione situa-se em
Sbaconatto. Nesses momentos, a localização que se indica é Castellero. No in-
ventário de Francisco Bosco diz-se que a pequena casa está situada na “região
de Cavallo, em Monastero”. Atualmente, estes nomes abrangem menos e estão
muito mais localizados do que antigamente, naquilo que eles designavam áreas
mais amplas. Meinito, por exemplo, restringe-se agora ao sítio do seu nome, mas
antes era uma aldeia, hoje inexistente; em tempos medievais era um território
feudal bastante amplo. Cerrato apresenta um formidável conjunto de provas do
uso dos nomes locais que se sobrepõem, se entrecruzam e se permutam.

25
Bollettino Salesiano, outubro de 1889, 132.
26
Bollettino Salesiano, novembro de 1889, 146-148.
27
Cf. S. Caselle, Cascinali, 94-96.
28
Cf. S. Caselle, Cascinali, 62.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A conclusão deve ser, sem dúvida, que Dom Bosco nasceu em 16 de


agosto de 1815, na única casa que trazia o nome de Biglione. Estava situada
no que agora restritivamente se conhece como região de Castellero ao sul da
colina da aldeia dos Becchi, e ao norte, mais além do que a aldeia de Meinito
costumava abranger.
A FAMÍLIA DE FRANCISCO LUÍS BOSCO DURANTE O PERÍODO
NAPOLEÔNICO E DA 1a RESTAURAÇÃO

4 de fevereiro. Francisco Luís Bosco casa-se com sua primeira esposa,


1805
Margarida Cagliero.
3 de fevereiro. Nascimento de Antônio José Bosco (1808-1849), meio-irmão
1808
de Dom Bosco, no sítio Biglione.
16 de fevereiro. Nascimento de Teresa Maria Bosco, falecida em 18 de
1810
fevereiro, no sítio Biglione.
28 de fevereiro. Falecimento de Margarida Cagliero, primeira esposa de
1811
Francisco Luís Bosco, no sítio Biglione.
6 de junho. Francisco Luís Bosco casa-se com sua segunda esposa, Margarida
1812 Occhiena, em Capriglio, depois de apresentar-se para o consentimento ao
magistrado francês de Castelnuovo.
18 de abril. Nascimento de José Luís Bosco (1813-1862), irmão mais
1813
velho de Dom Bosco, no sítio Biglione.
1815 16 de agosto. Nascimento de João Melquior Bosco, no sítio Biglione.
17 de agosto. João Melquior Bosco é batizado pelo padre José Festa na
igreja paroquial de Castelnuovo; o pároco é padre José Sigismundo.
1817 17 de fevereiro. Francisco Luís Bosco compra “a pequena casa” no cantón
Cavallo, Becchi.
8 de maio. Francisco Bosco, gravemente enfermo, transmite seu último
desejo e testamento em favor dos 3 filhos.
11 de maio. Morte de Francisco Luís Bosco; vivem em família: sua mãe
Margarida Zucca, sua viúva, Margarida Occhiena, e seus 3 filhos: José
Antônio, 9 anos, José Luís, 4 anos, e João Melquior, de 2 anos.
17 de maio. Inventário das propriedades de Francisco Bosco pelo notário
público Carlos José Montalenti.
11 de novembro. Margarida Occhiena e João Zucca (tutor legal dos 3
meninos Bosco) rescindem o contrato de arrendamento com Biglione;
transferência da família para a “pequena casa”.
1816 - Dois anos de seca e colheitas ruins, com a fome, o escorbuto e o tifo. Em
1818 1818 (outubro-novembro), o senhor Biglione leva aos tribunais Margari-
da e João Zucca (como tutores dos meninos) por falta do cumprimento
de honra (direito de posse de propriedade alheia até que a dívida seja paga)
ligado ao sítio; depois, desistiu da ação.

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Capítulo VI

UMA INFÂNCIA ESPERANÇOSA EM


TEMPOS DE COMOÇÃO POLÍTICA
(1815-1824)

Após a declaração final do Congresso de Viena, a Casa de Saboia man-


teve sua independência no reino subalpino. A Áustria, contudo, dominou a
Itália, seja diretamente, no reino Lombardo-Vêneto, seja através de parentes
próximos, nos ducados centrais, seja por acordos diplomáticos, como em
Nápoles, com Fernando I, rei vassalo. Apesar do triunfo de Metternich e
a restauração das dinastias dos Absburgo e Bourbon, anteriormente derru-
badas pelo sistema napoleônico, o espírito revolucionário e as reformas de
Napoleão estenderam-se pela Itália inteira. Grupos patrióticos revolucio-
nários promoveram o chamado movimento do Risorgimento, que levaria
à Revolução Liberal de 1848 e, finalmente, à unificação da Itália em 1861,
com a conquista de Roma como capital do novo reino, em 1870.

1. As revoluções abortadas em Nápoles e no Piemonte


(1820-1821)
Entre as sociedades secretas patrióticas que promoviam a revolução na-
quele momento, estão em primeiro lugar os Carbonari (carbonários, equiva-
lente a vendedores de carvão), dos quais ainda se discute a origem e natureza.
A partir de Nápoles, os carbonários e outras sociedades revolucionárias alia-
das estenderam-se ao norte da Itália, inclusive à Lombardia e ao Piemonte.
Seus objetivos principais eram a independência da Itália e as liberdades cons-
titucionais para os diversos Estados, defendendo uma nova ordem política
e social baseada nos princípios da revolução. Animava-os e inspirava-os o
sucesso da revolução na Espanha, que em 1812 tinha proclamado em Cádiz
uma constituição liberal.1 Portugal e Sicília seguiram-na em 1813, embora
a constituição siciliana tenha fracassado com a deflagração da Restauração.

A constituição básica foi escrita quando o rei Fernando VII da Espanha era prisioneiro de Na-
1

poleão na França. Declarava a soberania do povo, afirmava os princípios da igualdade e liberdade legais,
desenhava um sistema político segundo o modelo francês de 1791, colocava o executivo na Coroa e em
seus ministros, embora subordinados à única câmara parlamentar eleita por sufrágio universal.

157

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em 2 de julho de 1820, oficiais no comando de um contingente ar-


mado, ao qual rapidamente se uniram os carbonários e outras sociedades
secretas, insurgiram-se em Nápoles e proclamaram a Constituição espanhola.
Fernando I, rei da Sicília, acedeu aos postulados dos revoltosos. O pipocar re-
volucionário alarmou Metternich, que convocou a conferência dos Cinco Po-
deres em Troppau.2 A Grã-Bretanha não aderiu. A Áustria, a Rússia e a Prús-
sia condenaram qualquer alteração política que se desviasse dos princípios
da Restauração e aprovaram a intervenção armada para sufocar as revoluções
que surgissem. Metternich mandou 50 mil soldados a Nápoles e conseguiu
restabelecer o rei Fernando I e a constituição abolida, ali permanecendo o
exército austríaco até 1827.
O Piemonte, embora fora da esfera de influência de Metternich, estava
ligado à Áustria pelo casamento do rei Vítor Manuel I de Saboia com a prin-
cesa austríaca Maria Teresa e, por isso, comprometeu-se firmemente a restau-
rar o Ancien Régime.3 Foram restaurados os privilégios e direitos da Igreja e
das Ordens religiosas; os jesuítas retornaram, encarregando-se da educação.
Foi abolido o eficiente sistema administrativo napoleônico. Retornou-se ao
velho sistema de corrupção, privilégios e vigilância policial.
Situação semelhante fez com que a revolução de Nápoles encontrasse
eco no Piemonte, onde eram fortes os carbonários e outros revolucionários,
que provinham principalmente da nobreza, da classe intelectual e dos co-
mandos militares mais jovens. O movimento revolucionário no Piemonte
voltava-se contra a dominação austríaca e era liberal, nem republicano nem
hostil à monarquia dos Saboia. Pedia apenas uma constituição como a conce-
dida na Espanha e a guerra contra o domínio da Áustria na Itália.
O príncipe Carlos Alberto, da linhagem lateral dos Saboia-Carignano,
era o herdeiro presumido da coroa; tanto Vítor Manuel I como seu irmão
Carlos Félix, da antiga linhagem dos Saboia, não tinham filhos. Os revolucio-
nários proclamaram a Constituição espanhola, ergueram a bandeira tricolor,
declararam Vítor Manuel I “rei da Itália” e exigiram a guerra contra a Áustria.
Vítor Manuel abdicou não querendo, de um lado, combater a revolução com

Os Cinco Poderes eram Áustria, Rússia, Prússia (a Santa Aliança), França e Inglaterra.
2

Vítor Manuel I (1759-1824) da antiga linhagem Saboia sucedeu, em 1802, ao irmão Carlos
3

Manuel, que se retirou para a Sardenha durante o período napoleônico; ele foi restabelecido em 1814
pelo Congresso de Viena, mas abdicou em 1821, durante a revolta dos carbonários. Sucedeu-lhe o
irmão Carlos Félix (1765-1831), último rei da antiga linhagem. Durante a revolução, Carlos Alberto
I (1798-1849), da linhagem lateral dos Saboia-Carignano, foi eleito regente. Os revolucionários espe-
ravam sua ajuda.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

a força e, de outro, temendo a ira de Metternich. Sucedeu-lhe Carlos Fé-


lix que, estando muito ocupado em Módena, nomeou Carlos Alberto como
regente,4 enquanto os revolucionários planejavam atacar a Áustria. Carlos
Alberto estava pessoalmente convencido da inutilidade do desafio à Áustria,
mas aceitou metade das exigências revolucionárias e aprovou a Constituição
espanhola em 13 de março, jurando-lhe fidelidade dois dias depois. Carlos
Félix chamou Carlos Alberto para pedir-lhe contas, mas o regente preferiu o
exílio antes de defrontar-se com o rei, seu irmão.
Com a ajuda da Áustria, a revolução foi domada com facilidade e, depois
de um confronto entre os revolucionários e as forças reais, em 8 de abril de
1821, em Novara, o movimento cedeu. A Universidade foi fechada e as forças
revolucionárias, dissolvidas. Os carbonários e as sociedades secretas aliadas
perderam assim relevância e poder. Dez anos depois retornaram apoiados
pela Revolução Francesa de 1830 e o movimento republicano democrático de
José Mazzini, La Giovane Italia (A Jovem Itália). Desta vez, o Risorgimento
recomeçou com força irreprimível.
João Bosco tinha 6 anos nessa época. Não pôde inteirar-se desses acon-
tecimentos e do seu significado. Margarida Occhiena Bosco estava provavel-
mente muito ocupada no campo a cuidar dos filhos. Entretanto, a notícia da
revolução, da abdicação e do enfrentamento armado na região e as execuções
certamente teriam chegado à pequena casa dos Becchi.

2. Margarida Bosco e sua família na casa dos Becchi


O primeiro volume das Memórias Biográficas traz informação abundante
sobre a mãe de Dom Bosco – capítulos 2 a 25 – dando-lhe mais espaço do
que ao próprio João. Onde Lemoyne obteve essa informação?
Lemoyne não conhecera Mamãe Margarida pessoalmente. Ela viveu no
Oratório de 1846 até sua morte em 1856; Lemoyne uniu-se a Dom Bosco
oito anos depois, em 1864. Apesar disso, apaixonado como era em recolher e
conservar tudo que se relacionasse com Dom Bosco e sua obra, não descuidou
de reunir informações sobre sua mãe.
Lemoyne tinha acesso às ainda não publicadas Memórias do Orató-
rio. Nelas, Dom Bosco inclui numerosas passagens relacionadas com a mãe
4
Educado em Paris, servira no exército de Napoleão e identificava-se com a opinião liberal. Em 6 de
março de 1821, expuseram-lhe um plano para que o rei garantisse a Constituição. Contudo, depois de re-
fletir, comunicou aos conspiradores que não contassem com ele. Os líderes decidiram adiar a conspiração,
programada para 8 de março, mas os conspiradores que estavam fora de Turim não foram informados e,
em 8 de março, estourou a revolução no quartel de Alessândria, que se estendeu ao forte militar de Turim.

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Dom Bosco: história e carisma 1

durante o período da infância e nos anos sucessivos. Lemoyne também


contava com o testemunho de muitos Salesianos da primeira hora e de ou-
tras pessoas que conheceram Margarida. Alguns deles, sendo meninos no
Oratório, experimentaram seus cuidados maternos. Muitos deles também
testemunharam no processo diocesano para a beatificação de Dom Bosco nos
primeiros anos de 1890. Lemoyne teve acesso a esses testemunhos, apesar de
estarem “lacrados”, pois as autoridades diocesanas se serviram de seminaristas
salesianos para transcreverem os relatos oficiais do processo.
Essas fontes representam, sem dúvida, apenas uma pequena parte
do material reunido por Lemoyne sobre Margarida. Pode-se supor que
Lemoyne tenha contado com uma fonte maior, da qual não se conserva
notícia ou que ele mesmo tenha recolhido a informação. Parece que co-
meçou a recolher esse material sistematicamente depois de voltar para Tu-
rim como secretário no final de 1883; Dom Bosco deve ter sido sua fonte
principal através das longas e regulares conversas de família que manteve
com o Fundador.
Em 1885, quando Lemoyne começou a reunir e imprimir os Documenti
para uso pessoal, esse material foi incluído, embora de forma não definitiva.
Parece que Lemoyne, certamente com o conhecimento e incentivo de
Dom Bosco, planejava escrever uma pequena biografia de Margarida para
publicá-la nas Leituras Católicas. Quando Dom Bosco, de passagem pela
França a caminho da Espanha em 1886, foi hóspede do conde Luís Colle, em
Toulon, falou sobre a biografia; o conde ofereceu-se para financiar os custos
da publicação. Carlos Viglietti, secretário que acompanhava Dom Bosco na
viagem, escreveu a Lemoyne transmitindo-lhe o “mandato” de Dom Bosco.
Lemoyne corrigiu o material recolhido nos Documenti e escreveu uma bio-
grafia popular conhecida como Cenas morais de família,5 que apresentaria em
homenagem a Dom Bosco no dia do seu onomástico.6
Posteriormente, quando outros episódios chegaram ao conhecimento
de Lemoyne, foram incluídos nos acréscimos aos Documenti. Enfim, todo o
material foi reunido nas Memórias Biográficas.

Scene morali di famiglia esposte nella vita di Margherita Bosco: racconto edificante ed ameno
5

[Cenas morais de família expostas na vida de Margarida Bosco: uma história edificante e amena]. Turim:
Scuola Tipografica Salesiana, 1886.
6
MB XVIII, 57.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

A pequena casa dos Becchi.

Margarida, mãe e educadora


A família, estabelecida na pequena casa em 1817, era formada por Margarida
Bosco (29 anos), a sogra inválida Margarida Zucca (65 anos), o enteado Antônio
José (9 anos) e os dois filhos José Luís e João Melquior (4 e 2 anos, respectivamen-
te). Viviam em verdadeira pobreza, que se fez mais cruel com a estiagem e a ca-
restia de 1816-1818. Foi quando Margarida, heroicamente, recusou as propostas
de casamento, oportunidade de refazer a sua vida, para garantir a sobrevivência
da família e atender à educação dos filhos.
Os três irmãos não podiam ser mais diferentes um do outro. João era
vivo, espontâneo, imaginativo, empreendedor, com enorme desejo de des-
cobrir e aprender. Nascera para ser líder. José era mais propenso a se deixar
guiar; embora caprichoso e cabeçudo às vezes, em geral era educado, de boas
maneiras, de disposição paciente e retraído. Por contraste, Antônio parece ter
sido sempre um problema, desde o início; órfão aos 9 anos, sentia-se estranho
nessa casa, embora como filho mais velho dos Bosco, conforme o costume do
Piemonte, seria o chefe da família quando chegasse à maioridade. À medida
que crescia, foi se tornando um jovem “inconveniente”. Ele é descrito como
desobediente e desrespeitoso com a madrasta, apesar da sua incansável ama-
bilidade e dos seus cuidados. Com o tempo, as brigas em família foram tão
intensas que obrigaram Margarida a mandar João trabalhar fora de casa, como

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Dom Bosco: história e carisma 1

empregado num sítio dos arredores, até que o assunto pudesse ser resolvido
legalmente com a divisão dos bens entre os filhos. Foi mérito de Margarida se
a família se conservou unida, sem precisar desfazer-se de Antônio.7
Margarida é lembrada como uma mulher santa. Sua biografia conserva
alguns exemplos de espiritualidade e devoção. Era mulher de caráter, profun-
damente cristã, totalmente dedicada aos filhos e ao serviço de Deus e do pró-
ximo. O biógrafo dá atenção especial à sua ação de educadora cristã. Fazem-no
o mesmo as testemunhas do processo diocesano para a beatificação de Dom
Bosco. Era mãe consagrada totalmente à educação dos filhos, aos quais ensina
o catecismo, leva à igreja, prepara para os sacramentos etc. Ela dedicou seus
maiores esforços, sobretudo, no desenvolvimento pessoal deles. Margarida
queria dotar seus filhos de caráter moral e força espiritual interior para a vida e
para o compromisso com a vida. Educou-os no sentido da presença de Deus,
na confiança na Providência divina, na honestidade e integridade, no amor ao
trabalho e na fidelidade aos deveres, na sensibilidade diante das necessidades
dos outros, expressa em atitudes de serviço concreto, no otimismo cristão e na
viva esperança do prêmio final de Deus. Eram estes os valores básicos com os
quais ela vivia e que transmitiu aos filhos, de modo especial a João.
Vários elementos concorreram para o crescimento moral, religioso e es-
piritual de João. Não se pode ignorar o caráter da gente do Piemonte. O
piemontês, em especial o agricultor, era industrioso, grande trabalhador e
empreendedor perseverante; não era, de modo algum, uma pessoa insensí-
vel e insociável. Assim, como os antepassados da família Bosco, João tinha
paixão pelo trabalho, paixão que, sem dúvida, não afetava em absoluto seu
temperamento nem seu sorriso espontâneo.
O catolicismo configurara a história do Piemonte desde a remota an-
tiguidade. A tradição religiosa católica estava profundamente arraigada no
povo, alimentada pela paróquia como centro da religião e da vida social. As
novas ideias que chegavam da França revolucionária eram consideradas glo-
balmente suspeitas e perigosas e, na verdade, anticristãs. Só com dificuldade
João podia conceber a vida social, religiosa e espiritual fora do tronco tradi-
cional do catolicismo romano.
Margarida educou seus filhos para a vida de penúria e mortificação: des-
pesas extremamente simples, colchões duros de palha e que não deixavam
dormir muito. Esforçou-se, principalmente, por ensinar-lhes a doutrina cris-
tã, educá-los à obediência e confiar-lhes trabalhos compatíveis com a idade.

7
Na tradição biográfica salesiana, incluindo as próprias Memórias, Antônio foi alvo da “má
imprensa”, talvez não totalmente justificada.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

A família Bosco reunia-se para rezar de manhã e à noite. Dom Bosco


escreve nas Memórias do Oratório:
Quando eu era pequenino, ela mesma me ensinou as orações; quando
pude juntar-me aos meus irmãos, fazia-me ajoelhar com eles de manhã e de
noite, e juntos rezávamos as orações e o terço.8
Naqueles tempos, rezar de manhã e à noite, assim como rezar o terço
à tarde, era norma nas famílias do Piemonte. Três vezes ao dia, rezava-se o
Ângelus em honra de Maria. Embora analfabeta, Margarida sabia de cor as
principais lições do catecismo diocesano:
Margarida sabia quão poderosa é a força da educação cristã na vida de
uma criança; sabia que o ensinamento da lei de Deus com o catecismo todas
as tardes e rememorá-lo com frequência durante o dia é o melhor meio de
tornar as crianças obedientes às suas mães. Ela, então, ensaiava várias vezes as
perguntas e respostas do catecismo, até que os meninos as memorizassem.9
Dom Bosco confirma tudo isso e escreve, referindo-se ao tempo da sua
primeira comunhão: “Sabia todo o pequeno catecismo [...]. Como eu morava
longe da igreja, o pároco não me conhecia, e assim devia limitar-me exclusi-
vamente à instrução religiosa de minha boa mãe”.10
Foi dessa forma que Margarida imprimiu na mente dos filhos a ideia
de um Deus pessoal, sempre presente diante deles. A presença constante e
pessoal de Deus seria uma convicção arraigada em Dom Bosco. Desde então,
começou a viver sob o olhar do Deus da oração do Pai-nosso, um Deus de
infinita majestade, mas também um Deus infinitamente amoroso que nos dá
nosso “pão cotidiano”, perdoa os nossos pecados e livra os pobres pecadores
da recaída.
Quando João tinha 7-8 anos, Margarida preparou-o cuidadosamente
para a primeira comunhão. O “pecado” assumiu um sentido horrível e amea-
çador para ele. Durante a Páscoa de 1827, a preparação foi muito mais cuida-
dosa. Ao longo da Quaresma, ela acompanhou-o três vezes para a confissão.
Em casa, fez com que rezasse e lesse um livro espiritual e encheu-o de con-
selhos maternos. Quando chegou o grande dia, manteve-o afastado de todos
para que conservasse o recolhimento. Na igreja, assistiu-o na “preparação” e
“ação de graças” e ajudou-o a repetir as orações que o padre lia em voz alta
no altar.11
8
MO, 27.
9
G. B. Lemoyne, Scene morali, 18-19.
10
MO, 38.
11
Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 18-19, 25-26.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Assim, com a orientação de sua mãe, Joãozinho experimentou pessoal-


mente a qualidade de uma vida sacramental que mais adiante, como padre,
não se cansaria de inculcar nos seus seguidores.
A educação pessoal, religiosa e moral de Margarida era estritamente tra-
dicional; o estilo severo das relações pais-filhos, característico das famílias do
Piemonte, tornou-a ainda mais exigente. Tudo, porém, era temperado com
o apelo constante à razão e à religião, com grande número de gestos de afeto
e carinho. O sucesso de Margarida pode ser atribuído à sua sabedoria e ao
seu estilo educativo iluminado que neutralizava toda severidade tradicional.12
Referindo-se ao carinho especial por João, em quem a mãe descobria
qualidades excepcionais, o biógrafo escreve:

Margarida, com suas santas indústrias e sua antevisão, não contrariava, mas
corrigia e dirigia para Deus as inclinações e os dotes naturais com que João
fora enriquecido. Ele manifestava grande abertura de espírito, apego aos
próprios julgamentos, tenacidade nos propósitos; e a boa mãe habituou-o
à perfeita obediência, sem favorecer o amor próprio, mas persuadindo-o a
submeter-se às humilhações inerentes à sua situação; ao mesmo tempo, po-
rém, não deixou de buscar todos os meios para que pudesse entregar-se aos
estudos sem cansar-se excessivamente e deixando que a divina Providência
determinasse o momento oportuno. O coração de João, que um dia deveria
acumular riquezas imensas de afeto por todos os homens, estava cheio de uma
exuberante sensibilidade que, se satisfeita, poderia ser perigosa. Margarida
jamais rebaixou sua condição de mãe com carícias exageradas, nem tolerando
ou simpatizando com algo que pudesse ter sombra de anormalidade; mas
nem por isso usou de modos ásperos com ele ou atitudes violentas que o irri-
tassem ou pudessem motivar arrefecimento em seu amor filial.
João tinha inato aquele sentimento de segurança no agir, pelo qual o homem
se sente levado naturalmente a dominar, necessário para quem está destinado
a presidir a muitos, mas que também com muita facilidade pode degenerar
em soberba; e Margarida não vacilou em reprimir os pequenos caprichos,
desde o início, quando ainda ele não era capaz de responsabilidade moral.
Quando, porém, mais tarde o vir sobressair-se entre os companheiros dese-
jando fazer-lhes o bem, observará a sua conduta em silêncio, não se oporá
aos seus projetos naturais e não só o deixará agir a seu gosto, como também

As mesmas Memórias de Dom Bosco (seguida por Lemoyne) insistem no estilo educativo de
12

Margarida como antecipação do método educativo de Dom Bosco. Esta interpretação está em linha
com a “intenção” das Memórias.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

lhe proporcionará os meios necessários, embora a custa de privações. Dessa


forma, com doçura e suavidade se insinuará em seu espírito e o levará a fazer
sempre o que ela queria.13

A afirmação de que Margarida “jamais rebaixou a sua condição de mãe


com carícias exageradas, nem tolerando ou simpatizando com algo que pu-
desse ter sombra de anormalidade” pode causar perplexidade. Contudo, no
contexto cultural agrícola, soa verdadeiro o retrato que Lemoyne traça de
Margarida educadora.
Lemoyne oferece muitos exemplos da firmeza, amabilidade e sabedoria
de educadora cristã de Margarida, tanto na biografia como nas Memórias Bio-
gráficas. Entretanto, ele interessa-se mais em mostrar o apoio de Margarida a
João, quando o acompanha passo a passo em sua caminhada vocacional. João
aprendera a ler e escrever aos 9 anos, graças a alguém do lugar, e Margarida já
estava pensando na continuação da sua educação.

João Bosco no ensino fundamental de Capriglio


(1824-1825; 1825-1826?)
Sobre o sonho vocacional de 1824-1825, é oportuno expor, embora bre-
vemente, a primeira não “oficial” escolarização “formal” de João com o padre
José Lacqua, na vizinha Capriglio, aldeia natal de sua mãe. O curto período
de tempo que passou frequentando aquela escola foi um ponto crucial na
vida de João. Primeiramente, porque padre Lacqua lhe deu orientação para a
vida cristã, que pode ter sido um estímulo para o sonho vocacional; depois,
porque o breve período dos primeiros estudos formais estimulou sua ânsia
pela verdadeira educação.
Antes do período napoleônico, não existira educação obrigatória no rei-
no da Sardenha-Piemonte. As crianças que tiveram a sorte de receber uma
educação primária faziam-no em escolas particulares locais, ordinariamente
dirigidas por um padre. As demais crianças só aprendiam a ler e escrever com
alguma pessoa mais velha com capacidade para isso. O analfabetismo era co-
mum; só o clero e uma elite de profissionais eram “educados”.
Napoleão tinha organizado o sistema educativo e tornado obrigatória a
educação elementar. Na Restauração, o rei Carlos Félix aboliu o sistema de
Napoleão, mas, como parte da sua reforma escolar geral de 1822,14 decretou

MB I, 41-42.
13

O documento da reforma educacional intitulado Regie Patenti (Carta Real) será comentado
14

mais adiante.

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Dom Bosco: história e carisma 1

que deviam ser criadas escolas obrigatórias de ensino fundamental em todos


os municípios. Elas eram de ensino livre e financiadas pelo município.
Embora a assistência fosse obrigatória para todas as crianças a partir dos
7 anos, na prática os filhos das famílias camponesas só iam à escola durante
a “estação sem trabalho”, de novembro a março, quando paravam as ativida-
des agrícolas. De abril a outubro deviam ficar à disposição para ajudar no
trabalho do campo. O ensino fundamental constava de um programa de dois
anos. O currículo era formado de leitura, escrita e catecismo no primeiro ano,
e italiano, aritmética e doutrina cristã, no segundo. Não havia professor for-
mado em escolas de magistério ou colégios de formação de professores, que
só começaram a existir a partir de 1860. Os professores eram ordinariamente
clérigos habilitados pelo bispo para essa função e, com frequência, eram bem
preparados; muitas vezes os padres optavam pela carreira de professor em vez
de exercer o ministério.
Como a escola era financiada pelas autoridades locais, parecia razoá-
vel que só fossem admitidas as crianças que viviam na jurisdição municipal.
Becchi localizava-se na jurisdição de Castelnuovo, não de Capriglio. João
fora matriculado em Castelnuovo, por isso tinha de caminhar 5 quilômetros
4 vezes por dia.15 Margarida tentou inscrevê-lo em sua cidade natal, Capri-
glio, que ficava 2,5 quilômetros mais perto. Padre Lacqua [ou Delacqua],
inicialmente, opôs-se a admiti-lo, mesmo a escola não estando cheia, nem ele
sobrecarregado de trabalhos.16 Como Margarida provavelmente se vira obri-
gada a estabelecer-se em Castelnuovo, padre Lacqua, fazendo uma exceção
à regra, admitiu Joãozinho Bosco, possivelmente a pedido de Maria Joana
(Mariana) Occhiena, irmã de Margarida, que era empregada doméstica na
casa do padre.17
João frequentou a escola em Capriglio durante o inverno de 1824-1825,
talvez também durante e depois do inverno seguinte. Contudo, as fortes ob-
jeções de Antônio, já com 17 anos, provavelmente impediram a frequenta-
ção posterior. Os dias de João na escola de Capriglio foram uma experiência
útil e feliz em todos os aspectos. Padre Lacqua “foi muito atencioso comigo,
interessando-se de bom grado pela minha instrução e mais ainda pela minha

15
A distância foi o motivo pelo qual Dom Bosco não fosse matriculado em Castelnuovo (MO,
27), pois deveria caminhar mais de 5 quilômetros quatro vezes por dia por estradas rurais no bom e mal
tempo: de casa à escola, voltar para o almoço do meio-dia (pão e sopa) e ir novamente a Castelnuovo
para as aulas da tarde.
16
As cartas escritas pelo padre José Lacqua a Dom Bosco demonstram que foi fácil dedicar-se a
essas pequenas escolas locais. Cf. MB I, 483-484 e II, 29-30.
17
MB I, 97-98.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

educação cristã”.18 Foi também o início de uma amizade duradoura entre mes-
tre e discípulo. Nesse tempo, João entre 8 e 10 anos, fez a primeira confissão
e a primeira comunhão na Páscoa, 26 de março de 1826.19 Pode-se imaginar
que o ensino do padre Lacqua foi importante pelo seu significado vocacional;
foi nessa época que João teve o sonho profético.

Margarida e a vocação de João


Aos 9 anos João ia transformando-se em líder das crianças das vizinhan-
ças. Começara a reuni-las para entretê-las com brincadeiras e histórias, e en-
sinar-lhes o catecismo. Margarida não só lhe permitiu essa atividade, como
também o animou e ajudou; talvez, adivinhando os sinais do seu futuro esta-
do, decidiu que fosse à escola.
De fato, Margarida interpretou o sonho daqueles anos em sentido voca-
cional. O sonho aconteceu, acreditamos, num contexto histórico específico,
favorecido por dois elementos concorrentes: o ensino e a orientação do padre
Lacqua, de um lado, e, de outro, a intuição da verdadeira vocação de João por
Margarida. Isso exigia posterior escolarização e uma educação sistemática, ao
que Antônio se opôs obstinadamente.
A luta que se seguiu obrigou Margarida a mandar João embora, tanto
para a paz em casa quanto para protegê-lo; isso fez com que a escolarização
fosse adiada por dois anos até que se chegou ao acerto da divisão dos bens
com Antônio.

O sonho vocacional
Naqueles anos, tive um sonho que me ficou profundamente impresso na mi-
nha mente por toda a vida.
Pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma mul-
tidão de meninos estava a brincar. Alguns riam, outros divertiam-se, não pou-
cos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles,
tentando, com socos e palavras, fazê-los calar.
Nesse momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil, nobre-
mente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era
tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou
que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras:

18
MO, 27.
19
P. Stella, Vita, 7.

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Dom Bosco: história e carisma 1

– Não é com pancadas mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar
esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pe-
cado e a preciosidade da virtude.
Confuso e assustado repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, inca-
paz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar,
de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar.
Quase sem saber o que dizer, acrescentei:
– Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?
– Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a
obediência e a aquisição da ciência.
– Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?
– Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a
qual toda sabedoria se converte em estultice.
– Mas quem sois vós que assim falais?
– Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia.
– Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não co-
nheço; dizei-me, pois, vosso nome.
– Pergunta-o a minha mãe.
Nesse momento vi a seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida de
um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgi-
díssima estrela.
Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, ace-
nou para que me aproximasse d’Ela e, tomando-me com bondade pela mão,
disse:
– Olha.
Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma
multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais.
– Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o
que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos.
Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordei-
rinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele homem e daquela
senhora, como a fazer-lhes festa.
Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi ao homem que falasse
de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava
tudo aquilo.
Ela, então, descansou a mão em minha cabeça, dizendo:
– A seu tempo tudo compreenderás.
Após essas palavras, um ruído me acordou.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos que desfe-
rira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos. Depois, o personagem, aquela
mulher, as coisas ditas e as coisas ouvidas de tal modo me encheram a mente,
que já não pude conciliar o sono durante a noite.
De manhã contei logo o sonho. Primeiro aos meus irmãos, que se puseram
a rir, depois à mamãe e à vovó. Cada um interpretava-o à sua maneira. Meu
irmão José dizia: “Vais ser pastor de cabras, de ovelhas ou de outros animais”.
Mamãe: “Quem sabe se um dia não chegarás a ser padre”. Antônio, seca-
mente: “Talvez termines sendo chefe de bandoleiros”. Mas vovó que, de todo
analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença definitiva exclamando:
“Não se deve fazer caso dos sonhos”.
Eu era do parecer de minha avó, todavia nunca pude esquecer aquele sonho.
Os fatos que exporei em seguida conferem-lhe algum sentido.
Não falei mais do assunto, e meus familiares não lhe deram maior impor-
tância. Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o Papa sobre a
Congregação Salesiana, ele me fez contar pormenorizadamente tudo quanto
tivesse algo de sobrenatural, mesmo que só na aparência. Contei então pela
primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa mandou-me
escrevê-lo literalmente e com pormenores, e deixá-lo para animar os filhos da
Congregação, pela qual fizera essa viagem a Roma.20

Baste aqui uma anotação inicial, pois mais adiante será oferecido um co-
mentário do sonho e do seu papel no discernimento vocacional de João Bosco.

Contexto, estímulos e imagens do sonho


Dom Bosco relata o sonho nas Memórias do Oratório em conexão
com sua escolarização precoce e com seus esforços para entreter as crian-
ças do lugar. De fato, no parágrafo anterior, diz que sua mãe decidira
mandá-lo à escola e que conseguira inscrevê-lo em Capriglio com o padre
José Lacqua.21
Imediatamente depois, narra-se a atividade de João com as crianças da
aldeia. Contudo, pela sua descrição, parece que ele já fora um pequeno líder
durante algum tempo.22 O próprio padre Lacqua pôde ajudar a dar ao sonho

O texto é aquele que o padre Joaquim Berto transcreveu do rascunho corrigido por Dom
20

Bosco: Memórias do Oratório: um sonho: MO-Berto, 5-8; FDB 60 A9-12. Cf. FDB 57 A6-9. Cf. MO,
10, 11, 12. Outros relatos do sonho vocacional surgirão depois.
21
MO, 27.
22
MO, 35-36.

169

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Dom Bosco: história e carisma 1

a ideia de vocação sacerdotal em ligação com o sucesso que João tinha com as
crianças da aldeia e com o desejo de “estudar”, expressado por João.23
Deve-se levar em conta, de fato, que “estudo”, diferente de alfabetização
(aprender a ler, escrever e contar), estava na maioria dos casos associado ao
sacerdócio.24 Margarida também pôde reforçar a insinuação do sacerdócio,
ao perceber as aptidões especiais de João. Talvez fosse o que tinha em mente
quando, primeiramente, decidiu mandar João à “escola”. Seu comentário so-
bre o significado do sonho teria então um significado específico. Estamos no
campo da conjectura, mas de uma coisa podemos estar certos: o sonho não
aconteceu sem precedentes, vindo do nada.
O sonho deve ter acontecido em fins de junho de 1825, perto da festa de
São Pedro e São Paulo, a cujos santos era dedicada a igreja da aldeia, quando
alguns textos litúrgicos, como “apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cor-
deiros”, podiam ter-lhe proporcionado as imagens. Ou pode ter ocorrido na
festa da Anunciação, 25 de março, dada a menção do Ângelus, que pode ser
uma alusão a essa festa. As imagens pastorais também podem ter sido sugeridas
pela pregação em preparação ao jubileu de 1825, instituído pelo papa Leão XII.

A atitude do próprio Dom Bosco


Dom Bosco afirma que o sonho ficou profundamente impresso em sua
mente ao longo da vida. De fato, será um sonho recorrente, como afirma ex-
pressamente ao falar da sua decisão vocacional, quando cursava o ginásio em
Chieri. Ele afirma: “O sonho de Murialdo […] renovara-se até de maneira
muito mais clara, e assim, se lhe quisesse dar fé, devia optar pelo estado ecle-
siástico, ao qual justamente me sentia inclinado”.25
Não deixa de ser estranho que, apesar do mandato do Papa, não tivesse
escrito sobre o sonho até 1873-1874, quando o fez nas Memórias do Oratório,
com a nota de que o tinha narrado a Pio IX em 1858, e que o sonho se tinha
repetido em outras ocasiões.26

23
A influência do padre José Lacqua sobre João deve ter sido significativa. Ambos mantiveram
contato e correspondência: Dom Bosco ao padre José Lacqua, Chieri, abril de 1840 e Chieri, maio de
1841, em Epistolário Motto, I, 48. Para as respostas do padre Lacqua, ver MB I, 483-484, MB II, 29-
30. Apresenta-se num apêndice posterior um seu breve perfil biográfico.
24
Deve-se levar em consideração que as objeções de Antônio eram contra o “estudo” de João,
não contra o ensino elementar. Segundo demonstram os documentos de arquivo, Antônio sabia ler e
escrever, já que sabia assinar; José, porém, parece que era analfabeto.
25
MO, 79.
26
Dom João Cagliero testemunhou no processo de beatificação que ouvira de Dom Bosco a
narração do sonho quando retornou de Roma “em 1858 ou 1859”.

170

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

Quando Dom Bosco decidiu colocá-lo por escrito, já se passara muito


tempo. E o fez depois de ter passado pelo discernimento, feito as mais im-
portantes opções vocacionais e contemplado os resultados extraordinários da
obra de sua vida, obra de Deus, como ele a entendia. De aqui que o sonho
fosse escrito com uma interpretação adicional através de palavras e imagens
referindo-se a tudo isso.
Que, com o passar do tempo, o sonho tivesse adquirido importância
sempre maior, que fosse interpretado baseando-se na experiência de Dom
Bosco, pode-se deduzir de um episódio interessante. Em 1887, o Santo, ve-
lho e muito doente, assistiu à consagração da igreja do Sagrado Coração em
Roma. Enquanto celebrava a missa, emocionou-se e repetidamente irrompeu
em lágrimas com grandes suspiros. Mais tarde, explicou ao seu secretário, pa-
dre Viglietti: “Eu repassava com a mente as cenas da minha infância, quando
pelos 10 anos tive um sonho sobre a Congregação. Eu podia ver e escutar
minha mãe e meus irmãos discutirem sobre o sonho”.27

27
Crônica, VII, Viglietti, 4, 16 de maio de 1887, FDB 1, 226 D8. Cf. MB XVIII, 341.

171

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Apêndice

MARGARIDA OCCHIENA BOSCO (1788-1856):


ÁRVORE GENEALÓGICA E REPERTÓRIO BIOGRÁFICO

ÁRVORE GENEALÓGICA ATÉ A QUARTA GERAÇÃO28

Melquior Occhiena
casado com Francisca [?]
3 filhos

(João) Miguel Occhiena (1727-1798)


casado com Maria Occhiena
7 filhos

Melquior Marcos Occhiena (1752-1844)


casado com Maria Bossone, 1775
10 filhos28

Joana Maria MARGARIDA Miguel


(1785-1857) (1788-1856) (1795-1867)
(conhecida como Mariana) casado com
(solteira) casada com Ana Josefina Quirico, 1826
Francisco Luís Bosco
6 de junho de 1812
2 filhos

José Luís João Melquior

Dos 10 filhos de Melquior Marcos Occhiena, 5 chegaram à idade adulta. Dos 5 adultos, 3
28

figuram com importância na vida de Dom Bosco: Mamãe Margarida, sua irmã mais velha Joana Maria,
tia e madrinha de Dom Bosco, apelidada de Mariana, e o tio Miguel. Lemoyne fala apenas de 5 filhos
de Melquior Marcos Occhiena porque dele só conheceu os 5 que chegaram à idade adulta.

172

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

COMPARAÇÃO DOS DADOS QUE APARECEM NAS MEMÓRIAS


BIOGRÁFICAS E NAS MEMÓRIAS DO ORATÓRIO

Dados biográficos de Mamãe Margarida reunidos por MO


MB
Lemoyne nas Memórias Biográficas comparados São Paulo,
Volume e
com as Memórias do Oratório de Dom Bosco 2005
página
(com algum material citado ou entre [-]) página

31 de janeiro de 1775: Melquior Occhiena (1752) casa-se com


Domingas Bossone na paróquia de Piea.
1º de abril de 1788: Margarida, sexta de seis filhos, nasce e é
I, 13 batizada no mesmo dia em Capriglio [sua irmã, Joana Maria 24
(Mariana) nasceu em 1785 e seu irmão Miguel em 1795].
I, 14 Anos 1790: educação moral e religiosa de Margarida —
Margarida e o homem alto e bonito.
[1796-1815: período napoleônico – campanhas de Napoleão
I, 16 —
no Piemonte – 1799: o exército da Áustria invade o norte da
Itália e o Piemonte contra Napoleão].
1799: Margarida enfrenta soldados da cavalaria austríaca em
I, 17-18 —
Capriglio.
1805: Margarida com sua família, em Turim, vê o Papa Pio VII
I, 20 —
quando retornava de Paris a Roma.
A virtude e o caráter de Margarida: ela declina do convite de
I, 22 —
suas amigas para passear e dançar.
Margarida evita os jovens.
[28 de fevereiro de 1811: Francisco Bosco no sítio Biglione
I, 22-23 enviuvava de sua esposa Margarida Cagliero aos 27 anos. Dei- —
xa-lhe o filho Antônio (nascido em 1808) e a mãe inválida,
Margarida Zucca].
6 de junho de 1812: Margarida casa-se com Francisco Bosco,
aos 24 anos, na igreja de Capriglio, depois da cerimônia civil
I, 29 —
na sede municipal da cidade de Castelnuovo, administrado por
um oficial do governo francês.
1, 30 Margarida e o jovem Antônio. —
I, 30-31 Margarida e a sogra, Margarida Zucca. —
8 de abril de 1813: nasce o filho de Francisco e Margarida, José
Luís Bosco [no sítio Biglione].
I, 31 [1815: depois dos danos causados pela guerra de Napoleão e —
do início da Restauração, o Papa Pio VII retorna do exílio na
França, passando por Turim, MB I, 20].
16 de agosto de 1815: nasce o filho João Melquior, de Francis-
I, 32-33 co e Margarida Bosco; é batizado no dia seguinte na igreja de 24
Santo André, em Castelnuovo.

173

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Dom Bosco: história e carisma 1

O pacífico lar dos Bosco.


[8 de fevereiro de 1817: Francisco Bosco compra, por 100 liras,
I, 33 —
a “pequena casa”, anexa aos fundos da casa Graglia no Canton
Cavallo (Becchi).]
11 de maio de 1817: Francisco Bosco morre de pneumonia aos
33 anos de idade, e é sepultado no dia seguinte no cemitério da
igreja de São Pedro em Castelnuovo.
[Margarida oferece as costumeiras 30 missas em sufrágio.]
I, 34-35 [A propriedade e as finanças de Francisco Bosco são inventariadas. 25
Há uma dívida de 445 liras.]
13 de novembro de 1817: Margarida vai para a pequena casa
(depois de reformá-la) com sua família: a sogra, o enteado An-
tônio (de 9 anos) e os filhos José (4 anos) e João (2 anos).
1817-1818: durante um período de estiagem e carestia, Mar-
garida faz o que pode para alimentar sua família, inclusive ma-
I, 37 tando uma novilha. 25-26
[22 de março de 1818: morre a mãe de Margarida, Domingas
Bossone, MB I,39].
Margarida recusa uma proposta vantajosa (de casamento) e
I, 40 27
continua com seus filhos
[1818-1924]: comentários de Lemoyne sobre a dedicação de
I, 40-41 —
Margarida como mãe e educadora cristã.
Margarida dá educação religiosa aos filhos: catecismo; “Deus te
I, 43-46 27
vê”; Deus na natureza; Providência; oração; sacramentos.
I, 48 Margarida e o valor educativo do trabalho. —
I, 48 Margarida permite que João brinque com os meninos difíceis. —
I, 51 Margarida supervisiona seus filhos e brinca com eles. —
Margarida conta aos filhos exemplos morais da Bíblia e da vida
I, 52 —
dos santos.
Margarida obtém a obediência dos filhos de maneira amável
I, 53 (especialmente em relação ao contato com estranhos que vi- —
vem por ali ou estão de passagem).
Margarida faz compras na feira de Castelnuovo; às quintas-fei-
I, 53-54 —
ras traz alimentos para casa e pequenas coisas para os meninos.
I, 54 Margarida faz perguntas aos filhos quando retornam para casa,

mesmo depois de uma pequena ausência, e dá-lhes conselhos.
I, 57 Margarida corrige os filhos com firmeza, mas com amabilida-

de.
I, 58 Margarida e os caprichos de José. —
I, 60-64 Margarida e o seu trato com o descuidado Antônio, depois
de uma briga com seus irmãos; insiste em ter razão e perde o

controle.
[Palavras de Lemoyne sobre Antônio, em MB I, 60.]

174

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

I, 65-66 Margarida e a sogra, Margarida Zucca: obediência e o devido



respeito dos meninos à avó, como a rainha da casa.
I, 67-70 A avó cuida da casa e dos filhos, pois Margarida trabalha no
campo (às vezes com a ajuda de seu irmão Miguel). João, An- —
tônio e a fruta desaparecida.
I, 71-73 Margarida e os filhos, asseados, com roupa de domingo. —
I, 73-74 Margarida espera que os filhos pensem antes de agir; João e a

jarra de azeite; a vara enfeitada.
I, 75 Margarida habitua os filhos a trabalharem e terem uma vida es-

partana: só pão pela manhã; o “colchão de seminário” de João.
I, 76 Margarida habitua os filhos a dormirem pouco. —
I, 78 Margarida e a venda do peru por 5 soldos. Recolhe os outros

perus, enquanto os meninos perseguem o ladrão.
I, 78-79 João enfrenta um estranho ao perder um peru para ele. Adver-

tência de Margarida.
I, 83-84 Margarida e os meninos vigiam a vinha contra ladrões. —
I, 85-87 A família vindima em Capriglio e o “demônio no sótão”. —
I, 90 João adquire de Margarida o hábito da oração; orações en-

quanto cuidam dos animais.
I, 96-98 Inverno de 1823-1824: Margarida, adivinhando a vocação de
João, planeja enviá-lo à escola, mas desiste por algum tempo

por causa das objeções de Antônio. João começa a ler com um
camponês do lugar.
I, 97-99 18 de novembro de 1824 - março de 1825: Margarida matri-
cula João na escola do padre José Lacqua em Capriglio, cuja 27
governanta é a irmã de Margarida, Mariana.
I, 110 Margarida faz advertências a João em relação aos charlatões

da feira.
I, 112-113 Margarida ajuda e instrui João quando, em busca de ninhos, 37
seu braço fica preso no ramo de uma árvore. (ninhos de
pássaros)
I, 112-113 Margarida tira lições morais da morte do cuco de João e da

ninhada de rouxinóis.
I, 123-126 1825 [verão?]: João tem o sonho vocacional. Margarida aven-
28
(cf. MO) tura-se: “Talvez, chegarás a ser padre”.
I, 137 Reflexão de Margarida sobre os primeiros esforços de João no

trabalho do “Oratório”.
I, 139 Reação de Margarida e valorização do apostolado juvenil de
38
João.
I, 149 Margarida ajuda generosamente os vizinhos que vêm pedir ali-

mentos emprestados.

175

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Dom Bosco: história e carisma 1

I, 150-151 Margarida, com a ajuda de João, dá comida e alojamento a



delinquentes. A polícia vem logo investigar.
I, 153 Hospitalidade de Margarida a vagabundos e mendigos. Dom

Bosco é citado como exemplo.
I, 155 Margarida e o vizinho, Cecco. —
I, 156-157 Os Veglio, comovidos pela caridade de Margarida pelos po-

bres, ajudam com algumas contribuições.
I, 157 Margarida visita os doentes e prepara-os para os sacramentos. —
I, 158 Margarida, mulher de oração, convida os hóspedes a rezarem

com ela.
I, 159-160 Margarida assegura-se da inocência das diversões locais antes
de permitir que seus filhos as assistam; caso contrário, entre- —
tém-nos com histórias.
I, 160 Margarida preocupa-se com o comportamento espiritual das

jovens; proporciona-lhes vestidos modestos.
I, 160 Margarida ajuda as meninas pobres a preservarem a virtude;

desencoraja os namoros.
I, 161-162 Margarida e a modéstia no vestir. —
I, 162 Margarida retira dos vendedores ambulantes pinturas indecen-

tes e livros não apropriados à leitura.
I, 162-164 Margarida enfrenta um homem que tem conversas escandalo-

sas: avisa seus filhos.
I, 164 Margarida manda embora de sua propriedade dois meninos

mais velhos que têm conversas más.
I, 166-168 Margarida intervém para terminar uma relação escandalosa en-
tre um velho doente e uma mulher de má reputação; comenta- —
-o com o padre Campora, que administra o viático.
I, 168 Margarida recusa uma sugestão ruim.
[Lemoyne declara que Dom Bosco foi testemunha de “todas —
essas coisas” e “no-las contou”, MB I, 168.]
I, 170-171 Cuidados de Margarida com a avó Zucca. —
I, 171 11 de fevereiro de 1826, a avó morre cristãmente, assistida por
49
Margarida e os filhos.
I, 172-173 Margarida prepara João para a primeira comunhão e confissão. 38
I, 173-174 26 de março de 1826 [?]: Domingo da Ressurreição, primeira co-
39
munhão de João; Margarida ajuda João na preparação imediata.

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

I, 174 Palavras de Margarida a João no dia da sua primeira comu-


nhão. As reflexões do próprio Dom Bosco, citadas por Lemoy-
ne das MO.
[Nota: neste ponto (1826), a cronologia das MO (Dom Bosco)
39
apresenta um erro ao colocar o encontro de João com padre Calos-
so em 1826 e omitir o período dos anos em Câmpora-Moglia (ver
o comentário à frente). Aqui, embora nos refiramos aos materiais
das MB e MO, seguimos a cronologia reconstituída.]
I, 181 1826-1827: ano de luta na casa dos Bosco sobre a continuida-
de da aprendizagem de João. Margarida, ajudada pelos irmãos,
Miguel e Francisco, tenta (em vão) conseguir a aprendizagem —
para João, primeiramente com padre Dassano em Castelnuovo
e, depois, com o pároco de Buttigliera.
I, 191-192 Inverno de 1827-1828: para evitar novas brigas com Antônio,
Margarida envia João a trabalhar fora de casa como empregado

no sítio Câmpora em Serra di Buttigliera. Ali ele permanece
algum tempo.
I, 192-193 Fevereiro de 1828: Margarida manda João procurar trabalho
fora. Encontra-o no sítio dos Moglia perto de Moncucco. [Pe- —
ríodo Moglia: MB I, 192-198.]
I, 194 O senhor Moglia manda João pedir a Margarida que venha vê-

-lo em Castelnuovo para discutir sobre o salário.
I, 205 O senhor Moglia dá a Margarida 30 liras (acerto para 1828) e

50 liras (para 1829, à sua apreciação).
I, 205-206 Novembro de 1829: tio Miguel visita o sítio Moglia e prepara

o retorno de João à casa dos Becchi.
I, 208-209 Margarida repreende João (em benefício de Antônio?) por dei-
xar os Moglia, e João esconde-se até a volta do tio Miguel.
[Inícios de novembro de 1829: João encontra padre Calosso —
por ocasião dos exercícios do Ano Santo: ver MB I, 176, MO,
40-43, com datas e estrutura diferentes.]
I, 179 Margarida e João visitam padre Calosso em Murialdo para falar
42
dos estudos de João.
I, 181-183 Margarida se defronta com as objeções de Antônio sobre a con-
tinuação dos estudos de João. Antônio persiste.
[Novembro 1829-novembro 1830, ano de estudos de João
com padre Calosso, MB I, 178-180 e MO, 40, com datas e

estruturas diferentes].
[Verão de 1830 (mais provável): João encontra o seminarista
José Cafasso por ocasião das festas patronais de Murialdo, MB
I, 186-187, e MO 47].

177

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Dom Bosco: história e carisma 1

I, 187 Comentário de Margarida ao escutar o relato de João sobre


padre Cafasso.
[João começa a frequentar o padre Calosso como auxiliar e es- —
tudante em tempo pleno, MB I, 187-188, citando as palavras
de Dom Bosco MO, 45].
— Setembro de 1830: Margarida compra um depósito de feno,
com cobertura, acrescentado à pequena casa.

[21 de novembro de 1830: padre Calosso morre de embolia.
MB I, 216-218, não em abril de 1828 como em MO, 45.]
I, 218 Margarida, preocupada com a saúde de João por ter sentido
muito a morte do padre Calosso, envia-o à sua família em Ca- 48
priglio.
I, 215 Margarida faz a divisão da herança Bosco entre José/João e An-
49
tônio, que tem 21 anos de idade (não 26 como em MB).
I, 237 Novembro de 1830: Margarida e José (perto dos 18 anos de
idade) assumem o sítio Matta na região chamada Sussambrino

como meeiros de José Febbraro, até 1839 (ano em que o sítio
foi vendido ao senhor Pescamona, de Castelnuovo).
I, 219 Dezembro de 1830: Margarida inscreve João na escola funda-
mental de Castelnuovo e procura alojamento para ele com o 49
alfaiate João Roberto.
I, 224 Margarida visita João todas as semanas para levar-lhe uma pro-
visão de pão e saber da sua conduta.
[21 de março de 1831: Antônio se casa com Ana Rosso e co- —
meça a construir uma casa (7 filhos) enquanto usa uma parte
da pequena casa].
I, 237-238 Verão de 1831: João passa as férias “em casa” (Sussambrino). —
I, 245 Novembro de 1831: João matricula-se no Real Colégio (escola
pública secundária) em Chieri e Margarida encontra alojamen- 51
to para ele com Lúcia Pianta Matta.
I, 249-250 Margarida entrega a João uma quantidade de trigo para pagar
o quarto e moradia, acompanha-o a Castelnuovo e mais tarde —
encontra-se com ele em Chieri.
I, 272-274 Verão de 1832: de Sussambrino, Margarida leva João ao padre
Dassano em Castelnuovo, que se tinha oferecido para dar aulas
de latim ao jovem, enquanto este cuida de seu cavalo. —
[9 de maio de 1833: José casa-se com Maria Calosso, MB I,
279 (10 filhos).
I, 279 Verão de 1833: Margarida e João passam algum tempo nos
Becchi (compartilhando a pequena casa com Antônio). João
dedica-se ao trabalho de “oratório”. —
[4 de agosto de 1833: João recebe a confirmação na igreja pa-
roquial, MB I, 277].

178

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

I, 288-289 Outubro de 1833: Margarida encontra alojamento e trabalho


64
para João em Chieri na casa e no café do senhor Pianta.
I, 287, 1834-1835: Margarida apoia a decisão vocacional de João com
295-296 os franciscanos, deixando-o plenamente livre, e aconselha-o [Cf. 92]
com palavras memoráveis.
I, 305 1835: Margarida aceita a decisão de João de entrar no seminá-
rio, se for da vontade de Deus [ver o comentário mais adiante].
[Outubro de 1834: João em Chieri aloja-se com o alfaiate se-

nhor Cumino, MB I, 344; cf. MO 72].
[25 de outubro de 1835: João recebe a batina em Castelnuovo,
MB I, 369, MO, 89].
I, 373 30 de outubro de 1835: palavras memoráveis de Margarida
na tarde anterior à partida de João para o seminário: “Não o 92
hábito, mas a prática das virtudes”.
— Outubro de 1839: Margarida e José passam a viver nos Becchi,
na casa que este começara a construir (Antônio também cons- —
truiu uma pequena casa para sua família).
I, 481-482 1839-1840: João fica doente durante muito tempo no seminá-
rio. Margarida (que não ficou sabendo) leva-lhe pão e vinho.
Ele come e bebe, e se sente bem. —
[Verão de 1840: João convalesce nos Becchi e obtém a permis-
são de pular o quarto ano de teologia, MB I, 488, MO 110.]
I, 514-515 Abril (?) de 1841: Margarida cai de uma amoreira, fica incons-
ciente e se corta com um galho que cai sobre ela.

[5 de junho de 1841: João é ordenado padre em Turim, MB I,
519, “citando” MO, 111.]
I, 521 10 de junho de 1841: Dom Bosco celebra sua missa solene em
112
Castelnuovo.
I, 521 Memoráveis palavras de Margarida a João: “Ser sacerdote”. —
I, 521-522 Amor de Margarida pela pobreza e mortificação, e palavras so-

bre o argumento.
II, 38 Margarida recusa-se a pressionar Dom Bosco para aceitar um
cargo lucrativo, e palavras sobre o tema.
[3 de novembro de 1841: Dom Bosco entra no Colégio Ecle-
siástico. 1841-1844: Dom Bosco inicia a obra do Oratório.
1844-1846: enquanto está empregado com a marquesa Barolo,

Dom Bosco cuida do Oratório ambulante de São Francisco de
Sales e o localiza no telheiro Pinardi, MB e MO.]
[Verão de 1846: depois de um decisivo enfrentamento com a
marquesa Barolo, Dom Bosco cai gravemente enfermo, MB II,
492-498, MO, 188.]
II, 492 Margarida com o filho José, ao lado de Dom Bosco no peque-

no hospital de Turim.

179

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Dom Bosco: história e carisma 1

II, 500 Agosto-outubro de 1846: Dom Bosco convalesce nos Becchi


189
sob os cuidados de Margarida.
II, 519-522 3 de novembro de 1846: Dom Bosco retorna a Turim com
Margarida, que se ofereceu generosamente para acompanhá-
190
-lo. Ela vive no Oratório, como a mãe dos meninos (Mamãe
Margarida) durante dez anos, até sua morte em 1856.
II, 534 Dezembro de 1846: Mamãe Margarida utiliza seus vestidos e ou-
tros tecidos e vende suas joias para preparar as vestes da igreja e —
as roupas de cama (a senhora Margarida Gastaldi é outra “mãe”).
II, 555 Paciência de Mamãe Margarida com os meninos do Oratório. —
II, 571 Mamãe Margarida acolhe e consola um menino perseguido

pelo pai.
III, 44 1847: Mamãe Margarida estranha um menino sujo trazido por

Dom Bosco, mas o recebe amavelmente.
III, 79-80 Mamãe Margarida faz uma batina nova para Dom Bosco, que

é roubada da varanda.
III, 202 Mamãe Margarida cuida dos pobres meninos de Dom Bosco e

remenda suas roupas.
III, 207-208 Maio de 1847: o primeiro órfão recebe abrigo na casa Pinardi;
“boas-noites” de Mamãe Margarida.
196
[1848-1849: Revolução Liberal, Constituição e Primeira
Guerra de Independência da Itália.]
III, 364-365 1848: Mamãe Margarida é a mãe carinhosa dos meninos de
Dom Bosco, cuidando de todas as suas necessidades, corrigin-

do-os, animando-os, assistindo-os. Ela pratica o sistema educa-
tivo de Dom Bosco.
III, 440 Mamãe Margarida incomoda-se quando a “tropa” de Brósio se
enfrenta em guerras fictícias e os meninos pisoteiam sua horta.
[8 de outubro de 1848: padre Cinzano benze a capela de Nossa
Senhora do Rosário na casa de José nos Becchi. Dom Bosco e —
os meninos do Oratório (com Mamãe Margarida?) celebram
a festa da Virgem (considerado o primeiro passeio outonal!),
MB III, 443-446.]
III, 473-474 [18 de janeiro de 1849: Antônio Bosco morre aos 41 anos de

idade.]
IV, 22-23 1850: Mamãe Margarida entretém em sua cozinha um comitê

de investigação do Governo.
IV, 146-154 Mamãe Margarida respeitada e amada por Dom Bosco e seus me-

ninos. Seu modo de acolhida, simplicidade, honestidade e trato.
IV, 232-234 Episódios sobre a solicitude de Mamãe Margarida, seu sacrifí-

cio (Dom Bosco indica-lhe o crucifixo).
IV, 342-345 1852: o estudo de piano de Cagliero e a sensibilidade de Ma-

mãe Margarida pelo menino.

180

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

IV, 482 22 de setembro de 1852: o jovem Rua entra no Oratório. No


dia seguinte, vai aos Becchi com Dom Bosco, Mamãe Marga-

rida e um grupo de meninos. Mamãe Margarida é amada por
todos em sua cidade natal.
IV, 508-511 2 de dezembro de 1852: solicitude de Mamãe Margarida e co-
232
ragem quando a construção desmorona.
IV, 672 1853: o cônego Anfossi ressalta a doação de Mamãe Marga-

rida.
IV, 694 Outubro de 1853: Mamãe Margarida ao retornar de Castel-

nuovo é cumprimentada pelos seus meninos e suas galinhas.
IV, 701 Mamãe Margarida chama a polícia quando um “doido” tenta

entrar no Oratório.
IV, 706-708 Mamãe Margarida angustia-se com a segurança de Dom Bosco

depois dos muitos atentados contra ele.
V, 90 Verão de 1854: a generosidade de Mamãe Margarida durante

o surto de cólera.
V, 128 A solicitude de Mamãe Margarida pelos meninos e sua santa

vida são recordadas pelos alunos.
V, 298 1855: um aluno recorda a amabilidade e a santa vida de Ma-
__
mãe Margarida.
V, 560 Meados de novembro de 1856: Mamãe Margarida contrai

pneumonia, que acaba sendo mortal.
V, 561 Últimos conselhos de Mamãe Margarida a Dom Bosco e a José. —
V, 563 Mamãe Margarida recebe os últimos sacramentos. —
V, 564-565 25 de novembro de 1856: Mamãe Margarida pede a João que

se retire do seu quarto; ela morre em total pobreza.
V, 567 Dom Bosco vê Mamãe Margarida em sonhos. —

ÚLTIMOS ANOS DE MARGARIDA BOSCO (1846-1856)


Lemoyne, ao falar da volta de Dom Bosco ao Oratório em 1846, depois
da grave enfermidade e dos meses de convalescência nos Becchi, escreve:
“Ela foi a primeira a erguer a bandeira da caridade em favor dos pobres, dos
meninos abandonados e eles, com toda a razão, chamavam-na de sua mãe”.29
Certamente, ao acompanhar o filho em cada passo da sua caminhada voca-
cional, Margarida não teve dúvidas em doar-se: foi viver com ele em Turim
e fez-se mãe dos meninos do Oratório.

29
MB II.

181

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Dom Bosco: história e carisma 1

A década de Mamãe Margarida


A instalação na casa Pinardi é apresentada em duas décadas, que Dom
Bosco e os Salesianos depois dele consideraram como “etapa heroica” do Ora-
tório e da Congregação Salesiana. A primeira década (1846-1856) abrange os
últimos anos da vida de Mamãe Margarida. Foi o período do compromisso
pessoal e direto de Dom Bosco na grande experiência educativa na qual o
método salesiano foi elaborado e posto à prova.
Dom Bosco baseou o seu método educativo nas relações afetivas, tal
como deveriam ser numa boa família cristã. O “espírito de família” unia a
todos com vínculos de verdadeiro afeto. Nessa família, Dom Bosco era o pai
e Mamãe Margarida, a mãe. Ela cuidava dos meninos do Oratório como se
fossem seus e eles, por sua vez, aceitavam-na e queriam-na como a própria
mãe. Assim a chamavam, como Dom Bosco.
Os dois filhos mais ilustres do Fundador, o padre Rua, seu primeiro
sucessor, e dom Cagliero, fundador e guia da obra salesiana na América do
Sul, testemunham-no:

Eu a conheci durante oito anos e convivi com ela durante quatro. Era uma mu-
lher cristã e devota, dotada de coração generoso, assim como também de grande
coragem e prudência. Dedicou-se à nossa educação, a nós que éramos os seus
filhos, a sua família de adoção. Surpreendia-me admiravelmente, e também a
todos os meus companheiros, pela sua grande generosidade e sacrifício pessoal
que fizeram com que abandonasse sua casa e se entregasse à tarefa difícil e árdua
de cuidar de tantos orfãozinhos. Todos nós a chamávamos de “mamãe”, porque
todos nós a respeitávamos e queríamos de verdade como a uma mãe.
Eu conheci a mãe de Dom Bosco pessoalmente no Oratório de Turim. Foi
minha mãe durante cinco anos, isto é, até o dia de sua morte. A boa Mamãe
Margarida, como a chamávamos, era uma mulher admirável, dotada de todas
as virtudes de uma mãe realmente cristã. Era educada, próxima, paciente e
cheia de carinho por todos nós, os pobres orfãozinhos.30

Padre Rua e dom Cagliero moraram na Casa do Oratório. O senhor


Villa, leigo que só se tinha ocupado das atividades juvenis nos fins de semana
no Oratório, coincide no testemunho:
Conheci a mãe de Dom Bosco, a quem nós, meninos, chamávamos com afeto
de Mamãe Margarida. Era a típica mamãe camponesa, uma mulher imbuída

30
POCT (Processus Ordinarius Curiae Taurinensis): Rua, Sessão 358 (1895), e Cagliero, Sessão
145 (1893).

182

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

do genuíno espírito cristão. Quando retornou à terra natal em Castelnuovo,


gozou da estima e do respeito de todos. Quando se estabeleceu no Oratório
de Turim, assumiu de verdade o papel de mãe boa e cuidadosa para todos nós.
Nós a amávamos e confiávamos nela completamente e éramos muitíssimo
edificados pela sua virtude.31

Margarida dedicou os últimos anos da sua vida a cuidar dos jovens de


Dom Bosco. À medida que o tempo passava, outras mulheres uniram-se a ela
nesse trabalho, incluindo sua própria irmã Mariana Occhiena e a mãe do pa-
dre Rua, Joana Maria Ferrero Rua. Margarida foi, por excelência, a primeira
mãe dos meninos, e continuou a sê-lo até o dia de sua morte.

Palavras de Mamãe Margarida a Dom Bosco no dia de sua morte


Quando caiu fatalmente enferma com pneumonia, as últimas palavras
ao filho foram: “Deus sabe o quanto te amei durante toda a minha vida.
Espero poder amar-te ainda mais no céu [...]. Dize aos nossos queridos me-
ninos que eu trabalhei por eles e que tenho por eles uma afeição materna.
Recomendo-te que rezem muito por mim”.32
Dom Bosco saiu do quarto chorando e suspirando. Margarida morreu
em paz, nos braços do filho mais velho, José.
O processo diocesano para a beatificação de Mamãe Margarida foi con-
cluído em abril de 1996, cem anos depois da conclusão do processo dioce-
sano de Dom Bosco e 150 anos desde que deixou a aldeia dos Becchi para
acompanhar o filho à cidade de Turim. Em 23 de outubro de 2006, foi de-
clarada Venerável.

NOTA BIOGRÁFICA DE PADRE JOSÉ ANTÔNIO LACQUA


(1764-1847)
Sabemos pouco sobre a vida e a obra do padre José Lacqua. Deambro-
gio, baseando-se nos dados dos arquivos da cúria, escreve:
Padre José Lacqua nasceu em Montabone (província de Alessândria, diocese
de Acqui) em 18 de janeiro de 1764 e morreu em Castelletto Merli (província
de Alessândria, diocese de Casale) em 3 de janeiro de 1847, aos 83 anos de
idade [...]. Em 1824, quando João Bosco começou a participar da escola de
Capriglio, ele tinha 60 anos.33

31
POCT, Villa, Sessão 211 (1894).
32
MB V, 560-563.
33
L. Deambrogio, Le passeggiate autunnali, 186. P. Stella, Economia, 633.

183

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Dom Bosco: história e carisma 1

As pesquisas de Miguel Molineris em Montabone, de onde o nome La-


cqua era originário, revelam três possíveis candidatos: Carlos José, batizado
em 16 de fevereiro de 1762; José Vítor, batizado em 23 de julho de 1762;
e José Antônio, batizado em 18 de janeiro de 1764. Este último deve ser o
padre José Lacqua.34 Lemoyne afirma que, em 1841, padre Lacqua tinha mais
de 86 anos, e vivia retirado em Ponzano. Isso elimina os demais candidatos;
nascera em 1755 e teria 69 anos em 1824. A idade de 86 anos não combina
com o que Dom Bosco escreveu em 1840-1841, quando fala do desejo do
padre Lacqua de entrar num mosteiro, mas como optou por não se retirar,
prefere permanecer como professor em Ponzano em vez de aceitar outro lugar
de professor ou uma capelania.35
Não existem documentos de quando ou por que veio a Capriglio como
professor. O salário de um professor era certamente escasso.36 Contudo, ena-
morado da solidão, como afirma nas cartas mencionadas, o ensino lhe parece-
ria preferível ao ministério paroquial, porque assim teria metade do ano para
si mesmo, e Capriglio era um povoado retirado.
Além disso, parece que era economicamente independente, porque vivia
em sua própria casa e empregava uma doméstica; a madrinha de Dom Bosco,
tia Mariana, foi sua governanta desde 1824 até sua morte.
Em Capriglio, padre José Lacqua dava as aulas numa sala de sua casa,
que ainda hoje pode ser visitada. Dava aulas a mais ou menos uma dúzia de
meninos durante o outono-inverno; o número diminuía praticamente a zero
na primavera e no verão.
Em Capriglio, o pároco era padre José Carmagnola; padre José Lacqua
não era nem coadjutor, mas quando o pároco morreu em 1827, exerceu por
breve tempo o cargo de administrador; foi substituído em seguida pelo padre
Carlos José Gino. Logo depois seria nomeado pároco padre João Batista Bósio.
Não se sabe quando ou por que o padre Lacqua deixou Capriglio,
nem para onde foi. Pode ter ido diretamente a Ponzano, onde o encontra-
mos em 1840. Molineris não encontrou nenhuma notícia sobre ele nessa
localidade. Provavelmente não se ocupava de serviços paroquiais, mas vivia
retirado como professor. Aonde quer que tenha ido, tia Mariana acompa-
nhou-o como governanta.
Morreu provavelmente em 1847. Em 1850 já não vivia, pois, nos inícios
de 1851, tia Mariana já trabalhava com Mamãe Margarida e a senhora Rua
34
M. Molineris, Don Bosco inedito, 57-59.
35
Para a afirmação de Lemoyne, cf. MB II, 28; para as cartas, cf. MB I, 483-484; II, 29-30.
36
Cf. P. Stella, Economia, 35, nota 18.

184

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Uma infância esperançosa em tempos de comoção política (1815-1824)

em Valdocco, como mais uma das “mães”. O episódio em que aparece cozi-
nhando carne no café aconteceu em 2 de fevereiro de 1851.37

MARIANA, OU JOANA MARIA OCCHIENA (1785-1857),


IRMÃ MAIS VELHA DE MAMÃE MARGARIDA
O nome de Mariana não aparece entre os nomes dos filhos de Melquior
Marcos Occhiena, nem em qualquer outra parte da árvore genealógica da
família Occhiena. Contudo, era certamente o nome, ou apelido com que
Joana Maria, a irmã mais velha de Margarida, era familiarmente conhecida.
Nascida em 1785 na casa da família em Cecca, Serra de Capriglio, era
três anos mais velha de Margarida (1788-1856), seis a mais de Francisco
(1791-1874) e onze a mais de Miguel (1795-1867). Nunca se casou, e man-
teve a família com a ajuda de Margarida.
Mariana não gozava de boa saúde, nem foi empreendedora como Mar-
garida. Era, porém, generosa e devota. Quando Margarida recebeu a proposta
de casamento com Francisco Bosco em 1812, o pai, Melquior Occhiena,
objetou que não poderia cobrir os gastos. Mariana, então com 17 anos, ofe-
receu-se para cuidar da casa, tarefa que pouco depois, em 1813, seria desem-
penhada pela noiva do irmão Francisco.
A governanta do padre José Lacqua, professor em Capriglio, morreu
em 1824; Maria entrou ao seu serviço pouco depois. Foi ela provavelmente
que recomendou o sobrinho João Bosco para ser aceito na escola do padre
Lacqua, que o tomou sob os seus cuidados, quando João foi para Capriglio.
Quando a propriedade de Francisco Bosco foi repartida (1830) para
facilitar os estudos de João, Mariana colocou os seus bens à disposição de
Margarida, para que chegasse mais facilmente a um acordo com Antônio.
Acompanhou o padre Lacqua quando este deixou Capriglio, permanecendo
como sua governanta até a morte dele.
Após a morte do padre Lacqua (talvez em 1847, mas certamente não
depois de 1850), Mariana não pôde ou não quis voltar para Capriglio, uma
vez que a casa paterna já não era da família do seu irmão Francisco, e foi para
Valdocco com sua irmã Margarida.
Em 12 de fevereiro de 1851, já estabelecida em Valdocco, por ocasião
da imposição da batina aos “quatro primeiros” jovens que Dom Bosco estava
“cultivando”, foi ela quem, por engano, cozinhou a carne no café.

37
MB IV, 230-231.

185

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Dom Bosco: história e carisma 1

Como Margarida, e muito mais ainda, sofreria com o comportamento


difícil e relaxado dos meninos. Esteve no leito de morte de Mamãe Margari-
da em 1858. Ela é mencionada como uma das mães que se encarregaram da
lavanderia junto com a mãe do padre Rua, que substituirá Mamãe Margarida
como responsável do grupo de “mães”.38
Após uma longa enfermidade, Mariana morreu santamente em 22 de
junho de 1857.39

38
Para as quatro referências deste parágrafo, ver MB IV, 233s; IV, 185s; V, 548; V, 560.
39
MB V, 657.

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Capítulo VII

AS PROVAÇÕES DE UM ADOLESCENTE
(1824-1830)

Após o início da aprendizagem com padre José Lacqua em Capriglio,


João Bosco defrontou-se com as grandes dificuldades criadas por seu irmão
Antônio para continuar sua educação.

1. O relacionamento com Antônio


As dificuldades com Antônio surgiram depois do primeiro ano escolar
em Capriglio (1825) e transformaram-se em problema sério no segundo ano
(1826). Foi um desentendimento amargo, acompanhado de insultos violen-
tos que ameaçavam dissolver o lar, prejudicar o relacionamento entre os ir-
mãos Bosco e pôr intensamente à prova a capacidade de Margarida de manter
a situação sob controle.
A causa do problema não estava na oposição de Antônio para que João
aprendesse as primeiras letras, porque ele mesmo tinha aprendido a ler e
escrever. Não era nem mesmo uma necessidade urgente de ajuda no campo.
O motivo parece ter sido mais pelo fato de João, depois das primeiras letras,
querer continuar seus estudos secundários, possivelmente, em vista do sa-
cerdócio. Nesse caso, Antônio mostrava-se incapaz de compreender por que
devia permitir que João “estudasse” à custa do dinheiro da família. Posição
compreensível, levando-se em conta o ambiente sociocultural e a mentalida-
de camponesa de Antônio.
Lemoyne não trata adequadamente da questão, nem do modo como
ela afetava Margarida, os meninos e João, de modo particular. Em certo mo-
mento, acusa Antônio de prepotente,1 mas o faz erroneamente, acreditando
que Antônio era doze e não sete anos mais velho do que João. Por causa desse
1
Cf. MB I, 61.

187

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Dom Bosco: história e carisma 1

mal-entendido, equivocou-se também ao não dar valor ao problema do órfão


de 9 anos que, à morte do pai, viu-se sozinho, um entre três. Cabe perguntar-
-se, também, se Margarida entendeu plenamente as dificuldades de Antônio
que, sem dúvida, considerava como seu filho.
Quanto à continuação dos estudos de João, Margarida tinha, de fato,
uma opinião diversa da opinião de Antônio, certamente porque chegara à
conclusão de que um dia João poderia ser padre.

As opções de Margarida
É provável, como conta Lemoyne, que por causa da intemperança do ca-
ráter, Antônio ameaçasse João – pode até ser que chegasse a mais do que isso
– e perdesse o respeito por Margarida.2 Lemoyne pôde obter essa informação
do próprio Dom Bosco, que não se sabe ter desculpado o comportamento
de Antônio.
O que Margarida iria fazer? A tradição biográfica apresenta a divisão da
propriedade dos Bosco (1830) como o auge da luta contínua entre Margarida
e Antônio. Diz-se, com efeito, que Margarida, de acordo com seus irmãos
Miguel e Mariana e, talvez, também com o tutor dos meninos, João Zucca,3
estava querendo libertar João das pressões de Antônio, mas para isso seria
preciso esperar que este chegasse à maioridade (fevereiro de 1829). Há quem
tenha interpretado a situação como dramática, mas deve-se recordar que João
Zucca era o tutor legal dos órfãos Bosco, tanto de José e João quanto de An-
tônio, e que defenderia os direitos de todos. Além disso, como assinala Stella,
o fato de Antônio estar chegando à maioridade e pensar em se casar lança
nova luz sobre o assunto da divisão da herança, que não precisou ser neces-
sariamente dramática, mas inteiramente normal.4 Deve ter acontecido uma
reunião familiar e um plano, provavelmente concordado pelo tutor legal; a
repartição da herança, embora não fosse do agrado de Antônio, foi pactuada
como necessidade prática, também em vista do futuro casamento de Antô-
nio, que logicamente resistiria, pois o plano era desvantajoso para ele, mas,

2
Em um acréscimo aos Documenti I, 26, escrito à mão pelo padre Lemoyne, afirma-se que An-
tônio insultou Margarida chamando-a de “madrasta do diabo”, cf. ASC A0006: Lemoyne-Doc, FDB
966 C11. O fato é suavizado em MB I, 61.
3
Juan Zucca era aparentado com Francisco Bosco e sobrinho da mãe de Francisco (Margarida Zuc-
ca). Conforme o costume piemontês, o tutor passava a participar da linhagem do primogênito (de Antônio).
4
Trata-se de um comentário de P. Stella em Vita, 21, nota 41. Nos demais lugares, apesar disso,
Stella acredita que houve algum tipo de reunião familiar e que se adotou um plano para suavizar a
situação problemática (cf. P. Stella, Vita, 13, 21). O plano incluiria tanto afastar João de casa durante
algum tempo, como dividir a herança quando Antônio chegasse à maioridade. João Zucca, como re-
presentante legal, teria sido encarregado de intermediar o assunto com Antônio.

188

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As provações de um adolescente (1824-1830)

em última análise, seria obrigado a aceitá-lo, se os filhos menores, José e João,


o exigissem por meio do seu tutor legal.

João Bosco trabalha como empregado (1827-1829)


Entretanto, em 1827, dois anos antes da maioridade de Antônio, foi
preciso fazer alguma coisa para acalmar a tensa situação em casa. A solu-
ção foi tirar João do perigo, colocando-o como empregado. João foi enviado
primeiramente a um sítio chamado Câmpora, próximo à aldeia de Serra de
Buttigliera; isso não deu certo e ele precisou buscar outro lugar. Foi admitido
no sítio que os Moglia tinham no município de Moncucco, 5 quilômetros a
noroeste de Castelnuovo.
As datas deste período, 1827-1829, estão certas, mas os detalhes não
parecem tão certos.5 Dom Bosco não menciona esse episódio em suas Memó-
rias, e Lemoyne, não podendo obter informações sobre ele, oferece-nos uma
reconstrução errônea.
Sobre a primeira tentativa, no sítio Câmpora, Lemoyne escreve:

Parece que [antes de fevereiro de 1828] ele tivesse ido para a aldeia de Serra,
na localidade Buttigliera d’Asti, e que fosse acolhido e hospedado com muita
cordialidade pelos amigos de sua mãe; contudo, ao perceber que era de peso,
pois não sendo uma estação em que pudesse ser útil com seu trabalho, tenha
retornado a Murialdo.6

As palavras de Lemoyne, como Molineris evidenciou, referem-se a


um sítio chamado Câmpora, em Serra de Buttigliera. Era propriedade do
senhor Turco, de Castelnuovo, que, pode ser, fosse o amigo de Margari-
da mencionado por Lemoyne. O sítio era administrado por um meeiro;

5
Stella suprime, em um lugar, a fase Câmpora e situa o período fora de casa (como período
Moglia) de fevereiro de 1827 a novembro de 1829. Em outro lugar; ele distingue as duas fases, situan-
do a fase Câmpora no inverno de 1827 e a fase Moglia de fevereiro de 1828 a novembro de 1829 (P.
Stella, Vita, 13-17; id., Economia, 23. 29). Desramaut também anota a fase Câmpora e situa o período
Moglia de fevereiro de 1828 a 1º de novembro de 1829 (F. Desramaut, Don Bosco, 27). As pesquisas
de Molineris revelaram que João, no outono de 1827, estivera durante algum tempo num sítio iden-
tificado como o de Câmpora, em Serra di Buttigliera. Por outro lado, ele propõe de fevereiro de 1828
a novembro de 1829 o período Moglia e situa o primeiro tempo de serviço em Serra di Buttigliera
em 1827, sem especular sobre outras especificações (M. Molineris, Don Bosco inédito, 143-152). Tudo
considerado, pode-se adotar estes dados: (1) escola em Capriglio, 1824-1825 seguida de alguns anos de
brigas em casa; (2) Câmpora em Serra di Buttigliera, no início do inverno de 1827-1828; (3) Moglia
no território de Moncucco, fevereiro de 1828 a novembro de 1829.
6
MB I, 192.

189

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Dom Bosco: história e carisma 1

o gado estava aos cuidados de certo Antônio Bosco, simpático de caráter,


que mais tarde se alistou como soldado e acabou como vendedor de azeite
de oliva. Embora o trabalho não fosse pouco, a julgar pelo tamanho do
estábulo e do depósito de palha, não precisava de ajuda no inverno; assim
sendo, João precisou voltar para casa. Entretanto, a situação problemática
em casa não mudara. Por isso, em fevereiro de 1828, Margarida mandou
João procurar outro trabalho, primeiramente na aldeia de Baussone, onde
vivia certa família Zucca; caso falhasse ali, deveria ir adiante e perguntar na
casa dos Moglia, próxima de Moncucco. É interessante a história de como
João foi contratado pelos Moglia.7
Luís Moglia não tinha intenção de contratar o menino. Era comum
dar trabalho a meninos e adolescentes, como pastores ou mão de obra no
campo, mas, normalmente, os contratos eram feitos em 25 de março, festa
da Anunciação, ou depois, quando iniciava a estação do plantio. Isso se
fazia mediante negociações com a família do menino na feira de Castel-
nuovo. João pediu trabalho diretamente em fevereiro, ao menos um mês
antes do habitual. Essa circunstância, unida ao mau tempo, foi o principal
motivo pelo qual o senhor Moglia não se sentiu inclinado a contratá-lo,
fazendo-o só quando sua mulher interveio. A senhora Moglia, Doroteia
Filippello, era de Castelnuovo, certamente conhecida, e talvez amiga de
Margarida, diferente do que Lemoyne afirma.8 Os Moglia jamais tiveram
do que se arrepender.
Molineris apresenta uma relação da família do senhor Moglia no mo-
mento do contrato de João: constava de Luís Nicolau Moglia, proprietário
e capataz, de 29 anos; Doroteia, sua esposa, de 26 anos; Ana Francisca Ca-
tarina, a filha mais velha de 5 anos; Jorge Lourenço Maria, o menor, de 3
anos. Os Moglia tiveram outros filhos: um nascido durante a permanência
de João e outros quatro, nascidos mais tarde. Parece que já tinham morrido
o pai e a mãe do senhor Moglia. Outros membros da família também mo-
ravam com eles.9

7
MB I, 192-193.
8
MB I, 191.
9
Molineris menciona os seguintes: Ana, confundida às vezes com a filha Ana, e Teresa, irmãs
de Luís, de 18 e 15 anos, respectivamente, e João e José, tios de Luís. O padre Nicolau Moglia (talvez
também tio de Luís e professor ativo na região) vivia no sítio provavelmente apenas durante as férias
de verão. Esse padre deu algumas aulas a João e, em 1831, quando João ia à escola de Castelnuovo,
substituiu padre Virano como professor. Em Castelnuovo não gostou nada de João e tornou-lhe a vida
impossível. Cf. MO, 51.

190

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As provações de um adolescente (1824-1830)

Os filhos de Luís, Ana e Jorge, são nossas fontes principais para o


período Moglia. Padre Segundo Marchisio, enviado pelo padre Lemoyne,
entrevistou-os depois da morte de Dom Bosco em 1888.10 Em 1892, Jorge
Moglia testemunhou no processo diocesano de beatificação.11 É impro-
vável que o testemunho dessas pessoas, ainda crianças na época em que
João vivia na casa dos Moglia, trouxessem recordações diretas; contudo,
certamente ouviram os mais velhos falarem daquele estupendo rapaz pelo
qual se cativaram.
O período da permanência com os Moglia foi, externamente, livre
de preocupações. As obrigações de João, como auxiliar na estrebaria e en-
carregado das vacas, consistiam em manter o estábulo limpo e fazer com
que os animais tivessem comida, água e pasto. Fazia, também, pequenos
trabalhos no sítio, como cuidar das videiras. Não é provável que lhe fosse
pedido para fazer serviços pesados. Recebeu o salário costumeiro e, tam-
bém, uma bonificação.12 As refeições, o quarto e a cama eram certamente
melhores do que os de sua casa. Era querido e gozava de considerável liber-
dade e descanso para suas leituras e devoções. Tinha liberdade para assistir
a primeira missa na igreja paroquial de Moncucco e reunir alguns meninos
numa espécie de oratório.13
Sem dúvida, o período dos Moglia pode ter sido uma dura prova para
João. Embora não se tenha certeza, parece que ficou afastado da família. Al-
guém se pergunta se ele foi ocasionalmente à sua casa ou se a mãe o visitava.
Apesar disso, a julgar pelas informações dos filhos dos Moglia, esse período
parece ter sido para João um momento de crescimento na “maturidade, sa-
bedoria e graça”.

O retorno de João
A permanência com os Moglia terminou inesperadamente para João
– presumivelmente, porém, de acordo com o “plano” que se mencionou
– com a intervenção de seu tio, Miguel Occhiena. Aconteceu em 3 de no-
vembro, depois da festa de Todos os Santos, quando terminava o segundo

10
O relato do padre Marchisio encontra-se em ASC A008s: Cronachette, Marchisio; FDB 1,203
D1-E4. Estes testemunhos facilitaram a Lemoyne “reconstruir” de alguma forma este período. Cf. MB
I, 191-196. O relato afirma que as meninas Moglia também participavam das aulas de catecismo de
João. Lemoyne cuidadosamente “expurga” a informação.
11
O testemunho de Jorge Moglia dá-se em POTC, Sessão 93, 10 de julho de 1892; está em ASC
A 265s: Deposizioni dei testi; FDB 2, 135 E2-9. Tinha 67 anos na época. Morreu em 1923 aos 98 anos.
12
MB I, 206.
13
MB I, 200-202.

191

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Dom Bosco: história e carisma 1

ano do contrato. Entretanto, Antônio chegara aos 21 anos em fevereiro do


mesmo ano.
Parece que tio Miguel foi escolhido como “mediador”. De passagem
por Chieri, pode ter acertado o fim do contrato de João com Luís e Doro-
teia Moglia; como resultado, João foi embora naquele mesmo dia. À tarde
já estava em casa, mas Margarida repreendeu-o por abandonar seus pa-
trões, presumivelmente apenas para contentar Antônio como pensa tam-
bém Lemoyne.14
Quando o tio Miguel chegou, a família precisava informar Antônio so-
bre o que se pensava fazer. Que ele se tenha oposto à proposta de dividir a
herança pode-se afirmar pelo fato de que, no ano seguinte, continuou a ser
o problemático contendor (1829-1830), enquanto João estudava com pa-
dre João Calosso. Enfim, talvez pela intervenção de João Zucca, ele se tenha
convencido. Antônio deixou de ser um fator a levar em conta depois da re-
partição da herança em 1831. O período das tensões com Antônio abrangeu,
portanto, os anos 1826-1830.
Poucos dias depois de retornar do sítio Moglia, João encontrou-se com
o padre João Calosso, que o tomou sob a sua proteção como professor e
diretor espiritual.

Sítio dos Moglia.

14
MB I, 202.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

O silêncio de Dom Bosco sobre esse período


Dom Bosco fala, nas Memórias do Oratório, sobre o conflito com Antô-
nio e do encontro com o padre Calosso e do ano que se seguiu. Contudo, não
faz referência ao período intermédio, os dois anos que viveu como emprega-
do; omissão que não pode ser um lapso de memória.
Os historiadores salesianos ofereceram diversas explicações. Ceria pensa
que Dom Bosco omitiu o episódio em respeito à memória de sua mãe.15
Klein, que comenta este ponto de vista, acredita que a omissão foi devida
mais ao engano na datação do encontro com padre Calosso, não dando es-
paço para inserir o período Moglia.16 Desramaut coloca a razão da reticência
de Dom Bosco na penosa experiência, por vergonha de ter sido ajudante de
estrebaria ou para evitar a exposição de sua mãe numa situação delicada.17
João, talvez, visse a si mesmo como vítima de uma situação injusta, sentindo
a ação de sua mãe como uma rejeição; a experiência pode ter sido incômoda
para ele durante anos. As Memórias, embora escritas quando Dom Bosco
já tinha 60 anos, mostram tensão emocional em muitas páginas.18 Todavia,
talvez, a omissão, mais uma vez, foi simplesmente pelo fato de o episódio
não se encaixar bem no programa traçado por Dom Bosco ao escrever as
Memórias, que não era outro senão fazer uma apologia do Oratório e do seu
método educativo.19

15
MO Ceria, 38-40, nota 40.
16
J. Klein - E. Valentini, Una rettificazione, 581-610.
17
F. Desramaut, Don Bosco, 38, nota 88, citando seu trabalho anterior, MB I, 179, nota 10, e 421-425.
18
Convém recordar que uma das objeções contra a heroicidade das virtudes de Mamãe Margari-
da foi o fato de ter afastado João da família para trabalhar no sítio dos Moglia. Os objetores assinalam
quatro aspectos: 1) parece estranho que Mamãe Margarida se decidisse a dar um passo radical, levando
em conta que a situação não era tão dramática; 2) a decisão da mãe seria justificada no caso de ser diri-
gida a garantir a possibilidade de estudo do filho, mas neste caso só serviu para afastar João do irmão,
não para que estudasse; 3) Joãozinho não ficou nada entusiasmado com a decisão de sua mãe; 4) a pe-
nosa questão terminou graças à intervenção de Miguel, mas chama atenção a dureza da mãe quando o
filho retornou à casa depois de quase dois anos de ausência: em vez de mostrar-lhe afeto “repreendeu-o
e não quis aceitar as justificativas” e, coisa estranha, “ordenou-lhe que retornasse ao lugar de onde tinha
vindo para continuar fazendo o seu trabalho”. A atitude da mãe diante de um menino de 12 anos não
parece um exercício de prudência heroica. Por outro lado, neste caso, nem mesmo se garante a justiça.
Margarida defendeu o enteado em detrimento do filho. Defender o mais forte e pôr em dificuldade o
mais fraco não parece ser um ato de justiça heroica. A resposta dos promotores da Causa foi que inicia-
tivas desse tipo eram normais na práxis do século XIX por questões de trabalho ou economia familiar;
que a distância entre os Moglia e os Becchi era relativamente pequena e que, portanto, não supunha
nem uma imprudência nem uma crueldade por parte da mãe (Votos dos Consultores Teólogos). Cf. J.
G. González, Don Bosco: un apunte, 87.
19
Lemoyne fala da atividade oratoriana de João enquanto estava com os Moglia e na aldeia de

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Dom Bosco: história e carisma 1

Lemoyne não pôde obter nenhuma informação de Dom Bosco sobre o


tema, e a entrevista do padre Marchisio com os filhos de Moglia em 1888 só
acrescentou alguns episódios que eram insuficientes para a reconstrução bio-
gráfica do período. Lemoyne, então, fez o que pôde: colocou a reunião com
o padre Calosso em 1826, seguindo as Memórias de Dom Bosco, e as aulas,
três anos mais tarde (!), com o período de serviço de ajudante de estrebaria
entre as duas situações. Abstém-se de fazer especulações.

Encontro de João Bosco com padre João Calosso


Cada aldeia de Castelnuovo, e Murialdo era uma delas, tinha sua capela
em funcionamento com um pequeno benefício de terra. A de Murialdo, de-
dicada a São Pedro, era simplesmente um templo, não igreja paroquial. Essas
capelas ofereciam serviços religiosos ou ficavam vacantes durante algum tem-
po, dependendo de algum padre aceitar o cargo. Em 1825, essas capelanias
estavam vacantes, mas há documentos que informam que, de 1825 a 1828,
trabalhando em Buttigliera, certo padre Franco, encarregava-se das funções
da capela de Murialdo.
No verão de 1829, padre Calosso, com quase 70 anos, veio para Mu-
rialdo como capelão quando João Bosco ainda trabalhava no sítio Moglia.
O benefício da capela tinha sido aumentado pelo generoso donativo de um
senhor do lugar, Espírito Sartoris, cuja família vivia em Turim. João retornou
aos Becchi em 13 de novembro de 1829.
Como informa nas Memórias, encontrou-se com padre Calosso quando
este era capelão havia apenas alguns meses.20 Dom Bosco afirma que o en-
contro aconteceu por ocasião de uma “missão” paroquial, pregada em Butti-
gliera. Na realidade, o encontro se deu por ocasião da pregação de um jubi-
leu. Em 31 de março de 1829, o Papa Pio VII sucedia ao Papa Leão XII, que
morrera em 10 de fevereiro.21 A fim de implorar a proteção divina, o novo
Papa proclamou um jubileu especial.22

Moncucco. Onde ele obteve essa informação? Deve ser idêntica à finalidade das Memórias. Sobre as
razões da omissão, ver as observações de P. Stella, em Vita, 16, nota 30.
20
MO, 43.
21
Leão XII, Aníbal della Genga, nasceu em 22 de agosto de 1760; foi eleito papa em 28 de setem-
bro de 1823; morreu em 10 de fevereiro de 1829. Pio VII, nascido Francisco Xavier Castiglioni em 20
de novembro de 1761, foi eleito papa em 31 de março de 1829; morreu em 30 de novembro de 1830.
22
Deve-se distinguir este jubileu especial do jubileu ordinário que fora celebrado quatro anos
antes no Ano Santo de 1825 e que, em seguida, Leão XII ampliou até o ano de 1826.

194

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As provações de um adolescente (1824-1830)

Nas Memórias, Dom Bosco, além de não mencionar o período Mo-


glia, eliminando assim os anos 1827-1829, situa o encontro com padre
Calosso em 1826. Pode ser que a lembrança do jubileu regular, ampliado
por Leão XII (1825-1826), o tenha induzido ao erro. Dom Bosco não
faz menção das celebrações do Ano Santo; ele fala simplesmente de uma
“missão”.23
Em 1829, Pio VIII decretou a celebração de um jubileu especial e
a obtenção de indulgências de acordo com as disposições dos ordinários
locais. O arcebispo de Turim, dom Columbano Chiaveroti, fixou as datas
8-22 de novembro para a sua diocese. O tríduo foi celebrado na igreja
paroquial de Buttigliera como preparação para cumprir as condições do
jubileu, nos dias 5 a 7, quinta-feira a sábado.24 Devido à ocasião especial,
o povo dos arredores também participou. Foi assim que padre Calos-
so, da aldeia de Murialdo, e o jovem João Bosco, da aldeia dos Becchi,
encontraram-se pelo caminho, depois da celebração, na tarde do dia 5 de
novembro de 1829.
Padre Calosso, admirado pelo espírito e inteligência de João, convidou
Margarida e seu filho para uma conversa: João começou a participar das au-
las na reitoria quase imediatamente. De início, ele ia às aulas pela manhã,
bem cedo, voltando para trabalhar no campo o resto do dia. Esse acerto
satisfez Antônio só por pouco tempo. Como Antônio não se acalmava, João
começou a estudar com padre Calosso em tempo integral, sendo também seu
ajudante. Quando, porém, parecia que o futuro do menino estava garantido,
pois o bom padre decidira assumir sua educação, aconteceu a tragédia. Padre
Calosso morreu repentinamente de uma hemorragia cerebral em 21 de no-
vembro de 1830.
Eis a seguir, resumida, a reconstrução dos anos 1826-1830.

MO, 40. A identificação dos jubileus foi feita por Klein-Valentini, citados na nota 16.
23

Buttigliera, município com cerca de 2 mil habitantes na época, situa-se a uns 4 quilômetros a
24

oeste dos Becchi e 3 quilômetros a sudeste de Castelnuovo. João Bosco recebeu ali a Confirmação, em
14 de agosto de 1833.

195

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Dom Bosco: história e carisma 1

Memórias do Oratório Reconstrução Reconstrução


de Dom Bosco de Lemoyne crítica
Problemas com Antônio Problemas com Antônio (an-
Problemas com Antônio
(antes e depois de 1826).25 tes e depois de 1826)29. (1826-1827, 1829-1830).
[Período Câmpora - Mo- Período Câmpora-Moglia Período Câmpora-Moglia
glia, omitido.] [subentendido]. (1827-1829).
Encontro com padre João Encontro com padre João Tio Miguel faz João sair
Calosso por ocasião do Calosso na “missão” (1826) do sítio Moglia e voltar
sermão na missão em de Buttigliera. 30 para casa (3 de novembro
Buttigliera (1826).26 Aulas iniciais com padre João de 1829).
Ano com padre João Calosso.
Calosso com oposição Aulas descontínuas, porque Encontro com padre João
contínua de Antônio (pre- Antônio “proíbe estudos pos- Calosso por ocasião do
sumivelmente de acordo teriores” (1826-1827).31 Jubileu, em Buttigliera
com as datas de cima, Período Câmpora-Moglia (6 de novembro de
1826-1827).27 (1827-1829). 32
1829).
[Menção do Jubileu conce-
dido por Pio VIII em 1829 Ano com padre João Ca-
e os sucessos religiosos (sem losso (oposição contínua
qualquer conexão com a histó- de Antônio) novembro de
ria de João]).33 1829-novembro de 1830.
Tio Miguel faz com que
João deixe o sítio dos Moglia
e volte para casa. Miguel e
Margarida pedem ao pároco
Dassano (não Calosso!) que
dê aulas a João, mas o pároco
se recusa.34
Padre João Calosso se oferece
para acolher João novamente
como aluno. Ano com padre
João Calosso.35
Morte do padre João Ca- Morte do padre João Calosso Morte do padre João Ca-
losso (abril de 1828!) e as (novembro de 1830) e as losso (11 de novembro de
consequências.28 consequências.36 1830) e as consequências.

25
MO, 27, 42-43, 44, 49.
26
MO, 40-43.
27
MO, 44-45.
28
MO, 45-46.
29
MB I, 24, 30, 69s, 94, 99-100.
30
MB I, 176-180.
31
MB I, 181-183.
32
MB I, 191s.
33
MB I, 177.
34
MB I, 181-189.
35
MB I, 185-188.
36
MB I, 187-188.

196

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As provações de um adolescente (1824-1830)

A divisão da herança Bosco


No outono-inverno de 1830, depois da morte do padre Calosso, segun-
do as Memórias de Dom Bosco e Lemoyne, Margarida decidiu realizar seu
projeto. O “plano” era dividir a herança Bosco, que dizia respeito aos três
filhos Bosco.37 A questão deve ser compreendida como normal, não como um
complô.38 Parece que a repartição da herança foi feita pacificamente. Marga-
rida e sua irmã Mariana empenharam seus modestos bens a fim de que fosse
menos doloroso para Antônio.39
Os bens mais importantes na herança eram a pequena casa e a terra. A
pequena casa foi assim dividida: a metade leste, que compreendia o quarto
principal, a pequena escada, o estábulo e o depósito de lenha, substituído
atualmente pela escada que leva aos quartos, couberam a Antônio. Para os
pequenos José e João, Margarida ficou com a outra metade, que compreendia
a cozinha e a sala, o pequeno quarto do sonho, ao qual se chega da cozinha
por uma escada interior, o pequeno galpão e o depósito de feno.
Quanto à terra, o patrimônio compreendia nove pequenas parcelas de
terra, quatro vinhedos e quatro campos de cultivo ou prados; uma área me-
nor, a nona, não foi identificada.40 Não se sabe como essas parcelas foram
divididas entre Antônio e José-João juntos. Sabemos que em 1840, quando
as partes de José e de João foram inventariadas para cobrir o dote eclesiástico
de João Bosco, somente três das oito parcelas entraram na lista: um vinhedo,
uma terra de cultivo e um prado. No total, com a pequena casa, a avaliação
não chegou nem de longe ao necessário para o dote.41
Como João e José optaram por manter em comum o que lhes coube,
deduzimos que a terra foi dividida em três porções, das quais Antônio fi-
cou com um terço. Essas porções, talvez apenas suficientes para uma pessoa,
eram claramente insuficientes para uma família, como no caso de Antônio,
que estava para se casar. Segue-se que, além de trabalhar suas próprias terras,
provavelmente ele se viu forçado a também trabalhar como empregado. José,
que manteve as porções de João e as suas, teve mais sucesso. Ele tinha como
ajudantes Margarida e João. Meses depois, tornou-se meeiro no sítio de certo

37
Sobre a repartição da herança dos Bosco ver: M. Molineris, Don Bosco inedito, 121-122, e
artigos em Il Tempio di Don Bosco 17 (1963), 120-121; 19 (1965), 134-138; F. Desramaut, Don Bosco,
32. Sobre a propriedade Bosco ver P. Stella, Economia, 15-22.
38
MB I, 215-216.
39
MB I, 215.
40
P. Stella, Economia, 15.
41
P. Stella, Economia, 19-21.

197

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Dom Bosco: história e carisma 1

senhor Matta, em Sussambrino, ao sul, não distante de Castelnuovo; foi uma


necessidade e uma oportunidade.
Antônio viveu sozinho por pouco tempo na sua parte da pequena casa.
Em 22 de outubro de 1831, casou-se com Ana Rosso, de Castelnuovo; de-
pois construiu no pátio uma casa com um quarto, que seria demolida em
1915 para dar lugar à capela de Maria Auxiliadora (o pequeno santuário).
Continuou a usar o quarto da pequena casa e, quando sua família aumentou,
Margarida permitiu-lhe usar também outros quartos.
Margarida, José e João viveram na sua parte da casa até que José foi para o
sítio de Sussambrino em março de 1831. Margarida e João foram viver com ele.42
A divisão da herança, depois da trágica perda do padre Calosso, foi um
ponto de partida significativo. Como Antônio já não contava, João pôde sen-
tir-se livre para continuar sua formação na escola elementar de Castelnuovo.

2. A adolescência problemática de João Bosco


A história das tensões em casa e do trabalho longe dela demonstraria
que, para João, os anos 1825-1829 foram cheios de dores de cabeça e incer-
tezas. É certo que aquelas experiências dolorosas não destruíram seu espírito,
mas ele não saiu totalmente ileso dessas tribulações.
O ano de João com o bondoso padre Calosso foi feliz e memorável, até
que a morte repentina rompeu o relacionamento. O bom padre chegara a ser
uma figura importante, tão satisfatória que João sofreu sua perda a ponto de
ficar doente e ser repreendido em sonho.43
Antes de comentar a experiência de João com padre Calosso, parece
apropriado um comentário geral.

42
Mesmo depois da morte de José (1862), as propriedades de João e de José continuaram in-
divisas. Alguns meses antes de sua morte (31 de janeiro de 1888), Dom Bosco pensou em colocar em
ordem todos os seus assuntos legais e chegou a um acordo com os filhos de José. Um deles, sobrinho de
Dom Bosco, Luís, que tinha levado vida “escandalosa” e, por isso, foi proibido de entrar no Oratório,
moveu uma ação contra Dom Bosco. Mas também ele morreu em 6 de fevereiro de 1888.
43
MO, 48.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

Capela de São Pedro, de Murialdo, onde padre João Calosso era capelão.

A ausência de um pai e a presença de uma mãe


Como a perda do pai na infância afetou o desenvolvimento psicológico
de João? A ausência do pai na infância e adolescência é considerada um sé-
rio obstáculo no desenvolvimento psicológico da criança. Para João, a perda
foi agravada por causa da situação em que se encontrou a família chefiada
por Margarida. A mãe precisou entregar-se a longas jornadas de trabalho no
campo, distante de casa para pôr comida na mesa de uma família que incluía
a sogra doente. Durante dois anos ela lutou contra a estiagem e a carestia,
e depois, com mais dias de pobreza e dificuldades, sem mencionar todos os
outros problemas e pressões. A avó Margarida Zucca vigiava os meninos, mas
uma avó não pode substituir uma mãe.
Além disso, diz-se, a perda do pai nunca pode ser compensada com a
presença da mãe, não importa o quanto seja dedicada e capaz. Não resta
dúvida de que Margarida conseguiu dar apoio sereno e orientação segura
pela compreensão instintiva da situação, a robusta fé religiosa, os sólidos

199

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Dom Bosco: história e carisma 1

princípios e as opções corajosas. Por outro lado, a imagem positiva que a


mãe tenha do pai e que repasse à criança, pode proporcionar uma com-
pensação substancial. Que era esse o caso pode-se deduzir do fato de João
demonstrar, desde a infância, coragem incomum e autodomínio acom-
panhado do sentido de realidade, dever e sacrifício pessoal. Esses traços
evidenciam a presença construtiva da mãe. Lemoyne o atribui à sabedoria
e ao estilo educativo de Margarida.44
Margarida teve um papel-chave como mãe também em outra área im-
portante. Na primeira infância, assim dizem os psicólogos, a criança precisa
de uma pessoa adulta com quem relacionar-se. Normalmente, é a mãe. Dessa
forma, as relações da criança com sua mãe determinam o sentido de si mesmo
e suas relações com o mundo exterior.
Há sinais claros de que as relações de João com sua mãe na infância
foram “construtivas”; o instinto materno de Margarida ajudou João a pro-
gredir até o próprio desenvolvimento normal e a própria maturidade. João
desenvolveu um forte ego, autoconfiança e capacidade de relacionar-se com
os outros. Jamais aparece deprimido ou retraído, mas dotado de uma perso-
nalidade forte, reflexiva, ativa e feliz. Testemunham-no algumas passagens
das Memórias, como quando fala da sua ascendência entre os companheiros,
inclusive entre os adultos, ou da sua habilidade de divertir como saltimbanco
ou atleta.45

A figura do pai
A vida de família no Piemonte, embora não matriarcal, fundamentava-
-se principalmente na figura materna. A relação pai-filho era secundária. Os
psicólogos, dizem-nos hoje, que uma relação muito exclusiva é danosa para
a criança; por isso, aconselha-se aos pais que abandonem seus papéis fixos
(a mãe cria e educa, o pai trabalha e ganha). A perda do pai na primeira
infância de João deixou um vazio que precisava ser preenchido, ao menos
parcialmente.
Não havia nenhuma figura paterna que o ajudasse a regularizar a vida?
João vivia numa família restrita; mas a família ampliada não se tinha afastado
muito; de modo que, presumivelmente, os homens, como os tios Francisco
e Miguel Occhiena além do tutor legal João Zucca – os Bosco não se con-
tam nesse aspecto – puderam preencher o vazio, ao menos, até certo ponto.

44
MB I, 38-39.
45
Cf. MO, 35-37, 54-56.

200

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As provações de um adolescente (1824-1830)

A presença construtiva da mãe uniu-se à presença da imagem paterna numa


situação em que se estabelece uma relação emocional recíproca. No caso de
João, Antônio fica logo desqualificado e os homens da família alargada conti-
nuavam apegados ao papel tradicional, muito significativo, mas rígido. Lon-
ge de estar presentes numa relação pessoal significativa, eles estavam com
toda probabilidade ordinariamente ausentes.46
João, porém, teve a fortuna, à medida que crescia, de encontrar padres
que podem ser qualificados de imagem paterna. Padre João Calosso foi, na
verdade, uma das figuras de pai, e tão destacado, que entrou na vida de João.

Padre João Calosso e o jovem João Bosco: uma relação de pai e filho
João, agora adolescente de 15 anos, encontrou no padre Calosso o “bom
pai” de que precisava e desejava havia muito tempo. Padre Calosso tinha ex-
periência psicológica suficiente para compreender o problema de João que,
nessa idade, se encontrava em meio à crise da adolescência. Por outro lado, o
bom, mas provavelmente desencantado padre, viu-se carente de um filho de
quem pudesse ser pai e viu a oportunidade de fazer alguma coisa de valor e
que preenchesse sua velhice. Uma relação profunda e recíproca floresceu de
imediato. Dom Bosco expressa-se em termos muito enfáticos:

O padre Calosso tornou-se um ídolo para mim. Queria-o mais que a um


pai, rezava por ele. Era um prazer imenso trabalhar para ele e até dar a vida
por algo que fosse do seu agrado [...]. O homem de Deus afeiçoara-se tanto
a mim que chegou a dizer-me por diversas vezes: “Não te preocupes com o
teu futuro. Enquanto eu estiver vivo, nada te faltará. Se morrer haverei de
providenciar da mesma forma”.47

Padre Calosso estava claramente decidido a prover a educação de João e


pretendia tomar as medidas oportunas no caso de sua morte. Foi ainda mais
decisivo ter iniciado João na vida espiritual. Dom Bosco escreve: “Fiquei sa-
bendo assim quanto vale um guia estável, um fiel amigo da alma, que até en-
tão não tivera”.48 Não admira, portanto, que a morte do padre Calosso fosse
tão traumática para ele. Escreve:
A morte do padre Calosso foi para mim um desastre irreparável. Eu chora-
va desconsolado o benfeitor falecido. Acordado, pensava nele, dormindo, com

46
Cf. G. Dacquino, Psicologia di Don Bosco, 19-32.
47
MO, 45.
48
MO, 43.

201

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Dom Bosco: história e carisma 1

ele sonhava; as coisas chegaram a tal ponto que mamãe, temendo pela minha
saúde, mandou-me passar uma temporada com meu avô em Capriglio.49
O relacionamento de João com padre Calosso foi truncado tragicamente.
A ânsia com que João buscava a figura de um pai e a verdadeira direção espi-
ritual não se satisfez enquanto não passou à influência do padre José Cafasso.

Conclusão
Muitos e importantes valores espirituais emergem das experiências de
Dom Bosco em seus primeiros anos. Ele não só superou sérias dificuldades,
não só passou por muitas provações penosas. O modo com que encarou essas
desventuras configurou o seu caráter e tornou-o muito mais firme em busca
de seus objetivos. Longe de dilacerar-se por elas, aprendeu a paciência e a
confiança em Deus; adquiriu a percepção da proximidade de Deus e da sua
realidade, o sentido da oração.
Entretanto, as experiências da infância de Dom Bosco foram também
formativas do ponto de vista vocacional. Desde os inícios e durante a vida
toda, ele se considerou chamado a ocupar-se dos jovens abandonados e ór-
fãos. A partir da sua experiência pessoal, sentiu-se irresistivelmente atraído
por eles e conservou uma profunda compreensão pela desventura deles. Sua
resposta emocional às necessidades dos jovens era imediata e imperativa. Seu
desejo pessoal de um pai ou da figura de um pai, fez com que se sentisse cha-
mado por vocação ao papel de pai dos jovens necessitados.

49
MO, 48. 202

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Apêndice

CRONOLOGIA CORRIGIDA ATÉ 183150

1820 Janeiro: a Revolução na Espanha restaura a Constituição de 1812.


Julho: revolução, fomentada pelos carbonários e outras sociedades
secretas, na Sicília e em Nápoles, obrigando Fernando I a conceder
a Constituição.
1821 10 de março: a Revolução estoura no Piemonte (Alessândria) obri-
gando o príncipe Carlos Alberto, regente, a conceder a Consti-
tuição. A Revolução é aniquilada com a intervenção da Áustria.
A Constituição é abolida. Carlos Alberto renuncia à regência e
exila-se voluntariamente.
1822 23 de julho: o rei Carlos Félix publica um decreto para a reforma
escolar. Elimina o sistema napoleônico e reorganiza as escolas públi-
cas do reino. O ensino fundamental, de dois anos, torna-se obriga-
tório para as crianças a partir de 7 anos, em sua própria localidade.
1823 João aprende os rudimentos da leitura e da escrita com um agri-
cultor de sua aldeia. Antônio parece que aprendera, ou aprenderia
mais tarde, os rudimentos, o que não aconteceu com José.
Quaresma? Margarida prepara João, que completou 7 anos, para a
primeira confissão, e o acompanha.
1824 Novembro de 1824 – março de 1825: João vai à escola do padre
Lacqua, em Capriglio, nesse inverno e talvez, ocasionalmente, no
seguinte. Vê-se obrigado a interrompê-lo, porque Antônio se opõe.
Começa o enfrentamento com Antônio pelos estudos.
1825 Entre 9 e 10 anos, João tem o “sonho da vocação”. Ele começa a
reunir seus companheiros nos campos para o catecismo e a diversão.
1826 11 de fevereiro: morte da avó de João, Margarida Zucca.

50
As datas que seguem refletem a cronologia estabelecida no comentário anterior.

203

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Dom Bosco: história e carisma 1

1827 28 de fevereiro: João inicia as aulas diárias de catecismo da Quares-


ma, preparando-se para a primeira Comunhão na igreja paroquial
de Castelnuovo.
15 de abril (na Páscoa ou durante o tempo pascal): João, aos 11 anos,
recebe a primeira Comunhão na igreja paroquial de Castelnuovo.
Inverno: depois de um período de duro “enfrentamento” com Antô-
nio, João é enviado a trabalhar como ajudante de estrebaria no sítio
Câmpora de Serra di Buttigliera.
1828 Fevereiro: João é contratado como ajudante no sítio Moglia, em
Moncucco, onde trabalha até novembro de 1829.
Inverno: o senhor Moglia permite que João vá às aulas do padre
Francisco Cottino, pároco de Moncucco.
1829 Verão: padre Calosso, aos 70 anos, é nomeado capelão da igreja de São
Pedro de Murialdo.
31 de outubro: o tio de João, Miguel Occhiena, vai ao sítio Moglia e
organiza o retorno de João à sua casa nos Becchi (3 de novembro).
5-7 de novembro: tríduo em Buttigliera em preparação ao Jubileu pro-
clamado por Pio VIII, ao suceder Leão XII.
5 de novembro, quinta-feira: ao voltar de Buttigliera, João encontra-se
com padre Calosso, capelão de Murialdo, e conversa com ele.
8 de novembro, domingo: Margarida leva João em visita ao padre Calos-
so, e começa a estudar italiano com ele; e, pelo natal, também latim.
1830 Março: pressionado por Antonio, João, depois de passar a parte da
manhã com padre Calosso, trabalha o resto do dia no campo.
11 de abril, Páscoa: João começa a traduzir textos do latim e fica o
dia todo com padre Calosso.
29 de junho ou 26 de julho ou 10 de outubro: João, em Murialdo, en-
contra-se com o seminarista José Cafasso, de Castelnuovo. A capela
de Murialdo era dedicada a São Pedro (29 de junho); Sant’Ana (26
de julho) era uma das patronas do lugar. As duas festas são celebra-
das com uma feira. Dom Bosco escreve que foi na maternidade de
Maria (10 de outubro de 1830), “para eles a solenidade principal”.
Setembro: João começa a morar na casa do padre Calosso.
21 de novembro: morre padre Calosso aos 71 anos de idade. João
declina do dinheiro do padre Calosso, entregando a chave do cofre
aos seus parentes.
Dezembro: deprimido e abatido pela perda, João é mandado à casa
de parentes em Capriglio e é censurado em sonhos.
Fim do ano: repartição da herança Bosco (casa, terras, animais,
ferramentas, pertences, dinheiro) entre os três irmãos: José e João
mantêm em comum o que lhes coube.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

1831 Primavera: José Bosco, com o colega José Febbraro, torna-se ad-
ministrador-meeiro no sítio Matta, em Sussambrino. Margarida e
João também vivem ali.

NOTA BIOGRÁFICA DE ANTÔNIO JOSÉ BOSCO,


MEIO-IRMÃO DE DOM BOSCO (1808-1849)

Francisco Luís Bosco (1784-1817), residindo no sítio Biglione, casou-se


aos 21 anos com Margarida Cagliero (1783-1811) em 4 de fevereiro de 1805.
Seu primeiro filho, Antonio José, nasceu em 3 de fevereiro de 1808; Maria
Teresa nasceu em 16 de fevereiro de 1810, mas morreu dois dias depois. Mar-
garida Cagliero também morreu um ano depois, em 28 de fevereiro de 1811.
Em 6 de junho de 1812, Francisco Bosco casou-se em segundas núpcias com
Margarida Occhiena e teve dois filhos (José Luís e João Melquior), vindo a
falecer em 11 de maio de 1817, deixando também órfão Antônio com 9 anos
de idade.
Antônio nasceu em 1808, e não em 1803 como dizem Lemoyne e todos
os biógrafos depois dele.51 O engano pode vir de uma carta de 1885 de Fran-
cisco Bosco, um dos filhos de José, ao padre Bonetti, em que equivocadamen-
te dá a data de 3 de fevereiro de 1803.52 Isso corrige a imagem de um jovem
de 22 anos, que briga e acusa um adolescente de 10. Em 1825, quando João
tinha 10, Antônio era um jovem de 17 anos desajustado e, provavelmente
um tanto desequilibrado, que tentava entender o que se passava ao seu redor.
Antônio aprendera a ler e escrever. As certidões de nascimento de últi-
mos filhos trazem a sua assinatura; esses documentos começaram a ser exi-
gidos depois de 1842. O irmão de Dom Bosco, José, porém, assinava os
documentos sempre com uma cruz diante de testemunhas. Suscita, então,
perplexidade que Dom Bosco afirme que seu irmão era um rude analfabeto.53
Depois da divisão da herança de Francisco Bosco entre os filhos (1830),
Antônio casou-se com Ana Rosso, de Castelnuovo, em 22 de março de 1831.
Tiveram sete filhos: Francisco (1832), Margarida (1834), Teresa (1837), João
(1840), Francisca (1843), Nicolau (1845), Catarina (1848), sobrinhos e so-
brinhas de Dom Bosco na linha de seu meio-irmão. Dos homens que so-
breviveram, Francisco (1832-1920) não deixou descendentes homens. João

51
MO, 47
52
Cf. MB I, 25. Essa também é a data que Lemoyne apresenta na biografia de Margarida Bosco.
53
Cf. P. Stella, Vita, 10, nota 16 referida ao texto.

205

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Dom Bosco: história e carisma 1

(1840-1878) teve 4 filhos, dos quais apenas Antônio (II) (1879-1956) conti-
nuou a linhagem da família Bosco.
Antônio construiu uma casa com um só quarto alguns metros a noroeste
da “pequena casa”. Conserva-se um desenho nos arquivos. O lugar servia de
cozinha durante o dia e dormitório das crianças durante a noite, enquanto
os pais dormiam no “quarto principal” da pequena casa, o que foi permitido
por Mamãe Margarida.
Não se sabe como Antônio conseguiu manter uma família tão grande,
com as parcelas de terra que lhe corresponderam na divisão da herança. É
provável que também trabalhasse como emprego assalariado. Em todo caso,
a família viveu em extrema pobreza.
Aos poucos, os descendentes dos Bosco, tanto os de Antônio como os
de José, deixaram os Becchi e foram para outros lugares. Entre 1891 e 1926
suas propriedades foram doadas aos salesianos ou compradas por eles: a parte
da pequena casa correspondente a Antônio foi doada pelos descendentes, em
1919; os de José fizeram o mesmo, em 1926. Em 1929, o histórico centro,
incluindo a casa Cavallo-Graglia e a maior parte da colina, com a proprieda-
de Biglione, já estavam nas mãos dos salesianos.
O Reitor-Mor padre Felipe Rinaldi projetava fazer de toda a colina um
santuário salesiano em vista da beatificação de Dom Bosco (1929). A casa de
Antônio foi demolida em 1915, para dar lugar ao pequeno Santuário de Ma-
ria Auxiliadora, construído entre 1915 e 1918, para comemorar o centenário
do nascimento de Dom Bosco e a instituição da festa de Maria Auxiliadora.54
Antônio morreu quase repentinamente em 18 de janeiro de 1849 aos
41 anos, depois de breve enfermidade. Antônio já não figura na história de
Dom Bosco desde 1831; pode-se ter a impressão de que os dois irmãos conti-
nuaram sempre separados, mas não foi essa a realidade. É provável que tenha
havido algum tipo de reconciliação. As afirmações de Lemoyne nas Memórias
Biográficas devem ser mitigadas:

Seu meio-irmão Antônio que, às vezes, vinha ao Oratório para visitar Mamãe
Margarida e Dom Bosco, morria em 18 de janeiro [de 1849]. Depois de al-
guns dias de mal-estar, que não parecia grave, morreu quase repentinamente
[...]. [Dom Bosco], que não deixara fugir qualquer ocasião para demonstrar
o seu afeto sincero pelo irmão Antônio, seu opositor, assumiu solicitamente
o cuidado de seus 2 filhos. A um deles, Francisco, acolheu no Oratório para

54
A festa de Maria Auxiliadora dos Cristãos foi estabelecida pelo Papa Pio VII em 1815, depois
da derrota de Napoleão, em ação de graças pela sua libertação da prisão.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

aprender o ofício de marceneiro e o formou como um bom cristão. O outro,


que continuou nos Becchi, recebeu ajudas de Dom Bosco nos casos de neces-
sidade. Assim se vingam os santos.55

Corrigindo a informação, ao descrever a diáspora dos Bosco, os descen-


dentes de Antônio e José, Stella escreve:

Como o pai, Antônio e José casaram-se logo, aos 23 e 21 anos, respecti-


vamente. Antônio teve 11 filhos e 11 sobrinhos e sobrinhas. José teve 10
filhos e 30 sobrinhos e sobrinhas [...]. Dos filhos de Antônio, 2 meninos
e 2 meninas chegaram à idade adulta [...]. Dos filhos de José, 2 meninos e
2 meninas chegaram à idade adulta [...]. Um dos filhos de José [Francisco,
1841-1911] foi admitido no Oratório como aprendiz [de marcenaria] e
exerceu esse ofício até a morte, em Turim. O outro filho [de José], Luís
(1846-1888), entrou no Oratório como estudante e, depois de alguns estu-
dos, trabalhou num serviço administrativo na carreira jurídica. [Nunca se
casou, mas] conviveu com uma mulher casada, separando-se, por isso, do
restante da família e de Dom Bosco.56

Ao comentar que José, e o colega de José de Sussambrino, mas não An-


tônio, deram suas terras para ajudar o seminarista Bosco a reunir o dote para
sua ordenação, Stella acrescenta:

Dom Bosco, por sua vez, nunca esqueceu a generosidade de seu irmão José,
que diversamente de seu meio-irmão Antônio, se ofereceu para ajudar na co-
leta da quantia requerida para que João se encaminhasse ao sacerdócio. Como
se indicou, 2 dos filhos de José foram aceitos mais tarde em Valdocco pelo tio,
um como estudante e outro como aprendiz. Nenhum dos filhos de Antônio,
porém, foi tão favorecido.57

Dom Bosco teve 2 sonhos sobre Antônio, um em 1831-1832 e outro

55
MB III, 474; cf. I, 237.
56
P. Stella, Economia, 25-26.
57
P. Stella, Economia, 38. Em uma nota (38, n. 26) Stella acrescenta: “Em sua Última vontade,
manuscrito redigido em Varazze em 29 de dezembro de 1871, Dom Bosco não se esqueceu de especi-
ficar os legados a seus sobrinhos e sobrinhas, tanto da família de Antônio como da família de José”. Cf.
ASC A220ss: Testamenti, 3-5 [FDB 73 B7ss]. Deve-se levar em conta, ainda, que pareceria improvável
e bastante contrário ao costume penalizar numa “família hostil” os descendentes inocentes, muito
depois de o chefe da família ter morrido.

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Dom Bosco: história e carisma 1

em 1876.58 Isso parece demonstrar que Dom Bosco se lembrasse do irmão e


não lhe guardasse rancor, embora não fosse visto com simpatia na tradição
biográfica salesiana.

NOTA BIOGRÁFICA DE JOSÉ LUÍS BOSCO,


IRMÃO MAIS VELHO DE DOM BOSCO (1813-1862)

José Luís, o filho mais velho que Francisco Luís Bosco teve com a segunda
esposa, Margarida Occhiena, nasceu em 18 de abril de 1813, não em 8 de abril
como dizem as Memórias Biográficas e todos os demais biógrafos que as seguiram.59
José, nas Memórias Biográficas, é o sujeito de vários episódios e conside-
rações. Aparece como um menino tímido, educado, mas às vezes teimoso.60
“José era de temperamento educado e sereno, bom, paciente e prudente; era
parecido com o pai, e inclinado a servir-se de tudo para tirar vantagem, in-
clusive das coisas que parecem de pouca utilidade. Dessa maneira, se não
gostasse da vida tranquila do campo, poderia ter chegado a ser um negociante
de sucesso”.61
Ele participa com João no episódio da venda do peru.62 José e João
entendiam-se bem.63 Interpretou o sonho de João dizendo que seu irmão
chegaria a ser pastor.64 Para permitir que João estudasse com padre Calosso,
José comprometeu-se a fazer a parte dele no trabalho do sítio.65 No assunto
da divisão da herança familiar, José optou por unir-se a João e Mamãe Mar-
garida.66 Quando João foi para a escola em Castelnuovo e Chieri, José acom-
panhou Mamãe Margarida em suas visitas, “para ver seu irmão”. Nada se diz
sobre o aprendizado de José, que, aparentemente, não teve nenhum. Sabe-se
agora que assinava os documentos com uma cruz diante de testemunhas.67
Após a divisão da herança familiar (1830-1831), José, aos 18 anos, ar-
rendou o sítio Matta, na colina de Sussambrino, perto de Castelnuovo, como

58
MB XII, 187.
59
MB I, 25.
60
MB I, 58.
61
MB I, 94.
62
MB I, 78-79.
63
MB I, 95-96.
64
MB I, 126.
65
MB I, 184.
66
MB I, 214-215.
67
MB I, 224.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

meeiro com um amigo, José Febbraro. Margarida foi viver com ele, e João
também esteve em Sussambrino durante as férias de verão.68
Em 18 de março de 1833, aos 20 anos,69 José casou-se com Maria Calos-
so (1813-1874), de quem se fala às vezes como Maria Febbraro (nome de sua
mãe). Sobre o casamento, fala-se de passagem nas Memórias Biográficas.70 Ti-
veram 10 filhos: Margarida (1834-1834), Filomena (1835-1926), Rosa Do-
mingas (1838-1878), Francisco (1841-1911), Félix João (1843-1844), Luís
(1846-1888), Lúcia Teresa (1848-1926), Margarida (1851-1860), Afonso
João (1854-1860) e Miguel Antônio (1856-1857). Das meninas, apenas
Rosa Domingas e Lúcia Teresa chegaram à idade adulta, casaram-se e tiveram
muitos filhos. Dos meninos que chegaram à idade adulta, Francisco Luís
causou desgostos a Dom Bosco devido à vida pouco edificante.71
Em 1839, José deixou a parceria no sítio Matta, quando este foi com-
prado por Alexandre Pescarmona, e retornou aos Becchi.72 Com suas econo-
mias e algum empréstimo, e mais tarde com a ajuda de Dom Bosco, depois
de alguns anos conseguiu construir uma casa perto da pequena casa. Dom
Bosco, ordenado subdiácono no outono de 1840, não tinha dote que, por lei
eclesiástica, era necessário aos candidatos às Ordens Sacras. José ofereceu sua
propriedade para que Dom Bosco pudesse cumprir esse requisito.73 Ao longo
da vida, José ajudou Dom Bosco de todas as maneiras possíveis, enviando-lhe
produtos do sítio para o Oratório e dando ao irmão inclusive algum dinheiro
que tinha guardado para melhorar o sítio.74
Durante a época do Oratório itinerante (1844-1846), Dom Bosco foi
ocasionalmente aos Becchi para um pequeno descanso. José reservara um
quarto para ele na casa, a oeste, no segundo andar; os quartos da família
ocupavam o restante da casa. Em 1846, depois de instalar-se em Valdocco,
Dom Bosco passou cerca de três meses nos Becchi, recuperando-se da grave
enfermidade que quase o levou à sepultura.75 Quando a pequena casa ficou
vazia, depois de Antônio construir a sua própria casa muito próxima, Dom
Bosco continuava a ir à “sua casa”, ou seja, a casa de José.

MB I, 237.
68

Não aos 21 anos, como Stella sugeriu anteriormente [Nota dos editores].
69

70
MB I, 328.
71
MB XVIII, 532.
72
MB II, 18.
73
MB I, 367. Lemoyne cita as Memorias de Don Bosco, mas as Memorias del Oratorio não
mencionam tal coisa.
74
MB IV, 485. Cf. também MB III, 52; IV, 150.
75
MO, 189; MB II, 408-409.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em 1848 foi aberta uma porta na parede oeste da casa de José. Um dos
quartos foi remodelado e preparado como capela, benzida em 12 de outu-
bro pelo padre Pedro Antônio Cinzano, pároco de Castelnuovo, depois de o
Vigário de Turim emitir o decreto de aprovação. A capela dedicada a Nossa
Senhora do Santo Rosário foi o primeiro santuário religioso na história da
aldeia dos Becchi. Ela tinha como objetivo servir de centro local de devoção,
assim como lugar de peregrinação para os meninos do Oratório. Aqui, o clé-
rigo Rua recebeu a batina em 1852,76 e aqui Domingos Sávio encontrou-se
com Dom Bosco pela primeira vez em 1854.77
Para a inauguração da capela, Dom Bosco trouxe 16 meninos de Turim,
numa das primeiras excursões que se repetiriam anualmente durante o outo-
no até 1864. Quando chegavam aos Becchi, os meninos costumavam dormir
no celeiro-sótão que Dom Bosco construíra como um terceiro andar.78 Caso
o número dos participantes fosse maior, às vezes chegaram a mais de 100, os
que não cabiam, dormiam no celeiro situado sobre o estábulo a leste da casa.
José esteve ao lado de Mamãe Margarida quando ela ficou doente e
morreu no Oratório de Turim, no dia 25 de novembro de 1856. Ouviu suas
últimas palavras de recomendação e comunicou sua morte a Dom Bosco,
que saíra do quarto a pedido da mãe.79 Um mês após a morte de Mamãe
Margarida, quando visitava Dom Bosco no Oratório, José foi acometido
de pneumonia. Dom Bosco rezou e fez com que rezassem à Virgem; José
recuperou-se e pôde retornar aos Becchi.80
Lemoyne afirma que José teve premonição da morte quando visitou o
Oratório para confessar-se e falar de “um problema” com Dom Bosco. Retor-
nou logo para casa e “colocou todas as coisas em ordem, como se estivesse cer-
to da morte, embora se sentisse em perfeita condições”. Uma semana depois,
ficou doente. Dom Bosco alugou um coche e correu para estar ao seu lado. No
dia seguinte, 12 de dezembro de 1862, José morreria nos braços do irmão.81
Lemoyne recorda o bom caráter e as virtudes cristãs de José: “Em
Castelnuovo e nas aldeias próximas, era muito conhecido como pessoa de
talento singular, honrado e generoso [...]. Suas muitas virtudes procediam
da educação cristã que lhe fora dada por sua mãe Margarida”.82

76
MB IV, 487-485.
77
MB V, 122-123.
78
MB IV, 482-484.
79
MB V, 560-565.
80
MB V, 602-603.
81
MB VII, 340.
82
Ibid.

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As provações de um adolescente (1824-1830)

NOTA BIOGRÁFICA DO PADRE JOÃO


MELQUIOR CALOSSO (1760-1830)

João Melquior Calosso nasceu em Chieri em 1760, segundo consta


no registro da Catedral. Um tio padre foi provavelmente o responsável de
que João e seu irmão Carlos Vicente entrassem no seminário de Turim em
1775-1776. Os relatos situam-no no terceiro ano de teologia em 1779-1780.
Não se tem informação sobre os anos seguintes, podendo-se presumir que
completou o quarto e o quinto ano com regularidade; obteve a licença em
teologia na Universidade de Turim e foi ordenado em 1782. Em 1791 foi no-
meado pároco de Bruíno, na arquidiocese de Turim. Em 1807 foi acusado de
atividades contra a administração francesa; graças à diplomacia do arcebispo
Jacinto Della Torre, livrou-se das consequências.
Foram muito mais sérias as acusações apresentadas contra ele em de-
zembro de 1812 da parte de um grupo de notáveis jacobinos anticlericais da
cidade. Esses indivíduos subornaram alguns de seus paroquianos para que
o acusassem de “imoralidade abominável”. Contudo, numa carta de 13 de
janeiro de 1813, uma senhora de nome Henriqueta de Malines testemunhava
sobre o caráter moral, bom exemplo e zelo pastoral do padre Calosso e insis-
tia que as acusações caluniosas contra ele foram perpetradas por pessoas que
desejavam sua saída da paróquia. Diante de tantas acusações injustas, padre
Calosso renunciou à paróquia e retirou-se à vida privada.
O irmão do padre Calosso, Carlos Vicente, nesse mesmo ano (1813)
foi nomeado administrador da paróquia de Mezzenile, cargo que ocupou até
1819. Em seguida ganhou a paróquia de Berzano São Pedro, onde ficou de
1819 a 1824. Acredita-se que o padre Calosso tenha auxiliado seu irmão. Os
registros paroquiais de Berzano mostram que administrou alguns batismos
ali. Pode ter sido hóspede do irmão. Contudo, não foi capelão em nenhuma
das aldeias de Berzano, porque os registros mostram que nessa época as cape-
lanias estavam vacantes. Em 1823, padre Calosso era vigário substituto em
Carignano; enfim, no verão de 1829, assumiu o cargo de capelão da Capela
de São Pedro em Murialdo.
João Bosco encontrou-se com padre Calosso nos inícios de novembro
desse mesmo ano, pouco depois de retornar do sítio Moglia, por ocasião da
pregação do Jubileu de 1829, tornando-se, depois, seu aluno e protegido. O
bom padre morreu pouco depois, em 21 de novembro de 1830.

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Capítulo VIII

JOÃO BOSCO NA ESCOLA DE


CASTELNUOVO E OS MOVIMENTOS
REVOLUCIONÁRIOS DOS INÍCIOS DE 1830

1. O primeiro encontro com José Cafasso, seminarista


Após relatar a morte do padre Calosso e antes de mencionar seu sofri-
mento, sua doença e o sonho da repreensão, Dom Bosco fala do encontro com
o seminarista José Cafasso, assinalando a data do fato em outubro de 1827.
Também aqui as datas nas Memórias estão defasadas, ao menos dois
anos, em vista da omissão do período Moglia e o erro em datar o encontro
com padre Calosso. É muito mais provável que o encontro de João com o
seminarista Cafasso tenha acontecido nas férias do verão de 1830. João estu-
dava então com o padre Calosso, e Cafasso, estava em Castelnuovo, passando
as férias de verão, depois de terminar o segundo ano de teologia no seminário
de Chieri. Tinha 19 anos de idade.1
Dom Bosco afirma que o encontro se deu no segundo domingo de
outubro, festa da Maternidade de Maria, festa principal de Murialdo que,
em 1830, caiu no dia 12 de outubro. A capela, porém, era dedicada a
São Pedro (29 de junho); o patrono da aldeia era Santo André. As duas
festas eram celebradas na aldeia com uma feira. Enquanto as celebrações
estavam em todo o seu esplendor, João Bosco viu um jovem seminaris-
ta à porta da igreja. Às palavras de João: “Senhor cura, quer ver algum
espetáculo da nossa festa? Eu o levo com muito gosto aonde desejar”,2 o
seminarista replicou que as funções da igreja eram a diversão apropriada
para um padre. João soube mais tarde que o nome do seminarista era José
1
José Cafasso (1811-1860) frequentou a escola secundária de Chieri. Como ainda não havia
seminário em Chieri, foi para o curso de filosofia dirigido pelos dominicanos nessa cidade. Concluída a
filosofia, iniciou a teologia como seminarista externo sob a direção do pároco de Castelnuovo. Quando
foi aberto o seminário de Chieri em outubro de 1829, entrou no segundo ano de teologia e foi ordenado
padre em 1833.
2
MO, 47.

212

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João Bosco na escola de Castelnuovo e os movimentos revolucionários dos inícios de 1830

Cafasso. O primeiro encontro iniciou um importante relacionamento.


Padre Cafasso será mais tarde um protagonista significativo no itinerário
vocacional de Dom Bosco.

José Bosco, meeiro


A divisão da herança Bosco, em fins de 1830, havia liberado João do
controle de Antônio. Margarida decidiu matriculá-lo na escola de Castelnuo-
vo, à custa de enormes sacrifícios. José, aos 18 anos, decidiu fazer parceria
com um colega no sítio Matta, em Sussambrino,3 situado a meio caminho
entre os Becchi e Castelnuovo. Era uma opção imposta pela pouca terra que
possuíam e dava apenas para sustentar Margarida, João e a família de José
quando contraísse matrimônio, algo inevitável num futuro próximo. Mar-
garida foi viver com José em Sussambrino, mas a pequena casa dos Becchi
continuou aberta. A ida para Sussambrino deve ter acontecido no inverno
de 1830-1831, já que o tempo válido para contratos agrícolas terminava em
25 de março. O inverno de 1830-1831 também foi o tempo em que João se
inscreveu na escola de Castelnuovo.

João Bosco na escola de Castelnuovo


João Bosco começou a participar da escola fundamental de Castelnuovo
em dezembro de 1830. O motivo da apresentação tão tardia foi a morte do
padre Calosso em 21 de novembro; as aulas tinham iniciado em 3 de no-
vembro, depois do dia de Todos os Santos, mas João esteve adoentado algum
tempo depois da morte do benfeitor.4
Dom Bosco escreve nas Memórias que ele precisava caminhar 5 qui-
lômetros quatro vezes por dia para ir e voltar da escola.5 Ia dos Becchi a
Castelnuovo, pela manhã, e retornava depois das aulas para o almoço; em
seguida, voltava a Castelnuovo e, à tarde, retornava aos Becchi. Se José e
Margarida já estavam estabelecidos no sítio de Sussambrino, situado a não
mais de 2 quilômetros de Castelnuovo, João devia percorrer uma distância
muito mais curta para frequentar a escola.
Pouco tempo depois, o tio Miguel Occhiena encontrou um lugar para
João em Castelnuovo com certo João Roberto, alfaiate e músico. Inicialmente,

3
Este nome não se refere à aldeia, mas a uma pequena colina isolada e junto ao vale, a pouco
mais de uma milha ao sul de Castelnuovo.
4
MO, 48.
5
MO, 49.

213

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Dom Bosco: história e carisma 1

João só se servia do local para o almoço, que trazia de casa todos os dias. De-
pois, no tempo do frio e das borrascas noturnas, dormiria ali, talvez, sem jantar.
Enfim, tornou-se residente fixo. Por uma quantia razoável, que se podia pagar
em espécie, com milho e vinho, o senhor Roberto concordou em dar uma sopa
quente ao meio-dia e à noite, e um lugar para dormir, um pequeno desvão de-
baixo da escada. Margarida fornecia-lhe comida para a semana inteira.
João, com mais de 15 anos, unia-se nas aulas a meninos muito mais
jovens. Sua escolaridade até então e seu desenvolvimento cultural tinham
sido intermitentes. A roupa e os sapatos que usava eram de um “vaqueiro
dos Becchi”. Apesar disso, os quatro primeiros meses foram uma grata
experiência para ele. Isso se deveu, em grande parte, ao professor padre
Manoel Virano, um dos coadjutores da paróquia, pessoa muito capaz e
dedicada, que deu a João a oportunidade de demonstrar o próprio caráter,
inteligência e memória. Nos últimos meses do ano escolar, as coisas piora-
ram. Em abril de 1831, padre Virano foi nomeado pároco de Mondônio,
sendo sucedido como professor pelo padre Nicolau Moglia, de 75 anos,
recebendo dele algumas aulas de latim. Parece que este padre era incapaz
de manter a disciplina; cheio de preconceitos, ele desprezava o “vaqueiro
dos Becchi” como caso perdido, humilhava-o quando podia e permitiu
aos demais que o atormentassem nas aulas. Nas Memórias, Dom Bosco
não o menciona pelo nome, mas diz que o substituto era “incapaz de
manter a disciplina, quase deitou a perder quanto eu havia aprendido nos
meses anteriores”.6
Durante sua permanência em Castelnuovo, João experimentou as pri-
meiras sérias tentações sob a forma de “más companhias”: convidavam-no
para gazetear as aulas, jogar e roubar.7 Poderia parecer estranho, mas não
impossível, embora levando em conta a finalidade educativa das Memórias.8
Em todo caso, as visitas semanais de Margarida, sua precoce preparação mo-
ral, a oração, a devoção a Nossa Senhora do Castelo, os sacramentos, que
continuou praticando fielmente e não só para cumprir as normas da escola,
permitiram que ele superasse tudo.

6
MO, 51.
7
MO, 50.
8
Ao ler as passagens relativas aos professores e aos “maus companheiros”, deve-se recordar “a
finalidade educativa” das Memórias, como já se comentou.

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João Bosco na escola de Castelnuovo e os movimentos revolucionários dos inícios de 1830

Igreja paroquial de Castelnuovo.

2. Importância do ano em Castelnuovo


O ano em Castelnuovo não foi uma perda total, embora o progresso
tenha sido escasso.

A aprendizagem de João com o padre Lacqua, em Capriglio, deve situar-se


como um episódio normal na vida de um camponês [não se espera mais dele].
O ano na escola municipal de Castelnuovo, por outro lado, é considerado
como ligação inicial do conjunto [educativo] estabelecido relacionado com
Chieri e Turim.9

A decepção vivida em suas intenções falidas de aproximação do clero lo-


cal, visto como frio e distante, em contraste com a disponibilidade dos padres
Calosso e Virano, mostraram-lhe a necessidade de um contato completamente
diferente com os jovens, se chegasse algum dia a ser padre. Stella faz um comen-
tário sobre a incapacidade de João de “romper o gelo” e sobre seus julgamentos
pejorativos, nascidos certamente do carinho pelos padres do lugar.10

9
P. Stella, Economia, 29.
10
P. Stella, Vita, 20-21. Sua avaliação sobre os professores e o clero em termos educativo-pasto-
rais no tempo de escola e de formação está em consonância com a finalidade educativa das Memórias.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em seu tempo livre, João começou a ocupar-se de coisas úteis. Do se-


nhor Roberto, músico e alfaiate, aprendeu música, a tocar o clavicórdio e
o órgão, a costurar e cortar roupas. Depois de consultar sua mãe, começou
a empregar algumas horas do dia como aprendiz de Evásio Sávio, ferreiro
local. Não adivinhava, então, que um dia precisaria desses ofícios. Contudo,
levando-se em conta a finalidade educativa das Memórias, não se deve dar
excessiva importância a essas atividades extracurriculares.
Entretanto, sem dúvida desiludido e desmoralizado pela vileza de seu
segundo professor, a João cabia apenas esperar as férias de verão-outono no
sítio de Sussambrino.

Férias de verão no sítio Matta, de Sussambrino


Depois do ano escolar de Castelnuovo, João uniu-se a sua mãe e ao ir-
mão José em Sussambrino, para passar com eles os meses das férias de verão
de 1831. Rosa Febbraro, filha de José Febbraro, recordou que ele empre-
gava o tempo estudando e, às vezes, descuidando-se de cuidar dos animais
enquanto pastavam. Mas ela não se importava de cuidar das vacas de João,
enquanto ele se dedicava às suas outras coisas.
Quando frequentava a escola em Castelnuovo, João fez amizade com
José Turco, um menino mais velho, cuja família era proprietária de terras e de
uma vinha limítrofe com o sítio Matta em Sussambrino, na parte chamada
Renenta, nome de uma fonte natural da região. O velho senhor Turco, pai do
jovem, incentivava João sempre que o encontrava. José Turco testemunharia
no processo de beatificação, em 1892, que João contou para ele e sua irmã
Lúcia um sonho que o confirmava em sua vocação.11
Durante as férias, na tranquila solidão do sítio, João, seu irmão José e
Margarida, e, sem dúvida, seu tio Miguel e, possivelmente, sua tia Mariana,
puderam avaliar com calma a experiência de Castelnuovo. A decisão foi que
João pedisse uma vaga na escola secundária de Chieri.

3. As revoluções de 1830-1831 e o avanço do Ressurgimento


Os anos 1830-1831, enquanto João Bosco se esforçava em Castelnuovo,
preparando-se para a escola secundária de Chieri, foram novamente mar-
cados pelas revoltas revolucionárias e outros acontecimentos políticos que
contribuíram para o avanço do Ressurgimento italiano.12

POCT, Sessão 89, 4 de julho de 1892, ASC A265-A273: Deposizione dei testi; FDB 2,135 C2-11.
11

12
J. A. R. MARRIOTT, The makers of modern Italy: from Napoleon to Mussolini. Oxford Univer-
sity Press, London: Humphrey Milford, 1931, 52-55, 56-68.

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João Bosco na escola de Castelnuovo e os movimentos revolucionários dos inícios de 1830

A intensa retomada do espírito liberal teve origem na França, onde os


“legítimos” reis, os Bourbon, tinham liderado a Restauração. A chamada re-
volução de julho de 1830 apressou o fim da Restauração na França e exerceu
influência considerável no movimento liberal italiano.
Em fevereiro de 1831 estourou a revolução nos Estados Pontifícios; des-
de Bolonha, o movimento estendeu-se rapidamente a Forlí, Ravena e outras
cidades da Romanha, que estavam sob o governo do Papa. Em Ferrara, a
despeito da presença do quartel austríaco, os Legados papais foram expulsos
e instalou-se um governo provisório. Em poucos dias, toda a Úmbria e as
Marcas, territórios dos estados papais, seguiram o exemplo. Apenas no Pa-
trimônio de São Pedro (Roma, o Lácio e o território limítrofe) a autoridade
papal enfrentou a situação. O novo Papa Gregório XVI, apenas eleito em 1º
de fevereiro, permitiu concedeu algumas concessões pouco relevantes para os
desejos do povo e precisou buscar a ajuda da Áustria.13
As tropas da Áustria entraram nos distritos rebeldes e, até o final de
março, restauraram a autoridade do duque de Módena e a do Papa em
todos os seus domínios. O Papa Gregório XVI prometeu reformas aos súdi-
tos, mas não as realizou. Por isso, assim que as tropas austríacas deixaram os
Estados Pontifícios em julho de 1831, voltaram as revoltas. As tropas aus-
tríacas retornaram somente para comprovar que uma força militar francesa
se lhes antecipara. França e Áustria rivalizavam, dessa forma, para “prote-
ger” o Papa e obter influência na Itália, o que só serviu para complicar os
problemas na Itália.14

Mazzini e a Jovem Itália


Não obstante a intervenção militar austríaca, o movimento patriótico
continuava a progredir. Teve grande mérito o novo impulso dado pela políti-
ca italiana à organização fundada por José Mazzini (1805-1872).

13
Em Módena, deu-se uma insurreição em 5 de fevereiro, e o duque Francisco IV, a fim de se
salvar, fugiu para o território da Áustria levando consigo Ciro Menotti, chefe dos liberais de Módena,
que ali foi enforcado. Parma seguiu o exemplo da vizinha Módena, e a imperatriz Maria Luísa, apesar
da sua popularidade pessoal, se retirou para Piacenza, nos domínios da Áustria. Foi reconduzida mais
tarde pelas tropas austríacas e a paz reinou novamente no seu território.
14
Luís Felipe, em sua ascensão ao trono, optara pela não intervenção, mas as repetidas intro-
missões das tropas austríacas nos Estados Pontifícios levantaram os franceses. Antes de os austríacos
chegarem a Ancona, uma força francesa os precedeu em fevereiro de 1832. Metternich recusou-se a
deixar o seu papel de protetor do Papa, enquanto Luís Felipe se manteria ali até que os austríacos fos-
sem embora. Dessa forma, durante seis anos (1832-1838), os dois exércitos se enfrentaram nos Estados
Pontifícios. Evitou-se a guerra, mas o patronato das Grandes Potências criou uma nova situação para o
movimento patriótico na Itália.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Nascido em Gênova e educado na Universidade local, ele captou ra-


pidamente o espírito revolucionário; atraído ao princípio dos carbonários,
desiludiu-se pela sua falta de direção. Em 1831, enquanto vivia no exílio em
Marselha, fundou uma sociedade secreta revolucionária, La Giovane Italia [A
Jovem Itália], que tinha como finalidade libertar a Itália do governo estran-
geiro e estabelecer uma república democrática.
Em 1831, Carlos Alberto de Saboia-Carignani sucedeu a Carlos Félix,
que morrera sem deixar herdeiro homem. Mazzini, ao enviar-lhe a famosa
“carta aberta ao novo Rei”, estimulava-o a tomar as armas e livrar a Itália do
domínio austríaco. Como a carta vinha de um republicano declarado, não
surtiu efeito; ao contrário, o rei ordenou a prisão de Mazzini caso tentasse
cruzar a fronteira e entrasse na Itália.
Mazzini e seus companheiros planejaram estender as insurreições com
o falido complô para matar o rei em 1832, a insurreição no Piemonte em
1833, prontamente reprimida, e a “desafortunada” expedição à Saboia em
1834. Expulso da França e da Suíça, Mazzini viveu exilado na Inglaterra, mas
nunca deixou de promover complôs para fazer avançar seu programa político.
Era essa a situação política predominante enquanto João Bosco fre-
quentava a escola de Castelnuovo em 1831 e pouco mais tarde em Chieri.
Dom Bosco não se refere a ela em suas Memórias. Provavelmente, quando
as escrevia, nos anos de 1870, os acontecimentos já não eram significativos.
Entretanto, como jovem estudante, conheceu e viveu tempos difíceis. Polícia
armada e espiões do governo eram destacados para as cidades e localidades
maiores, incluindo Chieri. Os estudantes foram proibidos de usar distintivos
e eram vigiados. É improvável que João vivesse essas experiências sem conhe-
cimento ou preocupação.

218

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Apêndice

A REFORMA ESCOLAR DO REI CARLOS FÉLIX

Quando João Bosco se matriculou na escola primária de Castelnuovo,


o sistema escolar era regido pela reforma educativa realizada pelo rei Carlos
Félix em 1822.15 A intenção da reforma era restaurar no reino da Sardenha
o sistema de educação fundamental e secundária, retornando à forma pré-
-napoleônica e pré-revolucionária.
O sistema contemplava três tipos de escola nos níveis fundamental e se-
cundário. A escola municipal era uma escola de nível fundamental com dois
anos de instrução básica. Criada em todas as cidades, como Castelnuovo, era
financiada pelo município e gratuita para os estudantes. A escola pública era
uma escola de nível secundário, com um programa de instrução de seis anos,
estabelecida nas principais cidades, como Chieri. Embora financiada pelo mu-
nicípio, devia-se pagar uma pequena taxa de matrícula. A escola régia ou colégio
real também era uma escola de nível secundário, com um programa de seis
anos; estabelecida na capital provincial e em outras cidades importantes, era
financiada pelo tesouro real. Apesar do nome, o colégio real de Chieri frequen-
tado por João Bosco era apenas uma escola secundária pública.
Para supervisionar a reforma, foram instituídas algumas autoridades: um
magistrado central da Reforma e, sob a sua dependência, um administrador e
um delegado local. A determinação mais importante e inovadora, que se teve do
sistema de Napoleão, foi tornar obrigatória a escola fundamental de dois anos
para os meninos com 7 anos ou mais. As principais normas da escola funda-
mental impunham o ensino da leitura, da escrita e do catecismo diocesano no
primeiro ano; da língua italiana, da aritmética e da doutrina cristã, no segundo.16
15
A reforma escolar de 1822 é importante, porque João Bosco recebe sua educação básica dentro
dessas leis. Sublinhamos aqui apenas as determinações básicas que se referem à escola fundamental
(mais tarde comentaremos as da secundária). O documento da reforma foi redigido pelo jesuíta padre
Luís Tapparelli D’Azeglio, irmão do estadista liberal Máximo D’Azeglio.
16
A instrução do catecismo no primeiro ano consistia em aprender as perguntas e respostas do
catecismo diocesano, das quais o professor oferecia uma simples explicação das palavras do texto. A

219

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Dom Bosco: história e carisma 1

Nas pequenas localidades, em geral um professor dava as aulas dos dois


anos numa mesma sala. Nas cidades maiores, nas quais o número dos alunos
superasse os 70, empregavam-se dois professores e usavam-se duas salas. Um
professor ensinava o primeiro ano e o outro, o segundo em outra sala.
O ano escolar começava em 3 de novembro e durava até o final de se-
tembro. As aulas eram dadas em seis dias por semana e seis horas por dia: três
pela manhã e três à tarde. O delegado da Reforma, de acordo com o prefeito,
o pároco ou os párocos, estabeleciam o horário do dia escolar, cuidando para
que todas as crianças, inclusive as das famílias camponesas, ficassem livres de
participar conforme as estações do ano. Os meninos e as meninas tinham
aulas em separado, também em outro edifício.17
O crucifixo era colocado em todas as escolas fundamentais locais. O pe-
ríodo da manhã começava com as orações e terminava com a ação de graças
(o Agimus). O período da tarde começava com o Actiones e terminava com
as orações da tarde. A primeira meia hora de cada manhã era empregada no
estudo do catecismo diocesano. O período de três horas da tarde dos sábados
devia ser dedicado à instrução na doutrina cristã. As ladainhas da Santíssima
Virgem Maria encerravam as aulas diárias.
Professores e párocos deviam elaborar um sistema que permitisse aos
alunos ir à missa na escola ou na igreja paroquial antes do início das aulas e
confessar-se uma vez por mês. Os estudantes deviam apresentar um certifi-
cado bimensal de confissão e, nos domingos e dias santos, deviam assistir ao
catecismo e às funções de igreja em suas respectivas paróquias.
Todos os professores deviam obter um certificado do bispo sobre a sua
preparação moral e religiosa e um certificado de capacitação, expedido depois
de fazerem os exames de qualificação perante as autoridades da Reforma. Os
professores que não conseguissem esse certificado dentro de um ano a partir
da publicação das normas, não podiam cobrar seu salário.
As escolas primárias deviam ser financiadas pela prefeitura local, como
também os edifícios e salários dos professores. Apesar da obrigatoriedade da
escola e sua gratuidade, apenas um pequeno número de crianças se matriculava.
Eram essas, em resumo, as disposições da Reforma relativas à escola fun-
damental, segundo as quais funcionava a escola municipal de Castelnuovo.

instrução da doutrina cristã do segundo ano também era fundamentada no mero texto e consistia num
resumo básico da Bíblia, da história da Igreja e de alguns de seus ensinamentos.
17
São criadas escolas separadas para meninos e meninas. Não existia coeducação nem coinstru-
ção nem mesmo no nível fundamental.

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Capítulo IX

JOÃO BOSCO NA ESCOLA SECUNDÁRIA


PÚBLICA DE CHIERI (1831-1835)

1. A cidade de Chieri
“Depois de tanto tempo perdido – recordava Dom Bosco –, ficou re-
solvido que eu iria para Chieri, a fim de aplicar-me com seriedade ao estudo.
[...] Para quem foi criado na roça e só conheceu um ou outro povoado do
interior, qualquer novidadezinha causa grande impressão”.1
Chieri situa-se 12 quilômetros a sudeste de Turim, no centro do Pie-
monte.2 Naqueles anos, era uma cidade com cerca de 9 mil habitantes. A
cidade, pelo lado nordeste, era flanqueada pelas últimas colinas cobertas de
vinhedos, que produziam vinho de alta qualidade. Estabelecida em parte na
planície e em parte no declive, a cidade gozava de uma posição saudável.
João Bosco passou dez anos nessa bela cidade provinciana, quatro na es-
cola secundária e seis no seminário, antes de ser ordenado, em 1841. Os anos
passados na escola secundária (real colégio) e no seminário foram decisivos
para sua educação e formação.
Enquanto a Revolução Industrial transformara a Inglaterra e a maioria dos
países do norte europeu, no norte da Itália, a maior parte do povo ocupava-se

MO, 51.
1

Fundada no tempo da República Romana (século II a.C.), provavelmente como posto militar,
2

Chieri dependia, na Idade Média, do bispo de Turim, que a repartia como feudo entre várias famílias,
que formavam a comuna senhorial de Carrium. Viu-se envolvida mais tarde em lutas sangrentas contra
Turim e contra o vizinho Ducado do Monferrato, obrigando sua fortificação para defender-se. Nos
períodos de liberdade, Chieri foi uma “república” governada por um senado democrático. Nos séculos
XIV-XV esteve sob a proteção dos duques de Saboia. Durante muitos anos, porém, a cidade foi dila-
cerada pelos contínuos conflitos entre famílias nobres. Era conhecida como Carrium Turritum (Chieri
das Torres), por causa das inúmeras torres edificadas como sinal de prestígio de uma casa nobre. No
século XVI foi ocupada em diversas épocas por franceses e espanhóis envolvidos em suas guerras contra
os Saboia. No período seguinte, sob o domínio Saboia, fazia parte da província e diocese de Turim. Em
1785, vésperas da Revolução Francesa, o rei Vítor Amadeu de Saboia entregou-a como herança ao seu
filho Vítor Emanuel, duque de Aosta, com o título de Príncipe.

221

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Dom Bosco: história e carisma 1

na agricultura. Lentamente, surgia uma classe média de comerciantes e indus-


triais; sob sua liderança teve início o desenvolvimento econômico que conti-
nuou com sempre maior intensidade de 1840 a 1850. Chieri era famosa pela
indústria têxtil. Cerca de 30 oficinas produziam tecido de linho, algodão, seda
e lã. Foi crescente a produção do linho, o cultivo das amoreiras para o bicho-
-da-seda e a criação de ovelhas merinas.
A atmosfera religiosa penetrava todos os aspectos da vida na cidade.
Chieri, que pertencia à diocese de Turim, possuía duas paróquias. A maior e
mais importante era a Colegiada de Santa Maria della Scala, conhecida como
Duomo, ou catedral, por ter sido sede diocesana em outros tempos. Um
colégio de quinze cônegos desempenhava conjuntamente o cargo de reitor
e mantinha dois coadjutores que governavam a paróquia. A igreja paroquial
menor, dedicada a São Jorge, elevava-se na parte mais alta da cidade. Todas
as funções litúrgicas “paroquiais”, exceto o batismo e a extrema-unção, eram
realizadas no Duomo. No século XVIII houve uma terceira igreja, menor,
a paróquia de São Pedro. Os párocos das igrejas menores eram eleitos pelos
paroquianos. Os benefícios, anexos às paróquias, eram consideráveis, parti-
cularmente os do Duomo.
Um relatório de 1753 anota a presença adicional de clero secular na cidade
de Chieri: 17 padres e 10 seminaristas, todos do lugar, e outros 10 seculares de
fora. Contava, também, com um bom número de mosteiros e conventos.3 Em
Chieri também atuavam várias confrarias, cada uma com sua base numa igreja
ou capela dotada de benefícios. Instituições de caridade (hospitais) proviam à
saúde básica e outras prestavam serviços sociais (casa para órfãs).

A escola secundária pública


Chieri gloriava-se de possuir uma florescente escola secundária para me-
ninos. Inscreviam-se nela também meninos das proximidades e de cidades

3
Segundo o relatório, havia 26 dominicanos no mosteiro de São Domingos (15 padres, 5 leigos e 6
noviços); no de São Francisco, 11 franciscanos conventuais (6 padres, 2 professos escolásticos, 2 leigos e um
terciário); na igreja de Santo Agostinho, 12 agostinianos (6 padres, 3 escolásticos e 3 leigos); no de Santo
Antônio Abade, 27 jesuítas (6 padres, 5 irmãos e 16 noviços), na Igreja da Consolata, 3 barnabitas (2 padres
e 1 irmão); no Oratório de São Felipe, 17 oratorianos (12 padres e 5 irmãos); na paróquia de São Jorge, 14
frades menores (8 padres, 2 seminaristas e 4 leigos); no convento de São Maurício, 22 frades capuchinhos
(9 padres, 4 leigos e 9 noviços); no de Nossa Senhora Rainha da Paz, 26 franciscanos reformados (16
padres, 5 leigos e 5 noviços). Era nesta comunidade que João Bosco, durante um tempo de discernimento
em 1834-1835, pensava entrar. Havia, também, comunidades de religiosas: monjas cistercienses, clarissas e
dominicanas, cada uma com mais de 40 irmãs professas e outro pessoal. As comunidades, masculinas e fe-
mininas, tinham sido suprimidas por Napoleão e seus mosteiros e conventos transferidos à cidade. Depois
de sua derrota, a Restauração devolveu-os às comunidades e muitas delas tinham retornado. João Bosco
conheceu esse ressurgimento da vida religiosa em Chieri durante sua permanência na cidade.

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

distantes. Fora fundada em 1820 segundo o antigo sistema escolar pré-napo-


leônico. Inicialmente situava-se no mosteiro dos padres do Oratório de São
Felipe Neri. Essa comunidade, que regressara após a supressão de Napoleão,
deixou de existir pouco depois por falta de pessoal.
Em 1822, os programas acadêmicos e educativos da escola foram re-
organizados de acordo com a reforma decretada pelo rei Carlos Félix. A
escola voltou a localizar-se nos edifícios adquiridos do orfanato de meni-
nas na rua principal.4

A antiga escola pública de Chieri.

Em 1831-1832, primeiros anos de João Bosco em Chieri, os alunos


chegavam a 159. Relatórios do arquivo local confirmam o que Dom Bosco
afirma nas Memórias: a direção era dos dominicanos. Seu diretor, o decano,
era padre Pio Eusébio Sibilla. A escola regia-se segundo a observância estrita

4
Afirmações de Lemoyne corrigidas, cf. MB I, 250.

223

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Dom Bosco: história e carisma 1

do programa de reformas imposto pelo rei Carlos Félix5 em tudo que se re-
ferisse à administração, formação religiosa, educação, programa de estudo e
disciplina. O documento que promulgou a Reforma define, pois, muito bem
o tipo de educação recebida por João Bosco na escola secundária durante
uma etapa particularmente sensível de sua vida: dos 16 aos 20 anos.

2. João Bosco na escola de Chieri (1831-1835)


Durante as férias de verão-outono em Sussambrino em 1831, a famí-
lia de João decidira que ele se matriculasse na escola secundária pública de
Chieri. João começou, então, a ajuntar dinheiro e pertences para sua manu-
tenção e alojamento. Em certa ocasião foi ao festival do patrono na cidade de
Montafia e subiu no pau-de-sebo, ganhando o prêmio de 20 liras. Dedicou-
-se também a pedir ajudas e até o final de outubro tinha quase superado
sua natural repugnância. Padre Dassano, pároco de Castelnuovo, e um leigo,
animaram-no e ajudaram-no economicamente.6
Em fins de outubro, João obteve do pároco a permissão de admissão.
Em 4 de novembro de 1831 caminhou 5 quilômetros até Chieri com um
companheiro estudante, João Filippello, que também seria seu companheiro
no seminário e seu amigo para sempre. No caminho – contou Filippello no
processo de Beatificação em 1892 – João Bosco disse ao companheiro que
seria padre, mas não padre de paróquia.7

Enquadramento e acontecimentos significativos


Dom Bosco não fornece muita informação nas Memórias sobre o tem-
po de estudante. Não revela praticamente nada da sua vida interior, exceto
quando fala do discernimento vocacional. Igualmente, só muito brevemente,
refere-se à prática religiosa e seus exercícios espirituais, embora essa brevidade
possa ser compensada com as normas do rei Carlos Félix. Elas oferecem al-
guma reflexão de natureza educativa, enquanto descreve com certa extensão
sua “experiência de oratório”, “seu nobre ministério” e atividades sociais. En-
tretém-se consideravelmente ao falar da sua bravura como estudante e atleta
nos jogos após as aulas.8

S. Caselle, Giovanni Bosco, 40-43.


5

Parece que a família de João, Mamãe Margarida e seu irmão José, não podiam contribuir de
6

maneira significativa.
7
POCT, Sessão 91, julho 8, 1892, ASC A265ss: Deposizione dei testi; FDB 2,135 C12-D11.
8
Este exame pode servir de guia para uma leitura crítica de MO e MB: MO, 51-66 e MB I,
247-285.

224

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

Basicamente, a imagem projetada é a de um jovem exuberante que expe-


rimenta pela primeira vez uma relativa liberdade, e percebe seus perigos e suas
possibilidades. É um extrovertido que encontra seu espaço e, depois, ganha
ascendência moral e se torna líder entre seus colegas. Animado no trabalho
escolar e nos estudos com a ajuda de uma prodigiosa memória, dedica a maior
parte do tempo a Exercícios Espirituais, leituras, trabalhos e divertimentos.
Em Chieri, João amadureceu; poderíamos pensar que tivessem acabado
todas as suas dificuldades. Isso, certamente, não foi verdade.

O sexto, o quinto e o quarto anos de Gramática em um só ano


[1831-1832]
Margarida Bosco conhecia, ou foi-lhe recomendada, uma mulher cha-
mada Lúcia Pianta, viúva de José Matta, de Murialdo. Após a morte do ma-
rido, Lúcia foi para Chieri com o filho João Batista, que estudava na cidade.
Alugara alguns cômodos na casa de Santiago Marchisio e tinha um pequeno
negócio subalugando alguns quartos por 21 liras ao mês. A senhora Marchi-
sio, também viúva, alugava por sua vez alguns quartos para estudantes. O
registro da escola anota que a senhora Lúcia tinha outro residente, além de
João e do seu filho, e a senhora Marchisio tinha quatro residentes. João Bosco
esteve na residência de Lúcia neste primeiro ano e no seguinte.9
O registro escolar de 1831-1832 apresenta a lista dos estudantes por
classes, datada em 12 de maio de 1832,10 com uma descrição pormenorizada
sobre cada um com o nome do pai, a profissão e o lugar de residência, o alo-
jamento do aluno e as mensalidades pagas. João Bosco é indicado no quarto
ano de Gramática como residente na casa de Lúcia Matta; tinha pagado todas
as mensalidades da escola.
A escolarização de João, embora descontínua, teve sucesso devido ao seu
insaciável desejo de aprender. No primeiro ano pôde completar o sexto (pre-
paratório), quinto e quarto, ou seja, três anos em um. Por três quartas partes
do tempo do primeiro ano, ele dedicou-se ao quarto ano de Gramática. En-
contrava-se nesse momento “livre e progredindo”, e sempre se lembrou dos
seus professores com grande respeito: os professores padre Valeriano Pugnetti
[Pignetti], padre Plácido Valimberti, muito “querido”, e o “clérigo” Vicente
Cima, “severo na disciplina”.

Registro dos anos 1831-1832 e outros informes são citados em S. Caselle, Don Bosco studente, 40-44.
9

Os estudantes do sexto ano eram 21; no quinto, 36; no quarto, 27; em Humanidades, 15;
10

em Retórica, 16; em Filosofia, 18. Total: 159. Cf. S. Caselle, Giovanni Bosco, 40-43. Os dominicanos
também criaram um curso de filosofia em dois anos, semelhante ao que se oferecia nos seminários.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Página de um caderno de João Bosco estudante.

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

João tem 17 anos de idade; fisicamente, sobressai numa sala de colegas


menores.11 Surpreende a classe e o professor Cima ao recitar de memória a li-
ção do dia sem ter o livro diante dos olhos, pois o havia esquecido. Tendo fei-
to três anos em um, passou com boas qualificações ao terceiro de Gramática.

Terceiro ano de gramática [1832-1833]


Após as férias com a mãe e o irmão no sítio de Sussambrino, de volta a
Chieri nos inícios de novembro, continuou morando com a senhora Lúcia na
casa de Marchisio. Ao perceber a “obediência” de João, Lúcia pediu-lhe que
cuidasse do seu filho, João Batista Matta, em troca de casa e alojamento grátis.12
O professor de gramática da terceira série era o dominicano padre Jacin-
to Giusiana [Giussiana]. Dom Bosco não dá detalhes sobre suas atividades es-
colares nesse ano. Entretanto, fala de vários outros temas que não se referem
exclusivamente a esse ano. Por isso são difíceis de localizar no tempo. Baste
um breve comentário.

A Sociedade da Alegria. Vida social e amizades


A Sociedade da Alegria era constituída em sua maioria por um grupo de
meninos. Sua fundação deve situar-se em 1833, embora Dom Bosco fale de
1832 nas Memórias.
Como foi formada a Sociedade? Dom Bosco diz que se colocou em
contato com os meninos de Murialdo (nos Becchi, onde também a intro-
duziu). Em Chieri, porém, João estava num ambiente social novo e diferen-
te, no qual ele entrou com receio e vontade. Quer ter amigos e ser popular,
mas não a qualquer preço. E “quem nasceu na roça sabe como arranjar-se”,
como ele mesmo dissera. Reconhece que seus colegas estudantes se dividem
entre “bons, indiferentes ou maus” e aprende como tratá-los. Recusa os
convites para ir ao teatro, disputar partidas, nadar e roubar. Já tinha supe-
rado insinuações semelhantes em Castelnuovo.
Nesse contexto, escolhendo seus amigos, fundou a Sociedade. João aju-
dava os colegas em suas lições de casa; viu-se logo rodeado de um grupo de

11
Recordemos, porém, que Dom Bosco como seus dois irmãos, era pouco corpulento e baixo
de estatura. Por outro lado, a maioria dos meninos da escola secundária era muito mais jovem, alguns
com apenas 9-10 anos.
12
Dom Bosco diz que João Matta cursava a escola numa série anterior à sua (cf. MO, 51, MO
Ceria, 51: “Passei a ser do curso superior”). O registro mencionado anteriormente coloca-o um ano
atrás de João. Contudo, tudo isso é estranho porque João Matta nascera em 1809 (S. Caselle, Giovanni
Bosco, 24) e, nesse tempo, já teria 23 anos).

227

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Dom Bosco: história e carisma 1

jovens que se sentia atraído por ele, “como os de Murialdo e Castelnuovo”.


A Sociedade surgiu a partir desse grupo. Duas regras básicas determinam a
conduta moral cristã e o cumprimento exemplar dos deveres escolares e re-
ligiosos. Havia lugar para diversões alegres, mas não era uma “sociedade de
boas-vidas”.13 João era aceito como “o capitão de um pequeno exército”; sua
popularidade era tal, que por toda parte era convidado para organizar entre-
tenimentos e dar aulas de repetição a outros estudantes.
As Memórias apresentam a imagem de um adolescente de convicções
cristãs, seriamente comprometido com uma vida religiosa e moral. A partir
disso, é errônea e carece de correção a versão de um menino extrovertido e
superficial, que se poderia deduzir da narração que Dom Bosco faz de suas
aventuras esportivas nas quais insistem alguns biógrafos.
Dom Bosco não menciona explicitamente problemas de adolescente.
Sua determinação de evitar os “maus” colegas não pode ser vista como “fragi-
lidade”, medo ou atividade negativa; mas deve ser entendida no contexto da
conduta moral de um adolescente exemplar, que então prevalecia e era ofe-
recida na escola. Apesar de alguma reticência, supunha-se que para se juntar
com “más” companhias sem sofrer dano moral, o adolescente devia ter alcan-
çado um considerável domínio de suas forças instintivas, paixões e agressões.
Tal domínio pede um nível de maturidade emocional que não se espera que
tenha alcançado um adolescente de 16 anos. Para João, essa determinação
precisou ser também uma estratégia deliberada de defesa, a fim de resolver
seus problemas de adolescência.
Podemos estar certos de que João, durante algum tempo, precisou repri-
mir seus impulsos sexuais, que considerava pecaminosos. Contudo, além do
freio moral, João sublimou esses impulsos em sentido muito mais positivo,
entregando-se a atividades de serviço e praticando o amor do próximo. Isso já
demonstra uma considerável maturidade moral. Suas atividades na Sociedade
da Alegria e como atleta e cômico devem ser vistas nessa perspectiva.
Além disso, enfrentando seus problemas de adolescente, João contava
com a ajuda e o apoio de bons padres, figuras paternas, como Jacinto Gius-
siana e Pedro Banaudi, e a direção espiritual de seu confessor, padre José
Malória, assim como com a ajuda e o exemplo de amigos especiais. Sobre
padre Malória, Dom Bosco escreverá: “Devo ao meu confessor não ter sido
arrastado pelos colegas a certas desordens, que os jovens inexperientes têm
infelizmente que lamentar nos grandes colégios”.14

13
MO, 54-56.
14
MO, 60.

228

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

Deve-se notar, embora de passagem, que em nenhum lugar das Me-


mórias que tratam dessa etapa, Dom Bosco é mencionado com meninas. É
compreensível. Não havia meninas no colégio real. Se elas recebiam alguma
instrução secundária, faziam-no separadas, conforme a Reforma educacional
de 1822. Ele encontraria as meninas pela cidade, na igreja etc., mas em geral
elas se mantinam à parte e sob vigilância. Além disso, João não buscaria a
companhia das meninas por razões morais, dado o seu compromisso precoce
com a vocação sacerdotal. Acrescente-se, ainda, que quando escreveu suas
Memórias na década de 1870, já fizera algumas opções educativas que, en-
quanto Congregação Salesiana, não contemplavam as jovens.15
A reunião dos amigos na Sociedade da Alegria, por melhor que fosse,
não preenchia inteiramente suas ânsias de intimidade. Uma indicação da vida
íntima de João Bosco aparece ao tentar estabelecer relações pessoais com dois
membros da Sociedade, Guilherme Garigliano e Paulo Braia [Braja], que
sobressaíam pelo “recolhimento, piedade e bons conselhos”. Juntos, eles se
envolveram em atividades de natureza religiosa e recreativa. Braja, “querido
e íntimo amigo”, morreu pouco depois e foi “juntar-se a São Luís, do qual
se mostrou em toda a sua vida fiel seguidor”.16 O amigo mais próximo de
João Bosco foi Luís Comollo, que se inscreveu pela primeira vez na escola em
1834-1835, durante o ano de Retórica de João.

Vida espiritual e prática religiosa


Dom Bosco reconhecerá que a vida escolar era saturada de práticas re-
ligiosas: “Naqueles tempos a religião formava parte fundamental da educa-
ção”. E descreve a prática religiosa, imposta pela normativa da escola, como
geradora de resultados educativos estupendos. Contudo, João e seus amigos
faziam mais do que mandavam as normas da escola, especialmente no que se
referia à oração e aos sacramentos.
João escolheu o cônego José Malória, padre diocesano, como confessor
regular e diretor espiritual; foi um passo importante em sua vida espiritual.

15
Ao longo da vida, Dom Bosco abstém-se quase sistematicamente de falar das meninas em suas
conversas ou escritos. Além da opção vocacional, pode ser que haja uma razão pessoal. Ele, porém,
escreveu um livro (de pouco sucesso) de orientações e devoções para meninas, semelhante ao Jovem
instruído (para os jovens). Em 1872, ele fundou com Maria Mazzarello o Instituto das Filhas de Maria
Auxiliadora, para a educação das meninas.
16
MO, 57-61. Guilherme Garigliano (1819-1902) tinha quatro anos a menos de João, e Paulo
Braia (1820-1832), cinco anos a menos, tendo morrido em 10 de julho de 1832, aos 12 anos, quando
João tinha 17. Enquanto não se pode localizar com segurança a fundação da Sociedade da Alegria, a
disparidade de idade deixa-nos alguma dúvida sobre as lembranças de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Será, depois, o padre que se recusará a ajudar João em seu discernimento


vocacional. Enquanto isso, animou-o a frequentar com mais assiduidade a
confissão e a comunhão, contrariamente ao uso do tempo, por mais que se
aconselhasse a comunhão na escola. Dom Bosco reconhece sua dívida com
o padre Malória ao afirmar não ter sido arrastado a certas desordens. Nada
acrescenta sobre a natureza dessas “desordens”.

A Confirmação
Dom Bosco também não fala nas Memórias do que deve ter sido um
acontecimento significativo em sua vida espiritual. Os relatos, todavia, men-
cionam que em 4 de agosto de 1833, aos 18 anos de idade, João recebeu a
Confirmação na igreja paroquial de Buttigliera, das mãos do arcebispo João
Antonio Gianotti, de Sassari (Sardenha). O arcebispo Luís Fransoni, de Tu-
rim, estava adoentado na ocasião. A Confirmação nas pequenas localidades
não acontecia nem frequente nem regularmente.

Exame da segunda série de Humanidades


Para passar da seção superior, isto é, da terceira série de Gramática à
segunda de Humanidades, devia-se fazer um exame geral. A classe de João
fez a prova exigida com o respeitado e temido padre José Gazzani (Gozzan).
Todos, menos João, foram aprovados. Ele foi suspenso por ter repassado o
seu exame a outros estudantes. Dom Bosco parece não ter dado importância
ao assunto, embora os documentos da Reforma o considerassem como falta
grave. Seu professor, padre Giussiana, intercedeu em seu favor e foi-lhe con-
cedido um novo exame. Foi aprovado com destaque e obteve que lhe fosse
perdoado o pagamento da matrícula.17

Segunda série de Humanidades (1833-1834)


Parece que no verão de 1833, o filho de Lúcia abandonou a escola, e
os dois, mãe e filho, não retornaram a Chieri em novembro.18 O ano escolar
1833-1834 foi um ano de privações. Parece que João dormiu durante algum

17
De acordo com a Reforma, o ensino devia ser grátis. Entretanto, como já se disse anteriormente,
um pequeno pagamento podia ser cobrado, se as necessidades o exigissem. Os registros da escola de Chieri
mostram que João obteve dispensa do pagamento do ano acadêmico 1832-1833. Em 1831-1832, pagou
9 liras; em 1833-1834 e 1834-1835, 12 liras [S. Caselle, Giovanni Bosco, 74].
18
Quando Dom Bosco corrigiu a cópia do rascunho original do padre Berto, inseriu uma nota:
“João Batista Matta, de Castelnuovo d’Asti, foi prefeito da sua cidade natal durante muitos anos e agora
possui uma farmácia na mesma cidade” [MO, 55].

230

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

tempo no estábulo do senhor Miguel Cavallo, em troca de cuidar do cavalo e


fazer algum trabalho em sua vinha. Em seguida, “no ano de Humanidades”,
conseguiu um trabalho de garçom em tempo parcial na taberna que João
Pianta, irmão de Lúcia, abriu na casa Vergnano. Como pagamento, João ti-
nha um lugar para dormir, “um desvão na parede”. Sobre o senhor Pianta, diz
que é “um primo e amigo” dos Bosco.19 Dom Bosco tem palavras de louvor
em relação a ele; no entanto, aparentemente, João foi explorado e tratado de
modo miserável. Ao ver a habilidade de João, o senhor Pianta ofereceu-lhe
trabalho permanente, que João recusou.
O professor da segunda série de Humanidades era Pedro Banaudi, padre
diocesano e professor eminente; sem recorrer a castigos, conquistara apreço
e respeito de todos os seus alunos.20 No dia 29 de junho, seu onomástico,
a classe organizou uma merenda. Alguns dos alunos abandonaram o grupo
para nadar, uma falha no código moral e disciplinar e uma trágica decisão,
pois um dos garotos se afogou.21
Não há registro das atividades acadêmicas, mas parece que João obteve
sucesso nos estudos e leu muito por conta própria. Como João se saísse muito
bem na segunda série de Humanidades, seus professores, especialmente pa-
dre Banaudi, sugeriram-lhe saltar a primeira série de Retórica e apresentar-se
aos exames de filosofia, o que fez com sucesso. Pensando melhor, pelo gosto
da literatura, ele decidiu acompanhar a primeira série de Retórica nos anos
1834-1835.

Estudo e leituras de João Bosco


Depois de descrever nas Memórias as suas proezas como atleta, prestidi-
gitador e outras atividades, Dom Bosco se pergunta se o leitor pudesse pensar
que se descuidava dos estudos. Admite que pudesse dedicar mais tempo aos
trabalhos escolares, mas acrescenta que, graça à sua prodigiosa memória, era
capaz de reter tudo o que lia ou ouvia ler; bastava-lhe apenas estar atento na
aula (!). “Mais, acostumado por minha mãe a dormir muito pouco, podia
empregar dois terços da noite em ler à vontade e dedicar-me quase todo o dia
a ocupações de livre escolha”.22
Lia vorazmente. Pedindo livros emprestados à livraria de Elias Foá, no
gueto judaico, por um soldo cada volume, conseguiu ler um volume por

19
S. Caselle, Giovanni Bosco, 85.
20
MO, 65.
21
MO, 65-66 traz uma narração detalhada do acidente.
22
MO, 78.

231

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Dom Bosco: história e carisma 1

dia, ou melhor, a cada noite; dessa forma, ele pôde conhecer os clássicos ita-
lianos, gregos e latinos. Lia por prazer, superficialmente, como reconhecerá
mais adiante.
Dom Bosco faz notar que ficar acordado e ler durante grande parte
da noite afetou sua saúde a ponto de pôr a vida em perigo. Esta descon-
certante referência a uma enfermidade prolongada e grave que sofreu em
seus tempos de estudante é de grande interesse. Dom Bosco esteve enfer-
mo com frequência e a patologia essencial, assim parece, era uma doença
broncopulmonar, que acabou por se tornar um enfisema crônico, com
numerosas complicações.
Sabemos que esteve novamente doente no seminário e durante o primei-
ro ano de sacerdócio, e que em 1846 quase morreu de broncopneumonia.
Talvez os problemas e o histórico médico de Dom Bosco tivessem origem no
exagero dos anos de estudante. Isso, combinado com os lugares impróprios
para dormir, a alimentação insuficiente e a falta de roupas adequadas para os
gélidos invernos, puderam ser a causa básica de seus problemas posteriores.23

O episódio de Jonas
Certo dia, na banca de livros de Elias Foá, João encontrou-se com um
“jovem judeu de bonito aspecto”, a quem chama, nas Memórias, de Jonas e
com quem iniciou uma amizade. Chegaram a ser muito amigos e começaram
a falar de religião. João Bosco afirmava que fora da Igreja católica não há sal-
vação; portanto, Jonas deveria fazer-se católico. O jovem começou a instruir-
-se na religião católica com João. Lamentavelmente, certo dia, sua mãe, a
quem Dom Bosco descreve como maga, velha e feia, descobriu o catecismo e
começou o inferno. Jonas, a seu tempo, foi batizado.24
O episódio não é inventado. O nome do jovem era Jacó Levi. Foi batiza-
do em 10 de agosto de 1834; mudou seu nome para Luís Bólmida por causa
da família que o apadrinhou. Parece que foi deserdado pela família. Chegou
a ser homem de negócio em Turim.25

23
Parece que os Bosco eram susceptíveis a problemas respiratórios crônicos. Dom Bosco, porém,
ao escrever na década de 1870, talvez quisesse aconselhar seus jovens salesianos.
24
MO, 67-71. O zelo de João é explicável, porque era essa a interpretação corrente do dito “fora
da Igreja não há salvação”. O procedimento de Dom Bosco em relação à tradição judaica também é
compreensível nesse contexto social e religioso particular, mas não é desculpável. A caracterização da
mãe de Jonas feita por Dom Bosco (sem dúvida para entreter o leitor, um dos propósitos declarados
das Memórias) é especialmente pouco respeitosa.
25
S. Caselle, Giovanni Bosco, 108-115.

232

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

Crise e discernimento vocacional (primavera de 1834)


Dom Bosco afirma nas Memórias que começou a pensar seriamente em
sua vocação no ano de Retórica, ou seja, em 1835. Escreve que o sonho da vo-
cação se tinha repetido e que, seguindo suas orientações, chegaria a ser padre.26
Para evitar os perigos espirituais de uma vida sacerdotal dedicada ao
cuidado das almas “no mundo”, decidiu entrar entre os franciscanos. Os ar-
quivos demonstram que tomou decisões nesse sentido, não em 1835, mas
na primavera de 1834, durante o ano de Humanidades. Em 18 de abril de
1834 foi examinado e aprovado para entrar no noviciado dos frades me-
nores reformados da observância em Chieri.27 Continua falando que ficou
aterrorizado com um sonho, que deve ter acontecido na primavera de 1834,
admoestando-o de que não encontraria paz no mosteiro franciscano.28 Dom
Bosco confessa que, perplexo e incomodado interiormente, pediu conselho a
seu amigo Luís Comollo.
Comollo chegara à escola quando João já estava no ano de retórica.
Deve-se pensar, por isso, que a crise e o processo de discernimento começa-
ram no ano de Humanidades (1834) e durasse até o ano de Retórica, quando
podia contar com Comollo.

Primeira série de Retórica [1834-1835]


Ao voltar a Chieri, em novembro de 1834, tendo decidido continuar
a primeira série de Retórica, João Bosco encontrou alojamento na casa do
alfaiate Tomás Cumino, por 8 liras ao mês. Levava uma recomendação do
pároco de Castelnuovo e ajuda econômica de um leigo católico do lugar.
Durante alguns meses dormiu num pequeno quarto úmido, semienterrado.
Depois, o padre Cafasso, que morara na mesma casa, conseguiu do senhor
Cumino que lhe desse um quarto melhor.
Além de ter lido os clássicos, não se assinalam outras atividades nesse
ano. Dom Bosco conta, contudo, alguns episódios claramente desenhados
para “entreter” os leitores Salesianos, que é uma das intenções declaradas das
Memórias. Os episódios de “magia branca e negra” contam os truques que
João usava com seu patrão, senhor Cumino, e com o diretor da escola, cône-
go Máximo Búrzio.29

26
MO, 79
27
O documento de admissão está em ASC AO2Oss: Accettazione [...], FDB 87 B8.
28
MO, 80.
29
MO, 72-73.

233

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Dom Bosco: história e carisma 1

Mais significativa, dada a intenção “oratoriana” das Memórias, é a passa-


gem das quatro provas com que o mágico e acrobata ia atraindo as pessoas às
funções da igreja. João venceu o charlatão em todos os campos e o dia acabou
com um almoço na taberna local.30

Luís Comollo
Tendo iniciado a primeira série de Retórica, provavelmente em novem-
bro de 1834, João conheceu Luís Comollo, que se tinha matriculado na esco-
la de Chieri, presumivelmente em vista da entrada no seminário local. Tinha
dois anos a menos de João e estudava um ano atrás dele. Luís entrou na vida
de João quando este presenciou um episódio no qual Comollo perdoou um
colega que o tinha maltratado. O fato foi o catalisador de uma estreita amiza-
de e de um relacionamento que se foi aprofundando com o passar do tempo
e deixou uma profunda marca na vida espiritual de Dom Bosco:

“Dele aprendi a viver como cristão. Depositei nele plena confiança, e ele em
mim; precisávamos um do outro. Eu de ajuda espiritual, ele de ajuda corporal”.31

Em certa ocasião, alguns colegas rebeldes defrontaram-se durante a aula


com Comollo e outro rapaz chamado Antônio Candelo. João levantou-se em
sua defesa e serviu-se de outro colega como bastão e, com isso, os atrevidos
se aquietaram. Mais tarde, Comollo lamentava-se com João da sua violen-
ta exibição de força. Dom Bosco acrescenta: “Pus-me inteiramente em suas
mãos, deixando-me guiar para onde e como lhe aprouvesse”.32 Enquanto os
dois estiveram no seminário, João considerou Luís como um irmão mais ve-
lho, embora este fosse dois anos mais novo e fisicamente muito menor. João
Bosco aparece novamente aqui desejoso de intimidade e de vida interior. O
exemplo de Luís foi claramente de grande ajuda para Dom Bosco, que escre-
ve (referindo-se à sua amizade no seminário):

30
MO, 77. Dom Bosco afirma que o almoço aconteceu na taberna Muretto (muro pequeno).
S. Caselle [Giovanni Bosco, 35] opina que deve ser taberna Muletto (pequeno mulo), que existiu até
1915. Entretanto Dom Bosco escreveu claramente “Muretto” no rascunho original que padre Berto
transcreveu fielmente. N. Cerrato [Il Tempio di don Bosco 9 (dezembro de 1994), 6-7] argumenta que
foi a taberna Moretto, ou seja, em outra parte da cidade. Moretto em italiano significaria “pequeno
deserto”. A tradução em piemontês, porém, Locanda dij Moré, significaria “Taberna da amoreira”. Que
Dom Bosco tenha escrito “Muretto” deve-se ao fato de o “o” ser pronunciado como “u”, em piemontês,
como Morialdo, que se pronuncia “Murialdo”.
31
MO, 63.
32
MO, 65.

234

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

O maravilhoso colega foi para mim uma bênção. Sabia oportunamente avi-
sar-me, corrigir-me, consolar-me [...]. Tratava-o com familiaridade, sentia-me
naturalmente levado a imitá-lo [...]. Devo a ele se não me deixei arruinar pe-
los relaxados e, ao contrário, progredi na minha vocação. Só numa coisa nem
sequer tentei imitá-lo: na mortificação [...]. Vê-lo exatíssimo nos mínimos
deveres de estudo e piedade, tudo isso me confundia e fazia-me ver no colega
um amigo ideal, um estímulo ao bem, um modelo de virtude para quem vive
no seminário.33

João confidenciou ao amigo Comollo suas dúvidas sobre a vocação. Co-


mollo escreveu uma carta ao tio, padre José Comollo, que disse a João que
pusesse sua confiança em Deus e entrasse no seminário.

33
MO, 97. A espiritualidade de Comollo, muito admirada por João Bosco, mas que afortunadamen-
te teve o bom senso de não assumir em sua totalidade, será comentada no contexto dos anos de seminário.

235

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Apêndice

A ESCOLA SECUNDÁRIA NA REFORMA DE 1822

A Reforma do rei Carlos Félix, já considerada quando se tratou do ano


que João Bosco passou na escola fundamental de Castelnuovo, refere-se à es-
cola secundária, tanto pública quanto real; tudo é regulado minuciosamente.
É oportuno conhecer sua organização e objetivos, pois foi o tipo de educação
recebida por João Bosco.

Calendário, horários e administração econômica


O currículo da escola secundária orientava-se para o estudo de latim,
italiano e literatura. Constava de seis anos, que se denominavam: sexto ou
preparatório; quinto; quarto; terceiro de Gramática; segundo de Humanida-
des; primeiro de Retórica.34
As aulas começavam em 3 de novembro e terminavam em fins de agosto
(15 de agosto para o primeiro de Retórica); tinham três horas e meia de dura-
ção pela manhã, incluindo os recreios e a missa; e duas horas e meia à tarde,
seis dias por semana.
O município era responsável pelos locais adequados e o equipamento
necessário, a manutenção e os salários dos professores.35 Se não pudesse res-
ponsabilizar-se pelos salários, com a permissão da autoridade, a escola podia
cobrar dos pais uma cota, paga livremente à administração da cidade. A cota
não podia passar de 15 liras por ano para os alunos das séries inferiores e de
20 liras para os graus superiores. Devia-se, porém, admitir gratuitamente os
estudantes pobres ou que o merecessem.

34
Seguiam-se a este programa de estudos secundários, dois anos de filosofia, necessários para o
ingresso na universidade ou na teologia do seminário.
35
Os salários anuais eram estes: professores de retórica, 800 liras; professores de humanidades,
720 liras; professores de gramática e de crianças, 640 liras; professores substitutos, 300 liras; diretores
espirituais, 225 liras.

236

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

Os deveres dos estudantes em geral


Os estudantes deviam apresentar-se ao sacramento da penitência uma vez
por mês, cumprir os deveres de Páscoa e receber um certificado do seu cum-
primento sob a pena de expulsão. Eram animados a receber com frequência a
sagrada comunhão, além de participar da missa nos dias de aula. Aos domingos
e dias santos, deviam “ir à igreja” sob a direção de um diretor espiritual.36
Os estudantes deviam demonstrar devoção nas funções sagradas, res-
peito e obediência aos professores e diretores espirituais. Uma falha grave
mereceria três dias de suspensão e a exigência de uma desculpa em público.
Estavam fora do alcance dos estudantes os teatros, salas de jogos, salas de
baile, bares, restaurantes, tabernas e outros lugares públicos. Era terminante-
mente proibido nadar, fazer passeatas, brincar na rua, fazer algazarras, criar
bandos, fazer reuniões nos bares e atuar em teatros sem permissão do diretor.
A falha no cumprimento depois do primeiro e segundo avisos era castigada
com a suspensão do ano, e as infrações mais graves, com a expulsão da escola.
O chefe de polícia e outros agentes do governo deviam informar às auto-
ridades escolares sobre qualquer transgressão. Eram castigados com a expulsão
os estudantes culpáveis de comportamento irreligioso, imoral ou delituoso,
ingovernáveis, incorrigíveis e obstinadamente desobedientes ou escandalosos.
Um conselho criado pela Reforma e as autoridades educativas decidiam sobre
a expulsão mediante voto secreto e por maioria. A decisão era tomada em
lugar público com exposições dos motivos.

Deveres dos professores e mestres


Em todos os anos escolares, os professores deviam obter, para sua nome-
ação e continuidade, o certificado de boa conduta do bispo e apresentá-lo às
autoridades da Reforma. A falta de apresentação desse certificado era penali-
zada com a expulsão.
Aos professores era proibido aceitar dinheiro ou presentes de qualquer
tipo dos estudantes ou dar aulas particulares, sob pena de expulsão.
Os professores deviam chegar antes do horário das aulas para estar à
disposição dos estudantes, controlar o tempo e pedir contas das lições antes
da missa. Deviam alternar-se na vigilância dos estudantes durante a missa e

36
A assembleia religiosa (congregação) era a reunião geral dos estudantes que se realizava nas
manhãs e tardes dos domingos e dias santos sob a supervisão de dois diretores espirituais (capelães),
para as funções religiosas e a instrução. Nos tempos de Dom Bosco, a assembleia reunia-se na igreja de
Santo Antônio, dos jesuítas.

237

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Dom Bosco: história e carisma 1

na ida à igreja aos domingos e dias santos. A missa para os estudantes devia
ser celebrada por turnos.37
Os professores podiam expulsar da classe os estudantes desobedientes
ou desrespeitosos, e os diretores espirituais, da celebração. Deviam informar
as autoridades da Reforma sobre a má conduta de qualquer estudante, para a
possível expulsão da escola.

Admissão e promoção
Para ser admitido à escola secundária, o estudante devia ter adquirido na
escola primária conhecimento suficiente de catecismo, doutrina cristã e gra-
mática italiana básica, assim como ter passado no exame para essa finalidade.
Era-lhes dado, então, um certificado de admissão. O delegado da Reforma
devia conservar o registro com o nome, sobrenome, origem, idade dos estu-
dantes e o resultado do exame.
A classe não podia ter mais de 70 alunos. Nas cidades maiores onde os
estudantes excediam esse número, devia-se criar outra classe do mesmo nível.
Para ser promovido, o estudante devia fazer um exame no final do ano
escolar e ser aprovado diante do delegado da Reforma. Para ser admitido ao
exame, o estudante devia apresentar um certificado do diretor espiritual ou
do pároco local, afirmando que possuía conhecimento suficiente da doutrina
cristã, que se apresentara à confissão todos os meses e que cumprira com os
deveres da Páscoa.

Certificados de professores e mestres


Os professores do ensino secundário deviam obter um certificado da
Universidade de que tinham feito um exame e foram aprovados. Deviam
obter ainda um certificado do município. Eles só recebiam o salário se cum-
prissem esses requisitos.
Os professores e os mestres deviam ser padres, ou ao menos “clérigos”
autorizados pelo bispo a usar batina, quando não havia padres disponíveis.
Sem essa autorização significava expulsão sem indenização.38

Alojamento dos estudantes


Os estudantes que não moravam com suas famílias, com parentes ou em
estabelecimentos educativos aprovados (internatos ou residências), deviam

Isso implica que todos, ou a maioria, dos professores eram padres.


37

Essa norma era determinada expressamente para as escolas secundárias reais, mas era uma
38

norma subjacente para todas as escolas no documento da Reforma.

238

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João Bosco na escola secundária pública de Chieri (1831-1835)

ficar alojados em casas aprovadas pelo diretor, depois de consultar as autori-


dades eclesiásticas e as da Reforma. Só se concediam permissões para manter
essas residências a pessoas de bom caráter, que assegurassem uma casa decente
e observassem as regras para o alojamento de estudantes. Não se autorizava a
um estudante mudar de casa sem a permissão do diretor.

Diretores espirituais, celebrações e Exercícios Espirituais


Todos os estudantes, sem exceção, deviam assistir à missa aos dias de
aula, nos domingos e dias santos, e à celebração dominical. Estas celebrações
ficavam sob a direção e o controle dos diretores espirituais.
Os diretores espirituais, normalmente dois, eram eleitos pelo bispo e
nomeados pelo magistrado central da Reforma ou pelos departamentos de
educação. Nas celebrações, os diretores espirituais gozavam da mesma autori-
dade dos professores em suas classes. Podiam castigar ou expulsar os estudan-
tes que fossem irreverentes, desobedientes ou negligentes no catecismo. Em
matéria de ensino, eram responsáveis perante a administração da Reforma e
do diretor. Em matéria religiosa ou espiritual respondiam perante o bispo.
Deviam estar disponíveis para ouvir os estudantes em confissão e bus-
car outros padres para que os ajudassem nesse ministério. Deviam animar a
comunhão frequente. Nas celebrações, eram responsáveis da celebração da
missa, de pregar e ensinar o catecismo, assim como do bom e devoto com-
portamento dos jovens.
Deviam entregar um relatório geral das ausências, atrasos, progresso no
catecismo ou na doutrina cristã, confissões (assumindo também o nome de
confessor), comunhões e o espírito de piedade de cada estudante num regis-
tro especial.
Os dois diretores espirituais, ao final de cada período bimestral, deviam
assinar a caderneta de admissão no que se referisse ao programa de religião.
Havia uma celebração em todas as manhãs e tardes dos domingos e dias
santos, do primeiro domingo no início das aulas até 15 de agosto, festa da
Assunção. A celebração da manhã consistia numa pequena leitura espiritual,
o canto do Veni Creator e o ofício da Bem-aventurada Virgem Maria, a Mis-
sa, as Ladainhas da Santíssima Virgem, um sermão de instrução e o Laudate
Dominum (Salmo 117) com uma oração por sua Majestade o Rei.
À tarde, lia-se uma curta leitura espiritual e recitavam-se as orações tra-
dicionais, os atos de fé, esperança, caridade e contrição, e era dada uma aula
de catecismo de mais ou menos 45 minutos pelos diretores espirituais ou
outros padres, conforme a necessidade.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os diretores espirituais deviam organizar um retiro de três dias para


preparar os estudantes para o Natal e um retiro mais intenso desde a sexta-
-feira da Paixão até sexta-feira santa, culminando com a comunhão de Pás-
coa, quando o bispo permitia.
O texto da Reforma terminava dando normas detalhadas sobre a orien-
tação das aulas, a conservação dos relatórios e os métodos de ensino. Propu-
nham-se diretrizes meticulosas para os exames finais, a promoção e os prê-
mios e as instruções para a cerimônia final de graduação.39

Nos exames, as qualificações ou notas eram dadas em latim ou com as letras de “A” a “F”: male
39

(mal, F), nescit (não sabe, D), medie (média, C), fere bene (quase bom, B-), bene (bom, B), fere optime
(quase excelente, A-), optime (excelente, A), egregie (sobressalente, A+).

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Capítulo X

CRISE E DISCERNIMENTO VOCACIONAL


EM CHIERI (1834-1835)

1. O sonho vocacional de João Bosco


Dom Bosco narra nas Memórias o sonho vocacional original que teve nos
Becchi, afirmando que ele voltou a se renovar “de maneira muito mais clara”.1
Refere-se ao momento do discernimento em Chieri, em 1834. Mais adiante,
ele relata detalhadamente outro sonho vocacional, continuação do primeiro,
localizando-o em 1844. Nessa época, já estava comprometido como padre no
trabalho do Oratório de Turim e a ponto de sair do Colégio Eclesiástico para
aceitar o cargo de capelão da marquesa Barolo. Ele diz que este sonho “parece
um apêndice” do primeiro, e afirma sua continuação sem detalhar qualquer
outro sonho: “Posteriormente, junto com outro sonho (1844), serviu-me de
programa em minhas decisões”.2
Estas são as únicas referências encontradas nas Memórias sobre o sonho
vocacional e sua repetição. É verdade que, também em relação ao seu dis-
cernimento vocacional de 1834, ele faz um breve relato de um sonho sobre
os franciscanos, aos quais desejava unir-se. Anteriormente, fizera menção do
“sonho” da reprimenda por ocasião do momento de tristeza pela morte do
padre Calosso (1830).3 Os dois últimos sonhos, porém, embora relacionados
cada um à sua maneira, com a escolha do estado, não contêm as imagens do
sonho vocacional, pelo que não devem ser considerados como sua repetição.
Tentando dar consistência ao quadro oferecido por Dom Bosco em suas
Memórias, Lemoyne, tanto nos Documenti quanto nas Memórias Biográficas,
reuniu outros relatos adicionais, provindos na maior parte de testemunhos
recolhidos no processo de Beatificação. As testemunhas sobre isso eram José

1
MO, 79. O relato do primeiro sonho vocacional já foi apresentado no capítulo VI.
2
MO, 133-134.
3
MO, 45-46 e 48.

241

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Dom Bosco: história e carisma 1

e Lúcia Turco, vizinhos de João no sítio de Sussambrino, como também os


padres Rua e Barberis, além de dom Cagliero. Com seu trabalho redacional,
Lemoyne compôs uma série narrativa de nove sonhos, a cada um dos quais,
por iniciativa própria, indicou a ocasião e o contexto; assim, ele construiu
uma sucessão “sobrenatural” de sonhos que teriam marcado e guiado o cres-
cimento vocacional de Dom Bosco desde os Becchi até Valdocco. Após falar
do sonho mencionado por João ao amigo José Turco durante as férias de
verão na granja de Sussambrino, Lemoyne escreve:

A esta altura não podemos deixar de fixar o nosso olhar no progressivo e ra-
cional suceder-se dos vários e surpreendentes sonhos. Aos 9 anos, João Bosco
tem conhecimento da grandiosa missão que lhe será confiada; aos 16, ouve a
promessa dos meios materiais indispensáveis para acolher e manter os incon-
táveis jovens; aos 19, um mandato imperioso dá-lhe a entender que não é livre
de aceitar a missão recebida; aos 21, é-lhe manifestada a classe de jovens de
cujo bem espiritual deverá ocupar-se de modo especial; aos 22, é-lhe indicada
uma grande cidade, Turim, onde deverá iniciar seus trabalhos apostólicos e
suas fundações. E, como veremos, não terminam aqui as misteriosas instru-
ções que continuarão em intervalos até cumprir-se a obra de Deus.4

As contínuas “misteriosas instruções” são o sonho de 1844 e dois sonhos


adicionais que falam dos Santos Mártires de Turim.5 Convém notar, como
diz o próprio Dom Bosco, que o sonho vocacional se repetiu; levando em
conta experiências posteriores, ele mesmo o considerava como uma orienta-
ção divina por meio da Santíssima Virgem. A construção de Lemoyne, con-
tudo, não resiste ao exame crítico. Segundo conta nas Memórias, Dom Bosco
revela suas dúvidas pessoais e as incertezas que tinha na época, meados da
década de 1830, quando na verdade ainda lutava para discernir sua vocação.

Luta interior de João Bosco para o discernimento vocacional


Ao falar do seu discernimento vocacional, quando estudante em Chieri,
Dom Bosco escreve:
4
MB I, 426; II, 342-343, 296; Ceria, em sua edição das Memórias (MO Ceria, 134, nota) assu-
me a linha dos sonhos de Lemoyne.
5
Dos sonhos que mencionam os Santos Mártires, um é relato do padre Barberis, variante do
sonho de 1844, e, outro, é compilação do próprio padre Lemoyne a partir de fragmentos ouvidos de
Dom Bosco ao longo de vários anos. Cf. ensaio sobre o método de Lemoyne oferecido anteriormente.
Os textos desses sonhos, sem qualquer comentário, estão no apêndice a seguir. Os sonhos acerta-
damente de Dom Bosco, agrupados por temáticas, foram publicados por Antônio da Silva Ferreira,
Acima e além, os sonhos de Dom Bosco. São Paulo: Salesiana, 2011.

242

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

O sonho de Murialdo estava gravado em minha memória; havia-se até reno-


vado de maneira muito mais clara, e assim, se lhe quisesse dar fé, devia optar
pelo estado eclesiástico, ao qual justamente me sentia inclinado. Porém, a
pouca fé nos sonhos, meu estilo de vida, certos hábitos do meu coração e a
falta absoluta das virtudes necessárias para esse estado tornavam duvidosa e
bastante difícil a decisão nesse sentido.6

Seu confessor, padre Malória, que lhe fora muito útil ao orientá-lo na
vida cristã, uma ou outra vez, recusou-se a tomar posição no assunto da esco-
lha do estado vocacional. João precisou caminhar sozinho. Depois de pensar
muito e ler alguns livros devotos sobre vocação, decidiu entrar entre os Frades
Menores Franciscanos, no convento local de Nossa Senhora da Paz. Como
surgissem “obstáculos”, buscou o conselho de Luís Comollo.
Dom Bosco data a crise vocacional e sua intenção de unir-se aos francis-
canos no final do primeiro ano de Retórica, verão de 1835. Os registros fran-
ciscanos mostram, porém, que ele fez os exames e foi aceito para o noviciado
em 18 de abril de 1834, durante o segundo ano de Humanidades.7 Além
disso, na primavera de 1834, Luís Comollo, que, como afirma Dom Bosco,
participou na decisão, ainda não tinha ido para Chieri. Deve-se concluir,
então, que o discernimento vocacional de João foi uma longa luta iniciada no
segundo ano de Humanidades, com a decisão de entrar entre os franciscanos
(1834), e concluída no primeiro ano de Retórica (1835), quando, com a
ajuda de Comollo, decidiu entrar no seminário.
Na mente de Dom Bosco, a opção foi entre o seminário e o noviciado,
nunca entre ser e não ser padre. Era óbvio que, ao entrar entre os franciscanos
como religioso sob a obediência, poderia não ter acesso ao sacerdócio. Os li-
vros sobre vocação lidos por João sugeriam que o padre secular ficava exposto a
graves perigos, que a sua responsabilidade era enorme e que Deus pediria dele
a mais estrita conta, e outras ideias similares. Nesses livros, como João perce-
bia, a vida religiosa num convento surgia como um paraíso de refúgio para os
perigos do mundo. Nele existe maior facilidade de salvar a alma e conservar
a paz. Entende-se por que João considerasse seriamente entrar no noviciado
franciscano. Um sonho, como relata nas Memórias, veio dissuadi-lo.8
6
MO, 79. Estas palavras são interpretadas por Lemoyne como uma demonstração da “afirmação
de humildade” de Dom Bosco. Lemoyne permite-se eliminar parte do texto, como se dirá mais adiante.
7
Documento em ASC: A020s; Accettazione [...], FDB 87 B8. Cf. também S. Caselle, Don Bosco
studente, 97. O documento em latim diz: “João Bosco, jovem nascido em Castelnuovo d’Asti, batizado
em 17 de agosto de 1815 e confirmado [crismado], foi aceito no convento de Santa Maria dos Anjos
da Ordem da Reforma de São Francisco. É dotado de todas as qualidades necessárias e desejáveis. – Em
18 de abril [de 1834] (Dados transcritos do V. II dos relatórios de jovens aspirantes aceitos na Ordem,
de 1638 a 1838). – [Assinado:] Padre Constantino de Valcamônica, Bréscia”.
8
MO, 80.

243

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Dom Bosco: história e carisma 1

Dom Bosco faz em seguida uma anotação mais crítica: “Sucedeu, entretan-
to, um caso, que me pôs na impossibilidade de executar o meu projeto. Como os
obstáculos eram muitos e permanentes, resolvi expor tudo ao amigo Comollo”.
Enquanto João fazia uma novena de orientação, Luís Comollo apresentou
por escrito o problema ao seu tio, padre José Comollo, pároco de Cinzano, sua
cidade natal. Ao final da novena, chegou uma carta do tio aconselhando João
a vestir o hábito clerical e prosseguir seus estudos no seminário diocesano até
“conhecer melhor o que Deus quer” dele. João seguiu o conselho do padre.
Dom Bosco, nas Memórias, situa o seu discernimento vocacional nos úl-
timos meses do último ano na escola. O ano de Retórica encerra-se em 1834
e não em 1835. As únicas pessoas que participaram no discernimento e opção
foram Luís Comollo e seu tio padre Comollo.

Relato de Lemoyne da primeira crise e discernimento


Lemoyne tenta resolver a dificuldade falando de dois momentos dife-
rentes de discernimento vocacional, no segundo ano de Humanidades, com
a intervenção do pároco de Castelnuovo, padre Cinzano, de leigos católicos
e do padre Cafasso; o outro, no primeiro ano de Retórica, com a intervenção
de Luís Comollo e seu tio. A construção elaborada por Lemoyne é um típico
exercício de compilação.
Recolhendo elementos diversos, às vezes díspares, Lemoyne consegue
construir uma história crível; contava com duas informações básicas: a pri-
meira é que João solicitou e fez o exame para entrar no noviciado dos fran-
ciscanos no ano de Humanidades, na primavera de 1834. Para isso, obteve
o documento do arquivo dos franciscanos. A segunda foi que João não pôde
contar com Comollo até o ano de Retórica (1835). Os dados díspares dão
apoio para colocar dois momentos distintos de crise e dividir e editar seu
material de acordo com isso.
Para a história da primeira crise, Lemoyne reúne material das Memórias
de Dom Bosco e a informação do arquivo franciscano, relativo ao exame para
a aceitação de João. Combina esses dados num relatório em primeira pessoa,
atribuindo-o todo a “João”. Escreve:
Com o ano de Humanidades João via aproximar-se o momento em que deve-
ria tomar uma decisão quanto à vocação [...]. Sentia agora um temor reveren-
cial ao pensar na sublimidade desse estado [...]. Sobre esse momento da sua
vida, João escreveu uma página de admirável humildade.9

9
As Memórias de Dom Bosco (escritas em 1873-1875) são a fonte dessa passagem. Contudo,
parece que Lemoyne insinue que é uma “narração” escrita por João (em 1834-1835).

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

“O sonho de Murialdo [Becchi] estivera sempre impresso em mim; ou melhor,


fora até renovado outras vezes de maneira muito mais clara, pelo que, se lhe
quisesse dar fé, devia escolher o estado eclesiástico, ao qual justamente me sentia
inclinado. Porém, eu não queria crer nos sonhos, e o meu estilo de vida e a falta
absoluta das virtudes necessárias para esse estado tornavam a decisão duvidosa e
muito difícil.10 [...] Tinha um bom confessor, que pensava em fazer de mim um
bom cristão, mas jamais quis imiscuir-se na questão da vocação. Aconselhando-
-me comigo mesmo, depois de ler algum livro que tratava da escolha do estado,
decidi-me a entrar na Ordem Franciscana. Se me faço padre secular – dizia de
mim para mim – minha vocação corre grande perigo de naufrágio. Abraçarei o
estado eclesiástico, renunciarei ao mundo, entrarei para o claustro” [...].11

Nas Memórias, ele escreve ter feito um exame, dizendo simplesmente: “Apre-
sentei o pedido aos conventuais reformados, prestei o exame correspondente, fui
aceito”. Lemoyne, por sua vez, concretiza a afirmação de Dom Bosco com mate-
rial de arquivo, atribuindo-o a Dom Bosco em primeira pessoa. Escreve:

Encontramos nas Memórias de Dom Bosco, uma narração de que se apresentou


para os exames de admissão ao noviciado franciscano. [Dom Bosco] escreve:
Ao aproximar-se da festa de Páscoa que em 1834 caía em 30 de março, fiz o
pedido para ser aceito entre os [Franciscanos] Reformados. Enquanto espera-
va a resposta e a ninguém falara das minhas intenções, eis que certo dia, um
companheiro de classe chamado Eugênio Nicco, com quem eu tinha pouca
familiaridade perguntou-me: “Então, decidiste ser franciscano?” Olhei-o com
surpresa [e perguntei]: “Quem te disse?”. Ele, então, mostrou-me uma carta
[dizendo:] “Escreveram-me para dizer-te que és esperado em Turim para fazer
o exame comigo, porque eu também decidi abraçar o estado religioso nessa
Ordem”. Fui então até o convento de Santa Maria dos Anjos, em Turim, fiz o
exame e fui aceito em meados de abril.12

As duas informações em poder de Lemoyne formam o núcleo da pri-


meira crise vocacional e do discernimento. Em seguida, Lemoyne acrescenta
o sonho sobre os franciscanos, como narrado por Dom Bosco nas Memórias.

10
Ao citar as Memórias de Dom Bosco neste ponto das Memórias Biográficas, assim como nos
Documenti, Lemoyne omite uma expressão importante da “admirável humildade” citada acima, ou
seja: “certos hábitos do meu coração”. A omissão foi intencional?
11
MB I, 286-287.
12
MB I, 301. Lemoyne transcreve aqui o documento latino de admissão dos arquivos franciscanos.
Dom Bosco em suas Memórias não diz nada sobre o pedido, o exame e a admissão. Contudo, Lemoyne
toma a liberdade de acolher a informação de outras fontes e aplicá-la a Dom Bosco em primeira pessoa.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Lemoyne, além disso, combina com diálogos apropriados outra infor-


mação referente aos párocos de Castelnuovo, padre Dassano e, depois, padre
Cinzano, e alguns leigos católicos da paróquia. Padre Cafasso, a quem João
diz ter consultado no Colégio Eclesiástico de Turim, também resultou como
decisivo no processo de discernimento.13 As Memórias de Dom Bosco não
nomeiam nenhum deles em relação ao discernimento vocacional.

Relato de Lemoyne da segunda crise e discernimento


A história de Lemoyne sobre a segunda crise nas Memórias Biográficas
segue as linhas das Memórias de Dom Bosco, nas quais Luís Comolllo e seu
tio padre são os únicos participantes do discernimento.14

Breve reconstrução crítica


A reconstrução crítica da crise vocacional de João e do discernimento
vai da primavera de 1834, durante o ano de Humanidades, a agosto de 1835,
final do ano de Retórica. Nos inícios da primavera de 1834, após a leitura
de alguns estudos sobre a vocação sacerdotal, João decidiu pedir para entrar
no noviciado dos franciscanos. Foi aceito em 18 de abril de 1834. Apesar
disso, a dúvida persistiu e lutou com ela durante o resto do ano escolar. Po-
demos supor que durante as férias de verão, passadas com a família no sítio
de Sussambrino, revelou sua intenção à mãe e que ela prometeu seu apoio a
qualquer decisão que fosse segundo a vontade de Deus.
Em novembro, de retorno à escola (1834) para os anos de Retórica
(1834-1835), João encontrou-se com Luís Comollo, que acabava de se ma-
tricular. Podemos supor que, com sua amizade e confiança mútua aumentada
durante o ano escolar, falariam sobre a vocação. Isso incluiria a intenção de
João de entrar no noviciado no final do ano escolar. A conversação com Co-
mollo, que pensava entrar no seminário, pôde acentuar a crise e estimular
mais o sonho dos franciscanos. Conforme se aproximava o momento, um
sonho causou em João maior ansiedade ainda:
Poucos dias antes do tempo marcado para a entrada, tive um sonho bas-
tante estranho. Pareceu-me ver uma multidão daqueles religiosos com os
hábitos rasgados, correndo em sentido contrário uns dos outros. Um deles

13
MB I, 286-300. Padre Cafasso foi ordenado no seminário de Chieri, em 1833, e no tempo
de que estamos tratando ainda era estudante do curso de teologia pastoral, de dois anos, no Colégio
Eclesiástico de Turim, tendo sido promovido em seguida à Faculdade. Como dissemos anteriormente,
Dom Bosco encontrara o seminarista Cafasso à porta da igreja de Murialdo no dia de uma festa local.
Não está claro se a amizade foi desenvolvida nos anos 1830 e 1834-1835.
14
MB I, 450-453.

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

veio dizer-me: “Procuras a paz, e aqui não haverás de encontrá-la. Observa


a atitude dos teus irmãos. Deus te prepara outro lugar, outra messe [...]”.15

Embora não seja uma versão do sonho da vocação – não contém imagens
vocacionais –, este não deixa de ter significado vocacional, pois, como João
Bosco o entendeu, dissuadiu-o de entrar numa forma de vida que iria contra
o conteúdo do sonho vocacional: o apostolado com os jovens em situação
de risco. Obviamente, o sonho confirma a agitação interior e as dúvidas de
João, mais do que a falta de observância religiosa no convento. Um estado de
perplexidade poderia ter provocado o sonho e seria simples especulação querer
saber se este por si mesmo o teria levado a reconsiderar sua decisão de entrar
entre os franciscanos ou não.
Seja como for, João neste momento decidiu pôr todo o assunto à con-
sideração do amigo Comollo e pedir o seu conselho. Não sabemos o que
Comollo teria opinado, mas sabemos que apresentou o caso ao tio, padre
Comollo. A resposta aconselhava que João não entrasse no noviciado, mas
fosse para o seminário, confiando na orientação providencial de Deus. Essa
reconstrução dos fatos parece ser mais provável. Contudo, algumas declara-
ções de Dom Bosco nesse sentido ainda requerem nova atenção.

O “projeto”, o “caso” e os “obstáculos”


Como Dom Bosco mesmo conta, depois de relatar o sonho dos francis-
canos e antes de falar com Comollo, ele faz uma afirmação estranha:
Sucedeu, entretanto, um caso, que me pôs na impossibilidade de executar o
meu projeto. Como os obstáculos eram muitos e permanentes, resolvi expor
tudo ao amigo Comollo.16

A que “projeto” Dom Bosco se refere? Pelo contexto, parece que se deve
ver esse “projeto” em relação ao seu desejo de entrar entre os franciscanos. É o
que entendem sem maiores especulações Ceria e Lemoyne.17 Se for isso, pode-
-se concluir que o sonho não foi decisivo, porque aconteceu antes do “caso”.
Qual foi o “caso”? Certamente, não foi o sonho, pois Dom Bosco
escreve que “sucedeu, entretanto, um caso”, depois de narrar o sonho. E,
complicando a questão, quais eram os “obstáculos muitos e permanentes”
encontrados em seu caminho? Foram barreiras econômicas ou de natureza
psicológica? Surgiram devido ao “caso”?

15
MO, 80.
16
MO, 80.
17
Cf. MO Ceria, 81, nota à linha 42; MB I, 363.

247

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Dom Bosco: história e carisma 1

Parece preferível entender que o “projeto” se refere à questão da opção


vocacional em geral, não simplesmente à entrada entre os franciscanos, e que
o “caso” e os “obstáculos” fossem de natureza psicológica. A resposta do padre
Comollo parece referir-se a um problema mais amplo, uma vez que – segun-
do Dom Bosco – ele respondeu:

Aconselharia teu colega a desistir de entrar num convento. Vista o hábito cleri-
cal [e entre no seminário] e enquanto prosseguir nos estudos haverá de conhe-
cer melhor o que Deus quer dele. Não tenha medo de perder a vocação, porque
com o recolhimento e as práticas de piedade ele superará todos os obstáculos.

Dom Bosco podia referir-se a questões pessoais, a ideais inalcançáveis de


santidade ou à ansiedade criada por exigências que não se considerava capaz de
cumprir. Pode não ser por humildade, como quer Lemoyne, que Dom Bosco
declare ao falar da repetição do sonho sugerindo o sacerdócio [diocesano]:

Meu estilo de vida, certos hábitos do meu coração e a falta absoluta das virtu-
des necessárias para esse estado tornavam duvidosa e bastante difícil a decisão
nesse sentido.18

Esta declaração pode apontar para um sério conflito interior. Confor-


tou-o e deu-lhe segurança um sonho vocacional nesse momento crítico? Le-
moyne pensa que sim e coloca nesse momento a narração de um pequeno
sonho, o do mandato imperioso.19 Pode não ser digno de se levar criticamente
em consideração, mas a repetição do sonho vocacional neste preciso momen-
to poderia ser plausível.

2. Opção de João Bosco pelos jovens


Podemos nos perguntar se a opção pelos jovens estava no subconsciente
de João quando se debatia sobre a vocação e, se assim fosse, que papel ela
jogou em sua decisão vocacional.
Dom Bosco diz-nos nas Memórias que aos 10 anos já estava empenha-
do no apostolado juvenil compatível com sua idade. Ao longo dos anos de
estudo em Chieri, “o oratório” e o que podemos chamar de “ministério entre
os colegas” eram um compromisso sério de sua parte. Mais ainda, as ima-
18
MO, 80. Como dissemos, ao citar esta “afirmação de humildade”, Lemoyne, tanto nos Do-
cumenti como nas Memórias Biográficas (MB I, 286-287), omite o que pode ser a frase-chave, ou seja,
“certos hábitos do meu coração”.
19
Cf. o apêndice a seguir para o texto deste sonho, cuja fonte é padre Barberis.

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

gens básicas do sonho vocacional (jovens e animais que se transformam e a


“ordem” de cuidar deles) são símbolos do ministério sacerdotal em favor dos
jovens. Parece que o sonho se repetiu outras vezes em termos mais claros. A
vocação sacerdotal, sugestão direta do sonho, foi direcionada à opção pelos
jovens. Parece ter sido esse o significado básico percebido por ele no sonho.
Como podia, então, esperar realizar esse tipo de ministério da juventude
como franciscano e submetido à obediência? Podia encontrar alguma razão
para eliminar o chamado aos jovens que, segundo suas próprias afirmações,
tinha ouvido claramente no sonho e que vira reforçadas em compromissos
concretos com os jovens? Lemoyne percebe a dificuldade, quando declara que
“João Bosco estava convencido de que esse passo (entrar num convento) não
podia criar obstáculos ao plano que Deus tinha traçado para ele”.20
Parece, por isso, que no momento histórico concreto, meados da década
de 1830, a opção definitiva pelos jovens ficava como algo que pertencia ao
futuro. Poder-se-ia dizer que os dez anos seguintes (1834-1844) foram um
período de incubação. Talvez esta seja outra comprovação de que, nessas cir-
cunstâncias, o sonho da vocação com suas imagens e sugestões não lhe tenha
trazido a clareza e a certeza declaradas pelo biógrafo, e que o próprio Dom
Bosco percebeu nele, contemplando-o “em retrospectiva”.

Altar de Nossa Senhora das Graças na catedral de Chieri.

MB I, 262. Lemoyne faz a mesma afirmação quando, mais tarde, em 1844, Dom Bosco expõe
20

ao seu diretor espiritual padre José Cafasso a intenção de entrar numa ordem religiosa (os Oblatos da
Virgem Maria) e ir para as missões (MB II, 202-203). Esta seria uma alternativa à opção de trabalhar
com os jovens em situação de risco.

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Apêndice

DIVERSOS TESTEMUNHOS SOBRE O SONHO DA


VOCAÇÃO NOS BECCHI (1824-1825)21

Elaboração de Lemoyne sobre uma conexão sobrenatural do sonho


(de 9 a 22 anos)
A esta altura, não podemos deixar de nos fixarmos no progressivo e ra-
cional suceder-se dos vários e surpreendentes sonhos. Aos 9 anos, João Bosco
tem conhecimento da grandiosa missão que lhe será confiada; aos 16, ouve a
promessa dos meios materiais indispensáveis para acolher e manter os inúme-
ros jovens; aos 19, um mandato imperioso dá-lhe a entender que não é livre
de aceitar a missão recebida; aos 20, é-lhe manifestada a classe de jovens de
cujo bem espiritual deverá ocupar-se de modo especial; aos 22, é-lhe indicada
uma grande cidade, Turim, na qual deverá iniciar seus trabalhos apostólicos
e suas fundações.22

Testemunho de José Turco no processo diocesano23


Meu nome é José Turco. Sou filho de Domingos Turco e de Catarina
Pilone, falecidos. Tenho 82 anos de idade. Nasci e vivi em Castelnuovo d’Asti
e sou proprietário nessa cidade. Conheci o Servo de Deus quando estudava
em Castelnuovo d’Asti. Sei que era um estudante responsável. Quando não
estava na sala, podia-se encontrá-lo na casa de certo Roberto, que tinha um
filho que ia à escola com o jovem Bosco. À tarde, ele voltava à casa dos paren-
tes na aldeia dos Becchi [...].
Antes de ser padre, o seminarista João Bosco costumava ir todos os dias
ao alto de um vinhedo, propriedade de Turco, no local chamado Renenta,
onde passava grande parte do dia à sombra das árvores que ali havia.
Nós o ouvimos dizer muitas vezes: “Fiz meus estudos no vinhedo de José
Turco, na Renenta”. A finalidade de seus estudos era ser digno da sua vocação

Lemoyne: aos 9 anos (MB I, 123). Ver o texto citado anteriormente.


21

MB I, 317.
22

23
Textos pertinentes selecionados: POCT, sessões 89 e 90 [6-7 de julho de 1892] FDBM 2135
(C2-11) - [POCT = Processus Ordinarius Curiae Taurinensis: Processo diocesano da Chancelaria de
Turim]. Lemoyne: aos 16 anos, MB I, 423.

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

e preparar-se para a instrução e educação da juventude. De fato, aproximou-


-se certo dia de José Turco, com quem tinha grande amizade, enquanto tra-
balhava no vinhedo, e este começou a dizer-lhe: “Então, serás seminarista, e
logo padre; depois, o que farás?”. João respondeu: “Minha intenção não é ser
pároco ou coadjutor; eu gostaria de recolher meninos pobres e abandonados
para educá-los cristãmente e instruí-los” [...].
Outro dia, encontrei-me com ele e, em confidência, contou-me que ti-
vera um sonho, graças ao qual compreendera que, com o passar do tempo,
estabeleceria sua morada em certo lugar no qual recolheria muitos jovenzi-
nhos para instruí-los no caminho da salvação.

Narração do relato de José Turco pelo padre Barberis24


Dois dias antes da festa de Todos os Santos [30 de outubro] de 1875,
certo Turco de Castelnuovo veio ao Oratório. Fora colega de Dom Bosco,
quando este ainda estava na escola fundamental nessa cidade. Durante a con-
versa, sem que se lhe pedisse, deu algumas informações que tinha a ver com a
juventude de Dom Bosco. Entre outras coisas, relatou o seguinte:
Joãozinho (era este o nome carinhoso com que Dom Bosco era então
conhecido) vinha com frequência ao nosso vinhedo, que limitava com o de
seu pai, [e vinha ali] porque ficava mais afastado das estradas e [era] [podia
ser] menos importunado. Ele sempre trazia algum livro. E, sobretudo, en-
quanto cuidava das uvas, gostava de ir ao topo de uma colina de onde podia
ver as pessoas, no seu vinhedo e no nosso, sem que fosse visto. Meu pai
sempre o encontrava ali. Era particularmente amistoso com o menino. Ele o
acarinhava na cabeça e dizia: “Sê bravo, Joãozinho; sê realmente bom, estuda
muito, e o Senhor te ajudará”.
“Confio que Ele me ajudará”, respondia Dom Bosco, “contudo, nunca
me livra de preocupações. Assim que este ano acabar, gostaria de estudar la-
tim e ser padre, mas minha família não tem os meios. Como poderá minha
mãe permitir-me continuar os estudos?”
“Não tenhas medo, querido Joãozinho” [e meu pai acrescentou] “pro-
cura apenas estudar muito agora e ser sempre um menino melhor. O Senhor
corresponderá a tuas orações; verás.”

24
ASC A000-A003: Cronachette, Barberis. “Notizie varie dei primi tempi dell’Oratorio […]”,
p. 8, “Primo sogno o visione di D. B. a 15 an.”, FDB 892 A8 - [O Ms. das mãos de Barberis traz o
sinal de aspas em cada linha, sinal do uso do texto de Lemoyne]. Lemoyne: aos 16 anos (MB I, 123).

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Dom Bosco: história e carisma 1

“Assim espero” [respondeu-lhe]. E retirou-se ao lugar habitual de estudo, re-


fletindo profundamente. Penalizado, aventurou-se: “Quem sabe, quem sabe...?”.
Certo dia, inesperadamente, vemo-lo correr e saltar com alegria em nos-
so vinhedo e aproximar-se do meu pai com um feliz estado de espírito: “Que
aconteceu, Joãozinho?” [perguntou-lhe meu pai]. “Por que estás tão alegre
agora, sendo que estavas tão triste ontem à tarde?”
“Boas notícias, muito boas notícias” [respondeu]. “À noite, eu tive um
sonho. Nele, vi que ia continuar meus estudos e chegar a ser padre. Eu cui-
darei de muitos jovens a cuja educação quero dedicar o resto da minha vida.
Não vês? Está tudo acertado. Vou ser padre.”
“Mas isso é apenas um sonho” [exclamou meu pai], “é mais fácil dizê-lo
do que fazê-lo!”
“Ó!” [insistiu João], “o resto é fácil! Vou ser padre e vou cuidar de mui-
tos jovens e os ajudarei muito.”
Com essas palavras, radiante de alegria, ele continuou, como sempre, a
ler, estudar e cuidar do vinhedo.

Testemunho do padre Rua no Processo Diocesano, citando relatos


de Lúcia Turco e outros25
Dom Bosco, desde a primeira infância, deu provas de inclinação para
o sacerdócio. Talvez o Senhor lhe tenha dado uma visão do futuro de sua
missão, inclusive naquela idade precoce. Lúcia Turco contou-me o que segue.
Dom Bosco, com frequência, visitava sua família para passar algum tem-
po com os irmãos. Ao chegar à casa certa manhã, observaram que ele estava
com um estado de espírito mais alegre do que o habitual. Quando lhe per-
guntaram o porquê, ele respondeu que na noite anterior tivera um sonho que
o deixara muito feliz. Ao insistirem para que contasse o sonho, ele relatou que
vira uma nobre Senhora, que ia caminhando até ele à frente de um grande
rebanho. Ela aproximou-se, chamou-o pelo nome e falou-lhe: “Joãozinho,
olha aqui; entrego todo este rebanho aos teus cuidados”.
Ouvi também de outros que ele perguntara à Senhora: “Como vou cui-
dar de tantas ovelhas e de tantos cordeiros? Onde poderei encontrar pastagens
suficientes para alimentá-los?”. A Senhora respondeu: “Não tenhas medo, eu
te ajudarei”, desaparecendo em seguida.

POCT, 358 período de sessões [29 de abril de 1895], juxta interrogatorium duodecimum,
25

p. 4036f, em ASC A265273: Deposizioni testi de Rua, FDB 2184 E7). [Segundo Lemoyne, aos 16
anos: MB I, 390-391].

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Crise e discernimento vocacional em Chieri (1834-1835)

A partir desse momento, apoderou-se dele uma grande vontade de iniciar


os estudos para ser padre. Entretanto, ele precisou lutar contra sérios obstáculos:
as dificuldades econômicas da família e a oposição do seu meio-irmão Antônio.

Sonho do “mandato imperioso”26


[Citando as Memórias de Dom Bosco, discernimento da vocação em Chieri.]
“Ia-se aproximando o fim do ano de retórica, época na qual os estu-
dantes costumam decidir a própria vocação.” Sobre esse período de sua vida,
Dom Bosco deixou-nos algumas linhas escritas com admirável humildade.
“O sonho de Murialdo estava gravado em minha memória; fora até mesmo
renovado de maneira muito mais clara, e assim, se lhe quisesse dar fé, devia
optar pelo estado eclesiástico, ao qual justamente me sentia inclinado. Porém,
a pouca fé nos sonhos, meu estilo de vida, [aqui, Lemoyne omite: “certos
hábitos do meu coração”] e a falta absoluta das virtudes necessárias para esse
estado tornavam duvidosa e bastante difícil a decisão nesse sentido”.
[Nota à margem] Pareceu-me ver o nosso Divino Salvador, vestido de
branco e resplandecente com uma luz mais brilhante. Ia à frente de uma
multidão incalculável de jovens. Voltando-se para ele, disse: “Vem aqui. Co-
loca-te à frente destes meninos; sê tu mesmo o guia”. “Mas não sei como”,
respondeu João. Nosso Divino Salvador, todavia, insistiu imperiosamente até
que finalmente João se pôs à frente dessa multidão de meninos e começou a
guiá-los, obedecendo à ordem recebida.

O sonho do conserto da roupa27


[Sumário]
Neste sonho no seminário, Dom Bosco viu-se numa oficina de alfaiate,
não cortando uma roupa fina, mas consertando uma roupa rasgada. Lemoy-
ne vê nele a imagem do tipo de meninos (pobres e abandonados) dos quais,
no sonho, Dom Bosco recebeu o encargo de cuidar.

Testemunho de dom Cagliero no processo diocesano28


Sobre este tema [o sacerdócio], eu sei de um sonho que o Servo de Deus
teve quando ainda tinha 9 ou 10 anos de idade. Ele viu o fundo de um vale
26
Como consta numa nota à margem de Documenti I, 153 (Capítulo XVI: ‘preparazione. Scelta
dello stato’ FDB 968 D1. [Lemoyne: aos 19 anos: MB I, 123].
27
Lemoyne: aos 21 anos (MB I, 123).
28
POS, Positio super introductione causae, XVI. Testís, yuxta interrog. 12, p. 87f. Summarium
en FDB 2213 D7f ) [POSb = Processus Ordinarius, Summarium = Processo Diocesano, sumário; o
testemunho original de Cagliero sobre o sonho está registrado em POCT, proc. fol. 1080v.] Lemoyne:
aos 22 anos (MB I, 123).

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Dom Bosco: história e carisma 1

converter-se numa cidade, e multidões de meninos correndo ao seu redor pelas


suas ruas e praças, gritando, brincando e blasfemando. Ele tinha grande horror
à blasfêmia e, além do mais, era de temperamento impetuoso por natureza.
Aproximou-se, então, dos meninos, repreendendo-os pelas blasfêmias e amea-
çando-os [aos murros] se não deixassem de blasfemar. Eles não se continham;
por isso, começou a agarrá-los. Os meninos, porém, reagiram de modo igual,
e, aos socos, lançaram-se contra ele. Quando temia pela sua vida, apareceu-lhe
um nobre Senhor ordenando-lhe que não fugisse e retornasse procurando per-
suadir os moleques a serem bons e que abandonassem as travessuras. Quando
João objetou que já o tinham espancado, o Senhor apresentou-lhe uma Senho-
ra, que surgiu diante dele, com as palavras: “Esta é minha mãe, pede-lhe seu
conselho”. A senhora disse: “Se quiseres ganhar estes maltrapilhos, não deves
usar da força, mas conquistá-los com mansidão e carinho”. Enquanto ela falava,
João percebeu que os moleques tinham sido substituídos por outros tantos ani-
mais. A Senhora, então, continuou: “Este é o teu campo; põe-te a trabalhar”.
João obedeceu e logo viu que os animais se tinham transformado em cordeiros,
e ele os guiava como pastor. Então, muitos desses cordeiros, à medida que cres-
ciam também se transformavam em pastores.
A partir deste sonho [o Servo de Deus] entendeu que devia trabalhar pelos
jovens [em situação de risco], para tirá-los das más ocasiões. Eu escutei este so-
nho dos lábios do próprio Servo de Deus em 1858-1859. Ele acabara de retor-
nar de Roma, onde fora pedir ao Papa Pio IX autorização para fundar a Congre-
gação. O Papa tinha-lhe perguntado quais os incentivos naturais e sobrenaturais
ele tivera para tal empresa, e que, então, tinha relatado o sonho [...].

Comentário final
O sonho do conserto da roupa não deve ser visto como uma nova versão
do sonho da vocação, pois carece das suas imagens. Contudo, na interpreta-
ção tradicional expressa por Lemoyne, vê-se em relação com a opção vocacio-
nal de Dom Bosco pelos jovens pobres.
Falta um desenvolvimento aos relatos dos Turco, José e Lúcia, mas eles
contêm algumas das imagens dos sonhos vocacionais.
O testemunho de dom Cagliero, apesar da menção de “uma cidade”,
apresenta-se claramente como uma variante do sonho da vocação de João
Bosco aos 9 anos de idade. A localização dada por Lemoyne ao situá-lo fora
do contexto, é arbitrária, consequência do seu empenho de construir uma
conexão de sonhos sobrenaturais.

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Capítulo XI

FORMAÇÃO SACERDOTAL DE
JOÃO BOSCO NO SEMINÁRIO DE CHIERI

Os anos passados por João em Chieri, frequentando a escola secundária,


foram decisivos em sua formação, pelo tipo de educação básica e a forma-
ção religiosa recebida, e pela decisão vocacional a que chegou, ao optar por
inscrever-se no seminário diocesano. Os anos seguintes, porém, dedicados ao
estudo da filosofia e da teologia no seminário diocesano, foram ainda mais
importantes. São os anos da formação sacerdotal básica de João.

1. A decisão de João Bosco de entrar no Seminário


Além do sonho vocacional e do discernimento pessoal protagonizado
por João durante seus estudos secundários em Chieri, outros fatores mais
objetivos influenciaram, sem dúvida, sua decisão de escolher a vocação sacer-
dotal no seminário.

A Escola Secundária e o recrutamento vocacional


durante a Restauração
O sistema escolar no qual João recebeu sua educação fundamental e se-
cundária estava, durante a Restauração, totalmente sob o controle da Igreja.
Eram garantia desse controle o currículo de estudos, a organização da vida
social e religiosa dos estudantes, a presença esmagadora da Igreja e do seu
pessoal, diocesano ou religioso, em todo o sistema escolar desde o mais alto
escalão da sua administração ao professor de nível mais inferior. As escolas
secundárias eclesiásticas (“escolas apostólicas” ou seminários menores) eram
desnecessárias e praticamente inexistentes. A escola secundária pública era
viveiro de vocações ao sacerdócio e à vida religiosa e seu principal sistema
de alimentação. Em suas Memórias, Dom Bosco afirma que dos 25 alunos

255

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Dom Bosco: história e carisma 1

da sua classe, 21 abraçaram o estado clerical.1 Na realidade, o sistema era


calculado para que alimentasse e canalizasse as vocações para o seminário e
o noviciado. Ao inscrever-se na escola secundária de Chieri, João passou a
fazer parte desse sistema.
A fim de compensar a situação em algumas regiões, procurou-se aco-
lher mais professores leigos nas escolas, diminuindo a influência da Igreja
e o número de jovens que optavam pela vida religiosa ou sacerdotal. Preci-
sava-se urgentemente de funcionários e administradores públicos. As refor-
mas de Napoleão caminhavam, entre outras coisas, para o aumento desse
pessoal. Contudo, com a Restauração, as escolas públicas converteram-se
novamente na fonte preferida das vocações eclesiais. As ordens e congre-
gações religiosas, sobretudo as que tinham sido suprimidas e dissolvidas
por Napoleão, converteram-se em atrativo para os jovens nas escolas. Era
evidente a preferência pelo noviciado sobre o seminário diocesano. Os re-
ligiosos começaram a assumir uma parte maior do ministério da Igreja. O
clero diocesano e o regular rivalizavam na busca de candidatos na escola se-
cundária. Embora se ressinta de comprovações diretas, este pode ser o caso
da escola secundária de Chieri. Associações juvenis, como a Sociedade da
Alegria, de João Bosco, foram prováveis objetivos. Os dominicanos Sibilla
e Giussiana foram decano e professor de João, respectivamente. Os jesuítas
eram famosos; tinham sua sede na igreja de Santo Antônio, onde se reunia
uma associação de estudantes. Os franciscanos, segundo Lemoyne, tinham
seus olhos postos sobre João Bosco.2
Por outro lado, o professor mais admirado por João, padre Pedro Banau-
di, era diocesano; também o era seu diretor espiritual, cônego José Malória.
O pároco de Cinzano, padre José Comollo, ao ser consultado sobre a vocação
de João, aconselha-o a entrar no seminário. Padre José Cafasso e os párocos
de Castelnuovo, padres Dassano e depois dele Cinzano, tinham demonstra-
do interesse por João. Parece que, em geral, a influência diocesana foi maior
sobre ele.

O serviço militar
Outras considerações puderam ter entrado em jogo na sua decisão vo-
cacional pelo seminário ou pelo noviciado. Vale a pena recordar Lemoyne:
“João tem então 21 anos [20], e só sua entrada no seminário pode dispensá-

1
MO, 81.
2
Cf. MB I, 287.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

-lo do serviço militar”.3 Lemoyne não dá maiores explicações, mas o nome


de João Melquior Bosco aparece como um dos 40 recrutas na lista enviada
pela cidade de Castelnuovo aos militares do distrito de Asti, e da qual seriam
sorteados os que deveriam fazer o serviço militar; a escolha seria em 5 de
novembro de 1835. João eliminara-se ao optar pelo seminário e receber o há-
bito clerical em 25 de outubro. À frente do nome de João aparece a anotação
“isento do serviço por ser um clérigo chamado pelo seu bispo”.4 Podemos es-
tar certos de que essa consideração por si só não seria decisiva, embora tenha
sido um dos fatores.

Considerações econômicas
Lemoyne acrescenta que João precisava enfrentar graves questões eco-
nômicas. Se tivesse entrado entre os franciscanos, seus problemas econômi-
cos ficariam resolvidos. Entrar no seminário, porém, mais do que resolvê-
-los, agravava-os. A hospedagem e a alimentação no seminário de Chieri
custavam 20 liras por mês. Além disso, o seminário oferecia poucas oportu-
nidades de trabalhos lucrativos ocasionais. A família de João carecia de re-
cursos para pagar o seminário. Sendo essa a situação, a influência diocesana
devia ter sido forte. E foram padres diocesanos e leigos com possibilidades,
relacionados com a vida paroquial de Castelnuovo, que vieram em seu au-
xílio. Padre Antônio Cinzano, recém-nomeado pároco de Castelnuovo, e
padre José Cafasso, então firmemente estável no Colégio Eclesiástico de
Turim como professor auxiliar, recomendaram-no ao padre João Guala, rei-
tor do Instituto. Este se encarregou dos gastos de João durante o primeiro
ano no seminário. Depois, a iniciativa de João e a ajuda do padre Cafasso
proveram o necessário.5

A opção de ser seminarista residente


Ao entrar no seminário como seminarista residente, João Bosco escolheu
o caminho mais seguro e conservador da formação sacerdotal. Chieri não era
o único seminário na arquidiocese; entrar no seminário como seminarista
residente não era a única maneira de um candidato poder estudar para ser
padre. Havia a Faculdade Teológica da Universidade de Turim, que oferecia
um currículo de cinco anos de estudos teológicos. Chegava-se a ela depois de
3
MB I, 366.
4
Cf. S. Caselle, Don Bosco studente, 145.
5
Cf. MO, 106; MB I, 366, 369-375.

257

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Dom Bosco: história e carisma 1

cumprir o requisito prévio de um período de dois anos de estudos filosóficos,


mas, de fato, as normas, o modelo e as tendências dos professores da faculda-
de tendiam mais a restringir do que fomentar o acesso. À conclusão do curso
e o cumprimento de outros requisitos, o estudante recebia um diploma e o
título de teólogo (mestrado em Teologia).
Os candidatos que assim estudavam para o sacerdócio residiam nor-
malmente em Turim e viviam em suas casas ou em pensionatos estu-
dantis, enquanto assistiam às aulas na Universidade. Em circunstâncias
especiais, o candidato podia estudar a Teologia como seminarista não
residente, sob a direção do pároco local. O programa do seminário para
não residentes fora norma durante a repressão napoleônica e seria nova-
mente a regra em Turim nos anos 1848-1863, período no qual o semi-
nário esteve fechado.6 De 1830 a 1840, os não residentes superavam os
residentes. Havia várias razões para essa situação: o aumento do número
de vocações na Restauração e a incapacidade econômica de muitas famí-
lias. Por outro lado, talvez o mais importante, não havia diretrizes dioce-
sanas uniformes, apesar dos decretos do Concílio de Trento. Os bispos,
muitos dos quais tinham sido seminaristas não residentes, toleravam a
prática. Alguns candidatos preferiam, logicamente, a maior liberdade de
que gozavam os não residentes.
Os historiadores indicam esse costume como a principal causa da falta
de formação de muitos membros do clero daquela época, ao menos na Itália,
embora por alguma razão, julguem menos severamente a situação do Pie-
monte. Em todo caso, os “externos” oferecem evidentemente uma dimensão
diferente, talvez não tão desejável, à vida e disciplina do seminário. Em suas
Memórias, Dom Bosco não faz referência à presença de estudantes clericais
não residentes no seminário de Chieri, mas como já se aludiu, ele fala de
“maus” seminaristas e das “desordens” que podiam ser devidas em parte à
presença de estudantes não residentes.7
O número de candidatos ao sacerdócio não residentes, especialmente
em Turim, era muito importante, tanto dos que iam à Universidade como
dos que estudavam no seminário. Entre os candidatos que seguiram essa for-
ma de estudos para o sacerdócio, podem-se mencionar os arcebispos Lou-
renço Gastaldi (1815-1883), Caetano Alimonda, cardeal, (1818-1891) e o

6
Nesse período (em que o seminário diocesano esteve fechado), Dom Bosco mantinha um pro-
grama de seminário no Oratório, tanto para salesianos como para candidatos diocesanos.
7
MO, 93-94.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

beato Frederico Albert (1820-1876), além de São Leonardo Murialdo (1828-


1900). São José Cafasso (1811-1860) estudara como não residente sob a dire-
ção do pároco de Castelnuovo até sua entrada no seminário de Chieri, aberto
em 1829-1830.
Os estudantes de teologia não residentes deviam estar sob os cuidados
de diretores designados. O arcebispo Chiaveroti encomendara esta direção
aos Padres da Missão (lazaristas), que se encarregavam também dos retiros
espirituais dos candidatos à ordenação. Os seminaristas não residentes eram
também encaminhados a uma “comunidade clerical”, criada numa igreja pa-
roquial designada para isso. Ali, enquanto viviam em locais da própria esco-
lha, reuniam-se e recebiam a formação sacerdotal e se envolviam em serviços
religiosos e pastorais. Em Turim foram criadas comunidades clericais nas pa-
róquias de Santa Maria da Praça, a mais antiga, Corpus Christi e São Felipe
Neri, com a participação dos Padres do Oratório.
Para os estudantes residentes de filosofia e teologia, a formação sa-
cerdotal era no seminário diocesano. João Bosco poderia ter optado por
estudar para o sacerdócio como não residente, sem deixar de morar em
Chieri. Teria obtido vantagens econômicas, porque poderia trabalhar de-
pois das aulas. Como também, teria desfrutado de maior liberdade para
exercer o apostolado com os jovens, com o que se tinha comprometido.
Contudo, ele escolheu o seminário como residente, sem dúvida porque era
o recomendável por razões morais e religiosas. O padre José Comollo, ao
ser consultado no momento do discernimento vocacional de João, aconse-
lhou-o a entrar no seminário.
O seminário de Chieri, mais do que o de Turim ou a Universidade, era,
por várias razões, uma escolha lógica para João Bosco. A Universidade estava
acima de suas possibilidades, de sua condição social e de suas expectativas.8
O seminário de Turim estava cheio, e essa foi uma das razões pelas quais se
estabeleceu no seminário de Chieri. Ele vivera durante quatro anos em Chieri
como estudante e já estava familiarizado com o seminário. Chieri era muito
mais perto de sua casa e de sua base de apoio: os padres, Cafasso entre eles,
e leigos da igreja paroquial de Castelnuovo. O fato de Luís Comollo entrar
no seminário no ano seguinte pôde ter exercido um papel determinante na
decisão de João.

Em 1834, ano anterior à entrada de João Bosco no seminário, o arcebispo Fransoni determinou
8

que os seminários de Chieri e de Bra fossem reservados aos candidatos ao sacerdócio que não aspiras-
sem à licenciatura em Teologia (S. Caselle, Don Bosco studente, 150).

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Dom Bosco: história e carisma 1

Retrato do arcebispo Columbano Chiaveroti (1754-1831).

Vestidura clerical
João Bosco foi dispensado do serviço militar. De fato, ele recebera o há-
bito clerical no domingo 25 de outubro de 1835,9 onze dias antes do início
do serviço militar.
Devido à cólera que assolou Turim, dom Fransoni determinou que os
exames para a vestidura clerical fossem feitos em Chieri. João fez o exame
com o cônego Máximo Búrzio em sua casa. Os amigos de João em Castel-
nuovo acompanharam-no também nessa ocasião. O senhor Espírito Sartoris
deu-lhe a batina de presente; o senhor João Pescarmona deu-lhe o chapéu; o
pároco de Castelnuovo, Pedro A. Cinzano, deu-lhe o sobretudo.10
Lemoyne, citando testemunhos, escreve que muitos jovens vieram
de diversos lugares para participar da cerimônia na igreja paroquial de

Nas Memórias, Dom Bosco data a vestidura da batina “na festa de São Miguel (outubro de
9

1834)” [MO, 89]. A cronologia das Memórias aqui está defasada em um ano. Além disso, a festa de São
Miguel cai em 29 de setembro, enquanto a de São Rafael em 24 de outubro (sábado em 1835), que
bem pode ter sido celebrada no domingo vigésimo depois de Pentecostes.
10
M. Molineris, Don Bosco inedito, 236-237.

260

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Castelnuovo, mas não há registro da presença de Mamãe Margarida e


outros membros da família.11 Durante a missa solene, o pároco padre
Cinzano vestiu João como clérigo. Nas Memórias, Dom Bosco assinala
a importância e a solenidade do acontecimento com palavras cheias de
emoção e gratidão a Deus e à Virgem Maria.12
Após a cerimônia, o bom pároco insistiu para que João fosse com ele
para o almoço na vizinha aldeia de Bardella. João sentiu-se incomodado
com a companhia e a conduta de alguns padres. Terminada a festa, refle-
tindo sobre o estilo de vida “mundano”, João tomou 7 “heroicos” propósi-
tos, que mais tarde formulou em suas Memórias.13 Destaca-se neles a carga
negativa da espiritualidade da “fuga mundi” e da espiritualidade que nela
se exprime.14

2. A entrada no Seminário
João Bosco entrou no seminário de Chieri em 30 de outubro de 1835.
Ele escreve nas Memórias, adiantando um pouco a cronologia: “A 30 de ou-
tubro daquele ano, 1835, devia entrar no seminário”.15 A emotiva descrição
da despedida da família no dia anterior recorda as “memoráveis palavras” de
sua mãe:

Lembra-te que não é o hábito que honra o teu estado, mas as virtudes que
praticares. Se por desgraça vieres um dia a duvidar de tua vocação, ah! por ca-
ridade! não desonres a batina. Larga-a imediatamente. Prefiro ter como filho
um pobre camponês, a um padre negligente nos seus deveres. Quando nasces-
te eu te consagrei a Nossa Senhora [...]. Pois agora também te recomendo que
sejas todo dela [...]. E se chegares a ser padre, recomenda e propaga sempre a
devoção a Nossa Senhora.16

11
MB I, 369-373.
12
MO, 89.
13
MO, 90 (os sete propósitos tomados quando recebeu a batina).
14
Cf. MO, 89-91 para a descrição da vestidura.
15
MO, 91.
16
MO, 92.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Pátio interno do antigo seminário de Chieri.

A formação no seminário
Na manhã de 30 de outubro de 1835, João caminhou os poucos quilô-
metros que o separavam de Chieri; dedicou a tarde a passear pelo seminário
com um amigo, Guilherme Garigliano. Ao entrarem no pátio interno, eles se
detiveram no lema escrito no relógio de sol do lado sul da parede: “As horas
passam lentas para os que vivem tristes, mas velozes para os que vivem alegres”.
Ambos decidiram que esse seria o seu lema.17 João iria passar seis anos no
seminário, deixando-o definitivamente em 26 de maio de 1841, para iniciar
o retiro espiritual de preparação à ordenação sacerdotal, depois de dois anos
de filosofia (1835-1837), concluídos com os estudos de teologia, cursados em
quatro anos, em vez de cinco (1837-1841).
Ao recordar nas Memórias a etapa de seminarista, Dom Bosco procederá
não de maneira cronológica, mas temática. Seus comentários falam da vida
de seminário, das férias de verão, da amizade e da morte prematura de Luís
Comollo, do encontro com o teólogo João Borel, dos estudos no seminário e
da ordenação sacerdotal.

17
MO, 92. O hexâmetro latino diz: “Adflictis lentae, celeres gaudentibus horae”.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

A vida de seminário
O ano escolar começou com um retiro de três dias, ao final do qual
Dom Bosco perguntou ao teólogo Francisco Ternavásio sobre o que deveria
fazer um bom seminarista. E anota a resposta: “Só uma coisa, o cumprimento
exato do dever”. Breve e austero conselho, na verdade! Dom Bosco garante
que fez dele a sua regra de vida, e passou “seis anos felizes” no seminário.18
Todavia, ele teve modo de experimentar, com doloroso pesar, a falta de sim-
patia de seus superiores e o temor e desconfiança dos seminaristas. Observou
também em certa ocasião o mau espírito de alguns seminaristas, levando-o a
escolher seus amigos entre os melhores de seus colegas: “Guilherme Gariglia-
no, João Giacomelli [...] e, mais tarde, Luís Comollo. Esses três colegas foram
para mim um verdadeiro tesouro”.19
Ao falar das práticas de piedade, Dom Bosco lamenta-se da dificuldade
de receber a comunhão com frequência e conta como ele e outros seminaris-
tas deviam “aproveitar” a hora do café da manhã para receber a Sagrada Co-
munhão na vizinha igreja de São Felipe. Quanto às diversões, João obrigou-se
a renunciar ao seu jogo favorito, a “barra comprida”, e ao baralho no qual se
sobressaía. “Acresce que eu prestava tanta atenção ao jogo, que depois já não
podia nem rezar nem estudar.” Ele data essa renúncia durante o seu segundo
ano de filosofia20. Passear em grupo pela cidade às quintas-feiras era uma ex-
periência agradável de aprendizagem.
O círculo de estudo prescrito pelo Regulamento dava a João a oportu-
nidade de brilhar. Ele fala da animação dos debates e das contribuições dadas
por alguns de seus colegas21. Em seguida, elogia a piedade e espiritualidade
de Luís Comollo: “O maravilhoso colega foi para mim uma bênção [...].
Devo a ele se não me deixei arruinar pelos relaxados e, ao contrário, progredi
na minha vocação”.22 Comollo, que se tinha matriculado na escola pública
de Chieri no último ano de João Bosco, estava um ano atrás dele em seus
estudos e entrou no seminário quando este foi para o segundo de filosofia
(1836-1837).
No exame de metade do ano, João ganhou um prêmio de 60 francos por
tirar as notas mais altas. Ele escreve nas Memórias:
Deus me abençoou muito, pois nos seis anos que passei no seminário fui sem-
pre distinguido com esse prêmio. No segundo ano de teologia fui nomeado

18
MO, 92. Padre Francisco Ternavásio (1806-1886) era professor de filosofia.
19
MO, 93-94.
20
MO, 95: “Fiz isso na metade do segundo ano de filosofia, em 1836”. A metade do segundo
ano de filosofia devia ser em 1837. O Regulamento proibia o jogo comum de baralho, mas permitia os
tarôs. Ver no apêndice as regulamentações do seminário.
21
MO, 96.
22
MO, 97.

263

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Dom Bosco: história e carisma 1

sacristão, cargo de pequena importância, mas sinal precioso de benevolência


por parte dos superiores, já que a ele se juntavam outros 60 francos. Tinha assim
metade da pensão, enquanto o caridoso padre Cafasso providenciava o resto.23

Férias de verão
Ao se falar da reforma do seminário feita pelo arcebispo Chiaveroti, foi
mencionado o debate sobre a duração das férias de verão. Dom Bosco fala de
um recesso de verão de quatro meses e meio.24 Ele passava esse período no
sítio de Sussambrino, onde seu irmão José trabalhou como meeiro até 1839.
Durante as férias, que “costumam ser um grande perigo para os clérigos”,
João mantinha-se ocupado com o trabalho e seus bel-prazeres: ler, escrever,
fazer trabalhos de carpintaria e trabalhar no campo. Além disso, reunia mui-
tos jovens nos fins de semana para atividades recreativas e religiosas. Dom
Bosco acrescenta:

Ensinava alguns a ler e a escrever, com muito bom resultado; porque o desejo,
diria até a febre de aprender, trazia-me meninos de todas as idades. A aula era gra-
tuita, mas eu exigia assiduidade, atenção e a confissão mensal. No princípio houve
alguns que para não se submeterem a essas condições deixaram de frequentá-la.25

Nas férias de verão, quer na filosofia quer na teologia, João Bosco tentou
a pregação com a permissão dos párocos locais. Ele menciona quatro oca-
siões: pregou na cidade de Alfiano sobre o Rosário; em Castelnuovo, sobre
São Bartolomeu; em Capriglio, sobre a Natividade de Maria; e em Cinzano,
sobre São Roque. Nesta última ocasião, como o pregador não se apresentou,
ele aceitou o desafio e improvisou.26 O bom pároco de Alfiano, a pedido de
João, deu-lhe alguns conselhos, fazendo-o notar que o sermão fora além da
compreensão do povo.
Abandonar a linguagem e a maneira dos clássicos de desenvolver o tema,
falar em dialeto onde for possível, ou também em língua italiana, mas po-
pularmente, popularmente, popularmente. Em vez de raciocínios, sirva-se
de exemplos, comparações, apólogos simples e práticos. Lembre sempre que
o povo compreende pouco, e que as verdades da fé nunca lhe são suficiente-
mente explicadas.

23
MO, 106. Em suas Memórias e alhures Dom Bosco escreve o nome do seu protetor como
Caffasso, uma variante de Cafasso.
24
MO, 97.
25
MO, 98.
26
MO, 98.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Dom Bosco acrescenta: “O paternal conselho serviu-me de norma em


toda a vida”.27
Ele continua relatando três incidentes que lhe ensinaram “uma terrível
lição”. O primeiro aconteceu durante uma festa na casa de familiares. O al-
moço em que se consumiu muito vinho acabou em briga, com “gritarias e
ameaças” e o lançamento de talheres e pratos. O segundo incidente refere-se
a ele mesmo tocando violino, que resolvera não tocar mais “por ser contrário
à dignidade e ao espírito eclesiástico”.28 O fato ocorreu na festa de uma aldeia
durante o almoço oferecido por um seu tio. Convidado por outro músico,
ele cedeu à tentação e tocou violino para entreter os convidados. Com o som
da música algumas pessoas começaram a dançar alegremente no pátio. Ao
percebê-lo, João quebrou o violino “em mil pedaços”.29 No terceiro, uma
caça, João perseguiu uma lebre por 2 milhas e, enfim, disparou contra ela.
Enquanto seus amigos o cumprimentavam pela caça, percebeu envergonha-
do, que tinha tirado a batina. Dom Bosco conclui:
Estes três fatos deram-me uma terrível lição, e a partir de então entreguei-me
com melhores propósitos à vida recolhida, e fiquei mesmo persuadido de que
quem quer dar-se totalmente ao serviço do Senhor deve deixar inteiramente
os divertimentos mundanos. É bem verdade que muitas vezes não são pe-
caminosos; mas é certo que pelas conversas que se travam, pela maneira de
vestir, de falar e proceder, contêm sempre algum risco de ruína para a virtude,
especialmente para a delicadíssima virtude da castidade.30

Amizade e morte prematura de Luís Comollo


Luís Comollo ocupou um lugar especial na vida de João Bosco no último
ano da escola secundária. João assumiu Luís como modelo de vida espiritual
27
MO, 99. Em sua tese de mestrado, Ir. Mary Treacy transcreveu os manuscritos e estudou 16
dos primeiros sermões de Dom Bosco conservados em italiano. Ao ler esses sermões datados dos três
primeiros anos de sacerdócio de Dom Bosco (1841-1844), tem-se a impressão de que o conselho do
bom pároco surtiu muito efeito. Cf. Mary Cecilia Treacy, Le prediche giovanili italiane di San Giovan-
ni Bosco (1841-1844), dissertação de Mestrado em Arte, não publicada (University of South Africa,
october 1997), 378 páginas.
28
MO, 100-101.
29
João tinha resolvido abandonar o violino quando recebeu a batina [cf. MO, 91, segunda resolução].
Contudo, conservou o perigoso instrumento, e nessa ocasião, ou o trouxe de casa ou tomou emprestado de
algum dos músicos (talvez houvesse uma banda que tocava). Não é claro que violino ele destruiu. Lemoyne
soluciona a questão, colocando nos lábios de Dom Bosco uma longa explicação que termina com estas pala-
vras: “Entreguei o violino. Em casa fiz o meu em mil pedaços, e não me servi mais desse instrumento, muito
embora se houvessem apresentado ocasiões e conveniências nas funções sagradas” [MB I, 419].
30
MO, 101-102.

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Dom Bosco: história e carisma 1

e cristã, e conselheiro em sua crise vocacional. A influência de Luís sobre ele


continuou e aumentaria durante os anos de seminário.
Ao falar das atividades de verão, Dom Bosco dá uma ideia da sua ami-
zade: “Durante as férias ia vê-lo muitas vezes, e muitas outras ele me procu-
rava”. No verão de 1838, depois do primeiro ano de teologia de João, Luís
esteve certo dia com ele, presumivelmente no sítio de Sussambrino. Passaram
algumas horas encantadoras ensaiando um sermão que Luís faria sobre a As-
sunção de Maria. Chegou a hora do jantar e não havia nada pronto. Conse-
guiram pegar um frango, mas nenhum deles tinha coragem de matá-lo. Luís,
então, mostrou que era tolice estar tão apreensivos e, enfim, conseguiram
jantar. Na mesma ocasião, num passeio pelas colinas, Luís começou a expres-
sar premonições sobre sua morte. João pediu-lhe uma explicação. O amigo
respondeu: “De alguns tempos para cá sinto tão vivo desejo de ir gozar a fe-
licidade dos bem-aventurados, que me parece impossível possam ser muitos
os dias de minha vida”.31
Mais tarde, novamente no seminário, os dois amigos falaram com fre-
quência da possível morte; e, por último, fizeram um pacto de que quem
morresse primeiro deveria comunicar a própria salvação ao outro. Em 25
de março de 1839, Comollo falou da certeza de sua morte iminente. E, de
fato, morreu no dia 2 de abril de 1839. Dom Bosco relata as circunstâncias
da morte de Luís e a subsequente terrível aparição em que falou da sua
salvação.32
Dom Bosco recorda que ficou gravemente doente; atribui a doença à
espantosa experiência da morte e aparição de Comollo: “Foi a primeira vez
que me lembro de ter tido medo; medo e tão grande assombro que caí grave-
mente doente e estive à beira do túmulo”. Nada mais se diz sobre esta doença,
mas foi grave e prolongou-se até 1839 e 1840.33

31
MO, 104.
32
MO, 105. Em sua biografia de Comollo (edição final de 1884), Dom Bosco faz um relato
completo da aparição, citando testemunhas do fato. Para comentários sobre a biografia de Comollo,
escrita por Dom Bosco, e sobre a “experiência Comollo”, ver mais adiante.
33
MO, 105. Razões adicionais relacionadas com a experiência de Comollo ou independentes
delas são dadas para sua doença: depressão, colapso nervoso, tensão ascética, fobias e ansiedade relacio-
nada com a vocação sacerdotal e as ênfases teológicas, como na predestinação e no juízo final. A enfer-
midade agravou-se por causa da sistemática fragilidade causada por doenças anteriores [cf. MO, 48].

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Igreja de São Felipe Neri, em Chieri.

O teólogo João Borel


Salvo o que narrou sobre as atividades de verão, Dom Bosco não fala
nada do primeiro ano de teologia (1837-1838). Ele é mais explícito quanto ao
segundo (1838-1839), ano da morte de Comollo. É também o ano em que
foi nomeado sacristão e no qual se encontrou pela primeira vez com os padres
que seriam seu apoio fundamental no ministério com os jovens, o teólogo
João Borel e o padre Borsatelli. Ocasião disso foi o retiro espiritual (tríduo),
dirigido pelo teólogo Borel, um “retiro histórico”. Além de se confessar com
este santo padre, no final do retiro, João pediu orientação sobre a melhor
maneira de preservar a própria vocação. Padre Borel respondeu que “com o
recolhimento e a Comunhão frequente se conserva e aperfeiçoa a vocação e se
forma um verdadeiro eclesiástico”.34
34
MO, 111. Na verdade, o encontro de João com o teólogo Borel ocorreu no ano anterior
(primeiro de teologia). Cf. A. Giraudo, Clero, 263. Dom Bosco recordou o conselho de Borel ao ser
ordenado subdiácono. Nas Memórias e alhures Dom Bosco escreve o nome do grande padre como
“Borelli” talvez tendo a forma “Borel” como dialetal. Contudo, a escrita “Borelli” aparece também em
outros textos e documentos oficiais não de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Estudos
Nas Memórias, Dom Bosco não fala do plano de estudos filosóficos e
teológicos, dos temas ensinados e como eram ensinados. Para obter informa-
ção sobre isso é preciso recorrer às fontes diocesanas.35
O professor de filosofia, padre Francisco Estêvão Ternavásio, deu aulas
em todas as séries num período de dois anos, seguindo o plano de estudos
filosóficos da escola pública, que prescrevia os tratados de lógica, metafísica,
ética, geometria e física.36 Segundo Stella, o livro de texto utilizado pelo pro-
fessor pode ter sido Elementa philosophiae, vigente no Piemonte em três volu-
mes (lógica, metafísica e filosofia moral) de José Pavésio.37 Ternavásio, contu-
do, para a preparação de suas aulas, poderia ter utilizado obras mais extensas,
como Elementi di filosofia, do erudito Pascoal Galluppi da Tropea, “o melhor
livro de texto de filosofia para as escolas, surgido na Itália até esse momento”.38
Seja como for, o ensino com um único livro de texto era superficial.
O programa de teologia compreendia quatro campos básicos de estudo:
teologia especulativa, dogmática e moral, e Sagrada Escritura.39 Em Chieri, o
ensino era dado com os tratados tradicionais dos livros de texto. A lista compi-
lada pelo professor de teologia, padre José Mottura, compreendia 14 tratados:
Fontes teológicas, Deus e os atributos de Deus, Trindade, Encarnação, A graça
de Cristo, o Batismo e a Confirmação, a Eucaristia como sacrifício e como
sacramento, a Penitência, as Ordens sacras, os atos humanos e a consciência,
[A virtude da] religião, o pecado e o Pecado original, Justiça e Direitos.40
Seguindo a tradição da Universidade de Turim, o professor dava a aula
em latim com anotações feitas anteriormente. Um resumo delas era ditado
no início e no final da aula.41 A forma de ensinar em que o professor “lê” e
dita aos alunos produzia uma formação teológica pobre. Nas Memórias, o
próprio Dom Bosco, ao escrever em 1874, reconhece as graves deficiências
no ensino da teologia do seminário, principalmente pela sua importância.42
Giraudo cita o testemunho ainda mais crítico de um aluno contemporâneo

35
Para os parágrafos a seguir fundamento-me em A. Giraudo, Clero, 269-276. Esse autor reuniu
uma ampla documentação sobre o tema.
36
A. Giraudo, Clero, 274.
37
P. Stella, Vita, 82.
38
Juízo do filósofo Miguel Frederico Sciacca, em F. Desramaut, Don Bosco, 96-97 e 125.
39
“Estatutos do Seminário de Turim”, v. 4. In: A. Giraudo, Clero, 357. Contudo, nesses anos
ofereciam-se cursos extras de Sagrada Escritura no seminário de Chieri.
40
A. Giraudo, Clero, 274-275 e notas 140 e 141.
41
A. Giraudo, Clero, 271, com documentação.
42
MO, 117.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

do seminário de Chieri (1833-1837), escrito em 1848. Esse autor fala de uma


teologia “desgastada, uma relíquia da época de Lutero, totalmente irrelevante
para as questões candentes de hoje”. E continua:

O seminário inclusive proibia as obras dos teólogos mais renomados. Éramos


limitados aos estreitos limites do ditado do professor. Nem sequer uma pin-
celada de literatura, de história ou de qualquer outra disciplina nobre jamais
esteve disponível. As obras sobre esses temas foram desterradas definitivamen-
te dos recintos sagrados.43

A memória prodigiosa de João Bosco caiu-lhe muito bem; fora capaz de


repetir literalmente o resumo do professor, mas, segundo seu parecer, não se
contentou com uma simples repetição. Nas explicações da tarde, suas respos-
tas às vezes divergiam da simples repetição e expressavam outras opiniões. A
leitura de livros da biblioteca do seminário ou da biblioteca pessoal do pro-
fessor ou das bibliotecas dos padres da paróquia, às quais teve acesso durante
as férias, deu-lhe uma visão mais ampla. Devido a esse tipo de fuga para fora
do texto foi censurado mais de uma vez.44
Sob o título “Estudos”, Dom Bosco menciona nas Memórias também
o seu progresso nas línguas. Em previsão da epidemia de cólera no verão de
1836, o Collegio dei Nobili (Colégio dos Nobres, popularmente chamado
de Colégio do Carmo), dos jesuítas, transferiu-se de Turim e instalou-se no
campo, na cidade de Montaldo. Por recomendação do padre Cafasso, João foi
contratado como prefeito [encarregado da disciplina] do dormitório e profes-
sor de grego clássico, língua cujos fundamentos ele já conhecia.45 Dom Bosco
escreve que um professor jesuíta, padre Bini, ensinou-lhe grego clássico, no
qual fez rápidos e grandes progressos.46 “Foi também nesse tempo que estudei
francês e elementos de hebraico [bíblico]. Estas três línguas, hebraico, grego
e francês, foram as minhas línguas preferidas depois do latim e do italiano.”47

43
Jaime Perlo (1816-1898) citado em A. Giraudo, Clero, 272-273, e nota 133. Podem-se citar
muitos autores que se lamentavam da formação do clero, pobre e defasada: Vincenzo Gioberti (Il ge-
suita moderno), Antônio Rosmini (Le cinque piaghe della Chiesa), Guillermo Audisio (Introduzione agli
studi ecclesiastici conforme ai bisogni religiosi e civili) [cf. A. Giraudo, Clero, 275, e nota 142].
44
O antigo colega de seminário de João, padre João Giacomelli, testemunhou sobre isso e recor-
dava a reprimenda do professor: “Atém-te literalmente ao texto do livro, como os demais” [MB I, 456;
cf. A. Giraudo, Clero, 273, nota 133].
45
Um documento do arquivo da escola diz que João Bosco passou mais de quatro meses com os
jesuítas em Montaldo, de 11 de julho a 17 de outubro de 1836 [Cópia no Arquivo Central Salesiano,
FDB 64A2. Cf. MO Silva, 109 e nota 131].
46
Outros dados sobre o padre Bini em MO Silva, 109.
47
MO, 109.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Leituras no seminário
Embora não fale do programa de estudos do seminário nem do méto-
do, Dom Bosco dá alguma informação sobre suas leituras adicionais. Narra,
inicialmente, a história da sua “conversão” do latim e do grego clássico, que
muito lhe agradavam, à literatura cristã e aos escritos ascéticos. Isso aconteceu
no início do segundo ano de Filosofia (1836-1837). Certa vez numa visita à
capela defrontou-se com o livro da Imitação de Cristo e ficou surpreso com a
sua beleza e profundidade.48
Depois da “conversão”, tornou-se ávido leitor de obras religiosas. Sua
lista, cheia de títulos históricos, é impressionante:

Dediquei-me depois à leitura de Calmet, História do Antigo e Novo Testamen-


to; de Josefo Flávio, Antiguidades judaicas e A guerra judaica; depois, de mon-
senhor Marchetti, Reflexões sobre a religião; e posteriormente de Frayssinous,
Balmes, Zucconi e muitos outros autores religiosos; gostei também de ler a
História eclesiástica, de Fleury, ignorando então que não convinha lê-la. Com
maior fruto ainda li as obras de Cavalca, de Passavanti, de Segneri e toda a
História da Igreja, de Henrion.49

Uma breve nota explicativa sobre esses títulos será suficiente para dar
ideia da natureza e qualidade das leituras de João.50

1. A primeira obra mencionada na lista é a História do Antigo e Novo Testa-


mento, do beneditino padre Agostinho Calmet (1672-1737) (Histoire de
l’Ancien et du Nouveau Testament et des Juifs, pour servir d’introduction à
l’histoire Ecclésiastique de M. Fleury (Paris, 1718), 2 volumes. A obra queria
ser uma introdução à História da Igreja, de Fleury. Em 1830-1831, a obra
de Calmet foi adaptada para o italiano e popularizada com o título Storia
dell’antico e nuovo testamento e degli Ebrei, na “Biblioteca popolare e morale
religiosa” (Turim: Pomba, 1830-1832), em 17 volumes de bolso.
2. Esta obra, com A guerra judaica e Antiguidades judaicas de Flávio Josefo
contribuíram bastante para a formação bíblica do seminarista Bosco. Não
havia professor de Sagrada Escritura e não se ofereciam cursos especiais de
Escritura no seminário de Chieri, apesar do plano de estudos que incluía
uma área geral intitulada Sagrada Escritura.

48
MO, 108.
49
MO, 108.
50
Para os dados e informações da publicação destas obras, apoio-me em F. Desramaut, Don
Bosco, 99-102, e P. Stella, Vita, 66s.

270

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

3. Trattenimenti la família sulla storia di Religiosa della [...] de Giovanni Mar-


chetti (Turim: Bianco, 1823), 2 volumes; consistia em apresentações po-
pulares da história cristã por Marchetti (1759-1829), teólogo da Dataria
Apostólica e arcebispo titular de Ancyra (Ancara).
4. Défense du christianisme ou Conférences sur la religion (Paris, 1825), de Frays-
sinous Denys (1765-1841). Esta obra recolhia conferências de Frayssinous
em Paris, e foi publicada em 1807. Ela atraía grande número de jovens. O
livro foi traduzido em italiano com o título Difesa del Cristianesismo (Tu-
rim: 1829). Apesar da importância do autor no período napoleônico, as
“provas” apresentadas contra os filósofos do Iluminismo e do Romantismo,
com frequente recurso aos milagres, foram muito ineficazes.
5. A única obra do filósofo espanhol Jaime Luciano Balmes (1810-1848), sur-
gida quando João Bosco estava no seminário, foi um tratado sobre o matri-
mônio (1839), da qual não se conhece a tradução. A obra, El protestantismo
comparado con el catolicismo en sus relaciones con la civilización europea, à
qual se refere Eugênio Ceria,51 apareceu somente em 1842-1844. Sem dú-
vida, Dom Bosco, ao escrever em 1874, pôde ter presente a obra na mente
(por engano), numa tradução italiana que apareceu em 1852.
6. Ferdinando Zucconi (1647-1732) era o autor de Lezioni Sacre sopra la di-
vina Scrittura (1ª ed., Roma, 1729). Não se trata de conferências sobre a
Escritura, mas simples instruções apologéticas e morais, baseadas na Bíblia.
7. João Bosco ouviu a história da Igreja do abade Bercastel (1720-1794), que
era lida no refeitório durante as refeições.52 A histoire de l’Eglise (Paris, 1778-
1790) de Antoine-Henri Bérault Bercastel compreende 24 pequenos vo-
lumes que cobrem a história até 1721. Deve ter sido lida evidentemente
numa versão italiana. De fato, esta obra do ex-jesuíta continuou de 1721
até 1800, em italiano, como Storia del cristianesimo dell’Abate di-Béraut Ber-
castel recata dalla francese all’italiana favella dall’Ab. GB Zugno con disserta-
zioni e nota del traduttore (Veneza, 1795-1805), em 36 pequenos volumes.
8. Na sequência do seu interesse pela história da Igreja, o seminarista Bosco leu
a História da Igreja, de Claude Fleury (1620-1723). Era a Histoire ecclésiasti-
que (1ª ed.: Paris, 1691-1723), enorme e incompleta obra, em 20 volumes.
Dom Bosco percebeu, mais tarde, “que não convinha ler” [pois era uma
obra colocada no Índice dos livros proibidos], pelas suas tendências galica-
nas. Fleury era um estudioso sério; sua obra continuou a ser frequentemente

51
MO Ceria, 110, notas.
52
MO, 94.

271

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Dom Bosco: história e carisma 1

consultada até o ataque do historiador ultramontano François-René Rohrba-


cher (1789-1856). Sua Histoire universelle de l’Eglise catholique (28 volumes,
1842-1849), escrita contra Hugue-Félicité de Lamennais e Claude Fleury,
é um grande trabalho, mas não crítico.53 Pode-se pensar que o seminarista
Bosco tenha lido Fleury numa tradução italiana em 27 volumes de Gaspar
Gozzi, publicada em Veneza (1767-1771) ou em Gênova (1769-1773).
9. João também leu a história da Igreja do barão Matthieu Richard Henrion-
-Auguste (1805-1862). Sua Histoire générale de l’Eglise em 12 volumes é
uma adaptação e continuação da obra de Bérault-Bercastel. Uma tradução
italiana apareceu com o título de Storia universale della Chiesa, dalla pre-
dicazione degli Apostoli fino al Pontificato di Gregorio XVI (Mendrisio: Tip.
Ticinese della Minerva, 1839-1843), 14 volumes. A data da publicação de-
monstra que, se Dom Bosco leu a edição em italiano, teria completado a sua
leitura durante os anos do Colégio Eclesiástico (1841-1844).
10. João Bosco pode ter lido de Domenico Cavalca (c. 1270-1342) o Specchio
della croce (Espelho da cruz) ou a Vida dos eremitas Paulo e Antão.
11. Jacó Passavanti (falecido em 1357) foi o autor de uma obra sobre a Penitên-
cia rigorista. Intitulada Specchio della vera penitenza (Espelho da verdadeira
penitência), Turim: 1807, a obra era uma coleção de sermões da Quaresma
feitos em Florença em 1354.
12. Do famoso pregador jesuíta, escritor prolífico de ascética, Paulo Segneri
(o Velho, 1624-1694), Dom Bosco pode ter lido uma série de obras: seus
Sermões da Quaresma (Quaresimale, Florença, 1679) ou O devoto de Maria
(Il divoto de Maria, Bolonha, 1677) ou, mais provavelmente, O católico
instruído (Il cattolico istruito, Florença, 1686).54 Segneri também era autor
de Letture sopra la materia del probabile (Leituras sobre o Probabilismo),
publicado primeiramente em Colônia (1732). Esta última obra foi escrita
contra um colega jesuíta, o probabiliorista Tirso González.

Dos títulos mencionados, somente dois aparecem no catálogo da biblio-


teca do seminário: Bercastel e Henrion, ambos traduzidos para o italiano. Em
suas Memórias, Dom Bosco enfrenta a questão óbvia de seus leitores. Com
toda essa leitura, o que acontecia com os cursos e tratados? Quanto à situa-
ção na escola secundária, ele garante que devido à sua excepcional memória

New catholic encyclopedia 12, 557.


53

Pode ser coincidência que Dom Bosco tenha escrito mais tarde um tratado com o mesmo
54

título contra os valdenses (ou “protestantes”): “Il cattolico istruito nella religione, conversazioni di
un padre con i suoi figli su temi contemporanei”. In: Letture Cattoliche. Turim: P. De Agostini, 1853.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

era-lhe suficiente ouvir os professores em aula (!). Ele dedicava à leitura todo
o seu tempo de estudo, quase quatro horas diárias. Seus superiores estavam
cientes dessa “atividade complementar” que, apesar de ser contrária aos re-
gulamentos, era-lhe tacitamente permitida. A pobreza do ensino teológico
no seminário, aparentemente, não impediu que João Bosco adquirisse uma
formação teológica bastante extensa, embora desorganizada e desigual.

3. A descoberta de Luís Comollo e da sua espiritualidade


Reinava no seminário um severo código disciplinar e uma escassa for-
mação teológica. Contudo, para valorizar mais a atmosfera espiritual que
reinava deve-se ter presente a tendência da formação teológica. Não se pode
falar de jansenismo em sentido estrito, ou seja, de uma influência direta do
Augustinus de Jansênio, e da teologia e espiritualidade derivadas, sobretudo,
de Port Royal.55 Entretanto, houve um ambiente generalizado de rigorismo
em diversos graus, que afetava praticamente todos os aspectos da vida do
seminário e a formação: a teologia especulativa e dogmática, a teologia moral
e sacramental, a prática pastoral e sacramental, a doutrina e prática da vida
espiritual, o ascetismo, a disciplina eclesiástica etc.56
Alguns pontos merecem atenção especial. Produzia-se um desequilíbrio
na ênfase sobre os novíssimos, a morte, o juízo, o inferno e na questão da
predestinação. O sentido de pecado e o conceito de santidade e sua exigência
inculcada tinham o efeito de restringir a vida sacramental, fomentar a prática
ascética excessiva e lançar um véu de sombras e medo sobre a própria vida
espiritual. A acentuação colocada na tremenda responsabilidade dos padres
no cuidado das almas e no perigo da condenação causada por qualquer falha
em corresponder-lhe, exercia uma forte tensão nos candidatos sinceramente
comprometidos.
Assinale-se ainda que esses enfoques, embora reforçados pela influência
do rigorismo jansenista, estavam em graus diversos no pensamento religioso e
na prática do mundo todo. Santo Afonso, por exemplo, probabilista benigno
em teologia moral e pastoral, na prática, enfatizava o sentido de pecado, os
temores da morte e do juízo e as exigências estritas da santidade sacerdotal.
Nesse sentido, ele também utilizava a retórica tradicional. Assim o fazia o
próprio mestre e guia de Dom Bosco, padre Cafasso.

55
Questões relacionadas com o jansenismo e o rigorismo de Port Royal, e sobre o probabilismo na
teologia moral e pastoral etc., serão comentadas num capítulo posterior em ligação com o Colégio Eclesiástico.
56
Para um comentário sobre esta matéria, cf. P. Stella, Vita, 59s.

273

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Dom Bosco: história e carisma 1

Talvez não houvesse muitos candidatos realmente comprometidos com


o sacerdócio no seminário, mas João Bosco e Luís Comollo certamente o
eram. Comollo foi exemplo extremo de como um seminarista podia ver-
-se afetado pela onipresente influência rigorista, sobretudo quando reforçada
pelo temperamento pessoal. Foi assim também com João Bosco, embora em
grau menor.
Seguindo o conselho de sua mãe de unir-se preferencialmente aos cole-
gas devotos de Maria, do estudo e da piedade, João escolheu como amigos
três bons colegas, Guilherme Garigliano, João Giacomelli e, especialmente,
Luís Comollo. A amizade de João com Luís, iniciada no ano em que passa-
ram juntos na escola pública, continuou e prosperou nos dois anos e meio
passados no seminário. João aspirava certa intimidade em nível pessoal e
Comollo podia torná-la realidade. Sua amizade converteu-se num profundo
relacionamento. Ao falar da época do primeiro contato, Dom Bosco escreve:

Depositei nele plena confiança, e ele em mim; precisávamos um do outro. Eu


de ajuda espiritual, ele de ajuda corporal [...], pus-me inteiramente em suas
mãos, deixando-me guiar para onde e como lhe aprouvesse.57

Houve, sem dúvida, reciprocidade, mas estas palavras demonstram que


era enorme a influência espiritual de Luís sobre João. Dom Bosco escreve
sobre esse relacionamento no seminário:

O maravilhoso colega foi para mim uma bênção. Sabia oportunamente avi-
sar-me, corrigir-me, consolar-me, mas fazia-o com tal garbo e tamanha cari-
dade, que de certo modo gostava de dar-lhe motivo a fim de desfrutar o prazer
da correção. Tratava-o com familiaridade, sentia-me naturalmente levado a
imitá-lo, e embora me encontrasse a incontáveis léguas de sua virtude, devo
a ele se não me deixei arruinar pelos relaxados e, ao contrário, progredi na
minha vocação.58

É certo que João não imitou as práticas penitenciais excessivas,59 todavia


a severidade e a tensão ascética de Comollo, evidente em seu estilo de vida,
reforçaram na mente de João a acentuação rigorista, presente então na forma-
ção sacerdotal do seminário. A vida de Comollo foi provavelmente o melhor
exemplo de como se podia chegar a pôr em prática o apoio da vida espiritual
de um seminarista. Existem provas de que essa acentuação também foi para

57
MO, 63-64.
58
MO, 97.
59
Cf. MO, 97.

274

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

João uma dura prova, mais dura do que o “vazio afetivo” derivado do distan-
ciamento dos superiores ou da dissipação de colegas encontrados no seminá-
rio. Há comprovações de algumas aversões obsessivas impressas na mente de
João, resultantes da ênfase teológica e espiritual, com consequências que se
prolongaram além de seus anos de seminário.
Poder-se-ia dizer que a formação do seminário e a prática de Comollo
se reforçaram mutuamente em sua influência sobre João. A vida espiritual no
seminário caracterizava-se pela tensão ascética que, à vezes, se expressava em
severidade mórbida, especialmente na repulsa à experiência sexual. A impure-
za, em suas diversas formas nas quais, como se pensava, tudo era constituído
por matéria grave (qualquer falha era pecado grave), era considerada como o
maior de todos os pecados. Enquanto cada pecado tinha um nome específico,
este não tinha nome nem era mencionado. Os padres só se serviam de vagos
circunlóquios no interrogatório dos penitentes sobre a matéria. A vergonha
em relação a esse pecado era tal que os penitentes não costumavam ter cora-
gem para confessá-lo.60
Stella, falando em geral, escreve: “Essa tensão ascética contribuiu para
acelerar a morte do seu amigo Comollo, levando também o próprio Dom
Bosco ao limite de suas forças”.61 E acrescenta:

A vida de Comollo no seminário parecia um grande exame de consciência.


Cada pensamento, palavra, atitude era analisado sob o olhar do divino juiz.
Como Dom Bosco recorda, Comollo passou o último ano de sua vida me-
ditando sobre a obra do jesuíta Pinamonti, intitulada L’inferno aperto al cris-
tiano perchè no v’entri [O inferno aberto ao cristão para que nele não entre],
com uma quase obsessiva atenção a Cristo como juiz e ao juízo final com sua
sentença irrevogável.62

João Batista Francesia, ao falar da sua experiência pessoal com Dom


Bosco em relação a essa questão, declarou no Processo de Beatificação:

Ao estudar o tratado sobre a predestinação, Dom Bosco experimentou o


temor pela própria salvação. Comentou a questão na aula e também em
particular com seus professores. Reuniu-se ainda com o reitor sobre o mes-
mo tema, mas nada pôde restituir-lhe a tranquilidade. Sofreu esse pesadelo
por muito tempo e, finalmente, ficou doente por conta disso. Seu confessor

60
Era o que Dom Bosco buscava para os meninos na confissão. Ele acreditava que confessados esses
pecados, eliminava-se o peso da culpa, a alegria substituía-o e abria-se assim o caminho para a santidade cristã.
61
P. Stella, Vita, 76.
62
P. Stella, Vita, 81.

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Dom Bosco: história e carisma 1

visitou-o e disse-lhe: “Bosco, o que está escrito no Evangelho? [...]. Quero


dizer, o que o Senhor exige [de nós] para a vida eterna? Não está escrito: Se
queres entrar na vida? Entendes o que significa ‘Se queres’? Sua graça não
te abandonará; tudo que deves fazer é corresponder”. Essas palavras devol-
veram a paz ao seu espírito, e colocando toda a sua confiança no Senhor,
dedicou-se aos estudos. Dom Bosco confessou-me que tivera esses temores.63

O surgimento de uma doença referida, mas não identificada, remonta ao


início de 1839. Dom Bosco atribuiu-a à experiência do medo pela aparição
de Comollo.64 Lemoyne insiste na sua duração e gravidade, mas abstém-se de
especular suas causas. Escreve em relação a 1840: “A saúde de João continuou
a deteriorar-se. Estivera em crise durante um ano e, por fim, viu-se obrigado
a ficar acamado. Qualquer alimento lhe causava náuseas e padecia de insônia
crônica; por isso, os médicos realmente se desesperaram”.65
Parece que, de fato, a verdadeira causa da doença prolongada, se é que
fosse depressão ou crise nervosa, residia menos na aterradora experiência do
que na acentuada ênfase do ensinamento teológico e da espiritualidade do
seminário, assim como no exemplo de Comollo. Os acontecimentos que ro-
dearam a morte de Comollo, especialmente no pacto entre Luís e João, foram
provavelmente apenas parte de um processo que tem a ver com o temor rela-
tivo à predestinação e à salvação pessoal. Se tivesse sido isso, o paralelo entre
Dom Bosco e Francisco de Sales é demasiado evidente.
Qualquer seminarista que levasse a sério essas questões seria candidato
a uma crise nervosa. Luís Comollo levou as coisas muito a sério e não so-
breviveu. João Bosco levou-as também a sério, mas sobreviveu, embora não
tenha saído completamente ileso. Foi capaz de superar o conflito psíquico
como também as tensões normalmente relacionadas com a virilidade juvenil,
porque, apesar de tudo, seu ego e sua situação psíquica eram fortes e adequa-
damente equilibrados.
O modelo formativo imposto pelo Regulamento de dom Chiaveroti
insistira na obediência interior e no reconhecimento do chamado de Deus
como as bases da vida espiritual de um seminarista. A “piedade” e as prá-
ticas religiosas, a fidelidade aos sacramentos e sua devoção fervorosa eram

Citado em Stella, Vita, 63s. Contudo, deve-se levar em conta a advertência de Stella (nota
63

36) sobre o testemunho de Francesia.


64
Cf. MO, 104-106.
65
MB I, 481-482-486. Lemoyne acrescenta que João ficou de cama por um mês, quando sua mãe
Margarida, totalmente alheia à sua grave condição, veio visitá-lo certo dia, trazendo um pão de milho e
uma garrafa de vinho. Quando Margarida foi embora, João comeu o pão e bebeu o vinho, e curou-se!

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

seu alimento essencial. Inculcava-se uma dedicação séria ao estudo: “Ai dos
padres ignorantes!”. O ideal sacerdotal incluía dedicação e caridade pastoral,
virtudes sacerdotais e santidade pessoal. A santidade sacerdotal exigia casti-
dade, oração, desapego, ascetismo e a tradicional fuga mundi.66 Sendo tudo
isso verdadeiro na vida de seminário, o modelo formativo sofreu o influxo da
doutrina teológica rigorista.
Mais tarde, no Colégio Eclesiástico, sob a direção espiritual do padre
Cafasso, a figura paterna, com quem ia estabelecer uma intensa relação afe-
tiva duradoura, Dom Bosco encontrou remédio, integridade e uma firme
identidade.67 Não obstante, Dom Bosco jamais abandonou uma espirituali-
dade orientada para a morte e o juízo. Os novíssimos eram fundamentais na
pregação, nos escritos de devoção, na discussão teológica. O tipo de piedade
inculcado no Oratório, por exemplo, por meio do Exercício da Boa Morte,
refletia essa ênfase.
O desejo de Dom Bosco de perpetuar o modelo Comollo e oferecer aos
seus meninos uma orientação para a vida espiritual através da biografia de
Comollo, fala do permanente fascínio pela sua espiritualidade.

A biografia de Luís Comollo


A biografia de Comollo foi a primeira de outras biografias escritas por
Dom Bosco. Redigida e publicada em 1844, quando ele ainda estava no
Colégio Eclesiástico, teve outras três edições: 1854, 1867 e 1884. A primeira
edição era um livreto de 84 páginas em formato pequeno.68
A obra era dedicada “aos reverendos seminaristas de Chieri”. Seu ob-
jetivo declarado era homenagear um santo amigo e propô-lo como modelo
para os seminaristas. A pequena biografia baseava-se num rascunho feito pelo
seminarista João Bosco em 1839, ano da morte de Comollo.69 Uma segunda

66
A. Giraudo, Clero, 245-288.
67
Cf. G. D’Acquino, Psicologia, 40-45.
68
Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo, morto nel seminario di Chieri, ammirato da
tutti per le singolari virtù, scritti da un suo collega. Turim: Tipografia Speirani e Ferrero, 1844, em OE
I, 1-84. Para o texto, introdução e comentários, ver também Alberto Caviglia, Il primo libro di Don
Bosco, em Opere e scritti editi e inediti di Don Bosco. Vol. V. Turim: SEI, 1964, Part. I [9-128]. A vida de
Luís Comollo em espanhol encontra-se em Juan Bosco, Obras fundamentales. Madri: BAC, 1979, 75-
111. Em português, João BOSCO, “Vida do clérigo Luís Comollo”, Leituras Católicas, 602. Niterói:
Escolas Profissionais Salesianas, 1940, 132p.
69
Infermità e morte del giovane Chierico Luigi Comollo scritta dal suo collega C[hierico] Gio. Bosco:
nozione sulla nostra amicizia e sulla sua vita. Ms. 24 páginas, em ASC A228ss: Comollo, FDB 305
C11-E10. Para a edição crítica em Juan Canals Pujol, “La amistad en las diversas redacciones de la
vida de Comollo escrita por san Juan Bosco: estudio diacrónico y edición del manuscrito de 1839”,

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Dom Bosco: história e carisma 1

edição, revista e ampliada, embora não seja assim indicada, foi publicada
em 1854 nas Leituras Católicas; era um livreto de 154 páginas no formato
pequeno da coleção. Apresentava Comollo ao público em geral como “jovem
exemplar, modelo para todos os que se preocupam com a própria salvação”.
Oferecia material biográfico adicional e um novo prefácio e conclusão.
Incluía também algum material parenético, inculcando a boa conduta
moral; dessa forma, a biografia de Comollo converteu-se em vade-mécum
da boa conduta no Oratório. Domingos Sávio tomou-o como modelo e os
membros da Companhia da Imaculada prometiam “procurar imitar Luís Co-
mollo”. Este, qual um “moderno São Luís”, manteve-se como modelo do
jovem, especialmente, do jovem que desejasse caminhar para o sacerdócio.
Poder-se-ia dizer que o livro funcionou na década de 1850, como manual do
aspirante salesiano da Companhia da Imaculada, e serviu de modelo para fu-
turos salesianos. Mais tarde, a biografia de Domingos Sávio (1857) rivalizou
com a de Comollo, mas nunca a substituiu. Comollo continuou a ter grande
influência espiritual no Oratório durante os anos de 1860 e além.
Uma terceira edição, praticamente sem alterações, foi publicada em
1867, pois a edição de 1854 se esgotara. A reimpressão, com 104 páginas em
formato maior, demonstra que na década de 1860 a biografia de Comollo
ainda era muito usada no Oratório. Uma quarta edição, definitiva, comple-
tamente revista, apareceu em 1884, tendo padre João Bonetti como editor
literário, mas com a assinatura de Dom Bosco; era um livro em formato
grande, com 120 páginas.70 Assim reza o prefácio: “Esta edição não é uma
simples repetição das anteriores”. Além da sua nova forma literária, apresen-
tou-se também “outro material que anteriormente não parecera adequado
para publicação ou que chamou nossa atenção mais tarde”. Entre os acrésci-
mos importantes, cabe assinalar as palavras que a Virgem dirige a Comollo
na aparição em seu leito de morte e a narração completa da visão terrificante
de Comollo depois da sua morte, que fora mencionada, mas não descrita
nas edições anteriores, embora tenha sido narrada nas Memórias do Oratório
(1874).71 A edição de 1884 é uma obra nova, menos pela documentação adi-
cional do que pela sua qualidade e objetivo. Aumenta nosso conhecimento
sobre Comollo e confere-lhe um novo caráter, o modelo da vida cristã, santo
sem mais, embora não tenha utilizado o termo.

RSS 5:2 (1986), 243-262. Para a estrutura e extratos da biografia de Comollo, de Dom Bosco, ver o
apêndice a seguir.
70
Padre Caviglia faz notar que a grande edição de Bonetti afetou a qualidade literária desta edi-
ção (A. Caviglia, Opere e scritti. V. 1, 18 e nota 2).
71
Cf. MO, 104-106.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Poder-se-ia perguntar por que Dom Bosco quis fazer com Comollo o
que não fez, por exemplo, com Sávio, ou seja, transformar e glorificar seu
personagem. Parece que Dom Bosco quis dar importância permanente a Co-
mollo, o santo, num momento, meados da década de 1880, quando o futuro
da sua obra parecia assegurado; podia, portanto, olhando para trás, avaliar
suas experiências vitais. Isso obriga a questionar sobre a natureza da relação
de Dom Bosco com Comollo e da dívida que tinha com ele.
Alberto Caviglia vê uma grande afinidade espiritual entre Dom Bosco e
Comollo. Em primeiro lugar, a biografia de Comollo possui um sabor auto-
biográfico no sentido de que Dom Bosco reflete seus próprios pensamentos,
valores, devoções, opções pastorais e o espírito da sua obra posterior como
educador e fundador. O mais importante, porém, na opinião de Caviglia, é
que “o Comollo de Dom Bosco tem alma de salesiano”. Ele especula que, se
tivesse vivido, Comollo poderia ter chegado a ser sem dúvida um santo; in-
clusive, ele crê que poderia ter sido um companheiro com quem Dom Bosco
compartilharia sua vida apostólica e seus sucessos de Fundador.72

72
A. Caviglia, Opere e scritti. V. 1, 21.

279

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Apêndice

DOM COLUMBANO CHIAVEROTI (1754-1831),


ARCEBISPO DE TURIM (1818-1831)

Gaspar Carlos João Columbano Chiaveroti [Chiaverotti, Chiavaroti]


nasceu em Turim no dia 5 de janeiro de 1754. Depois de obter o doutora-
do em Direito civil e canônico, pela Universidade de Turim (1774), fez sua
aprendizagem no escritório jurídico do Senado piemontês. Os Chiaveroti
eram uma família de advogados e médicos. Columbano deixou logo a pro-
fissão e, apesar das objeções paternas, entrou no mosteiro cenóbio camaldu-
lense de Turim. Emitiu os votos em 1776 e foi ordenado padre em 1781.
Em seguida, ocupou os postos de mestre dos noviços e dos novos professos e
em 1793 foi eleito visitador-geral da Federação de cenóbios camaldulenses.
Em 1795, foi eleito prior do cenóbio próximo de Lanzo (Turim). Quando a
comunidade foi dissolvida por Napoleão em 1802, o abade Chiaveroti dei-
xou o hábito religioso e permaneceu até 1817 como reitor da igreja a serviço
da população local. Em 1817, na Restauração, Vítor Manuel I colocou seu
nome na lista dos novos bispos, e Chiaveroti foi nomeado bispo de Ivrea,
onde permaneceu apenas por um ano.
Após a breve permanência em Ivrea, em 1818, por escolha real foi nomeado
arcebispo de Turim, sede que ficara vacante desde a morte do arcebispo Jacinto
Della Torre em 1814. Opôs-se com todas as forças à nomeação, escrevendo in-
clusive ao Papa e ao secretário de Estado, cardeal Consalvi, para que retirassem a
nomeação. A Santa Sé aconselhou-o a apelar ao rei. Ele o fez e, como resposta,
recebeu a notificação de que é “vontade de sua majestade, que aceite a nomea-
ção”. Continuou a objetar até que recebeu a palavra final de Pio VII.73
Houve quem tenha recebido com receio a nomeação de um monge com
pouca experiência do mundo. Os conservadores não favoreceram a nomeação
de alguém que pertencia à “burguesia” e não à antiga nobreza piemontesa

73
Deve-se levar em conta que os reis da Sardenha, como muitos outros monarcas, gozavam do pri-
vilégio de nomear os bispos. Esse privilégio, abolido por Napoleão, foi restaurado pela bula papal de 1817.

280

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

para a sede primacial do reino. Com a nomeação, porém, o rei esperava


ter um arcebispo suficientemente flexível para colaborar com sua política
eclesiástica, especialmente nas negociações em curso com a Santa Sé para a
reconstituição do patrimônio da Igreja na diocese e nas paróquias do reino.
O episcopado do arcebispo Chiaveroti caracterizou-se, no aspecto reli-
gioso, pela polêmica teológica entre a Universidade, o seminário e o Colégio
Eclesiástico e, no aspecto sociopolítico, pelos movimentos revolucionários.
Ele foi um homem conciliador, próximo e, em geral, bem-aceito. Sua ação
pastoral e seus escritos apresentam-no como conservador, defensor acérrimo
dos princípios da Restauração. Sua principal preocupação pastoral foi a
situação da Igreja que tratou de recuperar da época napoleônica.
Antes em Ivrea e depois em Turim, teve de permanecer à frente de uma
Igreja carente de reorganização e reforma. Numa carta desse tempo, ele fala
de “grandes abusos ainda evidentes entre o clero das dioceses de Turim, Ver-
celli, Ivrea, mencionando em especial a corrupção moral e a insubordinação ao
Sumo Pontífice e às suas Sagradas Majestades Reais”. Não menos preocupante
era o fato de muitas cidades não terem nenhum padre; as paróquias tinham
perdido seus benefícios e, como consequência, não tinham receitas que garan-
tissem sua sustentação. Um estudo sobre as paróquias mostrava que muitas
delas careciam dos meios de subsistência. O arcebispo pediu ajuda às autori-
dades; seguiram-se negociações longas, pacientes e nem sempre com sucesso.
Contudo, conseguiu recuperar ao menos parte das terras e dos bens imóveis da
diocese e das paróquias, que tinham sido expropriadas sob Napoleão.
Chiaveroti foi um bom e zeloso bispo, pastor e reformador. Sua princi-
pal preocupação pastoral centrou-se na má qualidade e no reduzido número
de padres. Esses fatos básicos ditaram seu programa de reformas. Preocupava-
-se com a melhoria da formação sacerdotal e da disciplina. Não ficando sa-
tisfeito apenas com a disciplina externa, defendeu a restauração espiritual e a
renovada dedicação ao ministério.74 Ele melhorou a formação pastoral, cul-
tural e espiritual dos padres e deu atenção especial ao exame dos candidatos
à vocação e ao programa de formação do seminário. Foi assim que o número
de padres ordenados aumentou de 30, em 1818, para 61, em 1831.75
A reforma foi um sucesso, mas o arcebispo Chiaveroti não viveu para
ver os resultados. Morreu em 1831, aos 77 anos, e será sucedido por dom
Luís Fransoni.

74
Para o programa de formação no seminário do arcebispo Chiaveroti e sua adaptação pelo
arcebispo Fransoni para o seminário de Chieri, ver acima e no Apêndice II a seguir.
75
Sussidi 2, 235 (citando fontes de arquivo).

281

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Dom Bosco: história e carisma 1

O SEMINÁRIO DA ARQUIDIOCESE DE TURIM

Antes de Napoleão
Após os decretos do Concílio de Trento sobre a reforma do clero e dos
seminários, a diocese de Turim tentou repetidas vezes aplicá-la com seriedade
não igualada nas demais dioceses da Itália, à exceção de Milão. As resistên-
cias à reforma surgiam da política eclesiástica absolutista da Casa de Saboia.
Apesar disso, deu-se um progresso moral, espiritual e pastoral ao longo dos
séculos XVI e XVII.
O seminário de Turim foi fundado em 1567, pelo cardeal arcebispo
Jerônimo Della Rovere, mas enfraqueceu-se pela falta de financiamento e de
locais adequados. O primeiro edifício importante para o seminário foi ergui-
do por volta de 1660 e ampliado entre 1725 e 1729 até acolher cerca de 80
seminaristas.
A reforma escolar e os estatutos de 1729 ordenados por Vítor Amadeu II
puseram a educação secundária sob o controle estatal. Como consequência,
os estudos secundários (seminário menor) foram eliminados do programa
do seminário. Só se mantiveram a filosofia e a teologia. Aparentemente, a
medida não afetou a qualidade das vocações sacerdotais, pois o programa da
escola secundária no Reino da Sardenha era organizado ao redor da religião
e supervisionado e ministrado quase integralmente pelo clero. Não era esse o
caso de outros Estados da Itália ou da França.
O seminário logo desenvolveu estreitas relações com a Escola de Teo-
logia da Universidade, frequentada pelos seminaristas. A Escola de Teologia
da Universidade, Congregação de Superga, fundada em 1730, e as quatro
“conferências” de teologia moral-pastoral, criadas em 1738, trabalhavam
juntas; eram responsáveis pela melhoria da formação sacerdotal, da disci-
plina, do espírito e do prestígio sacerdotal. Obviamente, o seminário e seu
programa estavam sob a autoridade do arcebispo; ele era o responsável da
formação sacerdotal e da admissão dos candidatos às ordens sagradas. Entre-
tanto, devido à política da Casa de Saboia, a formação teológica tinha caído
sempre mais sob o controle real, até que a concordata de 1741 permitiu que
o seminário com seus professores e sua administração desfrutassem de maior
liberdade e autoridade.
Um documento contemporâneo da Santa Sé ordenava que os seminaris-
tas residissem no seminário durante oito meses por ano, sob a atenta super-
visão do Reitor e do seu pessoal, assistissem às aulas de filosofia e teologia na
Universidade e recebessem instrução complementar no seminário.

282

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

A Instrução de 1742 do papa Bento XIV (1740-1748) para a reforma do


clero deu um passo adiante na aplicação dos decretos do Concílio de Trento
e converteu-se em normativa para os seminários do Reino da Sardenha, espe-
cialmente o de Turim. Contudo, devido à falta de locais, desde seus inícios,
o seminário de Turim só podia acomodar um número reduzido de semina-
ristas. Para atenuar a situação, surgiu o seminário externo (clericato externo).
Os seminaristas assistiam às aulas de filosofia e teologia, mas viviam em suas
casas ou outras residências, um grave inconveniente em matéria de disciplina.
Todavia, para evitar a inconveniência da situação, o edifício do seminário
de Turim foi ampliado para acomodar cerca de 150 seminaristas, embora se
continuasse a sentir a necessidade de um segundo seminário, que foi fundado
em 1780 na cidade de Bra, a 55 quilômetros ao sul de Turim.
O seminário de Bra funcionou como o de Turim, mas, evidentemente,
não gozava das vantagens do ensino da Universidade e de uma equipe de
primeira qualidade. A ampliação aliviou os problemas apenas em parte. O
seminário externo e seus problemas ainda perduraram muitos anos.

Durante o período napoleônico


Em janeiro de 1801, iniciado o período napoleônico na Itália, os se-
minários foram fechados e seus edifícios e bens, confiscados. Em pouquís-
simos anos, a disciplina e a formação do clero, com as vocações sacerdotais,
diminuíram gravemente. Depois dos ataques e de um tempo de turbulência,
estabeleceu-se um novo sistema; a situação social e política recuperou certa
normalidade. Contudo, os três problemas do clero: a disciplina, a formação e
as vocações continuaram sem solução, devido à falta de seminários.
O arcebispo Jacinto Benigno Della Torre,76 com diplomacia e paciência,
conseguiu recuperar o edifício, muito carente de reformas, e alguns bens do se-
minário anterior. Um decreto imperial de 16 de fevereiro de 1807 confirmou a
devolução e permitiu seu funcionamento. Restaurado, o seminário foi reaberto
em novembro de 1807 com 63 seminaristas residentes, que já não estudavam
filosofia e teologia na Universidade, e um grupo de dez professores. Para obter
a aprovação oficial, o arcebispo apresentou ao governo de Napoleão em Paris

Jacinto Benigno Della Torre, dos condes de Luserna (1747-1814), natural de Saluzzo (19
76

quilômetros ao sul de Turim), entrou na Ordem de Santo Agostinho e exerceu encargos de responsa-
bilidade na comunidade. Primeiramente, foi nomeado bispo de Sassari (Sardenha) e depois de Acqui
(Piemonte). Em 1805, no auge da agitação de Napoleão na Itália, foi nomeado arcebispo de Turim
(1805-1814). À sua morte e depois de cinco anos de vacância (1814-1819), foi nomeado Columbano
Chiaveroti (1819-1831) como arcebispo de Turim e, depois dele, Luís Fransoni (1831-1862); em
seguida, depois de outros cinco anos de vacância (1862-1867), foi nomeado Alexandre Ottaviano Ric-
cardi, dos condes de Netro (1867-1870), ao qual se seguiu Lourenço Gastaldi (1871-1883).

283

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Dom Bosco: história e carisma 1

o programa ou Regulamento do seminário, no qual, sem revelar suas preo-


cupações pastorais, insistia em temas organizativos. O arcebispo continuou a
trabalhar a fim de melhorá-lo; em 1813, até o final da época napoleônica, a
arquidiocese contava com 210 seminaristas. Desses, 150 residiam no seminá-
rio, 24 estudavam sob a supervisão do próprio pároco, e 30 frequentavam a
restabelecida Escola de Teologia na Universidade como seminaristas externos.
Mais tarde, em 1809, um decreto imperial permitiu a criação de escolas
secundárias eclesiásticas (seminários menores). Com isso pôde-se estabele-
cer o seminário menor de Giaveno, a 23 quilômetros a oeste de Turim, no
edifício de uma abadia beneditina que fora suprimida. Contudo, o número
reduzido de estudantes e a falta de fundos obrigaram o seu fechamento logo
depois. Em 1811, no contexto da reorganização da Universidade e do ensino
secundário sob a administração de Napoleão, foi permitido que as escolas
secundárias eclesiásticas continuassem como parte do sistema. Entretanto,
limitava-se a uma por distrito e às sedes distritais como Chieri. Foi assim
que, em 1812, fundou-se em Chieri uma escola secundária eclesiástica, que
ocupava os imóveis da suprimida Universidade (jesuíta) de Santo Antônio,
que, além disso, servia de pensionato para a população estudantil. Também
esta foi uma breve experiência, pois o sistema napoleônico foi removido com
o edito de Restauração expedido pelo Congresso de Viena em maio de 1814.
O arcebispo Della Torre morreu no mesmo ano, aos 67 anos de idade.

Depois de Napoleão
Após a morte do arcebispo Della Torre, em coincidência com o final da
época napoleônica, a sede de Turim manteve-se vacante por mais de quatro
anos até a nomeação do arcebispo Columbano Chiaveroti. O novo arcebispo
viu-se com uma diocese que, com um clero desorganizado e carente de re-
forma, precisava de reorganização. Sua preocupação principal centrou-se na
deficiente qualidade, como também no reduzido número de seus padres. Ele
promoveu um programa de reformas iniciadas pelo seminário. A primeira
coisa que fez foi substituir a regulamentação de 1808, insuficiente com o
novo conjunto de estatutos (Constituições para o Seminário), publicados em
1819. Mantiveram-se em vigor até os novos estatutos de 1874-1875, pro-
mulgados pelo arcebispo Lourenço Gastaldi. Fiel à sua ação de renovação, em
1821, dom Chiaveroti nomeou como reitor do seminário o cônego Francisco
Icheri de Malabaia, futuro bispo de Casale, e reabriu também em 1821, o
seminário de Bra, fechado na época napoleônica.
No relatório de 1821 à Santa Sé, o arcebispo declarava 160 seminaristas
residentes em Turim e 40 em Bra. Em 1825, a arquidiocese tinha cerca de 500 se-
minaristas inscritos, embora apenas 220 deles pudessem alojar-se nos seminários;

284

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

os restantes 280 estavam inscritos como externos. Os dois seminários existentes


precisaram ser aumentados e foi criado um terceiro, o de Chieri, em 1829. Apesar
disso, a fórmula do “seminário externo” continuou a ter grande importância.
Recorde-se que a reforma escolar de 1822 do rei Carlos Félix colocou todo
o ensino secundário num contexto religioso, com bases pré-revolucionárias,
sob a direção de pessoal da Igreja. Na prática, eram desnecessários os seminários
menores como centros eclesiásticos de ensino secundário. Apesar disso, dom
Chiaveroti optou pela reativação do pequeno seminário de Giaveno.

O modelo de formação sacerdotal da reforma de Chiaveroti


A organização da vida de seminário nos estatutos de 1819 do arcebispo
Chiaveroti apresenta-se de modo muito formal e jurídico. Não se oferece qual-
quer motivação ou diretrizes para a autoformação, como são encontrados nos
estatutos de outros seminários, por exemplo, no de Milão ou Módena. Outros
elementos, porém, como as conferências de moral, prescritas semanalmente,
as cartas do arcebispo etc., demonstram que se ofereciam aos seminaristas os
ideais de vida espiritual e santidade. É o que resulta também de escritos con-
temporâneos, como a vida de Luís Comollo escrita por Dom Bosco.
A melhor apresentação do modelo sacerdotal pretendido pelo arcebispo
é, provavelmente, a sua “Carta ao clero”, publicada como prefácio ao calen-
dário litúrgico anual. Os pontos essenciais do modelo de formação sacerdotal
proposto pelo arcebispo Chiaveroti podem ser resumidos assim:77
1. Espírito do seminarista
Obediência interior, não só o seu cumprimento.
Manter uma atitude de resposta ao chamado de Deus na vocação
sacerdotal.
2. Práticas religiosas
Atitude interior de reverência e oração. Fidelidade às práticas
religiosas.
Manter um clima de fervor, especialmente com a recepção dos
sacramentos.
3. Dedicação aos estudos
A ignorância é fatal em um padre.
Tirar o máximo dos estudos, conferências, revisão e grupos de es-
tudo.
Utilização dos autores e dos livros de texto aprovados.

77
Ver A. Giraudo, Clero, 245-288.

285

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Dom Bosco: história e carisma 1

4. Modelo ideal de padre


Objetivo e perspectiva da formação sacerdotal: consagração a Deus
por meio da vida espiritual e dedicação ao ministério sacerdotal
pelo bem das almas.
O padre é pastor e “vítima da caridade”, modelado na caridade
de Cristo.
Virtudes sacerdotais e busca da santidade.

Fundação e organização do seminário de Chieri


Os novos Estatutos, pensados para o seminário de Turim, foram assumi-
dos e adaptados em Bra e Chieri. Na realidade, as normas para o seminário
de Chieri, estabelecidas pelo arcebispo, foram motivadas na fundação do se-
minário de Chieri em 1829 pelo número sempre maior de aspirantes, por ser
nova a situação política e por considerações doutrinais.
No plano político, os ataques revolucionários de 1821 bem como as
convulsões dos estudantes universitários em janeiro e março desse ano cau-
saram o fechamento temporário da Universidade. Os seminaristas não par-
ticiparam diretamente, mas foram afetados, pois assistiam às aulas na Uni-
versidade, e o seminário em seu conjunto tinha vínculos estreitos com ela. O
clima político não era adequado para o modelo de formação sacerdotal que o
arcebispo tentava inculcar.
No campo doutrinal, surgia um conflito entre clero e Universidade, en-
tre “predestinacionismo” e “rigorismo”, de origem jansenista, e “molinismo”
e “benegnismo”, de origem jesuíta. Esta última postura teológica ia ganhan-
do terreno por influxo dos jesuítas e instituições afins como as Associações
de Amizade (Amicizie) ou o Colégio Eclesiástico de Turim.78 Abriu-se uma
grave ruptura pelas controvérsias que se seguiram. O arcebispo chamou o
clero à unidade e à caridade. Nos inícios de 1829, o professor de teologia
João Dettori foi dispensado da Universidade. A polêmica e os protestos que
se seguiram causaram o fechamento temporário da Escola de Teologia pela
Autoridade da Reforma. O arcebispo transferiu as aulas de filosofia e teologia
para o seminário e nomeou instrutores de tendências moderadas.

Os jesuítas foram restabelecidos oficialmente pelo papa Pio VII em 1814 e retornaram a Turim
78

pouco depois. As Amicizie eram associações (secretas) de padres e leigos que surgiram dos jesuítas, pro-
fessavam a teologia jesuíta, a teologia moral e a prática do benignismo como também a teologia ultra-
montana. O Colégio Eclesiástico (do qual Dom Bosco participou mais tarde) surgiu da escola jesuítica.
Em 23 de fevereiro de 1821, o arcebispo aprovou em definitivo o Colégio Eclesiástico, fundado pelos
padres Luís Guala e Pio Bruno Lanteri. Em 1823, depois que a Universidade foi fechada, o arcebispo
confiou o prestigioso Colégio Universitário de São Francisco de Paula aos jesuítas.

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

O novo seminário de Chieri surgiu nesse contexto em 1829. A decisão


não resolveu o conflito entre rigoristas e benignistas, nem mesmo no seminário
de Chieri; contudo, afastou da agitação da capital um bom número de semi-
naristas diocesanos que encontraram uma atmosfera formativa mais tranquila.
O novo seminário de Chieri foi fundado no convento do Oratório
de São Felipe Neri, que pertencera aos Padres Oratorianos, espoliados por
Napoleão em 1802. A cidade de Chieri obtivera da administração francesa
o uso, não a propriedade, dos locais para sua escola e repartições públicas.
Embora, num primeiro momento, a cidade tenha questionado a ocupação
da propriedade pela arquidiocese, contentou-se depois com uma pequena
compensação, uma vez que a presença do seminário lhe trazia benefícios
e prestígio.79
O Reitor do seminário de Turim supervisionou a restauração e adap-
tação dos edifícios em 1828 e 1829. O seminário foi aberto no outono de
1829, só com os cursos de teologia sob a direção do jovem teólogo Sebastião
Mottura. O Reitor governou o seminário com considerável habilidade admi-
nistrativa, competência no trato com as autoridades e oportuna severidade
em suas relações com os seminaristas. No primeiro ano de funcionamento,
a matrícula foi de 76 estudantes de teologia. Entre eles estava o santo José
Cafasso, que entrara em seu segundo ano de teologia.80
Muitos dos estudantes, segundo os relatos do reitor ao arcebispo, eram
indisciplinados e foi preciso discipliná-los com firmeza. O reitor, a princípio,
contava apenas com a ajuda de 2 professores, empregando 7 leigos para as
tarefas domésticas.81
Quando João Bosco entrou no seminário no outono de 1835 tinham-se
acrescentado dois anos de filosofia. Os seminaristas chegaram a 100, distri-
buídos em sete anos, dois de filosofia e cinco de teologia. Uma equipe de 5
superiores conduzia a programação acadêmica: padre Sebastião Mottura, 40
anos, reitor; padre José Mottura, 26 anos, diretor espiritual; padre Lourenço
Prialis, 32 anos, professor de teologia; padre Inocêncio Arduíno, 30 anos,
instrutor e repetidor na teologia; e padre Francisco Ternavásio, 29 anos, pro-
fessor de filosofia. O reitor, padre Mottura, ficaria no cargo até 1860, quando
foi destituído por ordem do arcebispo exilado Luís Fransoni.
79
Anexo ao convento dos Oratorianos havia a igreja de São Felipe Neri, tradicionalmente ofi-
ciada pelos padres do Oratório. A igreja não fazia parte do seminário, que tinha uma capela própria.
80
José Cafasso iniciara seus estudos sacerdotais como seminarista orientado pelo pároco de
Castelnuovo.
81
Os 7 empregados eram: vigia, cozinheiro, ajudante de cozinha, dois camareiros, encarregado
da despensa e porteiro.

287

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Dom Bosco: história e carisma 1

Regulamento do Seminário de Chieri pelo arcebispo Luís Fransoni


Dom Chiaveroti morreu em 1831, dois anos depois da fundação do semi-
nário. Seu sucessor, dom Luís Fransoni,82 não introduziu nenhuma modificação
na programação da formação no seminário. Pode-se supor que compartilhava as
ideias do seu predecessor sobre a formação sacerdotal. O Regulamento escrito
pelo arcebispo Fransoni para o seminário de Chieri, baseia-se no do seminário
de Turim, e seu caráter institucional é ainda mais acentuado.

Disciplina
Segundo os Sínodos da arquidiocese, o seminário devia ser “fechado”
como um claustro. Sua disciplina era severa e a rotina da vida ordinária e a
atividade eram reguladas em todos os detalhes, sob o controle do reitor com
sua equipe. O Regulamento descreve uma situação em que todo o pessoal,
dirigentes e estudantes, ficam nitidamente separados. O reitor recebia as in-
formações e tomava as decisões a partir de um isolamento quase inacessível.83
O complicado sistema de supervisão através da organização dos prefeitos [ou
encarregados da disciplina] é semelhante à vigilância e ao controle da polícia.84
Os Estatutos para o seminário de Turim, de dom Chiaveroti (1819)
falavam de um ano escolar de oito meses no seminário e das férias de quatro
meses de verão. Roma resistiu a tempo tão longo de férias; uma nova pro-
posta de três meses foi aceita, mesmo assim com objeções da Congregação
Romana. Parece que Chieri, sob o governo de dom Fransoni, continuou com
as disposições originais do antecessor, pois Dom Bosco fala das férias de verão
de quatro meses.85
Uma série de disposições no Regulamento parece antecipar-se aos casos
sérios de má conduta, grave ou próxima de atos “delituosos” dos seminaris-
tas.86 Os prefeitos recebem instruções sobre como enfrentar esses fatos. A
presença de seminaristas externos pode ser considerada, em parte, como pro-
va de certo “espírito mundano” em alguns deles. Evidentemente, em relação
à disciplina, os seminaristas não residentes eram uma anomalia, pois viviam
com muito pouca disciplina e, no entanto, eram admitidos livremente às
ordens. Os seminaristas residentes eram, porém, passíveis de sanções severas

82
Luís Fransoni (1789-1862) foi bispo de Fossano de 1821 a 1831, sendo depois nomeado ad-
ministrador (1831) e, mais tarde, arcebispo de Turim, em 23 de fevereiro de 1832. Avesso a qualquer
forma de liberalismo, sofreu a prisão e o exílio. Viveu em Lyon (França) de 1850 até sua morte em 1862.
83
Dom Bosco, em suas Memórias, faz comentários críticos sobre o tremendo distanciamento do
reitor e dos professores do seminário [MO, 93].
84
Dom Bosco foi prefeito de estudos de um dormitório no seu último ano [MO, 111].
85
A. Giraudo, Clero, 374 (texto dos Estatutos de Turim); MO, 93-95, 97.
86
Nas Memórias, Dom Bosco alude a fatos desse tipo [MO, 93-94].

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

pelas infrações aos regulamentos. Contudo, o Regulamento não faz qualquer


referência aos seminaristas externos.

Estudos
Surpreende a pouca atenção dada pelo Regulamento aos estudos. Os
poucos artigos sobre isso estão relacionados, sobretudo, com a disciplina em
sala de aula. O programa de estudos teológicos tinha orientação apologética
e casuística. O objetivo principal era proporcionar as ferramentas com que se
pudessem refutar as objeções contra a fé católica e resolver as questões morais.
A mudança de estilo introduzida pelo espírito crítico em vista de uma teolo-
gia bíblica, histórica e positiva não causou impacto no ensino do seminário
durante a maior parte do século XIX no Piemonte.
Os tratados de filosofia e teologia eram ensinados em livros de textos
aprovados e prescritos pelo arcebispo. Eram redigidos em latim, como tam-
bém se ministravam as aulas. O professor “lia” o livro de texto e acrescentava
comentários à moda de explicação e fazia uma repetição todos os dias, à
noite, exceto aos sábados; um instrutor ou tutor repetia a aula da manhã.
Às tardes de cada dia letivo, as classes reuniam-se por grupos em círculos de
estudo, sob a supervisão de um prefeito para discutir questões relacionadas
com o tema apresentado em aula.87
Empregava-se um tempo considerável do dia em “estudo” vigiado, o que
acontecia no salão de estudo comum, no qual os seminaristas estudavam a
lição recomendada no livro de texto ou faziam a tarefa indicada. Os Estatutos
acrescentam: “Durante o tempo de estudo, a leitura de qualquer outro livro
que não o de texto, inclusive relativa à matéria de estudo, é proibida sem a
permissão expressa do professor”.88
Os Estatutos e o Regulamento não contemplavam qualquer previsão
sobre o uso da biblioteca do seminário pelos estudantes. A biblioteca no se-
minário de Chieri foi criada em 1834 com os livros levados da biblioteca
do seminário de Turim. Figuram no catálogo 184 títulos, muitos dos quais
eram obras em vários volumes. Obras que figuram nos seguintes nove títulos:
Sagrada Escritura, 17 títulos; Padres da Igreja e Escritores Cristãos antigos,
87
“Regulamentos do Seminário de Chieri”, cap. III, e “Estatutos do Seminário de Turim”, cap.
III. In: A. Giraudo, Clero, 374; cf. MO, 96.
88
Dom Bosco, nas Memórias, fala de uma extensa leitura, além dos livros de textos prescritos,
feita obviamente durante o tempo de estudo. E acrescenta: “Os superiores sabiam de tudo e me dei-
xavam fazer assim” [MO, 108]. Leve-se em conta que dos 11 autores mencionados por Dom Bosco,
só 2 estavam no catálogo da biblioteca de 1834. Os demais podem ter sido acrescentados entre 1837,
data do catálogo, e 1841.

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Dom Bosco: história e carisma 1

15 títulos; Sagrada Escritura, 17 títulos; Padres da Igreja e Escritores Cris-


tãos antigos, 15 títulos; documentos da Igreja, 36 títulos; História da Igreja,
Antiguidades cristãs, hagiografia, 17 títulos; Teologia Dogmática e Apolo-
gética, 27 títulos; Teologia Moral, 11 títulos; Sermões, Homilias e discursos
diversos, 29 títulos; Escritos ascéticos, 14 títulos; História civil, Literatura
etc., 9 títulos.89
Dado o sistema vigiado de estudo, parece que os seminaristas não ti-
nham acesso habitual à biblioteca. João Bosco, todavia, pode ter conseguido
alguns livros da biblioteca ou dos professores para sua leitura extracurricular.

OS SEMINÁRIOS DA ARQUIDIOCESE DE TURIM


A PARTIR DE 1840

Os seminários, especialmente o de Turim, viram-se afetados de maneiras


diversas pela Revolução Liberal de 1848. Em 1849, dom Fransoni, por razões
disciplinares e políticas, fechou o seminário de Turim. Não reabriria suas portas
senão em 1863, depois da morte do arcebispo em 1862.
Sendo arcebispo Alexandre Otaviano Riccardi di Netro (1867-1870),
os quatro seminários da arquidiocese de Turim continuaram ativos até 1868-
1869, tal como tinham sido organizados por dom Chiaveroti. Então, por ra-
zões econômicas, todo o programa do seminário foi reformulado. Bra, como
Giaveno, transformou-se em seminário menor, escola secundária eclesiásti-
ca.90 Em Chieri, foi estabelecido apenas o programa de dois anos de filosofia,
e Turim continuou a ser o único seminário teológico da arquidiocese.

BIOGRAFIA DE LUÍS COMOLLO ESCRITA


POR DOM BOSCO (1817-1839)
Estrutura, fontes e conteúdo da biografia91
A biografia de Comollo, em todas as edições, divide-se em quatro partes:
(1) Luís até sua chegada em Chieri (1817-1834); (2) Luís na escola pública
de Chieri (1834-1836); (3) Luís no seminário (1836-1839); (4) Luís depois
89
A. Giraudo, Clero, 403-411.
90
Marco importante da progressiva secularização da sociedade promovida pela Revolução Liberal
(de 1848) era eliminar a educação do controle da Igreja. Ao ser progressivamente eliminada a religião
das escolas públicas, que estavam sob o controle do Estado, as escolas particulares secundárias da Igreja
(seminários menores) se tornaram novamente necessárias.
91
As referências são aos “Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo”, como foram re-
produzidas em OE I (1844-1855).

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

da morte. A terceira parte é mais longa (na edição de 1884, ocupa 63 das 120
páginas do livro).
Dom Bosco esteve ao lado de Comollo desde fins de 1834 até 1839. Só
o conheceu em 1834. As informações sobre os anos anteriores foram obtidas
de pessoas que o conheceram. Dom Bosco menciona algumas fontes. Uma
delas foi o padre José Comollo, tio e diretor espiritual de Luís, pároco de
Cinzano, sua cidade natal. Para a edição revista de 1884, Dom Bosco obte-
ve alguma informação do senhor Carlos, pai de Luís. Dom Bosco também
menciona “outro senhor”, “uma pessoa relacionada com Luís”, “um amigo de
infância de Luís” e certo padre Strumia. Por último, fala de recordações que
Luís mesmo confiou a um “companheiro próximo”.
Sobre o primeiro ano de Luís em Chieri, Dom Bosco tinha conheci-
mento direto e também informações dadas por Jaime Marchisio, caseiro de
Luís, e pelos padres relacionados com a escola, mencionando os padres Vi-
cente Robiola [Raviola], decano, Francisco Calosso, diretor espiritual, e João
Bosco, professor.
Para os anos de seminário (1836-1839), Dom Bosco baseou-se em seus
contatos pessoais e no testemunho do pessoal do seminário. Menciona os
padres Sebastião Mottura, reitor, e José Mottura, diretor espiritual, os profes-
sores padres Inocente Arduino e Lourenço Prialis. Também os seminaristas,
não identificáveis, deram-lhe algumas informações. Enfim, os pais de Luís
forneceram notícias sobre os períodos das férias de verão.
A última parte da biografia, que trata de Luís depois da morte, é com-
posta por alguns comentários pessoais de Dom Bosco, alguns elogios dos
seminaristas e professores e, na edição de 1884, de três “graças” acrescentadas
à descrição da aparição.
A “pesquisa” de Dom Bosco para a biografia básica de 1844, foi minu-
ciosa. Entretanto, a supressão de dados relativamente importantes e a adição
de outro material em edições posteriores, especialmente na última de 1884,
levantam algumas questões. Como em todas as biografias cujo autor é Dom
Bosco, é claro o propósito didático-educativo. Esse objetivo também moti-
vou muitas das alterações. De aí surge, legítima, a questão da “historicidade”
do relato. Depois de examinar uma série de exemplos, Desramaut a defende:
a biografia de Comollo seria, globalmente, verdadeira.92

Extratos da primeira edição (1844)


Posso garantir-vos que as coisas que escrevi aqui são verdadeiras, pois eu as vi
ou escutei pessoalmente, ou foram ilustradas por pessoas dignas de crédito (p. 4).
92
Cf. F. Desramaut, Les memorie I, 110-112.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Primeiros anos
Luís, por natureza, era dotado de uma bela alma, de coração aberto, de
disposição dócil e de espírito delicado (p. 5). Aprendeu a ler e a escrever com
facilidade, e servia-se disso para o bem pessoal e dos outros. Sobretudo nos
domingos e dias festivos [...], ele reunia os meninos da sua idade e entretinha-
-os com leituras, explicava-lhes as coisas que aprendera ou narrava-lhes histó-
rias edificantes [...]. Ninguém se atrevia a dizer más palavras em sua presen-
ça e, se alguém o fazia inadvertidamente, era possível ouvir imediatamente:
“Cala a boca... Luís pode ouvir-te [...]”. Se ele ouvia alguma frase ruim ou
irreverente, advertia com admirável doçura: “Não uses essa linguagem, é in-
digna de um cristão” (p. 6).
Os adultos admiravam-se ao ver tão elevado grau de virtude em alguém
tão jovem (p. 7). Era obediente aos pais em tudo [...] e procurava antecipar-
-se cuidadosamente às suas ordens (p. 7-8). Tão belas e virtuosas disposições
uniam-se a uma verdadeira devoção e amor por tudo que fosse religioso. Na
primeira confissão, ele deu provas de sua profunda devoção. Depois de fazer
um cuidadoso exame de consciência, foi confessar-se. Ajoelhado diante do
confessor, com pena e dor de seus pecados (se se pode falar de pecados) e
com reverência pelo Santíssimo, deixou correr um rio de lágrimas. Precisou
ser confortado e tranquilizado antes de poder fazer sua confissão. Com a mes-
ma devoção e para edificação dos presentes, recebeu o Corpo de Cristo pela
primeira vez. A partir desse momento, cresceu no amor aos dois sacramentos
[...] (p. 9-10).
Como seminarista, costumava dizer: “Aprendi da obra de Santo Afonso
intitulada Visitas ao Santíssimo Sacramento, a fazer a comunhão espiritual.
Isso foi o meu apoio em todos os perigos durante o tempo em que vivi como
leigo” (p. 10). O jovem Comollo esteve livre das falhas infantis, próprias
dessa idade. Mantinha a calma e a paciência não importando o que aconte-
cesse. Era sempre amável com seus colegas, modesto e respeitoso com seus
superiores, obediente e desejoso de ajudar na igreja, o que fazia com grande
devoção (p. 11). Mesmo quando ainda criança oferecia ramalhetes de florzi-
nhas à Virgem, e abstinha-se de algum alimento [...]. Quando traziam à mesa
algum prato que, de modo especial, lhe agradava, abstinha-se dele em honra
de Maria (p. 12-13).

Comollo inscreve-se na escola pública de Chieri


No início do ano escolar de 1835, o proprietário da casa em que eu vivia
[em Chieri] disse-me: “Ouvi que um santo estudante vai ser hóspede nesta ou

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

naquela casa”. Eu pensei que estivesse brincando, mas insistiu: “É verdade. Creio
que é o sobrinho do pároco de Cinzano, um jovem de extraordinária virtude”
(p. 13). Eu percebera durante vários dias a presença de um estudante (a quem
não conhecia), cuja conduta era tão modesta, amável e cortês que eu estava re-
almente impressionado. Minha admiração aumentou quando vi sua diligência
na classe. Logo ao chegar, colocava-se no seu lugar e não se movia dali, salvo
quando o dever o exigia (p. 13-14). [Com doçura, negava-se a participar de jo-
gos violentos], um colega deu-lhe um forte tabefe no rosto. Isso me incomodou
muito, e esperava a represália de Comollo, pois era maior e mais forte. Todavia,
com verdadeiro espírito cristão, Comollo dirigiu-se ao agressor e disse-lhe: “Se
estás satisfeito, vai em paz. Estou feliz por deixá-lo assim” (p. 14-15).
[Testemunho de um professor:] “Comollo era dotado de grande inteli-
gência e da mais amável disposição natural. Entregava-se ao estudo com dili-
gência, nem mais nem menos do que à piedade [...]. Poderia ser apresentando
a qualquer jovem como modelo de boa conduta, obediência e docilidade” (p.
15-16). “Pedes-me que faça observações sobre qualquer excelente qualidade
que pudesse ter observado nele. O que pode sobressair mais do que seu cons-
tante equilíbrio e a sua tenacidade numa idade muito propensa à frivolidade
e à inconstância? Todos os dias dos dois anos em que o tive como aluno, ele
observou o mais elevado nível de perseverança e de trabalho diligente, de
bondade e de entrega à virtude e à piedade” (p. 17).
[Testemunho do dono da pensão:] “Era sempre equilibrado, impertur-
bável e alegre em todas as situações” (p. 17). “Eu mesmo nunca o ouvi quei-
xar-se do mau tempo ou de ter muito trabalho ou estudo” (p. 18).
[Testemunho do capelão da escola:] “Pertencia à rara raça de estudantes
que se distinguem pela dedicação ao estudo e à piedade. Comollo, porém, a
todos superava, dos pés à cabeça” (p. 19).
Sempre concentrado em sua vida espiritual, nunca se mostrava infeliz
ou triste. Ao contrário, estava sempre alegre e, a partir da própria felicidade,
era capaz de animar os demais com sua doce maneira de falar. Agradavam-lhe
as palavras do profeta Davi: “Servi ao Senhor com alegria” (p. 23-24). Dessa
forma, com a estima dos colegas e o afeto dos superiores, honrado e admirado
como autêntico modelo de todas as virtudes, completou seu ciclo de estudos
secundários. Corria o ano 1836 (p. 26).

Comollo recebe o hábito clerical e entra no Seminário


[No dia da imposição da batina], totalmente consciente da solenidade
da ocasião e da importância religiosa do ato, com profundo recolhimento e

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Dom Bosco: história e carisma 1

com a modéstia de um anjo, recebeu o tão desejado e honrado hábito clerical


[...]. Ele costumava dizer que [nesse dia] experimentou uma mudança total
de coração. Suas preocupações e tristezas desapareceram ao mesmo tempo em
que a felicidade e a alegria de coração ocuparam seu lugar (p. 26-27).
[Ao entrar no seminário], começou a dar provas das virtudes que, embo-
ra fizessem parte da vida ordinária, foram extraordinárias em sua maturidade.
As virtudes que mais o distinguiam eram o cumprimento exato do dever, a
piedade e o estudo, e um ardoroso espírito de mortificação. Aprendera da
leitura da vida de Santo Afonso que este santo prometera fazer bom uso de
cada momento. Comollo ficou admirado e resolveu imitá-lo (p. 27).
Posso dizer com sinceridade que nos dois anos e meio da nossa convivên-
cia no seminário, jamais escutei dele uma palavra que se desviasse da convicção
profundamente arraigada nele: “Das pessoas, falar bem ou calar” (p. 30).
A bela flor de devoção que cultivara em sua terra, longe de desaparecer
com o passar dos anos, floresceu em plena beleza e alcançou forma perfeita
nos seus anos de estudo no seminário (p. 31).
[Depois de receber a Santa Comunhão, ele] rezava, mas sua oração era
interrompida por soluços, suspiros e lágrimas. Advertido para que refreasse
essas demonstrações exteriores de piedade, respondia: “Meu coração está tão
cheio de alegria que, se não a liberasse, me afogaria”. Esta era a prova de que
avançara muito no caminho da perfeição, porque os passos de terna devoção,
doçura e alegria eram consequência da fé viva e da caridade ardente. Essas vir-
tudes estavam profundamente arraigadas em seu coração e foram a inspiração
de tudo o que fez (p. 33).
Essa devoção era acompanhada de uma mortificação exemplar de todos
os sentidos externos [...]. [Quando passeava com outros seminaristas], nunca
permitia que seus olhos vagueassem. Entabulava conversas com seu com-
panheiro sobre um bom tema, e nunca tomava ciência do que acontecia ao
seu redor. Aconteceu que seu pai veio vê-lo, como fazia, de vez em quando.
Mais tarde, quando um colega mencionou o fato, ele respondeu que não
se dera conta disso. Algumas meninas, suas primas, que viviam em Chieri,
vinham vê-lo, mas para ele ter que tratar com as mulheres era uma situação
dolorosa. Por isso, depois de ter dito o necessário por cortesia ou necessidade,
pedia-lhes suavemente para virem com menor frequência, e, em seguida, que
fossem embora. Quando era perguntado se as primas eram altas ou baixas de
estatura ou especialmente bonitas, respondia que deviam ser altas, a julgar
pela sombra, mas que não sabia mais nada, pois nunca tinha olhado para
elas. Que belo exemplo a imitar para qualquer pessoa que aspire ao estado
eclesiástico ou já está nele! (p. 34-35).

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Quando lhe foi dito que [sua abstinência à mesa] poderia prejudicar-lhe
a saúde, respondeu: “O importante é que minha alma não sofra danos” [...].
Um colega que se sentou à mesa com ele em várias ocasiões expressou a con-
vicção de que Comollo estava cometendo suicídio [...] (p. 36).
Sua atitude virtuosa era manifestação de um coração virtuoso. Deve-se
dizer que o coração de Comollo ardia constantemente de amor a Deus e de
amor ao próximo, como também do fervoroso desejo de sofrer por amor a
Jesus Cristo (p. 37).
[Durante as férias de verão, Comollo escreveu a João Bosco:] “Há algo
que me enche de alegria e de temor. Meu tio [pároco de Cinzano] pediu-me
para fazer o sermão em honra da Assunção de Nossa Senhora. A perspectiva
de ter a oportunidade de falar da querida Mãe enche o meu coração de ale-
gria” (p. 39-40). Um dos presentes disse: “Só um santo poderia falar como
ele”. Outro ousou: “Naquele púlpito, ele era visto como um anjo, tal a sua
modéstia e a forma direta de falar” (p. 41).
[Testemunho de uma pessoa com quem Comollo esteve em Turim:]
Estávamos todos muito impressionados pela modéstia, pelos modos corteses,
pela doçura e simplicidade de Luís. Cada uma de suas palavras e cada um de
seus gestos transmitia uma piedade genuína, especialmente quando estava em
oração; parecia São Luís (p. 43).
[Depois de vários parágrafos sobre as premonições de Comollo sobre
a sua morte, Dom Bosco fala da oração de Comollo:] Pude aprender dele o
segredo de como dedicar longo tempo à oração sem a menor distração. Disse-
-me: “Vou contar-lhe como me preparo para a oração, se me prometeres que
não irás rir quando eu descer à terra. Com meus olhos fechados, bem aper-
tados, imagino que estou num magnífico salão ricamente decorado da forma
mais artística. Um trono majestoso eleva-se ao fundo do mesmo no qual está
sentado o Todo-Poderoso, rodeado pelos coros dos bem-aventurados. Pros-
trado com o rosto por terra diante de Deus, com toda a atenção de que sou
capaz, faço minha oração” (p. 47).

A doença e a morte de Comollo


[Apesar da vida santa, Comollo teme ficar frente a frente com o divino
Juiz. Dom Bosco reflete:] Como não poderá o pecador ter medo se as almas
santas temem ficar face a face com o seu divino juiz para prestar contas da
sua vida? (p. 49).
Encontrei-me com ele no corredor pela manhã de 25 de março de 1839
[...]. Perguntei-lhe se passara bem à noite, e ele, com franqueza, respondeu

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Dom Bosco: história e carisma 1

que tudo estava acabado para ele. “Sinto que um frio glacial invade cada
nervo do meu corpo [...], mas o que realmente me assusta é a perspectiva do
próximo severo juízo de Deus [...]. Precisamos partir”. Disse-lhe para não fi-
car tão angustiado e preocupado. Ele cortou minha palavra e disse: “Não sou
pessimista e não estou ansioso, mas o fato é que devemos enfrentar o grande
e inexorável juízo de Deus, e esse pensamento desequilibra todo o meu corpo
e alma” [...]. Durante a doença, ouvi-o falar desses temores, não uma, mas
mais de quinze vezes (p. 49-51).
[Permitem que João passe a noite de sábado santo, 30 de março, ao lado
de Comollo enfermo]. Às 8 e quinze da noite a febre aumentou a ponto de
começar a tremer e delirar. Prorrompeu em lamentos dolorosos e intensos,
como se estivesse ameaçado por algo aterrador [...]. Em seguida, olhando
os que estavam ao redor da cama, gritou: “Ai!, o juízo!”. Começou, então,
a retorcer-se e lutar tão violentamente que os cinco ou seis de nós que está-
vamos junto de sua cama, mal conseguíamos dominá-lo. [Mais tarde, nessa
mesma noite, Comollo recupera a lucidez e a calma, e aparenta normalidade,
até mesmo felicidade.] Perguntei-lhe o que provocara a mudança. De início,
parecia incomodado e pouco disposto a explicar-se. Em seguida, depois de
assegurar-se de que os demais não ouviam, disse-me suavemente: “Até agora,
eu tinha medo da morte por temor dos juízos de Deus. Eu estava realmente
aterrorizado, mas agora já não sinto medo e estou em paz. Vou dizer-te, por-
que és meu bom amigo”.
[Visão de Comollo no leito de morte:] Como eu estava com medo do
juízo divino, vi-me num instante num profundo e amplo vale onde ressoava
uma furiosa tormenta que me atingia com toda força. No centro do vale, vi
um abismo enorme do qual saíam enormes labaredas ardentes. Detive-me
aterrorizado à sua beira, pois poderia cair naquele forno ardente. Voltei-me
tentando fugir, mas uma multidão de monstros aterradores aproximou-se
para empurrar-me para as chamas. Então, desesperado, comecei a gritar, pe-
dindo ajuda. Fiz o sinal da cruz, à vista do qual os monstros curvaram a
cabeça, encresparam-se e retrocederam um pouco. No entanto, ainda se man-
tinham à beirada. Em seguida, surgiu da escuridão um grupo de guerreiros
radiantes vindos em minha ajuda. Atacaram os monstros e, matando alguns,
afugentaram os demais. Livre do terrível perigo, comecei a caminhar pelo
vale e cheguei ao início de uma elevada ladeira. Seu cume só era acessível
por uma alta escada recortada em sua encosta mais pronunciada, em cujos
degraus se moviam uma multidão de serpentes venenosas, prontas para atacar
a quem tentasse subir. Não havia outro caminho para o cume, mas eu estava
ali aterrorizado e esgotado e não me atrevia a tentá-lo. Em seguida, uma bela

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Formação sacerdotal de João Bosco no seminário de Chieri

Senhora, ricamente vestida, certamente não outra que a nossa querida Mãe
Maria, tomou-me pela mão, colocou-me em pé e convidou-me a continuar
o caminho que me levou a subir a escada. Ao pisar os degraus, as serpentes
venenosas giravam suas cabeças e permitiam-nos passar. Quando chegamos
ao cume, introduziu-me num magnífico jardim, onde vi as coisas mais belas
que se possam imaginar. Isso produzira o efeito de aquietar o meu coração,
dando-me tal tranquilidade de espírito que, longe de ter medo da morte, eu a
estou esperando, ansioso de unir-me ao meu Senhor (p. 54-56).
[Exortações a João Bosco feitas por Comollo à sua morte:] “Mantenha-
mos o pacto que fizemos, ou seja, rezemos pela salvação do outro (Oremus ad
invicem ut salvemur). Quero que o nosso pacto se estenda até a morte não só
de um de nós, mas dos dois [...]. Permita-me, também, que te advirta. Tu não
tens a certeza de uma vida longa, mas, sem dúvida, pode ser que aconteça,
entretanto mais tarde ou logo terás que enfrentar a morte, e com a morte, o
juízo. Por isso, vela para que toda a tua vida seja uma preparação para esse
importante momento” (p. 60-61).
“Se no futuro o Senhor te chamar para seres diretor de almas, insiste
no pensamento da morte do juízo, no respeito devido às igrejas [...]. Cultiva
uma devoção especial a Maria Santíssima; enquanto lutamos neste vale de lá-
grimas, não podemos encontrar ajuda mais poderosa. Cultiva e inculca tam-
bém a recepção frequente dos sacramentos da Confissão e Comunhão. São os
meios e as armas com que se superam todos os ataques do inimigo [...]. En-
fim, tem cuidado com o tipo de pessoas às quais te unes, associas ou das quais
te tornas amigo. Não falo apenas de mulheres ou outras pessoas do mundo,
que são um perigo evidente para nós, mas também de seminaristas. Desses,
alguns são maus e devem ser totalmente afastados, outros não são nem maus
nem bons, e tu deves atender às solicitações que forem necessárias, mas sem
familiaridade. Por último, alguns são realmente bons, e terás que buscar a sua
companhia para o teu progresso espiritual. Como, porém, os bons são pou-
cos, deves estar atento e proceder com grande cautela” (p. 61-64).
Esses sentimentos, expressos num momento em que alguém fala do que
sai do coração, dão-nos o seu autêntico retrato espiritual. O pensamento dos
novíssimos, a recepção frequente dos Sacramentos, a terna devoção à Mãe de
Deus, evitar as más companhias, buscar a companhia dos que nos podem dar
alento à piedade e ao estudo foram as diretrizes que tomou para sua vida e
conduta (p. 65).
[À noite de 1º de abril de 1839, Comollo recebeu a Unção e o santo
Viático. Depois, ofereceu uma oração a Maria, que termina com as palavras:]
“Minha querida e misericordiosa Mãe, vem em meu auxílio já que estou a

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Dom Bosco: história e carisma 1

ponto de comparecer diante do divino juiz. Apresenta minha alma ao teu


divino Filho. Dessa forma, eu, confiante, apresentarei minha alma por tuas
mãos diante da suprema majestade de Deus, cuja misericórdia espero alcan-
çar” (p. 68-69).
[Comollo faleceu em 2 de abril de 1839, às duas da madrugada. En-
quanto se recitava o “proficiscere”, Comollo jazia] imóvel numa atitude de
serenidade e felicidade radiantes, que irrompeu num doce sorriso, como se de
repente tivesse sido surpreendido por uma visão maravilhosa e encantadora
(p. 70-71).
As virtudes de Comollo podem não ter sido extraordinárias, mas, sem
dúvida, foram singulares e excelentes, a ponto de poder ser proposto como
modelo para qualquer pessoa, tanto religiosa como leiga. E é certo que, com
a imitação de Comollo, um jovem pode converter-se em virtuoso, e um semi-
narista, em exemplar, verdadeiro e digno ministro da Igreja (p. 81-82).

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Capítulo XII

ÚLTIMO ANO NO SEMINÁRIO E PRIMEIRO


DE MINISTÉRIO SACERDOTAL (1840-1841)

Em um breve capítulo das Memórias, Dom Bosco fala da sua ordenação


sacerdotal e das ordens que a precederam no último ano de seminário:

No ano da morte de Comollo (1839), recebi a tonsura e as quatro ordens


menores, no 3º ano de teologia. Depois desse curso, veio-me a ideia de tentar
o que naquele tempo mui raramente se permitia: adiantar um curso nas férias
[...]. [O arcebispo Fransoni] concedeu-me o favor que pedia [...]. Estudando,
pude em dois meses terminar os tratados prescritos, e fui admitido ao subdia-
conato nas ordenações das quatro têmporas de outono [...]. Nos dez dias de
exercícios espirituais realizados na casa da Missão, de Turim [...]. Voltando ao
seminário, passei para o 5º ano [de teologia] [...]. No sábado Sitientes de 1841
recebi o diaconato e nas têmporas de verão fui ordenado padre [...]. O dia da
minha ordenação era vigília da Santíssima Trindade.1

1. Último ano de João Bosco no seminário


As datas em que João Bosco recebeu as diversas ordens2 foram estas:

1
MO, 110-113. As ordenações, por antigo costume, eram conferidas num dos tempos peni-
tenciais litúrgicos, chamados têmporas. Eram celebradas, também em outros dias litúrgicos, como o
sábado Sitientes (sábado, depois do 4º domingo da Quaresma) ou o domingo Laetare. Os doze dias de
têmporas eram distribuídos em quatro tríades (quarta-feira, sexta-feira e sábado), uma em cada estação
do ano. As têmporas de inverno eram observadas após o 3º domingo do Advento; as da primavera,
após o 1º domingo da Quaresma; as de verão, após o domingo de Pentecostes; e as de outono, após a
festa da Exaltação da Cruz (14 de setembro). Os nomes Sitientes e Laetare derivam da palavra em latim
que inicia o canto de entrada da liturgia do dia; esses termos provêm, respectivamente, de Isaías 55,1:
“Todos aqueles que têm sede [sitientes] venham beber”, e de Isaías 66,10: “Alegrai-vos [laetare] com
Jerusalém e fazei festa com ela, todos os que a amais”.
2
Ver A. Lenti, The most wonderful day, 19-54.

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Dom Bosco: história e carisma 1

1. Tonsura e as quatro ordens menores (hostiário, leitor, exorcista e acó-


lito), no domingo Laetare, 29 de março de 1840. (Terá sido em 4 de
abril, sábado Sitientes?)
2. Subdiaconato, sábado das têmporas de outono, 19 de setembro
de 1840.
3. Diaconato, sábado Sitientes, 27 de março de 1841.
4. Sacerdócio, sábado das têmporas de verão, 5 de junho de 1841.
João Bosco recebeu todas as ordens em Turim das mãos do arcebispo
dom Luís Fransoni. Por motivos políticos o prelado não celebrava as ordena-
ções na catedral, mas na capela arquiepiscopal, ou seja, a igreja da Imaculada
Conceição do palácio do arcebispo.3
As ordenações foram precedidas pelo retiro espiritual de dez dias. Os
candidatos dos seminários da arquidiocese fizeram-no em Turim, na Casa da
Missão, como Dom Bosco recorda em seu Testamento espiritual.4 Era uma
casa de retiros dirigida pelos vicentinos, ou padres da Missão, congregação
fundada por São Vicente de Paulo.5
O arcebispo Columbano Chiaveroti tinha-lhes confiado, sobretudo, a
preparação dos candidatos ao sacerdócio. Com essa finalidade, entregara-lhes
em 1830 a antiga igreja e o Convento da Visitação. Sob a direção do superior,
padre Marco Antônio Durando, que gozou durante muitos anos de grande
influência na Igreja de Turim, os locais foram aumentados e foi estabelecido
um importante programa de retiros.6

A tonsura e as ordens menores


Dom Bosco diz que recebeu a tonsura e as ordens menores “no ano da
morte de Comollo (1839),7 no terceiro ano de teologia”. Comollo faleceu em
2 de abril de 1839, durante o segundo ano de teologia de Dom Bosco (1838-
1839). Os documentos de arquivo demonstram, porém, que ele recebeu as
primeiras ordens durante o terceiro ano de teologia (1839-1840); as certidões

3
Construída pelos vicentinos depois de se estabelecerem em Turim em 1655. Com a supressão dos
jesuítas pelo papa Clemente XIV (1773), estes foram substituídos pelos vicentinos na igreja dos Santos
Mártires. Em 1777, sua casa original passou a ser a residência oficial do arcebispo, e a igreja da Imaculada
Conceição tornou-se capela particular do arcebispo. Cf. F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 126-127.
4
F. Motto, Testamento spirituale, 20.
5
Cf. F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 123-124.
6
A comunidade da Visitação (ordem monacal feminina fundada por São Francisco de Sales) foi
estabelecida em Turim em 1638 por Santa Joana de Chantal. A bela igreja da Visitação fora construída
uns trinta anos mais tarde. O convento foi suprimido nos tempos de Napoleão em 1801; quando a co-
munidade regressou, estabeleceu-se em outro local (F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 123, 126).
7
Certidão de morte citada em S. Caselle, Giovanni Bosco, 199.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

oficiais da tonsura e das ordens menores trazem a assinatura do arcebispo


Fransoni, o que não deixa lugar a dúvidas:

Pela presente, declaro e certifico que [o clérigo João Melquior Bosco] foi con-
siderado digno de ser promovido e receber a ordenação das quatro ordens
menores de hostiário, leitor, exorcista e acólito [...]. Foi promovido e ordena-
do por Nós no domingo Laetare, 29 de março de 1840, em Turim, em nossa
capela arquiepiscopal, numa Missa rezada [especificamente] celebrada para
conferir as ordens sagradas.8

Previamente à admissão às ordens, os superiores do seminário celebraram um


escrutínio, no qual os candidatos foram examinados e avaliados. Nessa ocasião,
João Bosco recebeu qualificações elevadas, mas não as mais altas.9

O quarto ano de Teologia durante as férias de verão de 1840


Pouco depois, João teve “a ideia de tentar o que naquele tempo mui
raramente se permitia”, ou seja, fazer o quarto ano de teologia por conta
própria durante as férias de verão de 1840. Dirigiu-se ao arcebispo com o
pedido, dando como razão a sua “avançada” idade. Tinha 25 anos! Depois
das consultas pertinentes, o arcebispo concedeu o favor, com a condição de
que João fosse examinado sobre todas as matérias antes de iniciar o período
normal das aulas. Segundo Lemoyne, os dois tratados teológicos necessários
para o quarto ano de teologia versavam sobre a Eucaristia e a Penitência. Para

8
Certidão em ASC 112: Documenti personali, ecclesiastici, FDB 73 D12. Outra certidão faz a mes-
ma declaração em relação à tonsura [cf. ibid., D11]. Contudo, um documento do seminário, citado em
S. Caselle, Don Bosco a Chieri, 203, estabelece que a imposição da tonsura e as quatro ordens menores
foram realizadas no sábado Sitientes que, em 1840, caiu em 4 de abril; este sábado seria a opção litúrgica
mais provável para o conferimento das ordens. Por outro lado, os certificados do arcebispo não podem ser
contraditos. Lemoyne assinala que estas ordenações aconteceram no domingo Laetare, 25 de março de 1840
e foram celebrados na Catedral de Turim (MB I, 492). O domingo Laetare, ou seja, o quarto domingo da
Quaresma caiu em 29 de março 1840, como já indicado. É compreensível que Lemoyne assuma que as or-
denações foram celebradas na catedral. Entretanto, por motivos políticos, as ordenações eram celebradas na
igreja da Imaculada Conceição, anexa à residência do arcebispo. Caselle, apesar do documento que apresenta,
segue Lemoyne na data, mas não no lugar. F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, fazem o mesmo na p. 77, mas
a mudam para 29 de março na p. 126. Esta é também a data que aparece em MO Ceria, 112, nota à linha 3.
9
Cf. o documento citado acima em S. Caselle, Don Bosco a Chieri, 203. Traz o título: “Avaliação
dos reverendos seminaristas, candidatos às ordenações no sábado Sitientes, 1840”. O documento recolhe
as notas obtidas pelos candidatos nos vários aspectos. Mostram que João Bosco obteve fere optime (A mi-
nus) pela sua capacidade, optime (A) pela aplicação, fere optime pela piedade e fere optime no exame. Vários
seminaristas receberam notas mais altas. O exame para a admissão às ordens não deve ser confundido
com aquele que os seminaristas faziam sobre as matérias acadêmicas. Neles, João Bosco aparentemente
sempre tirava as qualificações mais elevadas e um prêmio [cf. MO Silva, 105; MO 106-107 e MB I, 514].

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Dom Bosco: história e carisma 1

a Eucaristia, serviu-se provavelmente do livro de Francisco Pedro Gazzanica;


para a Penitência, do livro de Antônio Alasia.10
Recorde-se que João Bosco passara havia pouco por uma grave e pro-
longada enfermidade, relacionada com a morte de Luís Comollo (1839); é
possível que já estivesse recuperado nas férias de verão de 1840, o suficiente
para se dedicar ao estudo intensivo. O fato é que, depois de dois meses de
árduo estudo, João foi aprovado nos exames do padre Cinzano, pároco de
Castelnuovo, sua cidade natal, que fora delegado para esse fim.

Subdiaconato e diaconato
Ter conseguido superar a prova durante o verão de 1840, aplainou o
caminho para que João recebesse o subdiaconato.11
Antes da admissão ao subdiaconato, era preciso dispor de um patrimô-
nio. Séculos atrás, sínodos e instruções papais legislaram sobre o patrimônio
projetado para suprir um benefício ou complementá-lo. Devia ser formado
por bens imóveis e tinha limites máximos e mínimos quanto ao rendimento
anual. Esse requisito representou um problema grave para João, pois ele e seu
irmão dispunham, em conjunto, de bens consideravelmente menores do que
o limite mínimo. O antigo sócio de José na granja Sussambrino, João Febbra-
ro, veio em sua ajuda mediante a cessão de alguns de seus bens; parece que An-
tônio não contribuiu. O dote eclesiástico de João foi formalizado por escritura
pública em 23 de março de 1840.12 Dom Bosco não menciona nas Memórias
a questão do dote, mas Lemoyne expressamente apresenta-a como resolvida.
Ao aproximar-se de setembro, João recebeu a comunicação dos superiores do
seminário a fim de preparar-se para o recebimento da ordem maior do subdiaco-
nato. Ele mesmo narra esse importantíssimo e decisivo acontecimento de sua vida:
Como a parte dos bens herdados de meu pai não bastasse para constituir o
patrimônio eclesiástico requerido, meu irmão José concedeu-me o pouco que
possuía. Pelas quatro têmporas de outono, fui ordenado subdiácono.13

Em 1840, esse sábado caiu em 19 de setembro. Os retiros espirituais


prescritos para as ordenações eram exercícios importantes, pois davam ao

10
A. Giraudo, Clero, 173-174, nota 137. Em teologia moral, Alasia era probabilista.
11
MO, 110. A reforma litúrgica do Vaticano II suprimiu o subdiaconato. As ordens maiores são
diaconato, presbiterado e episcopado. Antes do Vaticano II, o subdiaconato (não o diaconato) era a
ordem maior em que o candidato assumia os grandes compromissos da vida sacerdotal.
12
As firmas que aparecem no documento são estas: “João Bosco; sinal da cruz de José Bosco, analfa-
beto; João Agostinho Febraro” [ASC A020-26: Costituzione di Patrimonio; FDB 74 Cl1-D7]. Detalhes em P.
Stella, Economia, 19-21.36-38. José tinha abandonado sua parceria no sítio e retornado aos Becchi em 1839.
13
MB I, 492.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

candidato a oportunidade de examinar com seriedade o passo que estava para


dar e as responsabilidades que se impunham com a sua decisão. Entretanto,
o retiro de preparação ao subdiaconato destacava-se pela sua importância. De
fato, com a recepção dessa ordem, o candidato assumia o compromisso defi-
nitivo com a vida sacerdotal pela adoção dos votos de celibato e obediência,
e assumia também a obrigação do Ofício Divino. Dom Bosco descreve nas
Memórias seus sentimentos nessa ocasião:
Agora que conheço as virtudes que se exigem para um passo tão importante,
convenço-me de que não me achava bastante preparado; não havendo, po-
rém, quem cuidasse diretamente da minha vocação, aconselhei-me com padre
Cafasso;14 disse-me ele que fosse para a frente, confiando na sua palavra. Nos dez
dias de exercícios espirituais realizados na casa da Missão, de Turim, fiz a confis-
são geral, para que o confessor pudesse ter uma ideia clara da minha consciência
e dar-me oportunos conselhos. Desejava completar os estudos, mas tremia ao
pensamento de comprometer-me por toda a vida; por isso não quis tomar uma
resolução definitiva sem antes obter o pleno consentimento do confessor.15

Durante o quinto ano do curso de teologia, João Bosco recebeu o dia-


conato no sábado Sitientes, 27 de março de 1841, tendo obtido novamente
qualificações elevadas, mas não as mais altas no escrutínio e no exame. O
examinador era o cônego Lourenço Gastaldi.16

Preparação para a ordenação sacerdotal


O diácono Bosco deve ter passado contando os dias para a ordenação sa-
cerdotal, que se daria no sábado das têmporas de verão, que em 1841 caiu em
5 de junho. Dado que ia ocorrer a pouco mais de dois meses da ordenação de
diácono, precisou pedir ao arcebispo a dispensa canônica dos intervalos neces-
sários entre as ordens, o que se concedia com facilidade. Antes, porém, houve
uma avaliação e um exame final dos candidatos, que eram 16; deixaram o se-
minário e foram a Turim para o retiro espiritual, de 26 de maio a 4 de junho.17

14
Esta declaração parece implicar que a relação entre padre Cafasso e Dom Bosco ainda não era signi-
ficativa, embora padre Cafasso tenha ajudado Dom Bosco de variadas maneiras. Em contraste, ver nota 64.
15
MO, 111.
16
Cf. os Registros do seminário, citados em S. Caselle, Don Bosco a Chieri, 207. O documento
intitulado “Para a ordenação no sábado Sitientes, 1841”, mostra que João Bosco recebeu optime (A) em
capacidade; fere optime (A minus) em aplicação; optime em piedade; fere optime no exame. Para compa-
rar, o “outro Bosco” (Tiago Bosco, de Rivalta) recebeu optime, optime, optime e egregie (distinção) nas
mesmas categorias. Segundo Lemoyne (MB I, 514), João teria sido qualificado no exame com o não tão
satisfatório fere optime por não ter respondido satisfatoriamente a uma pergunta do doutor Gastaldi.
17
Cf. M. Molineris, Don Bosco inedito, 249-250. Os registros do seminário citados em S. Casel-
le, Don Bosco a Chieri, 207, intitulados “Para as ordenações do sábado depois de Pentecostes, 1841”,

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Dom Bosco: história e carisma 1

Numa comovedora passagem das Memórias, Dom Bosco revela seus sen-
timentos à saída do seminário:

De verdadeira consternação para mim foi o dia em que tive de deixar de-
finitivamente o seminário. Os superiores me amavam, e me haviam dado
contínuos sinais de benevolência. Estava muito afeiçoado aos meus compa-
nheiros. Pode-se dizer que eu vivia para eles, e eles viviam para mim. Quem
precisava fazer a barba ou a coroa, recorria a Bosco. Quem tinha necessidade
de um barrete, de uma costura, remendar a roupa, procurava Bosco. Por isso
tornou-se muito dolorosa para mim a separação de um lugar onde vivi seis
anos, onde recebi educação, ciência, espírito eclesiástico e todos os sinais de
bondade e afeto que se possam desejar.18

A avaliação, delicada e otimista, deixa entrever o coração ardente e o


profundo sentimento de gratidão de Dom Bosco. Entretanto, em outros lu-
gares, falará também de decepções com seus superiores, dos quais não podia
aproximar-se; com outros seminaristas, que pareciam carecer de compromisso
cristão e espírito sacerdotal; com o programa de estudos do seminário, que
via como complicado e também intimidante; consigo mesmo, que precisou
enfrentar a doença e uma crise espiritual.19 Tudo isso, porém, era deixado para
trás. Agora, o objetivo pelo qual se esforçara tão ardente e dolorosamente fora
alcançado. Tanto nas Memórias como nos parágrafos iniciais do seu Testamento
Espiritual, Dom Bosco registra o evento com lacônica brevidade.

Iniciei meu retiro espiritual [de preparação à ordenação sacerdotal] na [retira-


da] Casa da Missão, na festa de São Felipe Neri, 26 de maio de 1841. Nosso
arcebispo, Luís Fransoni, conferiu a ordenação sacerdotal na residência do
arcebispo em 5 de junho do mesmo ano. Celebrei minha primeira missa em
[na igreja de] São Francisco de Assis, no dia 6 de junho, domingo da Trinda-
de, com a assistência de meu distinto benfeitor e diretor, padre José Cafasso,
de Castelnuovo d’Asti.20

Com essas palavras simples, escritas, por sua vez, no que começou como
memórias, mas que se converteu rapidamente em Testamento espiritual, Dom

mostram que “João Melquior Bosco, de Castelnuovo” foi qualificado como optime (A) em piedade; fere
optime (A minus) em capacidade e optime em aplicação. O documento não registra a qualificação do
exame, contudo Lemoyne escreve: “Em 15 de maio [João] fez o exame final antes da ordenação e tirou
um plus quam optime (A plus)” (MB I, 514).
18
MO, 111.
19
Cf. MO, 80-81. 63-64, 69-71; cf. também P. Stella, Vita, 40-74.
20
F. Motto, Testamento spirituale, 20; cf. MO, 111.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Bosco apresenta sua ordenação sacerdotal como marco importante e ponto


de partida de sua viagem espiritual sacerdotal.

O retiro espiritual, as lembranças e as nove resoluções


Dom Bosco menciona no já citado Testamento espiritual o retiro de pre-
paração, a ordenação e a primeira Missa, e acrescenta a “transcrição” de algu-
mas lembranças anotadas à conclusão do retiro e as nove resoluções adotadas
na ocasião. Em seus trabalhos anteriores (Memórias do Oratório), deixara de
comentar a preparação do retiro espiritual e as lembranças e resoluções. De-
pois de breve menção da ordenação sacerdotal, deleita-se com certa amplifi-
cação de suas primeiras Missas.21
As lembranças e as resoluções são suficientemente importantes para me-
recer um comentário:
As lembranças da celebração dos Exercícios Espirituais que fiz em minha
preparação para a primeira Missa eram do seguinte teor: um padre não vai
sozinho para o céu ou para o inferno. Se trabalhar bem, irá para o céu com as
almas salvas por ele com seu bom exemplo; se trabalhar mal e der escândalo,
irá para a perdição com as almas condenadas pelo seu escândalo.22

As lembranças
As conclusões ou lembranças, dadas pelo diretor dos Exercícios, tratam
da responsabilidade do padre e da sua prestação de contas. Insistem na ideia
de que o padre responde pela salvação ou perdição das almas. O tema é um
lugar comum na ascética e espiritualidade sacerdotal contemporânea. Por
exemplo, em sua obra Dignidade e deveres do padre, Santo Afonso expressa
esse tema de várias maneiras. Em certo momento diz:
As almas que vivem como animais selvagens e monstros dirigem-se ao infer-
no, mas depois de se converterem e serem amadas por Deus são muitas joias
da coroa que adornam o sacerdote que retornou ao caminho da virtude. Um
sacerdote que se condena não vai sozinho para o inferno, e o sacerdote que se
salva, certamente não se salva sozinho.23

Mestre e mentor de Dom Bosco, padre José Cafasso expressava concei-


tos similares em suas conferências sobre o sacerdócio:

21
MO, 112.
22
F. Motto, Testamento spirituale, 21.
23
Cf. La dignidad y santidad sacerdotal. Sevilla: Editorial Apostolado Mariano, 2000.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Creio não ser possível imaginar um pecado mortal ou infração maior do que
o escândalo dado por um padre [...]. Ver-se em seu leito de morte, ter que
se apresentar diante do tribunal de Deus e prestar contas das almas que lhe
foram recomendadas, das almas das quais é responsável e dos pecados que
cometeram por sua causa! [...] Que castigo de Deus o espera!24

Dom Bosco, que falará com frequência sobre o sacerdócio, insistirá


em conceitos idênticos. Por exemplo, as palavras sobre a matéria expressada
numa conferência feita em 1868 e recolhidas nas Memórias Biográficas:
O padre é a mais elevada dignidade à qual uma pessoa possa ser alçada. A ele e
não aos anjos foi concedido o poder de converter o pão e o vinho na substância
do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; e a ele, não aos anjos, foi
dado o poder de perdoar os pecados. Ele é o ministro do Deus três vezes santo
[...]. Se isso é verdade, então, qual deve ser a grande santidade do padre ou do
aspirante ao sacerdócio? Essa pessoa deve ser um anjo, ou seja, uma pessoa to-
talmente espiritual [...]. O padre deve possuir todas as virtudes, sobretudo [...]
muita caridade, muita humildade e muita castidade [...], uma fé viva, a mais
ardente caridade [...]. A força do bom exemplo! Recordemos que o padre jamais
irá sozinho para o inferno ou para o paraíso; ele vai sempre acompanhado.25

Lemoyne, citando mais uma vez um documento de arquivo, transcreve


os títulos dos sermões pronunciados durante os Exercícios de agosto de 1867.
Entre eles encontram-se estes: “O padre não vai sozinho ao inferno ou ao céu,
mas sempre acompanhado pelas pessoas que podem ter-se perdido ou salvas
por causa dele. Dignidade e deveres do sacerdócio!”.
A ideia de que o padre deveria prestar contas era doutrina comum nas ex-
posições sobre a santidade sacerdotal. A exigência quase impossível para quem
abraça a vocação sacerdotal, os perigos que encalçam a vida e a existência sacer-
dotal e o julgamento severo que os padres sofreriam no tribunal de Deus eram
temas habituais na literatura ascética, como também no ensino do seminário.
Comentando o tema relacionado com a formação do seminário, Stella escreve:
O clérigo que refletia seriamente sobre essas coisas acabava por persuadir-se
de que o sacerdócio era algo grande e terrível, que poderia ser argumento
para o maior prêmio ou a maior condenação; e que, por isso, a condição de
eclesiástico não só não resolvia, mas agravava a questão da salvação pessoal.26

24
San José Cafasso, The priest, the man of God: his dignity and duties. Tradução de Patrick
O’Connell (Rockford, IL: TAN Books and Publishers, 1971), 166.
25
MB IX, 343-344.
26
P. Stella, Vita, 66.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

As nove resoluções
João Bosco, nesses decisivos Exercícios Espirituais, tomou também nove reso-
luções, recolhidas no Testamento espiritual, mas que não tinha registrado nas Memó-
rias do Oratório. Ali, conservam-se sete resoluções tomadas na imposição do hábito
clerical em 1835. Torna-se significativo um olhar sintético sobre as duas séries:27 28

As sete resoluções de 183527 Os nove propósitos de 184128


1. No futuro não participarei de espetácu- 1. Não farei passeios, a não ser por necessi-
los públicos em feiras e mercados, nem as- dade grave: visitas a enfermos etc.
sistirei a bailes ou teatros, e na medida do 2. Ocuparei rigorosamente bem o tempo.
possível não participarei dos almoços que se
3. Sofrer, trabalhar, humilhar-me em tudo
costumam dar em tais ocasiões.
e sempre, quando se trate de salvar almas.
2. Não farei mais exibições de jogo de da-
4. A caridade e a doçura de São Francisco de
dos, de prestidigitador, saltimbanco, ma-
Sales serão a minha norma.
labarismo, corda; não tocarei violino, não
irei mais à caça. Essas coisas todas consi- 5. Estarei sempre contente com a comida
dero-as contrárias à gravidade e ao espírito que me for apresentada, desde que não seja
eclesiástico. nociva à saúde.
3. Procurarei amar e praticar o retiro, a tem- 6. Beberei vinho batizado e só como remé-
perança no comer e no beber; para repouso dio, ou seja, quando a saúde o reclamar.
tomarei apenas as horas estritamente neces- 7. O trabalho é uma arma poderosa con-
sárias à saúde. tra os inimigos da alma; por isso, não darei
4. Como no passado servi o mundo com lei- ao corpo mais do que cinco horas de sono
turas profanas, assim no futuro procurarei a cada noite. Durante o dia, especialmen-
servir a Deus com leituras religiosas. te depois das refeições, não farei nenhum
descanso. Farei alguma exceção em caso de
5. Combaterei com todas as forças qualquer
doença.
leitura, pensamento, conversa, palavras e
obras contrárias à virtude da castidade. Pelo 8. Destinarei em cada dia algum tempo à
contrário, farei tudo o que contribuir para a meditação e à leitura espiritual. Durante o
conservação dessa virtude, por insignifican- dia farei uma breve visita, ou ao menos uma
te que seja. oração, ao Santíssimo Sacramento. Ao cele-
brar a Santa Missa farei ao menos um quar-
6. Além das práticas ordinárias de piedade
to de hora de preparação e outro quarto de
não deixarei de fazer todos os dias um pou-
hora de ação de graças.
co de meditação e de leitura espiritual.
9. Não conversarei com mulheres, excetua-
7. Contarei todos os dias algum exemplo ou
do o caso de ouvi-las em confissão ou outra
máxima que aproveite à alma do próximo,
necessidade espiritual.
Assim farei com os companheiros, com os
amigos com os parentes, e quando não puder
fazê-lo com outros, fá-lo-ei com minha mãe.

27
MO, 90-91.
28
F. Motto, Testamento spirituale, 21-23.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Depois de transcrever as nove resoluções de 1841, Lemoyne comenta: “Ele


escreveu estas lembranças em 1841”.29 Ao falar desses propósitos, Ferreira da
Silva escreve: “As resoluções que o seminarista João Bosco tomou ao final dos
Exercícios Espirituais também evocam lugares comuns, fomentados pelos pre-
gadores vicentinos, e refletem a prática da comunidade”.30 Todavia, parece que
nestas resoluções se vá mais além dos temas e das práticas habituais, como evi-
denciado pela comparação entre as resoluções de 1835 e os propósitos de 1841.
Alguns elementos das resoluções aparecem novamente nos propósitos:
temperança nos alimentos, no comer e beber; oração, meditação e leitura es-
piritual, castidade de modo negativo e positivo. Outros, que não se repetem,
são dados por superados, porque a situação e a forma de ver a vida foram
superadas: a recusa aos passatempos mundanos, evitar atividades que possam
entender-se como opostas ao espírito sacerdotal, a prática do recolhimento,
as leituras e contar histórias edificantes.
As resoluções de 1841 apresentam, também, algumas diferenças signi-
ficativas que não são determinadas unicamente pela mudança das circuns-
tâncias (por exemplo, a preparação e ação de graças depois da Missa), e nem
se trata apenas de um novo modo de ver a união de trabalho e temperança.
A maior diferença está no novo espírito, ou melhor, na nova espiritualidade,
que impregna as resoluções sacerdotais. Aceitando que os dois conjuntos de
relações reflitam situações históricas reais na vida de Dom Bosco, pode-se
ficar surpreso depois com o desenvolvimento que se deu. Somos obrigados a
concluir que, apesar das lutas e dificuldades, ele tinha transcendido algumas
estruturas e os aspectos negativos da fuga mundi expressos no primeiro grupo.
E, embora a ênfase esteja novamente na disciplina do trabalho e da temperan-
ça, a vida de oração e a salvaguarda da castidade, torna-se evidente o estímulo
de uma nova espiritualidade orientada para o apostolado.
29
Por “memórias”, neste contexto, Dom Bosco quer indicar as resoluções simplesmente “recordadas”
ou “transcritas” (talvez também as recordações). A palavra não se refere ao Testamento espiritual, ou à parte
inicial do mesmo, que traz o título de Memórias. Uma comprovação interna demonstra acima de qualquer
dúvida, que não faz parte da obra, embora se refira aos inícios do seu sacerdócio e tenha sido escrita antes de
1884 [F. Motto, Testamento espiritual, 10-11, especialmente a nota 14; F. Desramaut, Les memorie, 136].
Este fato, por si só, não exclui a possibilidade de que, para suas resoluções, Dom Bosco possa ter utilizado
as notas datadas de 1841, mas atualmente perdidas. Se fosse esse o caso, o texto das resoluções teria sido
“transcrito”, não só “recordado”. Lemoyne interpreta neste ponto: “Ele escreveu tudo isso em 1841” (MB
I, 518), ou é provável que não soubesse da existência de um manuscrito datado de 1841. Seria contrário ao
seu costume desconhecer a existência de documento tão importante. Cabe assinalar também que o projeto
original do texto no Testamento espiritual de Dom Bosco foi emendado em vários pontos [ASC A219:
Quaderni Taccuini-6, 3-6 em FDB 748 D7-10; cf. aparato crítico em F. Motto, Testamento spirituale, 21-
22] que tendem a demonstrar que se tratava de “lembrança” e não “transcrição”. Seriam as preocupações
e compromissos mais tardios que o influenciaram na remodelação do texto? É uma pergunta oportuna.
30
MO Silva, 110.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Concretamente, pelas resoluções 1 e 2, Dom Bosco renuncia também


à distração legítima, para dedicar o maior tempo possível ao ministério. Seu
compromisso total com o apostolado expressa-se na resolução 3: “Sofrer, tra-
balhar, humilhar-me em tudo e sempre, quando se trate de salvar almas”. E em
relação ao “estilo de apostolado” toma São Francisco de Sales como modelo.
Não se deve esquecer que Dom Bosco se propôs São Francisco de Sales
como modelo e guia para o apostolado nos inícios de sua vida sacerdotal.31 O
fato reflete a realidade histórica; não é fruto de uma reflexão tardia. Esse santo
era um modelo aceito pelo clero e, portanto, também pelos seminaristas. Os
seminaristas de Chieri tinham conhecido, sem dúvida, sua biografia e foram
instruídos em seus ensinamentos.32
Havia na igreja de São Felipe, anexa ao seminário, uma capela dedicada
a São Francisco de Sales, com um quadro do santo. Certa Sociedade de São
Francisco de Sales, ainda ativa no século XIX, reunia-se ali para suas celebra-
ções.33 Máximo Marocchi, comentando São Francisco de Sales como fonte da
espiritualidade (bosquiana) salesiana, escreve:
O mosteiro da Visitação, fundado em Turim em 1638 por Joana de Chantal, a
grande circulação das obras de São Francisco de Sales publicadas em numero-
sas edições ao longo do século XVIII, a vida de São Francisco cujo autor era o
piemontês padre Pedro Jacinto Gallizia (1662-1737), publicada pela primeira
vez em Veneza e reimpressa em numerosas ocasiões, foram os veículos pelos
quais se propagou o conhecimento e o espírito de São Francisco pela região.34

Entretanto, é provável que a influência imediata, decisiva, proviesse


dos retiros espirituais de preparação às ordenações. Eles foram não só rea-
lizados na antiga casa e igreja da Visitação, com suas imagens e lembranças
de São Francisco de Sales, mas também os Exercícios nos quais os mestres
vicentinos ofereciam uma espiritualidade derivada do Oratório francês de
Pedro de Bérulle e de São Francisco de Sales.35
31
Cf. Arnaldo Pedrini, San Francesco di Sales e Don Bosco. Roma: Scuola Tipografica Salesiana, 1983.
32
Um episódio conhecido por Lemonyne (cf. MB I, 387) através do testemunho de um colega
de seminário e velho amigo de Dom Bosco, padre João Francisco Giacomelli (1820-1901), poderia
corroborá-lo. Havia dois Bosco no seminário (Santiago e João); Santiago define-se a si mesmo “Bosco di
nespera” (bosque de nêspera). João descreve-se como “Bosco d’Sales, em piemontês” (bosque de salgueiros).
E pode muito bem ter sido o exemplo e a doutrina de São Francisco de Sales que possibilitaram a Dom Bosco
superar a crise espiritual pela qual passou no seminário, como conta padre Francesia.
33
F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 91.
34
M. Marocchi, En las raíces, 159-177.
35
F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 126 e 123-124. Pierre de Bérulle (1575-1629), contempo-
râneo de São Francisco de Sales, distinguiu-se como cardeal, diplomata, teólogo, contemplativo, místico e
escritor espiritual. Fundou o Oratório francês e foi figura intransigente da escola francesa de espiritualidade.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os propósitos sacerdotais de Dom Bosco devem ser entendidos, por-


tanto, como resposta adequada não só às exigências da sua vida sacerdotal,
mas também como indicadores de uma orientação apostólica nova e de uma
espiritualidade mais aberta.

Ordenação sacerdotal e “Primeira Missa”


Como Dom Bosco diz, e o registro do seminário confirma, ele foi or-
denado padre pelo arcebispo Luís Fransoni no sábado após o Domingo de
Pentecostes, vigília da Trindade, 5 de junho de 1841. A liturgia da ordenação
foi celebrada na igreja da Imaculada Conceição na residência do arcebispo.36
Ele celebrou sua primeira missa lentamente, “sem problemas”, na igreja
de São Francisco de Assis, anexa ao Colégio Eclesiástico, no domingo da
Trindade, 6 de junho de 1841.37
O documento de dom Fransoni, pelo qual lhe concedia licença para
celebrar (o chamado “celebret”) está cheio de conselhos paternais:
Luís, marquês Fransoni [...], ao nosso amado em Cristo, o mui reverendo
João Melquior Bosco [...], recém-ordenado padre, saudações no Senhor. Foste
aprovado no exame dos ritos sagrados e demonstraste conhecimento sufi-
ciente. Portanto, eu te concedo a faculdade de celebrar a primeira Missa e
as missas subsequentes, sob as seguintes condições: deves ter um sacerdote
experiente que te ajude na celebração da primeira Missa e nas sete seguintes.
Não deves ter os assim chamados padrinhos, cavalheiro ou dama (patrinum
aut matrinam) para a [primeira] Missa e cuidar que não se celebrem banque-
tes e se evite tudo que tenha ressaibos de mundanismo. Deves ter, também, a
licença do Rev.mo Reitor da igreja onde irás celebrar a tua primeira missa, e é
desejo nosso que lhe informes sobre tudo isso.
Deves refletir, de vez em quando, sobre o que exige de ti a natureza deste
excelso sacrifício e a majestade do nosso bom e grande Deus, à qual tens aces-
so como padre. Em outras palavras, deves cultivar as disposições interiores
necessárias, e sempre manifestar a seriedade da expressão adequada ao teu es-
tado. Observar com atenção todas as prescrições relativas aos ritos da sagrada
liturgia, com a convicção de que nenhum deles pode ser realizado, mesmo nas
mínimas coisas, com descuido ou pressa. Portanto, a cada ano, deves ter tem-
po (ao menos vinte minutos) para examinar os ritos litúrgicos com o cuidado
exigido pelo seu caráter divino [...].38

36
A certidão expedida pelo arcebispo Fransoni encontra-se em ASC A0020-26: Documenti per-
sonali, ecclesiastici, FDB 73 E1.
37
A Missa de ordenação, celebração em que se recebia o sacramento da Ordem, não era consi-
derada como primeira Missa.
38
ASC 112: Documenti personali, ecclesiastici, FDB 73 E2.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Seguramente, alinhado com esta forma de atuação, foi o motivo pelo


qual Dom Bosco optou por dizer a sua primeira Missa “sem problemas” em
Turim, em vez de em sua cidade natal, e em São Francisco de Assis tendo o
padre Cafasso como assistente.
Comparando-se a narração de Dom Bosco com aquela oferecida nas
Memórias Biográficas, esta se apresenta mais extensa e detalhada, embora Le-
moyne atribua sua versão totalmente a Dom Bosco. 39 40 41

Narração de Dom Bosco sobre sua Narração de Lemoyne sobre a


Primeira Missa em MO39 Primeira Missa de Dom Bosco em MB40
Celebrei minha primeira Missa na “Celebrei a minha primeira Missa na Igreja de São
igreja de São Francisco de Assis, Francisco de Assis [anexa ao Colégio Eclesiástico],
onde o padre Cafasso era diretor de do qual era diretor de estudos padre José Cafasso, meu
estudos. Esperavam-me ansiosamen- insigne benfeitor e diretor. Era ansiosamente esperado
te em minha terra natal: havia anos em minha terra natal, onde há vários anos não era
não se celebrava aí uma Missa nova. mais celebrada uma Missa nova. Preferi, todavia, ce-
Preferi, todavia, celebrá-la em Tu- lebrá-la em Turim, sem rumor, no altar do Santo Anjo
rim, sem alarde. da Guarda, que está nessa igreja do lado do Evangelho.
A Igreja universal celebrava nesse dia a festa da Santís-
Posso dizer que foi esse o dia mais sima Trindade, a arquidiocese de Turim, a do milagre
belo da minha vida. No Memento do Santíssimo Sacramento, a igreja de São Francisco de
daquela Missa inolvidável procurei Assis, a festa de Nossa Senhora das Graças, ali honra-
recordar devotamente todos os meus da desde tempo antiquíssimo, e posso chamá-lo de o
professores, benfeitores espirituais dia mais belo da minha vida. No Memento daquela
e temporais, e de modo especial o memoranda missa procurei recordar devotamente
pranteado padre Calosso, que lem- todos os meus professores, benfeitores espirituais e
brei sempre como grande e insigne temporais, e de modo especial padre Calosso, que
benfeitor.41 sempre recordei como grande e insigne benfeitor.
É uma piedosa crença que o Senhor concede infalivel-
mente a graça que o novo padre lhe pede ao celebrar
a primeira Missa: eu pedi ardentemente a eficácia da
palavra para poder fazer o bem às almas. Parece-me
que o Senhor ouviu minha humilde prece”.

39
MO 111-112.
40
MB I, 519-520.
41
João Melquior Calosso (1760-1830), capelão de Murialdo (1829-1830), foi o primeiro grande
benfeitor de João e imagem do seu pai. Dom Bosco dá-lhe espaço, um tanto desproporcionado, em
suas Memórias [MO, 40-43, 45-46], até lermos seu emocionado tributo e lamento à morte do bom
padre [MO, 45-46]. Entende-se assim por que a lembrança do padre Calosso figura com tanta proemi-
nência na primeira Missa de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Lemoyne introduz em seu relato uma quantidade considerável de mate-


rial procedente de diversas fontes; concretamente, a adição (em cursivo) que
apresenta detalhes sobre o altar no qual celebrou a Missa e o complexo ritual
da celebração, foi obtida por ele perguntando ao padre da paróquia de São
Francisco de Assis.42 O cursivo, até o final do parágrafo, também se refere à
“eficácia da palavra”. Exceto o inciso “para poder fazer o bem às almas”, a pas-
sagem aparece em sua totalidade nos Documenti de Lemoyne, que pode tê-lo
obtido de algumas fontes escritas de que dispunha.43 A cláusula adicional que
aparece nas Memórias Biográficas pode proceder da declaração prestada em
1895 por Ascânio Sávio durante o processo de beatificação.44

As Missas de Dom Bosco, de Turim a Castelnuovo:


uma peregrinação
Tanto no Testamento espiritual quanto nas Memórias do Oratório faz-
-se apenas uma menção à ordenação sacerdotal. Nas Memórias dá-se maior
atenção às Missas do domingo da Trindade e da quinta-feira seguinte, festa
de Corpus Christi.45
Dom Bosco celebrou sua segunda Missa na igreja de Nossa Senhora da
Consolação (a Consolata de Turim) na segunda-feira 7 de junho de 1841. Em-
bora não fosse residente em Turim nesse momento, Dom Bosco está familiariza-
do com esse popular santuário mariano. Ao escolhê-lo para sua segunda missa,
marcou o início de uma peregrinação feita para “agradecer à excelsa Virgem Ma-
ria os incontáveis favores que me havia alcançado de seu divino Filho Jesus”.46
Na terça-feira, Dom Bosco foi a Chieri e celebrou sua terceira Missa na
igreja de São Domingos. Ali, ele escreve, “meu antigo professor, padre Giu-
siana [Giussiana], me aguardava com paterno afeto. Durante a Missa esteve
42
Carta de Lourenço Romano (para o padre Luís Dadesso, Reitor) a Lemoyne, em Documenti
XLIII, 9, in ASC A006ss: Cronachette-Lemoyne-Doc, FDB 1, 183 C3.
43
Cf. Documenti II, 6, em ASC A006s: Cronachette Lemoyne-Doc, FDB 969 D10.
44
Processus ordinarius Curiae Taurinensis, Ascanio Savio, Question 13, em ASC A265-273: Depo-
sizione dei Testi, FDB 2,198 D6. Padre Ascânio Sávio (1831-1902), reitor do seminário diocesano de Bra
e Turim, testemunhou em novembro de 1895. Seu testemunho esteve disponível a Lemoyne para as Me-
mórias Biográficas I (1898), mas não para os Documenti (1885). Pode-se perdoar a Lemoyne ter transcrito
a narração mais simples de Dom Bosco, mas agradecer-lhe por ter conservado a informação adicional.
45
Cf. MO, 112; F. Motto, Testamento spirituale, 20.
46
MO, 112. Construído sobre um santuário muito antigo em 1679 e dedicado a Nossa Senhora
Consolação dos Aflitos (a Consolata), chegou a ser a igreja favorita da devoção do povo, e a imagem mi-
lagrosa da Virgem ali conservada, centro da devoção popular. Nessa época eram responsáveis pelo culto
os padres Oblatos da Virgem Maria, do padre Lanteri (1834-1855). Mais tarde foi confiada aos fran-
ciscanos e, desde 1869, aos padres do Colégio Eclesiástico sob a direção do beato José Allamano (1851-
1926), fundador da Congregação dos Missionários da Consolata (MO Silva, 111, nota à linha 588).

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

sempre a chorar de comoção. Passei com ele todo aquele dia, que posso cha-
mar dia de paraíso”.47
Esta terceira Missa, como a segunda, também foi em âmbito mariano,
na capela e no altar de Nossa Senhora do Rosário dessa igreja.48 A quarta
Missa, na quarta-feira 9 de junho, foi celebrada no Duomo, de Chieri, ou
igreja de Santa Maria da Escada, na capela-santuário de Nossa Senhora das
Graças.49 Dom Bosco não menciona esta quarta Missa nem em seu Testa-
mento espiritual nem em suas Memórias, mas Lemoyne escreve, colocando na
boca de Dom Bosco: “Na quarta-feira, oficiei o Santo Sacrifício na Catedral
dessa cidade”.50
Lemoyne garante que João Bosco estudante em Chieri ia a esta capela
todas as manhãs e tardes, para rezar diante da Virgem: “Ele deu continuidade
a essa prática durante seus dias de estudante em Chieri”.51 Recorde-se que,
como Dom Bosco escreve em suas Memórias, foi aos pés da Virgem das Gra-
ças que ele resolveu a crise vocacional, depois de muito discernimento, após
a sua intenção de entrar no convento franciscano.52 A quarta Missa parece ter
sido outro cenário da peregrinação mariana de Dom Bosco.

Missa solene de Dom Bosco na paróquia natal de Castelnuovo


Enfim, na quinta-feira 10 de junho, Dom Bosco pôde celebrar uma
Missa solene em sua paróquia de Castelnuovo, com a assistência do seu pro-
tetor e amigo, o pároco padre Pedro Antônio Cinzano. Como era a festa de

47
MO, 112. O dominicano padre Jacinto Giussiana fora professor de João na escola pública;
salvou-o da sanção escolar por deixar que copiassem seus exames (MO, 60-61). João tinha outros pa-
dres amigos, como o seu confessor José Malória, o professor de “humanidades”, padre Pedro Banaudi,
mas parece ter encontrado no padre Giussiana um “pai”, como o encontrara no padre Calosso, um
interessante paralelo que recorda as “imagens paternas” dos primeiros anos.
48
MO Silva, 111, nota à linha 590; F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 81-82. Nem Dom
Bosco nem Lemoyne recolhe esse detalhe.
49
S. Caselle, Bosco a Chieri, 65-66; F. Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 105-107. Uma placa
recorda o evento.
50
Documenti II, 7 in ASC A006-7: Cronachette, Lemoyne-Doc, FDB 969 D11; MB I, 521. A
igreja de Nossa Senhora da Escada, chamada popularmente de duomo (“catedral”) devido ao seu tama-
nho e grandiosidade, foi sede episcopal na antiguidade. Sua estrutura é dos inícios do século XV, cons-
truída para substituir a igreja anterior existente no lugar de um antigo templo pagão. Entre suas vinte e
uma artísticas capelas está a capela-santuário de Nossa Senhora [Dispensadora] das Graças, erigida por
um voto dos senhores da cidade durante a peste bubônica de 1630 e reconstruída em esplêndido estilo
barroco em 1780. Nossa Senhora sob esse título é copatrona da cidade, e sua capela, com a bela estátua
esculpida em 1636, tem sido centro de devoção popular através dos tempos. Cf. S. Caselle, Don Bosco
a Chieri, 65-66; F, Giraudo e G. Biancardi, Itinerari, 105-107.
51
MB I, 381.
52
MO, 80.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Corpus Christi, também oficiou na tradicional procissão com o Santíssimo


Sacramento. Seguiu-se um banquete festivo. Dom Bosco escreve:
O pároco convidou meus parentes para o almoço, bem como o clero e as
autoridades do povoado. Todos tomaram parte na alegria, pois eu era muito
querido de meus concidadãos e todos ficavam satisfeitos com tudo o que
pudesse ser bom para mim.53

A presença de Mamãe Margarida


As fontes não mencionam que Mamãe Margarida ou outros membros
da família estivessem presentes às primeiras celebrações sacerdotais de Dom
Bosco, quer na ordenação quer nas primeiras missas em Turim, Chieri ou Cas-
telnuovo. Lemoyne tampouco fala sobre o tema nos Documenti ou nas Memó-
rias Biográficas; entretanto, na biografia de Margarida Bosco, ele assinala sua
presença na festividade da quinta-feira de Corpus Christi em Castelnuovo.54
Depois da beatificação de Dom Bosco (1929), foi colocado na igreja de
São Francisco de Assis de Turim, um baixo-relevo de bronze com uma dedi-
catória, para comemorar sua primeira Missa. Margarida Bosco está presente
entre as pessoas representadas no painel.55 Naqueles tempos, a primeira Missa
solene era o centro da atenção. A recepção do sacramento da Ordem não
contava como primeira Missa; é provável, portanto, que Margarida esperasse
em casa, preparando-se para o retorno do filho como padre para a solene ce-
lebração. Podemos imaginar a emoção, o acúmulo de recordações e o orgulho
que experimentou quando viu, enfim, seu filho no altar, em sua cidade natal,
entre todas as pessoas que conhecia e amava. Embora não seja mencionado,
podemos supor que o meio-irmão de Dom Bosco, Antônio, estivesse entre os
“parentes”, que, como diz Lemoyne, foram convidados pelo padre Cinzano.
Dom Bosco recorda esses momentos memoráveis em suas Memórias
com palavras simples e emocionadas:
À noitinha voltei para minha família. Quando, porém, cheguei perto de casa
e vi o lugar do sonho dos 9 anos, não pude conter as lágrimas e disse: “Quão
maravilhosos os desígnios da Divina Providência! Realmente Deus tirou da
terra um pobre menino para colocá-lo entre os príncipes do seu povo”.56

53
MO, 112.
54
J. B. Lemoyne, Scene morali, 101: “O pároco convidou para o almoço Margarida, os familiares
próximos, o clero e a gente importante da cidade”,
55
O baixo-relevo foi dedicado pelos ex-alunos em 6 de junho de 1930. Cf. M. Molineris, Don
Bosco inedito, 257-258.
56
MO, 112-113. A alusão é ao salmo 113,7-8. A Casa era os Becchi, e a casa era aquela que José
estava construindo no pátio da pequena Casa quando abandonou a parceria do sítio de Sussambrino
em 1839, embora a pequena Casa ainda estivesse em uso.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Podemos estar certos de que Margarida e a esposa de José, Maria, ti-


nham preparado uma bela festa e uma recepção digna da ocasião, embora
tudo passe em silêncio nas fontes. Lemoyne registra as profundas e proféticas
palavras ditas nesse dia por Margarida ao filho:

És padre: dizes a Missa; a partir de agora estás mais perto de Jesus Cristo.
Recorda-te, porém, que começar a dizer Missa quer dizer começar a sofrer.
Não o perceberás logo, mas verás aos poucos que tua mãe te disse a verdade.
Estou certa de que rezarás por mim todos os dias, enquanto eu estiver viva e
quando eu estiver morta: isso me basta. A partir de agora, pensa somente na
salvação das almas sem te preocupares em nada comigo.57

2. O primeiro período de ministério sacerdotal


em Castelnuovo (10 de junho - 2 de novembro de 1841)
Após a ordenação, era costume os padres buscarem um trabalho re-
munerado, como ajudantes numa paróquia rural ou como capelães. Era
usual que assumissem trabalhos como professores ou tutores de crianças
de famílias ricas. Alguns, quando tinham meios suficientes, preferiam
viver por conta própria. Na época da Restauração havia excesso de padres
e os bispos davam grande liberdade para a escolha de um trabalho fora
da paróquia.
Dom Bosco reservou-se um tempo antes de estudar as ofertas que
lhe apresentaram. Provisoriamente, aceitou o convite do pároco de Cas-
telnuovo, padre Cinzano, para passar alguns meses como ajudante tem-
porário na paróquia. Dom Bosco passou quase cinco meses na grande e
confortável reitoria.58
Padre Cinzano tinha no momento dois coadjutores, padres José e João
Batista Roppolo Musso. Pode ser que tivesse também disponíveis outros pa-
dres da cidade. A não ser que a necessidade fosse extrema, o convite foi feito
provavelmente por amizade e sem finalidade de lucro. Padre Cinzano, desde a
sua nomeação para Castelnuovo, em 1834, interessara-se por João e ajudara-
-o nos anos de seminário.

57
Documenti II, 7 in ASC A006-7: Cronachette, Lemoyne-Doc; FDB 969 D11; também J. B.
Lemoyne, Scene morali, 101-102, e MB I, 521.
58
A reitoria, situada perto da igreja, contava com cozinha, sala de estar, sete quartos, escritório,
biblioteca, adega, estábulo, palheiro, curral e um pequeno jardim (M. Molineris, Don Bosco inedito, 264).

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Dom Bosco: história e carisma 1

Um breve período de exercício ministerial


Dom Bosco deixou uma versão desse período:

Naquele ano (1841), como meu pároco não tinha coadjutor, desempe-
nhei esse cargo por cinco meses. Experimentava o maior prazer do mun-
do no trabalho. Pregava todos os domingos, visitava os doentes, adminis-
trava-lhes os santos sacramentos, com exceção da Penitência, porque não
havia ainda prestado o exame de Confissão. Acompanhava os enterros,
mantinha em dia os livros paroquiais, dava atestados de pobreza ou de
outro gênero.59

Os compromissos ministeriais aludidos por Dom Bosco: pregação aos


domingos, visita aos doentes, funerais, manutenção dos registros paroquiais e
certidões de pobreza não parecem ter sido excessivos,60 pois encontrou tempo
para sua atividade favorita, reunir os meninos do lugar:
Minha delícia, contudo, era ensinar catecismo aos meninos, entreter-me com
eles, falar com eles. Vinham muitas vezes de Murialdo para visitar-me; quan-
do ia em casa, estava sempre rodeado deles. Eles também começavam a fazer
novos companheiros e amigos nos seus povoados. Saindo da casa paroquial
estava sempre acompanhado de um bando de meninos e aonde quer que fosse
rodeavam-me meus amiguinhos, contentes como quê.61

Tratava-se de um ministério restrito. Por exemplo, exceto a comunhão


e a unção dos enfermos, não podia administrar sacramentos na paróquia. Os
casamentos eram reservados ao pároco; dos sacramentos da penitência e do
batismo, encarregavam-se os ajudantes. Entretanto, Lemoyne escreve:
Ele experimentava uma alegria toda particular ao batizar os recém-nascidos;
e notou-se que no livro dos Batizados daqueles meses quase todos os filhos
homens recebiam o nome de Luís, como nome principal ou secundário, de-
sejando ele, no que estivesse ao seu alcance, colocá-los desde a infância sob a
guarda do angélico Protetor da pureza”.62

Lemoyne cita os registros da paróquia, mas esses registros contam


uma história diferente. Das 40 crianças batizadas, 26 meninos e 14 me-

59
MO, 113.
60
Os párocos davam certificados de pobreza para que os carentes pudessem receber um subsídio
da cidade.
61
MO, 113.
62
MB II, 18.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

ninas, durante os cinco meses, Dom Bosco batizou apenas 3 meninos em


27 de junho e 6 em 21 de setembro. Seus nomes eram Luís Adriano, João
Passerone e José Crosetto. Dos meninos, só Adriano, de quem Dom Bosco
também foi padrinho, recebeu o nome de Luís como primeiro nome.63
Dom Bosco fala que era solicitado como pregador por ter “muita facili-
dade em expor a Palavra de Deus”.64

Dom Bosco opta pelo Colégio Eclesiástico


Enquanto Dom Bosco ajudava em Castelnuovo, parece que padre Cin-
zano fez consultas sobre seu nome para uma nomeação permanente ou algum
outro emprego remunerado. Deveria solicitar o consentimento do arcebispo,
que seria fácil de obter. Foram recebidas três ofertas: como tutor na casa de
um senhor genovês, o que comportava o excelente salário de mil francos por
ano, como capelão de Murialdo, cargo que também era muito lucrativo,65 e
como coadjutor em Castelnuovo.66
Depois de considerar essas possibilidades, Dom Bosco consultou o pa-
dre Cafasso. E assim conta:

Fui a Turim para aconselhar-me com padre Cafasso, que se tornara desde
alguns anos meu guia nas coisas espirituais e temporais. O santo padre ouviu
tudo, as ofertas de remuneração, a insistência de parentes e amigos, meu gran-
de desejo de trabalhar. Sem hesitar um instante dirigiu-me estas palavras: “O
senhor tem necessidade de estudar moral e pregação. Recuse por ora qualquer
proposta e venha ao Colégio Eclesiástico”. Segui prazerosamente o sábio con-
selho, e a 3 de novembro de 1841 entrei para o referido Colégio.67

63
M. Molineris, Don Bosco inedito, 264-166. Dos dez filhos de Luís Adriano, Pascoal foi sale-
siano; Silvestre e João emigraram para os Estados Unidos e viveram como leigos católicos e cooperado-
res salesianos ativos na paróquia salesiana dos Santos Pedro e Paulo de São Francisco.
64
Dom Bosco relata que, tendo aceitado o convite para fazer o sermão em honra de São Benigno
na cidade de Lavriano [Lauriano] bastante distante e indo a cavalo, caiu e ficou inconsciente; foi aten-
dido por João Calosso (de sobrenome Brina), que vivia num sítio próximo. Na conversa que se seguiu,
descobriu-se que esse senhor fora ajudado pelos Bosco quando seu burro, carregado com mercadorias,
afundara em um lamaçal numa fria noite de inverno (MO, 113-114; detalhes em M. Molineris, Don
Bosco inedito, 267-270).
65
Dom Bosco afirma que o povo de Murialdo estava disposto a dobrar o salário do capelão. A capela
de São Pedro em Murialdo fora dotada recentemente pelo senhor Espírito Sartoris, proprietário local que vivia
em Turim, de um benefício que garantia ao capelão um salário de 800 liras. Cf. P. Stella, Economia, 34-35.
66
A oferta do padre Cinzano, sinal da sua elevada estima, era, por si mesma, a mais atrativa das
três, pois impulsionava a “carreira” de Dom Bosco.
67
MO, 116-117. Nessa época, fins de 1841, padre Cafasso era o principal professor de teologia
moral e ajudante do padre Luís Guala no Colégio Eclesiástico.

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Apêndice

O CONTEXTO TEOLÓGICO E ECLESIAL

Dom Bosco, nas Memórias do Oratório, depois de comentar sua decisão


de inscrever-se no Colégio Eclesiástico de Turim, seguindo o conselho do pa-
dre Cafasso, descreve brevemente o pessoal que dirigia essa instituição e suas
posições. Elogia o programa de sua formação sacerdotal como preparação ao
ministério, e escreve:

Duas celebridades estavam naquele tempo à frente de tão útil instituto: o teólo-
go Luís Guala e o padre José Cafasso. O teólogo Guala era o fundador da obra.
Homem desinteressado, rico de ciência, prudência e coragem, fizera-se tudo
para todos no tempo do governo de Napoleão I. Para que os jovens levitas pu-
dessem, ao terminar os estudos, aprender a vida prática do sagrado ministério,
fundou aquele maravilhoso viveiro, que tanto bem fez à Igreja, sobretudo extir-
pando algumas raízes de jansenismo que ainda persistiam entre nós. Os proba-
bilistas seguiam a doutrina de Santo Afonso, que agora foi proclamado doutor
da Santa Igreja. Sua autoridade foi por assim dizer referendada pelo Papa.68

Embora Dom Bosco mencione o jansenismo, o probabiliorismo e o


probabilismo, a história recorda outros “ismos” que se opunham ao Colégio
Eclesiástico, pois este se mantinha na tradição jesuítica. Apresentam-se aqui
algumas dessas doutrinas eclesiológicas para melhor contextualizar a origem e o
desenvolvimento do Colégio Eclesiástico e a formação sacerdotal favorecida por ele.

Jansenismo
O jansenismo era um movimento no interior da Igreja Católica surgido
nos séculos XVII e XVIII, principalmente nos Países Baixos e na França.69

MO, 118-119.
68

Ver G. Martina, La Iglesia, de Lutero a nuestros días II: época del absolutismo. Madri: Cristiani-
69

dad, 1974, 179-194.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Derivava da tentativa de conciliar a necessidade de colaborar responsavel-


mente na própria salvação, reconhecendo sempre que esta é um dom conce-
dido livremente, além de qualquer mérito do homem. A vida cristã sempre
se defrontou com esse problema e, durante a Reforma, criara-se uma grande
controvérsia. O jansenismo tentava assumir uma posição intermediária que
foi, todavia, recusada pelo Magistério da Igreja por ser uma posição parcial.

Doutrina
O principal iniciador do jansenismo foi Cornélio Jansen (o jovem, 1585-
1638). Suas opiniões propagaram-se principalmente através da sua obra Au-
gustinus. Abordava os temas da reta noção da graça divina e sua relação com
a vontade humana livre, que se convertera numa nova amarga questão entre
os católicos sob a influência da Reforma e a polêmica intracatólica entre o
molinismo e o baianismo.70
Em oposição deliberada à tradição escolástica e à ideia humanista da
própria configuração da religião e da destinação humana de cada pessoa, ba-
seava-se exclusivamente na patrística e, sobretudo, na teologia de Santo Agos-
tinho. Em bases agostinianas, o jansenismo desenvolveu seu próprio sistema
teológico. Nele se descreve uma tríplice etapa da história da salvação: a etapa
da natureza inocente antes do pecado, a etapa do pecado original e a etapa da
redenção realizada por Cristo.
Na primeira etapa, Adão fora totalmente livre, podia decidir livremente
sobre a própria salvação. Para isso, precisava da graça a fim de alcançar o
70
Cornelius Otto Jansens (1585-1638), teólogo holandês, foi reitor do Colégio Holandês de Lo-
vaina, professor universitário (1630) e bispo de Ypres (1636). Seu livro, publicado postumamente, Au-
gustinus seu doctrina S. Augustini de humanae naturae sanitate, aegritudine, medicina, adversus pelagianos
et marsilienses (Augustinus, ou a Doutrina de Santo Agostinho sobre a Salvação, a enfermidade e a cura
da natureza humana contra os pelagianos e marsilianos, 1640) foi condenado pelo Papa Urbano VIII
(1642). Nela, Jansens sustentava que o ensinamento de Santo Agostinho sobre a graça, a predestinação
e o livre-arbítrio opunha-se ao ensinamento das escolas jesuíticas. Sua opinião foi defendida pelos “jan-
senistas” de Port Royal (Houranne, Arnauld, Pascal etc.). Luís de Molina (1535-1600), teólogo jesuíta
espanhol, ensinou em várias universidades e escreveu tratados sobre a graça divina, o livre arbítrio e o
pecado original, por exemplo, Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis (Conciliação do livre-arbítrio
com a graça divina, 1588-1589). Seu controvertido pensamento, chamado de molinismo, afirma que
a graça divina é aberta a todos, mas sua eficácia depende da vontade de quem a aceita. Baius (Michael
Baius, Michel de Bay, 1513-1589), teólogo belga, escreveu numerosos tratados abrangendo as novas
doutrinas sobre o pecado original e a graça, que antecipavam o jansenismo. Ele foi condenado pelos Pa-
pas Pio V (1567) e Gregório XIII (1580). Pelágio (354-418), monge e teólogo britânico, protagonizou
uma disputa teológica em Roma, na qual refutava as doutrinas de Santo Agostinho sobre a predestina-
ção e a corrupção total pelo pecado original; escreveu vários tratados sobre o tema. Afirmava o livre-
-arbítrio e enfatizava o primado do esforço humano para a salvação. Com seus seguidores, pregou na
África, onde se reuniu com Agostinho, e em Jerusalém, onde foi acusado e absolvido. Foi excomungado
por Inocêncio I (417). O pelagianismo sobreviveu na forma mitigada do semipelagianismo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

fim sobrenatural, mas a graça estava à sua disposição. Na segunda etapa, o


pecado original impôs um estado de “concupiscência triunfante”, pelo qual
a humanidade é pecadora em todos os seus atos e está totalmente à mercê da
concupiscência que a inclina para o mal. Na terceira etapa, a da redenção, a
liberdade da primeira etapa não é restaurada, mas, em ordem à salvação, a
vontade humana é determinada pela graça, totalmente irresistível. Neste sen-
tido, o ser humano vê-se privado da liberdade interior e só se salva pela graça
de Deus, obtida pela redenção de Cristo, que permanece arbitrariamente re-
servada aos que foram predestinados pela livre vontade de Deus.

O jansenismo na França
A ideia de salvação por predestinação tornou-se importante na França,
onde se ligou inseparavelmente ao mosteiro de Port Royal. Ali se converteu
em doutrina e estilo de vida que afetavam todos os aspectos da vida cristã.
Port Royal era uma abadia cisterciense de monjas, localizada no Valle de
Chevreuse, a uns seis quilômetros de Versalhes. Fundada em 1204, a abadia ti-
nha prosperado através dos anos, mas em fins do século XVI, deteriorara-se no
seu espírito. Apenas 12 monjas viviam ali na mediocridade, sem qualquer regra
bem definida ou clausura. Segundo a prática do tempo, em 5 de julho de 1602,
elegeram como abadessa uma menina de 10 anos de idade. Seu nome era Jac-
queline Marie Angélique Arnauld, conhecida mais tarde como Madre Angélica
(1591-1661). Durante quatro anos, a abadia foi dirigida pela família Arnauld,
que lhe devolveu em parte a prosperidade material. Em 1608, a abadessa, aos 17
anos de idade, experimentou uma conversão e resolveu reformar o seu mosteiro e
restabelecer a regra cisterciense em seu pleno vigor. Com a ajuda dos confessores
capuchinhos e jesuítas, Port Royal converteu-se em centro de vida espiritual.
Madre Angélica recebeu, em 1618, a missão de reformar a abadia de
Maubuisson, nas proximidades de Paris. Ali conheceu São Francisco de Sales,
que foi por algum tempo seu diretor. O santo visitou Port Royal em julho de
1619. Devido à insalubridade do clima do vale, em 1626 encerrou-se a antiga
Port Royal e a comunidade instalou-se em Paris. Assim, a nova Port Royal
ficou sob a jurisdição do arcebispo de Paris. A ortodoxia das monjas tornou-
-se suspeita por causa do livro Chapelet secret du Saint-Sacrement (A capela se-
creta do Santíssimo Sacramento) escrito por madre Inês (1593-1671), irmã de
madre Angélica. Para defender o livro foi contratado um teólogo que então
desfrutava de boa reputação entre os devotos, Jean du Vergier de Hauranne,
abade de Saint-Cyran (1581-1643). As monjas aceitaram com entusiasmo
seu ensinamento e propagaram suas ideias rigoristas sobre o sacramento da
penitência e da eucaristia, ocasionando debates públicos.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Em agosto de 1637, um sobrinho de madre Angélica, o jovem e brilhan-


te advogado Antônio Lemaître, converteu-se e decidiu viver em isolamento e
penitência sem ser padre ou religioso. Lemaître foi o primeiro dos Solitaries
(eremitas), conhecidos como os Cavaleiros de Port Royal. Aos poucos, ou-
tros se foram unindo a ele e construindo eremitérios para os que desejassem
retirar-se do “mundo” e dedicar-se totalmente a Deus.
Em 1638, Saint-Cyran (Jean du Vergier de Hauranne) criticou aberta-
mente a política do cardeal Richelieu em relação ao catolicismo na França.
Richelieu mandou prendê-lo em Vincennes, mas do cárcere continuou sua
direção espiritual através de cartas. O Augustinus de Jansen fora publicado
em 1640; Saint-Cyran, embora tivesse alguma reserva sobre a obra, disse aos
Solitaires que a defendia. Foi posto em liberdade em 6 de fevereiro de 1643,
pouco depois da morte de Richelieu. Sua saúde ficara comprometida durante
a permanência na prisão, vindo a falecer em 11 de outubro de 1643.
Pouco antes, em agosto de 1643, Antônio Arnauld (1612-1694), irmão
mais novo de madre Angélica e um dos teólogos do grupo, publicou o trata-
do De la fréquente Communion (Sobre a Comunhão frequente), uma vigorosa
defesa das ideias rigoristas de Saint-Cyran. Nos inícios de 1646, os Solitaires
organizaram e dirigiram Les Petites Écoles (as pequenas escolas) que, apesar
da oposição das autoridades, continuaram até 1660 e educaram cerca de 100
meninos, dos quais alguns se tornaram famosos, como o dramaturgo João
Racine (1639-1699).
O jansenismo exerceu grande influência na sociedade francesa; entre
suas conquistas mais notáveis foi Blaise Pascal (1623-1662), que entrou em
contato com Port Royal através de sua irmã Jaqueline, que entrara no con-
vento em 1642. Ele mesmo se uniu aos Solitaires em 1655.

Jansenistas e Magistério. Controvérsia sobre os ensinamentos


do Augustinus de Jansen
O conflito com o Magistério da Igreja começou com a publicação da
Bula Cum ocasione (1653), de Inocêncio X, que condenava cinco proposições
atribuídas a Jansen, relacionadas com a graça e a liberdade.71 Essas proposições

As cinco proposições eram estas: (1) Alguns mandamentos de Deus são impossíveis para os
71

justos que desejam e se esforçam por obedecê-los, levando em consideração as forças que possuem; a
graça que tornaria possível o seu cumprimento também é insuficiente. (2) No estado de natureza de-
caída, ninguém resiste à graça interior. (3) Para merecer ou desmerecer no estado de natureza decaída,
não é preciso ser livre da necessidade interior, mas basta ser livre de obrigações exteriores. (4) Os semi-
pelagianos admitiam a necessidade de uma graça interior preveniente a cada ação, mas eram heréticos
na medida que sustentavam que essa graça era tal que o homem poderia obedecê-la ou opor-se a ela. (5)
Sustentar que Jesus Cristo morreu e derramou seu sangue por todos, sem exceção, é semipelagianismo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

não eram citações literais do Augustinus, mas foram formuladas em confor-


midade com seus princípios. Os jansenistas reconheceram a quaestio iuris, ou
seja, o direito de Roma julgar proposições doutrinais, mas negavam a quaestio
facti, que as proposições em questão estivessem na obra de Jansen. Negaram-
-se a reconhecer a autoridade da Igreja para decidir sobre esses fatos, por não
serem revelados.
A crise agravou-se quando Arnauld, em 1655, escreveu Lettre à une per-
sonne de condition (Carta a uma distinta pessoa). As monjas temeram a disper-
são, mas as Cartas provinciais, de Blaise Pascal e a milagrosa cura instantânea,
em 24 de março de 1656, de uma sobrinha de Pascal, que era interna no
mosteiro, dissipou a tensão e restaurou a opinião a favor de Port Royal.
Não obstante, em 1661, estourou novamente uma perseguição régia,
quando Luís XIV tentou obrigar as monjas e os cavaleiros a assinarem uma
declaração na qual eram condenadas as “cinco proposições” do Augustinus
de Jansen, mas decidiram assinar somente se fossem introduzidas algumas
modificações. Por último, em agosto de 1664, o arcebispo de Paris interveio
e transferiu 12 monjas para outros conventos. Um ano depois, as monjas que
se negaram a assinar foram internadas em Port Royal des Champs sob a su-
pervisão da polícia, e foram-lhes privados os sacramentos. As 12 monjas que
assinaram ficaram em Port Royal de Paris, que se tornou abadia independen-
te. Os cavaleiros passaram à clandestinidade por receio do cárcere.
Houve uma paz temporária depois de 1667. Clemente IX aceitou um
compromisso em 1669 e o mosteiro de Port Royal des Champs recuperou
sua liberdade. Este foi um período excepcionalmente brilhante para Port
Royal. Enquanto homens e mulheres da mais alta nobreza deram-lhe pro-
teção, os eremitas distinguiram-se por algumas excelentes publicações. Po-
demos mencionar Pensées (Pensamentos), de Pascal, e Considérations (Con-
siderações), de Saint-Cyran (1670), como também a tradução da Bíblia, de
Lemaître Sacy (1672).
Em 1679, por ordem de Luís XIV, que estava irritado pela resistência
de Port Royal ao seu absolutismo, o novo arcebispo de Paris renovou a per-
seguição. Foi proibido ao mosteiro receber noviças, ameaçando-o com sua
progressiva extinção. Arnauld e outros jansenistas foram para outros países.72
72
O fim de Port Royal (não do jansenismo): em 1706, as monjas de Port Royal negaram-
-se a assinar a bula Vienam Domini (A vinha do Senhor), contra o jansenismo. Luís XIV interveio
pessoalmente e, em 29 de outubro de 1709, as 22 monjas foram deportadas pela polícia para outros
mosteiros. Dois anos depois, Luís XIV destruiu os edifícios e fez exumar os cadáveres do cemitério e
enterrá-los em vala comum, nas proximidades de Saint-Lambert. O lugar converteu-se em centro de
peregrinações jansenistas. A condenação de 101 proposições de Pascásio Quesnel pelo papa Clemente

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Jansenistas e jesuítas: controvérsia em teologia moral e sacramental


O jansenismo, no âmbito da teologia moral, sacramental e ascética, opu-
nha-se firmemente ao espírito mais aberto do probabilismo da “casuística” je-
suíta, apresentando exigências mais severas, sem dar lugar a um compromisso.
O jansenismo exigia plena certeza sobre a legalidade de uma ação, antes
que pudesse ser realizada (o chamado tuciorismo). Pedia a contrição perfeita
baseada no amor de Deus, não só a atrição, baseada no temor do castigo do
inferno, como condição prévia para o sacramento da penitência e a absolvi-
ção. Promovia uma suprema reverência pelo sacramento do altar, que só se
devia receber em raras ocasiões, contrariamente à frequência da comunhão
recomendada pelos jesuítas. Considerava-se o sacerdócio como missão de
grande ousadia. Eram essas as teses da controvertida doutrina de Antônio
Arnauld, especialmente em seu tratado Sobre a comunhão frequente. Era essa
também a postura das Cartas provinciais de Blaise Pascal, cujas engenhosas e
fortes polêmicas desacreditaram muito os jesuítas.
Esse ideal de estrita observância religiosa (rigorismo) foi posto em prá-
tica em grupos de paróquias, mosteiros e oratórios. O jansenismo opôs-se ao
centralismo das ordens religiosas, em sua maioria de caráter internacional, e
solicitava que, na medida do possível, fossem isentas de qualquer jurisdição,
exceto a do Papa.

Piedade e espiritualidade jansenista


Na vida espiritual, no culto e na prática sacramental, o jansenismo exer-
ceu grande influência na Igreja, inclusive no Piemonte. Desenvolveu um tipo
de piedade de rigor inflexível, dominada pela tensão provocada nas almas pela
ideia da condenação. A natureza humana estaria corrompida, condicionada,
de um lado, pela concupiscência e, de outro, pela misteriosa atração da graça
eficaz. A absolvição sacramental, eles pensavam, não perdoaria os pecados, mas
simplesmente declarava que eles foram perdoados; só era válida se aquele que se
confessava amasse a Deus de modo perfeito. Para a adequada recepção da Euca-
ristia era preciso, como requisito prévio, a disposição perfeita do comungante.
Os jansenistas eram excessivamente rigoristas; sustentavam que o huma-
no devia ser mantido controlado pelo rigor penitencial. À visão pessimista da

XI com a bula Unigenitus (O Unigênito, 1713), promulgada no Direito francês, terminou com o
jansenismo como movimento. O jansenismo organizado só sobreviveu nos Países Baixos como “Igreja
de Utrech”, então unida aos Velhos Católicos. Depois da Revolução Francesa, um advogado chamado
Luís Silvy comprou Port Royal em ruínas. Atualmente é propriedade particular de uma sociedade que
criou um pequeno museu no lugar. Há outro museu na casa em que viveram Les Messieurs.

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Dom Bosco: história e carisma 1

natureza humana uniam um espírito crítico, insistindo em reformas relativas


à Igreja, aos sacramentos, à liturgia, à catequese etc. Consideravam Jesus um
severo e inescrutável Redentor; viam a Igreja como uma sociedade cheia de
intriga e paixão, que precisava com urgência retornar à sua missão. Estavam
convencidos de que constituíam uma elite. Iam contra o espírito humanista
do tempo, que enaltecia a pessoa humana em detrimento de Deus. Des-
confiavam do raciocínio teológico na exposição do dogma. Consideravam-se
depositários especiais da verdade, iluminados por Deus direta e carismatica-
mente. Não duvidavam em opor-se ao Magistério da Igreja em seus julga-
mentos pessoais. Recorriam a um relativismo histórico e dialético quanto à
formulação da verdade revelada e da moral e das normas disciplinares.
A visão jansenista da carne e do espírito, do sensível e do espiritual,
destruiu o equilíbrio moral. Opunha-se ao exercício da liberdade permitida
pela casuística, ao exercício da autoridade doutrinal pelo Magistério da Igreja
e à realidade do humano na Igreja e no mundo. Afirmava, ao mesmo tempo,
valores reais, embora às vezes de forma polêmica, como o sentido histórico da
revelação, a sensibilidade viva pela liturgia, o profundo sentido de mistério, a
simplicidade do culto, a recepção litúrgica devota dos sacramentos, a maior
participação popular nas funções religiosas, o amor pela cultura religiosa e o
estilo austero de vida cristã. Advogavam, pelo estudo direto das Escrituras e
da tradição patrística e conciliar, a revisão crítica dos textos da fé e da pieda-
de, a reforma da disciplina e da moral e a melhoria na teoria e na prática da
formação religiosa; aspirações e movimentos que antecipavam as reformas do
Concílio Vaticano II.
Em resumo, foi uma luta que buscava a autocompreensão cristã e um
esforço de reforma no interior da Igreja, no espírito dos princípios da primiti-
va cristandade. Lamentavelmente, a partir de uma interpretação restritiva de
Santo Agostinho, adquiriu caráter sectário, que intensificou as controvérsias
com os jesuítas e a acerba reação oficial do Magistério.

SISTEMAS MORAIS73
A expressão “sistema moral” foi cunhada por Santo Afonso Maria de
Ligório e passou para o uso comum da moral católica. Não significa método
moral, concepção da moral ou fundamentação da Teologia moral. Indica a
forma de fazer um juízo vinculante da consciência moral diante de leis ob-
jetivamente incertas. Consiste na proposta de determinados princípios refle-
xos para chegar a fazer esse juízo de consciência e assim sair da dúvida. Os

73
Resumo do professor padre Eugênio Albuquerque Frutos, SDB (nota dos editores).

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

moralistas distinguem três grandes sistemas: probabilismo, probabiliorismo e


equiprobabilismo; a eles costuma-se acrescentar os sistemas exagerados e não
aceitáveis do laxismo e do tuciorismo.74

Probabilismo
Este sistema moral indica que, em caso de dúvida, pode-se seguir uma
opinião provável, embora exista outra que seja inclusive mais provável.75
O primeiro a formular esta maneira de apresentar e resolver as dúvidas
de consciência foi o dominicano Bartolomeu de Medina (1528-1580). Co-
mentando a Suma de Santo Tomás (I-II, q. 19), a. 6, afirma: “Se existe uma
opinião provável (afirmada por autores sábios e confirmada por ótimos argu-
mentos), é lícito segui-la, embora a opinião oposta seja mais provável”. Surgia
assim o probabilismo, que durante mais de três séculos ocupou a atenção dos
moralistas, alcançando um lugar muito relevante no ensino das Instituciones
morales sobre a consciência. Dominou a teologia moral especialmente duran-
te a primeira metade do século XVII e foi seguido sempre pela maior parte
dos moralistas jesuítas. Sofreu sérios ataques dos jansenistas, do clero galicano
e de muitos moralistas dominicanos.
O probabilismo exagerado, que deu lugar ao laxismo, foi condenado
pelo Papa Inocêncio XI.

Laxismo
O laxismo no interior dos sistemas morais é efetivamente a exacerbação
do probabilismo.76 Ele afirma que se pode seguir uma opinião tenuemente
provável se ela favorecer a liberdade de consciência, embora se tenha como
lícito o ilícito e por pecado venial o que é pecado mortal. Sua essência con-
siste em contentar-se com a mera probabilidade, ou seja, uma probabilidade
extremamente frágil, desde que seja uma probabilidade. Em sentido amplo,
fala-se de laxismo como de uma atitude geral de vida e de pensamento, carac-
terizada por justificar, seguir e teorizar com a consciência frouxa, que tende a
diminuir a imputabilidade e se apoia em mínimos de probabilidade.
74
Cf. M. Vidal, Nueva moral fundamental: el hogar teológico de la Ética. Bilbao: Desclée de Brou-
wer, 2000, 460-478; D. Capone, “Sistemas morales”. In: Diccionario enciclopédico de teología moral.
3ª ed. Madri: San Pablo, 1978, 1015-1022; L. Vereecke, “Historia de la teología moral”. In: Nuevo
diccionario de teología moral. Madri: San Pablo, 1992, 816-846.
75
Cf. Thomas Deman, “Probabilisme”. In: Dictionnaire de theologie catholique XIII, 417-619;
L. Vereecke, “Le probabilisme”, Le Suplement 177 (1991), 23-31; M. Sievernich e Ph. Schmitz,
“Probabilismo e coscienza morale”, Rassegna di Teologia 39 (1998), 367-386.
76
M. Petrocchi, Il problema del lassismo nel secolo XVII. Roma, 1953.

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Dom Bosco: história e carisma 1

O laxismo teve seu apogeu no século XVII. Costuma-se citar entre os


moralistas laxistas Antônio Diana (1585-1663), Tomás Tamburini (1591-
1675) e João Caramuel (1606-1682). Alexandre VII e Inocêncio XI conde-
naram muitas proposições laxistas (Denz 2021-2065 e 2101-2167).

Probabiliorismo
O probabiliorismo defende que só se pode seguir a opinião favorável à
liberdade de consciência se ela for mais provável do que a sua contrária.
Este sistema supõe, no fundo, uma concepção mais rígida da moral cris-
tã, concepção que será levada ao extremo pelo tuciorismo. Os pressupostos e
as razões que apoiam este sistema são: a lei está acima da liberdade de consci-
ência; é preciso seguir o caminho estreito para garantir a salvação.
O probabiliorismo dominou a moral francesa na segunda metade do
século XVII e a moral italiana na primeira metade do século XVIII. Foi ma-
joritário entre os moralistas dominicanos, sobretudo a partir da postura anti-
probabilista assumida pelo Capítulo Geral da Ordem (Roma, 1756).77

Equiprobabilismo
O equiprobabilismo é o sistema moral que afirma que, em caso de dú-
vida, pode-se seguir a opinião favorável à liberdade de consciência, desde que
seja igualmente provável à contrária.
Na prática, este sistema funciona como o chamado “princípio de proprie-
dade”, que defende: em caso de dúvida da cessação da lei, deve-se trabalhar de
acordo com a lei, porque a presunção da propriedade está a favor da lei; em con-
trapartida, nos casos de dúvida sobre a promulgação da lei, é lícito agir seguindo
a liberdade de consciência, porque a presunção da propriedade está a seu favor.
Moralmente, o equiprobabilismo foi considerado um probabilismo mi-
tigado. Ele é desenvolvido por Santo Afonso Maria de Ligório e representa de
algum modo a superação no confronto entre probabilismo e probabiliorismo.78

Tuciorismo
O tuciorismo defende que, no caso de dúvida de consciência, deve-se
seguir sempre a opinião mais segura.

77
Cf. Thomas Deman, “La réaction dominicaine contre le probabilisme”. In: Dictionnaire de
theologie catholique XIII, 502-509.
78
Cf. M. Vidal, Frente al rigorismo moral, benignidad pastoral: Alfonso de Liguori (1696-1787).
Madri, 1986; AA.VV., “La moral alfonsiana: raíces y retos”, Moralia 10 (1988).

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Para seus defensores, é preciso agir com certeza absoluta e, portanto,


há de prevalecer sempre a lei no caso de dúvida, a não ser que exista certeza
absoluta da não existência dessa lei.
Essa postura foi defendida pelos jansenistas e rigoristas extremos. Foi
condenada por Alexandre VIII.

CONCEPÇÕES ECLESIOLÓGICAS
Conciliarismo
O conciliarismo é uma teoria sobre a constituição da Igreja, articulada
em alguns Concílios gerais do século XV; ensina que o Concílio ecumênico
é superior ao Papa.
Embora se pense com frequência em Marsílio de Pádua e Guilherme de
Ockahm como seus fundadores,79 o conciliarismo fundamenta suas raízes nos
debates sobre a natureza da Igreja, sustentados pelos canonistas dos séculos
XII e XIII, que tentavam estabelecer os limites jurídicos do poder papal.
Um dos argumentos fundamentava-se no “princípio corporativo de re-
presentação”. O Papa pode cair em erro, mas não a Igreja romana, que mui-
tos identificavam com a Igreja universal. Dado que um Concílio geral é uma
“representação” de toda a Igreja, o concílio, incluindo o Papa, é maior do que
o Papa; um organismo é maior do que as partes que o compõem. O princí-
pio é válido em questões de fé e quando o bem geral da Igreja está em jogo.
Embora o argumento se refira apenas a possíveis eventualidades, serve de base
para a regência compartilhada do Colégio dos cardeais e o Papa. A noção de
representação aplica-se, também, a toda a Igreja: o Papa é delegado da Igreja,
que, pela designação dos cardeais, lhe confere suas faculdades e direitos. Caso
fossem mal-usados, poderiam ser revogados e, dessa forma, o Colégio dos
cardeais ou o Concílio geral representaria a Igreja inteira.
Coube a Marsílio de Pádua, no tratado de sua autoria, Defensor pacis,
dar os toques finais à teoria do conciliarismo. Seus princípios básicos eram a
negação da instituição divina do primado papal, até então jamais contradita,
a defesa do conceito corporativo da Igreja e da teoria da representação do

Marsilius de Padua (Marsilio da Padova, Marsilius patavinus), professor de filosofia e reitor


79

da Universidade de Paris, escreveu Defensor pacis (Defensor da paz), tratado jurídico contra o poder
temporal do Papa. Fugiu de Paris e, excomungado pelo Papa João XXII, buscou proteção em Luís IV,
da Baviera. Guilherme de Ockham (ou de Occam, c. 1285-1349) foi um filósofo escolástico da ordem
franciscana e aluno de Duns Scotus. Defendeu a pobreza evangélica contra o Papa João XXII em seu
Opus octoginta dierum (Oitenta dias de trabalho), e foi excomungado. Ockham lutou contra o poder
temporal do Papa e defendeu a independência do estado civil em seu Dialogus.

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Dom Bosco: história e carisma 1

papado. “As decisões relativas às questões de fé em disputa pertencem exclusi-


vamente ao Concílio geral dos fiéis ou daqueles que detêm a autoridade sobre
todos os fiéis.”80 O ensinamento de Marsílio foi imediatamente condenando,
mas Guilherme de Ockham o manteve no Dialogus.
O grande Cisma do Ocidente (1378-1417) deu ocasião para convocar
um Concílio geral que resolvesse a perigosa situação dos rivais que deman-
davam o papado e, assim, salvar a unidade da Igreja Ocidental. Depois de
uma tentativa infrutífera no Concílio de Pisa, isso se deu no Concílio de
Constança (1414-1417).
À morte de Gregório XI, que restabelecera em Roma a sede do papado,
os 16 cardeais eleitores elegeram o cardeal Bartolomeu Prignani, arcebispo
de Bari, como Urbano VI (1378-1389), que se desentendeu com os carde-
ais. Estes o repudiaram e elegeram o cardeal Roberto de Genebra, com o
nome de Clemente VII (1378-1394), que tomou posse do palácio papal de
Avinhão. A dupla sucessão papal, Roma e Avinhão, dividiu a Igreja do Oci-
dente; as diversas nações europeias prometeram sua lealdade a um ou outro
candidato. Em 1414, reuniu-se o Concílio de Constança, no qual foram
depostos os papas rivais sendo eleito Martinho V (1417-1431),81 aceitável
por todas as facções.
Os atos e os decretos do Concílio de Constança para decidir a sucessão
papal constituem a declaração final da teoria conciliar. O primeiro decreto,
Haec Sancta, subordinava os então três papas rivais à autoridade do Concílio.
O segundo decreto, Frequens, criou concílios gerais periódicos como contra-
peso ao absolutismo papal e garantia da reforma da Igreja. A superioridade
do Concílio sobre o Papa foi reafirmada no Concílio de Basileia - Florença
(1431-1443). Papas posteriores atuaram contra o decreto proibindo os ape-
los ao Concílio contra o Papa. Entretanto, o conciliarismo, frequentemente
em forma mais mitigada, manteve-se nas universidades e entre os escritores
eclesiásticos.
No contexto do grande Cisma, entende-se que o Papa e o Concílio pu-
dessem colocar-se um contra o outro. Diversamente, a Constituição Lumen
Gentium, do Vaticano II, sobre a Igreja, ensina que o Papa como membro e
cabeça do Colégio dos Bispos forma sempre uma unidade orgânica com ele,
sobretudo quando o Colégio se reúne em Concílio Ecumênico.

Defensor pacis II, 18.8.


80

O cisma, pelos seus escândalos e pela confusão criada, afetou profundamente a vida da Igreja
81

do Ocidente e preparou diretamente um século mais tarde a ruptura da unidade na cristandade oci-
dental pela Reforma.

328

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Galicanismo
O termo “galicanismo” foi criado pelos historiadores do século XIX;
refere-se a uma doutrina e sua prática, que reivindicam status preferencial à
monarquia e à Igreja da França.
São dois os aspectos que se devem levar em consideração. Um, teológico:
o galicanismo é uma eclesiologia composta de conciliarismo, episcopalismo e
nacionalismo. O outro, político: o galicanismo é a manifestação histórica do
nacionalismo francês em assuntos da Igreja e a oposição da monarquia fran-
cesa ao centralismo da Cúria papal. De facto e de jure, o status preferencial da
monarquia francesa em relação à Igreja tinha-se elevado na alta Idade Média
com o conceito da sacralidade da monarquia, dado que os reis eram ungidos
e adquiriam uma situação semioficial no interior da Igreja.
No reino franco, o rei e os bispos trabalhavam juntos com sentido de
responsabilidade coletiva. Sustentava-se que a monarquia francesa tinha sido
sempre protetora e defensora da Igreja e do Papa. Essa estreita relação históri-
ca converteu-se no principal argumento a favor das pretensões de uma Igreja
nacional do rei francês. A Cúria romana opôs-se, mas encontrou resistência.
Após a reforma gregoriana, sob o Papa Gregório VII (1073-1085), o galica-
nismo opôs-se ao centralismo romano e à doutrina papal da “plenitude de
poder”, tanto na ordem espiritual como na temporal.
No século XVII, o absolutismo régio levaria ao rejuvenescimento do galica-
nismo, que, então, parecia, um ensino constante e coerente. Em 1682, Luís XIV
convocou uma assembleia dos bispos com o baixo clero, que dizia representar
o clero francês. Emitiu uma “Declaração de liberdades galicanas” em quatro
artigos, que podem ser resumidos assim: (1) o rei da França é independente
da autoridade papal nos assuntos temporais; (2) deve-se manter o Decreto do
Concílio de Constança, que afirmava que um Concílio geral é superior ao Papa;
(3) as antigas liberdades e prerrogativas reais da Igreja francesa não podem ser
violadas; (4) a infalibilidade pessoal dos Papas deve ser recusada e seus julga-
mentos podem ser modificados. A Igreja, no entanto, era indefectível por um
processo de reforma ajudado pelas assembleias do clero e pelo rei. Foi Jacques
Benigne Bossuet (1627-1704) que, tentando moderar o movimento dentro do
Parlamento, apresentou para sua aprovação os quatro artigos galicanos.
Os artigos formulam o que se poderia chamar de “galicanismo clássico”.
Todavia, ao recusar a práxis antiga, real e eclesiástica, supõe um retorno ana-
crônico aos padres, a uma Igreja pré-gregoriana e pré-escolástica e implica a
recusa da doutrina e da disciplina dos últimos seis séculos. Pode-se compre-
ender o motivo pelo qual Alexandre VIII em 1690 condenou esses artigos na

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Dom Bosco: história e carisma 1

Constituição Inter multiplices, exigindo a sua retirada. Em 1693, Luís XIV da


França fez com que os bispos retirassem oficialmente os aspectos dos artigos
que eram negativos ao papado.
Contudo, o galicanismo continuou aparecendo como uma eclesiologia
válida, e encontrou logo imitadores no febronianismo e josefinismo. Embora
abandonado na teoria por Napoleão, reapareceu na Constituição Civil do
Clero e, mais tarde, nos “artigos orgânicos” impostos por ele para modificar
a Concordata de 1801.
Por reação, o galicanismo agressivo fortaleceu a agenda do partido ultra-
montano. O Syllabus errorum condenou muitos dos princípios fundamentais
do galicanismo.82 A proclamação da infalibilidade pessoal do Papa (1870)
opõe-se diretamente a dois dos quatro artigos. Os jesuítas e, obviamente, o
Colégio Eclesiástico, do qual Dom Bosco participou, situaram-se decidida-
mente no campo dos ultramontanos.
O galicanismo pode parecer agora uma questão superada, mas continua
ativo na mentalidade moderna.

Febronianismo
O termo refere-se à doutrina proposta por Justino Febrônio, pseudônimo
adotado pelo bispo auxiliar de Tréveris, Johann Nikolaus Von Hontheim (1701-
1790), em seu livro De statu Ecclesiae (Sobre o estado da Igreja), de 1763.83
O livro apresentava uma teoria sobre a constituição da Igreja e das re-
lações Igreja-Estado. Sua tese era que o papado exigia muitas faculdades não
dadas por Cristo e não exercidas na Igreja durante os primeiros oito séculos.
A Igreja não é monárquica. O primado, não a infalibilidade, do Papa é um
serviço para preservar a unidade, garantir a vigilância e promulgar as leis
aprovadas por um concílio geral. Como todos os bispos são iguais, o Papa
não tem jurisdição fora da sua própria sede, que não deve ser necessariamente
82
Ultramontano ou ultramontanismo designa uma eclesiologia conservadora, centrada no Papa
que se opôs diretamente ao galicanismo. O termo, cunhado a partir do ponto de vista francês, significa
“além das montanhas” e indica a Itália-Roma. José Maria de Maistre (1753-1821), polêmico escritor e
filósofo francês, muito elogiado na História da Itália, de Dom Bosco, desempenhou diversos encargos
no reino do Piemonte-Sardenha. Hughes-Félicité-Robert de Lamennais (1782-1854), padre filósofo
francês, defendeu num primeiro momento a tradição da Igreja de modo ultramontano. Em 1832, foi
condenado por Gregório XVI por defender o liberalismo político e os princípios democráticos, quan-
do, então, abandonou a Igreja. O Syllabus errorum era uma recompilação de 80 proposições condena-
das na encíclica Quanta Cura de Pio IX, 8 de dezembro de 1864.
83
Justino Febronio, Justini Febronii Juris consulti de Statu Ecclesiæ et legitima potestate Romani
Pontificis Liber singularis ad reuniendos dissidentes in religione christianos compositus, escrito com a
finalidade de unir na religião os cristãos dissidentes, Frankfurt, 1763.

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Último ano no seminário e primeiro de ministério sacerdotal (1840-1841)

Roma. A infalibilidade está em toda a Igreja. Só o consentimento dos bispos


torna vinculantes os pronunciamentos papais. A Cúria romana é especial-
mente censurável. Os meios para restabelecer a unidade dos cristãos, rompida
pela Reforma, são a instrução do povo, os sínodos nacionais, o exercício do
poder real e a reforma na Igreja. O “febronianismo” defendia a criação de
uma Igreja nacional alemã, como organismo sujeito à regulamentação e um
departamento do Governo.
A obra colocada no Índice (1764), já em sua primeira edição, foi lar-
gamente traduzida, ampliada ou abreviada para sua maior difusão. Clemen-
te XIII (1758-1769) pediu ao episcopado alemão que a proibisse em suas
dioceses, mas a obediência foi lenta. Muitos teólogos católicos escreveram
contra, embora tampouco lhes agradasse o centralismo romano; a eclesiolo-
gia ultramontana jesuíta aumentou a popularidade de suas ideias, quando o
governante conservava inclinações absolutistas.
O clero francês, numa assembleia de 1775, repudiou os excessos do fe-
bronianismo; alguns teólogos protestantes também escreveram contra ele por
levar ao absolutismo dos governantes, que eram “pior do que o do Papa”.
As guerras da Revolução Francesa e da época napoleônica acabaram com os
eleitorados do Rin, que o apoiavam; contudo, sua influência continuou du-
rante o século XIX. Depois do Congresso de Viena (1814-1815), o chanceler
austríaco Metternich esperava a criação de uma Igreja nacional e também o
tentaria o chanceler alemão Otto von Bismarck depois de 1871.

Josefinismo
O iluminismo e o absolutismo real do século XVIII na Europa deu lugar
ao maior controle da Igreja pelo Estado e, na Áustria, a mudanças significati-
vas nas tradicionais relações Igreja-Estado.
Em junho de 1768, a imperatriz Maria Teresa da Áustria (1717-1780),
seguindo os conselhos de seu chanceler, mudou unilateralmente sua política
eclesiástica e estabeleceu o controle da Igreja pelo Estado para garantir um
poder supremo em sua terra. Os acordos que garantiam os privilégios papais,
que também limitavam a soberania do Estado, foram abolidos. As proprie-
dades da Igreja foram tributadas, as ordens religiosas foram severamente res-
tringidas e aumentou a ingerência do Estado na esfera puramente eclesiástica.
A política eclesiástica estabelecida por Maria Teresa derivou para um sis-
tema de Igreja-Estado sob o imperador José II (1780-1790), do qual o sistema
recebe o nome de “josefinismo”. Sob José II, os bispos já não podiam comu-
nicar-se livre e diretamente com Roma. As ordens religiosas foram desligadas

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Dom Bosco: história e carisma 1

da competência dos superiores que residissem no exterior. As ordens contem-


plativas foram dissolvidas completamente, por serem inúteis à sociedade e seus
mosteiros e bens, confiscados em favor de um sistema paroquial.
As atividades do clero das paróquias foram minuciosamente reguladas; a
educação dos membros do clero secular e regular nos seminários submeteu-se
à estrita supervisão do Estado. O Direito Canônico sobre o matrimônio foi
abolido; entrou em vigor, em 1783, uma nova lei do matrimônio. Este siste-
ma de Igreja especificado em milhares de editos imperiais foi desastroso para
as ordens religiosas e as vocações sacerdotais, porque que as paróquias não
puderam ser atendidas de maneira adequada. Muitas pessoas, especialmente
das classes elevadas, distanciaram-se da Igreja.
O certo é que, depois da morte de José II, sob Leopoldo II (1790-1792)
e Francisco I (1792-1835), algumas leis especialmente nocivas, como as re-
lativas aos seminários, foram suprimidas, mas o sistema em seu conjunto
continuou em vigor. Em 1791 foram estabelecidas novas e rígidas normas
para os serviços religiosos.
A submissão rigorosa da Igreja ao poder civil durante muitos anos foi
prejudicial para a vida católica na Áustria. Os leigos perderam qualquer sen-
tido de corresponsabilidade na Igreja; a iniciativa pastoral dos bispos e padres
foi reduzida por todo tipo de leis restritivas. O controle do Estado levou a
uma espécie de apatia no clero com a convicção de que este sistema de pro-
teção era melhor para a liberdade da Igreja. Isso explicaria por que, em 1848,
ano das revoluções liberais que puseram fim à época de Metternich, o clero e
o povo católico em geral, na Áustria, não souberam aproveitar a oportunida-
de e fizeram muito pouco para recuperar a liberdade.
A oposição à teologia e ao rigorismo jansenista na moral e na prática
pastoral e à eclesiologia representada pelo conciliarismo, febronianismo e ga-
licanismo em suas diversas formas, enquanto sustentava a centralidade do
Papa, afirmava a posição ultramontana. Era a postura dos jesuítas mantida
no Colégio Eclesiástico do qual Dom Bosco participou. Embora essa postura
fosse antirrigorista, “liberal” em teologia moral e pastoral, era também com-
pletamente conservadora e pró-papal na eclesiologia e na política.

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Capítulo XIII

O COLÉGIO ECLESIÁSTICO E DOM BOSCO


(1841-1844)

“O senhor tem necessidade de estudar moral e pregação. Recuse por ora


qualquer proposta e venha ao Colégio Eclesiástico”, respondeu padre Cafasso
a Dom Bosco, que o consultara se devia aceitar alguma das ofertas de trabalho
remunerado que recebera. “Segui prazerosamente o sábio conselho – acrescenta
Dom Bosco – e, a 3 de novembro de 1841 entrei para o referido Colégio.”1
Dom Bosco continua a narração descrevendo a natureza e finalidade do
Colégio. Era uma espécie de “complemento dos estudos teológicos”, onde – ele
diz – “aprende-se a ser padre”. Fala das pessoas que eram seus responsáveis e do
programa, que consistia principalmente num ciclo de aulas de teologia moral
e pastoral, e de pregação. Refere-se especificamente ao contexto teológico e
eclesiológico que levara à fundação do instituto.
Recorde-se que tanto na faculdade de teologia da Universidade quanto no
seminário da arquidiocese davam-se aulas de teologia moral e pastoral. Os padres
recém-ordenados eram insistentemente incentivados a passar dois anos após a or-
denação estudando e formando-se, antes de receber a faculdade de ouvir confis-
sões. Alguns temas de teologia moral e pastoral, especialmente os relativos à vida
sexual, ao matrimônio e à família não faziam parte dos estudos do seminário.
Além disso, como o mesmo Regulamento do Colégio declarava, os padres recém-
-ordenados muitas vezes não tinham “completado” sua educação sacerdotal.
“Com a ordenação, de repente os padres ficam privados das bolsas e da orien-
tação do seminário. Carecendo de meios e de incentivo para ganhar a vida,

1
MO, 117. O nome “Colégio Eclesiástico” (Convitto Ecclesiastico, em italiano) de São Francis-
co de Assis poderia ser traduzido como “Residência do Instituto Pastoral de São Francisco de Assis para
padres”. Na realidade, pode-se traduzir como “aulas de teologia prática”, porque consistia, sobretudo,
em aulas de teologia moral e pastoral, e de pregação. De fato, essa instituição teve início com aulas de
teologia moral, dadas pelo padre Luís Guala em sua residência, que se converteram em “Colégio” quan-
do, com aprovação das autoridades, se transformou em residência que hospedava padres no convento
e igreja adjacente de São Francisco de Assis.

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Dom Bosco: história e carisma 1

eles se veem obrigados a buscar emprego em tarefas alheias ao ministério


sacerdotal. Alguns retornam aos seus lugares de origem e famílias onde não
encontram nem estruturas nem motivação para uma maior formação”. A fun-
dação de um Colégio era mais do que justificada.2

“Aprender a ser padre” no Colégio implicava uma educação teológica


e eclesiológica que não tinha comparação com o ensino do seminário e da
universidade. Qual era, concretamente, a situação em Turim?

1. Contexto eclesial e teológico


Tuninetti, biógrafo de dom Gastaldi, arcebispo de Turim, descreve de
forma sucinta as orientações teológicas prevalentes nas instituições de ensino
superior da diocese de Turim (Universidade e Seminário) nas primeiras déca-
das do século XIX.
Em teologia moral, o ensino dado nas Faculdades de Teologia e Direito da Uni-
versidade, no Seminário e em suas respectivas faculdades de Teologia Moral, era
claramente probabiliorista. Em eclesiologia, as mesmas instituições, apesar da
neutralidade oficial declarada, propugnavam teses contrárias à infalibilidade pa-
pal, inclusive criticando o primado do papa. Na prática pastoral, prevaleciam as
tendências rigoristas. A opinião favorável ao galicanismo era comum entre os mais
bem-educados do clero, entre os quais eram geralmente escolhidos os bispos.3

Era esse o contexto histórico no qual surgiu o Colégio. A teologia moral


seria, na prática, predominantemente jansenista? E a eclesiologia seria real-
mente galicana?
Segundo Stella, embora os chamados jansenistas no Piemonte se man-
tivessem em certa medida na tradição espiritual e ascética de Port Royal, não
se pode falar de jansenismo em sentido estrito, mas só de diversos graus de
rigorismo, que é como se há de entender muitas vezes o jansenismo.4
2
Segundo Doubet, o Piemonte foi a região da Itália em que “o povo levou o catolicismo mais a sé-
rio”. Apóstolos como Dom Bosco, Cafasso e Murialdo foram apenas alguns exemplos mais excelentes entre
um grande número de devotos e diligentes padres que, graças à educação recebida no Colégio Eclesiástico
de Turim, superaram claramente todos os membros do clero italiano, inclusive [o clero d] os Estados Pa-
pais” (Roger Aubert e outros, “The Church in the age of liberalism”. In: P. Becker, History of the church.
Vol. VIII. 2ª edição. Editor: H. Jedin y J. Dolan. Nova York: Crossroads Publishing Co., 1981, 256-257).
3
Giuseppe G. Tuninetti, Gastaldi I, 33.
4
Cf. P. Stella, Vita, 78-91, com referência especial à pastoral e à prática sacramental; id., “Il
giansenismo in Italia”. In: Bibliotheca Theologica Salesiana, Ser. I: Fontes, Vol. I/I, I/II and I/III: Pie-
monte, Zürich, PAS Verlag, 1966, 1970, 1974; id., Giurisdizionalismo e giansenismo nell’ Università di
Torino nel sec. XVIII. Turim: SEI, 1958; G. Usseglio, “Il teologo Guala e il Convitto Ecclesiastico di
Torino”. Salesianum 10 (1948), 453-502.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Chega-se a conclusão semelhante em relação ao galicanismo, ter-


mo que também pode ser utilizado em sentido amplo. Falando da
Casa de Saboia e das suas instituições de ensino, Stella prefere o termo
“jurisdicionalismo”,5 que se manifestava em diversos graus na universida-
de, em concreto, no final do século XVIII.6 Tuninetti fala de um recru-
descimento do “jurisdicionalismo” nos inícios do século XIX, como con-
sequência das políticas eclesiásticas de Napoleão; ele nota, sobretudo em
relação à eclesiologia, que o “galicanismo atribuído à faculdade teológica
[na universidade] de Turim o era pela sua postura específica em relação
à autoridade papal e à infalibilidade pessoal do papa”. A orientação da
Escola de Teologia, conclui, era na realidade antipapal; sua pretensão de
neutralidade era mais verbal do que real.7
Os jesuítas militavam contra as tendências jansenistas e galicanas. Em
teologia, posicionaram-se contra a doutrina da predestinação do Augustinus de
Jansen. Em teologia moral, na prática pastoral e na espiritualidade opunham-
-se ao jansenismo de Port Royal. Em eclesiologia, foram contra o galicanismo
em todas as suas formas e derivações. Basicamente, foi esta postura que os
levou primeiramente à expulsão ou à supressão em diversos países e, enfim, à
supressão oficial sob Clemente XIV (1773). Todavia, mesmo no período da su-
pressão (1773-1821), suas atividades e sua influência perduraram em Turim.8

5
O jurisdicionalismo advoga a proeminência do poder civil sobre a atividade eclesiástica, baseando-se
numa adesão religiosa que dá título e requer o exercício de uma ação protetora sobre a Igreja que, na prática,
redunda em autêntica fiscalização da sua atividade. Partindo deste princípio, é habitual entre seus defensores
falar de certos iura maiestatica em virtude dos quais o soberano, como garantidor da unidade da Igreja e da
pureza da sua fé, exerce verdadeiro e próprio poder eclesiástico e lhe facultam levar a cabo na Igreja as reformas
por ele consideradas necessárias para o reto funcionamento de seus órgãos e instituições [Nota dos editores].
6
Cf. P. Stella, Giurisdizionalismo, 9-41.
7
G. Tuninetti, Gastaldi I, 33-34. Deve-se levar em conta que os bispos italianos que se opu-
nham à definição papal da infalibilidade no Concílio Vaticano I, alguns bispos piemonteses, graduados
em teologia na Universidade, foram os mais inflexíveis. Podemos mencionar o bispo Luís Moreno, de
Ivrea; Luís Nazário di Calabiana, de Casale; Lourenço Renaldi, de Pinerolo; Pedro Sola, de Nizza; e
o arcebispo Alexandre Otaviano Riccardi di Netro, de Turim. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi I, 193ss.
8
A supressão da Companhia de Jesus começou em Portugal e na França, para se tornar
em seguida geral e oficial em 1773, pela bula Dominus ac Redemptor, de Clemente XIV. Foi
provocada por uma onda de hostilidades. O jansenismo encontrara sua maior oposição nos
jesuítas. Os seguidores do Iluminismo atacavam os jesuítas como meio do objetivo final: elimi-
nar as Ordens religiosas, o papado e a Igreja. Os partidários do galicanismo e do absolutismo
monárquico defrontaram-se em sua agenda com o apoio dos jesuítas ao papado. Os chamados
“déspotas esclarecidos”, que tinham a intenção de consolidar o próprio poder, não favoreciam
uma Ordem papal como os jesuítas. Os governos da maioria dos países católicos viam a auto-
ridade papal com desagrado e o seu sucesso, uma ameaça. Os jesuítas, desde a Reforma, aju-
daram a recuperar regiões inteiras para a Igreja. Dirigiram com sucesso as missões em muitos
lugares e obtiveram grande prestígio através das escolas e dos colégios. Tornaram-se confessores,

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Dom Bosco: história e carisma 1

A Companhia de Jesus foi restaurada por Pio VII, após a queda de Napoleão
em 1814.
Não menos influente, especialmente em relação à teologia moral e à prá-
tica pastoral, foi Afonso de Ligório. Sua doutrina moral, o equiprobabilismo,
coincide na prática com o probabilismo jesuíta, sempre que em cada um dos
casos se calcule o mérito intrínseco e as conclusões, e a decisão de consciência
seja tomada à luz da prudência e da caridade cristã.9
Era de se esperar que em Turim a doutrina dos jesuítas e de Santo Afon-
so só encontrasse espaço e apoio fora da universidade e do seminário. En-
controu, também, uma intensa e generalizada oposição entre o clero. Seu
sucesso deve-se à atividade de destacadas personalidades e grupos religiosos: a
recém-estabelecida Companhia de Jesus, o jesuíta Nikolaus von Diessbach10
e as Associações de Amizade (Amicizie) de Pio Bruno Lanteri e seus Oblatos

educadores e assessores dos poderosos, o que lhes deu influência e poder. Em alguns casos, ul-
trapassaram os limites e foram acusados de intriga e de moral duvidosa. Durante o pontificado
de Clemente XIII (1758-1769) e de Clemente XIV (1769-1774), eles foram objeto de ataques
generalizados em toda a Europa católica. O primeiro golpe aconteceu em Portugal, onde se
lhes atribuiu a decadência do país como potência, e foram acusados de diversos delitos contra o
Estado; em 1759, acabaram expulsos e os seus bens, confiscados. Em 1764, foram expulsos da
França, depois de investigados em relação à aventura comercial do ministro Lavallette. Clemen-
te XIII reafirmou o seu apoio aos jesuítas com a bula Apostolicam Pascendi, mas foi em vão. Na
Espanha, o ministro Aranda persuadiu o rei Carlos III de que os jesuítas eram desleais e estavam
tramando seu assassinato. Em 1767 foram suprimidos em todo o império espanhol. Na Itália,
Nápoles e Parma-Piacenza seguiram seu exemplo em 1767 e 1768, respectivamente. Em janeiro
de 1769, as nações católicas pediram a supressão total dos jesuítas. Clemente XIII recusou-se,
mas morreu em 2 de fevereiro de 1769. Na eleição de Clemente XIV, o conclave foi domina-
do pela questão dos jesuítas, por manobra de nações católicas, encabeçadas pelos Bourbon,
empenhados em obter a sua supressão. Clemente, franciscano erudito, não fizera promessas,
mas indicara que a supressão era canonicamente possível. Pressionado, resistiu por três anos,
sugerindo acordos próximos à repressão. Clemente capitulou quando as nações ameaçaram a
ruptura total com Roma, enquanto Maria Teresa da Áustria declarava neutralidade no assunto.
O embaixador espanhol apresentou um projeto de Bula para sua supressão, que o Papa assinou
em junho de 1773.
9
Dom Bosco refere-se a esse debate em MO, 118-119.
10
Joseph Albert Nikolaus von Diessbach nasceu em Berna, Suíça, numa nobre família calvinista.
Militar no exército sardo, ele se converteu ao catolicismo em 1754. Viúvo aos 26 anos, entregou sua filha
aos cuidados das monjas da Visitação de Nice e entrou em 1759 na Companhia de Jesus, em Turim.
Ordenado padre em 1764, exerceu a direção espiritual e a pregação em Turim, Suíça, França e Alemanha.
Depois da supressão da Companhia de Jesus em 1773, continuando como jesuíta, escreveu e pregou
em defesa da Igreja e contra o jansenismo e o galicanismo. Fundou por volta de 1780 as Associações de
Amizade Cristã (Amicizia Cristiana), preocupado como estava com a propagação das lojas maçônicas.
Em 1782 mudou-se para Viena, deixando um grupo de discípulos em Turim sob a direção do padre Pio
Bruno Lanteri. Ali ficou até a morte em 1782, não sem ter fundado um grupo de “amigos”, entre eles o
redentorista São Clemente Hofbauer, que trabalhou pela restauração política e religiosa na Áustria.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

de Maria Virgem11 além do padre Luís Guala12 e o Colégio Eclesiástico. Es-


tas pessoas e instituições foram os agentes imediatos da criação do Colégio
Eclesiástico e do seu programa. São, pois, importantes para a compreensão de
como se integrou e aperfeiçoou a formação sacerdotal de Dom Bosco, e do
tipo de padres em que eles se converteram.

Os jesuítas e as Associações de Amizade


Sem qualquer dúvida, os jesuítas foram a força propulsora do mo-
vimento. Depois de restabelecidos por Pio VII em 1814, foi permitida à
Companhia regressar ao Reino da Sardenha e a Turim em 1818, por suges-
tão do teólogo Luís Guala e com o apoio do arcebispo Columbano Chiave-
roti. Por decreto real, foi-lhes confiada a direção de importantes instituições

11
Pio Brunone Lanteri nasceu em Cúneo, capital de província, a uns 50 quilômetros ao sul de
Turim, em 12 de maio de 1759, numa próspera família de profissionais. Depois de deixar os cartuxos
devido à má saúde foi para Turim e matriculou-se na escola de teologia da universidade. Teve como di-
retor espiritual o padre Diessbach e uniu-se à sua associação secreta Amicizia Cristiana, na qual chegou
a ser membro muito ativo. Após uma visita a Viena, junto com o padre Diessbach, foi ordenado padre
em Turim no dia 22 de maio de 1782. Seu ministério sacerdotal divide-se em três períodos. No pri-
meiro (1782-1798), da ordenação à ocupação da Itália por Napoleão, foi líder da Amicizia Cristiana;
seu principal apostolado era a imprensa, ou seja, a defesa da fé católica através de livros de tendência
ultramontana. No segundo período (1798-1814), Lanteri envolveu-se totalmente nos turbulentos e
trágicos acontecimentos da ocupação francesa da Itália. Levantou-se em defesa de Pio VII, prisioneiro
de Napoleão, e a Associação da Amizade conseguiu distribuir livros em defesa da autoridade e primado
do Papa até mesmo na França. No terceiro (1814-1830), durante a primeira Restauração, Lanteri am-
pliou o trabalho da Amizade Cristã e reorganizou-a, criando uma associação de leigos (Amizade Cató-
lica) e outra de padres (Amizade Sacerdotal); nesta inspirava-se o Colégio Eclesiástico. Em 1815, com
um grupo de padres da Amizade Sacerdotal, fundou os Oblatos da Virgem Maria, em Carignano, a
20 quilômetros de Turim; dissolvida em 1820, fundou-a novamente em 1825. Aprovada por Gregório
XVI, não pôde estabelecer-se em Turim por motivos políticos. Morreu em Pinerolo no dia 5 de agosto
de 1830. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 1989.
12
Luís Maria Fortunato Guala nasceu em Turim em 1775 de João José Guala, advogado, e de
Maria Gastinelli. A família era originária de Cassine, Acqui, 50 quilômetros a sudeste de Turim. Iniciou
cedo os estudos sacerdotais e estudou teologia na Universidade de Turim, de 1792 a 1796, ano em
que foi ordenado. Doutorou-se pouco depois, sendo em seguida nomeado por decreto real, professor
associado na mesma escola. Começou assim uma notável carreira pelo seu intenso compromisso com
a teologia afonsiana e a formação sacerdotal na Igreja de Turim. Foi ultramontano declarado, mora-
lista de tendências afonsianas numa faculdade de probabilioristas pró-galicanos. Discípulo, amigo
e associado de Lanteri foi perseguido pelo seu apoio a Pio VII. Em 1807, Guala obteve licença para
abrir novamente o santuário de São Inácio em Lanzo, onde, com Lanteri, começou a propor retiros
espirituais para o clero. Em 1808 foi nomeado Reitor da igreja de São Francisco de Assis, inicialmente
apenas como diretor da Associação de Artistas que tinha sua base nessa igreja, dando início, também,
a um curso particular de aulas de teologia moral. E ali, menos de dez anos mais tarde, criou o Colégio
Eclesiástico, que dirigiu até a morte em 1848. Padre Guala e seu discípulo padre Cafasso foram os
principais mestres, mentores e guias espirituais de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

educativas, onde estabeleceram o ensino da teologia moral com orientação


moderada, antijansenista e antigalicana.
Os jesuítas foram responsáveis, em última análise, também pela criação
de poderosas sociedades que se converteram numa importante força em Tu-
rim e alhures, as chamadas Amicizie ou Associações de Amizade. Dotadas de
uma organização flexível, eram associações, algumas secretas e outras conhe-
cidas, de padres, de leigos, ou mistas. Dedicavam-se à defesa da fé católica e
da Igreja católica institucional, sobretudo mediante a difusão de bons livros.
Suas bibliotecas circulantes eram chamadas spezerie (drogarias). No período
da Restauração, abandonaram a cobertura secreta e ampliaram seu âmbito
de ação.
Em Turim, essas Associações devem sua origem ao jesuíta Nikolaus von
Diessbach (1732-1798) e foram continuadas pelos padres Pio Bruno Lanteri
(1739-1830) e Luís Guala (1775-1848). Conhecem-se quatro dessas asso-
ciações; uma delas, a Amizade Cristã, fundada por Diessbach e guiada por
Lanteri, propôs-se a fazer uso da imprensa e de atividades secretas em defesa
da Igreja, servindo-se das mesmas armas da maçonaria; suas células foram
criadas em muitas cidades da Itália e da Europa. Durante o período da ocu-
pação napoleônica na Itália (1798-1811), a Amizade Cristã e seus dirigentes
participaram ativamente a favor de Pio VII. Com o início da Restauração, em
1817, padre Lanteri ampliou as atividades da associação, organizando-a para
maior eficiência criando associações não secretas: a Amizade Católica para
os leigos “de comprovada convicção monárquica e católica”13 e a Amizade
Sacerdotal para os padres;14 o primeiro ramo centrava-se no apostolado da
imprensa e o outro promovia a formação sacerdotal com orientação clara-
mente ultramontana.
A Amizade Católica, em particular, conquistou visibilidade e impor-
tância. Sua revista, L’Amico d’Italia, como também as publicações de seus
membros, demonstravam claramente onde se situavam em matéria política e
religiosa: na tradição jesuítica, estavam com o Papa contra as ideologias libe-
rais e revolucionárias. Foi essa a sociedade que patrocinou a edição da Opera
omnia, de Afonso Maria de Ligório. As preocupações doutrinais e pastorais
das “Amizades” (particularmente da Amizade Sacerdotal) tiveram expressão
concreta e permanente em duas importantes instituições eclesiásticas: a Con-
gregação dos Oblatos de Maria Virgem e o Colégio Eclesiástico.

13
C. Bona, “Le ‘Amicizie’: società segrete e rinascita religiosa (1770-1830)” [Turim: Deputazio-
ne Subalpina di Storia Patria, 1962, 342]. In: P. Stella, Economia, 54.
14
A Amizade Católica (para leigos) é considerada o protótipo das associações católicas na Itália.

338

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

A Congregação dos Oblatos de Maria Virgem


Esta Congregação foi fundada por Pio Bruno Lanteri. Embora exilado
(1811-1814) pelas suas atividades a favor do Papa Pio VII, prisioneiro, cooperou
em sua primeira fundação. A Congregação foi dissolvida por decreto real de 1820,
mas novamente fundada por ele em 1825, dando-lhe então uma direção pastoral
concreta, permitindo a continuidade do seu apostolado. Lanteri e os oblatos con-
tribuíram muito para a renovação da teologia moral, da prática pastoral, da vida
da Igreja no Piemonte. Mais do que eles, provavelmente, contribuiu o Colégio
Eclesiástico, fundado pelo teólogo Luís Guala com a cooperação de Lanteri.15

2. O Colégio Eclesiástico
Padre Luís Guala, discípulo e amigo do padre Pio Lanteri, foi membro
de primeiro plano das Amizades e compartilhou sua preocupação pela refor-
ma da teologia e da prática pastoral, como também pela formação do clero.
Desta preocupação nasceram as Conferências de Teologia Moral e o Colégio
Eclesiástico. Tuninetti é mais explícito:

O Colégio Eclesiástico foi criação de Guala e Lanteri, e, portanto, indireta-


mente, um produto das Amizades e do seu entorno, embora certamente Gua-
la fosse o seu principal realizador, depois de 1830, e sua principal força motriz
[...]. O Colégio é visto como derivação da Amizade Sacerdotal. Ambos for-
mam uma corrente, “cujos principais anéis são: São João Bosco, discípulo de
Cafasso; São José Cafasso, discípulo de Guala; Luís Guala, discípulo de Lan-
teri; Pio Bruno Lanteri, discípulo de Diessbach e da Companhia de Jesus”.16

Apesar de se atribuir frequentemente a fundação do Colégio ao padre


Guala, tendo o padre Cafasso como cofundador, e sem negar-lhes a sua deci-
siva contribuição, deve-se colocar as origens dessa instituição num contexto
mais amplo e reconhecer a contribuição essencial de Lanteri e, antes dele, dos
padres jesuítas.

É mérito de Lanteri ter planejado e realizado as Conferências, e atribui-se a ele a ideia original,
15

o planejamento e, se não a realização, ao menos a inspiração do Colégio. Cf. G. Colombero, Giuse-


ppe Cafasso, 48-49, com a exclusão de opiniões contrárias. Alguns, porém, continuam a indicar padre
Guala como fundador segundo a opinião do beato José Allamano. Cf. Pietro Gastaldi, “Della vita del
Servo di Dio Pio Brunone Lanteri [...]” [Turim: Marietti, 1870, 217-218]. In: G. Usseglio, Guala,
458-459; e T. Piatti, Un precursore dell’ Azione Cattolica: il servo di Dio Brunone Lanteri [...]. Turim:
Marietti, 1926, 179-186.
16
G. Tuninetti, Gastaldi I, 36, referindo-se a Bona, “Amicizie”, 311-312. A citação é de F.
Bauducco, “San Giuseppe Cafasso [...]”, Scuola Cattolica 88 (1960), 286-294.

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Dom Bosco: história e carisma 1

O Colégio Eclesiástico estabelecido em São Francisco de Assis


Nomeado responsável pela igreja de São Francisco de Assis,17 em 1808, o
teólogo Guala criou um curso particular de teologia moral afonsiana em seu
próprio apartamento.18 Seis anos depois, em 1814, com o apoio do arcebispo
Jacinto Della Torre,19 Guala obteve do rei Vítor Manuel I a aprovação do cur-
so, sendo nomeado Decano e Diretor da Conferência de teologia moral, com
todos os direitos e privilégios anexos ao mesmo, assim como um estipêndio
anual de 500 liras.20
O curso pôde ser oferecido publicamente em igualdade de condições
com aqueles do seminário e da universidade. Dois anos mais tarde, em 1816,
Lanteri e Guala apresentaram a solicitação para criar o Colégio Eclesiástico
no restante dos ambientes do antigo convento anexo. Fracassado esse inten-
to, Guala, desejando salvar o projeto, renovou a solicitação sem mencionar
a Congregação dos Oblatos, centrando-se apenas no Colégio e em seu pro-
grama.21 Padre Guala apoiava sua argumentação na necessidade de uma ins-
tituição desse tipo com duplo objetivo: a lamentável escassez de padres bem
formados para servir à Igreja e a crescente dificuldade de os jovens padres
obterem essa formação devido à falta de oportunidades e de meios.
Fazia uma descrição apaixonada da triste situação em que se encontra-
vam os padres mais jovens e esboçava sua solução: um curso de três anos
num Colégio que exigisse desembolsos modestos para matrícula, alojamento
e alimentação, e que proporcionasse um espaço adequado à formação. E
acrescentava um pedido de locais (o terceiro andar do antigo Convento de

17
A igreja e o convento de São Francisco de Assis foram construídos nos inícios do século XIII
(pelo próprio São Francisco, como sustenta a tradição) e rapidamente adquiriram importância religiosa
e cívica. A igreja e o convento foram restaurados nos inícios do século XVII, mas a igreja passou por
grande reconstrução novamente em 1760, adquirindo o aspecto arquitetônico que mantém até hoje. Os
franciscanos foram expulsos por Napoleão e nunca mais regressaram. Boa parte dos ambientes do con-
vento foi destinada a outros usos e a igreja foi adquirida pela arquidiocese. Padre Luís Guala, nomeado
reitor em 1808, adquiriu a parte disponível do antigo convento e ali estabeleceu o Colégio Eclesiástico.
18
G. Casalis, “Dizionario geografico-storico [...] XXI”, 471-472. In: P. Stella, Economia, 46.
19
Como se disse no comentário sobre o seminário, a sucessão na arquidiocese foi esta: Jacinto
Della Torre (1805-1814); sede vacante (1814-1818); Columbano Chiaveroti (1818-1831); Luís Fransoni
(administrador, 1831; arcebispo, 1832-1862; arcebispo no exílio, 1850-1862); sede vacante (1862-1867,
regência do vigário capitular monsenhor José Zappata); Alexandre Otaviano dos Condes Riccardi di Netro
(1867-1870); Lourenço Gastaldi (1871-1883); e cardeal Caetano Alimonda (1883-1891).
20
Citado em G. Usseglio, Guala, 465.
21
Embora não existam relatos de tratativas entre os dois sobre a nova solicitação, as cartas
seguintes, pelas quais Guala se manteve nos mínimos detalhes, mostram que a sua ação em 1817 foi
realizada por entendimento mútuo. Cf. G. Usseglio, Guala, 468, citando documentos do processo
de beatificação de Lanteri.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

São Francisco de Assis, apesar do seu estado deplorável), descrevendo ainda


as muito escassas comodidades básicas disponíveis, mesmo depois da neces-
sária restauração.22
A solicitação foi aceita e o decreto, assinado no mesmo dia 8 de agosto
de 1817. A rápida aprovação sugere que, além do prestígio pessoal do padre
Guala, homens influentes da Igreja e do laicato apoiavam o projeto.23 O Co-
légio começou a funcionar no ano acadêmico de 1817-1818, com a matrícu-
la de uma dezena de padres estudantes.

Entrada do Colégio Eclesiástico (Convitto).

Em 4 de junho de 1823, o teólogo Guala, já designado diretor por


decreto real em 1814, recebeu a nomeação eclesiástica oficial do arcebispo.
O Colégio contava com o reitor, o “decano de conferências” (ou seja, professor
22
“Os quartos são pequenos, distribuídos ao longo de um corredor no interior do edifício, metade
deles no lado norte. Carecem de lavatórios ou de qualquer fornecimento de água e há apenas um banheiro
comum disponível. O acesso a esse andar é feito por uma escada colocada na parte do edifício alocada
aos tribunais civis e penais. O pátio interno é usado pela escola da cidade e também serve de depósito. O
edifício não tem sótão e, como está deteriorado, não tem valor rentável” [G. Usseglio, Guala, 465-466,
citando o documento do processo de beatificação de Lanteri]. G. Colombero fala de 14 quartos .
23
Uma lista impressionante de seculares influentes, membros da Amizade Católica, muitos dos
quais ocupavam cargos nos escritórios da administração real, encontra-se em P. Stella, Economia 54-56.

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Dom Bosco: história e carisma 1

de teologia moral, que poderia ser a mesma pessoa) e o prefeito ou adminis-


trador. Com o passar dos anos e o aumento das matrículas, cada um deles
teria um assistente. O diretor espiritual estava a serviço das funções religio-
sas. Havia também professores adjuntos, conforme fosse necessário, para
outros temas, como a pregação e a liturgia. Havia um porteiro de confiança,
um cozinheiro e alguns empregados sob a supervisão do prefeito.

Vida e espírito do Colégio Eclesiástico


Para conhecer a vida no Colégio, basta conhecer os seus Regulamen-
tos.24 Redigidos pelo padre Guala com a colaboração do padre Lanteri, os
estatutos permaneceram em vigor ao longo de todo o século XIX. A revisão
do padre Cafasso deixou-os essencialmente sem alterações.
Os Regulamentos do Colégio Eclesiástico propunham, num dos últi-
mos artigos, os santos patronos. No primeiro projeto, de 1819-1821, men-
cionavam-se apenas São Francisco de Sales e São Carlos Borromeu. A última
edição é mais ampla.
Este Colégio coloca-se sob o patrocínio especial de São Francisco de Sales e de
São Carlos Borromeu, que criaram e promoveram outras instituições similares.
Por decreto arquiepiscopal de 15 de novembro de 1834, coloca-se [também,
oficialmente] sob o patrocínio do beato Sebastião Valfré, verdadeiro modelo de
zelo sacerdotal. Por decreto de 15 de setembro de 1842, Gregório XVI concede
indulgência plenária a todos os padres do Colégio que, na festa dos mencionados
santos patronos, assim como na de Santo Afonso Maria de Ligório, recebam [os
sacramentos da] Confissão e Comunhão, e visitem a igreja de São Francisco.25

Aos padres do Colégio eram apresentados como modelos dois destaca-


dos pastores-bispos, São Francisco de Sales (de Genebra) e São Carlos Bor-
romeu (de Milão), que tiveram grande relevância na Igreja universal e na
Igreja do Piemonte. E ainda um modelo de pastor, mais perto da realidade
turinense, o pai do Oratório de Turim, beato Sebastião Valfrè.26 A menção

24
O texto anterior, aprovado em 1817 e 1821, figura no apêndice III adiante, traduzido por
A. Giraudo, Clero, 392-398. Giraudo afirma que esta cópia de arquivo dos Regulamentos é prova-
velmente o original. Mais tarde foi ampliado e aprovado em 1834, como dito em G. Colombero,
Cafasso, 357-363. Nosso resumo neste ponto leva em conta as duas edições.
25
Sussidi 2, 76-77.
26
Sebastião Valfrè nasceu em 1629 de pais pobres e estudou para o sacerdócio em Turim, sendo orde-
nado padre em 1652. Em associação com um Oratório que funcionava na região e outros padres, fundou o
Oratório de Turim, que presidiu por muitos anos. Doutor honoris causa em teologia pelo seu ensino, exerceu
o cargo de professor na família real. Entretanto, sua caridade pastoral, sua pregação e seu incansável serviço aos
necessitados foram os distintivos da sua vida. Morreu em 1710 e foi beatificado por Gregório XVI em 1834.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

adicional de Santo Afonso, embora não estivesse entre os patronos, ilustrava


claramente os objetivos defendidos pelo Colégio.27
No preâmbulo do Regulamento, formulam-se as “Razões para a existên-
cia do Colégio”, aludindo à necessidade de os padres recém-ordenados terem
formação mais específica em moral e maior preparação para a pregação. Re-
sultado dessa insuficiente formação sacerdotal é a falta de espírito sacerdotal,
unida ao desânimo ou à perda de motivação, o que explicaria a deplorável
falta de confessores experientes e a fuga generalizada dos sacramentos entre
os fiéis. O Colégio, é, portanto, uma tentativa de abordar esses problemas.
O capítulo primeiro estabelece o calendário das atividades do dia, com
reflexões destinadas a dar maior motivação espiritual. O silêncio, a oração
e o estudo dão a tonalidade. As missas eram celebradas a partir das 8h30.28
Após a Missa, cada um toma rapidamente o café da manhã e retorna à sala de
estudo. Às 11 horas da manhã tem-se a aula de teologia moral com exercícios
práticos. Depois do almoço e de uma breve visita ao Santíssimo Sacramento,
todos desfrutam de um período de recreio até 15 horas. Segue-se a leitura es-
piritual e, depois, o estudo até as 16 horas depois do que os padres estudantes
podiam passear pela cidade por uma hora. Às 17 horas, recita-se o rosário em
comum e retiram-se novamente à sala de estudo.
As aulas de teologia moral da noite começavam às 19 horas, seguidas de
um exercício prático do sacramento da Penitência, no qual se representavam
os personagens. O jantar era servido às 20h15, seguido de breve recreio. Não
se permitia continuar o estudo depois do jantar por ser “prejudicial à saúde”.
Às 21 horas o sino chamava às orações da noite em comum e ao exame de
consciência; depois, todos se retiravam para o repouso.
O capítulo segundo (“Normativa”) tinha 15 parágrafos. Deles, 7 eram
prescrições de caráter disciplinar; 2 referiam-se à vida em comunidade e à
conduta pessoal; 3 tratavam das práticas religiosas; 2, dos estudos, e o último
era uma exortação aos padres mais velhos que participavam do ministério da
confissão e visitavam os doentes. Davam-se novamente conselhos espirituais
27
Vicente Gioberti, em seu ataque ao Colégio, destaca este ponto: “É do conhecimento de todos
que se celebram diariamente exercícios de teologia moral no Colégio de São Francisco, no qual os
casos mais importantes de moral são muito engenhosamente argumentados e resolvidos. A autoridade
de juiz de última instância não é outro senão Ligório, a quem os padres do Colégio sempre honraram
como o ‘Beato’ e agora, como o ‘Santo’ por excelência” [“Il gesuita moderno” V, 23. In: G. Usseglio,
Guala, 499]. Vicente Gioberti (1801-1852), padre liberal, filósofo e autor de escritos patrióticos, tam-
bém escreveu uma invectiva contra os jesuítas, intitulada Il gesuita moderno, em cinco volumes.
28
Os padres celebravam as missas por turnos em altares privados na igreja de São Francisco de
Assis. Podiam ir até as 11 horas. Os estudantes clérigos ainda não ordenados, se houvesse algum, assis-
tiam à Missa em comum na igreja.

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Dom Bosco: história e carisma 1

em vários assuntos. As regras disciplinares recomendavam a observância do


silêncio, sobretudo no tempo de estudo, o cuidado com o próprio quarto, a
veste sacerdotal tradicional, evitando tanto a extravagância como a negligên-
cia, e a fuga dos lugares mundanos quando saíam a passeio.
Recomendava-se, ainda, não andar de modo agitado de um lado para
outro, visitar os quartos de outros estudantes, permanecer na portaria, entre-
ter-se com estranhos, sair para refeições sem permissão, ir a espetáculos ou
deter-se nos bares. Outras normas permitiam aos estudantes sair em grupos
aos domingos e dias festivos para assistir às cerimônias e ouvir a Palavra de
Deus. A recepção semanal dos sacramentos era obrigatória e às sextas-feiras
era prescrita uma prática penitencial. O tempo de estudo devia ser distribuí-
do equitativamente entre os vários temas.
Vale a pena citar as recomendações relativas às relações comunitárias e à
conduta pessoal:

O amor alegre e que inclua a todos deverá ser a norma. Devem-se evitar ami-
zades particulares, familiaridade desrespeitosa e brincadeiras de mãos. Todos
deverão abster-se de usar apelidos, fazer observações críticas, brincadeiras que
possam ofender ou ferir os sentimentos alheios. Que o comportamento civi-
lizado, a cortesia e a caridade sejam praticados por todos. Sacerdotes que em
breve poderão optar por nomeações na Igreja devem perceber a importância
de aprender a bem conduzir-se com todos os temperamentos. Isso pode ser
alcançado mais facilmente sendo acolhedores do que exigindo perfeição nos
outros. Todos devem esforçar-se por conduzir-se em conformidade com a
norma dada pelo Concílio de Trento, Sessão XXII, Capítulo I, sobre a Refor-
ma dos clérigos: “É plenamente apropriado que os padres organizem a pró-
pria vida moral e a conduta como corresponde às pessoas chamadas a serem
sócias do Senhor. Como consequência, não devem demonstrar nada mais do
que seriedade, autocontrole e espírito religioso”.29

O primeiro dos 5 pontos adicionais trata do ano acadêmico e das férias.


O ano escolar iniciava em 1º de novembro e terminava com os Exercícios
Espirituais de julho no Santuário e casa de retiro de Santo Inácio.30

29
Sussidi 2, 74 (parágrafos 8 e 9 do capítulo 2, “Regras”).
30
O santuário de Santo Inácio ergue-se aos pés dos Alpes, perto de Lanzo (Turim). A capela
original, construída ex-voto em 1630, foi confiada aos jesuítas em 1677. O santuário e a casa que servia
de residência dos padres que atendiam aos peregrinos foram construídos em 1725. Depois da supressão
dos jesuítas em 1773, o santuário passou à arquidiocese de Turim, mas deteriorou-se rapidamente.
Padres Guala e Pio Lanteri planejaram utilizá-lo como casa de retiro e ofereceram cursos de Exercícios

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Os pedidos de inscrição no Colégio deviam ser apresentados até fins de


setembro. Não havia pausas durante o ano acadêmico e as ausências deviam
ser solicitadas anteriormente em cada caso individual. Os estudantes podiam
optar por passar as férias de verão no Colégio. Este oferecia alojamento e refei-
ção além do serviço de um médico, enquanto a pensão mensal era de 30 liras.
Os 2 últimos anexos (“Exortação” e “Infração da Regra”) esclarecem o
espírito que devia animar as pessoas que viviam no Colégio: a união e a ca-
ridade modeladas numa comunidade apostólica que elas se esforçavam por
criar, livres de imposições e temores.

Atividades acadêmicas
As aulas de teologia moral e pastoral, com orientação afonsiana e exerci-
tação prática, eram o pilar do programa escolar. Consideravam-se, também,
como importantes, a instrução e a prática da pregação e da liturgia.
Havia em todos os dias da semana duas aulas de teologia moral-pastoral,
uma aberta ao público à tarde ou à noite e, na manhã seguinte, outra mais
formal, apenas para os estudantes do Colégio, tratando-se mais detalhada-
mente do mesmo tema. Depois dessas aulas, enfrentavam-se situações con-
cretas de pastoral ou “casos de moral”; os estudantes participavam de um
exercício prático de confissão, assumindo o papel de confessor ou penitente.
Nos primeiros tempos, o padre Guala dava duas aulas. Nos anos posteriores,
ele dava a aula da tarde, deixando a da manhã ao assistente ou repetidor.
O tratado de teologia moral de José Antônio Alasia (1731-1812) era uma
edição resumida e servia de texto para as aulas.31 A obra, de tendência pro-
babiliorista, afirmara-se nas instituições e nos seminários da diocese. Padre
Guala, aparentemente, não se sentiu livre de deixar de lado os livros de texto
“pré-escritos” e ensinar diretamente os de Santo Afonso; servia-se do Alasia
como ponto de partida dos debates em que se ilustrava a prática pastoral de
Santo Afonso.32 Padre Cafasso seguiu um método semelhante, primeiramente
como auxiliar e, depois, como professor decano, utilizando um texto de Alasia
comentado por ele mesmo, com o qual ensinava a doutrina afonsina.33

Espirituais para padres e leigos. Mais tarde, padre Cafasso renovou os ambientes, ampliou os programas
de retiro e começou um ministério em favor dos moradores da região.
31
A obra, em 10 volumes, que fora escrita entre 1793 e 1809, foi resumida pelo padre Ângelo
Stuardi e reeditada mais tarde com comentários e “correções rosminianas” pelo padre Lourenço Gastaldi.
Cf. G. Tuninetti, Gastaldi I, 29-30, nota 83.
32
G. Usseglio, Guala, 487-490.
33
Cf. [Anônimo] Il Venerabile Giuseppe Cafasso: nuova vita compilata sui Processi di Beatificazione.
Turim: SEI, 1920, 24, 37-39.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A pregação era outro tema importante. O teólogo Guala confiou seu en-
sino aos jesuítas logo depois do retorno deles a Turim, em 1823. Mantiveram
a cátedra até a expulsão do Piemonte em 1847-1848 os padres Miniasi [Me-
nini], de 1834 a 1839; Grossi, de 1840 a 1843; Sagrini, de 1844 a 1845; e
novamente Miniasi, de 1845 a 1847. Colaboravam também com a pregação
de exercícios espirituais na casa de retiro.
Padre Cafasso atuou como instrutor assistente e tutor estudante em
pregação no período 1836-1846. Ele indicava o tema do sermão, em geral
tomado dos evangelhos, sendo o de João o seu favorito, lia os sermões dos
estudantes e decidia qual deles devia ser apresentado publicamente na aula
para crítica e debate.34

Experiências pastorais práticas


O objetivo fixado pelo Colégio Eclesiástico ia além da formação dos
padres em teologia moral afonsina. Era pensado, em última análise, para
fazer com que os padres pudessem responder às novas situações reais vividas
pelo povo.
Durante o período do reitorado de Guala e Cafasso (1817-1848 e 1848-
1860), a cidade de Turim vivia problemas sociais e econômicos surgidos da
imigração massiva de camponeses e da industrialização incipiente: a questão
dos jovens em situação de risco (os “pobres e abandonados”), a miséria em
forma nova e virulenta e, como consequência, a delinquência. Ambos esta-
vam cientes do problema e da incapacidade de uma resposta construtiva das
estruturas tradicionais da paróquia, especialmente em relação aos jovens.
Por isso, muito depressa, começou-se a reunir na igreja de São Francisco
de Assis os jovens que vagavam pelas ruas da cidade, para a instrução religiosa
e outras atividades. Esse é o famoso programa de instrução catequética que,
diz-se, o padre Cafasso iniciou na Capela de São Boaventura, da qual Dom
Bosco se encarregou pouco depois de inscrever-se no Colégio, e que ele con-
siderava como o início do seu Oratório.35
Programa algo similar, embora mais específico, fora criado em favor dos
limpadores de chaminés vindos do Vale d’Aosta. Esses meninos eram tra-
zidos da montanha para temporadas na cidade a fim de se encarregarem da
limpeza das chaminés de novembro a maio. Deviam ser reunidos, cuidados,
34
Luigi C. Nicolis di Robilant, Cafasso, 687-702.
35
Na Nota histórica de 1854, Dom Bosco afirma que assumiu a instrução catequética de Cafasso
“até fins de 1841” e começou seu Oratório com “dois jovens adultos”. Nas Memórias (1874 c.), porém,
ele relaciona o início do seu Oratório com a instrução catequética dada ao jovem Bartolomeu Garelli
em 8 de dezembro de 1841 [MO, 122-125].

346

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

alimentados e instruídos por alguém que entendesse e falasse o patoá (dialeto


do Vale d’Aosta). Padre Cafasso, a quem é atribuído o início dessa atividade
caritativa, confiou a instrução catequética, entre outros jovens padres, ao pa-
dre Pedro Ponte.
Foi confiado, também, a alguns dos padres do Colégio o ministério das
prisões superlotadas da cidade. Esse ministério era da responsabilidade dos
párocos locais em cujos territórios estavam os estabelecimentos penitenciá-
rios. A Companhia da Misericórdia foi fundada com a finalidade, entre ou-
tras, de dar atenção espiritual aos internos nessas prisões. Contudo, apesar
das melhores intenções, os presidiários continuavam muito mal-atendidos.
Os padres Guala e Cafasso dedicaram algum tempo a esse apostolado; Ca-
fasso dedicava-lhe três noites por semana. Sob a sua direção, os padres do
Colégio participavam ativamente desse ministério, que incluía a instrução
catequética quaresmal; para tanto, os padres tinham um programa cuidadoso
e uma metodologia adequada, visitando e ajudando os reclusos e suas famílias
carentes.36 Esse trabalho pastoral dava-lhes uma visão exata da magnitude do
problema social, especialmente em relação aos jovens.37
Dom Bosco recolhe nas Memórias a dolorosa degradação dos jovens nas pri-
sões da cidade, situação que motivará sua decisão de dedicar a vida aos jovens.38

Sobrevivência e desenvolvimento: o reitorado de Guala (1817-1848)


O período do reitorado do padre Guala foi de lutas e de confronto entre
o Colégio e uma coalizão de forças opostas. Se, após a morte de Guala em
1848, o Colégio conseguiu ser de certa forma reabilitado e “aceito”, a vitória
não foi obtida sem luta.

36
Processo baseado numa biografia anônima de Cafasso, 85-8.7107-118.
37
O Código Penal em vigor antes de 1845 determinava que o menor de idade, mais ou menos
de 14 anos, quando agia sem maldade, não era suscetível de julgamento e encarceramento nas prisões
comuns. Contudo, o menor que tivesse cometido um delito com premeditação era responsável. Só
em 1845, com a abertura da casa correcional de menores, a nova Generala, os menores culpados de
crimes eram separados dos demais delinquentes, como exigido pelo artigo 28 do Código Penal. Isso
explica em parte a presença de jovens com delinquentes mais velhos nas prisões. Em relação aos jovens,
as estatísticas de 1831-1846 mostram que para a maioria o roubo era a falta mais comum, chegando
a 30% dos delitos investigados e apresentados à justiça pela polícia. Outros delitos, como o ócio, a
vagabundagem, a mendicidade etc. chegavam, juntos, a 20%. Seguiam os delitos de violência contra
as pessoas (10%) dos quais mais da metade era de ameaças e espancamentos como consequência de
brigas [MO da Silva, 119]. Para a história da casa correcional de menores conhecida como Generala,
cf. Roberto Audisio, La Generala di Torino: esposte, discoli, minorias corrigendi 1785-1850. Santena:
Fondazione Camillo Cavour, 1987.
38
MO, 120-121.

347

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Dom Bosco: história e carisma 1

Como as taxas cobradas aos internos eram baixas e a situação econômica


da família do padre Guala embora cômoda não fosse rica, alguns se pergun-
tavam, às vezes com má intenção, de onde vinha o dinheiro necessário para o
funcionamento da instituição e o que se fazia dele. Em 1823, um decreto real
habilitou o Colégio, na pessoa do padre Guala, a receber doações e legados.
Além disso, um grupo de influentes e endinheiradas pessoas ligadas às Amiza-
des apoiava o Colégio que era basicamente uma “instituição de beneficência”.
O Colégio chegou assim a dotar-se de uma considerável fortuna procedente
de doações e legados.39
Mais importante, porém, foi a oposição surgida da própria finalidade da
instituição. As resistências tinham a ver com a doutrina moral e suas aplica-
ções pastorais, em primeiro lugar, mas também com posições fundamentais
relativas à eclesiologia, à relação Igreja-Estado e à Revolução Liberal. Estas,
entre outras questões, foram as causas mais profundas dos conflitos; “a guerra
doutrinal que assolou a Itália na segunda metade do século XIX chegou ao
seu clímax no Piemonte” nas primeiras décadas do século XIX.40
Padre João Batista Bertagna referia-se à época em que padre Cafasso
entrou no Colégio, quando dizia:

Para inscrever-se no Colégio nesses anos, era preciso independência e extra-


ordinária fortaleza de espírito. Os estudantes do Colégio eram vistos com
ressentimento suspeitoso pelos padres que não estavam de acordo com o que
se ensinava nessa instituição.41

Robilant, biógrafo do padre Cafasso, diz:

Na opinião de muitos, talvez da maioria do nosso clero, o Colégio não era


mais do que um foco de laxismo, inclusive de eminente heresia. Por isso, os
estudantes do Colégio eram vistos com essas suspeitas e tidos em tão baixa
estima, que os párocos se negavam a receber os diplomados no Colégio
como assistentes.42

39
“À morte do padre Guala, em 1848, rumores recolhidos por Godofredo Casalis situam a
dotação em cerca de meio milhão de liras. Guala deixou o dinheiro, não à corporação, mas ao padre
Cafasso pessoalmente. Padre Cafasso, por sua vez, tornou seu herdeiro o padre Luís Anglesio, superior
da Pequena Casa da Divina Providência do Cottolengo. Esta instituição ficara isenta do pagamento dos
direitos de sucessão por decreto do rei Carlos Alberto” [P. Stella Economia, 67-68]. A referência é a G.
Casalis, Dizionario geografico-storico [...] XXI.
40
G. Usseglio, Guala, 491.
41
Citado em C. Nicolis di Robilant, Cafasso I, 32.
42
Cf. C. Nicolis di Robilant, Cafasso I, XXXIX.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Apesar da implacável oposição, o Colégio fez progressos constantes. A


inscrição inicial de uma dúzia de estudantes elevara-se a mais de 60 matricu-
lados em 1841, nos tempos de Dom Bosco. Várias dioceses, inclusive fora do
Piemonte, estavam ali representadas. Durante o curso 1844-1845, os estu-
dantes eram 64, dos quais 26 provinham de dioceses fora de Turim.43
O Colégio estava se convertendo numa força importante na Igreja de
Turim. Dom Fransoni, querendo fazer frente à deterioração da situação entre
Estado e Igreja, acabou por confiar sempre mais nos padres do Colégio.44 Aos
poucos, as aulas de teologia moral da Universidade e do Seminário foram
perdendo prestígio, sobretudo depois da nomeação do padre Cafasso como
“decano das Conferências” e diretor do Colégio.

Período de ouro: o reitorado do padre Cafasso (1848-1860)


O reitorado do padre Cafasso marcou o final do período de luta do
teólogo Guala. Padre Cafasso aceitou o convite para permanecer no Colé-
gio como assistente, cargo que ocupou de 1836 a 1843 como professor nas
aulas da manhã. Quando em 1844, a saúde do padre Guala piorou, Cafasso
converteu-se em “decano das Conferências”. Confiando em seu protegido,
padre Guala começou a dar-lhe funções de reitorado, sua correspondência e
suas obras de caridade. À sua morte, em 1848, Cafasso sucedeu-o oficialmen-
te como diretor, conseguindo consolidar a instituição dirigindo-a de forma
segura durante o turbulento período da Revolução Liberal. Conservou-a fora
de polêmicas e sem preconceitos; obteve novos patrocínios e deu autoridade
e prestígio ao programa com o seu ensino e a sua santidade.
O ano 1848-1849 foi um ano fatídico para o qual confluíram a conces-
são de uma nova Constituição, a Primeira Guerra de Independência, a der-
rota e abdicação do rei Carlos Alberto, a proclamação da República romana
e a fuga do papa. Foi um ano de crise para o seminário da arquidiocese. Em
1848, o arcebispo Fransoni, que adotara uma postura conservadora rígida,
fechou o seminário e 75 seminaristas foram expulsos por terem participado,
à sua revelia, das celebrações da Constituição. Esse ano também foi um mo-
mento de alterações no Colégio Eclesiástico. Durante o conflito, o governo
requisitou os locais para serem usados como hospital militar. Depois da guer-
ra, padre Cafasso restaurou o edifício e restabeleceu o programa.
Durante os agitados anos da Revolução Liberal e unificação da Itália
(1848-1861), que puseram à dura prova quer o clero quer os leigos católicos,

43
P. Stella, Economia, 48; Sussidi 2, 67-68.
44
P. Stella, Economia, 45, 48-49.

349

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Dom Bosco: história e carisma 1

o Colégio não se desviou de seus princípios e lealdades originais. Igual a ou-


tras instituições eclesiásticas, sofreu diminuição na matrícula e pressões por
parte do governo liberal.
Entretanto, o reitorado do padre Cafasso levou o Colégio ao seu apogeu
de prestígio e influência. Aos poucos, a participação no Colégio, ao menos
por dois anos, converteu-se em prática normal para a maioria dos padres re-
cém-ordenados. Grande número de jovens padres saídos do Colégio somou-
-se ao grupo dos mais veteranos na arquidiocese de Turim e constituíram uma
nova força renovadora na pastoral. Dentre eles saíram alguns que optaram
por novos apostolados, especialmente em favor da juventude.

Período crítico: o episcopado de dom Gastaldi (1860-1876)


Cafasso escolhera padre João Batista Destefanis como professor auxiliar
de teologia moral. Por causa do seu delicado estado de saúde, João Batista Ber-
tagna foi designado segundo professor auxiliar. Depois da morte prematura de
Destefanis, em 1855, Bertagna tornou-se professor assistente de Cafasso.45
Cafasso faleceu em 23 de junho de 1860; seu sucessor no reitorado não
foi padre Bertagna, mas padre Eugênio Galletti, da Pequena Casa da Divina
Providência do Cottolengo, um estranho, em certa medida. Por razões ainda
não muito claras, Bertagna nunca herdou a responsabilidade de diretor man-
tida pelo padre Cafasso, embora o tenha sucedido na cátedra de moral, até
sua expulsão pelo arcebispo Gastaldi em 1876.
45
João Batista Bertagna, conterrâneo e amigo de Dom Bosco, nasceu em Castelnuovo em 1828.
Estudou no seminário da arquidiocese de Turim (1843-1850) e obteve o doutorado em teologia pela
Universidade em 1850. Depois da ordenação sacerdotal em 1851, matriculou-se no Colégio Eclesi-
ástico para o curso de dois anos de teologia moral e pastoral; em seguida, padre Cafasso nomeou-o
professor assistente, como auxiliar do padre João Batista Destefanis (1824-1855). À morte de Cafasso,
foi seu sucessor na cátedra de moral, posto que ocupou até 1876. Nesse ano, o arcebispo Gastaldi,
pouco amigo do pensamento moral de Santo Afonso, dissolveu o Colégio e dispensou padre Bertagna,
acusado de levar o probabilismo ao laxismo. Retirou-se à sua aldeia natal, sendo nomeado vigário-geral
de Asti e professor de moral no seminário diocesano dessa cidade (1878-1884). Em 1884, depois da
morte do arcebispo Gastaldi (1883), seu sucessor, cardeal Caetano Alimonda, nomeou-o bispo auxiliar
de Turim e reitor do seminário. Bertagna também aceitou a nomeação de professor no reaberto Colé-
gio da Consolata, onde padre Allamano era reitor (1884-1892). Dispensado pelo sucessor do cardeal
Alimonda, arcebispo Davi Riccardi (1892-1897), o bispo Bertagna foi nomeado, mais tarde, vigário-
-geral da diocese de Turim pelo sucessor de Riccardi, o cardeal arcebispo Agostinho Richelmy (1900),
cargo de ocupou até sua morte, em 11 de janeiro de 1905. O seminarista João Bosco conheceu o jovem
Bertagna em Castelnuovo nas férias de verão de 1840 e ensinou-lhe latim. Como seminarista, e mais
tarde jovem padre em Turim, Bertagna ensinou catecismo no Oratório e por dois anos foi professor de
liturgia dos seminaristas salesianos de Valdocco. Assistiu à tomada da batina de Miguel Rua e é citado
inúmeras vezes nas Memórias Biográficas. Ajudou Dom Bosco durante seus problemas com o arcebispo
Gastaldi em meados da década de 1870. Continuou a ser amigo de Dom Bosco por toda a vida e
presidiu o seu funeral. Seu testemunho no processo de beatificação de Dom Bosco foi significativo.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Em 1864, padre Galletti renunciou ao reitorado, retornando à pequena


Casa da Divina Providência. Monsenhor José Zappata, vigário capitular e
regente da diocese, delegou ao padre Félix Gólzio o reitorado da igreja de São
Francisco de Assis e do Colégio Eclesiástico, assim como a administração do
Santuário e da Casa de Retiro de Santo Inácio.46
Em 1871, durante o mandato do padre Gólzio, o Colégio foi transferido
para a igreja e convento da Consolata e ficou conhecido a partir daí como
Colégio da Consolata.47 Foi o arcebispo Riccardi di Netro (1867-1870) quem
negociou com o Conselho Eclesiástico do Estado a troca dos locais em São
Francisco de Assis com os da Consolata, troca vantajosa em muitos aspectos.
Gólzio, continuando como diretor do Colégio, também foi reitor da igreja
da Consolata. Morreu em 1873. Padre Bartolomeu Roetti foi nomeado por
dom Gastaldi para sucedê-lo. Padre Bertagna continuou na cátedra de teolo-
gia moral, ajudado por sucessivos repetidores. Foi a época em que o Colégio
e padre Bertagna caíram sob o julgamento crítico do arcebispo Gastaldi.48
Com a morte de Cafasso, foi afirmado, o Colégio entrou num período de
decadência sob três fracos reitores; eram homens probos, mas não adequados.
O período Gastaldi (1871-1883) é notório por uma série de graves crises
e enfrentamentos, sendo o conflito com Dom Bosco um exemplo conheci-
do. A supressão da cátedra de teologia moral e o encerramento do Colégio
foram ainda mais graves, pois afetaram a vida da Igreja de Turim de modo
46
Félix Gólzio nasceu por volta de 1807. Depois da ordenação, seguiu o padre Cafasso ao
Colégio Eclesiástico entrando ali em 1835. Ao concluir o curso, a pedido do teólogo Guala, perma-
neceu como diretor espiritual, cujas funções principais eram a orientação dos exercícios religiosos e a
instrução litúrgica aos domingos. Reconhecido pela santidade e pelo ensino, embora com saúde frágil,
converteu-se num pilar para os padres Guala e Cafasso e cuidou da comunidade estudantil com total
dedicação. Toda a sua vida de padre, como a de Cafasso, foi passada no Colégio. Após a morte de Ca-
fasso, assumiu a direção espiritual de muitos dos seus penitentes, inclusive Dom Bosco.
47
A igreja de Nossa Senhora, consoladora dos aflitos (conhecida popularmente como Con-
solata), com a milagrosa imagem da Virgem, era uma das igrejas favoritas do povo de Turim. Fora
construída no local de um antigo santuário dedicado a Santo André. Uma comunidade de monges
beneditinos, que fugira dos sarracenos, buscou ali refúgio em 919, e o mosteiro anexo à igreja começou
a sua existência. Os beneditinos permaneceram até 1589, quando foram substituídos por uma comu-
nidade cisterciense, que construiu a atual igreja em 1679. A comunidade foi expulsa por Napoleão e os
Oblatos da Santíssima Virgem de Lanteri ocuparam as dependências e administraram a igreja até 1855,
quando a congregação foi expulsa pela Lei de Supressão de Ratazzi. De 1857 a 1871, o Departamento
Eclesiástico do Estado entregou a Igreja e o mosteiro aos cuidados de uma pequena comunidade de
frades menores. Em 1871, depois da morte do arcebispo Riccardi di Netro, o Colégio Eclesiástico
transferiu-se para a Consolata. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 68, nota 48; MO Silva, 111, nota.
48
Bartolomeu Roetti nasceu em Cavour, a 20 milhas a sudeste de Turim, em 1823, e foi pároco-
-assistente em Bra, antes de ser nomeado reitor da igreja e do Colégio da Consolata por dom Gastaldi, em
1873. Depois da sua demissão em 1880, uniu-se à Pequena Casa da Divina Providência do Cottolengo e
exerceu o cargo de vigário-geral do cardeal Alimonda. Em 1891 foi nomeado Superior Geral da Pequena
Casa. Morreu em 1894. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 167s.

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Dom Bosco: história e carisma 1

significativo. As declarações e decisões do arcebispo dão a entender que o


motivo da controvérsia foi devido ao tipo de teologia moral ensinada e, de
modo especial, a pessoa do padre Bertagna. E brotava do conceito peculiar
de autoridade tida pelo bispo e de suas simpatias teológicas. Na formação
intelectual e espiritual de dom Gastaldi, tiveram influxo o probabiliorismo
moral, uma eclesiologia moderadamente galicana, tal como era ensinada na
Universidade, e o pensamento de Rosmini. A influência rosminiana mostra-
-se claramente na adoção das ideias propugnadas por Rosmini na obra Le
cinque piaghe della Chiesa (As cinco chagas da Igreja). Uma delas tinha a ver
com a centralidade do ministério e autoridade do bispo local, que foi decisiva
no exercício da autoridade episcopal de dom Gastaldi.
Dom Gastaldi tentou chegar a um acordo com o Colégio e, em parti-
cular, com padre Bertagna, que ocupara a cátedra de teologia moral durante
mais de quinze anos. Os partidários de Gastaldi veem sua atuação baseada,
mais do que em objeções ao sistema afonsino, à convicção de que com padre
Bertagna, o ensino da moral teria degenerado numa casuística laxista. Outros
a viam sem sensibilidade moral, sem a grande qualidade educativa demons-
trada pelo padre Cafasso. Há quem, diversamente, sustente que padre Bertag-
na foi discípulo fiel de Cafasso e que a decadência, dele e do Colégio, deveu-
-se a padres rigoristas entre os membros do clero, que não tinham conhecido
nem o Colégio nem os padres que nele se formaram.
Em tal caso, pode-se supor que essas pessoas chamaram a atenção do
arcebispo para o que o próprio Gastaldi já suspeitava em relação ao padre
Bertagna. Os rumores e as acusações de frouxidão que circulavam deviam
ser investigados; o arcebispo deu os primeiros passos: em fevereiro de 1875,
enviou uma carta aos jovens padres estudantes de Teologia Moral Prática, na
qual insistia na autoridade magisterial do bispo. Era prerrogativa e dever do
bispo ensinar e formar seus padres na teologia moral e na prática pastoral;
tinha, por isso, o indiscutível direito de escolher, entre as opiniões que esti-
vessem livres de censura, aquela que ele considerasse mais adequada ao bem
espiritual do seu rebanho.
Segundo essa visão, ele dava instruções numa série de situações da moral
que ocorriam na prática pastoral. O debate punha às claras sua oposição,
não só à interpretação laxista, mas também ao probabilismo afonsino, e a
adesão à linha Alasia-Rosmini que fizera sua. O arcebispo também mante-
ve contato epistolar com padre Bertagna, de quem recebera uma resposta
respeitosa. A carta decisiva, de 20 de novembro de 1875, era dirigida “aos
mui reverendos cônegos, párocos e outros padres com cura de almas”. Nela,
o arcebispo solicitava a opinião do clero diocesano sobre o modo com que

352

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

os “padres jovens” estavam conduzindo as questões morais dentro e fora do


confessionário. Mantinha suas reservas quanto ao ensino da teologia moral
na qual se tinham formado nos últimos quinze ou vinte anos. Uma referência
inequívoca ao reitorado e à atividade docente do padre Bertagna no Colégio.
Houve divisão de opiniões a respeito, mas elevou-se um amplo clamor para
convencer o arcebispo de que a sua atitude fora apropriada.
Em setembro de 1876, padre Bertagna foi afastado de todas as funções
no Colégio. Obedeceu sem protestar e retirou-se tranquilamente a Castel-
nuovo, sua cidade natal. Deu-se ao fato muito pouca publicidade na impren-
sa, mas deixou a igreja de Turim dividida por muitos anos.

Aprofundamento da crise e encerramento


Para surpresa do arcebispo, sua decisão produziu imediatamente um
aprofundamento da crise. A nomeação do padre Ludovico Chicco não foi
acertada. A reação dos estudantes do Colégio acabou quase em motim. O
arcebispo reuniu-se com os estudantes, mas a situação não melhorou. Apa-
rentemente, padre Chicco carecia de suficiente preparação profissional para a
tarefa, mas a questão transcendeu as aulas. Os jovens padres não queriam re-
tornar ao sistema de teologia moral e pastoral que consideravam inadequado.
O arcebispo destituiu o professor ajudante, que era a única pessoa admissível
aos estudantes, fechou o Colégio para o curso 1878-1879 e levou os estudan-
tes para o seminário. Estes protestaram pela atitude e escreveram ao Papa. Pa-
dre Chicco apresentou sua demissão (1879) e também o reitor, padre Roetti
(1880), fez o mesmo, pois ambos também estavam sob suspeição. O arcebis-
po Gastaldi encarregou-se, então das conferências de teologia moral, fazendo
as reuniões em sua residência particular. Reeditou seu compêndio (1879) de
(probabiliorista) Alasia-Stuardi tornando-o obrigatório para todos.49

Padre José Allamano e o novo Colégio


O enfrentamento parecia ter chegado a um beco sem saída. Padre José
Allamano50 foi quem tornou possível o ressurgimento do Colégio, conseguindo

49
Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 177-180. Uma crônica interessante ficou preservada em
ASC A 111ss: “Gastaldi e i Salesiani: Convitto Ecclesiastico”, FDB 647 D9-648 A12.
50
José Allamano nasceu em 1851, em Castelnuovo. Conterrâneo e sobrinho do padre Cafasso,
completou seus estudos secundários com Dom Bosco no Oratório e entrou no seminário de Turim.
Foi ordenado em 1873. Cursou dois anos de teologia moral prática no Colégio Eclesiástico (1873-
1875) com padre Gólzio como reitor e padre Bertagna como professor. Ainda jovem, aos 25 anos,
distinguia-se pela profunda espiritualidade, doutrina e lealdade; foi escolhido por dom Gastaldi como
diretor espiritual e vice-reitor do seminário (1876-1880); foi colaborador de confiança do arcebispo,
sem renunciar à sua liberdade e às suas convicções pessoais. Em 1880, foi nomeado reitor da igreja da

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Dom Bosco: história e carisma 1

que os temores do arcebispo fossem dissipados e, ao mesmo tempo, continuas-


se a tradição de Cafasso.
O Colégio estava no centro das preocupações de Allamano. A partir do
novo cargo, viu a possibilidade de o arcebispo concordar com a reabertura do
Colégio, apresentando o caso a Gastaldi numa carta. Ao final dos Exercícios
Espirituais de julho de 1882, o arcebispo chamou-o e declarou sua vontade
de reabrir o Colégio, com a condição de que ele mesmo se encarregasse da
cátedra de teologia moral. Após as objeções iniciais, seguidas de um período
de discernimento, aceitou.51 O “novo” Colégio começou suas atividades no
outono de 1882, com um novo diretor e professor e um total de 57 padres
estudantes matriculados no programa bianual. A nomeação de Allamano,
muito jovem naquele momento para o cargo, 31 anos, poderia significar que
Gastaldi não tinha ou não se atreveu a nomear alguém que pensasse como
ele. Tuninetti escreve:

[Gastaldi] tinha reservas quanto à tradição do Colégio Eclesiástico, e sua opção


preferencial teria sido a manutenção da teologia piemontesa do tipo expresso
por ele no compêndio de Alasia-Stuardi-Gastaldi [...]. É pouco provável (teria
sido historicamente impossível) que Gastaldi defendesse o retorno à antiga
teologia [rigorista] piemontesa. É, todavia provável que suas simpatias fossem
nessa direção. Pôde acreditar, então, que o seu homem, Allamano, fosse o agen-
te da reforma, não quiçá da reforma que ansiava, mas (como os seis anos de
crise o tinham convencido), da única reforma possível nessas circunstâncias.52

Allamano chegou a ser uma força unificadora e saneadora na arquidioce-


se. Foi também o instrumento que elevou o ensino da moral e da pastoral da
Igreja de Turim. O Colégio da Consolata prosperou sob sua direção e ensino
e continuou a prosperar desde então.

Consolata, que ele converteu em centro de espiritualidade cristã e sacerdotal, assim como de devoção
popular. Quando, em 1882, dom Gastaldi dispensou padre Bertanha e fechou o Colégio Eclesiástico,
padre Allamano foi escolhido para dirigi-lo com nova perspectiva. Allamano fundou o Instituto da
Consolata para as Missões Estrangeiras, em 1901, e as Irmãs Missionárias da Consolata, em 1910. Foi,
sem dúvida, uma das personalidades mais influentes na igreja de Turim, sobretudo durante o governo
do cardeal arcebispo Agostinho Richelmy (1897-1923). Morreu em 1926 e foi beatificado em 1990.
51
O diálogo mantido entre o arcebispo e padre Allamano, na ocasião da entrega oficial de po-
deres anunciava uma nova etapa. Ao aceitar o cargo, diz-se que padre Allamano acrescentou: “Senhor
bispo, aceito a cátedra, mas não utilizarei seu livro de texto”. E o arcebispo teria respondido: “Isso não
importa. Confio no senhor; faça como achar conveniente”. Duvida-se da autenticidade desse fato, não
condizente com o forte caráter de Gastaldi e contrário ao fato de Allamano ter se servido do texto dio-
cesano apresentado por Gastaldi, embora com um comentário adicional próprio. Cf. G. Tuninetti,
Gastaldi II, 182; I. Tubaldo, Allamano I. Torino, 1903, 416-418.
52
G. Tuninetti, Gastaldi II, 183.

354

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Conclusão
Numa passagem das Memórias, Dom Bosco escreve sobre sua experi-
ência no Colégio: “Nos nossos seminários estuda-se somente a dogmática
especulativa; da moral estudam-se apenas as questões disputadas. Nele [o
Colégio Eclesiástico] aprende-se a ser padre”.53 Padre Clemente Marchisio,
que estudou no Colégio nos anos 1856-1858, fala de sua experiência em
termos semelhantes:

Quando me inscrevi no Colégio, eu era apenas um garoto inconsciente, não


tinha nem ideia do que significasse realmente ser padre. Saí do Colégio uma
pessoa mudada, alguém que percebera a grandeza do sacerdócio. Essa mu-
dança em mim era o resultado, não tanto do bom assessoramento do padre
Cafasso em determinada ocasiões, mas da orientação que sempre se dava a
todos no Colégio.54

Padre Marchisio valoriza em seu conjunto toda a sua formação sacerdo-


tal no Colégio, por sua experiência como padre rural. Preparava a estrita, em-
bora pastoralmente benigna formação à escola de Cafasso com sua linguagem
e seu idealismo para servir às pessoas que lutavam com o problema básico de
ganhar a vida, que não estavam acostumadas às elevadas exigências morais e
que, em grande parte, praticavam uma vida cristã que não merecia nem lou-
vor nem culpa? Cafasso oferecia uma espiritualidade estruturada na tensão
ascética, alimentada por um intenso fervor e certamente rica em santidade,
mas também uma espiritualidade que, talvez, tendesse a isolar o padre.55

3. Dom Bosco no Colégio Eclesiástico


Descrita com certa amplidão, a história e organização do Colégio Ecle-
siástico como instituição educativa de padres, pode-se entender melhor, em
seus pontos essenciais, a formação sacerdotal de Dom Bosco.

53
MO, 117.
54
“Don Clemente Marchisio [1833-1903]: un profilo storico” [2ª ed. (Turim, 1986), 1819],
Sussidi 2, 77. Clemente Marchisio nasceu em 1833. Após a ordenação em 1856, matriculou-se no Co-
légio sob a direção do padre Cafasso. Posteriormente, desempenhou o cargo de ajudante em paróquias
rurais antes de ser nomeado pelo arcebispo Gastaldi pároco de Rivalba, perto de Turim. Levando a sério
a difícil situação das jovens mulheres que procuravam a cidade em busca de emprego, fundou em 1875
a Congregação das Filhas de São José para o ministério e o apostolado litúrgico. Morreu em 1903 e foi
beatificado pelo Papa João Paulo II em 1985.
55
Cf. G. Tuninetti, “Marchisio” [25-26], Sussidi 2, 78-79.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Dom Bosco entrou no Colégio em 3 de novembro de 1841, para iniciar


o ano acadêmico, que durava oito meses. Seguia-se um período de quatro
meses de férias; os alunos eram incentivados a permanecer ali durante as fé-
rias inteiras ou uma parte delas.
Como Dom Bosco satisfez suas obrigações econômicas relativas à pen-
são e à matrícula? As taxas chegavam a 30 liras mensais, 240 liras pelos oito
meses do ano acadêmico. Sua família podia contribuir com pouco ou nada;
suas economias pessoais deviam ser muito escassas. Conforme o regulamen-
to, Dom Bosco tinha um registro de intenções de missa e espórtulas. Sabe-
mos por esse livro, conservado no Arquivo Central Salesiano, que ele tinha
intenções e espórtulas na maioria de suas missas diárias.56 Foi-lhe também
concedida isenção parcial dos pagamentos pelos três anos passados no institu-
to nos seguintes valores: em 1841-1842, 72 liras (ficaram a pagar 168 liras);
em 1842-1843, 96 liras (144 liras a pagar); em 1843-1844, 173 liras (67 liras
a pagar). Não se sabe como Dom Bosco conseguia a diferença. As espórtulas
de missa ajudavam, e havia também para apoiá-lo os padres Guala e Cafasso,
que já o tinham feito durante o seminário.
Dom Bosco completou o programa regular dos cursos nos anos 1841-
1842, 1842-1843 e, em seguida, a conselho de padre Cafasso, permaneceu
para o terceiro ano (1843-1844); nesse ano, também atuou como tutor sob
a orientação do padre Cafasso. Isso nos dá uma ideia aproximada do quadro
geral, pois os três capítulos dedicados nas Memórias a esse período são, em sua
maior parte, dedicados à descrição dos inícios do Oratório.57

1841-1842
Durante o primeiro ano, 1841-1842, Dom Bosco seguiu o programa
regular. Assistia às aulas de teologia moral do padre Cafasso pela manhã e
às aulas públicas do teólogo Guala à tarde ou à noite. Sob a orientação de-
les, sobretudo de Cafasso, começou logo a participar de diversas atividades
pastorais que favoreceram a “descoberta” dos jovens em situação de risco e
a vontade de ajudá-los de alguma maneira. Aludindo a isso nas Memórias,
Dom Bosco escreve: “O padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi também
meu diretor espiritual [...]. Começou primeiro por levar-me às prisões”. Co-
movido à vista da degradação dos jovens nas prisões da cidade, Dom Bosco
cogitou um projeto “com seu conselho e com suas luzes”.58
56
Cf. ASC A220ss: Taccuini-Libro delle Messe, FDB 750 E5ss. Apresenta-se nele uma lista de
intenções de missa e suas respectivas espórtulas. A média das espórtulas chegava a 90 centavos de lira.
57
Na Nota histórica de 1854, escrita vinte anos antes das Memórias, dá-se uma descrição diferen-
te dos inícios do Oratório.
58
MO, 120-121.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Tão logo matriculado no Colégio, viu-se cercado por um bando de me-


ninos “que me acompanhavam em ruas e praças, até mesmo na sacristia da
igreja do instituto”, continua. Entretanto, não tinha um lugar para reuni-los.
E acrescenta: “Um feliz encontro proporcionou-me a oportunidade de tentar
a concretização do projeto em favor dos meninos que erravam pelas ruas da
cidade, sobretudo dos que deixavam as prisões”.59
O “feliz encontro” refere-se àquele com o jovem Bartolomeu Garelli,
que vagava pela sacristia da igreja no dia 8 de dezembro de 1841, enquanto
Dom Bosco se preparava para a Missa. Bartolomeu suscitou a ira do sacris-
tão, porque não sabia servir à Missa; Dom Bosco foi em seu auxílio e, de-
pois da Missa, fez-lhe a primeira catequese. O fato termina com as palavras:
“A esse primeiro aluno juntaram-se outros mais”, e acrescenta: “Limitei-me
a alguns adultos que tinham necessidade de catequese especial, sobretudo
aos que saíam da cadeia [...]. Essa é a origem do nosso Oratório”.60
Dom Bosco, num importante capítulo das Memórias, redesenha a ca-
minhada inicial do Oratório e a forma como se desenvolveu no primeiro
inverno. Em 2 de fevereiro de 1842, festa da Purificação, a assistência chegara
a 20 jovens e, em 15 de março, festa da Anunciação, a 30. Segundo a Nota
histórica de 1854, o grupo chegara a 50 jovens. Dom Bosco nomeia alguns
dos jovens, com os quais havia combinado para dar estabilidade ao grupo, e
insiste na ajuda e no incentivo recebido dos padres Guala e Cafasso.

1842-1843
Após os Exercícios Espirituais e o fim do ano escolar em junho de 1842,
Dom Bosco dedicou-se a cuidar do “seu Oratório”.61 Pode-se aceitar que o ano
1842-1843, segundo do programa habitual, foi passado por ele em grande
parte fazendo o que fez no primeiro.
59
MO, 122.
60
MO, 125. Os inícios do Oratório de Dom Bosco com o episódio de Garelli será comentado
mais adiante. No momento, porém, deve-se assinalar que a instrução catequética dos meninos que pe-
rambulavam pelas ruas, costume que Dom Bosco aprendeu do padre Cafasso, segundo a Nota histórica
de 1854, não é mencionada especificamente nas Memórias. Era, parece, um ministério comum, patro-
cinado pelo padre Cafasso em São Francisco de Assis. Talvez esse ministério estivesse em baixa quando
Dom Bosco se encarregou dele, pouco depois da sua entrada no Colégio. O pequeno, mas crescente
grupo de jovens que se reuniu ao redor de Dom Bosco nos três anos de sua permanência converteu-se,
gradualmente, no seu Oratório, pois os jovens o acompanharam em outubro de 1844 quando deixou
o Colégio pela instituição Barolo. Supõe-se, contudo, que tenha continuado o ministério catequético
em São Francisco de Assis, mesmo depois de deixar o Colégio.
61
Que ele acompanhou durante as férias, o que se pode deduzir do que escreve em MO, 126.
As férias que tivera foram passadas com sua família nos Becchi. José Bosco e Mamãe Margarida haviam
mudado do sítio Matta, de Sussambrino, em 1839, e retornaram aos Becchi, onde José começou em
seguida a construir uma casa.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Segundo as Memórias Biográficas, mediante uma carta de 30 de novem-


bro de 1842, o arcebispo Fransoni indicou Dom Bosco para ajudar na paró-
quia de Cinzano, a pedido do velho padre Comollo.62 Para tanto, Dom Bosco
fez os exames necessários com os padres Guala e Cafasso, obtendo a faculdade
de ouvir confissões, portanto, um ano antes do usual. Provavelmente, foi
apenas uma faculdade temporária, pois Dom Bosco afirmava ter obtido suas
licenças regularmente depois do segundo ano.63

1843-1844
Durante o ano 1843-1844, Dom Bosco, além de atender às novas fun-
ções de tutor e o Oratório aos domingos, esteve profundamente empenhado
com o ministério da pregação e das confissões:
Era para mim consolador ver meu confessionário, durante a semana e no-
meadamente nos domingos, rodeado de 40 ou 50 rapazes, esperando horas e
horas que chegasse a vez de se confessarem.64

Dom Bosco completara o curso de teologia moral e pastoral, ficando um


ano a mais a trabalhar no Colégio, caso previsto nos Regulamentos. Devia,
então, decidir-se sobre algum tipo concreto de ministério. A esta altura, e
referindo-se à próxima decisão vocacional, Dom Bosco revela nas Memórias
uma premonição sobre as tribulações que o esperavam. Passa a descrever,
imediatamente, seu discernimento vocacional guiado pelos padres Guala e
Cafasso. Numa emotiva confissão, expressa o desejo, a necessidade, de estar
com os jovens: “Minha propensão é para cuidar da juventude [...]. Neste mo-
mento parece-me estar no meio de uma multidão de jovens que me pedem
ajuda”. Padre Cafasso resolveu a questão, procurando-lhe um trabalho como
capelão do Pequeno Hospital da marquesa Barolo, ainda em construção, e
como associado ao teólogo Borel no Refúgio Barolo ou Casa de Nossa Senho-
ra, Refúgio dos pecadores: “Faça a trouxa e vá com o teólogo Borel; lá será di-
retor do Pequeno Hospital de Santa Filomena; trabalhará também na obra do
Refúgio. Entretanto, Deus lhe mostrará o que deve fazer pela juventude”.65
Dom Bosco apresenta dessa forma a realização do discernimento vocacional.
Lemoyne, porém, fala de uma “nova crise”. Dom Bosco voltou à ideia de
entrar numa congregação religiosa, desta vez nos Oblatos de Maria Virgem,
tendo em mira as missões estrangeiras. As Memórias Biográficas informam com

62
MB II, 127.
63
MO, 129.
64
MO, 129-130.
65
MO, 131-132.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

detalhes sobre esse episódio. Padre Cafasso dissuadiu-o em várias ocasiões,


sem, porém a firmeza que seria de se esperar. Em junho de 1844, aconselhou
Dom Bosco a fazer um retiro espiritual, que pregado por ele pela primeira vez
na Casa de Exercícios de Santo Inácio, seria de ajuda para discernir sobre a
vocação. Depois do retiro, Dom Bosco comunicou ao padre Cafasso que faria
as malas e deixaria o Colégio para fazer-se religioso. Cita-se a resposta do padre
Cafasso: “Meu caro Dom Bosco, abandona qualquer ideia de vocação religiosa
[...], continua o teu trabalho em favor dos jovens. Esta é a vontade de Deus,
e não outra!”.66
As razões dessa persistente incerteza não são totalmente claras. Durante
sua permanência no Colégio Eclesiástico descobrira os jovens em situação
de risco, “pobres e abandonados”, e iniciara o seu Oratório. Contudo, talvez
nesse momento, Dom Bosco ainda não conseguira chegar à “clareza” voca-
cional.67 Sua “intenção” de entrar entre os Oblatos da Maria Virgem em vista
das missões, embora não seja registrada nas Memórias, encontra confirmação
em declarações anotadas na crônica de Barberis. Dom Bosco, também aqui,
fala que considerou entrar no Instituto da Caridade de Rosmini, embora isso
se remeta a um momento posterior, talvez nos primeiros anos de 1850, o
mesmo ano do “projeto” que menciona.68
Dom Bosco deixou o Colégio Eclesiástico na semana entre domingo, 13
de outubro, festa da Maternidade de Maria, e domingo, 20 de outubro, festa
da Purificação. A mudança para o lar de meninas e o trabalho regular parecia
tornar inevitável a dissolução do Oratório. O padre Borel propôs uma saída,
mas os temores de Dom Bosco com a continuidade desse ministério não

66
MB II, 207. Lemoyne relata o sonho de remendar roupa em ligação com isso e a “profunda
convicção de Cafasso” quanto à verdadeira vocação de Dom Bosco.
67
Lemoyne (aparentemente sem perceber o problema) reproduz, inclusive, a citação de Dom
Bosco: “É verdade; mas se o Senhor me chamasse ao estado religioso, ele proveria para que outro pen-
sasse nos jovens” [MB II, 207].
68
Barberis informa sobre a conversa de Dom Bosco com alguns salesianos (incluído o próprio
Barberis) na noite de 1º de janeiro de 1876: “É verdade, reverendo Dom Bosco, que passou alguns dias
como noviço entre os dominicanos?”. “Não [não com os dominicanos], mas eu tinha pensado entrar
entre os oblatos, aqui em Turim, ou os rosminianos [...]. Contudo, ao observar o seu espírito, decidi
que não. Quanto a mim, creio que poderia ter vivido em perfeita harmonia debaixo da obediência de
qualquer comunidade religiosa. De fato, eu teria sido feliz por fazê-lo. Mas eu já tinha criado um proje-
to bem pensado, que não podia nem devia abandonar. Explorei a possibilidade de executar esse projeto
numa congregação que já existisse, mas percebi que não se podia fazê-lo. Por conseguinte, não me uni
a nenhuma congregação; mas decidi eu mesmo reunir um grupo de irmãos que estivessem ao meu lado,
de modo que lhes pudesse comunicar o espírito que sentia tão profundamente [...]. Porque eu tinha
uma compreensão clara do caminho a seguir e dos meios a utilizar para conseguir o meu propósito” [G.
Barberis, Cronica autografa, Caderno III, 55, sábado à tarde de 1876; FDB 835 E6].

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Dom Bosco: história e carisma 1

foram facilmente dissipados. Foi nessa situação de angústia que Dom Bosco
teve novamente um sonho vocacional, na noite de 12 para 13 de outubro, o
sonho de 1844, “um apêndice” do sonho dos Becchi.69

A experiência de Dom Bosco com padre Cafasso


como mestre e diretor espiritual
Se o Colégio Eclesiástico contribuiu decisivamente na formação sacer-
dotal de Dom Bosco, a experiência sob a orientação do padre Cafasso foi
nova e relevante. Teve, de fato, o caráter de uma segunda conversão; muitos e
importantes foram os seus componentes, dos quais aqui se apresentam alguns.
Primeiramente, Dom Bosco encontrou em Cafasso o pai bom e o guia
seguro de que precisava para chegar à maturidade humana. Todas as feridas
e confusões que pudesse arrastar desde a infância, adolescência e juventude
foram enfim curadas; ele conseguiu paz de espírito, direção e liberdade.
Em segundo lugar, no Colégio, com padre Cafasso, Dom Bosco con-
seguiu “maturidade teológica”, no sentido de ter encontrado os meios de
corrigir a carência teológica da educação do seminário, e integrá-la no pleno
âmbito do ministério prático sacerdotal.
Sob a orientação de Cafasso, Dom Bosco alcançou também a maturi-
dade vocacional, aprendendo através de diversos ministérios sacerdotais que
o levaram à descoberta de uma determinada categoria de jovens aos quais se
sentia pessoalmente chamado. E, o que é mais importante, com a direção do
padre Cafasso, ele fez a opção definitiva pelos jovens.
Enfim, com Cafasso, Dom Bosco viveu a primeira experiência de uma
verdadeira e contínua direção espiritual, alcançou a maturidade espiritual,
ingressou no caminho da vida espiritual com espírito renovado. Apesar
de reminiscências persistentes, foi capaz de superar o tipo de espirituali-
dade centrado nas práticas ascéticas e na devoção ou no temor, e aceitar
uma espiritualidade baseada no amor de Deus e na caridade pastoral pelo
próximo, uma espiritualidade “salesiana”. Assentaram-se, assim, as bases
dessa espiritualidade distintiva que o Fundador incorporaria mais tarde
nas Constituições e deixaria em legado aos seus filhos espirituais.

Formação política e eclesiológica conservadora


Em outro aspecto importante, os posicionamentos políticos e eclesiológi-
cos conservadores do Colégio moldaram as convicções pessoais de Dom Bosco.
69
A incerteza de Dom Bosco quanto ao Oratório e o sonho coincidente de 1844 serão comen-
tados em capítulos posteriores.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Deve-se considerar que ele recebeu toda a formação nos tempos da Restauração
(1815-1848), ou seja, depois das experiências negativas da Revolução Fran-
cesa e da época napoleônica (1789-1815). As recentes experiências tornavam
inevitável perceber como perverso, ou ao menos como suspeitoso, qualquer
movimento revolucionário que tendesse a alterar a ordem política e social. Essa
avaliação negativa encontrava expressão nos documentos da Igreja, na pregação
e na imprensa católica.
A atitude negativa em relação à nova ordem política e social emanava
também de pressupostos filosóficos e teológicos sobre a origem divina do
regime pré-revolucionário, isto é, a teoria do direito divino dos reis e o prin-
cípio da legitimidade. Era generalizada a convicção de que os princípios de
liberdade e igualdade da Revolução Francesa não só advogavam pela remoção
de uma ordem divinamente estabelecida, mas que eram também responsá-
veis pelos excessos da Revolução e da ditadura de Napoleão. Para muitos, os
termos revolução, democracia, constituição, parlamento, república etc. signi-
ficavam a intenção de remover a ordem divina constituída.
A rejeição da Revolução era, também, rejeição do princípio básico do
Iluminismo; este afirmava que a razão humana, por si só, pode chegar à Ver-
dade e ao Bem. A Igreja, por sua vez, sempre considerara que a revelação di-
vina, componente da religião católica, era elemento central no ordenamento
e na preservação da sociedade, que, por sua vez, levara à aliança entre o Altar
e o Trono. A Igreja apoiava a monarquia porque a autoridade do rei só era
considerada limitada pela lei divina. E o rei, nomeado por desígnio divino,
agente da ordem na sociedade, tinha o dever de defender a Igreja e reprimir
a Revolução.
Os movimentos revolucionários e as conspirações no Piemonte-Sarde-
nha, muito mal planejados em sua maioria, mas profundamente mal-inten-
cionados, contribuíram para o enrijecimento da postura conservadora da
Igreja e a criação de um estado policial. Podem-se citar, como exemplo, as
conjuras estimuladas por Mazzini e seus seguidores durante o reinado de
Carlos Alberto, na década de 1830. Apesar de não serem percebidas nesse
momento, essas posturas reacionárias ofuscaram os espíritos católicos diante
de alguns valores cristãos, como a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a
justiça etc. Em 1832, a encíclica Mirari Vos, de Gregório XVI, condenou
“as novas liberdades”, incluindo a liberdade de consciência nos assuntos nos
quais se igualavam “erro” e “verdade”.
Os conservadores católicos, que continuaram a apoiar a ordem política e
social pré-revolucionária (Antigo Regime), tiveram vida nova no período poste-
rior à restauração napoleônica. Opunham-se à mudança revolucionária e, como

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Dom Bosco: história e carisma 1

consequência, não apoiaram o movimento para a unificação da Itália (Ressur-


gimento) porque destronaria os legítimos governantes dos Estados da região,
sendo o Papa um deles. Em teologia, recusavam a teoria da predestinação e o
jansenismo; em eclesiologia, opunham-se a qualquer forma de conciliarismo e
galicanismo. Defendiam a todo custo o primado, a infalibilidade e o poder tem-
poral do Papa, ou seja, “defendiam a Igreja”; era o ultramontanismo.
O Colégio Eclesiástico e seus alunos, entre os quais Dom Bosco “con-
cluiu” sua educação e formação sacerdotal, foram os principais exemplos de
posicionamento conservador, ultramontano na Igreja de Turim.
A filosofia política ultramontana, porém, não mantinha apenas o clero
numa certa tradição; deve-se incluir também um número considerável de
leigos católicos, especialmente da nobreza e da classe média, parte ativa deles
agrupada nas Associações de Amizade. Mais tarde, entre esses leigos conser-
vadores e prudentes, Dom Bosco e sua obra de caridade encontrarão o mais
firme apoio na Itália, França e Espanha.
Os liberais católicos, que também havia entre clérigos e leigos, eram
uma pequena minoria intelectual. Ao mesmo tempo em que condenavam os
excessos da Revolução Francesa e o despotismo de Napoleão, reconheciam
os valores cristãos básicos da Revolução; acreditavam numa nova política e
ordem social cristã. Em teologia e eclesiologia, opunham-se em graus di-
versos ao jansenismo e ao galicanismo, e defendiam o primado papal e sua
centralidade, embora não necessariamente a infalibilidade pessoal ou o poder
temporal do Papa. Não obstante, distanciaram-se dos jesuítas nas posições
afonsinas de teologia moral e pastoral.
Em relação ao Ressurgimento italiano e à unificação da Itália, os li-
berais católicos eram “patriotas”, pensavam que a Itália devia ser libertada
do domínio dos austríacos e dos Bourbon, e conquistar a unidade. Pela
mesma razão, acreditavam no fim do poder temporal do Papa em sua
forma tradicional. Opunham-se, obviamente, à criação de uma república
democrática, que Mazzini e Garibaldi defendiam. Nos inícios, apoiaram
a ideia de uma federação de Estados regionais italianos sob a presidência
do Papa (teoria neoguelfa).70 Mais tarde, quando a Casa de Saboia liderou
o Ressurgimento, apoiaram a monarquia constitucional, apesar de a to-
mada dos Estados Pontifícios (1860 e 1870) acabar por aprofundar a crise
de sua consciência católica.

Nas lutas medievais entre o Papa e o Império Germânico, os gibelinos eram partidários do im-
70

perador; os guelfos, do Papa. No Ressurgimento italiano do século XIX, os que defendiam a federação
de Estados regionais italianos, presidida pelo Papa, eram conhecidos como neoguelfos.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

O escritor e poeta Alexandre Manzoni, o músico Giuseppe Verdi e o


pensador Antônio Rosmini colocavam-se entre os liberais católicos.71 Estes e
alguns outros não puderam evitar a oposição dos jesuítas nem a censura do
Papa. Dom Bosco, outros padres do Colégio e o próprio arcebispo Fransoni
foram sempre firmemente ultramontanos. Dom Bosco nunca foi um “patrio-
ta” italiano; de fato, entrou em conflito com os padres patriotas do Oratório
nos tempos da Revolução Liberal no Piemonte.

71
Dom Bosco conheceu pessoal ou indiretamente essas personalidades importantes. Manteve
relações de amizade com Rosmini, embora não conhecesse a filosofia e (talvez) nem os demais escritos
do grande homem. Apesar de admirá-lo pela santidade e doutrina, Dom Bosco uniu-se à autoridade da
Igreja, quando “condenou” a filosofia de Rosmini e suas ideias sobre a reforma da Igreja como proposta
em seu livro, Le cinque piaghe della Chiesa [...] (As cinco chagas da Igreja […]). Ele também rejeitou
o romance de Manzoni, I promessi sposi (Os noivos), que apontava a opressão do povo comum pelos
poderosos, embora muito provavelmente Dom Bosco tenha se oposto à obra devido ao tema (a história
gira ao redor do sequestro de Lúcia, noiva de Renzo, pelo senhor local) e porque deixava em muito má
posição alguns padres, como o padre Abôndio [Nota dos editores]. Na primeira edição da História da
Itália, Dom Bosco teve palavras de elogio ao padre filósofo Vicente Gioberti e à sua posição neoguelfa.
Numa edição mais tardia, mudou de parecer. Opunha-se a Gioberti não só pelos seus pontos de vista
liberais e suas diatribes antijesuitistas (Il gesuita moderno), mas também porque Gioberti foi considera-
do pelas autoridades da Igreja como um sacerdote infiel (MB II, 142-143).

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Apêndice

NOTAS BIOGRÁFICAS DE SÃO JOSÉ CAFASSO (1811-1860)

José Cafasso nasceu em Castelnuovo d’Asti (hoje Castelnuovo Dom


Bosco), Piemonte, em 15 de janeiro de 1811, terceiro de quatro filhos de
João Cafasso e Úrsula Beltramo. Foi batizado no dia seguinte na igreja paro-
quial de Santo André. A família, de origem camponesa, tinha vida tranqui-
la. Seus pais eram exemplares; sua mãe era muito religiosa. José mostrava-se
obediente, devoto na oração, fiel ao catecismo, caritativo para com os pobres,
voluntarioso e brilhante nas aulas do padre João Batista Musso.72
Depois de completar dois anos da escola elementar, estudou latim du-
rante três anos com padre Nicolau Moglia; eram estudos particulares, pois
não havia escola secundária em Castelnuovo. Foi então que José começou
a pensar em sua vocação sacerdotal. Sua piedade valeu-lhe o apelido de “pe-
queno santo”; o domínio dos estudos deu-lhe ascendência moral sobre os
companheiros da sua idade, e também dos mais velhos, aos quais costumava
reunir para catequese e entretenimento.
Ele era pequeno de estatura e muito frágil. Desde muito jovem desenvol-
veu-se nele uma ligeira elevação do ombro direito, por causa de uma deformi-
dade na coluna vertebral, ocasionada, talvez, por raquitismo. De aí seu peculiar
modo de ser, um pouco disforme e de ombro caído, que é uma das suas carac-
terísticas físicas típicas, o que, às vezes, lhe tenha causado alguns problemas pe-
rante os outros. Foi admitido à primeira comunhão quase aos 13 anos, mas só
depois de uma “prova”, segundo a prática rigorista. Recebeu a confirmação em
Moncucco pelas mãos de dom Alexandre d’Angennes, bispo de Alessândria.
Começou a ir à escola pública (Colégio Real), em Chieri, no ano 1823-
1824, como outros meninos de Castelnuovo, entre eles, João Allamano, seu
amigo por toda a vida. Alojou-se na casa do alfaiate Tomás Cumino nos três

72
João Batista Musso, um dos párocos associados da igreja paroquial de Castelnuovo, que também
era professor da escola elementar.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

anos restantes de estudos secundários.73 No início era ridicularizado por com-


panheiros levianos, mas acabou por conquistá-los por sua ascendência moral,
bondade e diligência no estudo.
Cafasso e Allamano completaram o ciclo de estudos na escola pública
em 1826, em Chieri. Sem nenhuma dúvida quanto à vocação, pediram para
ser admitidos no seminário de Turim, pois em Chieri ainda não havia se-
minário. Como lhes foi negada a entrada por falta de vaga, continuaram na
escola pública de Chieri, onde o padre dominicano Eusébio Sibilla iniciara
aulas de filosofia, completando o curso nos anos 1826-1828. Em 1º de julho
de 1827, depois do primeiro ano de filosofia, receberam o hábito clerical em
Castelnuovo das mãos do padre Manuel Virano, que era o administrador de-
pois da morte do pároco José Sismondo. Durante o segundo ano de filosofia,
em Chieri, José Cafasso envolveu-se profundamente nos serviços religiosos
e na instrução catequética na igreja paroquial; por isso, às vezes, chegava
atrasado à reunião de estudo nos domingos, o que lhe rendeu a negativa ao
admittatur (certificado para iniciar o seminário) depois do primeiro bimestre,
obrigando a intervenção do arcebispo Chiaveroti a seu favor.
Após os dois anos de filosofia, a situação no seminário continuou sem
alterações; Cafasso e Allamano voltaram para Castelnuovo e começaram os
estudos de teologia sob a supervisão do novo pároco, padre Bartolomeu Das-
sano. Fizeram com ele o primeiro e segundo ano de teologia (1827-1829)
como seminaristas não residentes. Entretanto, em novembro de 1829, o
arcebispo Chiaveroti abrira o seminário de Chieri;74 Cafasso e Allamano
transferiram-se para lá a fim de cursar o terceiro, o quarto e o quinto ano de
teologia (1830-1833). Provavelmente foi no verão de 1830 que João Bosco
se encontrou pela primeira vez com o seminarista Cafasso diante da capela de
São Pedro, de Murialdo, por ocasião de uma festa local.
Por sugestão do padre Dassano, dom Chiaveroti concedeu a José Cafas-
so um benefício vacante em Castelnuovo, que lhe permitiu garantir os gastos
do seminário.75 Sempre fragilizado na saúde, José Cafasso “só se destacava
no estudo e na virtude”. Vivia segundo os princípios de que “a santidade
não consiste em fazer coisas extraordinárias, mas fazer as coisas ordinárias
com perfeição extraordinária” e que “nunca se deve pedir nada nem recu-
sar nada”. Em 18 de setembro de 1830, Cafasso e Allamano receberam a
tonsura e as ordens menores em Turim por dom Icheri di Malabaila, bispo
73
João Bosco também se alojou com o alfaiate Cumino durante algum tempo no último ano de
estudos da escola secundária.
74
Sobre o Seminário, ver apêndice do capítulo XI.
75
A. Giraudo, Clero, 187-188.

365

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Dom Bosco: história e carisma 1

de Casale. Na Páscoa de 1832, foram ordenados subdiáconos pelo recém-


-nomeado arcebispo Luís Fransoni, e diáconos no ano seguinte. Foram or-
denados padres no sábado das têmporas de outono, em 21 de setembro de
1833. No dia seguinte, padre Cafasso celebrou sua primeira Missa solene
em Castelnuovo. Fora ordenado, com dispensa, quinze meses antes da idade
canônica de 23 anos.
Em novembro de 1833, os neossacerdotes Allamano e Cafasso transfe-
riram-se para Turim para continuarem o estudo de teologia moral, obter as
faculdades para ouvir confissões e, em geral, preparar-se para o ministério. As
aulas de moral eram dadas “oficialmente” na Universidade e no seminário;
os dois amigos começaram a assistir às aulas de teologia moral ministradas
no seminário pelo cônego Henrique Fantolini; ambos, porém, sentiram-se
incomodados com seu método e suas posições rigoristas; passaram às au-
las do cônego João Santiago Bricco della Trinità, na Universidade, e ficaram
igualmente decepcionados. Cientes de que o teólogo Luís Guala ministrava
“conferências” de moral no Colégio Eclesiástico, assistiram a uma conferência
e ficaram tão impressionados que decidiram pedir para entrar no Colégio.
Depois de colher informações sobre eles, o teólogo Guala aceitou-os.
Cafasso foi quase imediatamente posto à frente da equipe que ministra-
va a instrução catequética nas prisões durante a quaresma. O ministério nas
prisões para a instrução religiosa e a atenção espiritual aos presos seria seu
trabalho preferido durante muitos anos. Em 27 de junho de 1836, ele foi
aprovado nos exames e “graduou-se” no Colégio. Sua família esperava que o
levassem em consideração para alguma nomeação honrosa e lucrativa; padre
Guala, porém, com o apoio unânime de sua equipe, pediu-lhe para permane-
cer como seu assistente; e ele aceitou.
Padre Cafasso fez conferências como assistente do teólogo Guala desde
1836 até inícios do ano acadêmico de 1843-1844. Esse foi o terceiro e último
ano de Dom Bosco no Colégio Eclesiástico. Quando a sempre delicada saúde
do padre Guala piorou, padre Cafasso assumiu as aulas da tarde e da manhã,
enquanto padre Guala continuou com o cargo de reitor, embora fosse entre-
gando aos poucos essa responsabilidade. À sua morte, em 6 de dezembro de
1848, padre Cafasso sucedeu a padre Guala como reitor. Assim, ficou assegu-
rada uma transição sem problemas. Padre Cafasso desempenhou o cargo de
professor e reitor até sua morte, em 1860.
Nos anos 1844-1848, enquanto Cafasso assumia gradualmente o Colé-
gio, Dom Bosco, que trabalhava como capelão nas instituições da marquesa
Barolo, fundou o Oratório de São Francisco de Sales. O apoio de Cafasso foi
indispensável e nunca lhe veio a faltar. Eram os anos anteriores à Revolução

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Liberal no Piemonte, anos que precederam a transformação social e política


que se encerraria com a unificação da Itália (1861). Em tempos de agitação
política e religiosa, o Colégio Eclesiástico, sob a direção do padre Cafasso,
floresceu como nunca; ele foi capaz de dar apoio moral e material, além de
direção espiritual, aos padres que, como Dom Bosco, foram encarregados de
novos ministérios sacerdotais.
A competência, santidade e liderança de Cafasso eram universalmente
reconhecidas. Como reitor, rejuvenesceu o Colégio com a reforma e amplia-
ção do programa, dando solidez à vida e à disciplina comunitária. Sua presen-
ça como “pai” e o acompanhamento dos estudantes criaram uma comunida-
de de vida, que chegou a ser conhecida como o espírito do Colégio.
O reitor do Colégio também era reitor da igreja anexa de São Fran-
cisco de Assis, conhecida nos tempos de Cafasso como a igreja da recepção
frequente dos sacramentos e da boa pregação. O compromisso pessoal do
padre Cafasso em relação ao confessionário era proverbial. Sua popularidade
como confessor baseava-se em três qualidades universalmente reconhecidas:
sabedoria, leitura dos corações e eficácia da palavra. Sua pregação era simples
e direta, tanto no estilo quanto no conteúdo. Enfatizava os princípios básicos
da vida cristã, o amor de Deus, a graça, o pecado, o arrependimento e a con-
versão, os sacramentos, Maria e os novíssimos.76
Como titular da cátedra de teologia moral na tradição de Santo Afonso,
padre Cafasso defendia o novo estilo na prática pastoral com enfoque mo-
derado. Manteve-se alheio, porém, à controvérsia, tendo sempre o bem das
almas como máxima prioridade. Às ideias rigoristas sobre a salvação pessoal,
que tinham atribulado Dom Bosco no seminário, ele contrapunha a “certeza
do amor de Deus”. Aos que talvez objetassem, Dom Bosco entre eles, que “era
pequeno o número dos eleitos” e “estreito o caminho da salvação”, Cafasso
respondia que o amor de Deus está sempre disponível àqueles que depositam
n’Ele a sua confiança, e que Deus nada mais deseja senão a nossa salvação.
Aderiu à doutrina afonsina por causa da hostilidade dos que assistiam às aulas
quer na Universidade quer no seminário e dos acerbos ataques da elite liberal.
Padre Cafasso professava o credo ultramontano sem qualquer desvio; sua
postura pública foi a de conservador católico “apolítico”. Aderiu ao princípio
que orientara padre Guala: quem desejar ficar do lado do Senhor deve ficar com

76
São Francisco de Assis, em Turim, é chamada de “igreja dos artistas”, porque, entre muitas as-
sociações que nela se enraizaram, era muito famosa a Confraria dos Artistas. Estes, de fato, possuíram a
igreja durante algum tempo e tinham-na dotado com generosidade. A inteligência do padre Cafasso para
“moderar” esta e outras associações conquistaram-lhe respeito e colaboração generosa. O quadro original
do padre Cafasso é do pintor Eugênio Reffo, que, ainda jovem, frequentava a igreja e admirava o santo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

o Papa e com as autoridades da Igreja; a política do padre deve ser uma política
que leve à salvação das almas. O distrito eleitoral de Castelnuovo propôs o padre
Cafasso como seu representante na Câmara Baixa do Parlamento Piemontês,
proposta que ele recusou afirmando que o Senhor lhe pediria contas, não como
representante, mas como padre. Acreditava que um bom católico, muito mais se
for padre, demonstra verdadeiro amor ao seu país com as obras de caridade, não
com a atividade política. Vê-se aqui a mesma postura de Dom Bosco.
Após a primeira guerra de independência contra a Áustria em 1848-
1849, ele colocou um setor do Colégio à disposição do governo, como hos-
pital para atender os feridos, dirigido pelos próprios padres estudantes. Um
projeto de lei apresentado no Parlamento para dissolver o Colégio Eclesiásti-
co foi recusado porque ele “só fazia teologia” (não política).
Sobre as atividades caritativas dos padres do Colégio, Guala, Cafasso e
Gólzio, Dom Bosco escreve nas Memórias: “Prisões, hospitais, púlpitos, insti-
tutos de beneficência, doentes em suas casas [...] experimentaram os salutares
efeitos do zelo desses três luminares do clero de Turim”.77 A caridade do padre
Cafasso não conhecia limites.

Em favor dos jovens “pobres e abandonados”


Cafasso empregou muito tempo, energia e dinheiro em apostolados que
atendiam às necessidades urgentes. Tão logo entrou no Colégio, começou a
participar ativamente no programa de instrução catequética estabelecido na
igreja de São Francisco de Assis, que depois seria assumido por Dom Bosco.
Vários meninos provinham de famílias que viviam no bairro, mas a maioria
deles era formada de jovens que trabalhavam nas construções ou vagavam
pelas ruas. Alguns padres do Colégio, Dom Bosco entre eles, foram encarre-
gados de contatar esses jovens e convencê-los a participar da catequese.
Padre Cafasso também inaugurou o trabalho com os jovens limpado-
res de chaminés, que vinham do Vale d’Aosta. Cerca de 50 deles vinham
temporariamente dos vales da montanha a Turim para limpar as chaminés
das lareiras de famílias ricas. Falavam apenas o dialeto do vale, tinham um
aspecto rude e eram desprezados por todos. Reuniam-se para o catecismo e
os serviços religiosos na própria língua e participavam do recreio, da refeição
e da atenção. Cafasso dera diretrizes claras sobre o conteúdo e o estilo da
instrução catequética, que devia ser breve, seguida de alguma recreação e algo
para comer; em resumo, uma experiência agradável. Outras carências dos
jovens, como o emprego, também eram levadas em consideração.
77
MO, 120.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Em favor dos doentes e moribundos


Padre Cafasso fazia com que seus estudantes estivessem cientes da im-
portância da atenção pastoral aos doentes e moribundos; ele próprio dedicava
muito tempo a esse ministério. Era chamado frequentemente para ajudar os
moribundos que precisavam de conversão. A caridade cristã e a solidariedade
humana tornam eficazes as suas palavras e o estilo de acompanhamento no
leito de morte.

Em favor dos presos e condenados à morte


O nome do padre Cafasso ficará sempre associado ao apostolado em
favor dos presos e dos condenados à morte. Com a permissão do governo, ele
teve acesso às quatro prisões de Turim, e obteve permissão idêntica para os
padres estudantes sob a sua supervisão. Às segundas, quartas e sextas-feiras,
visitava regularmente a chamada Prisão do Senado, a maior e pior delas. Ele
organizara o ministério na prisão segundo o modelo do ministério paroquial.
Isso incluía instrução catequética, celebração das festas litúrgicas, Missa e sa-
cramentos, especialmente a confissão, disponibilidade para conversas e con-
selhos, ajuda material aos presidiários e seus familiares e distribuição regular
de cigarros e tabaco, o que ajudava a anestesiar os sentidos e enfrentar o mau
cheiro dos ambientes da prisão.
Nesse serviço pastoral, Cafasso dava grande importância à instrução ca-
tequética da Quaresma em preparação à Páscoa, designando para as instru-
ções os padres estudantes, que ele apresentava pessoalmente. Em suas práti-
cas, estes evitavam deter-se na paixão de Cristo, para evitar que os presidiários
a relacionassem com a própria situação. Falavam, sobretudo, do amor e da
misericórdia de Deus e da confiança que se deve depositar em Deus, da efi-
cácia da oração e do poder salvífico dos sacramentos. Os sermões deviam ser
simples e muito breves, como também a instrução catequética. O catequista
concluía agradecendo a todos os participantes e os convidava a participarem
do próximo encontro. Dom Bosco fez parte do grupo que exercia o ministé-
rio nas prisões, muitas vezes com o teólogo João Borel. Foi nas prisões que ele
teve contato pessoal direto com a difícil situação dos delinquentes juvenis e
dos jovens em situação de risco.
Padre Cafasso era conhecido como “o capelão dos enforcados”. Mais tar-
de, a cidade de Turim erigiu-lhe um monumento num cruzamento de Valdoc-
co (Rondó, lugar de execução), em reconhecimento à sua abnegada assistência
aos condenados à morte. O Código Penal do momento prescrevia pena de
morte para alguns delitos; nas “Prisões do Senado” sempre havia alguém no

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Dom Bosco: história e carisma 1

corredor da morte. Padre Cafasso tinha cuidado especial com esses indivíduos
desafortunados. Visitava-os, confortava-os e acompanhava-os na carroça pu-
xada por cavalos até a execução que, naqueles tempos, tornava-se espetáculo
público. A execução era por enforcamento, ou por fuzilamento, se o conde-
nado fosse militar. Calcula-se que ele assistiu 57 condenados em Turim, 7 em
outras cidades e 4 que ele preparou, mas não pôde acompanhar. Dom Bosco
foi introduzido também nesse ministério, mas não tinha força necessária para
esse tipo de tragédia.78
Cafasso era reconhecido e procurado como conselheiro e diretor espiri-
tual de muitas pessoas, eclesiásticas e seculares. Entre seus “clientes” estavam
autoridades do Vaticano, o arcebispo Fransoni, bispos de diversas dioceses do
Piemonte, superiores religiosos, padres em postos de autoridade, homens e
mulheres, católicos leigos com responsabilidade política. Ele foi, sobretudo,
conselheiro e mentor de padres e leigos que participavam de ministérios es-
peciais, muitos deles relacionados com o Colégio Eclesiástico. Podem-se citar
os seguintes fundadores de institutos e obras peculiares:
Beato João Luís Frederico Albert (1820-1876), padre da diocese de Tu-
rim, capelão da Corte, pároco de Lanzo, fundador das Irmãs Vicentinas de
Maria Imaculada, dedicadas à educação dos jovens e ao cuidado dos doentes
e idosos. Amigo próximo de Dom Bosco, foi instrumento do estabelecimen-
to das Escolas Salesianas em Lanzo em 1864. Recusou a nomeação episcopal.
Júlia Vitúrnia Francisca Falletti, nome de solteira Colbert, marquesa de
Barolo (1785-1864), fundadora de importantes obras de caridade, cuja causa
de beatificação está em andamento.
Cônego Jacinto Cárpano (1821-1894), um dos primeiros ajudantes de
Dom Bosco na obra do Oratório.

Cf. MB II, 364-371. A execução era um espetáculo terrível. Depois de passar a noite na “sala
78

do conforto”, apresentava-se ao condenado o verdugo, que lhe pedia perdão, colocava um laço ao
redor do seu pescoço e amarrava os seus braços às costas. O condenado era transferido ao pátio, onde
dizia uma palavra de advertência e despedia-se dos companheiros presidiários. Em seguida, subia à
carroça com o capelão. Quando o sino da morte soava na torre da cidade e os irmãos da Confraria da
Misericórdia cantavam o Miserere, começava a procissão até o lugar da execução. Um destacamento
de soldados ia à frente da carroça, enquanto o verdugo e sua equipe iam aos lados. O povo, dos dois
lados da rua, olhava ou seguia o carro até o lugar da execução. O cadafalso foi colocado em diversos
lugares no século XIX. Quando Cafasso e Dom Bosco atuavam nesse ministério, localizava-se numa
encruzilhada de Valdocco, onde hoje se eleva o monumento ao padre Cafasso, antes de ser transferido
à Cidadela, ao forte militar. Quando a procissão passava por uma igreja, detinha-se para a bênção com
o Santíssimo Sacramento (certa vez, numa parada diante da igreja de Nossa Senhora do Carmo, padre
Cafasso obteve a conversão de um assassino confesso). Após a execução na forca ou pelo pelotão de
fuzilamento, rezavam-se orações de absolvição sobre o corpo e oferecia-se uma Missa de réquiem na
igreja da Confraria da Misericórdia.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Padre João Cocchi (1813-1895), fundador do primeiro oratório de Turim.


Santo Agostinho José Bento Cottolengo (1786-1842), padre da dioce-
se de Turim, fundador da Pequena Casa da Divina Providência, dedicada à
atenção humana e cristã dos enfermos recusados pela sociedade. A Pequena
Casa é formada por onze famílias religiosas, cada qual com uma finalidade
caritativa e espiritual específica.
Beato Francisco Virgínio Segundo Maria Faá di Bruno (1825-1888),
cristão leigo, cientista, escritor, músico, oficial do exército e, mais tarde, pa-
dre. Fundou as Irmãs Mínimas de Nossa Senhora do Sufrágio e o Albergue
de Santa Zita para meninas e jovens mulheres.
Padre Pedro Merla (1815-1855), colega de Dom Bosco no seminário,
capelão real e capelão da prisão feminina das Torres. Até 1852, esteve inte-
grado no trabalho do Oratório. Em seguida, dedicou-se ao ministério pelas
mulheres libertadas da prisão. Com essa finalidade, fundou em 1854 o Retiro
de São Pedro Apóstolo. Foi o fundador das Irmãs de Nossa Senhora das Do-
res, dedicadas à reabilitação das jovens mulheres com “um passado”.
Padre Roberto Murialdo (1815-1882). Primo mais velho de São Leonar-
do Murialdo, foi um ativo colaborador no trabalho dos oratórios, inclusive
no oratório de Dom Bosco; foi também um dos cofundadores, com os pa-
dres Cocchi e Berizzi, do Collegio degli Artigianelli (Instituto dos Pequenos
Aprendizes). Fundou as Irmãs de Santa Maria das Dores, posteriormente uni-
das à Pequena Casa da Divina Providência do Cottolengo.
Padre Lourenço Prinotti (1834-1899), fundador de um instituto para
surdos-mudos.
Cônego Gaspar Saccarelli (1817-1864), fundador do Instituto da Sagra-
da Família para as meninas, popularmente conhecido como Le Verdine (As
verdinhas, por causa da cor do uniforme).
Dom Bosco, sem dúvida, é considerado o mais importante dos “clientes”
do padre Cafasso. Os processos de Beatificação e Canonização do padre Ca-
fasso descrevem-no como “cofundador, pai e primeiro colaborador do Ora-
tório de São Francisco de Sales” e afirmam que “sem padre Cafasso, a obra de
Dom Bosco não teria chegado a existir”.79
O relacionamento que se fortaleceria com os anos, nasceu num verão,
provavelmente em 1830, quando os dois se encontraram à porta da igreja
da aldeia de Murialdo numa festa patronal. Apesar do desejo de João, por
alguma razão, o crescimento do relacionamento estreito entre eles foi lento,

79
A declaração é repetida no breve pontifício que declarou Dom Bosco Venerável (ASC 160,
FDB 2,208 D11-E1).

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Dom Bosco: história e carisma 1

por causa, talvez, da aura de outro mundo ou da “distância” que emanava do


padre Cafasso. O crescente interesse por João fica demonstrado em sua ajuda
econômica. Mais significativo ainda, o conselho de Cafasso foi fator deter-
minante no processo vocacional de Dom Bosco. Pode ser que não figurasse
na decisão vocacional de João em 1834-1835 (Dom Bosco não o menciona
em suas Memórias, embora Lemoyne o faça); entretanto, Dom Bosco escreve
sobre o subdiaconato em 1840: “Não havendo, porém, quem cuidasse dire-
tamente da minha vocação, aconselhei-me com padre Cafasso; disse-me ele
que fosse para frente, confiando na sua palavra”.80
Após a ordenação (1841), antes de decidir-se por uma das opções que lhe
eram oferecidas, Dom Bosco buscou em Cafasso e obteve dele o conselho de
inscrever-se no Colégio Eclesiástico. Além disso, embora Dom Bosco não aluda
à questão nas Memórias, Lemoyne menciona um período de discernimento
vocacional ao final dos anos passados por Dom Bosco no Colégio (1844), no
qual Cafasso ocupava um lugar de destaque.81 Quando Dom Bosco foi reco-
mendado para a capelania do pequeno hospital da marquesa Barolo, Lemoyne
informa que Cafasso teria dito ao padre Borel: “Pensa um pouco se há uma ma-
neira de retê-lo com algum emprego na capital. É coisa absolutamente neces-
sária. Dotado como é de atividade e de zelo, fará um grande bem à juventude.
Ele é destinado pela Providência a ser o Apóstolo de Turim”.82 E quando Dom
Bosco deixou o serviço à marquesa e estabeleceu o seu Oratório, foi novamente
o padre Cafasso, com o teólogo Borel, quem entrou com a soma necessária e
deu garantias para os alugueres, empréstimos e aquisições. Quando foi preciso
uma igreja (São Francisco de Sales) e uma casa maior em Valdocco (1852s),
Cafasso entrou também com os fundos necessários. Mais ainda, durante vários
anos, Cafasso assinou a maior parte das faturas mensais do alimento e de outras
necessidades do Oratório. Aos poucos, apresentou ou recomendou Dom Bosco
a pessoas e instituições beneficentes da cidade, que começaram a ajudá-lo na
obra do Oratório. Enfim, a influência de Cafasso conquistou para Dom Bosco
o apoio do arcebispo Luís Fransoni e de outras autoridades eclesiásticas e civis,
como também o elevado nível de proteção da mesma casa real.
A influência do padre Cafasso foi ainda mais importante como diretor
espiritual de Dom Bosco83 em suas opções vocacionais e apostólicas. Dom
80
MO, 110.
81
MB II, 206.
82
MB II, 224-225.
83
Como Giraudo faz notar, um novo tipo de direção espiritual tornou-se importante na época “com
a influência da escola sacerdotal de espiritualidade francesa, cujos escritos de devoção e espiritualidade se
tinham expandido, como as praticava São José Cafasso” (A. Giraudo, Clero, 224). Também os Exercícios
Espirituais eram dirigidos, com adaptações, segundo o modelo dos Exercícios inacianos.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Bosco fez os Exercícios Espirituais anuais, com Cafasso, em Santo Inácio, de


1842 a 1870, e de 1844 a 1859, ano da fundação da Congregação Salesiana.
Quando padre Cafasso faleceu, em 23 de junho de 1860, não chegara aos
50 anos de idade. A morte fora um dos temas da sua pregação, ponto de refe-
rência em sua vida espiritual e ascética. Estava habituado a fazer o exercício da
Boa Morte a cada primeiro domingo do mês.84 Em 12 de junho sentou-se no
confessionário pela última vez. Logo depois, ficou gravemente enfermo com
infecção pulmonar, contra o que não pôde lutar; morreu alguns dias depois.85
Lamentável e ironicamente, Dom Bosco foi impedido de visitá-lo nos últimos
dias por aqueles que pensavam que buscasse o dinheiro do padre Cafasso.
Em seu testamento, Cafasso fez da Pequena Casa da Divina Providência do
Cottolengo a beneficiária do seu patrimônio pessoal; contudo, o testamento
tem uma cláusula em favor de Dom Bosco e seu Oratório: “Deixo ao sacerdote
padre João Bosco [...] quanto for de minha propriedade de terreno e edifício
junto ao Oratório de São Francisco de Sales nesta Capital, região de Valdocco,
com o acréscimo de 5 mil liras. Também cancelo qualquer dívida que possa ter
para comigo no momento de minha morte. Todos os documentos relacionados
com as mesmas deverão ser destruídos ou entregues a ele”.86 Em outras cláusu-
las, cancelava dívidas de diversos tipos, deixava legados de quantias variadas a
pessoas e instituições, uma pequena soma a cada funcionário e empregado do
Colégio Eclesiástico, e também uma soma para os pobres de Castelnuovo, sua
cidade natal. Por fim, “a cada prisioneiro detido neste momento nas prisões
desta cidade […] a esmola de 1 lira”.
Dom Bosco honrou a memória do padre Cafasso com uma solene missa
funeral em 10 de julho de 1860. Em 30 de agosto, fez uma oração fúnebre na
solene comemoração celebrada na igreja de São Francisco de Assis. As duas
orações foram publicadas mais tarde em forma de livro. Foi, na prática, a pri-
meira biografia do padre Cafasso publicada, memorial perene ao seu querido
mestre. Padre Cafasso foi beatificado em 1925 pelo Papa Pio XI e canonizado
pelo Papa Pio XII em 1947.

84
Nesse exercício, seguia-se o seguinte plano: 1) Confissão, como se fosse a última. 2) Santa Missa,
como se fosse Viático. 3) Algum tempo de meditação diante do crucifixo, como se recebesse em espírito o sa-
cramento da Unção no leito de morte. 4) Récita das orações dos moribundos, enquanto se beijava o crucifixo,
como se estivesse em ponto de morte. 5) Recebimento, por intercessão de Maria, de um mês de respiro passado
na preparação para a morte sob o exame do divino juiz. O exercício da Boa Morte e sua espiritualidade como
proposto por Dom Bosco aos Salesianos e meninos será examinado num capítulo posterior.
85
MB VI, 644-648.
86
MB VI, 650.

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Dom Bosco: história e carisma 1

GREGÓRIO XVI (1765-1846):


AVERSÃO TOTAL AO LIBERALISMO
Bartolomeu Alberto Cappellari nasceu em 18 de setembro de 1765. Foi
eleito Papa em 2 de janeiro de 1831 e faleceu em 1º de junho de 1846.
Filho de um advogado de Belluno (Itália), contrariando o desejo dos pais,
ingressou em 1785 no mosteiro Camaldulense de Murano (próximo a Veneza).
Tomou, na vida religiosa, o nome de Mauro. Após a ordenação em 1787, foi
professor de ciência e filosofia e em 1799 publicou um livro: Il trionfo della
Santa Sede (O triunfo da Santa Sé), que reflete sua aversão a qualquer alteração
na ordem política e social. Chegou a ser abade do mosteiro de São Gregório em
Roma, procurador-geral e vigário-geral de sua Ordem, conselheiro dos Papas
Pio VII e Leão XII e de Congregações romanas, inclusive do Santo Ofício (hoje
Congregação da Doutrina da Fé).
Recusou duas vezes a nomeação para bispo, mas Leão XII o fez cardeal
e nomeou-o, em 1826, Prefeito da Congregação para a Propagação da Fé.
No conclave após a morte de Pio VIII, em 1830, o cardeal Cappellari foi
eleito Papa como candidato de compromisso entre os cardeais conservadores
(zelanti) e os mais liberais (politicanti). A rainha Maria Cristina da Espanha
teria se servido do direito de veto contra o cardeal Giustiniani. O cardeal
Cappellari aceitou com relutância a nomeação papal, somente quando seu
confessor (também monge camaldulense), obrigou-o a aceitar. Foi imediata-
mente ordenado bispo, porque era apenas padre quando foi eleito.
No momento da eleição de Gregório, surgiram revoltas em Bolonha
e em todos os Estados Pontifícios, e a ordem foi restabelecida só depois da
intervenção da Áustria em 1830 e 1831. Também a França interveio e pos-
tou guarnições em Ancona (nas Marcas, Itália central), de 1832 a 1838. As
potências europeias instaram o Papa Gregório para que introduzisse reformas
políticas em seu governo, mas pouco foi feito. Gregório identificava três prin-
cipais inimigos da fé cristã e da prática religiosa entre o povo cristão: o racio-
nalismo do Iluminismo, o liberalismo da Revolução Francesa e a indiferença
derivada do secularismo.
Durante seu pontificado, deu-se uma importante expansão missioná-
ria; nomeou mais de 100 bispos em “terras de missão”, demonstrando sua
sensibilidade pelos costumes locais que não fossem incompatíveis com o
cristianismo. Em sua carta apostólica In Supremo (3 de dezembro de 1839),
condenou a escravidão e o tráfico de escravos que ainda floresciam em muitas
partes do mundo.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Gregório XVI demonstrou sua hostilidade aos liberais católicos, con-


denando a ideia de liberdade civil e política na encíclica Mirari Vos (15 de
agosto de 1832), precursora do Syllabus Errorum, de Pio IX (1864). A Mirari
Vos afirmava com rigor o caráter sobrenatural da constituição da Igreja e o
primado do ofício docente de que o papado se reveste. A encíclica fala da
constituição divina da Igreja, que inclui o poder temporal e as instituições
monárquicas dos Estados Pontifícios.
O Papa dirigia-se ao mundo católico e pensava que a união entre Igreja
e Estado poderia produzir grandes vantagens temporais e espirituais. Repu-
diava a separação de ambos, condenava todos os movimentos revolucionários
e advogava o apoio aos regimes monárquicos “legítimos”. Sua postura e a
negativa em admitir qualquer mudança aumentaram a repulsa ao liberalismo
político e a todas as liberdades, por serem expressões do desejo de liberdade
humana e afirmação dos direitos da pessoa sem referência a Deus ou à Igreja.
A Mirari Vos sustentava que as liberdades modernas eram, às vezes, expressão
e origem do “indiferentismo” que admitia inclusive doutrinas contraditórias
ao mesmo tempo certas e erradas. O Papa temia que as liberdades moder-
nas, promotoras de um tipo de liberalismo baseado nos direitos naturais (os
“direitos dos homens”), caso entrassem na Igreja, introduziriam mudanças
radicais em sua estrutura jerárquica.

SANTO AFONSO DE LIGÓRIO (1696-1787)


Nascido em 1696, Afonso Maria de Ligório obteve o doutorado em
utroque jure pela Universidade de Nápoles aos 16 anos de idade. Desencan-
tado com a prática da advocacia, estudou para ser padre, sendo ordenado em
1726. Dedicou-se principalmente à pregação e à direção espiritual.
Em 1732 fundou a Congregação do Santíssimo Redentor (redentoristas),
uma sociedade de padres e irmãos dedicados à missão da pregação, da instrução
catequética e dos Exercícios Espirituais, sobretudo entre os camponeses.
A congregação foi criada com a oposição das autoridades civis, mas
aprovada por Bento XIV, em 1749. Afonso foi nomeado bispo de Santa Ága-
ta dei Goti (Campânia, Itália), em 1762, mas renunciou em 1775 devido a
uma grave enfermidade.
Posteriormente, dedicou-se a cuidar da sua congregação e a escrever,
apostolado este em que se distinguiu ao longo da vida. Insatisfeito com o
seu primeiro probabiliorismo em moral e em pastoral, por excluir muitos
fiéis dos sacramentos desenvolveu com novo enfoque o sistema chamado
de equiprobabilismo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Seus escritos espirituais e de devoção são volumosos. As obras de teolo-


gia dogmática, em sua maioria com orientação apologética ou polêmica, são
substanciais. Sua fama e influência vieram-lhe principalmente dos escritos de
moral e do sistema antirrigorista que elaborou e propunha. Afonso morreu
em 1787; foi beatificado em 1816 por Pio VII, canonizado em 1839 por
Gregório XVI e declarado Doutor da Igreja por Pio IX, em 1871.

SÃO FELIPE NERI (1515-1595),


SANTO AMIGO DOS JOVENS
Felipe nasceu em 1515 em Florença e ali foi criado. Cultivou a música,
a poesia, as artes e tudo que fosse belo, amor que alimentou ao longo da vida.
Admirava particularmente a arte e a piedade do frei Angélico. Em 1533, aos
18 anos, foi para Roma a fim de trabalhar nos negócios de um tio rico, de
quem era herdeiro natural. Incomodado com o tipo de trabalho, atuou como
tutor numa família nobre. Empregava muito do seu tempo livre passeando
pela cidade e seus arredores; durante essas excursões, descobriu o esquecido
mundo cristão das catacumbas. Começou a passar noites inteiras em oração
nos sepulcros dos mártires, nas quais experimentou transportes místicos de
amor de Deus. Essas experiências foram tão intensas que com frequência pre-
cisava pedir a Deus que parassem. Felipe experimentou em seguida um forte
desejo de comunicar a superabundância do amor de Deus. Visitava os doen-
tes nos hospitais, aproximava-se dos trabalhadores em seus locais de trabalho,
passava tempo com os ociosos pelas praças e tabernas da cidade. Devido às
amáveis palavras e aos modos gentis, abriu caminho para conquistar a muitos
para a prática cristã. Fundou em 1548 a Confraria da Santíssima Trindade.
Animado pelo sacerdócio, Felipe, chamado como estava para o aposto-
lado, não encontrava tempo de estudar. Acabou por ser ordenado em 1551
aos 36 anos de idade. Uniu, então, à força da sua palavra o poder dos sacra-
mentos de Cristo. Empregava doze ou quinze horas diárias a ouvir confissões
e ainda encontrava tempo para dar direção espiritual a algumas almas eleitas
entre seus penitentes.
Suas palavras chegavam ao coração dos mais obstinados pecadores. Com
humanidade e grande tato, falava dos assuntos da alma e da vida cristã. Pessoas
de todas as classes da sociedade e da Igreja iam até ele, entre elas, Inácio de Loyo-
la, Carlos Borromeu e Francisco de Sales. Desenvolveu uma relação especial
com os jovens que passavam o dia nas ruas e praças da cidade. Abriu para eles
um local para se divertirem. Ali, depois de breve serviço religioso, podiam gastar
as energias acumuladas. Dizia: “Deixemos que os jovens façam aquilo que lhes
agrada, até mesmo dar-me bordoadas, desde que não cometam pecado”.

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O Colégio Eclesiástico e Dom Bosco (1841-1844)

Seus seguidores eram naturalmente beneficiários de cuidados especiais.


Reuniam-se uma vez por semana numa capela que chamou de Oratório, para
compartilhar suas experiências espirituais e pastorais, ler as Escrituras, rezar
e cantar juntos. Dessas reuniões surgiu, em 1564, a Congregação dos Padres
do Oratório, comunidade religiosa sem votos e sem regras fixas de claustro.
Felipe exerceu seu apostolado alegre, profundamente espiritual, em
Roma, durante sessenta anos. Sua influência foi responsável pela difusão
do espírito de Cristo a todos os setores da sociedade na cidade. Morreu em
Roma em 1595 e foi canonizado em 1623.

SÃO FRANCISCO DE SALES (1567-1622):


BISPO E SANTO HUMANISTA
Francisco nasceu em 1567, numa família nobre, no castelo de Tho-
rens, perto de Annecy, Alta Saboia. Educado no colégio dos jesuítas de
Clermont, passou ao estudo da teologia e do direito em Paris e Pádua. Ali,
sofreu uma grave crise espiritual provocada pelas doutrinas da predestina-
ção, debatidas nas escolas, e que só conseguiu superar com a oração e a total
confiança em Deus.
Francisco foi ordenado padre em 1593. Sem ser consultado, foi nomea-
do prepósito da diocese de Genebra, segundo cargo depois do bispo. No ano
seguinte, para grande desgosto de seu pai, ofereceu-se para uma missão na
acidentada região montanhosa do Chablais, visando a reconquistar a popu-
lação calvinista para o catolicismo (1594-1598). As dificuldades e os perigos
vivenciados por ele na missão foram incríveis; poucos se converteram. Um
dos primeiros, que o ajudou no início, deixou-o depois de dois anos. Francis-
co persistiu com zelo ardente, paciência incansável e a caridade de Cristo, até
poder dispor de um grupo de missionários animados de seu mesmo espírito.
O retorno do Chablais ao catolicismo foi facilitado sem dúvida pela paz
estabelecida entre a França e a Saboia em 1598, e pelo progressivo desapare-
cimento das lutas políticas na região entre calvinistas e católicos. Contudo,
a verdadeira razão está na entrega missionária de Francisco, na sua ardente
caridade e incrível humanidade. Diz-se que converteu cerca de 40 mil.
Aos 30 anos, em 1602, Francisco foi ordenado bispo de Genebra; não
podendo residir em sua sede, capital do calvinismo, estabeleceu residência em
Annecy. A partir dali, pastoreou cerca de 600 paróquias nas zonas que escapa-
ram da ocupação calvinista. Francisco tinha ligações com o Oratório de São
Felipe Neri e, como ele, tratou de exemplificar em si o ideal de pastor e bispo
desenhado no Concílio de Trento, com doçura e sensibilidade.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Foi admirado e apreciado pela sua bondade: “Quão bom deve ser Deus
– diziam – se o bispo de Genebra é tão bom!”. Ele costumava dizer: “Caçam-
-se mais moscas com uma gota de mel do que com um barril inteiro de vina-
gre”. Esse ditado define não tanto uma estratégia utilitarista, mas o seu modo
pessoal de aproximar-se das pessoas e dirigir-se a elas.
Incansável na pregação e nos escritos, com estilo cheio de beleza e graça,
Francisco esforçou-se por ser um pastor para os fiéis e guia de muitas pessoas
desejosas de adotar a forma de vida cristã que buscavam com a sua direção.
Em Dijon, em 1604, Francisco viu uma senhora que ouvia interessada
sua pregação, Joana Francisca de Chantal, que lhe pediu que fosse seu diretor
espiritual; contudo, e isso não surpreende, Francisco queria aguardar. “Devia
conhecer plenamente a vontade de Deus. Devia estar seguro de que tudo fos-
se feito como se a Sua mão tivesse feito”. Joana estava no caminho da união
mística com Deus e Francisco era pessoalmente um místico, um místico em
ação. Três anos depois, em 1607, ele aceitou enfim organizar uma nova or-
dem religiosa e pediu que Joana de Chantal fosse o instrumento da fundação.
Ela considerou como necessário um período de discernimento. Enquanto
isso, em 1608-1609, Francisco publicou a Introdução à vida devota, em que
mostrava um caminho de santidade adequado a todas as pessoas.
Em 1610, depois de anos de discernimento, Francisco e sua filha espiri-
tual, Joana de Chantal, cofundaram a ordem da Visitação de Santa Maria. A
arte da direção espiritual é um dos grandes sucessos de Francisco. As cartas,
das quais se conservam 20 mil, oferecem uma ampla prova disso. Sua eficácia
foi não só resultado de uma verdadeira espiritualidade, mas também da sua
capacidade de falar com palavras adequadas com total “empatia”. Francisco
foi um verdadeiro místico, como demonstra amplamente o Tratado do amor
de Deus, publicado por ele em 1616. Como resultado, ele se transformou
num catalisador de renascimento espiritual, um mestre de vida espiritual e
de mística do amor de Deus. Comparava o amor de Deus ao amor humano
natural, que se une completamente ao amado. Aqueles que amam a Deus
jamais podem deixar de pensar em Deus, desejar a Deus, aspirar por Deus e
falar de Deus.
Em 1622, a pedido de Carlos Emanuel I, duque de Saboia, Francisco
aceitou mediar a reconciliação entre o duque e o rei Luís XIII da França.
Enquanto atuava para isso, morreu tranquilamente em Lyon, no dia 28 de
dezembro de 1622. Está sepultado na basílica da Visitação de Annecy.

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Capítulo XIV

JOVENS “POBRES E ABANDONADOS”


NA TURIM DOS MEADOS DO SÉCULO XIX

A permanência de Dom Bosco no Colégio Eclesiástico levou-o a “des-


cobrir” os jovens “pobres e abandonados” de Turim. Foi, então, que decidiu
dedicar sua vida a eles iniciando uma caminhada que o levaria ao Oratório.
Para compreender melhor esta importante etapa convém ter, primeiramente,
uma ideia do fenômeno social da juventude em situação de risco na Turim
dos meados do século XIX.

1. A Turim da juventude “pobre e abandonada”


Como já se disse repetidamente, logo que Dom Bosco se inscreveu no
Colégio Eclesiástico, em 1841, ele começou a dedicar-se ao ministério dos
jovens que perambulavam pelas ruas da cidade e que, com frequência, encon-
trava nas prisões.

Transformação demográfica, aumento da população,


expansão urbana
A população de Turim viveu, na primeira metade do século XIX, um rápido
importante crescimento.1 Turim, em 1814, incluindo as aldeias que a rodeavam,
contabilizava 84.230 habitantes; em 1830, a população subira a 122.424 e em
1848, a 136.849. O notável crescimento demográfico poderia ser explicado como
parte do aumento geral da população após as guerras napoleônicas na Itália e na
Europa, não só no Piemonte. Contudo, neste caso, a causa imediata deve ser
1
A publicação de materiais de arquivo pertencentes à cidade de Turim e ao apostolado mais anti-
go de Dom Bosco ajuda a entender alguns aspectos da sua obra nas origens e, especialmente, a situação
da juventude, objeto de preocupação. Refiro-me ao Arquivo Histórico da Cidade de Turim, Torino e
Don Bosco, editado por Giuseppe Bracco (com muitas colaborações): Vol. I: Saggi; Vol. II: Immagini;
Vol. III; Documenti. Turim, 1898. Os ensaios no Vol. I fazem abundantes referências ao material de
arquivo e à literatura contemporânea.

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Dom Bosco: história e carisma 1

buscada na grande movimentação migratória de camponeses empobrecidos, do


campo para a cidade. Qual era a causa dessa migração?
O movimento migratório foi atribuído, às vezes, à Revolução Industrial.
E pode ser que assim fosse numa primeira fase: gente que se reunia a cami-
nho da cidade em busca de trabalho nas novas indústrias manufatureiras e
à espera de melhor situação de vida. Pode ser esse o caso em cidades como
Manchester e Londres, Lyon e Paris. Não foi assim, porém, na capital do
Piemonte. Para Turim, pode-se falar de despertar industrial, de seu incipiente
desenvolvimento industrial. As empresas manufatureiras ainda eram familia-
res em sua maior parte, localizadas em galpões e locais sem donos no interior
da cidade, preparados de modo primitivo.2
Foi um período de transição, tendo ocorrido uma mudança no modelo
demográfico em relação a outros tempos. Contudo, a verdadeira causa deve
ser buscada na condição de decadência da população rural. No campo, a
propriedade familiar das terras foi diminuindo em proporção alarmante, en-
quanto crescia a formação de grandes propriedades, com o correspondente
crescimento do número de trabalhadores assalariados, em geral diaristas. Sua
luta desesperada pela sobrevivência é descrita com as mais escuras tintas na
imprensa escrita. Em 1848, a Gazzetta dell’Agricoltore fazia notar:

À medida que se vai ao campo, nas zonas distantes dos centros povoados,
fica-se assombrado diante do aspecto dos camponeses. Nessas zonas, todos –
homens, mulheres e crianças – são magros, com escorbuto, demonstram-se
cansados, exaustos pela fome e pelo excesso de trabalho.3

Esta situação indigna podia ser vista por todos os lados no campo. Multi-
dões que migravam para a cidade numa marcha desesperada pela sobrevivência
foram os principais responsáveis pelo crescimento urbano. Muitos desses mi-
grantes permaneciam na cidade porque não tinham para onde retornar. Assen-
tavam-se onde podiam, especialmente nos bairros mais pobres que surgiram
ao longo dos rios Dora e Pó, ao norte e noroeste. Essa região de Turim viveu
a expansão mais significativa e rápida. Foi também a região em que, pouco a
2
Cf. Humberto Levra, “Il bisogno, il castigo, la pietà. Torino 1814-1848”. In: G. Bracco, Torino
e Don Bosco I, 20-24. Na década de 1840, no Piemonte (e não mais tarde em toda a Itália), o sistema de
crédito, base do capitalismo, ainda dava seus primeiros passos. Por isso as possibilidades de investimento
ainda eram muito limitadas. A economia italiana continuou a ser, por muito tempo, agrícola. A maior
parte do capital disponível provinha de produtos do mercado agrícola. O maior percentual de poupança
foi investido em terras; as possessões reais continuaram a ser referência nas operações de crédito para os
poucos investidores individuais. Algum capital, contudo, começou a ser investido na manufatura, na
mineração e na construção das primeiras linhas férreas durante a segunda metade do século XIX.
3
H. Levra, Il bisogno, 26-29, citando documentos oficiais.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

pouco, algumas pequenas indústrias iam surgindo graças à energia hidráulica


proporcionada pelos rios. O crescimento urbano dessas regiões consistiu em
aglomerados de cortiços construídos para famílias de migrantes. Logo, porém,
esses bairros ao norte transformaram-se em territórios superpovoados.
O resultado foi que a condição dos trabalhadores e da gente sem traba-
lho na cidade não era melhor do que no campo e, às vezes, até pior. Umber-
to Levra4 assim resume a situação, baseando-se em abundantes referências
a textos e fontes oficiais contemporâneas: 1) nutrição inadequada e fome,
com crescimento irregular e deformações; 2) enorme aumento do número
de indigentes, gente sem-teto e mendigos; 3) crescimento do número dos
cronicamente enfraquecidos, doentes e carentes de cuidados; 4) grande risco
de doenças e mortalidade infantil elevada; 5) baixa expectativa de vida (35
anos em Turim, pouco mais elevada do que a média de todo o Reino); 6)
falta de higiene e más condições sanitárias, especialmente nos subúrbios dos
distritos do norte; 7) epidemias frequentes, sobretudo de tifo, cólera e varíola;
8) elevada incidência de doenças como tuberculose, bronquites e pneumonia,
disenteria, infecções e variadas febres sem nome; 9) aumento da prostituição
e das doenças venéreas; 10) analfabetismo; 11) abandono das práticas religio-
sas; 12) embriaguez e outros vícios domésticos; 13) crescimento de ativida-
des delituosas, sobretudo furtos; 14) aumento de suicídios; 15) aumento de
nascimentos ilegítimos; 16) crianças expostas [abandonadas] e infanticídio.

O bairro do Moschino
O bairro do Moschino estendia-se ao longo do Pó até seu limite, a leste
da atual avenida São Maurício. Pertencia ao território da paróquia da Anun-
ciação, onde padre João Cocchi era coadjutor. Foi ali que ele estabeleceu o
Oratório do Anjo da Guarda em 1840.5 De qualquer ponto de vista, era o pior
bairro da cidade. Foi totalmente arrasado como parte da renovação urbana em
meados da década de 1860. Assim o descreve um autor:
O bairro do Moschino era um conjunto de tugúrios com paredes descasca-
das, escurecidas pelo tempo, que ameaçavam ruir a qualquer momento. Era
refúgio de gente viciada, inimigos de qualquer tipo de ordem, invejosos das
posses alheias, sempre dispostos a derramar sangue, inclinados à maldade por
algum instinto feroz. Ali conviviam como iguais o crime, a pobreza e a pros-
tituição. Nesta terrível cloaca, eram comuns a imoralidade escandalosa e o
vício, e normais os crimes horrorosos e assassinatos cruéis. Ali nasceu, cresceu
e ascendeu ao poder um bando de malfeitores que ameaçava a todos com o

4
H. Levra, Il bisogno, 30-43, citando documentos oficiais.
5
Padre João Cocchi foi o primeiro a criar um Oratório em Turim, intitulado ao Anjo da Guarda.

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Dom Bosco: história e carisma 1

terror. Ninguém se atrevia a pôr os pés no Moschino depois do anoitecer.


Nem mesmo a polícia se atrevia a ultrapassar as barreiras e aproximar-se des-
sas hordas de criminosos. À noite, ninguém que não fosse reconhecido pelos
bandidos tinha acesso. Era como se tivesse sido erguida uma ponte levadiça.6

Um médico relata que “o horror e a repugnância que se experimenta ao


caminhar por esses bairros sujos, cloacas pútridas e inumanas, denunciadoras
da injustiça que favorece a alguns com todos os bens, enquanto nega a muitos
um mínimo de espaço, ar e luz do céu necessários para se sobreviver”.7 Um
sanitarista que inspecionou essas zonas quando estourou a epidemia da cóle-
ra, informa ter encontrado “todos os edifícios supersaturados de imigrantes
de aspecto hostil e violento; a maioria ocupada no contrabando de álcool e
tabaco”. E continua a descrever o horror e a sujeira das casas e dos quintais
cheios de imundície e excrementos humanos, deplorando a falta de água cor-
rente. A epidemia da cólera de 1835 teve início no bairro do Moschino.8

O bairro de Vanchiglia
Em 1841, padre Cocchi transferiu o Oratório do Moschino para um
lugar melhor, perto do bairro de Vanchiglia, pouco mais ao norte na con-
fluência dos rios Dora e Pó. Entretanto, ali as condições eram semelhantes.
Vanchiglia viveu igual epidemia de cólera, pois era uma zona em que abun-
davam poças d’água parada e por onde cruzavam vários canais e depósitos
de água suja das inundações. Não havia higiene. Corria por ali a céu aberto
o esgoto público, que chegava do centro da cidade por dois canais cobertos
até os rios.
Por antigos direitos feudais, os cônegos da Catedral usavam essas águas
para regar os campos que possuíam junto aos rios. Um dos matadouros da
cidade estava situado nesse bairro, e era uma das mais importantes fontes
de contaminação e contágio. O chefe da saúde pública assinalava que até o
palácio real, situado a curta distância ao sul, expunha-se “ao mau cheiro e
à contaminação que vinha do desventurado bairro de Vanchiglia, de modo
que as janelas do lado norte do palácio permaneciam completamente fecha-
das dia e noite”.9

G. A. Giustina, “I misteri di Torino”, citado por H. Levra, Il bisogno, 65-56; cf. também G.
6

Chiosso, L’Oratorio, 95. Lemoyne serve-se desse texto, com anotações interessantes, para descrever
o bairro de Vanchiglia (MB III, 561). A descrição é obviamente carregada e, de qualquer modo,
também tendenciosa.
7
G. Valerio, “Igiene pubblica”, citado por H. Levra, ll bisogno, 66.
8
H. Levra, Il bisogno, 66-67, citando documentos oficiais do Arquivo Histórico de Turim.
9
G. Valerio, “Igiene pubblica”, citado por H. Levra, Il bisogno, 67s.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

O bairro de Borgo Dora


O segundo matadouro estava situado à entrada do vizinho bairro Borgo
Dora, no mercado de Porta Palácio. Era o bairro mais populoso ao norte da
cidade, situado entre Vanchiglia a leste e Valdocco a oeste, e vivia na época
um desenvolvimento protoindustrial, que gradualmente se expandiria aos
bairros adjacentes. Estabeleceram-se ali algumas empresas manufatureiras:
uma fábrica de armas, uma refinaria de açúcar, uma fábrica de máquinas
de impressão, uma tecelagem, curtumes de peles e uma propriedade para
transformação de madeira. Esses empreendimentos eram, em geral, muito
pequenos, embora alguns empregassem quase cem operários. Construíram-
-se numerosos cortiços de vários andares, que sobressaíam sobre os edifícios
mais antigos.

Bairros de Valdocco e Borgo Dora.

Persistiam as condições de vida de superpopulação, com seus efeitos per-


niciosos para as famílias e os indivíduos, sobretudo os jovens. Nesse bairro, o
número de famílias que viviam em cortiços e o número de pessoas por andar
ou moradia, era quase o dobro do que em qualquer outro lugar da cidade.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Levra escreve sobre a situação em fins da década de 1820:

Os guetos da gente pobre, que se iam formando por um processo de aglo-


meração espontânea de migrantes, pelo qual passou a cidade, foram-se esten-
dendo gradualmente. A primeira dessas expansões aconteceu no Borgo Dora.
Seus edifícios, falando em geral, eram de qualidade ruim e de dimensões mo-
destas. Nessa época, a Praça Manuel Filiberto (Porta Palácio) foi redesenhada
e construíram-se nela os primeiros ambientes de comércio cobertos, baixos
e insalubres [...]. As empresas manufatureiras foram se transferindo gradual-
mente à região; a maioria delas era barulhenta, prejudiciais e perigosas. Al-
gumas fábricas de pólvora explodiram em 1852, provocando muitos mortos
e feridos. Uma rede de canais a partir do rio proporcionava força hidráulica,
mas também fazia com que a região fosse pantanosa e fétida. Em 1850, dos
22 mil habitantes do bairro, 14 mil viviam do trabalho de cada dia e 12 mil
subsistiam abaixo do nível de pobreza.10

O bairro de Valdocco
Valdocco estende-se a oeste de Borgo Dora, com o bairro de Martinetto
mais além, também a oeste. O bairro cresceu inicialmente nas décadas de
1830 e 1840. Antes de 1830, ficara praticamente vazio. As muralhas da cida-
de antiga e outras velhas estruturas foram demolidas no tempo de Napoleão
e os escombros amontoavam-se na zona pantanosa que se estendia até o rio
Dora. Para favorecer os assentamentos e a expansão da cidade para o norte,
Carlos Félix (1821-1831) aprovara a disponibilidade gratuita de terrenos pú-
blicos em favor de particulares. Mais tarde, nos anos de 1860, o subúrbio de
Valdocco rivalizaria com o de Borgo Dora. Mas por volta de 1840 Valdocco
ainda estava em crescimento. Olhando a partir da zona mais alta na direção
norte até o rio Dora, podia-se observar ao longo dos canais uma disseminação
de casas e pequenas indústrias. Os únicos edifícios de “altura elevada” eram os
edifícios do Refúgio da marquesa Barolo, com seus locais anexos e a Pequena
Casa da Divina Providência do Cottolengo.
Esses bairros ao norte abriam-se em leque até o rio Dora a partir da
grande praça e mercado popularmente chamado de Porta Palácio; o palá-
cio real elevava-se não muito distante em direção ao sul da cidade. A região
toda estava repleta de grande número de jovens e meninos, catalogados na
literatura do tempo como “pobres e abandonados”. Dom Bosco pôs-se em
10
H. Levra, Il bisogno, 64-65; mais detalhes em 68-69.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

contato com eles quando estava no Colégio Eclesiástico. Os bairros ao norte


formavam a zona onde se estabeleceram os primeiros oratórios do padre João
Cocchi e de Dom Bosco.

2. Os jovens “pobres e abandonados”


que Dom Bosco conheceu
Quem eram os jovens “pobres e abandonados” que chamaram a atenção
de Dom Bosco desde seus primeiros dias de permanência em Turim, em 1841?
Não eram pobres e camponeses normais (como nos Becchi) ou pobres estudan-
tes (como em Chieri). Esta será uma experiência nova, uma descoberta.

Os jovens e meninos em perigo


Ao descrever o tipo desses meninos, Dom Bosco escreve: “De modo ge-
ral o Oratório compunha-se de canteiros, pedreiros, estucadores, calceteiros,
rebocadores e de outros que vinham de povoados distantes [...], saboianos,
suíços, do Vale de Aosta, de Biella, de Novara, da Lombardia”.11
Lemoyne acrescenta:

A região que se expandia até Porta Palácio formigava de vendedores ambulan-


tes, engraxates, limpadores de chaminés, condutores de mulas, carregadores;
todos eles meninos pobres que conduziam como podiam o seu triste negócio
[...]. A maioria deles pertencia a uma das chamadas Cocche di Borgo Vanchi-
glia, ou seja, daqueles bandos de jovens compromissados entre si com pacto
de defesa mútua, chefiados pelos mais velhos e mais audaciosos.12

Descrição semelhante é dada por uma testemunha do tempo, provavel-


mente o primeiro não salesiano, relativo à composição e natureza dos orató-
rios do padre Cocchi e de Dom Bosco;

Nestas duas casas, miseráveis (cenciosi) de Turim e moleques de rua (biric-


chini) reúnem-se em grande número nos dias festivos. É divertido ver a ma-
neira como desfrutam delas, o quanto são felizes e o quanto bem se compor-
tam enquanto ali estão. Podem-se ver vendedores de fósforos, vendedores
de bilhetes de loteria etc., aprendizes, trabalhadores manuais, prestadores de
serviços, serventes de todo tipo de oficinas e negócios, todos juntos e felizes.

11
MO, 127.
12
MB III, 44.

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Dom Bosco: história e carisma 1

E o que fazem ali esses jovens, nessas novas casas de acolhida? Primeira-
mente, recebem instrução religiosa desses padres zelosos [...], depois rezam,
recebem aulas, brincam e, ocasionalmente, se lhes dá de comer à tarde.13

Eram, portanto, jovens locais, que viviam nos subúrbios dos bairros
ao norte de Turim, tentando sobreviver com qualquer meio que lhes fosse
oferecido, ou meninos migrantes temporários, empregados marginalmente
nas construções. Todos eles eram jovens em situação de risco. Dom Bosco
ressalta que, de fato, muitos deles estiveram na prisão ou corriam o risco de
ir para a prisão. Esses jovens, alguns com mais de 15 anos,14 a maioria entre
12 e 20 anos, embora apresentassem diversos problemas pessoais e provies-
sem de várias circunstâncias familiares, pertenciam à categoria designada na
imprensa do tempo como “pobres e abandonados”. Todos os dias, mais de
mil desses meninos e jovens aglomeravam-se pelos arredores da praça e do
mercado de Porta Palácio, à espera de serem contratados ou, simplesmente,
ficavam “circulando”.15
Aos jovens mais velhos deve-se acrescentar um grande número de meni-
nos mais jovens; muitos deles trabalhando nas empresas manufatureiras. Essa
prática típica da Revolução Industrial na Inglaterra e na França já era signifi-
cativa em Turim. Os proprietários dessas empresas, para economizar dinheiro
e custos de produção, começaram a contratar grande número de meninos e
meninas de até 8 anos, como também mulheres. Em 1844, os meninos de
10 anos ou mais, jovens ainda, que trabalhavam em oficinas ou pequenas
fábricas por todo o Piemonte chegavam a 7.184. Um elevado número deles
trabalhava nas fábricas de Turim; o período de trabalho era de até 16 horas.
Num discurso feito no Parlamento, em 1850, o conde Camilo Cavour, mais
tarde primeiro- ministro, deplorava a falta de preocupação com essa situação:
“Talvez, por conveniência, tivéssemos tentado ignorar o fato de que em nos-
sas fábricas o horário de trabalho das mulheres e crianças é o dobro daquele
da Inglaterra”.16
Segundo um testemunho contemporâneo, essas crianças além de serem
exploradas viviam em situação de grande risco, expostas a toda sorte de peri-
gos físicos e morais:

13
“Scuole e sollazzi domenicali pei poveri” (Instrução e diversões dominicais para os pobres),
Letture di Famiglia 25 (junho 20, 1846) 196, citado por G. Chiosso, L’Oratorio, 91.
14
MO, 148.
15
T. Bosco, Don Bosco, 10, 11, 112.
16
Cf. P. Stella, Economia, 159-164.

386

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Essas pobres criaturas crescem na carência, na pobreza e no sofrimento, na


completa ignorância de qualquer verdade religiosa e moral, indefesas contra
os muitos perigos para sua vida moral com os quais se defrontam no local de
trabalho. Isso acontece especialmente quando muitas crianças dos dois sexos
convivem amontoadas como ocorre normalmente nas fábricas. A embriaguês,
vício muito perigoso entre os trabalhadores, é comum também entre as crian-
ças [...]. O resultado é a imoralidade, cujos terríveis efeitos são evidenciados
no aumento da delinquência e dos delitos cometidos por essas crianças se,
segundo as estatísticas policiais das prisões, as compararmos com seus colegas
das zonas rurais.17

O mesmo autor apresenta dados recolhidos em muitas fábricas, que de-


monstram que apenas um em cada cinco jovens trabalhadores frequentava
ou frequentara a escola por algum tempo. Cerca de 40% dos jovens abaixo
dos 20 anos eram analfabetos. Mais ainda, grande número de crianças con-
traía alguma doença no local de trabalho. Este autor faz uma lista de doen-
ças como tuberculose, intoxicações e várias infecções virais. O percentual de
mortos produzido por essas doenças elevava-se a 12%. As crianças que so-
breviviam ficavam frequentemente debilitadas por toda a vida. Elas também
eram amiúde castigadas pelas mais leves infrações.18

Filhos de gente pobre


A pobreza, às vezes extrema, era coisa comum, mesmo entre os que ti-
nham trabalho estável, incluindo os empregados na construção; estes eram
os quem tinham o melhor salário, mas só durante uma curta temporada. Por
volta de 1840, um trabalhador sem família gastava perto de 60 centavos de
lira só para comer, soma igual ao salário diário. Por isso, o gasto diário dos
pobres consistia em alimentos mais baratos e menos nutritivos como pão,
polenta, batata, legumes, alguma verdura e frutas do tempo. O aluguel era
elevado nos cortiços dos bairros ao norte. Este, por um só quarto, incidia
muito nos ganhos do trabalhador, mesmo quando compartilhado, como era
a prática dos trabalhadores temporários. A desproporção ou o pequeno poder
aquisitivo dos salários dos trabalhadores era penosamente evidente quando
se enfrentava a compra de roupa ou calçado e, mais ainda, quando se queria
17
Carlo Ilarione Petitti di Roreto, “Sul lavoro dei fanciulli nelle manifatture”, citado por G.
Chiosso, L’Oratorio, 95-96.
18
C. Petitti, “Sul lavoro”, 97, citado por G. Chiosso, L’Oratorio. Esta situação de risco físico
e moral explica a praxe de Dom Bosco de visitar os meninos no local de trabalho e pedir contratos
escritos de seus empregadores. Isso também proporcionou a criação de oficinas próprias em casa.

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Dom Bosco: história e carisma 1

gastar no “não essencial” como diversão, educação ou transporte. O custo


de um par de sapatos ordinários ultrapassava o salário médio semanal de um
trabalhador ou de um aprendiz. Uma xícara de café ou chocolate custava em
qualquer bar da cidade metade do salário médio diário.19
Dessa forma, a satisfação das necessidades básicas era uma preocupação
dominante e a luta sem trégua na vida diária do trabalhador. E deixava pou-
co tempo, possibilidades e vontade de cuidar de outros interesses importan-
tes, como a educação, a prática religiosa, as diversões e a preocupação com
a família. Compreende-se facilmente, levando em consideração essas cir-
cunstâncias, que os trabalhadores buscassem o único entretenimento barato
possível: a taberna. Surgiram muitos estabelecimentos desse tipo nos bairros
ao norte. Ali, os trabalhadores passavam as horas livres da tarde bebendo
vinho barato e jogando. O resultado era, com frequência, a embriaguez, a
obscenidade e a violência.20
A maioria dos jovens, sem trabalho ou com emprego apenas ocasional,
vivia nessa situação de pobreza e de perigo material, moral e religioso. Todos
eles viam-se no perigo das más companhias, dos meios de corrupção disponí-
veis e das frequentes tentações da delinquência.

Delinquência juvenil
Citando relatórios oficiais e outros escritos da época, Levra dá uma pe-
nosa relação de episódios, que se referem tanto a adultos quanto a jovens.
Descreve a resposta ineficaz das instituições, dos departamentos governamen-
tais e da polícia. Detalha, em especial, a muito extensa prática da mendicân-
cia em todas as zonas da cidade e a invasão de mais mendigos no tempo de
inverno: adultos, homens e mulheres, mães com seus filhos, famílias inteiras
e crianças por conta própria. Detalha os vários tipos de delinquência e ati-
vidade delituosa que acompanhavam inevitavelmente essas situações deses-
peradas. Comenta sobre o fracasso e a incapacidade dos hospitais públicos,
centros de acolhida para pobres e enfermos solucionarem essa necessidade,
também as instituições do Estado e da Igreja, e fala da caridade das pessoas.21
Levra continua a dar uma relação detalhada da intervenção policial para
a proteção dos cidadãos; faz notar que a atividade delituosa na cidade era em
grande parte contra a propriedade, não contra as pessoas, relacionada com o
grande desemprego e a pobreza. Também aconteciam incidentes esporádicos

19
G. Chiosso, L’Oratorio, 94-95.
20
Citando um autor contemporâneo, H. Levra dá uma descrição horripilante dessas tabernas,
em Il bisogno, 72-73.
21
H. Levra, Il bisogno, 43-61.

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de violência contra as pessoas, às vezes, com mortes. A preocupação do povo


aumentou, e derivou para a caridade pública e particular e o esforço maior de
Carlos Alberto para instaurar reformas e proporcionar trabalho.22

Mendigos, ladrões e fugitivos


Outros autores completam o cenário com referência especial à delinquência
juvenil.23 Felloni ressalta que, em Turim, o delito típico de violência não era fato
frequente. O que mantinha a polícia vigilante era a atividade delituosa menor
de inúmeros indivíduos abandonados. Eram os pobres miseráveis que viviam
à margem da lei. Na verdade, eram considerados como “gente perigosa”, mas
perigosos somente para a ordem pública, não para a ordem social! Isso era válido,
sobretudo, em relação à delinquência juvenil. Muitos jovens e crianças viam-se
forçados a viver impulsivamente; praticavam todo tipo de truques e expedientes,
que, com frequência, iam contra a lei.
No extremo da escala, estavam os vendedores de fósforos, os revendedo-
res, os que pediam de maneira, diríamos, “agressiva”, o que ordinariamente
acontecia nas ruas e praças de Turim; estes se transformavam numa preocu-
pação para “os cidadãos honrados” e, de vez em quando, atraíam a atenção
da polícia. Do outro lado, estavam os poucos jovens que para obter dinheiro
tinham condutas mais seriamente reprováveis, como o roubo e a prostituição.
A grande maioria dos delinquentes juvenis era formada por pequenos gatu-
nos que roubavam mercadorias nas bancas do mercado ou malandros que batiam
carteiras dos transeuntes. Felloni cita numerosos exemplos da “seção de deten-
ções” do Escritório do Vigário Magistrado da cidade.24 Bastariam dois exemplos:

Por causa de algumas queixas de pequenos roubos cometidos na cidade, o


departamento de polícia esteve vigiando os movimentos de um grupo de
jovens que são delinquentes habituais, recentemente egressos da prisão das
Torres. Eles, ordinariamente, vagam pelas ruas, distantes de suas habitações
e da vigilância dos pais. E passam o tempo na ociosidade e no jogo. Tendo
oportunidade, vivem do que roubam nas bancas de bugigangas ou alimen-
tos. Sabe-se, também, que roubam os bolsos dos transeuntes descuidados
ou despreocupados.25

H. Levra, Il bisogno, 76-97.


22

Os comentários a seguir baseiam-se, sobretudo na primeira parte de Claudio Felloni e Roberto


23

Audisio, “Giovani discoli”, em G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 99-119.


24
O vigário (ajudado por dois supervisores) era o magistrado nomeado pelo rei para governar a
cidade de Turim.
25
C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 102.

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Os relatórios demonstram que muitos desses jovens tinham fugido de


casa. Alguns eram órfãos ou filhos ilegítimos, tutelados pelo Estado por algum
tempo, e que depois tinham trabalhado ocasionalmente. Todos viviam na indi-
gência. Muitos estiveram na prisão várias vezes, em geral, por pequenos roubos.
Um desses jovens, Pedro P., ao ser preso, contou esta história ao magistrado:

Meus pais morreram quando eu muito pequeno. Não tinha onde morar, nada
com que viver e ninguém que me ajudasse ou orientasse. Durante algum tem-
po trabalhei como engraxate. Logo depois, meti-me em problemas e fui pre-
so. Desde então passei o tempo em várias prisões, na do Senado e nas prisões
correcionais, em Turim e em Chivasso. Nunca estudei nem trabalhei numa
ocupação digna. Neste mundo não há nada que possa chamar de meu.26

Assusta o número de meninos que fugiam de casa. São muitos os motivos


para isso nos escritos da época: as más companhias, a inclinação à vida desenfreada,
o caráter inconstante dos jovens, o desejo de independência, as dificuldades em
casa, o abuso por parte dos pais, a pobreza extrema da família etc. Em alguns casos,
era o próprio pai que expulsava o filho de casa. Foi o que aconteceu com Antônio
S., preso por furto, conforme relatório do magistrado:

Abandonou a casa há um mês devido à terrível pobreza da família. Já não era


capaz de ganhar para a própria subsistência; seu pai persuadiu-o a tentar a
vida em qualquer outro lugar. E foi o que ele fez.27

É penoso comprovar a negligência das pessoas responsáveis pelos jovens.


As autoridades lamentavam-se de que, com muita frequência, os pais, profes-
sores e empregadores não davam conta dos fugitivos. Esses jovens juntavam-
-se, então, com outros garotos e com vagabundos da rua e aprendiam maus
hábitos com essas companhias.28

Os bandos juvenis
Os bandos eram um capítulo especial na história da delinquência juve-
nil. Nesses anos (1830 a 1840), além da delinquência dos jovens em situação
de risco, fruto da pobreza, dos problemas familiares etc., a prática da violên-
cia e a intimidação de grupos organizados era moeda corrente.

C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 104.


26

C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 104.


27

28
C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 106, citando relatórios policiais
de 1845.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Na década de 1840, tempo em que Dom Bosco iniciou o seu ministério,


consta a existência de “grupos de indesejáveis mafiosos” e “facções crimino-
sas” que cometiam atos de violência com frequência crescente. Esses bandos,
normalmente formados por jovens adultos e até mesmo crianças, sob o con-
trole de um líder ocasional, recebiam o nome de cocche (bandos) na literatura
mais tardia, em 1850 e 1860.29 Desenvolveram sua atividade em várias épocas
nos bairros ao norte da cidade. O bando do caranguejo (cocca del Gambero)
atuava no Borgo Dora no fim dos anos de 1830. O bando do Pó (cocca del
Po) tinha sua base nos limites do bairro de Vanchiglia, perto do rio: em 1840,
cinco de seus membros foram presos e condenados por assassinato. O bando
do balão (cocca del ballon, nome dado à região perto de Porta Palácio e do
Borgo Dora) foi acusado do assassinato de um de seus membros em 1841. O
mais conhecido, e com razão, era o bando do Moschino (cocca del Moschino);
ativo desde meados de 1840, era temido pelas “atividades escandalosas, pela
arrogância e violência”. Felloni cita este, entre outros exemplos:

Depois de passar a tarde bebendo em tabernas baratas, estes brutos dedica-


vam-se com descaramento a assediar ou molestar pessoas indefesas, assaltan-
do-as ao escurecer. Depois, em vez de voltar para casa, reuniam-se à porta de
alguma prostituta, e também de outras mulheres, punham a porta abaixo se
não lhes fosse permitido entrar e descarregavam sua luxúria naquelas desafor-
tunadas vítimas. Em seguida, iam embora, não sem antes ter comido o que
houvesse na casa, destruindo móveis e também batendo na mulher.30

Em 1846, o bando de Santa Bárbara (cocca di Santa Barbara) adquiriu


notoriedade na zona próxima a leste da praça do mercado de Porta Palácio.
Era uma “associação de rufiões que de tempos em tempos perpetravam atos
de violência, especialmente depois do anoitecer, contra cidadãos honrados
que passeavam ao longo do bulevar”.31
Esses bandos, formados por jovens adultos de 16 a 34 anos, não podiam
ser definidos como associações delituosas profissionais; eram agrupamentos
espontâneos de jovens adultos frustrados, sem orientação e sem motivação.
Eram responsabilizados por má conduta de todos os tipos, mas, em geral, não
de delitos graves (assaltos com armas mortíferas ou assassinato). Contudo, o
fato de o fenômeno dos “bandos” ocorrer e persistir era sintoma de uma pro-
funda doença que infectava a sociedade, em especial a juventude.

Cocca, em piemontês, é o nome dado a um tipo de piso de ladrilho ou pão cozido.


29

C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 109, citando documentos do
30

Arquivo Histórico de Turim.


31
G. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 110.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A ordem pública era apenas uma das muitas responsabilidades do vigá-


rio de Turim. Em 1841, ele só dispunha de 4 comissários e de uma pequena
força de 40 policiais. A força aumentou sob o mandato do vigário Miguel
Benso de Cavour na década de 1840, mas nunca foi proporcional à sua mis-
são, pois não havia agentes suficientes nas ruas. Com a ajuda dos militares,
obtiveram sucesso aceitável desbaratando grupos de jovens que vagavam à
noite e levando alguns à justiça.32

As prisões e a política penal


Era inevitável que muitos desses jovens “pobres e abandonados” se me-
tessem em problemas e terminassem na prisão.
Havia 4 prisões em Turim na década de 1840. Baricco escreve, em 1869:
“Há 4 prisões em Turim, sem incluir a central, em construção, que ainda não
está em uso”.33 Duas delas eram para homens e 2 para mulheres; todas loca-
lizadas no interior da cidade.
A Prisão Criminal (Carceri criminali), para homens, localizava-se na rua
São Domingos, no sótão do chamado Palácio do Senado que, mais tarde foi
Corte de Apelação. Era conhecida popularmente como Prisão do Senado ou
do Magistrado da Corte de Apelação. “Este centro é demasiadamente fechado
e superpovoado, sem ventilação, fétido. São mantidos juntos jovens e adultos,
e os que estão apenas detidos convivem com criminosos condenados”.
A Prisão Correcional (Carceri correzionali), para homens, situava-se na
rua dos Impressores. Era conhecida popularmente como Correctionnel, por
causa do nome dado à rua durante a ocupação napoleônica (rue Correction-
nelle). Era destinada aos delinquentes menores. “Não era muito melhor [...].
Também aqui, acusados e condenados, jovens e adultos, viviam todos juntos”.
A prisão destinada a mulheres (Carceri delle forzate), na rua São Domin-
gos, era pequena e malcuidada. Converteu-se, nos anos de 1860, em prisão
de detenção para jovens que ainda aguardavam julgamento.
A Prisão das Torres (Carceri delle Torri), para mulheres, situava-se na
Porta Palatina; era comumente chamada de As Torres. Alojava mulheres cul-
padas de delitos graves ou que respondiam por sérias acusações. “As mulheres
são alojadas em galerias superlotadas e nada adequadas; o espaço é insufi-
ciente e pouco cuidado”. Antes, nos anos de 1830, fora lugar de detenção de
delinquentes juvenis.

32
H. Levra, Il bisogno, 79; C. Felloni, “Giovani”. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco I, 109.
33
P. Baricco, Torino descritta, 285.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Quando foi construída, entre os anos 1862 e 1869, a Prisão Central


(Carcere centrale) na rua Santo Aventor, fora da cidade, com grandes gastos
e mais espaçosa, outras prisões menores ficaram defasadas. Baricco também
menciona uma casa de detenção de mulheres (Casa della pena, também cha-
mada Ergastolo) na rua Nice, bastante distante da cidade. O local fora com-
prado aos vicentinos pelo governo, a fim de servir de prisão correcional para
jovens. Converteu-se em prisão-hospital de mulheres em 1838. Uma de suas
seções servia para isolar e tratar as várias centenas de mulheres com variadas
doenças venéreas.34
Em 1845, foi inaugurada a cara e “moderna” correcional para jovens,
situada junto à praça de uma grande casa de campo chamada La Generala,
na rua Stupinigi, bastante distante da cidade. A prisão, só para jovens, fora
planejada durante muito tempo e fazia parte das reformas sociais, impulsio-
nadas durante o reinado de Carlos Alberto (1831-1849). O rei, apesar da
ambiguidade da sua filosofia pessoal e prática política, tinha compreendido a
importância e necessidade de enfrentar as questões juvenis, levando em conta
a sua situação física, psicológica e social.35
Suas reformas também foram possíveis, graças ao surgimento de uma
nova classe dirigente, saída da classe média e da aristocracia, que certamente
não representava a maioria da sociedade, mas que possuía uma capacidade
técnica muito grande, movida por autêntica preocupação e interesse moral.36
Era essa a situação quando Dom Bosco começou a visitar as prisões, em
1841. Esteve em 2 desses centros, prisões de homens, onde também eram
detidos jovens delinquentes.
As estatísticas de 1831-1846 mostram que o roubo era, de longe, o de-
lito mais comum, chegando a 30% de todos os delitos investigados e levados
ao juiz pela polícia. O delito seguinte mais comum era a violência contra
34
Os dados e as citações sobre o sistema carcerário acima são tirados principalmente de P. Ba-
ricco, Torino descritta, 286. Cf. também MO Silva, 119, notas às linhas 746, 748, 750-752, e N.
Cerrato, Il linguaggio, 226s.
35
O artigo 38 do Código Penal promulgado por Carlos Alberto em 1839 estabelecia claramente
que os delinquentes menores de idade fossem internados em prisões separadas. Outros artigos decre-
tavam que um jovem, de 14 anos ou menos, que tivesse agido sem malícia não era sujeito de processo
e prisão; somente eram responsáveis os menores culpados confessos de delitos com intenção maldosa.
Contudo, Petitti di Roreto, comentando em 1867 o princípio de Carlos Alberto de que “aos jovens
condenados por delitos devem ser mantidos completamente separados dos demais adultos condena-
dos”, lamenta o atraso no cumprimento desse ponto básico da reforma. As prisões eram e continuaram
a ser durante algum tempo escola de corrupção moral para os jovens que nelas viviam misturados aos
adultos. Cf. R. Audisio, La Generala, 30-31.
36
H. Levra, Il bisogno, 88.

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Dom Bosco: história e carisma 1

as pessoas (10%), e mais da metade deles tinha origem em ameaças e per-


seguições provocadas por brigas. Outros, com faltas não criminosas, como
algazarras, ociosidade ou mendicância somavam 50% dos casos relativos à
La Generala.37 Nos dois primeiros anos de funcionamento dessa instituição
(1845-1847), das 295 transgressões, apenas 26,1% chegaram a julgamento
como delitos; destes, 76% eram de transgressões contra a propriedade, não
contra as pessoas. O restante era principalmente de detenções por “precau-
ção” da polícia ou, em menor escala, dos pais.38 No conjunto, em relação à
delinquência juvenil, as estatísticas mostram que na década de 1860, Turim
contava com mais “pobres e abandonados” do que com delinquentes.

3. Enfrentando o problema
O Estado, na década de 1840, fez um significativo esforço para reformar
as antigas estruturas correcionais. E a Igreja, o que fazia?

Insuficiência das estruturas paroquiais


As estruturas paroquiais tradicionais eram incapazes de resolver o pro-
blema; não podiam responder às situações que não lhes correspondiam. A
atividade dos padres do Colégio Eclesiástico que, afinal, não eram os úni-
cos a tomarem alguma iniciativa, só servia para mostrar a inutilidade das
estruturas estabelecidas. Segue-se que tivesse perfeito sentido a resposta
de Dom Bosco às queixas de que ele tirasse os jovens das paróquias. Ele
escreve nas Memórias:

Os jovens que eu reúno não diminuem a frequência às paróquias, porque a


maior parte deles não conhece pároco nem paróquia [...]. Porque são quase
todos de fora, largados pelos pais nesta cidade; ou para cá vieram em busca
de trabalho e não puderam encontrar [...]. A distância da pátria, a diversidade
de língua, a incerteza do domicílio e o desconhecimento dos lugares tornam-
-lhes difícil, para não dizer impossível, ir às paróquias. Além do mais, muitos
deles já são adultos, beirando 18, 20, ou mesmo 25 anos de idade, e são com-
pletamente ignorantes em religião. Quem os convencerá a misturar-se com
meninos de 8 ou 10 anos, muito mais instruídos que eles?39

37
P. Stella, Economia, 168.
38
R. Audisio, La Generala, 193-194.
39
MO, 147s.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

A situação das estruturas tradicionais da Igreja, que eram inúteis, come-


çou a ser enfrentada por uma nova geração de padres, Cocchi, Dom Bosco e
outros, que sentiram o problema. Uma resposta adequada haveria de levá-los
mais longe, e, às vezes, colocou-os em oposição à inadequada estrutura paro-
quial tradicional e à ineficaz prática pastoral do clero mais velho.40

Nova compreensão e novo compromisso


Em termos mais gerais, a resposta e os compromissos surgidos com eles
foram motivados por uma nova compreensão da situação social em que os jo-
vens se encontravam e dos ambientes que os colocavam em situação de risco.
Dom Bosco estava entre os “novos padres” que entenderam e responderam ao
desafio. Ele escreveu na “Introdução ao esboço de Regulamento do Oratório
de 1854”:

Os jovens são o componente mais frágil e, apesar disso, o mais valioso da


sociedade humana, porque neles fundamentamos as nossas esperanças de fu-
turo. Por si só, eles não são corrompidos. Se não fosse pelos pais negligentes,
pela ociosidade, e pela relação com os maus companheiros, com quem con-
vivem principalmente nos domingos e dias festivos, seria muito fácil incul-
car em seus jovens corações princípios morais e religiosos, de ordem, de boa
conduta, de respeito, de prática religiosa. Porque, sabendo-se que se foram
condenados em sua idade juvenil, isso se deveu mais à ignorância do que à
malícia. Estes jovens tem real necessidade de alguma classe de pessoas que
cuidem deles, trabalhem com eles, guiem-nos na virtude e mantenha-os longe
dos perigos [...]. Os Oratórios devem ser considerados entre os meios mais
eficazes para infundir o espírito religioso nos corações ainda não formados
dos jovens abandonados.41

Dom Bosco expressava semelhante compreensão e preocupação no pre-


âmbulo do primeiro rascunho das primeiras Constituições Salesianas (1858).
Depois de lamentar o abandono dos pais e outras causas de risco, escreve:

Os nossos esforços devem tender a salvaguardar a fé e a vida moral dessa ca-


tegoria de jovens, cuja salvação está em maior perigo, precisamente pela sua
pobreza. Este é o fim específico da Congregação de São Francisco de Sales,
estabelecida primeiramente em Turim no ano de 1841.42

Cf. P. Stella, Vita, 101-107.


40

O texto completo da Introdução e esboço histórico dos Regulamentos do Oratório de 1854 será
41

dado mais adiante.


42
F. Motto, Costituzioni, 60.

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Apêndice

TURIM E A CASA DE SABOIA. UM RESUMO HISTÓRICO

Turim romana e medieval


A região que chamamos hoje de Piemonte foi habitada inicialmente por
tribos celtas e lígures. Não há informação sobre a Turim pré-romana, salvo a
notícia de Políbio, historiador romano, que narra a destruição do primeiro as-
sentamento pelos cartagineses, cujo líder Aníbal, invadira a Itália em 218 a.C.
Mais tarde, o assentamento chegou a ser posto avançado de apoio às
operações militares de Júlio César na Gália (58-50 a.C.), e recebeu o nome
de Iulia. No ano 29-28 a.C., o castrum (posto militar) transformou-se em co-
lônia chamada então (Iulia) Augusta Taurinorum. Os taurinos (povo lígure?)
habitavam a região.
Os romanos traçaram uma típica rede quadrada de 70 blocos, cruzados
pelas usuais vias principais – cardo e decumanus –, que ainda se podem reco-
nhecer nas ruas modernas. As altas muralhas também foram fortificadas com
torres defensivas de 70 metros. Nos tempos do Império Romano (séculos II e
III d.C.) a colônia chegou a ter uma população de 7 mil habitantes, incluída
a divisão militar.
Com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), Turim foi
saqueada e ocupada repetidas vezes por causa de sua posição estratégica. Pri-
meiramente, chegou a ser um assentamento da milícia bizantina; mais tarde,
capital do ducado longobardo. Os longobardos, povo germânico procedente
do baixo Elba, invadiram a península itálica em 568 e fundaram um reino no
vale do Pó, que seria conquistado por Carlos Magno em 774. Sob o domínio
longobardo surgiram grandes fazendas (curtes) contrapostas às pequenas con-
cessões de terra comunal dos camponeses (mansi). Quando Carlos Magno
conquistou o reino, transformou-o em condado franco. Até o final do século
X, Turim era o centro de uma Marca, que incluía condados no Piemonte,
Ligúria e Lombardia.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

A Casa de Saboia
Em fins do século X e inícios do XI, Humberto I (1040 c.), chamado
Mãos Brancas (conde Biancamano), talvez originário da Saxônia ou da Borgo-
nha, mantinha extensas possessões nos altos Alpes da Saboia, incluídos alguns
passos da montanha até a Itália. Foi premiado com territórios adicionais na
zona da Saboia por serviços prestados ao imperador Conrado II, que conse-
guira converter o Sacro Império Romano em Império Germânico. O conde
Humberto I é considerado, por isso, fundador da dinastia de Saboia, uma das
mais antigas dinastias reinantes na Europa (até 1946).
A Marca de Turim passou por herança a Adelaide de Susa, que se
casou com Odão, filho de Humberto I de Saboia. Turim veio a ser, assim,
domínio dos Saboia. Em 1097, Humberto II de Saboia herdou a Marca de
Turim, mas não pôde tomar posse de imediato, dominando apenas Susa e
a região alpina.

Turim e o Ducado de Saboia


Durante os três ou quatro séculos seguintes, os condes de Saboia e Tu-
rim envolveram-se nas lutas que bispos e senhores feudais mantiveram no
Sacro Império Romano. Por causa de sua posição estratégica, pois controlava
a rota que levava dos Alpes a Roma e ao Mediterrâneo, Turim mudou muitas
vezes de mãos.
Na Idade Média e na época das Comunas, Turim lutou em diversos
momentos pela independência em oposição aos Saboia. Enquanto nesse tem-
po, numerosas cidades de origem romana tiveram desenvolvimentos urbanos
radicais, Turim manteve basicamente o caráter de castrum e a condição rural.
Quando em 1377 foi feito o primeiro recenseamento, Turim tinha apenas
4.200 habitantes no interior de suas muralhas. No entanto, tinham surgido
numerosos povoados na zona sob a sua proteção, fato que alterou a estrutura
social e econômica da região.
Em 1416, o imperador Sigismundo elevou Saboia a Ducado, sendo o
conde Amadeu VIII o primeiro duque de Saboia e Turim.
Em 1536, o rei francês Francisco I anexou Turim à coroa francesa. Nessa
época, seus habitantes chegavam a 20 mil. O século XVI foi dominado pela
supremacia entre a dinastia francesa Valois-Angulème e os Absburgos do Im-
pério, e entre Espanha e Inglaterra.
Durante a luta, os duques de Saboia cederam território a Berna (Suíça) e
perderam suas posses durante algum tempo para a França. Com o tratado de

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Dom Bosco: história e carisma 1

Chateau-Cambrésís (1559), o duque Manuel Filiberto reconquistou o domí-


nio sobre a Saboia e a Marca de Turim (Piemonte).
Em 1563, o duque Manuel Filiberto, por razões estratégicas e políticas,
transferiu a capital do ducado de Chambéry para Turim. Esse fato e o au-
mento dos habitantes ao longo do período de anexação francesa obrigaram o
desenvolvimento urbano. O duque ampliou as defesas da cidade, a começar
da fortaleza militar (cidadela) a sudoeste. O desenvolvimento urbano mais
esmerado da capital teve início com o século XVII e tinha por objetivo eli-
minar os edifícios medievais construídos sem projeto e refundar a cidade, de
acordo com o planejamento romano.
O duque Carlos Emanuel I (1580-1630) casou-se com Catarina da
Espanha. Deles descenderam os dois principais ramos históricos da casa de
Saboia: o primeiro e mais antigo, Saboia, reinou de 1630 a 1831, quando
morreu o rei Carlos Félix; o ramo colateral dos Saboia-Carignano, iniciado
com o rei Carlos Alberto, reinou de 1831 a 1946.
A peste de 1630 reduziu a população de Turim a apenas 11 mil pessoas.
A subsequente expansão continuou normalmente; nos inícios do século XVIII,
a população chegava a 44 mil habitantes.

Turim no Reino da Sardenha


Em 1706, os franceses sitiaram Turim, mas foram repelidos, e Vítor
Amadeu II construiu a Basílica de Superga para comemorar a vitória. As
hostilidades continuaram durante o século XVIII. Pelo tratado de Utrecht
(1713), o duque Vítor Amadeu II foi nomeado rei da Sicília e, por permuta,
rei da Sardenha (1720), pois a Sicília fora cedida ao imperador Carlos VI.
Desde então, a Saboia, o Piemonte (incluindo Nice) e a Sardenha ficaram
conhecidos como Reino da Sardenha.
O século XVIII foi um período de notáveis arquitetos, como Guarini
e Juvarra, que deixaram na velha cidade de Turim a marca do seu estilo
arquitetônico.

Turim durante a Revolução Francesa e o período napoleônico


Em 1792, no auge da Revolução Francesa, a Sardenha uniu-se à coali-
zão de nações europeias na guerra contra a França, embora grupos de inte-
lectuais de Turim (como em outras importantes cidades da Itália) apoiassem
as ideias revolucionárias.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Na campanha italiana de 1796-1800, Napoleão derrotou os austríacos,


ocupou o norte da Itália e estabeleceu ali um governo republicano com Turim
como capital do departamento francês do Pó. Carlos Manuel IV de Saboia
e a família real retiraram-se para a ilha da Sardenha, que Napoleão não teve
interesse em invadir. Em 1800, a população do lado de dentro das muralhas
chegava a 60 mil.
Durante o período napoleônico (1800-1814), as muralhas da cida-
de foram quase completamente derrubadas para permitir maior expansão.
Construíram-se bulevares e ruas longas e retas ao norte, sul e oeste da
cidade antiga.

Turim dos reis Carlos Alberto e Vítor Manuel II


Durante a Restauração, em 1814, Vítor Manuel I (1802-1821) retornou
a Turim. Ao abdicar, durante a “revolução dos carbonários”, foi sucedido por
Carlos Félix (1821-1831). À morte deste, o trono passou a Carlos Alberto, do
ramo Saboia-Carignano, que reinou até sua abdicação em 1849.
Sob Carlos Alberto, primeiro rei do Ressurgimento italiano, a cidade
vivenciou sucessivas expansões. De modo particular, a década de 1840 viveu
o primeiro impulso para a industrialização com a adequação gradual da vida
social e das instituições. Com a aceitação de Carlos Alberto da Constituição
de 1848, o reino da Sardenha converteu-se numa monarquia constitucional e
liderou a unificação da Itália. O exército piemontês foi derrotado na primeira
guerra contra a Áustria (1848-1849); em seguida, Carlos Alberto abdicou,
vindo a falecer no exílio (1849).
O filho de Carlos Alberto, Vítor Manuel II (1849-1878), foi o primeiro
rei da Itália unificada em 1861. Em 1866, a capital passou de Turim a Floren-
ça e, depois da ocupação de Roma em 1870, de Florença a Roma.
Dom Bosco foi ordenado em Turim e estudou no Colégio Eclesiásti-
co durante o reinado de Carlos Alberto (1831-1849). Em Turim, iniciou
sua obra com os jovens (1841), fundou o Oratório de São Francisco de
Sales (1844) e desfrutou da proteção e ajuda da família real. Vivenciou
a Revolução Liberal de 1848 e a implantação de uma nova ordem social
e política.
As opções de Dom Bosco foram feitas, portanto, no contexto das mais an-
tigas tradições relacionadas com a capital do Piemonte e da Casa de Saboia,
assim como no contexto das recentes evoluções sociais e políticas

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Dom Bosco: história e carisma 1

Casa de Saboia

OS PADRES NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX.


NÚMERO, SITUAÇÃO E OCUPAÇÕES
Número dos padres antes, durante e depois da Revolução Liberal de 1848
Os padres, no século XVIII, eram muito numerosos, não bem escolhidos,
bastante mal-formados e nem sempre bem-empregados. Muitos deles passa-
vam o tempo em reuniões sociais, ocupados em distrações profanas. Houve
bispos que, tentando pôr em prática algumas das reformas ordenadas pelo
Concílio de Trento, viram-se forçados a expulsar todos os seus seminaristas e
começar tudo de novo.
Os padres na Itália, até o final do século, eram em número excessivo. Em
Turim, pouco antes da Revolução Francesa (1879), o percentual era de 1 para
cada 70 habitantes, enquanto em 1861, ano da unificação da Itália, a média
era de 1 para 335 habitantes. Turim era a cidade piemontesa que tinha o clero
mais abundante. Sua diminuição numérica foi compensada em grande parte
pela melhoria da qualidade.
Durante a Revolução Francesa e o período napoleônico, o número de
vocações sacerdotais e de ordenações sofreu uma dramática redução. A situa-
ção foi recuperada com a Restauração, mas os números não se igualaram aos
dos tempos da pré-revolução. Em alguns lugares, a média caiu à metade.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

O censo de 1833
O censo feito pelo arcebispo Fransoni em 1833, no auge da Restaura-
ção, confirma que, aos poucos, a situação do clero chegara à “normalidade”.
Quanto ao clero secular, são estas as estatísticas: havia 1.651 padres seculares
e 455.772 habitantes católicos na diocese de Turim, com a média de 1 padre
para cada 276 pessoas. Os padres, contudo, estavam muito mal distribuídos.
O vicariato de Turim contava com 526 padres, 1 para cada 199 pessoas; o
vicariato de Chieri tinha 98 padres, ou seja, 1 para cada 264 pessoas. Chieri,
porém, dispunha de muito clero religioso. O vicariato de Castelnuovo tinha
30 padres, 1 para cada 336 pessoas.
Como era lógico, nas sedes dos vicariatos havia, em geral, uma concen-
tração maior de padres. Turim tinha 482 padres para 81.550 católicos, por-
tanto, 1 padre para 169 pessoas. As zonas montanhosas, isoladas a noroeste,
possuíam número menor de padres. No vicariato de Viù, a média era de 1 pa-
dre para cada 520 pessoas. Na paróquia montanhosa de Usseglio, no mesmo
vicariato, havia apenas 1 sobrecarregado padre a serviço de 2.541 habitantes
dispersos pelas aldeias isoladas dos Alpes.43

O ano da ordenação de Dom Bosco e as ordenações da década


Em 1841, os padres de Turim chegavam a cerca de 800 para uma popula-
ção de 160 mil habitantes (1 para cada 200). Contudo, nas décadas seguintes,
depois da Revolução Liberal, houve uma diminuição geral de vocações e de
ordenações sacerdotais. As mortes ultrapassavam amplamente as ordenações.
As estatísticas das ordenações são uma ajuda preciosa para compreender
a situação. Em 1841, quando Dom Bosco foi ordenado, 47 padres foram
ordenados na diocese de Turim. No ano anterior, foram 70. No ano seguinte,
79. Embora essa flutuação não revele uma tendência clara, ela fica mais evi-
dente quando se contemplam as décadas.
Década Ordenados Acontecimentos na década
1831-1840 663 Auge da Restauração
1841-1850 581 Estouro da Revolução Liberal
1851-1860 262 1ª década da Revolução Liberal
1861-1870 249 Unificação da Itália - 2ª década da Revolução Liberal
1871-1880 196 3ª década da Revolução Liberal - Reformas de dom Gastaldi
1881-1890 412 Retorno à normalidade sob o arcebispo Alimonda

43
A. Giraudo, Clero, 82.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Levando em conta a situação, pode-se entender a preocupação e a ati-


vidade de Dom Bosco pelas vocações sacerdotais, durante os tempos mais
duros da Revolução Liberal.44
Durante as duas décadas em que Dom Bosco esteve em formação ou em
seus primeiros anos de sacerdócio, houve uma superabundância de vocações.
A situação, obviamente, facilitava aos padres zelosos e comprometidos, como
Dom Bosco, escolherem variados ministérios não diocesanos.

Ocupação ministerial dos padres no período da Restauração45


Pode-se falar de três tipos de ocupação ministerial dos padres dioce-
sanos: 1) encarregados do ministério no interior das estruturas pastorais
diocesanas (párocos, coadjutores, padres de aldeias, diretores espirituais ou
capelães de centros caritativos, hospitais, internatos e conventos); 2) profes-
sores e administradores (de escolas municipais e secundárias, de seminários
e universidades, tutores particulares, administradores e auxiliares de institui-
ções); 3) beneficiários, com ou sem obrigações (cônegos, capelães honorários,
padres retirados das atividades e enfermos, padres que atendiam a interesses
familiares).
Metade do clero diocesano poderia ser classificada na primeira catego-
ria. Em Turim, chegavam a quase um terço do número total dos padres. É
46

justo assinalar, também, a existência de um número desproporcionado de


padres não pastores. Assim escreve a dom Chiaverotti um seminarista que
não dispunha do dote requerido para sua ordenação:

Fico perplexo ao ver tantos padres com batina e tão poucos a trabalhar, quan-
do a messe é tão grande. Não consigo encontrar outra razão, senão a de que os
padres de classe elevada são apegados ao próprio bem-estar: os ricos desejam
desfrutar de suas riquezas. Os que possuem escassos ou poucos bens procu-
ram aumentá-los servindo nas casas da nobreza. A maior parte dos padres
vistos na cidade é deste tipo. Excelência, asseguro-lhe que se tivesse desejado
viver assim, teria de sobra para o dote, pois já tenho uma oferta garantida
desde o início, caso seguisse esse caminho.47

44
A resposta decidida de Dom Bosco à crise incluía o seguinte: abertura do Oratório como
substituto do seminário no tempo em que durou o fechamento do seminário diocesano (1849-1863),
inserção da “cláusula seminário” nas Constituições (1860, Finalidade, art. 5º), início da Obra de Maria,
Auxiliadora dos Cristãos (Filhos de Maria, 1875).
45
Para esta seção, ver A. Giraudo, Clero, 94-115.
46
Havia padres da segunda e terceira categorias que, por opção pessoal, ajudavam os que estavam
diretamente envolvidos no ministério pastoral.
47
A. Giraudo, Clero, 95.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Párocos, coadjutores e colaboradores


Durante o retorno do ancien régime, na Restauração, a paróquia conti-
nuou a desempenhar o papel pastoral central: os párocos permaneceram no
próprio posto, pois, aparentemente, não foram vistos como demasiadamen-
te implicados na política durante o período napoleônico. As ordens religio-
sas, em sua maior parte suprimida no período de Napoleão, estavam muito
ocupadas na própria reorganização, para se ocuparem seriamente na pastoral
paroquial. As dificuldades encontradas pelos pastores foram devidas às paró-
quias vacantes, 16 das 242 da arquidiocese em 1820.
Em 1841, Turim contava com uma população de 160 mil habitantes
para cerca de 800 padres, incluindo os religiosos. A cidade estava dividida em
15 paróquias, sendo 12 dentro da cidade e 3 nos subúrbios.
As paróquias também contavam com capelas e igrejas não paroquiais a
serviço de irmandades, confrarias, escolas, conventos, instituições caritativas
etc. Eram dirigidas por capelães que não participavam da organização paro-
quial. A escassez de padres disponíveis para o serviço pastoral refletia-se no
reduzido número de coadjutores nas paróquias. O salário de um coadjutor
era baixo (100-150 liras), se comparado com a remuneração média de um
professor (500 liras). Ser nomeado coadjutor não devia ser, por isso mesmo,
atrativo. Se um jovem padre o aspirava ou desejasse, talvez fosse porque era
o caminho para chegar a pároco. A maioria dos jovens padres preferia buscar
emprego permanente mais seguro e vantajoso.
Depois da ordenação, Dom Bosco recebeu a oferta de ser coadjutor
do padre Cinzano em Castelnuovo, oferta em si mesma interessante. Pa-
dre Cinzano, amigo e protetor, tornara-a economicamente valiosa, por-
que os ganhos de um coadjutor dependiam, em grande parte, da genero-
sidade do pároco.

Capelães de aldeias e outras capelanias


As aldeias eram numerosas; Castelnuovo possuía quatro delas, e cada
uma contava com uma igreja. Nas cidades e nas povoações menores, havia
capelas de irmandades e de outras instituições. O capelão assumia obrigações
de natureza litúrgica, não paroquiais, que eram minuciosamente estipuladas
no regulamento. Nas aldeias remotas, era comum que os capelães atuassem
como professores das crianças na escola elementar. As capelas costumavam
dispor de algum benefício ou fundação, mas poucas ofereciam ganhos sufi-
cientemente importantes para tornar o cargo atrativo. Por isso, muitas cape-
lanias permaneciam vacantes.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A capela de São Pedro de Murialdo, uma das aldeias de Castelnuovo, ficara


vacante até quando padre João Calosso aceitou o posto em 1829. O patroci-
nador, senhor Espírito Sartoris, aumentara recentemente a renda até a quantia
anual de 800 liras. Padre Calosso morreu em 1830 e a capelania continuava
vacante ainda em 1841, quando foi oferecida a Dom Bosco, recém-ordenado.
Em 1844, após os três anos passados no Colégio Eclesiástico, ofereceram
a Dom Bosco o lugar de capelão ou diretor espiritual de um dos centros da
marquesa Barolo, com o salário de 600 liras. Dom Bosco aceitou-o. A carido-
sa senhora dava emprego a muitos capelães, oferecendo-lhes salários substan-
ciosos, também com a finalidade de favorecer aos jovens padres a estabilidade
no trabalho do ministério pastoral.

Padres no ensino e na administração de escolas


Os padres professores eram numerosos. No recenseamento de 1821, du-
rante o governo do arcebispo Chiaverotti, há uma lista de 168 professores nas
paróquias fora de Turim e 27 diretores de escolas. Esses padres desempenha-
vam um papel importante apoiando paróquias e cidades que, de outra forma,
em muitos casos, não poderiam oferecer nem sequer o ensino fundamental.
Com frequência, o coadjutor numa paróquia era, também, professor. Foi esse
o caso dos padres José Virano e Nicolau Moglia em Castelnuovo e Moncuco,
respectivamente, quando João Bosco foi para a escola em Castelnuovo em
1830-1831. Em Turim os professores eram ainda mais numerosos. Na época
do recenseamento de 1821, viviam na paróquia de Santo Eusébio 47 padres,
dos quais 18 exerciam o cargo de professores nas escolas, um era diretor do
colégio das Províncias e três eram empregados na Universidade (secretário,
bibliotecário e prefeito).

Padres sem trabalho pastoral


Havia padres, sobretudo na capital, sem trabalhos pastorais. Viviam de
empregos remunerados (por exemplo, administrando pensões ou rendas de
propriedades familiares). Na paróquia de São Dâmaso de Turim o pároco
contava com 32 desses padres, “que rezavam missa em qualquer lugar”.
Nos povoados fora de Turim residiam numerosos padres, idosos ou
doentes, e antigos padres religiosos que não retornaram às comunidades
depois da supressão de Napoleão. Havia também padres que viviam de
benefícios eclesiásticos pessoais, sem qualquer obrigação, e padres que dedi-
cavam o próprio tempo aos negócios de família. Destes últimos, os párocos
locais nada tinham a dizer de bom em seus relatórios.

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Jovens “pobres e abandonados” na Turim dos meados do século xix

Em resumo, parece que um número muito grande de padres (em Turim,


cerca de 400) tinha pouco ou nenhum trabalho pastoral. Mesmo quando não
se deve pensar com critérios do século XVIII, quando o número de padres era
elevado e o controle e a disciplina eram relaxados, o juízo de Cottino, citado
por Stella, tomado com suas devidas reservas, acerta na descrição da situação
no tempo de Dom Bosco:

Havia grande número de padres nessa época. Eles, frequentemente, encon-


travam emprego por iniciativa pessoal, como tutores ou pedagogos nas casas
da nobreza ou dos ricos, e não contavam com uma destinação dada pelo
bispo. Durante muito tempo (centrando-nos no século XIX), os padres eram
deixados à própria iniciativa em relação ao trabalho, simplesmente porque
eram muitos [...]. Devia-se competir, até mesmo, por um posto de coadjutor
numa paróquia e esta era uma nomeação aspirada. Se alguém era economi-
camente independente pelas circunstâncias familiares ou tinha outros meios
de subsistência, vivia certamente em sua própria casa e empregava seu tempo
conforme o próprio gosto; estava fora de qualquer preocupação do bispo.
Não menos de 12 padres podiam viver numa pequena povoação da comarca.
Se esses padres optassem por passar o tempo em caçadas, este seria o menor
dano que podiam causar.48

Sendo assim as coisas, entende-se como era fácil para um padre obter
a aprovação do seu bispo, caso desejasse iniciar um ministério especial em
benefício do povo, sobretudo se esse trabalho não custasse dinheiro às fi-
nanças da diocese. Por isso, compreende-se que padres zelosos, como alguns
estudantes do Colégio Eclesiástico, Dom Bosco entre eles, reivindicassem mi-
nistérios especiais fora das estruturas diocesanas e paroquiais, sem mandato
expresso do arcebispo.

48
P. Stella, Il prete piemontese, 92; Sussidi 2, 31.

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Capítulo XV

OS INÍCIOS DO ORATÓRIO
DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Os primeiros exercícios do ministério pastoral aos quais Dom Bosco se


dedicou, dirigido pelo padre José Cafasso, levaram-no a “descobrir” que devia
transformar sua vida para sempre. Em seguida, por instinto natural e cristão,
sentiu-se atraído pelos jovens chamados, nos escritos da época, de “pobres e
abandonados”. Pouco antes de entregar-se totalmente a eles, seu compromisso
converteu-se em “vocação”. Dom Bosco acreditava que o Oratório era o ins-
trumento pensado pela Providência para reunir, evangelizar, educar e cuidar
desses jovens. Passamos, agora, a narrar os inícios dessa obra: o Oratório de
Dom Bosco no Colégio Eclesiástico e na igreja de São Francisco de Assis.1

1. Os inícios do Oratório nas Memórias de Dom Bosco


Nas Memórias do Oratório, escritas cuidadosamente em meados da déca-
da de 1870, fruto de madura reflexão, Dom Bosco quis oferecer aos futuros
salesianos uma interpretação definitiva e privilegiada do significado da sua
obra. De aí resulta ser de suma importância a descrição do início da obra e
da categoria de jovens.
1
Além das Memórias de Dom Bosco, podemos oferecer agora as primeiras afirmações de Dom
Bosco recentemente publicadas. Cf. Pietro Braido, Don Bosco per i giovani: l’ “Oratorio” una “Congrega-
zione degli Oratori”. Documenti. Roma: LAS, 1988. Os documentos do arquivo criticamente editados por
Braido são a Introdução [ao Regulamento] e Nota histórica (Cenno storico), que serviram como esquema
para o Esboço de Regulamento do Oratório de Dom Bosco (Piano di regolamento) de 1854 e a separata
dos Cenni storici de 1862 [Nota histórica de 1854 e Notas históricas de 1862]. Os autógrafos de Dom
Bosco da Introdução e da Nota histórica de 1854 podem ser vistas em ASC A220ss: Oratorio 1, FDB
1,872 B3-C5. Uma cópia completa dos Regulamentos (não das mãos de Dom Bosco) encontra-se em
ASC A136ss: Regolamento dell’Oratorio, FDB 1,955 D6 - 1,956 3. Esses Regulamentos começaram a ser
escritos nos inícios da década de 1850, tendo por base a experiência obtida até então. O esboço que se leva
em consideração data de 1854. Ver o texto completo no capítulo VI. As Notas históricas de 1862 estão em
ASC A220ss: Oratorio 2.1, FDB 1,972 C10-D4 (autógrafo de Dom Bosco); 2.2, FDB 1,972 E9 -1,973
A6 (cópia corrigida por Dom Bosco) e 2.3, FDB 1,972 E1 - 8 (última cópia corrigida por Dom Bosco).

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

“Jovens saídos da prisão voltavam logo a ela”


Tão logo Dom Bosco matriculou-se no Colégio Eclesiástico, Cafasso
encarregou-o de visitar as prisões nas quais, pela primeira vez, ele se defron-
tou com a condição alarmante e lamentável de muitos jovens ali detidos. Ele
mesmo relata essa experiência:
Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos, todos eles sãos, robustos, e de vivo engenho,
mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à míngua de pão espiritual e temporal,
foi algo que me horrorizou [...]. Qual não foi, porém, minha admiração e surpresa
quando percebi que muitos deles saíam com firme propósito de vida melhor e, não
obstante, voltavam logo à prisão, da qual haviam saído poucos dias antes.2

Dom Bosco perguntava-se se poderia fazer alguma coisa por eles. Depois
de conversar com padre Cafasso, estabeleceu um plano: começar a reunir os
jovens e cuidar deles:
Mal entrei no Colégio de São Francisco, vi-me logo cercado por um bando
de meninos que me acompanhavam em ruas e praças, até mesmo na sacristia
da igreja do instituto. Não podia, entretanto, cuidar deles diretamente por
falta de local. Um feliz encontro proporcionou-me a oportunidade de tentar
a concretização do projeto em favor dos meninos que erravam pelas ruas da
cidade, sobretudo dos que deixavam as prisões.3

Depois de narrar o “feliz encontro” com o jovem Bartolomeu Garelli na


sacristia da Igreja de São Francisco de Assis, ele continua:
Durante aquele inverno limitei-me a alguns jovens adultos que tinha neces-
sidade de catequese especial, sobretudo aos que saíam da cadeia. Pude então
constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso encontrem mão
bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure arranjar-lhes em-
prego com bons patrões e visitá-los de quando em quando ao longo da sema-
na, tais rapazes dão-se a uma vida honrada, esquecem o passado, tornam-se
bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso Oratório.4
Embora minha finalidade fosse recolher somente os meninos em maior peri-
go, de preferência os que deixavam a cadeia, todavia para ter uma base sobre
a qual fundar a disciplina e a moralidade convidei alguns outros de boa con-
duta e já instruídos [na religião].5
Todos os sábados ia às prisões com os bolsos cheios de fumo, ou de frutas, ou
de pãezinhos, sempre com o fito de atender aos rapazes que tinham a desgraça

2
MO, 120-121.
3
MO, 122.
4
MO, 125.
5
MO, 126.
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Dom Bosco: história e carisma 1

de serem encarcerados, e assisti-los, torná-los amigos e conseguir que viessem


ao Oratório ao deixarem o lugar de castigo.6

Sacristia da igreja de São Francisco de Assis


(foto de Leonard von Matt).

As palavras de Dom Bosco parecem indicar que os jovens encontrados


na prisão foram a sua primeira preocupação e que, uma vez fora da prisão,
eles formaram o primeiro grupo do Oratório. Contudo, no mesmo relato,
Dom Bosco fala do “feliz encontro” relacionado com um menino chamado
Bartolomeu Garelli, que não tinha saído da prisão, mas se refugiara numa
sacristia, presumivelmente para abrigar-se do frio.

Bartolomeu Garelli e o início do Oratório


Dom Bosco narra que, na festa da Imaculada (8 de dezembro de 1841),
pouco mais de um mês depois de matricular-se no Colégio Eclesiástico,
encontrou-se com um rapaz na sacristia da igreja de São Francisco de Assis.
As circunstâncias do encontro e o diálogo permaneceram no centro da tra-
dição salesiana. Transcrevemos apenas a passagem pertinente das Memórias
com uma narração do mesmo episódio da Crônica do padre Ruffino. Dom
Bosco escreveu seu relato em 1874. A história, porém, sem data e sem men-
ção de nome, provavelmente ouvida de Dom Bosco, é relatada pelo padre
Ruffino numa página da Crônica de 1860.
6
MO, 128.

408

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

O episódio nas Memórias, de O episódio narrado na crônica do


Dom Bosco (1874)7 padre Ruffino8

Mal entrei no Colégio de São Francisco, vi-me logo cercado por Inícios do Oratório
um bando de meninos que me acompanhavam em ruas e praças, No ano... Dom Bosco encontrava-se no
até mesmo na sacristia da igreja do instituto. Não podia, entretan- Colégio de São Francisco de Assis.
to, cuidar deles diretamente por falta de local. Um feliz encontro
proporcionou-me a oportunidade de tentar a concretização do No dia da festa da Imaculada Conceição,
projeto em favor dos meninos que erravam pelas ruas da cidade, quando estava se vestindo para a Santa
sobretudo dos que deixavam as prisões. Missa, observou um rapazinho de 15-16
No dia solene da Imaculada Conceição de Maria, 8 de dezembro anos de idade que ia de um lado a outro na
de 1841, estava, à hora marcada, vestindo-me com os sagra­dos sacristia, esperando para ouvir Missa.
paramentos para celebrar a santa missa. O sacristão perguntou-lhe se poderia aju-
O sacristão José Comotti, vendo um rapazinho a um canto, con- dar a Missa.
vidou-o a ajudar-me a Missa. Quando o rapazinho respondeu que não
– Não sei – respondeu ele, todo mortificado. sabia fazê-lo, o sacristão pegou o espanador
– Vem – replicou o outro –, tens de ajudar. e desferiu-lhe um par de golpes na cabe-
– Não sei – retorquiu o rapaz – nunca ajudei. ça perguntando-lhe, irado (e exigindo-lhe
– És um animal – disse o sacristão enfurecido. – Se não sabes que soubesse), o que estava fazendo ali.
ajudar a missa, que vens fazer na sacristia?
E, assim dizendo, tomou do espanador e começou a desferir gol- Dom Bosco ouviu (a rixa) e perguntou ao
pes nas costas e na cabeça do pobrezinho. sacristão:
Enquanto este fugia, gritei em voz alta: – Por que o tratas assim?
– Que está fazendo? Por que bater nele desse jeito? Que é que ele fez? – Tu o conheces? Replicou o sacristão.
– Se não sabe ajudar a missa, por que vem à sacristia? – Sim, disse Dom Bosco, conheço-o; é
– Mas você agiu mal. meu amigo.
– E que lhe importa? Só o conhecia por tê-lo visto apenas uns
– Importa muito, é um meu amigo; chame-o imediatamente, minutos antes.
preciso falar com ele.
– Oi, rapaz! – pôs-se a chamar; e correndo atrás dele e garantindo- Então, o sacristão disse ao rapaz:
-lhe melhor tratamento trouxe-o para junto de mim. – Vem, Dom Bosco quer falar contigo.
O rapaz aproximou-se a tremer e a chorar pelas pancadas re-
cebidas. O rapaz aproximou-se. Dom Bosco per-
– Já ouviste missa? – disse-lhe com a maior amabilidade que pude. guntou-lhe se tinha ouvido a Missa.
– Não – respondeu.
– Vem então ouvi-la. Depois gostaria de falar de um negócio que – Não, respondeu.
vai-te agradar. – Vem, ouça a Missa com devoção, disse-
Prometeu. Era meu desejo aliviar o sofrimento do pobrezinho e -lhe Dom Bosco. Volta depois, porque
não deixá-lo com a má impressão que lhe causara o sacristão. preciso dizer-te algo muito importante.
Celebrada a santa Missa e terminada a ação de graças, levei o rapaz
ao coro. Com um sorriso no rosto e garantindo-lhe que já não Quando terminou a Missa, o rapaz encon-
devia recear novas pancadas, comecei a interrogá-lo assim: trou-se com Dom Bosco na sacristia.
Meu bom amigo, como te chamas?
– Bartolomeu Garelli. – Como te chamas? Perguntou-lhe Dom
– De onde és? Bosco.
– De Asti. – N. N. – foi a resposta.
7
MO, 122.
8
ASC A012: Cronica, Ruffino, Caderninho 1, 28-30 (1860): MB II, 70.

409

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Dom Bosco: história e carisma 1

– Tens pai? – Sabes ler?


– Não, meu pai morreu. – Não.
– E tua mãe? – Sabes escrever?
– Morreu também. – Não.
– Quantos anos tens? – Sabes cantar?
– Dezesseis. – Não.
– Sabes ler e escrever? – Sabes assobiar?
– Não sei nada. O rapaz sorriu.
– Já fizeste a Primeira Comunhão? – Diz-me, então: foste admitido à Co-
– Ainda não. munhão?
– Já te confessaste? – Não.
– Sim, quando era pequeno. – Pois bem, mais tarde, na tal e tal hora,
– E agora, vais ao catecismo? volta aqui, e eu te ensinarei.
– Não tenho coragem. Àquela tarde, o rapaz retornou para sua
– Por quê? aula. Antes, porém, Dom Bosco pediu
– Porque meus companheiros mais pequenos sabem o catecismo, ao jovem que se unisse a ele numa ora-
e eu, tão grande, não sei nada. Por isso fico com vergonha de ir a ção a Maria Imaculada, para que ela o
essas aulas. ajudasse a aprender as verdades básicas
– Se te desse catecismo à parte, virias? da fé e para que ela inspirasse a muitos
– Então sim. outros jovens necessitados que viessem
– Gostarias que fosse aqui mesmo? até ele para se instruírem nas mesmas
– Com muito gosto, contanto que não me batam. verdades.
– Fica sossegado, que ninguém te maltratará. Pelo contrário, serás
meu amigo. Terás de haver-te só comigo e mais ninguém. Quando E assim começou...
queres começar?
– Quando o senhor quiser.
– Esta tarde serve?
– Sim.
– E se fosse agora mesmo?
– Sim, agora mesmo. Que bom!
Levantei-me e fiz o sinal da cruz para começar; meu aluno não
o fez porque não sabia. Naquela primeira aula procurei ensinar-
-lhe a fazer o sinal da cruz e a conhecer Deus Criador e o fim por
que nos criou. Embora tivesse pouca memória, conseguiu, com
assiduidade e atenção, aprender em poucos domingos as coisas
necessárias para fazer uma boa Confissão e, pouco depois, a sa-
grada Comunhão.
A esse primeiro aluno juntaram-se outros mais. Durante aquele
inverno limitei-me a alguns adultos que tinham necessidade de
catequese especial, sobretudo aos que saíam da cadeia. Pude então
constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso en-
contrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos,
procure arranjar-lhes emprego com bons patrões e visitá-los de
quando em quando ao longo da semana, tais rapa­zes dão-se a uma
vida honrada, esquecem o passado, tornam-se bons cristãos e ho-
nestos cidadãos. Essa é a origem do nosso Oratório

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

Ao comparar os dois relatos, percebe-se que a cena e o diálogo na rela-


ção de Ruffino, de 1860, é menos dramática da de Dom Bosco, em 1874,
embora ambos indiquem claramente o tema central. A narração de Ruffino
não menciona que o rapaz fosse órfão, nem seu nome, nem a data do fato.
Contudo, acrescenta alguns detalhes que, sem aparecer nas Memórias, passa-
ram a fazer parte do relato tradicional. As perguntas: “Sabes cantar?”, “Sabes
assobiar?”... e a oração a Maria Imaculada.9
O episódio de Garelli nas Memórias de Dom Bosco suscita alguma
perplexidade sobre seu sentido exato. Aparentemente, o órfão de Asti não
era um dos rapazes que acompanhavam Dom Bosco pelas ruas, e que não
podiam reunir-se por falta de espaço. Não era, também, um dos jovens de-
linquentes saídos da prisão. Dom Bosco chama-o de seu “primeiro aluno”
ao qual se juntaram “outros mais”. Não obstante, acrescenta imediatamente
que, durante o inverno, concentrou todos os seus esforços “em ajudar al-
guns jovens adultos”, que tinham mais necessidade de instrução religiosa,
sobretudo “os que saíam dos lugares de castigo”; e “essa foi a origem do
nosso Oratório”.10
A história de Garelli deixa algumas questões sem respostas, que se co-
mentarão mais adiante.

2. O início do Oratório nos primeiros relatos “oficiais”


de Dom Bosco
Dom Bosco descreve nos documentos, que podemos considerar “ofi-
ciais”, os inícios do Oratório e a categoria dos jovens aos quais dirigiu sua
atenção e seu compromisso. Esses documentos são, primeiramente, a Nota
histórica (Cenno storico) de 1854 e as Notas históricas (Cenni storici) de 1862.
Servimo-nos aqui da edição crítica do padre Pietro Braido.11

Os inícios do Oratório na Nota histórica de 1854


Vinte anos antes das Memórias, Dom Bosco apresentou um relato dife-
rente sobre os inícios do Oratório na Nota histórica de 1854. Sirva de ilustra-
ção a seguinte comparação:
9
Ver a vibrante narração nas MB II, 70. Note-se que o nome de Bartolomeu Garelli aparece
pela primeira vez nas Memórias do Oratório (1874). Parece não haver um testemunho mais antigo na
tradição salesiana.
10
MO, 125.
11
P. Braido, Don Bosco per i giovani, 30-34, 34-55, 56-70.

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Dom Bosco: história e carisma 1
12 13

Memórias do Oratório12 Nota histórica de 185413

(Cenário 1) (Cenário 1)
[Padre Cafasso] Começou primeiro por levar- Este Oratório, ou seja, a reunião de jo-
-me às prisões, onde pude logo verificar como vens aos domingos e dias festivos teve seu
é grande a malícia e a miséria dos homens início na igreja de São Francisco de Assis.
[...]. Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos, Durante muitos anos, no verão, padre
todos eles são robustos e de vivo engenho, José Cafasso costumava ensinar o cate-
mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à cismo aos domingos para os aprendizes
míngua de pão espiritual e temporal, foi algo de pedreiro num pequeno local anexo à
que me horrorizou [...]. Qual não foi, porém, sacristia da igreja.
minha admiração e surpresa quando percebi As muitas obrigações pelas quais era res-
que muitos deles saíam com firme propósi- ponsável levou-o a interromper esse tra-
to de vida melhor e, não obstante, voltavam balho que tanto apreciava. Eu o assumi
logo à prisão, da qual haviam saído poucos em fins de 1841, e comecei a reunir no
dias antes. mesmo lugar alguns jovens adultos que
Nessas ocasiões descobri que muitos volta- tinham séria necessidade de instrução
vam àquele lugar porque abandonados a si religiosa. Uniram-se a eles outros mais,
próprios. e durante o ano de 1842 o seu número
(Dom Bosco comenta o assunto com padre chegara a 20, e algumas vezes, a 25.
Cafasso e faz um plano.) Desde o início eu aprendi duas verdades
muito importantes: os jovens, em geral,
(Cenário 2) não são maus por si mesmos, mas muito
Mal entrei no Colégio de S. Francisco, vi- frequentemente chegam a ser assim pelo
-me logo cercado por um bando de meninos contato com gente ruim; e os maus ra-
que me acompanhavam em ruas e praças, até pazes, quando se afastam das más com-
mesmo na sacristia da igreja do instituto. Não panhias, podem mudar profundamente.
podia, entretanto, cuidar deles diretamente Em 1843, as aulas de catecismo continu-
por falta de local. Um feliz encontro propor- aram do mesmo modo, e o número che-
cionou-me a oportunidade de tentar a con- gou a cinquenta. Eram os que podiam se
cretização do projeto em favor dos meninos acomodar no local que me deram.
que erravam pelas ruas da cidade, sobretudo
dos que deixavam as prisões. (Cenário 2)
No dia solene da Imaculada Conceição de Ao mesmo tempo (in questo frattempo),
Maria, 8 de dezembro de 1841, estava, à hora ao visitar as prisões de Turim, pude per-
marcada, vestindo-me com os sagra­dos para- ceber que os pobres desafortunados que
mentos para celebrar a santa Missa. O sacris- entravam naqueles lugares de castigo são,
tão José Comotti, vendo um rapazinho a um em geral, pobres jovens que vêm de longe
canto, convidou-o a ajudar-me a missa. à cidade em busca de trabalho ou incenti-
(Segue a história de Garelli, que termina com vados por algum mau companheiro.
a instrução catequética e eventualmente com
a confissão e comunhão [ver anteriormente].)

12
MO, 120. 121. 122.
13
Cf. P. Braido, Don Bosco per i giovani, 34-36.

412

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

(Conclusão) Esses jovens ficam abandonados à própria sorte,


[...] Essa é origem do nosso Oratório. especialmente nos domingos e dias festivos, e gas-
Durante o inverno preocupei-me em tam em jogos (de azar) ou em guloseimas o pouco
consolidar o pequeno Oratório. Em- dinheiro ganho durante a semana.
bora minha finalidade fosse recolher Esse é o início de muitos vícios; em pouco tempo,
somente os meninos em maior perigo, os rapazes que eram bons põem-se em situação de
de preferência os que deixavam a ca- risco para si mesmos colocando outros em perigo.
deia, todavia para ter uma base sobre Em absoluto, as prisões não os podem tornar me-
a qual fundar a disciplina e a mora- lhores, porque enquanto estão detidos, aprendem
lidade convidei alguns outros de boa maneiras mais refinadas de fazer o mal de modo
conduta e já instruídos. Eles me aju- que, ao serem soltos, ficam piores.
davam a manter a ordem e também Dediquei-me, então, a essa categoria de jovens,
a entoar cantos sacros; percebi assim por estarem em sua maioria abandonados e em
desde o princípio, que sem a distri- perigo; e ao longo da semana, com promessas
buição de livros de canto e de leitura ou pequenos presentes, industriei-me para con-
amena, as reuniões nos dias de guarda quistar alunos. Graças ao meu esforço, aumentou
seriam como um corpo sem alma. muito o número deles, de tal modo que me de-
Na festa da Purificação (2 de fevereiro ram locais maiores no verão de 1844; vi-me, às
de 1842), que então era festa de pre- vezes, com 80 rapazes ao meu redor. Minha alma
ceito, já tinha uns 20 meninos, com se regozijava ao ver-me rodeado por alunos da ca-
os quais pudemos pela primeira vez tegoria pela qual me interessara e que começavam
cantar “Louvemos Maria”. a trabalhar.
Na Festa da Anunciação já éramos 30. Dessa forma, eu podia garantir a sua conduta,
Nesse dia fez-se uma festinha. Pela tanto durante a semana como no fim de semana.
manhã os alunos aproximaram-se dos À medida que os contemplava (sentados diante
santos sacra­mentos... de mim), pude ver um que retornara à família, de
onde fugira, ou outro colocado com um patrão;
todos eles bem encaminhados no aprendizado da
sua religião.

Ao comparar as duas narrações, saltam à vista algumas diferenças im-


portantes:
1. Nas Memórias, a inspiração para criar o Oratório provém das vi-
sitas às prisões, ao contemplar pessoalmente a tragédia dos jovens
internos e ao compreender a razão pela qual, depois de terem saí-
do, voltavam logo para lá. É isso que move Dom Bosco a fazer um
“plano”. Acrescenta que, desde os inícios, um “bando de meninos”
(ele diz qual é a categoria deles) seguia-o pelas ruas e praças, mas
não tinha um local para reuni-los.
Na Nota histórica, porém, Dom Bosco afirma que aceitou desde
o início a instrução catequética do padre Cafasso na sala (capela)
anexa à sacristia da igreja de São Francisco de Assis. Isso lhe deu
a oportunidade de iniciar o Oratório.

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Dom Bosco: história e carisma 1

2. Dom Bosco afirma novamente nas Memórias que o início aconteceu


casualmente, quando na festa da Imaculada Conceição, um jovem
órfão, de Asti, chamado Bartolomeu Garelli, entrou na sacristia;
Dom Bosco, depois da Missa, fez-lhe uma catequese. Aos poucos,
foram-se acrescentando outros, incluindo alguns jovens adultos sa-
ídos da prisão. Foi esse, em resumo, o início do Oratório, mas o
verdadeiro início aconteceu com um órfão de 16 anos, Bartolomeu
Garelli. Este parece ser o fato relevante do episódio de Garelli.
Diversamente, segundo a Nota histórica, o início aconteceu com
dois jovens adultos, quando Dom Bosco, em fins de 1841, assumiu e
reavivou as catequeses do padre Cafasso. Não há indicação de uma
data especial (festa da Imaculada Conceição). Entretanto, afirma
que, durante os anos 1842 e 1843, o número dos que frequentavam
as “aulas” de catecismo chegou a 50. Em seguida, acrescenta um
dado a mais: enquanto continuava a dar as instruções de catecismo,
ao mesmo tempo, centrava-se nos jovens adultos que tinham saído
da prisão e viviam em verdadeira situação de risco. A mudança da
forma de vida a fim de assisti-los em todas as suas carências reais e
atraí-los para que recebessem aulas de catecismo.
Os dois fatos que, juntos, ofereceram a ocasião para iniciar o Oratório (a ex-
periência de Dom Bosco com os jovens saídos da prisão e o ensino do catecismo)
estão nos dois relatos. Contudo, na Nota histórica as instruções de catequese apa-
recem no contexto da atividade catequética do Colégio Eclesiástico, nas Memórias,
o episódio de Garelli, que indica o início da atividade catequética de Dom Bosco
(e, por isso, do Oratório) é exposto de maneira anômala, uma vez que Garelli não
é um dos jovens que primeiramente impulsionaram a atividade de Dom Bosco.14
A Nota histórica de 1854 é particularmente importante não só pela data
remota, mas também porque foi escrita como preâmbulo ao Regulamento
dos meninos do Oratório, dado que lhe confere um caráter quase oficial.

A própria atividade catequética de Dom Bosco em relação à atividade de catequese no Colégio


14

Eclesiástico não é tão claramente documentada como se desejaria. Dom Bosco assumiu a instrução
catequética ou simplesmente ajudava o padre Cafasso ou trabalhava em colaboração com os demais?
Uma coisa parece certa: os padres do Colégio Eclesiástico mantiveram as aulas de catequese na igreja
de São Francisco de Assis, ainda antes de Dom Bosco ser envolvido, e continuaram a fazê-lo depois de
Dom Bosco o deixar em 1844. O testemunho dado sobre isso por João Antônio Bargetto no processo
de Beatificação do padre Cafasso tem o seu interesse: “Aos domingos (Dom Bosco) reunia os meninos
que encontrava pelas praças e ruas no pátio do Colégio Eclesiástico. O Venerável (padre Cafasso) por
sua vez, esperava-os e, numa hora determinada, ensinava-lhes catecismo na capela de São Boaventura.
Nessa época eu não estive por muito tempo no Colégio, pois trabalhava como ajudante na cozinha e,
ocasionalmente, levava comida da cozinha àqueles meninos”. Cf. MO Silva, 12-13.

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

Braido dá-lhe um significado especial também a partir de outro ponto de


vista, quando escreve:
A reconstrução atenuada das origens, apresentada na Nota histórica de 1854 e
nas Notas históricas de 1862, apresenta-se bem menos idealizada (do que nas
Memórias). Esses textos também são menos carregados de ideologia, evidente
em outras interpretações mais tardias, como as Memórias do Oratório, e também
nas conferências, em conversas familiares e recompilações oferecidas nas crôni-
cas por filhos devotos de Dom Bosco [...]. Falando em geral, o arrebatamento
emotivo desaparece nos relatos mais antigos ficando sob controle. Igualmente,
nesses relatos, a informação é dada com maior objetividade. Por outro lado, as
testemunhas e os colaboradores ainda estavam presentes na época em que foram
escritos e não iriam deixar de criticar qualquer falta de objetividade.15

Os inícios do Oratório nas Notas históricas de 1862


Dom Bosco, nas Notas históricas de 1862, descreve os inícios do Ora-
tório como resposta à situação dos jovens das ruas, das fábricas e da prisão,
todos em situação de risco por causa da falta de instrução religiosa:
A ideia dos Oratórios surgiu de minhas visitas frequentes às prisões da ci-
dade. Nesses lugares, aonde haviam desembocado os fracassos espirituais e
materiais, encontravam-se muitos jovens na flor da juventude, com mentes
despertas, corações sadios, que bem podiam ser o consolo das famílias e o
orgulho da pátria. Contudo, estavam detidos ali em estado de degradação e
condenados pela sociedade [...]. A experiência também demonstrava que, se
fossem ajudados aos poucos a perceberem sua dignidade humana [...], muitos
deles mudariam de conduta, mesmo estando na prisão, e que, se fossem sol-
tos, viveriam de tal modo que nunca mais teriam de a ela retornar [...].
Para comprovar essa percepção, iniciamos a dar instrução religiosa adequada
nas prisões da capital e, pouco mais tarde, na sacristia da igreja de São Fran-
cisco de Assis; assim começaram as reuniões aos domingos e dias festivos no Ora-
tório. Os encontros eram abertos aos jovens saídos prisão e aos que, durante a
semana, se reuniam (sem ter nada para fazer) pelas praças e ruas, como tam-
bém aos que (se tinham um trabalho) estavam nas fábricas [...]. Foi em 1841
(que isso começou). Os jovens que frequentavam chegavam a cerca de 70.16

A narração neutra, escrita talvez para ser apresentada às autoridades civis


ou eclesiásticas numa época em que as Constituições Salesianas estavam sendo
15
P. Braido, Don Bosco per i giovani, 22.
16
P. Braido, Don Bosco per i giovani, 56 (os cursivos são do autor).

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Dom Bosco: história e carisma 1

redigidas, teria um caráter quase oficial. Dom Bosco indica assim que os contatos
com jovens em situação de risco se deram nas prisões. O Oratório começou com
a instrução religiosa dos “jovens que saíram da prisão” e “que perambulavam pelas
praças” ou que estavam empregados “nas fábricas”. Essa encenação difere também
da história de Garelli, porque parece que Dom Bosco alude a um grupo de jovens.17

3. A “tradição” Garelli
A narração das Memórias (1874) sobre o início do Oratório (1841) apre-
senta Bartolomeu Garelli com um papel proeminente. Apesar disso, nem
a sua história nem o seu nome aparecem nos documentos salesianos, pu-
blicados ou não, anteriores às Memórias de meados de 1870, exceto o fato
concreto (mas sem nome nem data) nos citados relatos da crônica do padre
Ruffino, de 1860. A menção da história pelo padre Ruffino demonstraria que
Dom Bosco, já em 1860, falara do episódio sem mencionar, talvez, o nome
do menino, em relação com a festa da Imaculada Conceição, para fixar a data
do início do Oratório.
Contudo, novamente, nem a história nem o nome de Garelli são lembra-
dos pelos antigos alunos do Oratório em suas reuniões e celebrações anuais;
na verdade, não há qualquer referência ao fato ou ao nome nas lembranças
deixadas por José e Josué Buzzetti, dois irmãos que frequentaram regularmente
o Oratório nos primeiros tempos.
Quanto ao conhecimento da história pelo público e à sua tradição na
literatura salesiana, se deverá levar em consideração o que segue. Padre Le-
moyne sucedeu ao padre Ruffino, depois da morte deste em 1865, como
diretor do colégio salesiano de Lanzo. Encontrou e transcreveu os cinco
caderninhos da Crônica de Ruffino; não se sabe o que pode ter feito com a
passagem em questão. É provável que só arquivasse os caderninhos da crôni-
ca para futuras referências.
As Memórias também não foram escritas para publicação. Contudo, padre
Bonetti serviu-se delas para a sua História do Oratório, publicada em capítulos
no Boletim Salesiano ao longo de vários anos. A história de Garelli veio a pú-
blico pela primeira vez no Boletim Salesiano de 1879,18 inaugurando a tradição
épica na qual um órfão de Asti foi consagrado como herói mítico. O diálogo
entre Dom Bosco e Garelli, relatado nas Memórias de Dom Bosco e transcrito
na História de Bonetti, alcançou assim o caráter de texto “sagrado” que deve
ser reverentemente recordado e narrado para as futuras gerações de Salesianos.
17
Para o conceito de início em grupo, ver as notas 23 e 24.
18
J. Bonetti, “Storia”, Bollettino Salesiano 3:1 (1879), 6-8.

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

O episódio também foi assumido como um sinal a mais da aprovação divina


da obra salesiana: Deus tinha desejado que a obra providencial de Dom Bosco
começasse no dia consagrado à Imaculada Mãe de Deus.
A história passou do Boletim Salesiano ao Don Bosco de D’Espiney (1881).19
Em 1891, foi celebrado o solene aniversário do fato. A história voltou a ser con-
tada em Cinque lustri, de Bonetti (1891).20 Uma comemoração do fato aconte-
ceu novamente em 1895 durante o I Congresso Internacional de Cooperadores
Salesianos. Enfim, as Memórias Biográficas foram o principal veículo pelo qual se
ofereceu a versão tradicional do episódio.21 A partir de então, a história tornou-se
de domínio público em sermões, biografias, opúsculos e quadros.

O nome “Garelli”
É curioso que no rascunho original das Memórias, Dom Bosco, depois
de ter escrito Bartolomeu, acrescentou um “N”, não um “G”: “Chamo-me
Bartolomeu N.”.22 Dom Bosco pretenderia deixar o jovem no anonimato
(“N” para qualquer nome) ou este “N” era a letra inicial de algum outro
nome? (Para o “objetivo” da história, qualquer nome ficaria bem). Pesquisas
feitas nos documentos da cidade e da diocese de Asti não encontraram nin-
guém chamado Bartolomeu Garelli que tivesse nascido nos anos 1824-1825.
Em vista disso, pode-se perguntar se é possível dar ou não crédito a algu-
mas informações segundo as quais se supõe que Bartolomeu Garelli reapareceu
no Oratório em 1855 ou 1856 e, depois de uma longa ausência da sua cidade
natal, voltou nos encontros de alunos depois de 1890. É possível que essas “apa-
rições” de Garelli tivessem sua origem na tendência de dar suporte concreto à
tradição de um fato e de uma pessoa que tinham grande importância.23

Possível caráter simbólico da história de Garelli


Dom Bosco considerava a origem da sua obra e os fatos que lhe deram iní-
cio como ação de Deus por intermédio da mediação de Maria Imaculada. De aí,
ao contar a história “em família” e escrever suas Memórias, expressar essa convic-
ção mediante um episódio singular localizado na festa da Imaculada Conceição
e personificado num jovem abandonado. O órfão Garelli, que recebera uma aula
19
Charles D’Espiney, Don Bosco. Nice: Tipografia e litografia Malvano-Mignon, 1881.
20
J. Bonetti, Cique lustri, 19s.
21
MB II, 70-75, de amplidão considerável.
22
O rascunho original de Dom Bosco está em ASC A220ss: Autógrafos-Oratório: Memórias do Oratório.
23
Para as notas na seção anterior, ver P. Stella, Piccola guida critica alle Memorie Biografiche:
apologia della storia (Tipografado: notas do professor de 1989-1990) 21-27. Para as visitas de Garelli ao
Oratório em 1855 e depois, ver MB II, 76.

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Dom Bosco: história e carisma 1

de catecismo na festa da Imaculada Conceição, representaria mais simbólica do


que historicamente os inícios do Oratório. Não podia ser este órfão itinerante
simplesmente o emblema dos jovens em situação de risco que precisavam de
ajuda, instrução religiosa e cuidados paternos?
Havia uma experiência radical, um ponto de partida decisivo, que se conver-
tera para Dom Bosco em revelação, em introdução pessoal no mundo dos “pobres
e abandonados”. Ele podia já ter conhecimento desse mundo, mas talvez, até o
momento, não o tinha experimentado como interpelação pessoal e solicitação de
um compromisso pessoal. A “descoberta” pode ter ocorrido nas ruas da cidade,
ou nas prisões, ou na sacristia da igreja de São Francisco de Assis, ou em todos
esses lugares juntos. Ou, talvez, a primeira pedra de toque pode ter-lhe vindo de
um jovem, de dois jovens mais velhos ou de um grupo de jovens saídos da prisão.
Qualquer uma dessas possibilidades teria sido menos significativa para ele do que
a natureza carismática e comprometedora da “descoberta”.

Outras afirmações de Dom Bosco sobre a origem do Oratório


Dom Bosco falava da Sociedade Salesiana como de uma realidade exis-
tente já nessa primeira experiência. Ele pensou que a Sociedade como instru-
mento da obra do Oratório começara com ele. Assim, num grande número
de memorandos e sumários apresentados às autoridades para explicar a So-
ciedade, Dom Bosco volta a referir-se às origens, e o ano 1841 é o ponto
de referência mais frequente. Embora nenhum desses documentos mencione
qualquer jovem em particular como primeiro contato, não obstante, ilumi-
nam os inícios. Bastam alguns exemplos:
Na Nota histórica que precedia o capítulo Finalidade nas primeiras
Constituições Salesianas (1841), Dom Bosco escreveu:
Em 1841, Dom Bosco, trabalhando em colaboração com outros padres, co-
meçou a reunir em locais adequados os jovens mais abandonados da cidade
de Turim. O propósito dessas reuniões era entretê-los com jogos e, ao mesmo
tempo, dar-lhes o pão da palavra divina.24

O ano 1841 é o ponto de referência também no Breve relato sobre a


Sociedade (1864): “A obra dos oratórios começou com uma simples aula de
catecismo aos domingos e dias festivos de 1841”.25

24
“O início desta Sociedade”. In: F. Motto, Costituzioni, 62. Cf. MB V, 931. A mesma descrição é
dada em: Notitia brevi Societatis Sancti Francisci Salesii et nonnulla decreta ad eamdem spectantia. Turim: Tip.
del Oratorio de San Francisco de Sales, 1868, cf. OE XVIII, 571-586. Ms. Don Bosco, em ASC A220ss:
Autogr. Soc. Sal.: FDB 1,925, E1-10, em De Societate San Francisci Salesii brevis notitia et nonnulla decreta
ad eamdem spectantia. Turim: Tip. del Oratorio de San Francisco de Sales, 1873, cf. OE XXV, 103-121.
25
“Breve relato sobre a Sociedade de São Francisco de Sales (1864)”, cf. MB VII, 890.

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

Serve para o mesmo tema a afirmação feita em 1867 ao recém-nomeado


arcebispo Alexandre Riccardi di Netro: “Esta sociedade teve início com a
reunião de jovens aos domingos e dias festivos de 1841”.26
O memorando dirigido por Dom Bosco ao bispo de Casale, Pedro Maria
Ferré, para obter a aprovação diocesana em 1868, começa do mesmo modo:

Esta Sociedade teve seus inícios numa simples aula de catecismo, que o pa-
dre João Bosco, com o consentimento dos padres Luís Guala e José Cafasso,
ambos de perpétua e digna memória, começou num local adequado, anexo
à igreja de São Francisco de Assis. Sua finalidade era reunir os meninos mais
pobres e marginalizados e cuidar deles nos dias festivos com exercícios de
piedade, cânticos sacros e entretenimentos agradáveis. Tinha-se consideração
especial pelos que saíam das prisões e se viam expostos a mais perigos. A
experiência resultou satisfatória e contava com um notável número de jovens,
enquanto o permitia a capacidade do lugar.27

Novamente, num memorando de 1870, dirigido à Santa Sé, em que


descreve a origem da Sociedade, Dom Bosco escreve: “1841. O Oratório de
São Francisco de Sales [...] teve início como segue: começamos dando aula de
catecismo a um grupo de jovens pobres e abandonados no dia da Imaculada
Conceição de Maria”.28
Ao tratar de obter a aprovação das Constituições, Dom Bosco, em 1864,
dirigiu um pedido a Pio IX, e nele escreve nestes termos: “Considerada em sua
existência histórica (esta Sociedade) tem por finalidade continuar o que se vem
fazendo nos vinte anos passados no Oratório de São Francisco de Sales”.29
Aqui, o ponto de referência é o ano 1844. Trata-se do ano em que o
grupo de jovens que se reunia em São Francisco de Assis, acompanhou Dom
Bosco à Instituição da marquesa Barolo, como seu Oratório de São Francisco
de Sales. Contudo, 1841 é o ano referencial mais frequente de Dom Bosco.

26
Società di San Francesco di Sales, cf. ASC A220ss: Autogr. Soc. Sal. FDB 1, 925 A12-83, cf.
MB VIII, 809-810.
27
Cenno storico intorno alla Società di San Francesco di Sales (1868), cf. ASC A220ss, Autogr. Soc.
Sal., FDB 1, 924 D11-E3-6 (Ms. de Dom Bosco). Cf. MB VIII, 63-64.
28
Stato religioso-materiale della società di San Francesco di Sales sul principio dell’anno 1870, em
ASC A 220ss: Autogr. Soc. Sal., FDB 1, 925 C3-11 (Ms. de Dom Bosco).
29
“Cose da notarsi intorno alle Constitucioni della Società di San Francesco di Sales”. In: F.
Motto, Costituzioni, 229. Cf. MB VII, 622-623.

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Apêndice

BREVE NOTA BIOGRÁFICA DO PADRE JOÃO COCCHI


(1813-1895)

Padre João Cocchi (Cocchis) nasceu em Druent, cidade grande, próxi-


ma de Turim. A família, muito pobre, transferiu-se para Turim por volta de
1820 e fixou-se na paróquia da Anunciação, situada na zona leste da cidade,
não distante do rio Pó. Tiveram de sofrer muito e passar por necessidade.
Ajudado economicamente por um pároco local, João entrou no semi-
nário e foi ordenado padre em 1836. Logo depois, foi nomeado ajudante na
paróquia da Anunciação, onde ficou muito popular por causa da sua caridade
e disponibilidade para com os necessitados. Construiu um pequeno hospital
para idosos pobres, uma residência para meninas abandonadas e a Associação
das Filhas de Maria, a primeira desse tipo em Turim.
Em 1839, ofereceu-se para as missões estrangeiras e passou alguns meses
em Roma, exercitando-se no programa da Congregação da Propagação da Fé.
Percebeu logo que, sem dúvida, sua missão era com os pobres e abandonados
de Turim.
Enquanto esteve em Roma, teve a oportunidade de conhecer o funcio-
namento de um oratório para jovens de classe média. Ao voltar para Turim
em 1840, fundou o Oratório do Anjo da Guarda, situado no pior bairro de
Turim, o Moschino, na casa de certo senhor Ballesio, perto de uma taberna
de má fama que, desde 1852, ficou conhecida como Eroe di Voghera. Em
1841 transferiu o Oratório para um espaço mais amplo nas proximidades, no
bairro de Vanchiglia, quase com tanta má fama quanto o Moschino. Os dois
bairros, ao longo do rio Pó, eram a “terra dos bandos” de Turim.30
Os locais do Oratório do padre Cocchi contavam com um telheiro, uma
capela, um pequeno teatro e um pátio grande e rústico, com um jardim anexo.

Havia Oratórios em todos os lugares, sendo a maior parte ligada às paróquias. Em 1850, fun-
30

cionavam em Milão não menos de 15 oratórios, alguns dos quais tinha mais de um século. Oratórios
similares estabeleceram-se em Bérgamo e Bréscia, por exemplo, o do padre Ludovico Pavoni (1784-
1849), e em Marselha (França), do padre J. Allemand (1772-1836), e em outros lugares.

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

As grandes atrações eram a instrução militar e os exercícios de ginástica, então


muito populares entre os jovens, com especialização em saltos de altura e de
distância. Para os jovens da região, “saltar nos locais do padre Cocchi” signifi-
cava “participar do Oratório”. O programa do Oratório dava importância às
atividades de recreação, mas não se limitava a isso. Numa revista educativa em
circulação foi publicado um plano para os domingos e aulas noturnas, com a
assinatura do “padre João Cocchi e padre Roberto Murialdo, diretores”.31
A onda de patriotismo que se estendeu pelo Piemonte nos anos 1848-1849
afetou amplamente a população e os jovens em particular. Não podia deixar
indiferente o clero mais jovem. Estes padres “patriotas” pensavam que a religião
não podia ignorar as aspirações do povo. Até mesmo alguns bispos escreveram
cartas pastorais “patrióticas”. Esse patriotismo era um novo tipo de “guelfismo”:
postulava o Papa Pio IX como chefe de uma possível federação de estados ita-
lianos regionais. Aspirava, também, à libertação da Itália do domínio austríaco.

Padre João Cocchi (1813-1895)

31
O Educador 3 (1847) 762-765. Padre Roberto Murialdo (1815-1883) era primo mais velho
de São Leonardo Murialdo (1828-1900), fundador da Sociedade de São José. Roberto Murialdo foi
um ativo colaborador da obra do Oratório e de outras obras de caridade. Associou-se ao padre Cocchi
desde os inícios e trabalhou com ele no Oratório, onde demonstrou grande habilidade para tratar
com os bandos, e em obras posteriores. Também ajudou Dom Bosco e foi um dos que o apoiaram na
compra da propriedade Pinardi.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em março de 1849, durante a primeira Guerra da Independência Ita-


liana (1848-1849), padre Cocchi acompanhou um esquadrão de jovens do
Oratório à batalha de Novara (contra a Áustria), mas não foram autorizados a
se alistar nas forças regulares. Retornaram frustrados, mas a salvo. O exército
piemontês sofreu uma desastrosa derrota que forçou o rei Carlos Alberto a
abdicar e partir para o exílio voluntário. O gesto patriótico do padre Cocchi
e suas conhecidas simpatias, não encontraram aprovação no arcebispo Fran-
soni. O Oratório do Anjo da Guarda foi fechado temporariamente; pouco
depois, Dom Bosco encarregou-se dele, provavelmente por decisão do ar-
cebispo Fransoni e mediação do padre Cafasso. Não ficou claro como foi
“concedido” a Dom Bosco o Oratório do padre Cocchi, nem quais forças se
puseram concretamente em jogo nessa transação.32
Sem ressentimentos com ninguém e caridade com todos, padre Cocchi
continuou a fundar outras obras de caridade. Em 15 de outubro de 1849 ele
anunciava o plano de criar uma sociedade de padres e “jovens leigos” para
trabalhar pela educação de “muitos jovens”, em sua maioria, órfãos e abando-
nados, que vagavam pela cidade, e para iniciá-los numa profissão ou trabalho:
a Sociedade da Caridade (para cuidar) dos jovens órfãos e abandonados. Foi
criada em 11 de março de 1850. Entre os colaboradores do padre Cocchi
estavam os padres Jacinto Tasca, Roberto Murialdo, Antônio Bósio e, mais
tarde, Pedro Berizzi, que abandonara a carreira de escritor e periodista na
diocese de Biella para trabalhar pelos pobres.
Finalidade imediata da Sociedade era construir o Collegio degli Artigia-
nelli (Colégio dos Pequenos Aprendizes), o que foi possível graças a uma rifa,
a contribuições especiais e abundantes doações. A primeira pedra foi coloca-
da em 29 de junho de 1861 no Corso Palestro, dentro da cidade, não distan-
te, ao sul do Oratório de São Francisco de Sales de Dom Bosco. O edifício foi
inaugurado em 23 de junho de 1863. Contava com oficinas para sapateiros,
carpinteiros, marceneiros, encadernadores e impressores. Padre Berizzi foi seu
primeiro diretor. Em 1866, padre Leonardo Murialdo, que trabalhava com
Dom Bosco como diretor do Oratório de São Luís, obteve o cargo de diretor
dos Aprendizes, que aceitou depois de um ano de internato no Seminário de
São Sulpício, em Paris. Sete anos depois (1873), padre Murialdo fundaria
nos Aprendizes a Sociedade de São José, muito semelhante ao modo como
Dom Bosco criou a Sociedade Salesiana na Casa anexa ao Oratório de São
Francisco de Sales.33

O Oratório do Anjo da Guarda foi o terceiro de Dom Bosco (1849), depois do Oratório de
32

São Luís (1847) e do Oratório de São Francisco de Sales (1844-1846). Padre Roberto Murialdo conti-
nuou a dirigi-lo até 1850 (1851- ?). Cf. P. Stella, Economia, 172.
33
P. Stella, Economia, 65, 120, 169.

422

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Os inícios do Oratório de São Francisco de Assis

Em fins de 1851, padre Cocchi abriu o Oratório de São Martinho nos


moinhos Dora. Ali já se dera catequese, mas essa atividade diminuíra; ele,
porém, revitalizou-a como um verdadeiro oratório, cuja direção confiou ao
padre Pedro Ponte.34
Em 1852, padre Cocchi renunciou à sua missão na igreja da Assunção,
onde era coadjutor; depois de visitar algumas escolas agrícolas em vários paí-
ses europeus, fundou, em 1852-1853, uma “colônia” agrícola para jovens em
situação de risco. Situada inicialmente nas colinas de Cavoretto, nas proximi-
dades de Turim, foi transferida pouco depois para Moncucco, perto de Cas-
telnuovo, e localizada em terrenos comprados com uma doação do banquei-
ro José Cotta. Ele dirigiu a escola pessoalmente, introduzindo inovações na
agricultura e na educação. A colônia serviu também como centro correcional
juvenil, no qual se aceitavam internos do Estado, do reformatório da Gene-
rala. As dificuldades econômicas e a falta de pessoal forçaram o encerramento
da colônia em 1877. Padre Cocchi fundou uma obra semelhante em Rívoli,
perto de Turim, e iniciou outras em diversas partes da Itália (Perúgia, Assis,
Todi e Palermo). No início da década de 1850, iniciou uma visita por abadias
beneditinas que possuíam terras na Itália com a intenção, sem sucesso, de
persuadir os monges a transformarem suas propriedades em colônias e escolas
para os jovens pobres da própria região.
Em 1868, Cocchi fundou em Chieri um centro correcional para jovens,
que transferiu a lugares mais apropriados em Bosco Marengo (Alessândria)
em 1870. A instituição floresceu e logo chegou a 400 meninos matriculados.
Apesar disso, os administradores anticlericais fecharam-na em 1883.
Sua saúde deteriorou-se em 1883. Tinha 70 anos, mas continuava capa-
citado para o trabalho. Aceitou ser Reitor do Santuário de Nossa Senhora da
Paz, perto de Savona. Ali permaneceu até 1889. Mais tarde, aceitou o cargo
de Reitor do seminário de Catanzaro, a pedido do bispo, muito seu amigo.
O seminário precisava de grandes reformas, e o estilo educado do padre
Cocchi assim como o seu entusiasmo produziram uma mudança notável.35

34
Padre Pedro Ponte (1821-1892) foi secretário da marquesa Barolo e capelão das Irmãs de
Sant’Ana. Viveu por algum tempo no Oratório de Dom Bosco (1847-1848). Sucedeu ao padre Jacinto
Cárpano como diretor do Oratório de São Luís. Entrou em choque com Dom Bosco por motivos de
política e pela administração do Oratório e outras atividades. Cf. MB IV, 310, 368. Ele é frequente-
mente mencionado na biografia da marquesa Barolo, escrita pela segunda superiora geral das Irmãs de
Sant’Ana, Maria Henriqueta Dominici (1829-1896).
35
O salesiano padre Francisco Dalmazzo, que sucedeu ao padre Cocchi como reitor do seminá-
rio, morreria pouco depois pelas mãos de um seminarista.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em 1892, aos 80 anos, padre Cocchi retirou-se nos Aprendizes e passou os


últimos anos com o padre Leonardo Murialdo e os josefinos. Morreu na manhã
do Natal de 1895. Padre Cocchi dedicou-se inteiramente a ajudar os jovens po-
bres e abandonados. Tinha um coração cheio da compaixão de Cristo. Estava
disposto a qualquer sacrifício, impelido por um amor puro e totalmente livre
de inveja. Teve imaginação, valor e paciência para encontrar maneiras de ajudar
jovens carentes. Foi também um asceta e um homem de oração.36

36
O panegírico do padre Cocchi foi publicado no Bollettino Salesiano 20 (1896) 49.

424

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Capítulo XVI

DOM BOSCO E AS OBRAS


DA MARQUESA BAROLO (1844-1846)

1. Um ano decisivo: 1844


Tendo passado três anos no Colégio Eclesiástico, Dom Bosco precisava
decidir como exercer o sacerdócio e do que viver. Ele conta nas Memórias que
recebeu uma proposta do arcebispo Fransoni para ajudar o idoso padre Co-
mollo como administrador da paróquia de Cinzano, oferta que, aconselhado
pelo padre Guala, declinou elegantemente. Outras três ofertas chegaram-lhe
por meio do padre Cafasso: ser coadjutor na paróquia de Buttigliera, ou no-
meado professor de moral no Colégio Eclesiástico, ou ser capelão nas institui-
ções da marquesa Barolo, sob a direção do teólogo Borel.1 Aconselhado por
seus amigos aceitou esta última oferta.
Nesse tempo, porém, Dom Bosco precisou enfrentar uma dupla crise
vocacional.

Crise e decisão vocacional


A primeira crise era pessoal, como aquela superada ainda em Chieri. Ti-
nha muito a ver com a escolha do futuro ministério. Ele não a comenta nas Me-
mórias, mas Lemoyne, nas Memórias Biográficas, dá-lhe espaço considerável.2
Dom Bosco considerava entrar na Congregação do padre Lanteri, os Obla-
tos da Virgem Maria, orientada para as missões estrangeiras. Dom Bosco mesmo
o afirma, segundo relata a crônica do padre Barberis. Padre Cafasso conseguiu
dissuadi-lo dessa decisão, depois do retiro de junho. É óbvio que, a ser autentica-
mente histórico, isso suscita novamente a questão do real compromisso de Dom
Bosco com os jovens em situação de risco, que constituíram o “seu Oratório”.

1
Uma carta da marquesa Barolo ao teólogo Borel, de 18 de maio de 1846, dá a entender que o teó-
logo Borel (atuando pela marquesa) selecionara Dom Bosco para o cargo de capelão no Pequeno Hospital.
2
MB II, 38-49.

425

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Dom Bosco: história e carisma 1

Dom Bosco fala, nas Memórias, de uma segunda crise que, de fato, supõe
um compromisso com os jovens e tinha a ver diretamente com a continuidade
do Oratório. Circunstâncias externas pareciam militar contra. Instada por Ca-
fasso e com a mediação do teólogo Borel, a marquesa Barolo ofereceu-lhe um
trabalho remunerado, pelo qual Dom Bosco se comprometia a ser capelão no
Pequeno Hospital, ainda em construção; enquanto isso ajudaria o teólogo Borel
no Refúgio, que era um lar para cerca de 400 “meninas pobres e abandonadas”.
A falta de locais adequados, como também o sério compromisso com o Refúgio
da marquesa, parecia descartar qualquer trabalho no Oratório. Contudo, sua
resposta foi clara diante da pergunta do padre Cafasso sobre o que ele pensava a
respeito: “Minha propensão é cuidar da juventude [...]. Neste momento parece-
-me estar no meio de uma multidão de jovens que me pedem ajuda”.3
Padre Cafasso limitou-se a aconselhar a Dom Bosco que aceitasse a
capelania do Pequeno Hospital da marquesa Barolo, fosse ajudar o teólogo
Borel e vivesse com ele. Cafasso garantiu-lhe: “Entretanto, Deus lhe mos-
trará o que deve fazer pela juventude”.4 Manteria sua atividade no pequeno
Oratório de São Francisco de Assis, uma experiência esplêndida, com a espe-
rança de que, com o tempo, Deus tornaria possível a continuidade da obra.
Dom Bosco, então, aceitou a oferta.
O teólogo Borel sugeriu que enquanto perdurasse a situação, deveriam
reunir os meninos, ao menos alguns, em seus aposentos no Refúgio. Contudo,
devido à situação, a solução não era muito tranquilizadora, como Dom Bosco
reconheceu nas Memórias.5 Pode-se perceber ainda a angústia daquele momento
nas palavras usadas pelo padre Barberis ao narrar a história trinta anos depois.
Dom Bosco não teve coragem de dissolver o grupo de meninos tão afei-
çoados a ele em São Francisco de Assis, e, quando estava pensando em disper-
sar o Oratório, voltou a repetir-se o sonho da vocação.

O sonho vocacional de 1844 no contexto da decisão vocacional


Dom Bosco, nas Memórias, apresenta-nos a crise do Oratório e o sonho
que lhe veio dar segurança:
No segundo domingo de outubro (1844) devia anunciar aos meninos que o
Oratório ia mudar-se para Valdocco.6 Entretanto, a incerteza do lugar, dos
meios, das pessoas, deixava-me muito preocupado. Na noite passada fui dor-

MO, 131.
3

MO, 132. Para um resumo biográfico do teólogo Borel, cf. apêndice no final do capítulo.
4

5
MO, 132 (MB II, 297-298).
6
As instituições da marquesa Barolo situavam-se fora da cidade, ao norte, perto da Pequena Casa
da Providência. São Francisco de Assis estava no lado sul da cidade.

426

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

mir com o coração inquieto. Tive então outro sonho, que parece um apêndice
do que tive nos Becchi, aos 9 anos. Julgo oportuno contá-lo em pormenores.

Dom Bosco admite que quase nada entendesse do sonho, dando-lhe


pouca fé. Contudo, o sonho começou a se tornar realidade. Dom Bosco con-
clui com estas palavras: “Posteriormente, junto com outro sonho, serviu-me
de programa em minhas decisões”.7
Além do sonho de 1844, Dom Bosco menciona “outro” que não foi pos-
sível identificar. Lemoyne, porém, registra três relatos de sonhos, entre 1844 e
1846, que insistem na ideia da orientação divina por meio deles. O primeiro é o
Sonho de 1844, tomado diretamente das Memórias de Dom Bosco e situado no
mesmo contexto. O segundo, conhecido normalmente como o Primeiro Sonho
dos Santos Mártires, é tomado de um relato de 1875, feito pelo padre Barberis,
na verdade uma narração diferente do sonho de 1844, e situado num contexto
diverso nas Memórias Biográficas. O terceiro, ao qual nos referimos normalmen-
te como Segundo Sonho dos Santos Mártires, é uma compilação de Lemoyne,
que o situa em dois contextos diversos, nos Documenti e nas Memórias Biográfi-
cas. O quadro abaixo facilitará a comparação e subsequente crítica.

Sonho de 1844 (Fonte: Memórias de Dom Bosco) 8 9 10


Memórias Documenti (Lemoyne) Memórias Biográficas (Lemoyne)
Localização:
Noite anterior ao segundo
Localização: Localização:
domingo de outubro de 1844
A mesma de MO.9 A mesma de Documenti e MO.10
(Dom Bosco deixa o Colégio
Eclesiástico).8

Variante do Sonho de 1844 (Primeiro Sonho dos Santos Mártires) 11 12 13


(Fonte: Barberis)
Barberis Documenti Memórias Biográficas
Localização: Localização: Nova localização:
A mesma de MO A mesma de Barberis Maio de 1845 (quando Dom Bosco deixou
(Sonho de 1844).11 e MO.12 o Pequeno Hospital da marquesa Barolo).13

MO, 134.
7

MO: MO Berto, 86-88, FDB 61 D2-4; MO, 133-134.


8

9
Documenti II, 148-149; FDB 972 B3-4.
10
MB II, 243-244.
11
ASC A000-03: Cronachetta de Barberis, FDB 866 B10-C1, rascunho “original”; rascunhos
concluídos: ASC A014ss: Sogni-Barberis, FDB 1279 C6-11.
12
Documenti II, 189-190, FDB 972 E8-9.
13
MB II, 297-298.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Segundo Sonho dos Santos Mártires (Fonte: apenas Lemoyne) 14 15


Documenti Memórias Biográficas
Localização: Nova localização:
A mesma do Sonho dos Santos Mártires 4º domingo de Advento, 22 [21] de dezembro
nas MB (ao deixar o Pequeno Hospital da de 1845 (ao deixar a igreja de São Martinho
marquesa Barolo, maio de 1845).14 nos Moinhos Dora).15

O Sonho de 1844 nas Memórias do Oratório


Dom Bosco introduz, nas Memórias, um único acréscimo à redação ori-
ginal do sonho que, deve-se notar, não tem correções. Dom Bosco acrescen-
tou à margem: “[Tive outro sonho] que parece continuação (apêndice) daquele
dos Becchi, quando tinha 9 anos”. O acréscimo, feito depois de pensar nele,
sublinha o significado vocacional que dera ao sonho quando o redigiu em fins
de 1874 ou inícios de 1875. Quando Dom Bosco corrigiu a cópia autêntica
do padre Berto, incorporou no final do relato mais alguma coisa, manifes-
tando uma nova reflexão sobre o significado vocacional do sonho: “Posterior-
mente, junto com outro sonho, serviu-me de programa em minhas decisões” (o
cursivo é de Dom Bosco).16
Parece que Lemoyne equivocou-se ao desconsiderar o verdadeiro signifi-
cado vocacional atribuído por Dom Bosco a este sonho, quando o Oratório
se deparava com um futuro incerto. Lemoyne acreditou que a vocação de
Dom Bosco fora decidida anteriormente e que era conduzido agora, passo a
passo, por uma trilha sobrenatural de sonhos. Ele fala do sonho simplesmente
como de uma experiência que chegou a “confortar Dom Bosco revelando-lhe
o futuro”. Lemoyne talvez tenha considerado a decisão enfrentada por Dom
Bosco em 1844, simplesmente como uma cansativa dificuldade circunstan-
cial. Contudo foi mais do que isso, embora a opção pessoal não estivesse em
questão. Deixar o abrigo de São Francisco de Assis e o Colégio Eclesiástico
e criar o seu próprio oratório foi para Dom Bosco um dos maiores, senão o
definitivo passo vocacional.

14
Documenti II, 157, FDB 972 B11-12.
15
MB II, 341-342.
16
Além disso, Lemoyne, ao transcrever as palavras contidas no relato, leu equivocadamente o
texto do padre Berto: “Posteriormente, relacionado com outro sonho, este (sonho) serviu inclusive como
origem das minhas decisões no Refúgio”. As palavras “no Refúgio” [presso il Rifugio] pertencem ao título
da sessão seguinte de Berto. Nesse momento, Dom Bosco ao falar da saída do Colégio Eclesiástico e do
Refúgio da marquesa Barolo, riscou o que tinha escrito inicialmente, “em Valdocco” (onde se situava a
obra da Barolo), e preferiu escrever “no Refúgio” (presso il Rifugio). A intenção das palavras de Dom Bos-
co era que o sonho tinha significado vocacional, mas não para as decisões que devia tomar no Refúgio.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

O Sonho de 1844, narrado pelo padre Barberis


Lemoyne afirma nos Documenti que a sua fonte para este sonho foi pa-
dre Barberis: “Referimo-nos aqui, grosso modo, à cena vista por Dom Bosco
[num sonho], exatamente como foi relatada pela primeira vez ao padre Júlio
Barberis, em 2 de fevereiro de 1875”. Nas Memórias Biográficas, contudo,
indica Barberis e ele mesmo (Lemoyne) como fonte: “Alguns sonhos extraor-
dinários [...] vieram animar Dom Bosco, como ele confidenciou certa vez ao
padre Júlio Barberis e ao autor destas páginas, em 2 de fevereiro de 1875”. A
auto-inclusão de Lemoyne como fonte é desconcertante, se se tem em conta
a afirmação de Barberis, de que ele era o único companheiro de Dom Bosco
quando ele relatou o sonho que teve, em 2 de fevereiro de 1875. 17 Seja como
for, Lemoyne serve-se de Barberis como sua fonte para o texto em que narra
o sonho.18 Em sua redação “original”, Barberis escreveu:
Dia 2 de fevereiro de 1875. Hoje, Dom Bosco pediu-me para acompanhá-lo
e ao cônsul da República Argentina para o almoço na casa dos Occelletti.

17
Em 1875, Lemoyne vivia em Lanzo, onde era diretor desde 1865. Apesar disso, Barberis diz-
-nos que mais tarde Dom Bosco relatou o sonho a outros salesianos, a Lemoyne, em particular (G.
Barberis, Il culto a Maria Ausiliatrice. Turim: SEI, 1920, 53). Aqui, depois de transcrever seu relato
da narração de Dom Bosco em vista da compra do Campo dos Sonhos, local em que foi construída
a igreja de Maria Auxiliadora (1866-1868), Barberis escreve: “Até aqui, o meu relato. Mais tarde, o
Venerável [Dom Bosco] contou a mesma história a outros salesianos, especialmente ao padre Lemoyne,
acrescentando alguns detalhes. Este último serviu-se do meu relato, que ele mesmo ouviu de Dom
Bosco. Desse modo, compilou um relato mais detalhado dos acontecimentos em vista da biografia do
Venerável, da qual ele é o autor”. Esses detalhes adicionais não se referem à narração do sonho propria-
mente dito, exceto algumas matérias como as trazidas em MB VII, 236, 242.
18
Aquele que parece ser o rascunho “original” de Barberis é, na verdade, uma entrada intitulada
“2 de fevereiro de 1875” em sua coleção, Notizie dei primi tempi (temas variados dos primeiros tempos
do Oratório). Esse relato foi depois ampliado e “completado” por Barberis. Para essa operação, ele tra-
balhou sobre uma boa transcrição (com outra letra de amanuense), que anotou e corrigiu profusamente.
O texto, parece, era a versão final de Barberis. Desse rascunho “concluído” derivaram outras cópias
fidedignas. O texto usado por Lemoyne, tanto nos Documenti como nas Memórias Biográficas é um texto
derivado. A redação original é simples, mas escrita densamente com letra de Barberis, com pouquíssimas
correções. Sublinhe-se que lhe faltam as cenas do sonho nas quais são mostrados a Dom Bosco igrejas e
edifícios; não obstante, informa sobre a cena onde a Senhora indica o lugar exato do martírio [Notizie
varie dei primi tempi dell’Oratorio su D. Bosco etc. II-12, “2 febbraio 1875” em ASC A000ss: Cronachette,
Barberis, FDB 892 A11-12]. Esse documento apresenta um cansativo e duplo sinal no início de cada
linha, que pretende indicar o uso do texto de Lemoyne. O relato “completo” de Barberis está em ASC
A000ss: Cronachette, Barberis, “Sogni diversi a Lanzo”, FDB 866 B 10-C1. Um dos aspectos desse texto
é que ele apresenta uma descrição mais detalhada do relacionamento de Dom Bosco com os rosminianos
para a recompra do Campo dos Sonhos. Cópias derivadas (todas virtualmente idênticas) estão em ASC
A014-19: Sogni-Barberis, “Il nastro biancho + Revelazione della Congregazione” (cópia caligráfica),
FDB 1279 C6-11 y 1282 E8-1283 A1; ASC A014ss: Sogni-Lemoyne, “Visione riguardante la Congra-
gazione” (com caligrafia de Lemoyne), FDB 1314 B10- C5. Este, o último texto, deveria ser considera-
do a fonte imediata da narrativa de Lemoyne nos Documenti e nas Memórias Biográficas.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Após a refeição, Dom Bosco e um empregado, fomos embora. Falamos dos


noviços e da nova casa designada para o noviciado. Conversamos longamen-
te e, afinal, chegamos à rua Borgo Novo. Ali, Dom Bosco deteve-se para
visitar a marquesa Dória, que estava doente. Em seguida, de volta para casa,
falou comigo sobre assuntos muito importantes. Entre outras coisas, contou-
-me uma singular visão que, antes desse momento, jamais revelara a alguém.
Garantiu-me que eu era a primeira pessoa a sabê-lo.19

Deve-se levar em conta que, antes de 2 de fevereiro de 1875, quando


contou o sonho a Barberis, Dom Bosco já escrevera um relato (do sonho) nas
Memórias do Oratório.
A introdução ao relato “completo” de Barberis diz:
Em 2 de fevereiro de 1875, eu voltava com Dom Bosco para o Oratório
de Borgo São Salvário. Estávamos sozinhos. Entre muitas outras coisas,
ele me relatou a seguinte visão. Disse que era a primeira que tivera em
relação à Congregação [...]. E acrescentou que jamais abrira seu coração
a ninguém sobre o assunto. Que eu era a primeira pessoa que o escutava.
[Disse também:]
“Corria o ano de 1844. Eu devia deixar o Colégio Eclesiástico de São
Francisco para padres e partir para o Refúgio a fim de viver com o teólogo
Borel. Estava realmente angustiado sobre [o que deveria fazer com] meus
jovens, que participavam das instruções religiosas [o Oratório] aos do-
mingos e dias festivos. Não sabia se os devia deixar livres para que fossem
[embora] ou continuar a ocupar-me deles. Meu desejo era continuar [com
o trabalho d] os Oratórios, mas não via como fazê-lo. No último domingo
que iria passar no Colégio Eclesiástico deveria comunicar aos meus jovens
que já não podiam reunir-se ali, como o faziam normalmente. De fato,
eu me debatia entre se devia dizer-lhes que não deveriam ir a algum outro
lugar, pois o Oratório tinha acabado ou se, ao contrário, deveria comuni-
car-lhes um novo lugar onde pudessem reunir-se. À noite de sábado para
domingo, sonhei [...]”.
As duas citações (do “original” de Barberis e dos textos “completos”) demons-
tram claramente que o cenário do Primeiro Sonho dos Santos Mártires na
fonte de Barberis, é o mesmo que o do Sonho de 1844 (MO). Ou seja, foi
à noite antes do segundo domingo de outubro, 12-13 de outubro de 1844,

19
O cônsul é João Batista Gazzolo, valioso mediador para levar os salesianos à Argentina em
1875. Os Occelletti viviam em São Salvário, bairro do extremo sul da cidade. Em 1847, o Oratório de
São Luís localizava-se nos limites desse bairro; a igreja de São João Evangelista seria ali inaugurada em
1882. Em 1859, o cavalheiro Carlos Occelletti iniciou, em sua própria residência, o Oratório de São
José; mais tarde, os salesianos acabaram por assumi-lo. O noviciado que fora fundado recentemente
estava em São Benigno; oficialmente, foi aberto em 1876.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

quando Dom Bosco estava para deixar o Colégio Eclesiástico e encarregar-se


do trabalho no instituto da marquesa Barolo. Por conseguinte, a narração
do Primeiro Sonho dos Santos Mártires é uma variante do Sonho de 1844.
Quando Barberis escreveu seu relato, no mesmo dia (“hoje”) 2 de fevereiro de
1875, com toda a certeza, deixou escrito, com a maior exatidão que pôde, o
que ouvira de Dom Bosco. Foi, portanto, o próprio Dom Bosco quem fixou
a localização deste sonho da crise, quando estava para deixar o Colégio Ecle-
siástico, e o futuro do Oratório parecia muito incerto.

O Primeiro Sonho dos Santos Mártires


Lemoyne narra este sonho nos Documenti, num capítulo “adicional”,
uma espécie de epílogo, mantendo a mesma colocação da sua fonte (Barberis):

Mencionamos nos capítulos anteriores, alguns sonhos extraordinários que


serviram para animar Dom Bosco em sua caminhada [...]. Relataremos aqui
em grandes linhas a visão que Dom Bosco teve [num sonho], precisamente
como o relatou pela primeira vez ao padre Júlio Barberis em 2 de fevereiro de
1875 [...]. “No último domingo que eu passaria no Colégio Eclesiástico [...]”.

Nas Memórias Biográficas, Lemoyne muda a localização do sonho. Como


poderiam duas versões diferentes de um sonho ter a mesma localização? Qui-
çá, para Lemoyne a questão crítica era menos importante do que recolher um
texto garantido por uma fonte e falar sobre o seu provável contexto narrativo.
Esse modo de proceder faz parte do seu “método” narrativo. A nova localiza-
ção é maio de 1845, data em que o Oratório devia deixar o Pequeno Hospital
da marquesa Barolo para começar sua vida itinerante.
Depois da introdução, em que descreve a ocasião e a localização do so-
nho, vem a sua narração propriamente dita.
O Sonho de 1844, nas Memórias, contém imagens vocacionais do sonho
dos Becchi e cenas da instalação do próprio Oratório na região de Valdocco.
O mesmo do relato de Barberis.
Entretanto, no relato de Barberis: [1] Dom Bosco fala dos Santos Mártires
de Turim e do lugar exato do seu martírio, que a Senhora indicara com o pé.
Ali se levantaria uma grande igreja. [2] Fala também de ajudantes vinculados
pelo “cinto da obediência”. [3] Após a narração do sonho propriamente dito,
Dom Bosco passa a narrá-lo numa forma que, com certeza, deduziu do sonho:
“Desde 1844, eu fui adiante por terreno seguro, tanto nos assuntos relativos à
Congregação e ao Oratório quanto aos assuntos de política”. [4] Em seguida,

431

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Dom Bosco: história e carisma 1

menciona a pesquisa, feita a seu pedido, pelo cônego Lourenço Gastaldi sobre
os Santos Mártires.20 [5] Mais adiante, Dom Bosco continua a descrever os pla-
nos para a Igreja de Maria Auxiliadora, que considera a realização do sonho de
1844, e a reaquisição do terreno (o “prado dos sonhos”) das mãos dos rosminia-
nos.21 [6] Há, enfim, um comentário de Dom Bosco sobre a praça e um monu-
mento. Nota-se, a esta altura, uma curiosa diferença entre o relato “completo”
de Barberis e o texto dos Documenti e das Memórias Biográficas. Em Barberis,
o comentário acrescentado diz: “Diante da Igreja que a Bendita Virgem me
indicou, estendia-se uma bela praça com um monumento no centro. Agora, es-
perarei e comprovarei se todas essas coisas serão realizadas”.22 Em Lemoyne, não
há menção da praça, enquanto o monumento situa-se no centro do complexo
do Oratório, ao redor da igreja. Ele escreve: “Vi depois uma grande igreja que
se elevava no lugar exato [do martírio] [...]. Havia muitos edifícios ao redor da
igreja e, no centro, erguia-se um precioso monumento”.
20
A pesquisa do cônego Gastaldi sobre os Santos Mártires foi publicada anonimamente nas
Leituras Católicas como Memórias históricas do martírio e culto dos Santíssimos Mártires Solutor, Aventor
e Otávio, Protetores da cidade de Turim. Recolhidas por um padre de Turim (Leituras Católicas XIV:
1º de janeiro de 1866), 42-43. No relato de Barberis, Dom Bosco menciona apenas dois mártires, pois
um dos três fugira e, mais tarde, aprisionado, foi martirizado em Ivrea. Nas Memórias Biográficas, a
seção sobre o martírio e a pesquisa de Gastaldi é comentada amplamente. Lemoyne serve-se tanto da
informação obtida da publicação de Gastaldi sobre o tema, como do conhecimento que os salesianos ti-
nham do mesmo. Em seguida, atribui totalmente a Dom Bosco a explicação relativa ao lugar do martí-
rio. Parece que Gastaldi desejava ampliar oralmente aos salesianos aquilo que escrevera de maneira mais
sucinta. Talvez seja essa a origem da tradição salesiana mais detalhada da localização. O cônego conclui
que é historicamente possível que o martírio tivesse acontecido no interior dos muros do Oratório (!).
Cf. E. Valentini, “Hic domus mea: história do santuário de Maria Auxiliadora em Turim (1868-1968)”,
para ajudar os cristãos, Mãe da Igreja. No Centenário da Consagração da Basílica de Turim, 9 de junho de
1868. Academia Mariana VII, Zurique: PAS-Verlag, 1968, 96-99. A crença de que soldados cristãos da
Legião Tebana Romana sofreram o martírio na região de Turim não tem fundamento histórico.
21
Em 20 de junho de 1850, Dom Bosco adquirira o terreno, cujo proprietário era o seminário
arquiepiscopal. Contudo, num momento de grande necessidade, em 10 de abril de 1845, revendera-o
ao padre Antônio Rosmini. O abade Rosmini tentou mais tarde edificar ali uma casa e, assim, introdu-
zir em Turim a sua Congregação Instituto da Caridade. Pretendia, também, dispor de padres para aju-
dar Dom Bosco. Contudo, o plano foi abandonado com a morte de Rosmini em 1855. Com o passar
do tempo, o terreno foi posto à venda. Nos inícios de 1863, Dom Bosco precisava de um terreno para
a igreja de Maria Auxiliadora; mediante um artifício, recomprou a propriedade. O terreno chegou a
ser conhecido mais tarde como o “prado dos sonhos”, pois Dom Bosco o identificou com o campo que
vira no Sonho de 1844, como também identificou a igreja de Maria Auxiliadora com aquela que vira
no sonho. Poder-se-ia perguntar: “Se o campo tinha tanto significado, por que Dom Bosco o vendeu
em 1854, dez anos depois do sonho?”. Nas Memórias Biográficas, omite-se o relato sobre a localização
da igreja de Maria Auxiliadora e a recompra do terreno aos rosminianos. Mais tarde, aparece redigida e
ampliada em seu contexto histórico mais apropriado: em 1863, quando estava para iniciar a construção
da igreja de Maria Auxiliadora (MB VII, 243-254 e 380-381).
22
É evidente que Dom Bosco não falava de um monumento a si mesmo! Entretanto, é o que
entendeu a tradição biográfica salesiana, como os Ex-Alunos Salesianos que decidiram erigir o monu-
mento na praça, iniciado em 1915 e inaugurado em 1920, depois da Primeira Guerra Mundial.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

O Segundo Sonho dos Santos Mártires


A narração do sonho de 1844 feita por Dom Bosco a Barberis menciona
os Santos Mártires, situando seu martírio num lugar concreto. Esta é a razão
pela qual a versão do sonho, segundo Barberis, é considerada frequentemente
como o Primeiro Sonho dos Santos Mártires.
Há uma segunda narração do sonho em que se mencionam os Santos
Mártires, que aparecem vivos a Dom Bosco. Esse sonho é conhecido como
Segundo Sonho dos Santos Mártires. A fonte nas Memórias Biográficas é o
próprio Lemoyne (os Documenti não indicam nenhuma fonte). Lemoyne
construiu a narração baseando-se nas palavras ouvidas de Dom Bosco em
1844 e antes, por cerca de vinte anos:

[Dom Bosco] relatou-o brevemente, e apenas a uns poucos sócios íntimos em


1844. Contudo, Dom Bosco já havia revelado os seus aspectos mais significa-
tivos, intermitentemente, quase vinte anos antes [...]. Este escritor, que estava
ao seu lado, não permitiu que suas palavras caíssem no vazio. a seu tempo
tomou nota delas cuidadosamente e as compilou mais tarde para descrever o
desenvolvimento da cena do sonho.23

Não seria difícil a quem escutasse Dom Bosco narrar um sonho em


1884, escrever um resumo dele a partir do que pudesse recordar da narração.
E, aceitando que Dom Bosco tenha especificado o contexto em que o sonho
se deu, seria fácil para um biógrafo situá-lo em seu contexto exato. Mais
difícil de entender, porém, é como Lemoyne pôde compilar o relato de um
determinado sonho para um contexto específico, baseando-se em fragmentos
ouvidos por cerca de vinte anos (!).

O “Outro Sonho”
Depois de relatar o sonho de 1844 nas Memórias, Dom Bosco escreve: “Pos-
teriormente, junto com outro sonho, serviu-me de programa em minhas decisões”.
É evidente que este “outro” sonho não pode ser identificado com o
“outro” sonho dos Santos Mártires. É motivo de especulação qual foi este
“outro Sonho”, e quando aconteceu.

Um ano determinante: 1844


Ao falar da origem da Sociedade Salesiana, Dom Bosco refere-se a di-
versas datas, que vão de 1841 a 1859. O ano 1841 é, evidentemente, um
23
MB II, 297-301. Os vinte anos são contados a partir de 1864, quando Lemoyne se fez salesiano.

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Dom Bosco: história e carisma 1

importante ponto de referência, embora simbólico. E, talvez, de forma muito


apropriada, Dom Bosco escreve num memorando dirigido a Pio IX em 1864:
“A finalidade [desta Sociedade] é continuar [o trabalho] que durante vinte
anos se levou a cabo no Oratório de São Francisco de Sales”.24 A referência nes-
ta passagem é 1844, quando o Oratório, se assim se pode dizer, foi refundado
com o mesmo grupo originário como autêntico (oratório) de Dom Bosco. O
Oratório de São Francisco de Sales pode ser considerado, de fato, uma con-
tinuação da experiência de São Francisco de Assis, desde que seja concebido
também como resultado de uma nova e definitiva opção vocacional, que deve
ter causado uma grande inquietação em Dom Bosco. Foi em 1844 que ele
assumiu a opção vocacional definitiva pelos jovens “pobres e abandonados”.

O Pequeno Hospital de Santa Filomena (foto de Leonard von Matt).

Entretanto, a decisão de 1844 não pode ser vista isoladamente. De


fato, o período seguinte, ou seja, o tempo passado nas instituições da mar-
quesa Barolo, o ano do Oratório itinerante e, enfim, a residência na casa
Pinardi, até o ultimato da marquesa, foi considerado como período de ama-
durecimento vocacional de Dom Bosco. Foi o tempo da prova definitiva
do compromisso de 1844. Ao longo desse período (1844-1846), houve
da parte de Dom Bosco dedicação integral, comunicação alegre e espe-
rança animadora quanto ao futuro da sua obra. Contudo, houve também
24
G. Bosco, Costituzioni della Società di San Francesco di Sales [1858-1875]. Cf. F. Motto,
Costituzioni, 229. MB VII, 622.

434

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

provações e dificuldades desalentadoras: enfermidade grave, dificuldades


exacerbadas na busca de um local definitivo, objeções de párocos, suspeitas
e hostilidades, assim como abandono de amigos e ajudantes. Nesse tempo,
Dom Bosco não duvidou nem por um instante sequer: “Eu tinha uma cer-
teza íntima em relação ao que estava fazendo, e sabia que, afinal, os aconte-
cimentos haveriam de me dar razão”.25

2. O período “itinerante” do Oratório de São Francisco


de Sales
Dom Bosco viveu no Colégio Eclesiástico até outubro de 1844; nesse
período, o grupo que ali se reunia para receber instrução religiosa e para ou-
tras “atividades de Oratório” era, de fato, o “seu Oratório”.
Ao deixar São Francisco de Assis, o Oratório ia de um lugar a outro,
embora na mesma região, principalmente em Valdocco, até fixar-se na pro-
priedade Pinardi. Esse período é conhecido como do “Oratório itinerante”.26
A expressão é especialmente apropriada para o período que vai de maio de
1845, quando o Oratório deixou o Pequeno Hospital da marquesa Barolo,
até fixar-se na propriedade Pinardi em 1º de abril de 1846. As etapas do “êxo-
do” foram as seguintes:

O Oratório no Refúgio da marquesa Barolo


(20 de outubro - 1º de dezembro de 1844)
Em 13 de outubro de 1844, domingo e festa da Maternidade de Maria,
depois de recordar o sonho da noite anterior, Dom Bosco anunciou que, a
partir de então, o Oratório se reuniria na Casa de Nossa Senhora Refúgio
dos Pecadores (o “Rifugio”) da marquesa Barolo, no bairro de Valdocco. O
Oratório reuniu-se ali pela primeira vez no terceiro domingo, 20 de outubro,
e continuou no mesmo lugar durante seis semanas, até o Primeiro Domingo
do Advento, 1º de dezembro de 1844.
Como empregado da marquesa Barolo, Dom Bosco devia servir como
capelão do Pequeno Hospital, ainda em construção, além de ajudar o teólo-
go Borel no Refúgio. Seus aposentos estavam próximos, à entrada daquela
obra. Dessa forma, o conhecimento recíproco durante muitos anos, desde os

Cenno storico de 1854.


25

O resumo seguinte corrige, em parte, o relato das Memórias de Dom Bosco [MO 138-152] e
26

a da tradição biográfica. Baseia-se em P. Stella, Economia, 74-76, F. Giraudi, L’Oratorio, 32 e passim,


e em F. Motto, L’Oratorio, 199-220.

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Dom Bosco: história e carisma 1

dias de seminário, e sua mais recente colaboração no ministério das prisões,


chegou a ser uma relação singular. O teólogo Borel converteu-se no mais
íntimo e fiel colaborador de Dom Bosco durante o período de formação
do Oratório de São Francisco de Sales e durante a década seguinte até sua
localização definitiva.
Dom Bosco já estava gravemente enfermo de bronquite quando deixou
o Colégio Eclesiástico, doença que piorou progressivamente e que, durante
esse período, pôs sua vida em risco. Entretanto, conseguiu cumprir suas
obrigações com a marquesa Barolo. Ganhava seu salário e sustento como
capelão e professor das 400 meninas do Refúgio. Ao mesmo tempo, com a
ajuda do teólogo Borel e do padre Pacchiotti, dirigia o Oratório nos domin-
gos e dias festivos.27
No Refúgio, o Oratório reunia-se nos quartos de Dom Bosco e do teó-
logo Borel, no corredor contíguo e nas escadas. Os dois ensinavam religião e
ouviam as confissões dos meninos. Depois, levavam o grupo a alguma igreja
para a Missa. Durante o dia, a recreação acontecia onde conseguiam espaço.

O Oratório no Pequeno Hospital de Santa Filomena


(8 de dezembro de 1844 - 18 de maio de 1845)
O espaço útil para as atividades no Refúgio era excessivamente pequeno
para o crescente número de meninos, que chegava a 200. Os párocos, numa
audiência, apresentaram a questão ao arcebispo Fransoni. O arcebispo, que
percebia a importância dessa obra, apoiou-o, e deu sua bênção e licenças.
Contudo, também quis inteirar-se dos motivos pelos quais os meninos não
iam às suas respectivas paróquias para receber a instrução religiosa. Dom Bos-
co respondeu-lhe que aqueles meninos não tinham paróquia aonde ir porque
provinham, em sua maioria, de outros lugares fora da cidade. Então, o arce-
bispo sugeriu que os párocos falassem sobre a questão com a marquesa.
A marquesa autorizou o uso de dois ambientes reservados para a recreação
dos padres no quarto andar do Pequeno Hospital de Santa Filomena, do qual
Dom Bosco era capelão. O Pequeno Hospital, a última das instituições da mar-
quesa Barolo, tinha por objetivo acolher meninas portadoras de limitações e

27
Sebastião Pacchiotti (1806-1886), depois de trabalhar por algum tempo como padre assisten-
te, assumiu o lugar de capelão do Refúgio, associado ao teólogo Borel. Também ele, como o teólogo
Borel, trabalhou com Dom Bosco no Oratório. Ao retornar à cidade natal, Giaveno (perto de Turim),
foi nomeado cônego e conselheiro por vinte e cinco anos. Foi-lhe concedido o título de Cavalheiro da
Real Ordem dos Santos Maurício e Lázaro. Seu túmulo, no cemitério de Giaveno, traz a inscrição: “Foi
amado por todos pela sua bondade sem limites e pela sua mansidão”.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

cuidar delas. Os dois ambientes converteram-se em capela (a “primeira igreja


do Oratório”) em 8 de dezembro de 1844; e continuaram a ser usados até 18
de maio de 1845.28 Desde o início, o Oratório teve São Francisco de Sales
como patrono. Dom Bosco escreve:

Começou a chamar-se [Oratório] de São Francisco de Sales por duas razões:


primeira, porque a marquesa Barolo tencionava fundar uma congregação de
padres sob esse título, e com essa intenção encomendara o quadro do santo
[...]; segunda, porque como tal ministério exige grande calma e mansidão,
havíamo-nos colocado sob a proteção deste santo.29

O Oratório no cemitério de Santa Cruz (São Pedro in vincoli)


(25 de maio de 1845)
Como a construção do Pequeno Hospital estava para ser concluída (o
hospital seria inaugurado em 10 de agosto de 1845) Dom Bosco precisou
buscar outro local para o Oratório. A marquesa pressionou-o para que o fi-
zesse o quanto antes, por causa do tumulto e confusão causados pelos jovens,
cujo número aumentava a cada dia. Dom Bosco, como é natural, queria
manter o Oratório nessa região, para continuar a viver no Refúgio e estar
próximo do lugar onde trabalhava como capelão.
Ao deixar o Pequeno Hospital em 18 de maio de 1845, o Oratório de
São Francisco de Sales reuniu-se no cemitério da Santa Cruz em 25 de maio;
pouco depois, porém, foi proibido qualquer uso dos locais.30 Parece oportuno
dar uma explicação sobre isso.
O cemitério da Santa Cruz era propriedade da cidade. Situava-se pouco
distante a nordeste da fundação da marquesa Barolo. Já não era utilizado como
lugar de sepultamento, mas sua grande capela, dedicada a São Pedro in vincoli,

28
Durante a permanência no Pequeno Hospital, segundo uma versão, Dom Bosco deu início às
aulas noturnas para jovens. Segundo outras versões, as aulas noturnas começaram mais tarde, na casa
Moretta, ou, talvez, depois do seu estabelecimento na casa Pinardi. A finalidade das aulas noturnas era
iniciar os jovens na leitura por meio do estudo do catecismo, de modo que adquirissem por si mesmos
as ferramentas para obter a formação religiosa.
29
MO, 137. Estas palavras de Dom Bosco parecem indicar que, embora São Francisco de Sales
devesse ser o patrono “oficial” dos padres da marquesa Barolo, o santo, um dos principais patronos
do Colégio Eclesiástico, tinha-se convertido em patrono especial dos padres ocupados no trabalho do
Oratório desde que se transferiram de São Francisco de Assis.
30
Nas Memórias e em outros escritos, Dom Bosco localiza o episódio de São Pedro in vincoli
depois da passagem por São Martinho, junto aos moinhos do Dora (MO, 138-145), um lapso cronoló-
gico corrigido com documentos oficiais. A reconstrução de Motto demonstra o caráter melodramático
da apresentação de Dom Bosco em suas Memórias (MO, 143-144).

437

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Dom Bosco: história e carisma 1

ainda era atendida por um capelão residente, nomeado pela Prefeitura da cidade.
O capelão era o padre Jose Tésio; a doméstica era Margarida Sussolino.
A “retirada” do cemitério deve-se a uma ordem da Prefeitura, que proi-
bia qualquer tipo de reuniões, motivada provavelmente pelo devido respeito
aos mortos. O capelão não interveio no assunto, pois o cemitério estava sob
a jurisdição da Prefeitura. Motto faz a seguinte reconstrução documentada:
1. Durante a Quaresma de 1845 (a Páscoa caiu em 3 de março), o
Oratório de São Francisco de Sales continuou a reunir-se no Pe-
queno Hospital para a instrução catequética.
2. Nos inícios de maio, a Prefeitura permitiu à Congregação Cate-
quética de Santa Pelágia o uso da Capela de São Pedro in vincoli,
para a récita do ofício dos defuntos. A Prefeitura decidiu proibir
qualquer acesso à capela, o que se tornou efetivo a partir de 23 de
maio. A ordem, contudo, só seria publicada na semana de 26 de
maio a 1º de junho.
3. Entre 18 de 22 de maio, ou seja, antes da proibição, Dom Bosco
obteve das autoridades civis e religiosas, inclusive do capelão, a
permissão para usar o local. O Oratório reuniu-se em São Pedro
in vincoli no domingo 25 de maio, ou seja, depois da proibição,
mas antes da sua publicação. Quando o capelão, padre Tésio, vol-
tou para casa à noite e ouviu o relato da doméstica sobre a mul-
tidão desordenada de meninos, escreveu ao Conselho da cidade
uma carta contrária [à permissão], o que pode ter influído nas
decisões subsequentes.
4. A semana de 26 de maio a 1º de junho foi cheia de aconteci-
mentos lutuosos. Padre Tésio morreu de apoplexia, aos 68 anos
de idade. Sua morte acontecida na quarta-feira, 28 de maio, está
registrada em Turim. Entretanto, a morte da doméstica não está
registrada. Após a morte do capelão, deve ter-se afastado de Turim
para algum lugar desconhecido, quem sabe sua cidade natal.
5. Em 29 de maio, padre Cafasso recomendou Dom Bosco para o lu-
gar de capelão de São Pedro in vincoli; no dia seguinte, Dom Bosco
apresentou o seu pedido à Prefeitura, apoiado pelos padres Borel e
Pacchiotti, mas o pedido foi recusado. Mais tarde, em 19 de junho,
um dos 17 candidatos aspirantes ao cargo foi nomeado capelão.
6. No domingo, 1º de junho, foi colocada no quadro de avisos uma
ordem do Conselho da cidade que proibia reuniões na igreja de
São Pedro in vincoli.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

Capela de São Martinho nos moinhos do rio Dora.

O Oratório sem lugar para reunião (de 1º de junho a 6 de julho de 1845)


De 1º de junho a 6 de julho, durante seis domingos, o Oratório, que tinha
como lugar de encontro o Refúgio onde Dom Bosco vivia, reuniu-se ao ar livre
ou em várias igrejas. Dom Bosco não se rendeu e, em fins de junho, enviou,
com o teólogo Borel e o padre Pacchiotti, novo pedido solicitando o uso dos
locais de São Pedro in vincoli. A permissão foi negada em carta de 3 de julho.

O Oratório em São Martinho, nos moinhos do rio Dora


(de 13 de julho até fins de dezembro de 1845)
Pouco tempo depois, entre 3 e 9 de julho de 1845, o teólogo Borel, em
nome de Dom Bosco e do padre Pacchiotti, solicitou permissão para usar a
capela de São Martinho, anexa aos moinhos no bairro Borgo Dora, situada
entre o rio Dora e a grande praça de Porta Palácio, pouco distante a leste
das instituições da marquesa Barolo. Os moinhos funcionavam graças à água
desviada do rio.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A Prefeitura, com carta de 10 de julho, concedeu a autorização. A licen-


ça permitia somente um uso restrito, do meio-dia às 3 horas da tarde, para
instrução catequética, e isso mesmo com reservas. A manhã era reservada aos
serviços religiosos de domingo, oficiados pelo capelão local.31 O Oratório
precisou encontrar outra igreja para as confissões e a Missa.
O Oratório reuniu-se pela primeira vez em São Martinho no domingo,
13 de julho; continuou a reunir-se nesse local até domingo, 21 de dezembro
de 1845. Na primeira reunião, o teólogo Borel fez o famoso “sermão das
couves”, insistindo que o Oratório precisava, como essa verdura, ser trans-
plantado para o crescimento adequado.32
A permissão para o uso dos locais dos moinhos foi revogada devido às
queixas dos vizinhos. O secretário dos moinhos em carta ao Prefeito foi seu
porta-voz;33 o Conselho da cidade votou no dia 18 de novembro de 1845 o
cancelamento da concessão, que se tornou efetiva em 1º de janeiro de 1846.

O Oratório na casa do padre João Batista Moretta


(de domingo, 4 de janeiro, até inícios de março de 1846)
Recebida a decisão tomada pela Prefeitura, imediatamente o teólogo Borel
e Dom Bosco puseram-se a buscar outro local onde pudessem reunir o Orató-
rio. Nesse momento, veio em auxílio um velho padre aposentado, João Batista
Moretta (1777-1847). Ele possuía uma grande casa, situada pouco distante a
oeste das instituições da marquesa Barolo, no bairro de Valdocco. Dom Bosco
e o teólogo Borel alugaram três de seus quartos por 15 liras ao mês.
Muitos padres e um grupo de jovens estudantes da cidade ajudaram nas
aulas de catequese. Criaram-se aulas noturnas, além das dominicais já inicia-
das no Pequeno Hospital da marquesa Barolo, que utilizavam o catecismo

31
F. Motto, L’Oratorio, 218-219; MB II, 24-344.
32
MO, 141. Dom Bosco atribui o sermão ao teólogo Borel. Bonetti, na História do Oratório, acom-
panha as Memórias ao pé da letra, mas os editores da História do padre Bonetti em formato de livro (Cinque
lustri) atribuem o sermão a Dom Bosco, como também o faz Lemoyne (MB II, 135-138). Os arquivos
centrais conservam os manuscritos em clara caligrafia de Borel (MO, 141; MO-Ce, 143-144). Quanto às
“couves”, é preciso levar em conta que a permanência do Oratório em São Martinho deu continuidade,
embora não imediatamente, ao episódio de São Pedro in vincoli, que era conhecido popularmente como
“São Pedro das couves”, devido ao mercado da hortaliça que existia nas proximidades.
33
A história melodramática da morte do secretário autor da carta de proibição das reuniões em
São Martinho (MO 142-143), como a morte do padre Tésio e da sua doméstica no episódio anterior,
implicam uma “teologia” do castigo, comum naqueles tempos. Não se deve ver na proibição de publi-
car o nome do secretário “um exemplo da esmerada delicadeza do Santo” [MO, 143; nota 199; MO,
Ceria, 147, linha 104].

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

com a dupla finalidade de ensinar a ler e instruir na religião.34 Os meninos,


mais de 200, assistiam à Missa e outros serviços dominicais em alguma igreja
do bairro. O Oratório começou a reunir-se na casa de Moretta no início de
março de 1846. Em seguida, padre Moretta, diante da pressão de alguns ar-
rendatários desgostosos, não quis renovar o contrato de aluguel.

O Oratório utiliza o prado dos irmãos Filippi


(inícios de março de 1846)
Nos inícios de março (talvez o domingo 1º de março de 1846), o Orató-
rio, que nesse momento contava com mais de 300 meninos, usou um prado,
alugado aos irmãos Filippi,35 que se localizava exatamente ao norte da casa
Moretta, cercado por uma pequena sebe. Os meninos usavam-no para recrea-
ção e também para atividades religiosas, mas deviam recorrer, mais uma vez, a
igrejas fora da cidade para os serviços litúrgicos.
Não demorou muito, porém, para o senhor Filippi lamentar-se por ter
alugado o prado, pois os meninos estragavam o seu gramado.

Enfim, uma casa definitiva


(1º de abril de 1846)
Antes de meados de março de 1846, foi dito ao teólogo Borel e a Dom
Bosco sobre a disponibilidade de uma casa pouco distante tendo atrás um te-
lheiro anexo. O homem que lhes indicou esse local era certo Pancrácio Soave,
que arrendara a casa de Francisco Pinardi, mas não o telheiro. Em 1º de abril
de 1846, o teólogo Borel assinava o arrendamento do telheiro. O contrato
durava três anos. O Oratório reuniu-se ali pela primeira vez no domingo de
Páscoa, 12 de abril de 1846.
Um telheiro, a casa adjacente e um pequeno terreno foram o lugar defi-
nitivo do Oratório de São Francisco de Sales.

MO Silva, 141.
34

Os irmãos Filippi eram agricultores na região e possuíam uma casa e uma faixa de terra bas-
35

tante grande, que rodeava a norte e leste a propriedade Pinardi, onde o Oratório se localizou definiti-
vamente. Pinardi havia comprado o seu pedaço de terra aos irmãos Filippi.

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Apêndice

BIOGRAFIA DO TEÓLOGO PADRE JOÃO BOREL


(1801-1873)

Pouco se sabe da família Borel. Segundo consta em seu registro de batis-


mo, na paróquia de São João Batista, catedral de Turim, João Luís Teobaldo
Maria era filho de José Antônio Borel e Carolina Motto; nasceu em 1º de
julho e foi batizado do dia 2 de julho de 1801.36 Um irmão mais velho, Luís
José, nascera em 1798, e outro mais novo, Miguel Caetano, nascerá em 1804.
O registro civil e documentos eclesiásticos confirmam o ano de nasci-
mento, 1801, e também o nome, João.37 Parece ter tomado João Batista como
seu santo patrono.38 Quanto ao sobrenome, os documentos oficiais escrevem
sempre “Borel”. Dom Bosco, nas Memórias e, muitas vezes, nas cartas, escreve
“Borelli”.39 É possível que Dom Bosco considerasse Borel uma forma dialetal
piemontesa e desejasse um som italianizado. A marquesa Barolo sempre o
chama de “Borel”, embora seja improvável que tanto o nome como a família
sejam de origem francesa.
Cursou a escola fundamental e secundária de acordo com o sistema de
ensino vigente no momento. Entre 1809 e 1814, sua instrução foi a do siste-
ma napoleônico que prescrevia três anos de ensino fundamental mais três de

36
Atestam-no E. Valentini, “La vita di comunità nella tradizione salesiana dei primi tempi”. In:
La comunitá salesiana. Turim-Leumann: LDC, 1973, 16, nota 8; P. Stella, Economia, 623; P. Braido,
Don Bosco nella Chiesa, 41, nota 99.
37
Por exemplo, na lista de jovens nascidos em 1801, que se podiam arrolar na milícia: Borel,
João Luis Teobaldo Maria [...] - 1º de julho - “diocesano”. Igualmente, no censo do clero realizado em
1873 pelo arcebispo Gastaldi, a ficha preenchida pelo próprio Borel é explícita. Nome: Borel, João,
Th. D. / Nascido: 1801 / Títulos: Doutor em Teologia, Cavalheiro da Ordem de São Maurício e de
São Lázaro / Ocupação: diretor espiritual / Residência: Via Cottolengo, 24, andar de baixo / Paróquia:
Borgo Dora / Igreja ou oratório onde celebra a Eucaristia: Igreja de Nossa Senhora do Refúgio / Igreja de
ministério: a mesma / Proprietário da casa ou inquilino: proprietário.
38
Tenha-se presente que nas Memórias do Oratório, Dom Bosco nunca o chama de João Batista,
mas usa sempre e somente Gioanni ou Giovanni. Outros textos, porém, como as Memórias Biográficas,
usam normalmente o nome de Giovanni Battista.
39
Cf. Edições críticas: MO Silva e F. Motto, Epistolario.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

ensino secundário. Deveria ter concluído nos anos 1814 a 1817 os seus estu-
dos secundários pelo velho sistema da Casa de Saboia, que prescrevia de um a
dois anos de ensino fundamental, seguidos de três anos de gramática inferior,
mais outros três anos de humanidades e retórica. Cursou, depois, dois anos de
filosofia (1817-1819) e, enfim, cinco anos de estudos teológicos (1819-1824),
dos quais se conserva um detalhado relatório na Universidade de Turim.

Teólogo João Borel (1801-1873).

João Borel pertenceu ao grupo de seminaristas não residentes agregados


a uma igreja, em que exerciam o ministério sob os cuidados e a vigilância de
um padre, o “prefeito”.40 Nesse tempo, em Turim, indicavam-se aos grupos
de seminaristas não residentes as igrejas de Santa Cristina, São Filipe, Corpus
Christi e Santa Maria da Praça.41
40
Cf. I. Tubaldo, “Il clero piemontese: sua estrazione sociale, sua formazione culturale e sua
attività pastorale. Alcuni apporti alla sua identificazione”. In: F. N. Appendino (ed.), Chiesa e società
nella II metà del XIX secolo in Piemonte. Casalle Monferrato: Marietti, 1982, 214.
41
Cf. A. Giraudo, Clero, 194-197.

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Dom Bosco: história e carisma 1

João Borel vestiu o hábito clerical em 1817 e fez parte do grupo dos cléri-
gos indicados para a igreja de Corpus Christi, como ele mesmo testemunha no
Processo de Beatificação de Cottolengo.42 Não é seguro que tenha participado
da escola de teologia na Universidade como seminarista não residente, pois o
nome Borel nunca aparece nas memórias do seminário de 1817 a 1824.
Entretanto, como a Universidade permaneceu fechada durante a revo-
lução de 1821, sendo reaberta somente em 1823, o mais seguro é que João
Borel tenha estudado no seminário. Na Universidade de Turim são conser-
vadas as Atas de seus estudos teológicos e de exames dos diversos tratados de
teologia. Foram-lhe conferidos os graus de bacharel em 29 de março de 1821,
de licenciatura em 3 de junho de 1823 e de doutor em 24 de maio de 1824.
A assinatura do teólogo Guala aparece em todos os certificados dos exames do
teólogo Borel. Guala era professor da Escola de Teologia e fora eleito Reitor do
recentemente aberto Colégio Eclesiástico, de São Francisco de Assis em 1822.43
João Borel foi ordenado padre em 16 de setembro de 1824, aos 23 anos.
Exigia-se do padre recém-ordenado que assistisse às conferências morais (con-
ferenze morali) durante dois anos após a ordenação. Elas eram consideradas
um complemento do curso de teologia e preparação para o ministério pas-
toral. Diversas pelo enfoque teológico, as conferências eram feitas em (três)
lugares aprovados pelo arcebispo Chiaverotti: no Seminário, na Universidade
e no Colégio Eclesiástico de São Francisco de Assis.
Não há nenhum registro escrito relativo aos três anos dos quais partici-
pou o teólogo Borel, que foi considerado um dos padres piemonteses mais
destacados da escola de moral e pastoral do padre Cafasso.44 Padre Cafasso,
ordenado em 1833, só chegou a ser assistente do teólogo Guala no Colégio
Eclesiástico em 1836, assumindo o cargo de professor adjunto em 1843.45
Borel não foi aluno de Cafasso, embora possa ter assistido às conferências
de Guala no Colégio Eclesiástico e, por isso, pode ser considerado da escola
de Cafasso. Em 1833-1834, padre Cafasso foi nomeado diretor do grupo
de padres do Colégio Eclesiástico que davam instrução catequética e ajudas
espirituais aos reclusos na prisão senatorial, no que também o teólogo Borel

42
POCT [de Giuseppe Benedetto Cottolengo], Summarium, 7.
43
Cf. T. Chiuso, La chiesa in Piemonte dal 1797 ai giorni nostri, vol. III, Turim: S. Speirani,
1889, 100. Para o teólogo Guala e o Colégio Eclesiástico, veja-se o que foi dito em outros capítulos.
44
Cf. Cesare Cotemme, “Leonardo Murialdo e il movimento operaio e sociale cattolico in
Piemonte”. In: Chiesa e società nella II mettà del XIX secolo [...], 283. Filippo Natale Appendino (ed.).
Turim: Marietti, 1982. J. Cottino, Federico Albert. Turim-Leumann: LDC, 1984, 25, 29.
45
Cf. L. Nicolis di Robilant, San Giusepe Cafasso. Edição de J. Cottino. Turim: Ed. Santuario
della Consolata, 1990, vol. III, 49, 52.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

estava envolvido. É certo o contato de Borel com o Colégio Eclesiástico e suas


orientações teológico-pastorais.
Em 1824, recém-ordenado padre, Borel já trabalhava como “clérigo da
casa real e capelão”. Em 1831, foi promovido a “capelão real” cujo cargo
ocupou até 1841.46
O teólogo Borel apresentou em 1837 o pedido para ser liberado da Ca-
pelania Real e, em 29 de dezembro de 1840, recebeu o Decreto Real (Regie
Patenti) nomeando-o diretor espiritual do Refúgio da marquesa Barolo; a esse
cargo correspondia um pagamento anual de 600 liras. Ao retirar-se do serviço
real, “por favor de Sua Majestade Munificente”, foi-lhe concedida uma pen-
são de outras 500 liras com o título de capelão honorário.47
Ainda a serviço do palácio real, Borel serviu com o padre Carlos Antônio
Borsarnelli, nos anos 1819-1820 até 1842-1843, como diretor da Escola de São
Francisco de Paula.48 As obrigações dos diretores espirituais nos colégios reais
eram principalmente celebrar a Missa e pregar pela manhã e à tarde, nos domin-
gos e dias festivos, como também dar instrução religiosa a grupos de estudantes.
Entre os padres de Turim, havia José Cottolengo, que não era um simples
agente social. Como padre, dedicava-se de corpo e alma a aliviar os sofrimen-
tos físicos de desafortunados seres humanos. Com essa finalidade, transfor-

46
Calendario generale pe’regii stati […] per l’anno 1824. Turim: Stamperia Pomba e Figli, 1823,
70, e Calendario generale [...] per 1831. Turim: Giuseppe Pomba, 1830, 169s. O clero do Palácio real
participava dos serviços religiosos e formava a Capela Real, presidida pelo Grande Esmoler, que não era
outro senão o arcebispo de Turim. Em sua dependência havia 6 esmoleres, padres de família nobre, que
ocupavam o seu lugar na corte e atendiam às pessoas da família real nos serviços religiosos e usavam
solidéu preto como distintivo. Havia também vários capelães e “clérigos” de classe inferior, entre eles o
teólogo Borel, cuja obrigação era realizar os serviços religiosos. Os padres do palácio celebravam Missa
e pregavam, enquanto os demais o faziam por turno. O seu cargo era valorizado e honroso, pois recebia
bom estipêndio, e deixava ao capelão muito tempo livre para outros assuntos. Cf. C. Cotemme, em
Chiesa e societá, 246; J. Cottino, Federico Albert. Turim-Leumann: LDC, 1984, 25, 29.
47
Documentos nos arquivos da cidade de Turim e nos arquivos das instituições da marquesa
Barolo (citados por Cerrato).
48
Calendario generale [...] pel 1830, 516. A Escola de São Francisco de Paula estava instalada
num antigo mosteiro dos Frades Mínimos de São Francisco, na rua do mesmo nome. Era uma escola
de estudos superiores de latim, preparatória para a Universidade. Havia outras em Turim, como o Real
Colégio de Nossa Senhora do Monte Carmelo e o Real Colégio de Porta Nova. Sabe-se muito pouco
desse ministério que durou bastante tempo. Os arquivos do Centro de Estudos Dom Bosco (Centro
Studi Don Bosco), com sede na Universidade Pontifícia Salesiana de Roma, conservam cerca de 70 ou
mais manuscritos, a maioria com caligrafia autêntica de Borel, que atestam a sua atividade de pregador
em São Francisco de Paula. Em sua maior parte, contêm comentários sobre os evangelhos dominicais;
há também muitos sermões de tipo instrutivo, feitos aos domingos à tarde, em tríduos de início de ano
ou retiros espirituais em festas especiais, como o Natal. Esse material está sendo catalogado, transcrito
e analisado pelo padre Aldo Giraudo, Diretor do Centro, em vista de uma edição crítica.

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Dom Bosco: história e carisma 1

mou a “pequena Casa” numa “pequena Igreja”, ou seja, numa comunidade de


verdadeiros cristãos. Nos primeiros anos do seu trabalho, padre Cottolengo
contou com a ajuda de vários padres que se prestavam voluntariamente para
essa tarefa. Entre eles, estava o teólogo Borel, que manteve um relacionamen-
to de grande amizade com o fundador. Apesar de outras ocupações, passou
muitos anos, até 1840, a ajudar nas necessidades espirituais da Pequena Casa,
como ele mesmo afirmou no processo diocesano de beatificação do padre
Cottolengo, que se deu entre 1863 e 1873.
Não se pode garantir com certeza quando o teólogo Borel se ocupou no
ministério das prisões. É certo, porém, que, quando em 1840 o padre Guala
nomeou o padre Cafasso encarregado de organizar esse ministério, o teólogo
Borel já participava dele. Parece que sua presença nas prisões da cidade foi uma
constante durante os anos de atividade pastoral, o que é atestado pelo biógrafo
do padre Cafasso.49 Mais tarde, quando Dom Bosco, nos anos do Colégio Ecle-
siástico, foi iniciado por Cafasso nesse ministério, encontrou-se com o teólogo
Borel e com o padre Mathis, diretor da Confraria das Mercês, e o padre Borsa-
relli, que já trabalhavam com ele. Cafasso, Borel e Dom Bosco alternavam-se
na assistência aos presos condenados à morte.50 Seu envolvimento nesse minis-
tério é atestado por várias fontes, inclusive em seu obituário pelo jornal Unità
Cattolica de 16 de setembro de 1873.51 As Memórias Biográficas apresentam
detalhes interessantes do ministério carcerário do teólogo Borel.52
Em 29 de dezembro de 1840, Borel foi nomeado diretor espiritual do
Refúgio, sucedendo ao padre Luís Delrivo, que falecera nessa época. Borel
trabalhou nas instituições da Barolo por mais de trinta anos. Esse ministério
foi, de longe, o mais importante pela duração, intensidade e dedicação; era,
também, o mais imperioso e trazia consigo uma grave responsabilidade. Era
diretor espiritual e confessor das meninas que recebiam educação e abrigo
no Refúgio e, ao mesmo tempo, prestava esse mesmo serviço às Irmãs de São
José, fundadas para esse apostolado, e às Irmãs Penitentes de Santa Maria
Madalena, conhecidas popularmente como as madalenas, que viviam como
monjas semienclausuradas nas proximidades do Refúgio. Seu trabalho in-
cluía a celebração da Santa Missa, pregação, confissões, instrução das meni-
nas, direção espiritual às duas comunidades e atenção às enfermas.
49
L. Nicolis di Robilant, San Giuseppe Cafasso, 543.
50
MB II, 1, 364-365; G. Nalbone, Carcere e società in Piemonte (1770-1857), Santena: Fondazio-
ne Camillo Cavour, 1988, 101-143, 181-182 (informe sobre a situação dos presos nos centros peniten-
ciários, a atividade da Fraternidade das Mercês, à qual, com quase toda certeza, pertencia o padre Borel).
51
Cerrato transcreve este artigo em seu ensaio.
52
MB II, 172-173; 275-278.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

A marquesa Barolo fundou, ao longo de vinte e cinco anos, nada menos


do que 5 obras caritativas, além de 2 congregações religiosas.53 Para atender
a essas instituições, ela obtinha das autoridades da Igreja padres qualificados,
sendo o teólogo Borel o diretor da equipe, que indicava o lugar específico
para o trabalho de cada um. São mencionados nos arquivos das instituições
da Barolo os seguintes padres como associados ao teólogo Borel: padre Pedro
Ponte (1821-1892), capelão do Instituto de Sant’Ana; Sebastião Pacchiot-
ti (1806-1884), capelão associado do Refúgio; Dom Bosco (1815-1888),
capelão assistente do Refúgio e capelão designado do Pequeno Hospital de
Santa Filomena, de 1844 a 1846; e João Giacomelli (1820-1901), capelão
do Pequeno Hospital (a partir de 1854). O vicentino padre Marco Antônio
Durando (1801-1880) era o superior religioso oficial das semienclausuradas
madalenas.
Tanto o teólogo Borel quanto os padres Ponte e Pacchiotti estiveram
intimamente associados a Dom Bosco e à obra do Oratório. De fato, o nome
de Borel é repetido muitas vezes nas Memórias do Oratório, nas Memórias Bio-
gráficas e na primeira parte da coleção de cartas. É o grande amigo de Dom
Bosco, colaborador e apoio na obra dos oratórios. Os Arquivos Centrais Sale-
sianos contam com muitos manuscritos, cartas, resumos administrativos etc.
que testemunham o seu envolvimento pessoal nos oratórios de Dom Bosco.
Dom Bosco encontrara o teólogo Borel pela primeira vez, quando este
e o padre Borsarelli pregavam Exercícios Espirituais no seminário de Chieri
em 1839. Ao ser perguntado por João Bosco como poderia proteger a sua
vocação, respondeu: “Com o recolhimento e a oração se conserva e se forma
a vocação”.54 Dom Bosco recorda:

Sempre que podia entreter-me com ele, ouvia e via lições de zelo sacerdotal, e
sempre me dava bons conselhos. Durante os três anos passados no Convitto
[Colégio Eclesiástico], fui convidado muitas vezes para ajudar nas funções
sagradas, confessar e pregar com ele, de modo que já conhecia, e quase me
era familiar, o seu campo de trabalho no Refúgio. Conversamos muitas vezes
longamente sobre o modo de nos ajudarmos na visita às prisões e cumprirmos
com os deveres que nos eram confiados.55

No outono de 1844, Dom Bosco, que precisava de um lugar para viver,


foi admitido pelo teólogo Borel no Refúgio com o cargo de capelão do Pequeno
53
A. Tago, Giulia Colbert marchesa di Barolo. Milão: Grafmil, 1989, 9-15.
54
MO, 107. Dom Bosco recorda esse conselho no dia da sua ordenação ao subdiaconato.
55
MB II, 241.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Hospital e seu ajudante, a pedido do padre Cafasso e com o consentimento da


marquesa Barolo. Desde então, o teólogo Borel converter-se-ia no melhor ami-
go e mais fiel companheiro de Dom Bosco no trabalho do Oratório.
Borel recorda que, ao chegar pela primeira vez em Turim, Dom Bosco
dava a impressão de ser tímido e não saber o que fazer quando se viu obrigado
a mendigar ajuda para o seu Oratório; e que fora ele também a apresentar-lhe
pessoas de boa posição, que mais tarde seriam seus benfeitores. Primeiro entre
estes, o cavalheiro Marcos Gonella, com quem Borel mantinha boas relações;
elogiou essa família diante de Dom Bosco e pressionou-o a fazer-lhe uma visi-
ta. A princípio, Dom Bosco recusou, mas depois, foi visitá-los. Foi uma grata
visita, e os Gonella ficaram muito impressionados. Deram a Dom Bosco 300
liras e tornaram-se seus benfeitores.56 Borel também ajudou Dom Bosco em
outras ocasiões, pois tinha muitas amizades entre a nobreza turinesa. Apoiou
e defendeu Dom Bosco durante a fase itinerante do Oratório (1844-1846)
e atuou em seu nome, por exemplo, quando o Oratório precisou deixar São
Pedro in vincoli (1845) e transferir-se para a capela de São Martinho nos
moinhos do rio Dora.
No início de 1846, numa reunião de párocos, o Oratório foi posto na
berlinda, expressando-se o temor de que interferisse no trabalho das paró-
quias. O teólogo Borel levantou-se em sua defesa e convenceu os párocos
com facilidade. Foi nessa ocasião que alguns padres “bem-intencionados”
tentaram mandar Dom Bosco ao manicômio.
Dom Bosco sugere que Borel chegou a duvidar dele num determinado
momento, abandonando-o.57 Na verdade, ele não fez isso, embora outros
o tivessem feito. Esteve ao seu lado no prado Filippi num momento críti-
co e ajudou economicamente no aluguel e compra da propriedade Pinardi.
Quando o Oratório ali se estabeleceu, o teólogo Borel inaugurou a capela e
continuou a ajudar Dom Bosco com a pregação, o ministério das confissões,
as relações públicas e a administração. Mantinha os livros do Oratório, ano-
tando as esmolas recebidas com algum comentário. Anota, por exemplo, que
chegavam a 650 os jovens que celebraram a festa de São Luís em 1846.58
Em fins de 1845, a saúde de Dom Bosco preocupava. O teólogo Borel
escreveu à marquesa Barolo, em Roma nessa ocasião, que Dom Bosco já não
podia continuar por mais tempo a trabalhar na capelania e no Oratório. A mar-
quesa, preocupada, respondeu-lhe que Dom Bosco estivera enfermo desde que
deixou o Colégio Eclesiástico. Quando Dom Bosco caiu doente gravemente
56
E. Ceria, Borel, 17.
57
MO, 156.
58
Memoriale dell’Oratorio, em ASC A220ss; Persone, FDB E4-12.

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

em 1846, o teólogo Borel assistiu-o pessoalmente e rogou-lhe que pedisse a


Deus o seu restabelecimento. Durante a convalescência nos Becchi (de agosto
a novembro), o teólogo Borel dirigiu o Oratório com a ajuda dos padres Vola,
Cárpano, Trivero e Pacchiotti. Escreve Goffredo Casalis:
Estes quatro padres, juntamente com padre Borel, durante um período de
quatro meses, substituíram o fundador do instituto e cumpriram seu progra-
ma de modo que não tardaram a conquistar a estima e o afeto de todos os me-
ninos. A estima e o afeto deviam ser conquistados, como no caso do fundador,
à custa de paciência, resistência e incontáveis sacrifícios. Pois, em seus inícios,
esta instituição era muito mais pobre do que o é atualmente; os meninos eram
revoltados e totalmente sem educação, e muitos deles, com frequência, não
tinham nada para comer, vestiam apenas farrapos e viviam muito sujos. Mais
ainda, como sempre acontece quando alguém se dedica à caridade, aqueles
padres tiveram que suportar uma forte oposição de muitas pessoas.59

Em 8 de dezembro de 1847, Dom Bosco estabeleceu o Oratório de


São Luís próximo a Porta Nova que, mais tarde, se converteria no principal
terminal ferroviário. Esse Oratório foi inaugurado por Borel, que também
inaugurara o telheiro Pinardi em Valdocco e contribuiu para que ele tivesse
continuidade, e cooperara ainda no estabelecimento do Oratório do Anjo da
Guarda (1849) no bairro de Vanchiglia.
Borel era pregador de estilo popular, solicitado com frequência para pre-
gar sermões e missões na cidade e na diocese. Nunca recusava um pedido.
Seus sermões eram simples, com uma centelha de graça, cheios de humor e
exemplos, mas profundamente cristãos, comovedores e eficazes, como o pró-
prio padre Cafasso testemunha:
Era, talvez, o melhor orador da diocese pela facilidade de falar em piemontês,
pelos provérbios, tiradas e frases engenhosas que brotavam de seus lábios, e
pela clareza com que explicava qualquer dificuldade doutrinal.60

Estava sempre disponível para Dom Bosco no exercício desse ministério.


Certo domingo, depois de passar a manhã toda nos serviços litúrgicos em vá-
rias igrejas, recebeu o aviso de que precisavam dele no Oratório para um ser-
mão. O mensageiro encontrou-o no jardim a comer um pouco de pimentão

59
Goffredo Casalis, Dizionario geografico, storico-statistico-commerciale degli Stati di S.M. il Re
di Sardegna, vol. XXI. Torino, 1851, 716.
60
MB II, 240. Muitos sermões do teólogo Borel, feitos por ocasião da devoção das “40 horas”
em cidades próximas, e outros pregados às madalenas, são conservados nos Arquivos do Centro Studi
Don Bosco, na Universidade Pontifícia Salesiana.

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Dom Bosco: história e carisma 1

com pão. Minutos mais tarde, falava no púlpito da capela Pinardi pregando
a uma multidão de jovens que o estavam esperando.61
Na igreja de São Francisco de Sales, edificada em 1852, o padre Bo-
rel unia-se a Dom Bosco em sermões dialogados, normalmente no papel de
“bode expiatório”. Sentava-se entre os meninos e fazia perguntas de maneira
cômica, como se fosse um penitente, um moleque, um espertalhão, enquanto
Dom Bosco, do púlpito, instruía e tirava a moral. A notícia de que o teólogo
Borel “ia dialogar” sobre alguma coisa no domingo era suficiente para encher
a igreja de ávidos ouvintes.62
Em 1849, Borel, com a ajuda dos padres Borsanelli, Ponte e Gastaldi,
pregou os Exercícios Espirituais durante sete dias, de 22 a 28 de dezembro,
aos meninos dos 3 oratórios (São Francisco de Sales, São Luís e Anjo da
Guarda), na igreja da arquiconfraria das Mercês. Foram de grande sucesso.
A partir de 1854, com a chegada do padre Vitório Alasonatti como
administrador e a formação de um grupo de jovens ao redor de Dom Bosco,
primeiro núcleo da Sociedade Salesiana, começou um novo período para
Dom Bosco e seu trabalho nos oratórios. A multiplicação do trabalho tornou
necessária a distribuição do pessoal. Ao mesmo tempo, com o aumento de
encargos nas instituições Barolo, o teólogo Borel viu-se obrigado a reduzir
suas atividades em Valdocco. Continuou, porém, a ajudar Dom Bosco sem
perder em nada o seu entusiasmo, embora se mantendo em segundo plano.
O estilo de vida de Borel e sua dieta diária eram evangelicamente sim-
ples e extremamente frugais. Mantinha em sua casa um senhor que tinha
o sacerdócio em vista e que o ajudava nas tarefas de casa e da cozinha. Ao
perguntar ao teólogo Borel o que ele comia, respondia invariavelmente, “as
habituais cebolas cozidas”. Como não se preocupasse consigo mesmo durante
os sessenta anos de vida, sua saúde não resistiu. Começou a ficar com muita
frequência em seu quarto e acamado no Refúgio.
Em 25 de março de 1869, Dom Bosco voltara de Roma com a notícia
da aprovação da Sociedade Salesiana; do seu quarto no Refúgio, a pouca dis-
tância, o teólogo Borel ouviu os meninos do Oratório que gritavam e a banda

MB VIII, 91.
61

Há uma interessante seleção na Crônica de Bonetti. Dom Bosco, que ouvira confissões das
62

6h30 até as 9, dizia a alguns de seus ajudantes que ele sentia náuseas sempre que o pecado de blasfê-
mia era mencionado na confissão. Alguém comentou que o teólogo Borel em seus sermões, quando
falava sobre a blasfêmia, às vezes, dava alguns exemplos selecionados. Dom Bosco replicou que não se
podia negar que o teólogo Borel era um exemplo de zelo e que conseguia muitas conversões com seus
sermões, mas que ele se sentia doente só de ouvir tais palavras. “Eu lhe tinha advertido, pedido muitas
vezes, que procurasse emendar-se desse defeito, mas vê-se que o hábito e o arroubo no falar, às vezes,
não lho permitem” [G. Bonetti, Annali II (Páscoa, 20 de abril de 1862), FDB 922 B7; MB VII, 129].

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

que tocava. Eram mais ou menos 8 horas da noite. Levantou-se, foi à rua
apoiado na bengala e começou a cruzar o pátio enquanto Dom Bosco ia ao
seu quarto. Quando se encontraram, o teólogo Borel ficou sabendo da apro-
vação. “Deo gratias. Agora morro contente”, exclamou. E, sem acrescentar
mais nada, deu meia-volta, retornou ao Pequeno Hospital e pôs-se à cama.63
Em 8 de maio de 1870, como reconhecimento de toda uma vida de mi-
nistério entregue e de trabalho dedicado à caridade, foi-lhe concedido uma das
maiores honras do reino: “Cavalheiro da Ordem de São Maurício e São Lázaro”.64
Durante os períodos ocasionais de bem-estar, realizava pequenos tra-
balhos sacerdotais, mas nos dois últimos anos de vida, ficava acamado. Não
temos informações sobre a grave doença que acabou com a sua vida aos 72
anos de idade, às vésperas de 8 de setembro de 1873. A causa imediata de
sua morte pode ter sido uma hemorragia cerebral. Quando morreu, não se
encontrou no cofre dinheiro suficiente para pagar o enterro. Um grupo de
diretores salesianos reunidos em Valdocco para as conferências anuais levou
o esquife nos ombros. Todos os meninos o seguiram, precedidos pela banda
de música do Oratório.65
Lemoyne, ao falar da doação do teólogo Borel a Dom Bosco e ao Ora-
tório, transcreve uma carta elogiosa intitulada: “Um padre turinês bem co-
nhecido”, encontrado entre os papéis de Dom Bosco;66 trata-se de um tributo
de gratidão a um grande padre e a uma grande pessoa. Sob o quadro de São
Francisco de Sales, que pendia no quarto praticamente nu e sem mobílias,
colocara esta frase: “Omnibus omnia factus” (Feito tudo para todos).67

SUMÁRIO BIOGRÁFICO DA MARQUESA BAROLO,


JÚLIA FALLETTI, NASCIDA COLBERT DE MAULÉVRIER
(1785-1864)
Júlia Victurnienne Francisca Colbert, descendente do famoso ministro
de Luís XIV, nasceu no castelo de Maulévrier, Vandeia (França) em 27 de
junho de 1785. Recebeu esmerada educação cristã, que “completou”, apesar

MB IX, 557.
63

Calendario generale [...], 66 (Florença: Tip. Barbera, 1871); documentos no arquivo da


64

Ordem. Lemoyne fala do acontecimento e acrescenta que quando lhe perguntou sobre a razão disso,
Borel respondeu-lhe graciosamente: “Não estou certo, mas suspeito que em reconhecimento pelo
meu heroísmo quando um dia salvei a vida da rainha Maria Teresa, ao apagar um incêndio que fora
provocado entre as flores de papel sobre o altar da capela real” [MB VIII, 91-92].
65
MB X, 1191-1192 (elogio de Borel feito por Amadei).
66
MB II, 239. Este manuscrito de una página está en ASC A220ss: Persone, FDB, 553, A10.
67
Latim da Vulgata, 1Cor 9,22; cf. FDB 553 A 11 (A10-12: notas biográficas de Borel).

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Dom Bosco: história e carisma 1

das trágicas experiências da sua infância e adolescência. Perdeu a mãe aos


7 anos de idade. Sua avó materna foi guilhotinada na Revolução Francesa
durante o Reino do Terror. Nesse período, viveu no desterro na Alemanha
e Holanda com seu pai, um irmão e uma irmã. Sua família, reabilitada por
Napoleão, voltou a Paris em 1800 e participou da corte imperial.
Na corte, ela encontrou o rico cavalheiro piemontês, Carlos Tancredo
Falletti, marquês de Barolo (1782-1838), então ligado à corte da Casa Saboia.
O próprio Napoleão organizou seu casamento em 1807. Até 1814, o casal
viveu alternadamente entre Paris e Turim. Contudo, em 1814, com a queda
de Napoleão e a Restauração, fizeram de Turim a sua residência permanente
e viveram no elegante palácio Barolo do século XVII. Não tiveram filhos; cir-
cunstância que, com fé profunda e caridade ardente, levou-os a dedicar suas
grandes riquezas a obras de caridade.
Nos primeiros anos da Restauração, Turim viveu uma crise terrível, com
grande número de pobres e de gente que precisava de assistência básica. Em
suas viagens, os Barolo tiveram a oportunidade de conhecer o que se fazia em
âmbito assistencial e caritativo na França, especialmente em Paris, e come-
çaram a fazer o mesmo em Turim. Quando o marquês faleceu em 1838 dei-
xando a propriedade de muitos bens para Júlia, ela continuou o que iniciara
com seu marido, fundando e sustentando inumeráveis obras para os pobres
e necessitados. O escritor e patriota Sílvio Péllico, empregado no palácio ao
deixar a prisão, onde esteve, ajudou-a como secretário e bibliotecário.
Borino informa que certo dia de 1819, durante a semana da Páscoa, ao
ajoelhar-se na rua à passagem do Viático que levavam aos doentes, a marque-
sa ouviu saída de uma janela uma blasfêmia pronunciada por uma presidiá-
ria. Entrou na prisão, pediu para falar com a mulher e, depois de passar por
muitas portas trancadas, contemplou o horror do lugar e a condição abjeta
em que viviam aquelas mulheres. Ignorando as objeções de amigos, das auto-
ridades da prisão, inclusive do seu confessor, começou a visitar regularmente
as mulheres da prisão, a ensinar-lhes higiene e rudimentos das letras e da
religião. Apesar da oposição, conseguiu criar uma sala de aula, uma oficina
e Exercícios Espirituais na prisão. Como consequência dessa experiência, ela
e seu esposo conseguiram que fosse construída uma prisão adequada às mu-
lheres e que se nomeassem capelães para exercerem o ministério nas prisões.
As condições desesperadas dos pobres no bairro norte da cidade levaram
os Barolo a se envolverem ativamente na reforma social e em obras de carida-
de. Fundaram várias instituições, algumas das quais sobrevivem ainda hoje.
Além do apoio às obras existentes, os Barolo criaram a Fundação das Obras de
Caridade (Opera Pia Barolo), ainda existente. Em 1819, conseguiram trazer

452

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

da França os Irmãos das Escolas Cristãs, para dirigirem todas as escolas funda-
mentais da cidade. Em 1821, os Irmãos das Escolas Cristãs iniciaram em Tu-
rim as escolas fundamentais para meninas, dotando-as de pessoal, chamando
as Irmãs de São José de Chambéry (Saboia).
A experiência da prisão alertou-a e ao seu esposo sobre a difícil situação
pela qual passavam as meninas em situação de risco e as jovens e mulheres
recém-saídas da prisão. Entrando em contato com a obra do padre Légris
Duval em Paris, os Barolo fundaram em 1821-1822, a Pia Obra de Nossa
Senhora Refúgio dos Pecadores, vulgarmente chamada de Refúgio que, desde
1840, sob a direção espiritual do teólogo Borel, acolhia e dava instrução a
umas 300 jovens.
Em 1825, com o consentimento do rei Carlos Félix, eles trouxeram as
Irmãs do Sagrado Coração (Dames du Sacré Coeur) para Turim, para a edu-
cação das jovens de famílias nobres. Em 1829, seguindo o exemplo de mada-
me Pastoret em Paris, os Barolo instalaram em seu próprio palácio a primeira
creche para crianças de ambos os sexos.
Em 1832, iniciaram uma escola de ensino gratuito e uma cozinha para
os pobres, que servia 250 sopas todos os dias, às quais se acrescentava um
prato de carne e verdura aos domingos. Durante o inverno, todos recebiam
um complemento semanal de lenha para aquecer-se e cozinhar.
Em 1832, eles fundaram junto ao Refúgio, o Retiro de Santa Maria Ma-
dalena, para as mulheres que, depois de dois anos de residência no Refúgio e
três de noviciado, se sentissem atraídas pela vida de semiclausura. Elas eram
conhecidas como as penitentes de Santa Maria Madalena, ou simplesmente
madalenas. Em 1832 também surgiu uma casa próxima às madalenas e sob
o seu cuidado, para acolher meninas abandonadas, menores de 12 anos. A
comunidade era conhecida como Oblatas de Santa Maria Madalena, ou sim-
plesmente Pequenas Madalenas.
Em 1834, criaram a Congregação das Irmãs de Sant’Ana e da Divina
Providência; abriram uma instituição educativa sob a direção dessas irmãs,
para meninas de classe média inferior, próxima à igreja da Consolata. E, em
união com a comunidade das Irmãs de Sant’Ana, os Barolo também cons-
truíram uma residência para cerca de 30 órfãs (as julietas) que, ao concluí-
rem a própria educação, recebiam 500 francos como dote. A marquesa, sem
se intrometer nos assuntos internos, estava muito ligada à Congregação de
Sant’Ana, cuja aprovação oficial da Igreja obteve em 1846.
Após a morte do esposo, a marquesa, enquanto continuava a supervi-
sionar as obras de caridade, iniciou outras fundações ou contribuiu para elas.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Apoiou a fundação do convento das Adoradoras do Santíssimo Sacramento,


para mulheres que desejassem abraçar a vida contemplativa, garantindo-lhes
uma importante gratificação econômica. Fez o possível para estabelecer em
Turim a Associação da Adoração Perpétua.
Em 1844, a marquesa fundou as Terciárias de Santa Maria Madalena,
com um grupo de meninas do Refúgio, que não se sentiam chamadas à
vida religiosa, mas estavam comprometidas na vida e no serviço cristão. Em
1845, o Pequeno Hospital de Santa Filomena estava terminado e preparado
para acolher cerca de 120 meninas de 3 a 12 anos portadoras de algum tipo
de deficiência, condição esta que tornava difícil a sua admissão em outros
hospitais. Colocou o pequeno hospital sob os cuidados das Irmãs de São José
(de Chambéry).

Marquesa Júlia Falletti Barolo (1785-1864).

A marquesa também fundou outras obras. São dignas de menção as


Famílias ou Oficinas de Maria, José, Ana. Eram residências para acolher
grupos de meninas que aprendiam algum ofício e se preparavam para o ca-
samento, sob o cuidado de uma “mãe”. Subvencionou, enfim, a construção
da paróquia e Oratório de Santa Júlia, iniciada em 1862 e concluída em

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Dom Bosco e as obras da marquesa Barolo (1844-1846)

1866, após a sua morte. A igreja foi construída especialmente em vista do


cuidado pastoral e espiritual da gente de Vanchiglia, um dos bairros mais
pobres do norte de Turim.68
A marquesa era uma mulher competente e extraordinária. Era também
uma bela mulher, tanto que o povo não acreditava que pudesse permanecer
uma “boa mulher” em sua viuvez. Sua vida foi santa, sem mancha, totalmen-
te dedicada à caridade. Gozava da estima da corte e da nobreza; participava,
às vezes, da vida social da classe alta. Era boa escritora, boa conhecedora da
arte, e mantinha elegantes recepções palacianas no estilo francês, com gente
tão notável como Péllico, Balbo, Cavour, De Maistre, Lamartine, De Boglie
ou Dupanloup. De sentimentos nobres, e independente, não era, de modo
algum, uma pessoa mundana. Era, de fato, profundamente espiritual, e se
fez ainda mais, sob a direção espiritual de mestres como os padres Pio Bruno
Lanteri, Luís Guala e José Cafasso. Vivia vida de oração e usava roupas de
asceta. Suas devoções ordinárias eram a Santíssima Trindade, o Sagrado Cora-
ção de Jesus, o Santíssimo Sacramento, a Agonia (às Três Horas), a Consolata,
a Mãe Dolorosa, o Anjo da Guarda e as Almas Benditas do Purgatório. Seus
santos favoritos eram São José, Santa Teresa, Santa Júlia, Santa Inês, Santa
Maria Madalena, Santos Cosme e Damião e Santa Filomena.
Morreu em 19 de janeiro de 1864, depois de estabelecer a disposição
testamentária de suas riquezas em favor das obras de caridade.69 Recentemen-
te, foi introduzido o processo para sua beatificação.

Após a construção da Igreja em 1866, o Oratório do Anjo da Guarda, de Dom Bosco, foi fecha-
68

do naquela região, e as suas atividades foram transferidas para perto de Santa Júlia. Como mencionado
acima, Dom Bosco tinha assumido aquele Oratório em substituição ao padre João Cocchi em 1849.
Padre Cocchi estabelecera-o no bairro de Moschino em 1840, antes de transferi-lo a Vanchiglia em 1841.
69
Cf. MB VII, 607.

455

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Capítulo XVII

COMPROMISSO VOCACIONAL DEFINITIVO


DE DOM BOSCO (1844-1846)

Dom Bosco ao comentar, nas Memórias, sobre o Oratório no período


itinerante e antes de contar a história da sua instalação na propriedade Pinar-
di, trata da oposição que precisou enfrentar por causa do seu compromisso
com os jovens em situação de risco.
Apresenta-se, primeiramente, como objeto da hostilidade dos párocos
locais que tentaram tachá-lo de louco. Protesta dizendo que os jovens do seu
Oratório não pertenciam a nenhuma paróquia. Os párocos, enfim, aceitam
que Dom Bosco permaneça com o seu Oratório enquanto não for decidido
diversamente.1
Vem, em seguida, a história da “perseguição” do magistrado marquês
Miguel de Cavour contra Dom Bosco como potencial revolucionário. Dom
Bosco consegue aplacá-lo “por algum tempo”.2
Depois, conta como os irmãos Filippi notificaram-lhe sobre a proibi-
ção de qualquer uso de seus prados, considerando-se abandonado pelos seus
ajudantes e deixado sozinho na luta. Até mesmo os padres Borel e Pacchiotti
abandonaram-no em “suas visões” de pátios para jogos, casa, igrejas e colabo-
radores.3 Vem, enfim, como arremate, o ultimato da marquesa Barolo para
ele escolher entre o seu emprego e os meninos.4 Que pensar disso tudo?

1. Questões preliminares
Dado o caráter das Memórias,5 pode-se supor que Dom Bosco enfatizou
e dramatizou essas dificuldades; entretanto, é provável que as tenha criado do
1
MO, 147-149.
2
MO,152, 178-181.
3
MO, 155-156.
4
MO, 157.
5
Cf. P. Braido, Memorie del futuro, 97-127.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

nada. De fato, nesse sentido, temos à disposição um testemunho anterior, e


de peso. A Nota histórica de 1854, escrita vinte anos antes das Memórias, fala
quase nos mesmos termos da reclamação dos párocos, da oposição do magis-
trado Cavour e das autoridades civis e das dúvidas do teólogo Borel sobre a
sensatez de Dom Bosco.
Não obstante, existem outros documentos que parecem questionar al-
guns aspectos da história contada por Dom Bosco. Como Braido assinala, seu
relato requer algum comentário; alguns desses “estereótipos” carecem de uma
avaliação crítica ou correção.

Os párocos opõem-se a Dom Bosco?


As objeções dos párocos locais são relatadas com certa “impaciência”
como exemplos da falta de compreensão e oposição arbitrária. Dom Bosco
certamente defrontou-se com alguma oposição, sobretudo no início, mas as
resistências dos párocos não parecem totalmente ilógicas se comparadas com
a determinação e a estratégia de Dom Bosco de autonomia total em seu mi-
nistério oratoriano. Dom Bosco parecia um “franco-atirador” que reunia os
jovens nos arredores da cidade e à margem das estruturas paroquiais. Fazia
parte também de um programa pastoral (o Colégio Eclesiástico), que ainda
tentava encontrar a aceitação do clero de Turim.

Dom Bosco perseguido como “revolucionário”?


No contexto, desde a experiência dos levantes revolucionários no pe-
ríodo da Restauração, e com a crescente pressão para a mudança política
da década de 1840, era inevitável que as autoridades vissem com suspeição
reuniões como as do Oratório. Nas Memórias e na Nota histórica de 1854,
o vigário da cidade de Turim, marquês Miguel de Cavour, é retratado com
dureza, como opositor da obra de Dom Bosco.6
Entretanto, sua intransigência parece menos crível, ao se considerar a
documentada e leal defesa que faz da autoridade constituída e sua deferência
para com ela. Dom Bosco estava dando catequese aos jovens com a permissão

6
MO, 152, 178, 130, e o Cenno storico, de 1854. (Talvez, a Nota histórica tenha servido de fonte
para estas passagens das Memórias [1874-1875]. O marquês Miguel de Cavour (1781-1850) era pai
do [marquês] Gustavo e do [conde] Camilo [futuro primeiro-ministro e líder político da unificação
da Itália]. O marquês exerceu o cargo de vigário, magistrado que governava a cidade em nome do rei
[vigário e superintendente de política e polícia], de 1835 a 1847. Antes de 1848 [ano das revoluções e
constituições] a cidade era governada por um vigário real, auxiliado por dois “síndicos” e um conselho
da cidade com 57 oficiais [decuriões]. A partir de 1848, a cidade passou a ser governada por um alcaide
[prefeito], nomeado igualmente pelo rei, e pelo conselho da cidade).

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Dom Bosco: história e carisma 1

e a ajuda dessa autoridade: o respeitado arcebispo Fransoni e de sua majesta-


de o rei Carlos Alberto, para nomear apenas as mais altas autoridades. Além
disso, Dom Bosco estava trabalhando com a colaboração de leigos e padres
de comprovada linha conservadora, relacionados com a casa real: conde José
Provana di Colegno, padres José Cafasso, João Borel e Sebastião Pacchiotti,
tendo sido os dois últimos os auxiliares mais próximos de Dom Bosco desde
os inícios no trabalho do Oratório.7
A recente descoberta de uma carta dirigida por Dom Bosco ao marquês,
com data de 13 de março de 1846, que contém uma breve nota do marquês
no verso, torna ainda menos verossímil a apresentação hostil de Cavour.8 En-
tre outras coisas, a carta revela que, no passado, o magistrado fora simpatizan-
te do Oratório, e que Dom Bosco tinha razão em crer que lhe demonstraria
sua boa vontade agora que o Oratório estava para instalar-se na cada Pinardi.

O papel que sua Excelência joga em tudo o que afeta o bem público, tanto cívico
como moral, leva-me a esperar que dê boa acolhida ao relato sobre um programa
de catequese que iniciamos. Como sua finalidade é o bem dos jovens, o senhor
mesmo demonstrou em muitas ocasiões seu favor e sua ajuda [...]. O senhor é
uma pessoa de bom coração, e leva a sério tudo que possa contribuir para o bem
comum da sociedade. Por isso, buscamos sua proteção para nossos trabalhos [...].
(Aprovação autógrafa de Cavour para seu secretário:) Resposta. Falei com sua
Excelência e mui Reverendo Arcebispo e com o conde Colegno (sic) e estou
de acordo que, sem dúvida alguma, se pode ganhar muito com um programa
de catequese. Ser-me-á grato ver o reverendo Dom Bosco em meu escritório
às 2 p. m., em 26 de março. Benso de Cavour.

Note-se a aprovação autógrafa de Cavour. Contudo, segundo narra


Dom Bosco na Nota histórica (1854) e nas Memórias (1874), o encontro foi
tudo menos que “alvissareiro”.

Dom Bosco abandonado e sozinho?


A representação dramática de Dom Bosco abandonado e sozinho com
seus jovens nos prados Filippi parece ainda mais duvidosa. Em suas Memó-
rias, ele escreve:

7
Cf. G. Bracco, Don Bosco y la sociedad civil, 231-236; id., “Don Bosco e le istituzioni”. In:
Torino e Don Bosco, I, 123-126.
8
G. Bracco, Don Bosco y la sociedad, 233; com maior detalhe em, id., “Don Bosco e le istitu-
zioni”, 126-128 (texto da carta), 128-130 (comentários). A carta foi editada criticamente em F. Motto,
Epistolario I, 66-68.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

Chegou o último domingo em que ainda me permitiam organizar o Oratório


no prado [...]; vendo-me agora tão só, falto de colaboradores, forças esgotadas,
saúde em estado deplorável, sem saber onde no futuro reunir meus meninos,
senti-me profundamente comovido.9

É certo que Dom Bosco sentiu dificuldades e teve discrepâncias com os


colaboradores. Contudo, não se devem generalizar as dificuldades. Ao longo
da vida de Dom Bosco, a presença contínua de colaboradores de confiança,
padres ou leigos, é particularmente documentada nos primeiros quinze anos
do Oratório. Essas pessoas auxiliaram-no em seu trabalho, prestando-lhe aju-
da moral e econômica.
Ao falar das atividades do Oratório no prado Filippi, Dom Bosco escreve:

Dava-se o catecismo como se podia, entoavam-se cânticos, cantavam-se as


vésperas; depois o teólogo Borel ou eu subíamos a uma elevação qualquer
ou a uma cadeira e fazíamos uma pequena prática aos jovens que ansiosos se
acercavam para ouvir-nos.10

Em conversações familiares com os Salesianos, Dom Bosco falou várias


vezes daquele último domingo no prado Filippi. Barberis, em sua crônica
autógrafa, narra uma dessas conversações, em que Dom Bosco diz:

Era o último domingo em que podia usar o prado, quando, então, (o senhor
Pinardi) se apresentou novamente. Eu passeava pela beira do prado absorto
em meu pensamento, enquanto o teólogo Borel estava pregando.11

Dom Bosco, portanto, não estava sozinho naquele domingo no prado


Filippi. O teólogo Borel estava fazendo um sermão e, possivelmente, outros
colegas do Oratório estivessem com os meninos: 300 ou 400 trezentos ou
quatrocentos meninos. Que não estava sozinho fica confirmado também pela
mencionada carta ao Magistrado de Turim, conde Cavour, escrita nas nego-
ciações com o senhor Pinardi, negociações que caminhavam bem. “Enfim,
no início desta semana, nós (o reverendo doutror Borelli, o padre Pacchiotti
e eu) entabulamos negociações com o senhor Pinardi para o local”. A con-
firmação baseia-se, também, no fato de o contrato para o empréstimo do
telheiro por três anos ter sido feito entre o senhor Pinardi e o teólogo Borel.12

9
MO, 160.
10
MO, 150.
11
G. Barberis, Cronaca autografa, caderno, 49-50, 1º de janeiro de 1876; FDB 835 D12-E1.
12
F. Giraudi, L’Oratorio, 60-107 (com reprodução de fotografias do contrato etc.).

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Dom Bosco: história e carisma 1

Diante desses testemunhos, deixa perplexo o fato de Dom Bosco afirmar


nas Memórias que o teólogo Borel e o padre Pacchiotti acreditavam que ele
ficara louco, e o abandonaram.13 Bracco escreve:

Algo me pareceu óbvio desde o momento em que comecei a buscar nos arqui-
vos da cidade documentos relativos a Dom Bosco: Dom Bosco nunca esteve
sozinho. Trabalhava com um grupo de padres que pareciam compartilhar o
mesmo objetivo; ou seja, fazer algo pelos não privilegiados e enfrentar o mal-
-estar social, usando métodos que se tinham tentado muito antes.14

Igreja da Gran Madre e o Monte dos Capuchinhos.

2. Instalação do Oratório na propriedade do senhor Pinardi

A versão das Memórias de Dom Bosco15


Em uma conversa familiar de 1875, recolhida por Barberis em sua Crô-
nica, Dom Bosco rememorou a instalação do Oratório e narrou aos Salesia-
nos como lhe foi comunicada a disponibilidade de um lugar adequado para

13
MO, 155.
14
G. Bracco, Don Bosco y la sociedad, 233.
15
MO, 160-164.

460

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

o “laboratório”.16 Contou a história, que situou no domingo de Ramos de


1846, quase nos mesmos termos das Memórias, concluídas pouco tempo an-
tes. Quem lhe trouxe a boa notícia fora um senhor chamado Pancrácio Soave,
que lhe falou de um edifício de propriedade do senhor Francisco Pinardi.
Francisco Pinardi era um imigrante de Arcisate (Varese, Lombardia).
Em 14 de julho de 1845, comprou dos irmãos Filippi, por 14 mil liras, uma
casa de dois pisos e as terras contíguas. Os irmãos Filippi possuíam na região
uma extensão bastante grande com algumas casas. Em 10 de novembro de
1845, Pinardi arrendou a casa e a propriedade a outro imigrante, Pancrácio
Soave, de Verolengo (Turim), que estava iniciando uma fábrica de amido,
montada no andar térreo da casa. Estava explicitamente excluído no contrato
Pinardi-Soave: “Excluindo o telheiro que se constrói atrás da mencionada
casa e da propriedade anexa a ela”.17
O senhor Soave notificou Dom Bosco sobre a disponibilidade do telhei-
ro, ao vê-lo angustiado porque ia ser tirado do campo dos Filippi e não sabia
onde reunir o Oratório. Dom Bosco escreveu que se sentia profundamente
perturbado.18 Diante da notícia do senhor Soave, Dom Bosco agiu imediata-
mente; deixando o Oratório aos cuidados do padre Merla,19 que casualmente
“apareceu ali”, acompanhou o senhor Soave até o local...

Reconstrução da história da instalação


A mencionada carta de Dom Bosco ao magistrado Cavour, de 13 de
março de 1846, oferece os elementos de referência para uma reconstrução da
transação. Escreve Dom Bosco:

Enfim, no início desta semana, começamos a negociar sobre um local com o


senhor (Francisco) Pinardi. Concordamos na soma de 280 francos por uma
ampla sala capaz de ser usada como “Oratório” com outros 2 quartos e uma
faixa de terreno adjacente. Pensamos que o local seria apropriado para o nos-
so propósito; primeiro, pela sua proximidade com o Refúgio,20 em segundo

16
G. Barberis, Cronaca autografa, caderno I, 27, entrada de 26 de maio de 1875.
17
O local estava situado próximo ao rio Dora (ao norte), onde as lavadeiras exerciam o seu
trabalho. Isso explica por que o senhor Soave iniciou um negócio de amido (goma) e o senhor Pinardi
estava construindo uma lavanderia.
18
MO, 161.
19
Padre Pedro Merla (1815-1855) ajudou no Oratório de Dom Bosco até 1852, iniciando de-
pois disso algumas obras de caridade por própria conta (MO Silva, 154).
20
Dom Bosco, desde que fora nomeado capelão do Pequeno Hospital de Santa Filomena, viveu na Re-
sidência de Nossa Senhora do Refúgio (Rifugio) da Barolo como os demais capelães, padres Borel e Pacciotti.

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Dom Bosco: história e carisma 1

lugar, pela sua localização, distante de qualquer igreja, mas suficientemente


perto de várias habitações.21 O que precisamos saber e se é aceitável para os
senhores, do ponto de vista da proximidade.

Conforme a afirmação anterior, entrou-se em contato com Pinardi en-


tre o domingo 8 e a sexta-feira 13 de março. Recebida a informação sobre
o telheiro (da parte de Soave, como se diz nas Memórias), os capelães de
Barolo (Dom Bosco e os padres Borel e Pacciotti) que dirigiam o Oratório
agiram imediatamente. Contataram o proprietário e negociaram os termos;
depois, delegaram Dom Bosco para que notificasse o fato por carta ao magis-
trado Cavour e solicitasse sua permissão e ajuda. Baseando-nos nessa carta,
podemos concluir que o senhor Soave, em nome do senhor Pinardi, levou
a informação da disponibilidade do arrendamento não mais tarde do que
domingo, 8 de março, pois as negociações para o aluguel já estavam encami-
nhadas nessa mesma semana. Dom Bosco havia insinuado ao magistrado: “Se
desejar falar comigo ou com meus colegas, estamos à sua inteira disposição;
na verdade, estaríamos desejosos de servir-lhe”.
O magistrado anota para o seu secretário: “Ser-me-á grato ver o re-
verendo Dom Bosco em meu escritório, segunda-feira, 30 de março, às
2 p. m. [14 horas], em 26 de março. Benso de Cavour”. O secretário
respondeu a Dom Bosco no dia 28 de março.22 Dom Bosco reuniu-se no
escritório do magistrado e, em 30 de março, obteve a desejada autoriza-
ção. O contrato para o arrendamento foi redigido e assinado pelo senhor
Pinardi e o teólogo Borel em 1º de abril de 1846.23
Apesar disso, segundo as Memórias, tanto no rascunho original quanto
na cópia de Berto, o senhor Soave avisou Dom Bosco da disponibilidade do
telheiro, no domingo de Ramos, que Dom Bosco datou erroneamente em
15 de março de 1846. Padre Bonetti percebeu o erro e tomou a liberdade de
alterar a data (15 de março) na cópia de Berto, para 5 de abril, pois a Páscoa
de 1846 caiu em 12 de abril. São esses os dados que aparecem na História do
Oratório, de Bonetti, nos Cinco lustros (Apostolado de Dom Bosco nos primeiros
tempos) e nas Memórias Biográficas.
21
O local situava-se ao norte, fora da cidade e sua população vivia dispersa pelo bairro de
Valdocco. O Oratório não estava, portanto, unido a qualquer igreja paroquial, embora também não
estivesse isolado.
22
O vigário Cavour a Dom Bosco, 28 de março de 1846; FDB 228 Es. MB II, 441. Lemoyne
em sua reconstrução das relações entre Cavour e o Oratório, segue basicamente as Memórias de Dom
Bosco ao falar da constante oposição do magistrado. Algo difícil de entender.
23
F. Giraudi, L’Oratorio, 65-65 (fotocópia da primeira página do contrato Pinardi-Borel, na
página 69). Epistolario I Motto 68; MO Silva 147.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

Comentário
Nem a carta nem o contrato Pinardi-Borel descrevem o local como “te-
lheiro” (tettoia), expressão das Memórias. A carta fala de uma “ampla sala
possível de ser usada como ‘Oratório’ com outros dois quartos”. Isso é con-
firmado no contrato, que fala de “uma sala retangular de três corpos com um
grande pátio à frente e aos lados”. Obviamente, a “ampla sala” refere-se ma-
terialmente ao telheiro construído atrás da casa Pinardi. Os dois quartos adi-
cionais, apartados, eram ambientes localizados atrás do telheiro e não quartos
da casa Pinardi, que faziam parte do aluguel do senhor Soave.
A casa Pinardi era um edifício de dois pisos de dimensões modestas:
cerca de 20 metros de comprimento, 6 de largura e 7 de altura. Possuía 4
quartos e outros espaços adicionais no primeiro piso e 6 quartos no segun-
do piso. A “grande sala” à qual se refere como “telheiro” por não ser um
edifício apartado, media como a casa 20 metros de comprimento, 6 de lar-
gura, mas não mais de 2,5 de altura. A parte principal serviria como capela
e as duas partes menores, como sacristia e depósito, respectivamente.24 É
provável que o telheiro começasse a ser adaptado para capela mesmo antes
da assinatura do contrato em 1º de abril, e continuasse a ser adornada
depois da inauguração.
Segundo as Memórias, portanto, “terminados os trabalhos, o arcebispo
concedia no dia... de abril, a faculdade de benzer e dedicar ao culto divino
o ‘modesto edifício’. Isso aconteceu no domingo, ... de abril de 1846”.25 As
datas não constam nem nos manuscritos de Dom Bosco nem nos do padre
Berto. Lemoyne anota nas Memórias Biográficas que Dom Bosco tinha todos
os utensílios necessários, entre eles, um pequeno quadro com a imagem de
São Francisco de Sales, que trouxera do Refúgio e do casebre do prado Filip-
pi. Depois, continua:

Dom Bosco benzeu o modesto edifício naquela mesma manhã (domingo da


Ressurreição, 12 de abril de 1846) e dedicou-o ao culto divino em honra do
Santo; celebrou a Santa Missa, assistida por numerosos meninos, alguns vizi-
nhos dos arredores e algumas pessoas da cidade.26

Não obstante, o documento oficial que garantia essa faculdade, datado


na Sexta-feira Santa, 10 de abril de 1846, delegava ao padre Borel a realiza-

24
F. Giraudi, L’Oratorio, 100.
25
MO, 174.
26
MB II, 428.

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Dom Bosco: história e carisma 1

ção da cerimônia. No verso do decreto do arcebispo, o teólogo Borel escre-


veu: “Abençoei o Oratório em 13 de abril, segundo dia da Páscoa”. Não é
provável que se equivocasse. Deve-se concluir, então, que a capela foi usada
antes, no dia da Páscoa, 12 de abril, e que o teólogo Borel a tenha abençoado
no dia seguinte.27

Casa Pinardi (mural de Paulo João Crida).

Dom Bosco, nas Memórias, admite que o lugar não era mais que um
casebre enquanto seus vizinhos próximos, a casa Pinardi (que tinha um te-
lheiro anexo) e a casa Bellezza ao lado, eram lugares de má fama.28 Contudo,
finalmente, o Oratório contava com um local que podia ser chamado de seu,
ou quase. E Dom Bosco podia esperar o dia em que a propriedade Pinardi
fosse sua.

27
Lemoyne, como declara nos Documenti, sabia que o teólogo Borel foi delegado para benzer
o novo Oratório, e que realizou a cerimônia no dia 13 de abril, segundo dia da Páscoa (G. Giraudi,
L’Oratorio, 63).
28
MO, 173. Dom Bosco, segundo a crônica autógrafa de Barberis, narrou depois do jantar a
história da instalação a alguns Salesianos: “Vou contar-lhes como se comprou a primeira casucha, mas é
uma longa história. Estive neste mesmo espaço ocupado agora pelo refeitório [demolido em 1856 para
dar lugar a um edifício maior]. A primeira coisa a se saber é que era um bordel” (G. Barberis, Cronaca
Autografa, caderno III, 49, entrada de 1º de janeiro de 1876: FDB 835 D12).

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

3. O confronto com a marquesa Barolo.


Opção vocacional defintiva de Dom Bosco

Antecedentes
Dom Bosco fora contratado pela marquesa Barolo como capelão do Pe-
queno Hospital de Santa Filomena, que atendia a menininhas portadoras de
alguma deficiência. Enquanto estava em construção, a marquesa concordou
que o Oratório pudesse usar os “locais do capelão” para suas reuniões. Era
inevitável, porém, que, ao aproximar-se o término da construção do hospital,
o Oratório precisasse encontrar outro lugar para se reunir. Os jovens, que
aumentavam sempre mais, começaram a criar uma séria dificuldade para as
instituições da Barolo. O Oratório deixou o Pequeno Hospital em 18 de
maio de 1845, passando por um período de contínua peregrinação que o
levou a cinco lugares diferentes. Enfim, em 1º de abril de 1846, instalou-se
na propriedade Pinardi, sua localização definitiva.
Com o Pequeno Hospital inaugurado em 10 de agosto de 1845, Dom
Bosco começou a exercer o cargo de capelão, ofício para o qual a marquesa
já o tinha cotratado. Como se comprova pelo intercâmbio de cartas entre o
teólogo Borel e a marquesa Barolo, Dom Bosco estivera doente desde que
deixou o Colégio Eclesiástico em 1844, e sua saúde era sempre mais delicada.
Apesar disso, aos domingos, com a ajuda dos padres Borel e Pacciotti, Dom
Bosco passava o dia todo com seus meninos e mantinha-se disponível para
ajudá-los em suas necessidades também durante a semana.
A marquesa tinha projetos para o seu jovem capelão que muito ad-
mirava e valorizava; queria fazer o que estivesse ao seu alcance para que
ele recuperasse a boa saúde e assim pudesse mantê-lo em suas instituições.
Nessa época, porém, Dom Bosco já havia assumido um firme e, de fato,
irrevogável compromisso com o Oratório. Tornava-se inevitável, portanto,
ter que renunciar à capelania. A marquesa via as coisas de outro ponto de
vista. Acreditava estar certa de que Dom Bosco renunciaria “aos seus vaga-
bundos” e trabalharia exclusivamente como capelão de suas obras. É esse o
contexto do confronto da marquesa com Dom Bosco e do seu “ultimato”,
como contam as Memórias do Oratório, e foi recolhido com o acréscimo de
algum material nas Memórias Biográficas.29

Para a descrição do confronto e do ultimato, ver MO, 156. Considere-se que Dom Bosco
29

situa o acontecimento antes da localização do Oratório na casa Pinardi. Ver a versão de Lemoyne em
MB II, 458-471.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A saúde delicada de Dom Bosco


e os acontecimentos que o levaram ao confronto
Desde fins de setembro de 1845, a marquesa Barolo esteve em Roma
tratando da aprovação das constituições de suas congregações, as Irmãs de
Sant’Ana e as Irmãs de Santa Maria Madalena. Foram necessários vários me-
ses de negociações difíceis antes que pudesse obter a aprovação e retornar a
Turim. Enquanto estava ocupada em Roma nesses assuntos, o teólogo Borel,
por meio de uma carta de fevereiro de 1846, informou-a sobre a deterioração
da saúde de Dom Bosco e o que estava fazendo para ajudá-lo. Tinham organi-
zado o horário das missas no Refúgio e no Pequeno Hospital para permitir a
Dom Bosco um pouco mais de sono pela manhã. Tinham-no feito prometer
a si mesmo que, depois da Epifania, faria um longo período de descanso dis-
tante do Oratório e da capelania.
Os padres Guala e Cafasso insistiram nisso.30 Dom Bosco não cumpriu a
promessa e optou por ficar no Oratório que, em 4 de janeiro de 1846, come-
çara a reunir-se na casa do padre Moretta (quarta “estação” da peregrinação).
Após os árduos meses em Roma, realizadas com sucesso suas aspirações, a
marquesa retornou a Turim em 6 de maio de 1846. Foi recebida com alegria
pelas suas comunidades religiosas e pelos seus capelães. As Irmãs de Sant’Ana
e suas constituições tinham sido aprovadas definitivamente. O Oratório, ins-
talado no telheiro Pinardi no passado 1º de abril, teve sua capela inaugurada
no domingo da Ressurreição, 12 de abril, e benzida pelo teólogo Borel no dia
seguinte. Pela longa carta escrita pela marquesa ao teólogo Borel, para “evi-
tar” reunir-se com ele face a face, deduz-se que os dois não falaram pessoal-
mente sobre Dom Bosco e seu trabalho no Oratório. A carta traz a data de 18
de maio de 1846. Merece que se conheçam os parágrafos mais interessantes:

[Il.mo e Rev. Sr. Teólogo] Após uma entrevista que tive com padre Cafasso,
creio que lhe devo uma explicação (sobre Dom Bosco) [...].
Quando o Pequeno Hospital viu aumentar o número destas [as meninas],
acreditamos que era preciso nomear um capelão para o hospital [...].
O senhor escolheu o ótimo Dom Bosco, apresentando-o a mim. Ele também
me agradou desde o primeiro momento e encontrei nele aquele ar de reco-
lhimento e simplicidade próprios das almas santas. Nosso conhecimento co-
meçou no outono de 1844, quando o Pequeno Hospital ainda não podia ser
aberto e, de fato, não o foi até agosto de 1845. Contudo, o desejo de garantir

O teólogo Borel à marquesa Barolo, em 3 de janeiro de 1846, em ASC A049; Persone, FDB
30

D9, recolhido nas MB II, 353 (a data foi corrigida para 3 de janeiro de 1846). Talvez Guala e Cafasso
tenham-se oferecido para apoiar sua “vocação”.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

a aquisição de alguém tão “bom”, fez com que se antecipasse sua entrada com
o estipêndio relativo ao emprego. Poucas semanas depois de estabelecer-se em
sua companhia, M. R. senhor Teólogo, a superiora do Refúgio e eu obser-
vamos que sua saúde não lhe permitia qualquer esforço. O senhor recordará
quantas vezes recomendei-lhe que cuidasse de si [...].
A saúde de Dom Bosco piorou antes da minha partida para Roma. Conti-
nuava a trabalhar e cuspia sangue. Foi então que recebi uma carta do senhor,
senhor Teólogo, na qual me dizia que Dom Bosco não estava em condições de
desempenhar o cargo que lhe fora confiado. Eu respondi em seguida que esta-
va disposta a continuar a dar a Dom Bosco o seu pagamento, desde que não
se ocupasse de nada, e continuo disposta a cumprir com minha palavra [...].
Sua caridade, senhor teólogo, é tão grande que seguramente estou merecendo
a opinião desfavorável que tem de mim, dando-me a conhecer claramente que
eu desejo impedir o ensino do catecismo que se dá aos meninos nos domingos
e os cuidados que se tem deles durante a semana. Creio que a obra é ótima em
si, digna das pessoas que a iniciaram; creio de uma parte, porém, que a saúde
de Dom Bosco não lhe permita continuar e, de outra, que a reunião desses
meninos, que anteriormente esperavam o seu diretor à porta do Refúgio e
agora o esperam à porta do Pequeno Hospital, não é conveniente. Como creio,
em consciência, que o ardor de Dom Bosco precisa de repouso absoluto [...].
Resumindo: 1º, Aprovo e louvo a obra da instrução aos meninos, mas vejo
como exposta a perigo a reunião à porta dos meus estabelecimentos, devido
à classe de pessoas que neles se encontram. 2º, Como creio em consciência
que o peito de Dom Bosco precisa de repouso absoluto, continuarei a dar-lhe
o pequeno estipêndio, que ele quer agradecer-me, com a condição de que se
afaste de Turim, para evitar a ocasião de estragar gravemente a saúde, pela
qual me interesso muito, pois muito o estimo.
Eu sei, M. Rdo. Sr. Teólogo, que não estamos de acordo com estes pontos: se
não atendesse à voz da minha consciência, estaria bem disposta, como sem-
pre, a submeter-me à sua opinião. [...]31

O confronto
A carta da marquesa revela com clareza a elevada estima que tinha por
Dom Bosco como pessoa e pela obra do seu Oratório. É também evidente
que desejava mantê-lo em suas instituições e o desejava saudável. Há muito
tempo ela sentia pena pela deterioração da sua saúde e, sinceramente – em
31
A marquesa Barolo ao teólogo Borel, em 18 de maio de 1846, em ASC A099ss; Persone FDB
541 B5-8; MB II, 463.

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Dom Bosco: história e carisma 1

consciência – desejava resolver a questão. Parece, pois, que o inevitável con-


fronto não se realizou como ultimato agressivo. De qualquer modo, a propos-
ta da marquesa chegava muito tarde. Dom Bosco chegara a um pacto com o
seu Oratório; não iria romper a sua resolução de modo algum, com ou sem
saúde. Ao conselho da marquesa de que devia renunciar ao trabalho no seu
Oratório e continuar capelão permanente em suas instituições, Dom Bosco,
como escreve em suas Memórias, replicou:

A senhora tem dinheiro e com facilidade encontrará quantos padres quiser


para sua obra. O mesmo não acontece com meus pobres meninos. Se me re-
tirar agora, tudo irá por água abaixo; por isso, continuarei a fazer igualmente
o que puder pelo Refúgio, deixarei oficialmente o cargo e me dedicarei intei-
ramente aos cuidados dos meninos abandonados.

A marquesa advertiu-o que, doente como estava e sem nada com que
viver, não poderia subsistir. E deu-lhe “um conselho maternal”:

Continuarei a dar-lhe o estipêndio, e, se quiser, aumento-o. Vá passar um, três


cinco anos em algum lugar; descanse; quando estiver restabelecido, volte ao
Refúgio, e será sempre bem-vindo. De outra sorte, coloca-me na desagradável
necessidade de despedi-lo de minha fundação. Pense seriamente.

Dom Bosco respondeu, sem duvidar:

Já pensei, senhora marquesa. A minha vida está consagrada ao bem da ju-


ventude. Agradeço-lhe as ofertas que me faz, mas não posso afastar-me do
caminho que a Providência me traçou.

Assim sendo, concluiu a marquesa, “está desde já despedido”.32 Para pre-


venir comentáros maliciosos, a marquesa concordou em permitir que Dom
Bosco mantivesse o seu quarto no Refúgio por mais três meses. Contudo,
já dispensado de sua capelania, ficou sem salário e, também, deveria buscar
novo alojamento. Por isso, Dom Bosco e o teólogo Borel procuraram alugar
logo três quartos na casa Pinardi, apesar de ser uma casa “de má fama”. O
notário público assim refere a transação:

No dia do Senhor, 5 de junho de 1846, Pancrácio Soave, o teólogo Borel e


o padre João Bosco, aqui presentes, combinaram alugar 3 quartos contíguos
na parte do segundo piso da casa de propriedade de Francisco Pinardi. A casa

32
MO, 158.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

neste momento está arrendada ao menciondo Pancrácio Soave. O presente


contrato terá valor a partir de 1º de julho (1846) até 1º de janeiro de 1847 [...].
Turim, 5 de junho de 1846.
[Firmado:] Pancrácio Soave
Padre João Borel
Jorge Chiodo, notário público.33

Parece que o plano de Dom Bosco era alugar os quartos tão depressa
quanto possível, até que pudesse adquirir todo o segundo piso da casa, com
os seis quartos, e seus inquilinos fossem desalojados.34

4. A doença de Dom Bosco de 1844 a 1846


Os anos 1844-1846, período difícil do seu compromisso definitivo com
os jovens “pobres e abandonados”, foram marcados por uma grave doença,
que o levou à beira da morte.

Doença e agravamento
A marquesa Barolo, na citada carta ao teólogo Borel, comentava o avanço
de uma doença muito grave de Dom Bosco. Enfermo desde a saída do Colégio
Eclesiástico, ele continuava doente quando se transferiu para o Refúgio em
outubro de 1844; mais ainda, a sua saúde ia piorando progressivamente.35
Diversos fatores concorreram para piorar a situação. Em maio de 1845, o
Oratório deixou os locais do Pequeno Hospital e iniciou a sua caminhada itine-
rante. Quando o Pequeno Hospital abriu suas portas, em agosto de 1845, Dom
Bosco começou a cumprir com seus deveres de capelão, enquanto atendia ao

33
F. Giraudi, L’Oratorio, 53.
34
As palavras ditas por Dom Bosco e recolhidas na crônica original de Barberis descrevem a
estratégia: “Algum tempo depois, descobri que a casa adjacente era, na realidade, um bordel. Podeis
imaginar muito bem o meu desconcerto! Comecei por alugar um par de quartos, pagando o dobro
do que valiam, mas não os usei. Como continuei a alugar outros quartos, o dono urgiu que me trans-
ferisse para eles. ‘Na verdade, não preciso deles agora’, respondi-lhe. ‘Iremos para eles tão logo tenha
conseguido todos eles em aluguel’” (Caderno I, 27-28, entrada de 26 de maio, 1875. FDB 833 D1-2).
35
Dom Bosco não era o atleta indomável apresentado pela biografia popular. Foi ameaçado pela
doença desde a juventude. Enquanto esteve na escola secundária de Chieri, assim nos diz nas Memórias,
tinha o costume de ler até tarde da noite. E acrescenta: “Isso me arruinou de tal modo a saúde que,
por vários anos, minha vida parecia à beira da tumba (MO, 78)”. “Ao deixar o Colégio Eclesiástico
em 1844, pensei em entrar entre os oblatos para ser enviado às missões”; padre Cafasso, segundo as
Memórias Biográficas, objetara-lhe: “O senhor não deve ir para as missões [...]. Não é capaz de aguentar
uma milha e ficar um minuto num coche fechado sem sentir graves incômodos de estômago [...]. E
quereria atravessar o mar? Morreria pelo caminho!” (MB II, 204).

469

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Dom Bosco: história e carisma 1

Oratório. Nessa época, costumava trabalhar até muito tarde da noite; trabalho
que fez piorar ainda mais a situação. É o período de suas primeiras obras escritas.
Além da Biografia de Luís Comollo, escrita quando ainda vivia no Co-
légio Eclesiástico e publicada em outubro de 1844, Dom Bosco conseguiu
enviar várias obras escritas nesses anos, aos editores, fruto de seus trabalhos
noturnos: O devoto do Anjo da Guarda (1845), a História Eclesiástica (1845),
Seis domingos em honra de São Luís (1846), Exercício de devoção à misericórdia
de Deus (sem data), O jovem instruído (1847), e a História sagrada (1847).36 O
esforço e o cansaço pelo trabalho tão intenso foram os responsáveis pela grave
condição descrita na carta da marquesa Barolo ao teólogo Borel.
No início de outubro de 1845, a doença voltou a recrudescer e obrigou
Dom Bosco a tirar alguns dias de férias. Foi a pé de Turim aos Becchi, com
um grupo de 7 jovens do Oratório, mas em Chieri, desmoronou. Reanimou-
-se no dia seguinte e pôde chegar ao destino. Passou os quatro dias seguintes
acamado. Sabemos disso por uma carta que Dom Bosco dirigiu ao teólogo
Borel; carta que, contudo, não pôde concluir devido à total falta de forças.37
Por uma segunda carta, temos notícia de que os dias seguintes (era tempo de
vindima) sua indisposição piorou. Recuperou-se gradualmente, mas a doença
continuou a incomodá-lo.38
De volta a Turim e ao trabalho no Pequeno Hospital e no Oratório, não
se sentiu melhor. “Continuava a trabalhar, embora cuspisse sangue”, escreve a
marquesa. Em dezembro de 1845, os padres Borel e Pacciotti reorganizaram
o horário de trabalho para lhe permitir mais tempo de descanso. O teólogo
Borel, em 3 de janeiro de 1846, comunicava a situação à marquesa, que esta-
va em Roma. E continua:

Contudo, como não se podia dizer que estivesse restabelecido totalmente e, de


acordo com as insinuações de V. S. de que descanse por algum tempo em com-
pleto repouso, livre das ocupações do Refúgio e de qualquer serviço no Hos-
pital até seu completo restabelecimento, eu tenho assim seguras esperanças de

36
Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo (...). Turim: Speirani e Ferrero, 1884; Il divoto
dell’Angelo Custode. Turim: Paravia, 1845; Storia Ecclesiastica ad uso delle scuole utile per ogni ceto di persone
(...). Turim: Speirani e Ferrero, 1845; Le sei domeniche e la novena di san Luigi Gonzaga. Turim: Speirani
e Ferrero, 1846; Esercizio di divozione alla misericordia di Dio. Turim: Eridi Botta, sem data; Il Giovane
provveduto per la pratica dei suoi doveri (...). Turim: Paravia, 1847; Storia sacra per uso delle scuole (...). Tu-
rim: Speirani e Ferrero, 1847. Para o texto destas obras, ver Opere Edite conforme o ano de sua publicação.
37
Dom Bosco ao teólogo Borel, sem assinatura nem data, mas selada em 11 de outubro de 1845.
Epistolario I Motto, 60; MB II, 321.
38
Dom Bosco ao teólogo Borel, em 17 de outubro de 1845; Epistolario I Motto, 61-62; MB
II, 323. Ele chama a doença de “incômodo” (flusso), que pode significar diarreia, ou perda sanguínea,
hemorragia ou algo semelhante.

470

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

vê-lo muito rápido totalmente restabelecido. Hoje mesmo, me deu a resposta


decisiva sobre o que pensa fazer, e no dia seguinte à Epifania, submeter-se-á
à obediência; e, se não cumprir a promessa, terá que se entender com o Mui
Rvdo. Sr. padre Guala e o padre Cafasso.39

Não a cumpriu. O Oratório, que nessa época reunia-se na casa do padre


Moretta, precisava dele. No final do inverno, sua situação deteriorou-se ainda
mais. O teólogo Borel sugeriu-lhe que diminuísse a atividade do Oratório,
restringindo-a a um pequeno grupo dos meninos menores. Dom Bosco res-
pondeu, aludindo ao sonho de 1844, que os locais do Oratório já estavam
preparados; era só questão de encontrá-los. Teria enlouquecido?40
Não recuperado, precisou enfrentar, primeiramente, o despejo da casa
do padre Moretta e reunir-se no prado Filippi, antes de poder alugar o telhei-
ro Pinardi no início da primavera.41 E, depois, o confronto com a marquesa
e a destituição dos seus serviços. Enquanto isso, junto com o teólogo Borel,
dava os primeiros passos para garantir um lugar na casa Pinardi, alugando
alguns quartos.

A crise
Imediatamente depois, no início de julho,42 Dom Bosco estava nova-
mente à beira do desastre. O teólogo Borel mandou-o passar algum tempo
com o pároco de Sassi, povoado de encostas suaves ao norte, fora de Turim.
Como o lugar estava a um passo de distância, os jovens do Oratório, os alu-
nos dos Irmãos das Escolas Cristãs e outros não o deixavam em paz.43
Retornou ao Refúgio gravemente enfermo com pneumonia e caiu de
cama. Chegou a estar à beira da morte e foi desenganado. Entretanto, as ora-
ções e promessas dos meninos obtiveram-lhe a graça da cura.44
Assim que o médico lhe permitiu deixar o quarto do Refúgio, no iní-
cio de agosto, Dom Bosco, como fora combinado,45 saiu e fez transportar
os seus pertences à casa Pinardi. Pode ser que os quartos que alugara ainda
não fossem adequados para viver neles, ou que preferisse não se mudar antes

O teólogo Borel à marquesa Barolo, 3 de janeiro de 1846; em ASC 123: Persone, Borel, FDB
39

552 D9; MB II, 352.


40
MO, 159.
41
MO, 160.
42
MO, 188.
43
MO, 187.
44
MO, 188.
45
MO, 162.

471

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Dom Bosco: história e carisma 1

de conseguir todo o segundo piso da casa. De qualquer modo, na segunda


semana de agosto, foi para os Becchi a fim de passar um longo tempo de
convalescença.46 Padre Borel dirigiu o Oratório com a ajuda de outros pa-
dres (João Batista Vola, Jacinto Cárpano, José Trivero e Sebastião Pacciotti).
Em 3 de novembro de 1846, Dom Bosco, ainda não totalmente recu-
perado, retornou a Turim com Mamãe Margarida. A marquesa permitira que
Dom Bosco continuasse nos quartos do Refúgio por “três meses” depois da
sua dispensa.47 Em agosto, Dom Bosco fez levar os seus pertences do Refúgio
à casa Pinardi.
Foi ali que Dom Bosco e sua mãe residiram ao retornarem dos Becchi.
Levaram alguns objetos indispensáveis e um pouco de dinheiro fruto da ven-
da de alguns terrenos e de uma vinha. Mamãe Margarida mandou buscar seu
enxoval de noiva, que a seu tempo, serviria para as alfaias além de mais tecido
branco para a igreja.48
Especulou-se sobre os motivos que levaram Mamãe Margarida a renun-
ciar à vida tranquila com seu filho José nos Becchi, e ir, aos 58-59 anos, a
uma cidade estranha. Além da necessidade de salvaguardar a reputação do
filho naquela casa de “má fama”,49 certamente desejaria estar perto do filho
para cuidar dele, ainda com a saúde precária. Contudo, o fato de ter levado
o enxoval do casamento parece indicar que pensava permanecer ali definiti-
vamente. Talvez, como cristã comprometida que era, ao ver a situação dos
meninos, quisesse compartilhar o trabalho do seu filho pelos pobres e ser
mãe dos meninos. Todavia, embora tivesse esses motivos excelentes, pode
ser muito bem que, na prática, simplesmente não quisesse ser de peso para o
filho José e sua numerosa família; especialmente naquele inverno, quando a
colheita de trigo tinha falhado e ameaçava carestia.
A carestia, uma das mais duras do século, afetou várias nações da Europa.
A ida de Mamãe Margarida poderia ser vista então como pequena amostra
da extensa grave crise que levou à revolução de Paris em 1848 e ao Manifesto
Comunista de Marx.50

46
Conservam-se algumas cartas desse período (de Dom Bosco ao teólogo Borel). Epistolario I
Motto, 68-74; MB II, 503-507.
47
MO, 159.
48
MO, 190-191.
49
MO, 190.
50
P. Stella, Economia 76, nota 12 e o texto apresentado.

472

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Apêndice

CARTA DO TEÓLOGO BOREL À MARQUESA BAROLO


SOBRE A SAÚDE DE DOM BOSCO51
Ilustríssima Senhora Marquesa:
A caridosa sugestão de V. S. em favor do caríssimo Dom Bosco e o do-
nativo que se dignou enviar-lhe mostram bem claramente seu interesse
pela saúde deste padre zeloso. Ele não deixará de se servir dele e eu o
agradeço a V. S. de todo coração.
Desde o início de dezembro, vendo que precisava de repouso, padre
Pacchiotti começou a celebrar a Santa Missa no Hospital, deixando a
Dom Bosco a segunda Missa no Refúgio. Foi um excelente remédio,
visto o feliz resultado obtido. Contudo, como não se podia dizer que
estivesse totalmente restabelecido e, de acordo com as sugestões de V.
S. para que descanse por algum tempo em completo repouso, livre
das ocupações do Refúgio e de qualquer serviço no Hospital até seu
restabelecimento total, eu tenho seguras esperanças de vê-lo logo total-
mente restabelecido.
Hoje mesmo deu-me uma resposta decisiva sobre o que pensa fazer
e, no dia seguinte à Epifania, se submeterá à obediência; e terá que
entender-se com o muito reverendo senhor padre Guala e o padre Ca-
fasso, se não for pontual em cumpri-la. Os dois ofereceram-se de bom
grado para enviar um padre para a segunda Missa do Refúgio e, no caso
que este nosso diligente serviço não bastasse para cobrir as necessidades
da Casa, recorrerei ao reverendo padre reitor dos oblatos para que nos
envie um dos confessores de costume.
Entretanto, quando Deus me fizer conhecer um padre dotado do es-
pírito necessário a esta Casa, não deixarei de colocar V. S. ao corrente
disso e demonstrar-lhe assim como me resulta agradável a apresentação
de um companheiro a mais etc.
3 de janeiro de 1845
T. João Borel

51
ASC A 099ss, Persone, Borel. MB II, 352.

473

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Dom Bosco: história e carisma 1

CARTA DE DOM BOSCO AO VIGÁRIO REAL,


MARQUÊS MIGUEL DE CAVOUR
Turim, 13 de março de 1846
Excelentíssimo Senhor:
O papel que Vossa Excelência desempenha em tudo o que se refere ao
bem público, tanto civil como moral, leva-me a esperar que aceite o re-
latório sobre o programa de catequese que iniciamos.52 Como sua fina-
lidade é o bem dos jovens, o senhor mesmo demonstrou em numerosas
ocasiões o seu favor e ajuda.53
O programa de catequese teve início há três anos na igreja de São
Francisco de Assis,54 e, como era uma obra de Deus, Deus a abençoou,
e os meninos apresentavam-se em maior número do que o local po-
dia alojá-los. Mais tarde, em 1844, como comecei a trabalhar (como
capelão) na Obra Pia do Refúgio, fui viver ali. Contudo, aqueles jo-
vens maravilhosos continuavam a ir ao novo local, ansiosos de receber
instrução religiosa. Foi nessa ocasião que nós, o doutor João Borel, o
padre (Sebastião) Pacciotti e eu mesmo apresentamos juntos um pedi-
do a Vossa Excelência arcebispo para que permitisse transformar um
dos nossos quartos em oratório,55 e ele autorizou-nos a fazê-lo. Ali se
ensinava catecismo, se ouviam confissões e se celebrava a Santa Missa
para os mencionados jovens.
Contudo, como seu número crescesse a ponto de aqueles locais já não
poderem alojá-los, nós pedimos às ilustríssimas autoridades da cidade a
permissão para realocar o nosso programa de catequese na igreja de São
Martinho, próxima aos moinhos da cidade, e sua resposta foi favorável.
Para ali muito jovens se dirigiam, e com frequência passavam dos 250.
Resultou que os administradores da cidade nos avisaram que nos inícios
de janeiro, nossas aulas de catecismo deveriam retirar-se dessa igreja para

52
Ao longo da carta, “programa de catequese” traduz o italiano “catecismo”; com o termo, Dom
Bosco quase certamente quer indicar o “Oratório” como tal. Em outras palavras, ele fala do Oratório
como um “programa de instrução religiosa”.
53
Esta última frase parece supor que Cavour tinha conhecimento da instrução catequética no
Oratório e a aprovava.
54
Como esta carta foi escrita em 1846, “há três anos”, a data dos inícios do programa de cate-
quese (Oratório) seria 1843. Mas adiante na mesma carta, Dom Bosco fala novamente de “três anos”.
Isso pode supor que 1843 foi o ano em que o grupo que se reunia em São Francisco de Assis adquiriu
consistência e chegou a ser considerado como obra de Dom Bosco.
55
O “oratório”, significando “capela”, localizava-se no Pequeno Hospital, embora os capelães
vivessem no Refúgio. O uso da palavra “oratório” e as atividades que se descrevem ligadas a ele, mani-
festam essencialmente o fervor religioso das atividades de Dom Bosco.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

outro lugar. Não se deram as razões de tal ordem.56 Como resultado,


nós nos vimos com sérios dilemas, porque seria uma grande pena inter-
romper o bom trabalho que tínhamos iniciado. Somente Sua Excelência
o conde (José Maria Provana di) Collegno, depois de ter falado com o
senhor, nos deu ânimo para continuar.
Durante o inverno, o programa de catequese era realizado algumas ve-
zes em nossa casa, outras vezes em algum quarto alugado.57 Finalmente,
no início desta semana, começamos a negociar com o senhor (Francis-
co) Pinardi em vista de um local.58
Concordamos na soma de 280 francos por uma grande sala possível
de ser usada como “oratório” com outros quartos e uma faixa de terre-
no adjacente.59 Acreditamos que o local seja apropriado para o nosso
propósito; primeiro, pela sua proximidade do Refúgio, depois pela sua
localização, distante de qualquer igreja, mas suficientemente perto de
várias casas. O que precisamos saber é se isso é aceitável ao senhor do
ponto de vista da vizinhança e de uma comunidade mais ampla.
A finalidade deste programa de catequese é reunir os meninos que,
abandonados à própria sorte, não participariam da instrução religiosa
em nenhuma igreja aos domingos e dias festivos. Nós os animamos,
aproximando-nos deles de modo amigável, dando-lhes as boas-vindas
com palavras amáveis, promessas, presentes e coisas assim. Os princí-
pios seguidos são básicos para o nosso ensino: 1) gosto pelo trabalho;
2) recepção regular dos sacramentos; 3) respeito por toda autoridade
superior; e 4) fuga das más companhias.
Estes princípios que nós, de maneira inteligente, tratamos de inculcar
no coração dos jovens produziram resultados admiráveis. Durante três
anos, mais de 20 deles entraram na vida religiosa, 6 estão a estudar
latim com vistas à vocação sacerdotal e muitos outros mudaram para
melhor e agora frequentam suas próprias paróquias. Este é um grande
resultado ao se considerar o tipo de meninos que, em geral, têm de 10
56
A administração dos moinhos apresentara uma queixa de que “os meninos sob a direção do
reverendo padre Borel (... estavam) causando problemas e preocupações, também desonrando o lugar”
(Epistolario I Motto, 68). Os dois síndicos que estavam às ordens do magistrado eram responsáveis pela
administração de um espaço que pertencia ao governo.
57
Estes seriam os quartos alugados na casa Moretta.
58
A carta foi escrita na sexta-feira, 13 de março. Portanto, as negociações sobre o telheiro Pinardi
aconteceram entre domingo, 8 de março, e quinta-feira, 12 de março. Apesar disso, Dom Bosco coloca
nas Memórias uma data e um cenário diferentes (MO Silva, nota 210).
59
Aqui não se menciona o famoso “telheiro Pinardi”. Dom Bosco concorda com o contrato
original de arrendamento, firmado em 1º de abril de 1846, que menciona um “grande quarto com
outros 2 quartos e uma faixa de terreno adjacente” (Epistolario I Motto, 68). O material de referência,
contudo, é sobre o telheiro Pinardi.

475

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Dom Bosco: história e carisma 1

a 16 anos de idade, e não têm educação, nem religiosa nem secular.


De fato, a maioria sucumbiu ao mal e está em perigo de ser um proble-
ma público ou ser levado para as prisões.
O senhor é uma pessoa de bom coração, e leva a sério tudo que possa
contribuir para o bem comum da sociedade. Por essa razão, peço a sua
proteção para nossos esforços. Como o senhor pode ver muito bem, o
que nos motiva não são absolutamente os lucros. O nosso fim é apenas
ganhar almas para o Senhor.
O custo que devemos enfrentar para adequar tudo o que o lugar requer,
é grande.
O conde Collegno, mencionado anteriormente com gratidão, ofereceu
sua generosa ajuda. Além disso, deu-nos permissão de mencionar o
fato a Sua Excelência; depois do que, ele mesmo lhe explicará o assunto
em detalhes.
Se desejar falar comigo ou com meus colegas, estamos à sua disposição;
na verdade, estaríamos desejosos de servir-lhe.
Peço-lhe que receba com benevolência a liberdade que tomei, e desejo-
-lhe todas as bênçãos do Senhor. Com meus sentimentos da mais ele-
vava estima e do maior respeito, tenho a grande honra de professar-me
o mais humilde obediente servidor de Sua Excelência,
Padre João Bosco
Diretor Espiritual do Refúgio.

Anotação de Cavour para o seu secretário: “Resposta. Falei com Sua


Excelência o mui reverendo arcebispo e com o conde Collegno60 e es-
tou de acordo que, sem qualquer dúvida, se pode ganhar muito com
um programa de catequese. Ser-me-á grato ver o reverendo padre Dom
Bosco em meu escritório, segunda-feira, 30 de março, às 2 p.m.
26 de março
Benso de Cavour”.

CARTA DA MARQUESA BAROLO AO PADRE BOREL61


Il.mo e Rev. Sr. Teólogo:
Depois de uma entrevista que tive com o padre Cafasso, creio que
devo dar uma explicação ao senhor. Prefiro fazê-lo por escrito, melhor
do que por palavras; sobretudo porque quando tenho a honra de falar

60
O conde José Maria Provana di Collegno (1785-1954) era próximo ao rei Carlos Alberto e ao
seu governo. Foi também amigo de Dom Bosco e do Oratório.
61
Em ASC A099ss, Persone, Barolo. MB II, 462.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

com o senhor, não me permite expressar-lhe o apreço que tenho pela


sua pessoa e minha admiração pela sua virtude, juntamente com meus
agradecimentos pelos cuidados que com tanto zelo assumiu e continua
a assumir pelas minhas Obras. Quando o Pequeno Hospital veio au-
mentar o número delas, acreditamos que fosse necessário nomear um
capelão para esse hospital.
Em ninguém, melhor do que o senhor, eu podia colocar a minha con-
fiança. O senhor escolheu o ótimo Dom Bosco e apresentou-o a mim.
Foi também do meu agrado desde o primeiro momento, e encontrei
nele aquele ar de recolhimento e simplicidade próprio das almas san-
tas.62 O nosso conhecimento teve início no outono de 1844, quando
o Pequeno Hospital não podia ser aberto e, de fato, só foi aberto em
agosto de 1845. Contudo, o desejo de garantir a aquisição de alguém
tão “bom”, fez com que se antecipasse a sua entrada com o pagamen-
to pelo seu emprego. Poucas semanas depois de estabelecer-se em sua
companhia, muito reverendo senhor teólogo, tanto a superiora do Re-
fúgio como eu, observamos que sua saúde não lhe permitia qualquer
esforço. Recordará o senhor quantas vezes recomendei-lhe que cuidasse
dele e o deixasse descansar etc. Ele não me dava atenção; dizia que os
padres deviam trabalhar etc.
A saúde de Dom Bosco piorou até minha partida para Roma. Conti-
nuava a trabalhar e cuspia sangue. Foi então que recebi uma carta do
senhor, senhor teólogo, na qual me dizia que Dom Bosco não estava
em condições de desempenhar o cargo que lhe fora confiado. Eu res-
pondi em seguida que estava disposta a continuar a dar a Dom Bosco o
seu estipêndio, desde que não se ocupasse de nada: e continuo disposta
a cumprir a minha palavra. O senhor, senhor teólogo, acredita que seja
pouca coisa confessar, falar com centenas de meninos? Eu creio que
isso prejudica Dom Bosco e creio que seja necessário que se distancie
de Turim, para não cansar assim os seus pulmões. Porque, quando es-
tava em Gassino, os meninos iam confessar-se com ele e ele os acom-
panhava de volta a Turim.
Sua caridade, senhor teólogo, é tão grande que certamente estou
merecendo a opinião desfavorável que tem de mim, dando-me cla-
ramente a conhecer que eu quero impedir o ensino do catecismo
que se dá aos domingos para os meninos, e o cuidado deles durante

De acordo com esta afirmação, foi o teólogo Borel quem tomou a iniciativa para que Dom
62

Bosco fosse nomeado capelão do Pequeno Hospital, e a marquesa não teria conhecido Dom Bosco
anteriormente. Portanto, presumivelmente, o teólogo Borel consultou o padre Cafasso e este levou a
proposta adiante, segundo se descreve em MO, 131-132.

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Dom Bosco: história e carisma 1

a semana. Creio que a obra é ótima em si e digna das pessoas que a


iniciaram; mas creio, de um lado, que a saúde de Dom Bosco não
lhe permite continuá-la, e, de outro, que não seja conveniente a
reunião desses meninos, que antes esperavam o seu diretor à porta
do Refúgio e agora o esperam à porta no Hospital.
Sem falar do que aconteceu no passado, com o que está totalmente de
acordo comigo, o muito reverendo senhor Durando,63 direi somente
o que aconteceu ainda ontem. A superiora do Hospital avisou-me que
entrou, com a família de uma enferma, certa jovem de má vida, que saiu
do Refúgio por não se adequar às normas, e que vinha com ela a mãe
de outra filha do Refúgio de quem sua filha se separara a conselho do
pároco da Anunciação. A duas foram despedidas por mim.
Poucos instantes antes, eu me encontrara à porta do Pequeno Hospital
com um grupo de meninos e, ao perguntar-lhes o que faziam ali, res-
ponderam-me que esperavam por Dom Bosco. Havia entre eles alguns
bem mais crescidos. Desse modo, aquela jovem de má vida e a mulher
despedida do Hospital, que estava bastante irritada, passara por esses
jovens. E se ela tivesse dito alguma coisa do seu ofício aos discípulos de
Dom Bosco?
Resumindo: 1º Aprovo e louvo a obra de instrução aos meninos, mas
vejo exposta a perigo a reunião à porta de meus estabelecimentos, dada
a classe de pessoas que neles se encontram. 2º Como creio em cons-
ciência que o peito de Dom Bosco precisa de repouso absoluto, não
continuarei a dar-lhe o pequeno estipêndio, que ele quer agradecer-me,
senão com a condição de que se afaste de Turim, para evitar a oca-
sião de prejudicar gravemente sua saúde, pela qual muito me interesso,
dado que muito o estimo.
Eu sei, muito reverendo senhor teólogo, que não estamos de acordo
nestes pontos: se não atendesse à voz da minha consciência, estaria bem
disposta, como sempre, a submeter-me à sua opinião.
Renovo meu testemunho de constante veneração e profundo respeito
com que tenho a honra de professar-me.
De V. S. Ilma. e Revma.
18 de maio de 1846
Atentíssima servidora marquesa Barolo, nascida Colbert.

63
O padre Marcos Antônio Durando era o visitador (provincial) dos Padres da Missão (de São
Vicente de Paulo). Era considerado grande pregador, mestre de retiros e confessor.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

INSTRUÇÃO CATEQUÉTICA NO ORATÓRIO


DE DOM BOSCO

Ao falar do trabalho de Dom Bosco no Oratório, não se pode deixar de as-


sinalar a importância que ele dava à instrução religiosa. O verdadeiro “Oratório”
sugere um local para rezar no qual o culto, a instrução religiosa era a razão cen-
tral. Quando encontrou esse lugar, pôde dizer aos seus meninos que o Oratório
tinha seu local, apesar de que só tinha um telheiro como capela e uma pequena
faixa de terra: “Coragem, meus filhos, temos um Oratório mais estável do que
no passado; teremos igreja, sacristia, salas para as aulas, lugar para recreio”;64 já
aparece nessas palavras o que se conhecerá como “oratório modelo”.

A instrução catequética, prioridade no Oratório de Dom Bosco


A menção de uma “igreja” e algumas “salas para as aulas” indica o propó-
sito catequético do Oratório. Temos, também, a declaração de Dom Bosco de
que o “o Oratório em seus inícios foi simplesmente um catecismo”.65 Recorde-
-se que o primeiro compromisso de Dom Bosco com os jovens “pobres e aban-
donados” esteve à raiz das aulas de catecismo que padre Cafasso mantinha na
igreja de São Francisco de Assis. Deve-se ter presente, também, a menção do
encontro com Garelli, que terminou com uma aula de catecismo.66
Essas afirmações expressam a prioridade de Dom Bosco pela instrução
religiosa como a essência da obra do Oratório. A obra de Dom Bosco teve
finalidade educativa desde o início. Dom Bosco concebia a educação, en-
quanto desenvolvimento da pessoa, apenas como guia doutrinal e moral que
proporciona a fé e a ética católica. Dessa forma, deve-se assinalar que, histori-
camente, a instrução catequética foi a atividade central no primeiro Oratório
de Dom Bosco.
É assim que a marquesa Barolo fala do Oratório em sua carta ao teólogo
Borel: “O senhor acusou-me de ser contra o ensino religioso recebido por
estes meninos todos os domingos, e contra os cuidados que Dom Bosco lhes
dedica durante a semana. Pelo contrário...”. Na Nota histórica de 1862, Dom
Bosco descreve as atividades dos domingos:

Pela manhã, os que desejam confessar-se têm a oportunidade de fazê-lo; de-


pois há missa, seguida da narração de um trecho da Bíblia ou da História da
Igreja, ou da explicação do Evangelho do dia; em seguida, recreio. À tarde,

64
MO, 163.
65
Memorando dirigido a Dom Pedro Ferré, de Casale (1868). Cf. MB IX, 61.
66
MO, 122.

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Dom Bosco: história e carisma 1

temos instrução de catequese por classes, Vésperas, uma breve instrução do


púlpito, Bênção do Santíssimo Sacramento, seguida do recreio normal.67

Nas Memórias, Dom Bosco dá explicação semelhante das atividades do


Oratório.68
Provavelmente, a primeira ampla declaração da finalidade catequética
do Oratório seja a carta de Dom Bosco, de 13 de março de 1846, ao marquês
Miguel Benso de Cavour, vigário da cidade de Turim. Nela, ele descreve o
Oratório, na prática, em termos de instrução de catequese dos jovens aban-
donados. Não se pode pensar que a ênfase sobre a instrução catequética fosse
simplesmente parte de uma estratégia desenhada para atenuar os temores do
magistrado. Não estava jogando com os sentimentos do magistrado; tinha a
certeza de que, como católico e representante de um rei católico, ele não se
oporia a um “programa para a instrução dos pobres meninos na fé católica”.
Era um fato: a instrução religiosa era a prioridade no Oratório de Dom Bos-
co. Uma parte da carta afirma:

O papel que vossa Excelência desempenha em tudo o que se refere ao bem pú-
blico, tanto no cívico como no moral, leva-me a esperar que aceite o relatório
sobre um programa de catequese que iniciamos. Como sua finalidade é o bem
dos jovens, o senhor mesmo mostrou em numerosas ocasiões o seu favor e a sua
ajuda. Este programa começou há três anos [...]. Ali se ensinava catecismo, se
ouviam confissões e se celebrava a missa [...]. A finalidade deste programa de
catequese é reunir os meninos que, abandonados a si mesmos, não assistiriam a
instrução religiosa em nenhuma igreja nos domingos e dias festivos.69

A anotação do magistrado na carta, com instruções ao seu secretário, ex-


pressa o mesmo conhecimento: “Estou de acordo que, sem nenhuma dúvida,
pode-se ganhar muito com um programa de catequese”.
A maior parte dos primeiros escritos de Dom Bosco tem finalidade
catequética além de apologética: a História eclesiástica (1849), a História
sagrada (1847), O amigo da juventude (1847, 1851), Avisos aos católicos
(1850, 1851) e o Católico instruído em sua religião (1853).70 A atividade

67
Cenni storici de 1862. Seção “Comentários gerais”.
68
MO, 127.
69
“Programa de catequese” é tradução de “catecismo” em italiano, com que Dom Bosco quase com
certeza, quer dizer o Oratório como tal. Em outras palavras, ele fala do Oratório como “um programa de
instrução religiosa”.
70
Sobre os escritos de Dom Bosco se tratará em capítulos posteriores.

480

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

estritamente catequética do Oratório continuou com diversas modalidades


de aulas (dominicais, diárias e noturnas) que Dom Bosco ia organizando
para responder às necessidades dos jovens. Faziam parte de um programa
completo de instrução e educação religiosa.71
Anos mais tarde, quando as autoridades eclesiásticas de Turim pediam
que os candidatos salesianos ao sacerdócio estudassem e residissem no semi-
nário diocesano, Dom Bosco objetou, entre outras razões, dizendo que eles
eram necessários em casa para dar as aulas de catecismo. Escreveu ao cardeal
Felipe de Angelis sobre a petição do arcebispo Riccardi: “Se permitir que
meus estudantes clérigos residam no seminário [...], onde encontrarei os cem
e mais mestres que ensinem catecismo em tantas outras aulas?”.72

O catecismo usado no Oratório


Vista a prioridade dada à instrução religiosa no Oratório, parece apro-
priado tratar brevemente do catecismo usado e a ideia de Dom Bosco sobre
o modo como o catecismo para jovens deveria ser no conteúdo e no estilo.
O arcebispo Luís Fransoni publicou em 1846 um catecismo diocesano
para jovens chamado Catecismo breve para crianças.73 Esse catecismo baseava-
-se no antigo Compêndio da doutrina cristã.74 Os catecismos usados por Dom
Bosco nos oratórios foram: o Compêndio, até 1846, e o Catecismo breve para
crianças, depois de 1846.
O mais antigo Compêndio diocesano tinha estas seções:
1. Orações diárias e devoções.
2. Um pequeno catecismo de preparação à Confissão e à Primeira
Comunhão para as crianças.
3. Um catecismo intermédio para jovens que fizeram a Primeira Co-
munhão.
4. Um catecismo mais amplo para adultos.
5. Instruções para os atos de fé, esperança, caridade e contrição.
71
Deve-se notar que as aulas noturnas de leitura básica, mencionadas anteriormente em relação
com a permanência do Oratório na instituição da marquesa Barolo, tinham por objetivo dar aos jovens
os meios de sua posterior educação religiosa e como ferramenta de leitura.
72
Dom Bosco ao cardeal De Angelis, 9 de janeiro de 1868, em Epistolario II Motto, 479.
73
Breve catecismo per li fanciulli che si dispongono alla confessione e prima comunione e per tutti quelli
che hanno da imparare gli elementi della dottrina cristiana, ad uso della diocesi di Torino (Breve catecismo
para crianças que se preparam para a confissão e a primeira comunhão e para todos os que devem apren-
der os elementos da doutrina cristã, como se usa na diocese de Turim). Turim: Tip. e Libr. Canfari, 1846.
74
Compendio della Dottrina cristiana ad uso della Diocesi di Torino (Compêndio da doutrina
cristã para uso na diocese de Turim). Turim: Libr. Giovanni Battista Binelli, sem data.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Basicamente, somente as duas primeiras seções seriam usadas para a ins-


trução da catequese dos jovens do Oratório. O Catecismo breve do arcebispo
Fransoni, de 1846, adequado à instrução religiosa básica, só continha as duas
primeiras seções do antigo Compêndio, bastante revisado e atualizado:
1. A primeira seção, que continha as orações diárias e as devoções,
servia como um tipo de “liturgia pessoal” na tradição católica pie-
montesa. Esse exercício foi desenhado para consagrar o dia todo
a Deus em união com Cristo e a Virgem Maria, do levantar-se ao
deitar-se.
2. A segunda seção continua o catecismo básico em forma de pergun-
tas e respostas. Era dividido em 14 lições, precedidas de uma lição
preliminar sem número, com um total de 329 perguntas.

Proposta de Dom Bosco para um Catecismo mais simples


Dom Bosco, que, desde 1846, usava o Breve catecismo para crianças,
diocesano, tinha-o como demasiado longo e difícil para a preparação dos
sacramentos. Por isso, em 1855 submeteu ao cônego Alexandre Vogliotti, da
Chancelaria, uma versão revisada e abreviada do Breve catecismo diocesano,
que o tornaria mais acessível às crianças em conceitos e linguagem.
O cônego revisou-o, mas ficou sem ser publicado. O manuscrito intitula-
va-se Breve catechismo pei fanciulli ad uso della diocesi di Torino (Breve catecismo
para as crianças, em uso na diocese de Turim).75 Dom Bosco simplificou a seção
primeira reduzindo-a às orações da manhã e da noite. Acrescentou uma segunda
seção: uma pequena história sagrada, pois considerava que o catecismo dioce-
sano era muito doutrinal e não suficientemente bíblico.76 Enfim, simplificou
amplamente o próprio catecismo reduzindo-o a nove lições e 79 perguntas.

Linhas-guia para a instrução catequética nos Oratórios


As Memórias Biográficas trazem um conjunto de “Instruções dadas repetida-
mente por Dom Bosco aos irmãos, antes de 1870, para a direção dos meninos”.
Nelas, há uma seção intitulada “Regras para as aulas dominicais de catecismo”.
Acredita-se que essas normas representem as linhas-guia para a instrução religio-
sa, dadas por Dom Bosco aos catequistas no primeiro Oratório. Eram elas:

Este breve catecismo foi publicado por Pietro Braido. Roma: LAS, 1979.
75

“Breve catechismo pei fanciulli che si dispongono alla confessione e prima comunione e per
76

tutti quelli che hanno da imparare gli elementi della dottrina cristiana, ad uso della diocesi di Torino”:
G. Bosco, “Maniera facile per imparare la storia sacra ad uso del popolo cristiano”. Letture Cattoliche
3, 10 e 25 de março. Turim: Paravia, 1855. Ver o texto em OE, ano 1855.

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Compromisso vocacional definitivo de Dom Bosco (1844-1846)

1. Explicar o catecismo breve.


2. Não se perder em dissertações ou exemplos. Trata-se de instruir os
meninos na ciência da salvação. O tempo da catequese é breve; por
isso, seja empregado em explicar as respostas, palavra por palavra.
Revolver os afetos cabe ao pregador. Não nos deixemos arrastar
pela pequena vaidade de fazer-nos louvar. O Senhor nos pedirá
contas sobre se instruímos os meninos e não se os divertimos.
3. Nunca afastar-se do catecismo para ostentar ciência teológica.
Explicá-lo fielmente à letra. Os meninos não entendem certos ar-
razoados e caem no erro ou se escandalizam. O catecismo breve
não é apenas símbolo da fé, mas também regra de conduta para
agir. Portanto, admitam-se pura e simplesmente suas teorias, sem
acrescentar nem tirar nada. Para os meninos, o catecismo breve
deve ser como a Bíblia ou Santo Tomás para os teólogos. É o com-
pêndio da ciência adaptado à sua idade. Não nos creiamos mais
doutos e mais prudentes do que os santos bispos que o redigiram.
Por exemplo: o catecismo diz que os pecados duvidosos devem
ser confessados como duvidosos e os acertados, como acertados.
Os teólogos sustentam que não estamos obrigados a confessar os
pecados duvidosos; mas saberão os meninos o que significa pecado
duvidoso? Não; por isso, colocarão entre os duvidosos certos pe-
cados dos quais têm mais vergonha e, de aí, os sacrilégios. E assim
sucessivamente.
4. Se o catequista tiver um lugar mais elevado, donde possa ver todos os
meninos, fique sentado, mas, se estiver no mesmo nível dos meninos,
permaneça em pé.77

77
MB XIV, 838.

483

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Capítulo XVIII

A REVOLUÇÃO LIBERAL E O
RESSURGIMENTO ITALIANO (1848-1849)

Antes de continuar a expor a história do Oratório depois do seu estabe-


lecimento na casa Pinardi, em Valdocco, parece oportuno recordar os even-
tos turbulentos da década de 1840. Embora nosso interesse se concentre na
cena italiana, o que ali aconteceu não era mais do que parte e efeito de uma
agitação política mais ampla e dramática que afetava toda a Europa.

1. Até a Revolução Liberal de 1848


“A Jovem Itália” e o ideal republicano de Mazzini
José Mazzini (1805-1872) foi o fundador da Associação A Jovem Itália,
uma das forças políticas mais poderosas na Itália do Ressurgimento. Segundo
os estatutos redigidos por ele, a Associação era “uma irmandade de italianos
que acreditam na lei do progresso e do dever, e estão convencidos de que a
Itália é destinada a ser uma nação”. Os meios com que obteriam esses fins
seriam “a educação e a insurreição, que deviam ser assumidas ao mesmo tem-
po”. A expulsão dos odiados austríacos era requisito prévio; mas a guerra de-
via ser realizada pelo povo da Itália para a Itália. Nenhuma confiança deveria
ser posta na ajuda estrangeira ou nos dirigentes das dinastias regionais. Era
preciso abandonar a ideia federalista. Mazzini era um “democrata republica-
no”, e a sua agremiação, A Jovem Itália, surgia para educar o povo italiano
nesse ideal político; uma vez alcançada a unidade nacional, caberia ao povo
escolher a forma específica de governo por meio do sufrágio universal.
O programa político de Mazzini estendeu-se como fogo descontrola-
do entre os jovens idealistas italianos, e grupos de A Jovem Itália surgiram
em todas as dimensões da península. O ideal republicano de Mazzini era
uma força com que contar. Outros liberais dos estados regionais italianos,
porém, tinham ideias diferentes em relação à unificação da Itália, buscando

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

certamente a independência da Itália e um tipo de unidade política, mas não


pelos métodos defendidos por Mazzini e A Jovem Itália. Alguns propunham
uma federação de estados regionais sob a liderança do Papa; outros miravam
o Piemonte e a Casa de Saboia.1

Vicente Gioberti (1801-1852)


Os que postulavam o Papa como líder eram chamados de partido neo-
guelfo.2 Os neoguelfos esperavam que o Papa se colocasse à frente do movi-
mento patriótico, animado pela exigência e exemplo da reforma liberal nos
Estados regionais, e os unisse numa federação italiana sob a sua presidência.
O porta-voz desse projeto político era o padre Vicente Gioberti que, como
outros filósofos políticos (Balbo, D’Azeglio, Cavour etc.), era piemontês e
súdito do rei Carlos Alberto.
Nascido em Turim em 1801, Gioberti estudou para ser padre e foi or-
denado em 1825. Foi nomeado capelão do rei Carlos Alberto, mas se envol-
veu profundamente nos movimentos políticos. Em 1833, época da tentativa
revolucionária de Mazzini, foi preso, acusado de conspiração por defender
a unidade da Itália, mas ficou preso por pouco tempo; embora nunca fosse
julgado exilou-se, passando os quinze anos seguintes em Paris e Bruxelas. Em
Bruxelas publicou em 1843 seu famoso e influente livro Il primato morale e
civile degli italiani (O primado moral e civil dos italianos). Marcos Minghetti,
primeiro-ministro da Itália Unida nos anos 1860 e 1870, sublinha em suas
Memórias o significado desta obra:

O livro parecia, a uns, uma extravagância, a outros, uma revelação [...]. Seu
objetivo era provar que a Itália, embora não totalmente reconhecida pelas
nações estrangeiras, reunia em si mesma todas as condições para o ressurgi-
mento moral e político. Para levá-lo a cabo, não havia necessidade de revo-
luções ou modelos ou intervenções estrangeiras. A unidade e independência
poderiam ser alcançadas com uma Confederação dos vários estados sob a
presidência do Papa; enquanto a liberdade poderia ser obtida com reformas
internas, realizadas pelos diversos Príncipes de cada Estado.3

1
Cf. J. A. R. Marriot, Makers of modern Italy [...]. Oxford: University Press, 1931, 57-59.
2
O título refere-se a uma das facções existentes na Itália medieval e na Europa durante as lutas
entre o império e o papado (séculos XII e XIII). Os guelfos apoiavam os direitos do Papa em relação
ao Imperador. Os gibelinos apoiavam tradicionalmente o Imperador. O termo guelfo deriva de Welf,
nome de uma família alemã. O termo gibelino deriva de Waiblingen, nome de uma propriedade que
pertencia aos imperadores Hohenstauffen.
3
Minghetti, citado por J. A. R. Marriot, Makers of modern Italy, 61.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Esse programa era, na realidade, uma convocação para despertar, mas


o povo não estava acostumado a se considerar “italiano” ou parte de uma
Itália unida. Gioberti sobrestimara a vontade ou a capacidade do governador
regional para ativar as reformas. E, embora a eleição de Pio IX em 1846 e
suas reformas iniciais parecessem justificar o otimismo de Gioberti, enquanto
Metternich governasse a Itália a partir de Viena, não se podiam obter nem a
independência nem a liberdade.
Como Mazzini havia percebido, a expulsão dos austríacos era o primeiro
passo essencial. Apesar disso, a argumentação patriótica de Gioberti procla-
mava que a “Itália sozinha tinha as qualidades necessárias para chegar a ser
líder das nações, e que estava em suas mãos recuperar essa posição”.4
Pio IX, com sua atitude nos acontecimentos de 1848-1849, rompeu o
sonho de Gioberti e dissipou a postura neoguelfa. O próprio Gioberti, depois
de ser anistiado pelo rei Carlos Alberto em 1846, voltou a Turim em 1848;
exerceu brevemente o cargo de primeiro-ministro sob a nova Constituição e,
durante um breve período, como ministro no gabinete de Vítor Manuel II.
Enfim, foi-lhe confiada uma missão em Paris, onde morreu em 1854.5

O conde César Balbo (1779-1853)


Mais prático, com maior clareza na visão política e com não menor
entusiasmo que Gioberti, era o conde César Balbo, descendente de uma
nobre família piemontesa. De 1808 a 1814, serviu em diversos postos
e lugares sob Napoleão; durante a Restauração, tendo começado a fazer
parte do exército piemontês, trabalhou principalmente em missões diplo-
máticas em Londres e Paris. Suspeito de conspiração na insurreição dos
carbonários de 1821 abandonou o exército, fugiu para a França e, durante
algum tempo, até 1826, viveu no exílio. Ao retornar a Turim, não exer-
ceu cargos políticos, mas escreveu várias obras importantes: História da
Itália sob os bárbaros (1830), Vida de Dante (1839), Meditações históricas
(1842), Sobre as esperanças da Itália (1844) e Cartas de política e literatura
impressas e não impressas (1847).
Obteve assim o reconhecimento como filosófico político, homem
de Estado e patriota. Em 1848, sob a nova Constituição, foi nomeado
primeiro-ministro. Desde então, até sua morte em 1853, colaborou com
4
J. A. R. Marriott, Makers of modern Italy, 61.
5
J. A. R. Marriott, Makers of modern Italy, 62. Em seu livro Del rinnovamento civile d’Italia
(Sobre a renovação civil da Itália), 1851, trata dos problemas relacionados com a renovação moral e
civil da sociedade italiana.

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

Camilo Benso de Cavour no periódico Il Risorgimento, publicado pela pri-


meira vez em 15 de dezembro de 1847. O título “mais adiante, resultaria
totalmente profético”.6 Sua obra mais importante e justamente famosa,
Sobre as esperanças da Itália, foi publicada em Paris em 1843.
Assim como Gioberti, Balbo pensava na Itália unificada como uma fede-
ração de estados regionais; a federação era a única solução política possível.7
Como Mazzini, também ele percebeu que não havia solução política factí-
vel enquanto os austríacos não fossem expulsos da Itália. Com visão política
excepcional, ele acreditava que o Império Otomano nos Bálcãs estava para
desaparecer, e que o Império austríaco buscaria ali alguma compensação,
afrouxando a pressão sobre a Itália, e, dessa forma, o exército italiano poderia
entrar em ação.

Máximo Taparelli d’Azeglio (1798-1866)


Nasceu em Turim, de nobre família piemontesa. Viveu ali durante vários
anos e estudou pintura, arte em que chegou a ser eminente. Depois da morte
do pai em 1834, foi para Milão e viveu nessa cidade “austríaca” durante doze
anos. Ali se casou com a filha do escritor liberal Alexandre Manzoni, dedican-
do-se depois decididamente à literatura, sobretudo de caráter político. Em
1845, iniciou uma viagem extraoficial pelos Estados Pontifícios e as Legações
(os Estados Pontifícios mais ao norte). Com seu material de pintor para não
despertar suspeitas, viajou de “contato” em “contato” de maneira encoberta.
Sua missão era advertir os revolucionários para que aguardassem o seu tempo
e pensassem em Carlos Alberto como soberano.
Produto dessas viagens foi um pequeno, mas significativo livro no qual
descreve em primeira mão as atrocidades que se seguiram à falida insurreição
de Pedro Renzi em Rimini, em setembro de 1845. O livro, na realidade um
verdadeiro panfleto, apareceu em Florença em 1846 com o título Gli ultimi
casi di Romagna (Os últimos casos da Romanha). Fazia uma excelente descri-
ção da brutalidade da repressão e enfatizava a incompetência e corrupção do
governo nas Legações papais (Romanha). Minghetti escreve sobre o significa-
do do livro de d’Azeglio:

6
George Martin, The red shirt and the cross of Savoy. New York: Dodd, Mead & Co, 1969, 273.
7
“Se Balbo pensava em Roma ou em Turim como procedência do presidente desta Federação,
é um tema discutido, tão velado e prudente foi o seu aceno” (J. A. R. Marriott, Makers of modern
Italy, 62). Por outro lado, outros historiadores (como G. Martín, The red shirt, 273) acreditam que ele
pensasse em Turim e na Casa de Saboia, mais do que em Roma e o Papado. “Como súdito leal de Car-
los Alberto, ele pensava no seu rei, mais do que no Papa, para liderar qualquer futura confederação”.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os “casos da Romanha” foram a primeira exposição prática de um programa


que exigia substituir a discussão dos assuntos italianos das sociedades secre-
tas e dos complôs, por uma discussão pública, pacífica, séria e corajosa. O
livro condenava a insurreição de Rimini por ter sido imprudente, ineficaz,
desastrosa; mas, ao mesmo tempo, expressava com clareza os perigos de um
governo eclesiástico.8

Apesar da sua imediata supressão, o panfleto foi lido em toda a


Itália. D’Azeglio, expulso da Toscana, retornou a Turim, onde chegou a
ser uma das maiores forças políticas pela sua participação no governo e
pelos seus outros escritos políticos. Minhas recordações, publicado depois
da sua morte em 1867, oferece uma visão retrospectiva de uma destacada
carreira política.
Embora D’Azeglio não assuma uma posição sobre a organização defini-
tiva da ordem política da Itália unida, parece que se inclinasse mais por uma
monarquia parlamentar do que por uma federação. Pensava que a unificação
da Itália não poderia ser obtida sem a cooperação papal. Quanto à liderança
do Ressurgimento italiano, porém, não voltava seu olhar para Roma, como
Gioberti, mas para o Piemonte. De fato, recebeu a promessa do rei Carlos Al-
berto, quando este foi informado sobre a missão de exploração pelos Estados
Pontifícios: “Estejam certos de que, quando chegar o momento, minha vida,
a vida de meus filhos, minha espada, meus recursos, meu exército, tudo será
empregado na causa da Itália”.9

Papa Pio IX (1792-1878).

8
J. A. R. Marriott, Makers of modern Italy, 64.
9
G. Martin, The red shirt, 258.

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

O Papa Pio IX (1846-1878)


O conclave após a morte de Gregório XVI em 1846 agiu rapidamente
para prevenir a intervenção de Metternich e elegeu o cardeal João Maria Mas-
tai Ferretti, arcebispo de Ímola, de 54 anos de idade, que assumiu o nome de
Pio IX. Seu longo pontificado de 32 anos como Papa foi, sem dúvida, o mais
memorável e fecundo dos tempos modernos. Devido às reformas que instau-
rou em sua diocese, chegou à Sé de Pedro com a reputação de reformador li-
beral. Sua eleição foi saudada com entusiasmo pelos liberais italianos, embora
não fosse liberal em nenhum sentido político. Todavia, em seus primeiros
anos de pontificado, iniciou reformas importantes porque sentiu a necessida-
de de consertar erros passados e desejava conseguir que seus domínios fossem
administrados honrada e eficientemente. O governo de Roma e dos Estados
Pontifícios estava totalmente nas mãos de eclesiásticos, e era inepto e corrup-
to. Os procedimentos dos tribunais de justiça eram absolutamente medievais.
Não havia controle sobre a imoralidade, a libertinagem e a mendicância. A
imprensa sofria censura rigorosa.
O Papa nomeou o “liberal” cardeal Gizzi, Secretário de Estado, e come-
çaram as reformas importantes. Ofereceu-se anistia aos prisioneiros políticos
e permitiu-se a volta dos exilados; concederam-se os direitos civis aos judeus;
permitiu-se, pela primeira vez, a publicação de periódicos extraoficiais. Um
mês mais tarde, o Papa estabeleceu a Consulta, uma espécie de Senado, for-
mado quase exclusivamente por leigos, que seriam nomeados pelos seus res-
pectivos distritos. Em junho do mesmo ano, o Papa nomeou um Conselho
de Ministros, todos eclesiásticos, e em julho, criou a Guarda Civil.10 Essas
reformas escandalizaram e fizeram sofrer os eclesiásticos reacionários. Contu-
do, o Papa foi adiante com suas reformas: aprovou a criação de um Governo
autônomo municipal para Roma (outubro de 1847) e, depois, de acordo com
a Consulta, desenvolveu e publicou um amplo plano de reformas.
As ações do Papa levaram o chanceler austríaco Metternich a tomar
medidas “preventivas”. Reforçou a guarnição austríaca de Ferrara, uma das
Legações papais, apesar dos protestos do Legado Papal; redobrou a força de
ocupação austríaca nas regiões lombardo-vênetas; e, intuindo os sinais dos fa-
tos recentes, avisou os estados regionais italianos que não fizessem concessões
radicais ou moderadas ao liberalismo, pois todos os liberais eram propensos à
Revolução. E enquanto mantinha um domínio estrito sobre Ferrara, ameaçava
a Toscana, o Piemonte e a própria Roma com a intervenção austríaca.

10
A Guarda Civil era uma força policial, distinta da polícia do Estado e da militar.

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Dom Bosco: história e carisma 1

2. O ano da revolução: a primeira guerra


do Piemonte contra a Áustria (1848-1849)
Às vésperas da revolução de 1848, o fermento das ideias e a ânsia de
liberdades ferviam por toda a Itália. A situação era curiosa, até mesmo
paradoxal. De um lado, o Papa era pioneiro das reformas que ganharam a
reputação de liberal; de outro, a Áustria ameaçava intervir contra o Papa, a
quem se comprometera defender.
A Toscana, onde era muito elevado o descontentamento econômico e
político, seguiu o exemplo do Papa. Em 1847, o grão-duque permitiu algu-
ma liberdade de imprensa e criou a Guarda Civil; prometeu instaurar um
Conselho de Estado segundo o modelo da Consulta romana. Módena e Par-
ma estavam demasiadamente sob o estrito controle da Áustria para poder
fazer alguma mudança liberal. Ao sul, os movimentos liberais na Sicília foram
facilmente reprimidos e a Universidade de Nápoles foi fechada.
Na Lombardia e em Veneza, nos Estados Pontifícios, na Toscana e no
Piemonte, as reformas despertaram um novo espírito e desafiaram o domínio
da Áustria. A Constituição, contudo, ainda não estava vigente, mas os gover-
nos romano e toscano já não eram rigidamente autocráticos. Liberalizou-se a
imprensa que tornava conhecidos os ultrajes e permitiu-se ao povo arrolar-se
na Guarda Civil para defender as liberdades civis.
No Piemonte, as reformas do Papa despertaram o tímido liberalismo
de Carlos Alberto. Tinha-se mantido indeciso durante dezessete anos, o que
lhe mereceu o mote de Re Tentenna (Rei Vacilante). Finalmente, decidiu unir
sua força à dos patriotas e fazer uma declaração pública em carta dirigida ao
Congresso Agrícola que se reunira em Casale no dia 7 de setembro de 1847 e
ao Congresso Científico que aconteceria em Gênova uma semana depois. O
rei escreveu de forma um tanto grandiloquente:

A Áustria declarou sua intenção de ficar com Ferrara [...]. Se a Providência


nos chama à guerra pela independência da Itália, eu montarei o meu cavalo
e, com meus filhos, marcharei à frente do meu exército [...]. Glorioso será o
dia em que pudermos lançar o grito de guerra pela independência da Itália11

Carlos Alberto jamais aludira anteriormente à possibilidade de uma


guerra contra a Áustria. Suas palavras elevaram o mais amplo entusiasmo
entre os delegados que vinham de todas as partes da Itália. O Congresso de
Casale respondeu pedindo que o Rei encabeçasse o movimento italiano como

11
Citado em J. A. R. Marriott, Makers of modern Italy, 68.

490

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

“espada da Itália” e se levantasse contra a Áustria. Promessas de cooperação


chegavam de todas as partes e de todas as classes sociais. Antes de terminar
o ano, Metternich cedeu à pressão, estimulado pela Inglaterra, e, em 16 de
dezembro de 1847, retirava as tropas austríacas de Ferrara.

A extensão das revoluções em 1848 e o fim da era Metternich


Metternich soube “ler os sinais dos tempos”; antecipou que 1848 seria
um ano decisivo. Abriu-se com a Revolta do Tabaco, que irrompeu em Mi-
lão no início de janeiro. Tratou-se de uma greve pelo corte dos impostos da
Áustria na venda de tabaco, o que levou a repressões sangrentas em que se
perderam muitas vidas. Era apenas a primeira das inúmeras insurreições que
continuariam ao longo do ano. Grande significado teve a revolução de 22 a
26 de fevereiro, em Paris (1848), com o golpe que derrubou Luís Felipe, da
Casa de Bourbon-Orleans, e inaugurou a breve Segunda República.12
Na Itália, 1848 foi o ano em que o Piemonte desafiou a Áustria na Pri-
meira Guerra da Independência e os Estados italianos tiveram que enfrentar
as revoltas e a crescente pressão por formas mais livres de governo.
Em Palermo, no reino da Sicília, estalou uma revolução no dia 12 de
janeiro. Em fevereiro, o estalo deu-se em Nápoles, Roma e Turim. Em março,
estalou a revolução em Milão e Veneza, as duas regiões diretamente subme-
tidas à Áustria. Em 22 de março, foi proclamada a República de Veneza com
Daniel Manin como presidente.13
Em março, além da França e Itália, as insurreições dos liberais vienenses
causaram a queda e a fuga de Metternich. Ao mesmo tempo, a revolução de
Berlim e a revolta magiar na Hungria obtiveram as liberdades civis e algumas
reformas políticas.
Os acontecimentos pareciam justificar a crença de Mazzini de que che-
gara a hora da libertação e da unificação que anunciassem um novo mundo
republicano. Não chegou a acontecer. As insurreições na Itália não foram
um esforço concordado por consenso comum. Eram, sobretudo, revoltas
regionais das classes médias e de grupos de trabalhadores reunidos por

12
Luís Felipe de Orleans fora elevado ao trono na revolução de 1830-1831, que derrubou Carlos
X, o monarca da Restauração. A Segunda República durou pouco, pois em 1852, por um golpe de
estado, Luís Napoleão (1808-1873) foi proclamado imperador da França com o nome de Napoleão
III. Era sobrinho de Napoleão I, filho de Luís, irmão de Napoleão I, e de Hortênsia de Beauharnais.
13
Daniel Manin e Nicolau Tommaseo foram presos pela polícia austríaca e encarcerados em 18 de
janeiro como suspeitos de atividades revolucionárias, mas como Milão estava se preparando para lutar con-
tra os austríacos, a cidade levantou-se em massa em 17 de março libertando todos os prisioneiros políticos.

491

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Dom Bosco: história e carisma 1

membros da nobreza progressista. As revoluções exigiam especificamente


governos constitucionais, maior governo e liberdades civis nas regiões. De
norte e a sul tinha-se como objetivo a libertação do domínio da Áustria e
dos Bourbon e a unificação da Itália.
Era o caso da Lombardia. O sinal para a ação tinha sido a notícia chega-
da de Veneza de que o povo se levantara contra o Governo na capital austríaca
e outras partes do Império austríaco, e que Metternich fugira do país e nunca
mais retornaria.14 A notícia chegou de Viena, primeiramente a Milão, em
17 de março; os milaneses perceberam que chegara o momento propício. A
insurreição seria conhecida como Os Cinco Dias de Milão. Os austríacos, sob
o comando do marechal Radetzky, foram expulsos e retiraram-se no Qua-
drilátero.15 Enquanto isso, em Turim, o rei Carlos Alberto aguardava a sua
oportunidade, mas perdeu-a ao permitir que os austríacos se reagrupassem.
Contudo, e apesar da deficiente preparação militar, declarou guerra à Áustria.

As Constituições de 1848
A Sicília levantou-se em 12 de janeiro de 1848, exigindo a autonomia
administrativa de Nápoles e a Constituição (espanhola) de 1812. A revolta
estendeu-se a Nápoles, onde o rei Fernando defrontou-se com a questão da
Constituição, vendo-se forçado a concedê-la em 10 de fevereiro. Uma sema-
na depois, a Toscana também obteve a sua Constituição. Em 4 de março,
Carlos Alberto, sucumbindo à pressão pública e a insistência do periódico do
conde Camilo Cavour, Il Risorgimento, aceitou a Constituição que chamou
de Statuto, evitando o termo mais democrático: seria a única Constituição de
1848 a perdurar.16
Pio IX também sucumbiu diante do movimento que, repentinamente, con-
quistara a maior parte da Itália. Em 15 de março, ele reconheceu um Statuto
semelhante. As Constituições de 1848, à exceção do Statuto de Carlos Alberto,

14
Acabaram-se os dias do chanceler Metternich. Durante uma longa e brilhante carreira, desde
o Congresso de Viena (1814), ele tentara, com bastante sucesso, frear as forças do liberalismo e da re-
volução. Agora, seu regime se desfazia. Politicamente, as nações súditas sofreram a expansão do espírito
da revolução; a administração austríaca perdera o seu poder sobre elas. Economicamente, as finanças
do Império não tinham base. A Revolução Francesa de fevereiro proporcionou o exemplo e os incen-
tivos. Basicamente, a falha do sistema foi debitada à incapacidade ou à displicência de Metternich de
caminhar com os tempos.
15
O Quadrilátero consistia em quatro cidades fortificadas: Peschiera, Mântua, Legnano e Vero-
na. Dominavam o vale do Míncio e o rio Ádige, assim como também as vias militares até o passo do
Brênnero e a Áustria.
16
O Statuto de Carlos Alberto permaneceu como constituição básica na monarquia da Itália até
sua queda em 1946, seguida de uma constituição republicana.

492

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

eram provisórias. Entretanto, comportaram um reconhecimento geral dos prin-


cípios constitucionais e alteraram o programa mais drástico dos republicanos de
Mazzini e dos democratas. Essas constituições básicas introduziram os Estados
italianos num modo de fazer política, já adotado pela França na revolução de
1830, mas que iria ser repelido na revolução de fevereiro de 1848, que destronou
a monarquia Orleans e restabeleceu a Segunda República.
Os Estatutos estabeleciam as salvaguardas elementares da liberdade in-
dividual e política, a segurança da pessoa e da propriedade, o direito de roga-
tiva, a imprensa livre, assim como a responsabilidade ministerial, o controle
parlamentar dos impostos e o estabelecimento de uma guarda citadina ou
nacional. Em cada Estado, também no Piemonte, a Igreja mantinha seus
privilégios e isenções, e o direito de voto excluía as classes operárias. Apesar
disso, nesse momento, a agitação constitucional deu-se por satisfeita. Agora,
pois, o movimento patriótico podia concentrar-se no desafio à Áustria, com a
esperança de que conseguiria a independência. A Lombardia, que estava sob
a administração austríaca, deu a ordem de guerra.

Os Cinco Dias de Milão (18-22 de março de 1848)


Milão ainda sofria a repressão seguida à Revolta do Tabaco, mas recu-
perou o ânimo com o avanço dos movimentos constitucionais. O sucesso da
revolução de fevereiro em Paris, o levante de Viena (13 de março) que tirou
o reacionário Metternich do poder e obteve a Constituição, pôs a base para a
revolução de Milão. Carlos Alberto recebeu o pedido de auxílio com a adver-
tência de que, se não respondesse ao apelo, Milão proclamaria a República. A
fim de evitar a revolução, Viena anunciou concessões do imperador por meio
de anúncios públicos: liberdade de imprensa, Assembleia de Estados...17
A notícia de que Metternich fugira de Viena para a Inglaterra, onde
se uniu a outros reacionários no exílio, foi conhecida em Milão em 17 de
março. A revolta estava planejada para o dia seguinte. Sem esperar por Carlos
Alberto, que retardava sua resposta, os liberais milaneses lançaram o seu arris-
cado ataque à poderosa guarnição austríaca. O combate estendeu-se às ruas,
de 18 a 22 de março. Os austríacos foram expulsos não sem um abundante
derramamento de sangue.
Veneza levantou-se ao mesmo tempo. Os presos políticos foram liber-
tados e a antiga República foi restaurada. Voluntários de todas as partes
uniram-se à Lombardia-Veneza: um destacamento de 12 mil voluntários
dos Estados Pontifícios, um destacamento do exército regular de Nápoles,

17
“Estados” significa uma assembleia organizada dos representantes dos diversos estratos da sociedade.

493

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Dom Bosco: história e carisma 1

voluntários de Florença, Parma e Módena. De todos os rincões da Itália


instava-se para que o rei Carlos Alberto do Piemonte-Sardenha encabeçasse
a luta pela independência. Cavour escreveu em seu periódico Il Risorgimen-
to: “Chegou o momento supremo para a monarquia sarda”.

Carlos Alberto e a Primeira Guerra da Independência


Não sem vacilações, Carlos Alberto decidiu tomar parte da guerra em
22 de março. Três dias depois, seu exército entrava na Lombardia. A guerra
acabou por ser ineficaz em sua condução e desalentadora em seu resultado.
Radetzky manteve sua posição, entrincheirado no Quadrilátero até lhe che-
garem reforços. Carlos Alberto obteve um pequeno sucesso contra Peschiera,
uma das cidades do Quadrilátero, que caiu em suas mãos em 30 de maio.
Mas foi sua última conquista. A falta de coordenação, a má orientação bélica
e as defecções dos que eram esperados para a guerra, levaram-no à derrota.
Não muito depois de Carlos Alberto ter declarado guerra à Áustria, Pio
IX tornou pública sua posição na famosa alocução de 29 de abril de 1848.18
O Papa não era certamente um amigo da Áustria, mas o risco de um cisma,
o temor de perder a Romanha e a aversão a unir-se à guerra contra um país
católico, motivaram sua decisão de retirar-se da causa. Não se uniria à coali-
zão contra a Áustria, mas não impediria seus súditos de entrarem no conflito
como voluntários sob a própria responsabilidade.
Numa afirmação central da alocução, o Papa explicava por que não po-
dia unir-se à guerra: “Isso, porque nós, embora indignos, estamos na terra
como representantes d›Aquele que é o Autor da paz e o Amante da caridade.
Por isso, de acordo com o dever do nosso supremo mandato apostólico, de-
fendemos e abraçamos todas as raças, povos e nações”.19
A Alocução enfureceu praticamente a todos. No dia seguinte à sua
publicação, os representantes piemonteses e toscanos foram recebidos pelo
Papa; contudo Pio IX, embora simpatizasse com a causa italiana, manteve sua
posição com firmeza. Que desejasse sinceramente a libertação da Itália prova-
-o o fato de que, em carta de 2 de março de 1848, pressionou o imperador
da Áustria a reconhecer a Itália como nação. Contudo, o povo italiano não
gostou da distinção que Pio IX fazia entre o papado e os outros governantes.

18
“Alocução papal” é uma comunicação dirigida aos cardeais em consistório privado sobre al-
gum assunto importante; às vezes, inclui as relações internacionais na política da Santa Sé. Neste caso,
a alocução tratou da participação dos Estados Pontifícios na primeira guerra de independência contra
a Áustria. Pio IX dá as razões pelas quais recusa tomar parte no conflito. As Memórias Biográficas não
fazem referência a essa importante declaração papal.
19
G. Martin, The red shirt, 314.

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

Com sua alocução de 29 de abril e sua declaração explícita sobre a guerra,


parecia que o Papa abandonasse as aspirações da Itália e ignorasse o sonho da
federação guelfa.
O rei Fernando de Nápoles continuou com satisfação o exemplo de Pio
IX. Retirou-se da causa da independência italiana. Os republicanos democra-
tas de Mazzini, que tentaram tomar Nápoles, foram derrotados em guerrilhas
urbanas e o rei revogou todas as liberdades concedidas anteriormente, inclusive
a própria Constituição. Nápoles foi perdida para a causa patriótica. A Sicília
foi duramente castigada pela secessão enquanto as tropas e a frota se retiraram.
Em Roma, a reação foi violenta. Pio IX teve que fugir da cidade quando
a República Romana foi declarada.

A derrota de Carlos Alberto - O armistício de Vigévano


(9 de agosto de 1848)
Após seu sucesso inicial contra Peschiera, Carlos Alberto não o aprovei-
tou. Não podia contar com Nápoles na causa da unificação italiana, mas Par-
ma, Módena e Milão estavam determinadas a unir-se ao Piemonte. Veneza,
apesar da sua constituição republicana, seguiu o exemplo de Milão. Carlos
Alberto também não confiava no seu exército mal organizado, composto em
sua maioria de voluntários, e temeu o poder da Áustria. Sua indecisão levou-o
à derrota; com ela, a dos patriotas da Lombardia-Veneza.
Entretanto, chegaram reforços da Áustria. Radetzky travou batalha com
forças superiores e um melhor comando militar, quando a campanha se reavivou
em julho. Derrotado em Custoza (24-25 de julho), Carlos Alberto voltou a asse-
diar Milão, mas não pôde manter o sítio. Dessa forma, entregou Milão a Radetzky
em 6 de agosto e retirou-se para o Piemonte. Em 9 de agosto, o rei deliberou um
armistício em Vigévano que restaurava o statu quo.
A Lombardia retornou à Áustria; Veneza prolongou sua resistência du-
rante mais um ano; o Piemonte salvou-se da ocupação austríaca, embora
fosse apenas por medo de uma intervenção da França.
A infeliz campanha militar produziu profunda decepção em toda a Itá-
lia. Suscitou uma reação contra os liberais moderados, sob cujos auspícios se
fizera a campanha, e lançou por terra os governos liberais moderados surgi-
dos nos estados regionais do centro e do norte da Itália. Concretamente, o
armistício de Vigévano foi um momento decisivo; depois da derrota, o Pie-
monte não pôde cumprir sozinho o compromisso libertador que se iniciara
sem muitas esperanças. Seguiu-se que Milão e Turim se inclinaram por pedir
ajuda à França, por mais improvável que fosse tê-la no momento. Foi uma

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Dom Bosco: história e carisma 1

época de fragilidade e incerteza. Os democratas e republicanos de Mazzini


viram sua oportunidade. Na segunda metade de 1848, eles pressionaram em
todas as partes para chegar ao controle, também no Piemonte, já que Carlos
Alberto buscava desesperadamente qualquer ajuda disponível. Na Toscana,
obrigaram o grão-duque a escolher um ministro democrático.

O assassinato de De Rossi (1848) e a República Romana (1849)


A crise pós-Alocução do Papa em 29 de abril de 1848, produziu revoltas
furiosas nas ruas de Roma. Como a situação ia se deteriorando, os democra-
tas pressionaram Pio IX a aceitar seu líder, conde Terêncio Mamiani della
Rovere, como primeiro-ministro. Os ministros do Papa renunciaram e Pio
IX, para aquietar a oposição, aceitou o novo governo. A agitação em Roma
continuava, e alguns países alarmaram-se. Em agosto, o governo britânico
enviou um navio, oferecendo-se para acolher o Papa a fim de salvá-lo. Pio
IX, porém, estava determinado a permanecer em Roma. Como piorassem as
condições, o ministro Mamiani demitiu-se. A multidão continuou amotina-
da em Roma e, quando em 8 de agosto, os austríacos atacaram Bolonha (uma
Legação dos Estados do Papa) em represália à participação dos voluntários
papais na guerra, o povo pediu uma declaração de guerra contra a Áustria.
Como resposta, o Papa decretou o fim do governo democrático, adiou
a convocação das Câmaras e nomeou ministro o conservador Pellegrino De
Rossi. Em 15 de novembro, quando as Câmaras iam ser abertas, De Rossi
foi assassinado.20 Em 16 de novembro, o Papa precisou confrontar-se com a
exigência de um ministro democrático, que deveria convocar uma Assem-
bleia constituinte e declarar guerra à Áustria. O ministério seria presidido por
Antônio Rosmini-Servati como presidente, e novamente Terêncio Mamiani
como ministro dos Assuntos Exteriores. Rosmini recusou-se de imediato.
Com o agravamento da situação, em 24 de novembro, Pio IX, disfarçado
de simples padre, fugiu de Roma e refugiou-se em Gaeta, cidade fortificada
situada entre Roma e Nápoles, sob a proteção do rei Fernando de Nápoles.
Quase imediatamente o grão-duque Leopoldo da Toscana foi expulso de Flo-
rença e uniu-se ao Papa em Gaeta. Formou-se em Florença um governo de-
mocrático provisório. Tinha-se a impressão de que quase toda a Itália central
estivesse sob o controle dos republicanos.

Pellegrino Rossi, embora italiano, fora professor universitário na França. Em 1845, o governo
20

francês enviou-o a Roma para negociar a supressão dos jesuítas na França. Apresentou-se a Pio IX como
oposto aos democratas e aos que se opunham ao poder temporal do Papa. Ao sair do seu coche para
abrir o Parlamento que havia convocado, foi emboscado e assassinado por um grupo de democratas.

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

Em Roma, as Câmaras elegeram o Comitê Supremo de Estado, que


convocou imediatamente a Assembleia Constituinte, eleita por sufrágio uni-
versal, para desenhar a nova constituição dos Estados Pontifícios. Mazzini
veio rapidamente da Inglaterra, declarou-se cidadão romano e foi eleito para
a Assembleia constituinte. Aproveitando a “abdicação papal” (assim Mazzini
interpretou a sua fuga), a Assembleia constituinte aboliu o poder temporal
do Papa e, em 9 de fevereiro de 1849, proclamou a República de Roma ao
mesmo tempo em que Mazzini pressionava a Assembleia para que declarasse
guerra à Áustria.
Quando Carlos Alberto denunciou o armistício de Vigévano em 12 de
março de 1849 e reavivou a guerra contra os austríacos, Mazzini convocou a
guerra contra a Áustria de modo sempre mais insistente. Nem sequer a rápida
e completa vitória da Áustria sobre o Piemonte em 25 de março mudou a
postura de Mazzini. Pensava que uma declaração de guerra mostraria ao país
que aquilo que a Monarquia não pôde fazer, a República o faria.
Quando a notícia da derrota de Carlos Alberto chegou a Roma, a As-
sembleia, acreditando que a Áustria desceria até Roma e que a guerra seria
inevitável, instaurou, em 30 de março, um triunvirato para governar a Repú-
blica, tendo Mazzini à frente.

Reavivamento da guerra do Piemonte contra a Áustria -


Derrota de Novara (1849)
Após a derrota diante da Áustria e de ter aceito seus termos no armistício
de Vigévano (9 de agosto de 1848), o Piemonte manteve seu governo como
monarquia constitucional. Quando estalou uma nova revolta em Viena em
outubro de 1848, Carlos Alberto recebeu novas pressões para retomar a guer-
ra contra a Áustria. O estabelecimento da República Romana e a certeza de
que a Áustria interviria exigia uma ação rápida. Carlos Alberto, porém, não
encontrou aliados. Luís Napoleão Bonaparte, então presidente da Segunda
República Francesa, queria intervir, mas seus ministros não estavam muito
dispostos.21 O Piemonte desafiou solitariamente a Áustria, uma aventura ga-
lharda, mas destinada ao fracasso.
Em 12 de março de 1849, Carlos Alberto denunciou o armistício de
Vigévano. Uma semana depois, avançou sobre Milão. Entre as cidades da
Lombardia, apenas Bréscia se levantou em seu auxílio. Radetzky concluiu
21
Luís Napoleão Bonaparte foi eleito presidente da Segunda República Francesa que, estabelecida
em 1848, expulsou Luís Felipe de Orleans. Em 1849, dispôs-se a acabar com a Segunda República e
fazer-se consagrar imperador como Napoleão III.

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Dom Bosco: história e carisma 1

a guerra com facilidade. Com um movimento circular, em 23 de março de


1849 iniciou o ataque aos piemonteses em diversos pontos perto de Novara
(noroeste do Piemonte). Combateu-se “numa batalha de três dias de guer-
ra”. Carlos Alberto foi totalmente derrotado e na noite da derrota abdicou
em favor de seu filho. Em seguida, exilou-se voluntariamente e morreu num
mosteiro do Porto (Portugal) em 28 de julho de 1849.22
O primeiro ato do rei Vítor Manuel II, novo soberano do Piemonte, foi
assinar um armistício. Este exigia a retirada das tropas do Piemonte e da frota
do Adriático, a manutenção de uma guarnição mista austro-sarda em Alessân-
dria e o pagamento de uma indenização de 3 milhões de esterlinas à Áustria.

Carlos Alberto abdicou em favor do seu filho Vítor Manuel II (23 de março de 1849).

A vitória da Áustria confirmou-a como poder dominante na Itália. Não


só submeteu a Lombardia-Veneza como também a Toscana, Parma e Móde-
na viram restaurado seu antigo governo e abolida sua constituição. Embora
derrotado, o Piemonte, único entre todos os estados italianos, manteve-se
firme. Nem sequer a oferta austríaca de renunciar ou reduzir a enorme dívida
de guerra foi capaz de levar o rei Vítor Manuel II a anular o Statuto (Cons-
tituição) de seu pai.

22
O corpo de Carlos Alberto retornou a Turim em 13 de outubro, foi honrado com solene
funeral e sepultado na cripta real da Basílica de Superga.

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

Luís Napoleão Bonaparte e Roma - A queda da República


Romana e a restauração de Pio IX
A República Romana e suas esperanças irreais de uma Itália unificada
estavam condenadas ao fracasso. Defrontava-se com a certeza de uma in-
tervenção em favor de Pio IX. Áustria, França e Nápoles comprometiam-se
a garantir a restauração do Papa. A França percebeu que, permitir a plena
liberdade de intervenção à Áustria, colocaria novamente a Itália toda sob o
seu controle. Luís Napoleão, então, decidiu intervir.
A opinião pública francesa estava de acordo com a intervenção em favor
do Papa. Embora o Parlamento só lhe tivesse autorizado estabelecer uma
guarnição na Itália, como advertência à Áustria, Luís Napoleão não teve es-
crúpulos em ampliar o uso da força de que dispunha. Em 24 de abril de
1849, o general Nicolau Carlos Oudinot, no comando do exército francês,
desembarcou em Civitavecchia, porto a pouca distância a norte de Roma.
Em seguida, exigiu a supressão da República Romana, ao mesmo tempo em
que suas tropas ocupavam a cidade e restaurava o Papa.
A República determinou a resistência. Em 30 de abril, Oudinot foi
expulso quando tentava tomar a cidade. José Garibaldi e seus voluntários
lutaram na linha de frente. Oudinot, depois de receber reforços, atacou
novamente em junho e, após um duro bombardeio, entrou na cidade.
Mazzini demitiu-se, enquanto Garibaldi com cerca de 4 mil soldados
que lutaram às suas ordens conseguiram fugir.23 Em 14 de julho, Oudi-
not proclamou a restauração do poder temporal do Papa. Em abril de
1850, Pio IX retornou a Roma. Luís Napoleão aconselhou-o a conceder
anistia, pôr a administração nas mãos de leigos, adotar o código civil
napoleônico e continuar as reformas liberais. Pio IX, alertado pela sua
triste experiência, pensou que não devia fraquejar, e o conselho do im-
perador caiu no vazio.

23
José Garibaldi (1807-1882) participou pela primeira vez de uma ação militar na Itália em
1848, na Primeira Guerra da Independência, à frente de um batalhão de voluntários; agora, lutava pela
defesa da República Romana. Fugindo de Roma e dos franceses, Garibaldi e seus homens foram para
o norte com a pretensão de encontrar reparo em Veneza, ainda sob o cerco dos austríacos. Contudo, o
grupo, muito reduzido em número pelas deserções, foi interceptado e dispersado por um contingente
austríaco perto de São Marino. Garibaldi, com apenas 250 homens, logrou embarcar em pequenas
embarcações para Veneza, mas os barcos da frota austríaca do Adriático os rechaçaram. Anita, mulher
de Garibaldi, que sempre o acompanhara, morreu de malária nos pântanos ao sul de Ravena. Garibaldi
sobreviveu; perseguido pelos austríacos, ele conseguiu fugir para Gênova, onde foi preso em setembro
de 1849 e condenado ao exílio. Não podendo ser admitido em Túnis, estabeleceu-se na Sardenha.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Capitulação de Veneza
Depois da derrota do Piemonte, a Áustria reclamou a Lombardia e Ve-
neza e a hegemonia na Itália. Entretanto, Veneza manteve-se sob o governo
de Daniel Manin, presidente e defensor heroico da República. Em abril de
1849, Veneza foi sitiada, mas a cidade resistiu até agosto. Caiu, enfim, no
dia 27 de agosto de 1849, derrotada pela fome, pela cólera e pelas bombas
que caíam sobre a cidade lançadas por balões (!). Daniel Manin exilou-se em
Paris, onde morreu em 1857.

3. Perspectivas políticas depois de 1849


O Piemonte continuava isolado. Era o único Estado italiano no qual se
podia confiar para lutar pela independência. Os Bourbon tinham demonstra-
do sua ineficácia no sul. A posição católica do Papa impedia a sua participa-
ção. Os demais soberanos regionais, direta ou indiretamente, estavam sob a
influência da Áustria. O Piemonte e a Casa de Saboia durante a trégua de dez
anos (1849-1859), entretanto, foram considerados os líderes do movimento
nacional. E o Piemonte voltaria a tentá-lo. Entretanto, sozinho, não podia
levar a cabo o movimento nacional. A intervenção da França, que conseguira
desfazer-se da República Romana e restaurar o Papa, trazia uma nova di-
mensão à luta pela independência e a unificação da Itália. Foi uma lição não
desprezada por Cavour, o futuro primeiro-ministro, que, na época, galgava os
degraus da liderança política.
Embora tivesse de levar em conta Mazzini, Garibaldi e outros republica-
nos democratas radicais, o republicanismo perdera o seu papel de construtor
da unidade da Itália. Esse papel seria assumido decisivamente pelo Piemonte
com a ajuda do imperador francês, Napoleão Bonaparte III. O rei Vítor Ma-
nuel II, o primeiro-ministro conde Camilo Benso de Cavour, incluindo Ga-
ribaldi, seriam os protagonistas no drama da unificação italiana (1859-1861).
Depois de 1849, sendo um Estado regional livre na Itália, o Piemonte
converteu-se em asilo de refugiados políticos procedentes de outros Estados.
Foram milhares, entre eles alguns dos mais profundos pensadores da Itália,
cuja influência nos anos 1849-1859 foi decisiva para preparar o caminho para
a Revolução Liberal e o Ressurgimento. A década de 1850 foi um período de
preparação, atividade intelectual e crescimento econômico e industrial no Pie-
monte. O futuro da Itália dependia do Piemonte, de suas instituições liberais
e de seus estadistas, sendo Cavour, sem dúvida, a personalidade mais decisiva.

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Apêndice

NOTA BIOGRÁFICA DO PAPA PIO IX (1792-1878)

João Maria Mastai-Ferretti nasceu em 13 de maio de 1792. Foi eleito


Papa com o nome de Pio IX em 16 de junho de 1846. Morreu em 7 de fe-
vereiro de 1878.
Nascido em Senigália, na costa adriática, João Maria sofreu de epilepsia
quando criança, enfermidade que o impediu de seguir sua primeira vocação,
o Exército. Diz-se que se fez padre por orientação de Pio VII, que o ordenou
em 1819. Sua educação inicial em Viterbo e Roma, pouco mais ampla que a
dos estudos clericais, só lhe permitiu abrir-se ao mundo de artistas e cientis-
tas. Recém-ordenado, acompanhou dom Muzi numa missão diplomática no
Peru e Chile. Sua ascensão na hierarquia foi rápida, sem chegar a ser meteóri-
ca; foi nomeado sucessivamente arcebispo de Spoleto (1827), bispo de Ímola
(1832) e cardeal em 1840.
Quando foi eleito Papa em 1846, aos 53 anos de idade, e depois de um
conclave de apenas dois dias, tinha fama de liberal. Simpatizara-se com as
aspirações nacionalistas, embora mantivesse critérios tradicionais quanto aos
Estados Pontifícios. Ajudado pelo seu secretário de Estado, o cardeal liberal
Pascual Gizzi, fomentou importantes reformas políticas e sociais: a criação
de uma assembleia consultiva, o Conselho de ministros e o pleno Governo
municipal de Roma. Em março de 1848, Pio IX estabeleceu uma constitui-
ção para os Estados Pontifícios, pela primeira vez em sua história. Dentro de
certos limites, concedeu-se liberdade de imprensa, introduziram-se a estrada
de ferro e o gás e instauraram-se reformas na agricultura e na educação.
Em fins de 1848, a situação mudou radicalmente. Pio IX recusou-se a
apoiar a Guerra do Piemonte contra a Áustria, recusa que irritou a opinião
nacionalista italiana. Assassinado seu primeiro-ministro, viu-se forçado a
fugir para Gaeta, depois da revolução irrompida nos territórios papais,
que desembocou na criação da República Romana de Mazzini (1849).
Pio IX já enfrentara resolutamente o liberalismo em todas as suas formas,

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Dom Bosco: história e carisma 1

demonstrando-o com a nomeação do secretário de Estado, o ultraconser-


vador cardeal Santiago Antonelli.
A República Romana terminou com a intervenção francesa. Pio IX re-
tornou a Roma em abril de 1850. Entretanto, não acabaram os problemas
políticos do Papa. No início e em meados da década de 1850, continuou a
secularização da vida italiana; fecharam-se conventos e mosteiros; decreta-
ram-se leis contra a Igreja. Nos anos 1859-1860, durante a Segunda Guerra
da Independência italiana, e depois dela, apesar das medidas tomadas pelo
seu ministro da Guerra, Xavier de Merode, a maioria dos Estados Pontifícios
tinha se rebelado; estes foram invadidos e anexados pelo Piemonte e passaram
a fazer parte da Itália unificada. O anticlericalismo marcou a vida das regiões
que antes eram governadas pelo Papa.
José Garibaldi foi o maior estimulador da unificação da Itália mediante
a conquista do reino de Nápoles e Sicília em 1860. Seus ataques contínu-
os contra Roma, ainda sob o governo papal, foram rechaçados pelas tropas
francesas. O imperador Napoleão III era, na época, o único patrocinador da
independência política papal. Com a melhor intenção e contra o conselho
que lhe chegava de numerosos ambientes, o Papa não soube aceitar as novas
realidades políticas.
A encíclica Quanta Cura, de 1864, à qual se uniu o Syllabus Errorum
(condenação de 80 proposições) declarava a recusa de Pio IX em relação às
modernas ideias seculares e liberais. Ao perder sua autoridade política, esses
documentos denotam a intenção do Papa de reafirmar o primado da autori-
dade social e espiritual da Igreja diante do avanço do liberalismo.
Mais tarde, em fevereiro de 1868, terá que se confrontar com o pensa-
mento político imperante com o decreto Non Expedit, no qual proibia aos
católicos de participar dos assuntos políticos italianos.
Em setembro de 1870, depois da derrota da França na guerra franco-
-prussiana, o exército italiano ocupou Roma, enquanto se celebrava o Con-
cílio Vaticano I. O que restava dos Estados Papais foi anexado à Itália através
de um referendo. Roma passou a ser a capital da Itália, indicando assim o fim
do poder temporal do Papa. Pio IX contestou a Lei das Garantias e todas as
propostas do governo italiano e retirou-se a um “confinamento” autoimposto
no Vaticano.
Ao final do seu poder temporal, produziu-se um admirável aumento da
importância do papado na vida da Igreja. Em 1854, Pio IX definiu o dogma
da Imaculada Conceição; em 1863, bispos vindos do mundo todo se reuni-
ram com o Papa para a canonização dos Mártires Japoneses e, novamente,

502

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A Revolução Liberal e o Ressurgimento italiano (1848-1849)

em 1867, para celebrar o XVIII Centenário de São Pedro e São Paulo. Veio,
depois, a definição da infalibilidade do Papa no Concílio Vaticano I. A par-
tir disso tudo se vai consolidando a autoridade e o papel do papado na vida
espiritual da Igreja e crescendo a dependência dos bispos em relação ao Papa,
como centro da unidade, de quem se afirmou a supremacia na fé e na moral.24
Os últimos anos do papado de Pio IX foram ofuscados pelo Kulturkampf,
na Alemanha. O chanceler Otto Bismark tentou abolir a liberdade da Igreja
expulsando os jesuítas, aprisionando bispos e padres e promovendo numerosas
limitações ao culto e à vida católica. Pio IX condenou essa corrente com a
encíclica Quod Qunquam, de 5 de fevereiro de 1875.
Pio IX foi, sem dúvida, o Papa mais importante do século XIX. Seus
reveses não ofuscaram seus muitos sucessos: ele negociou numerosas concor-
datas, um acordo com o Império Otomano facilitou a criação do Patriarcado
Latino de Jerusalém em outubro de 1847, restabeleceu a hierarquia na Ingla-
terra (1850) e na Holanda (1853), levou adiante uma enorme expansão da
Igreja nos Estados Unidos e no Império Britânico.
A fim de promover a piedade, Pio IX canonizou uma quantidade sem
precedentes de santos e animou a devoção ao Sagrado Coração de Jesus; fun-
dou os periódicos L’Osservatore Romano e Civiltà Cattolica, este último dos
jesuítas, em 6 de abril de 1850, como instrumentos da política papal antili-
beral e da teologia do primado do Papa. Porém, ele falhou na compreensão
da corrente de mudança social e política que surgia na Europa Ocidental;
agarrou-se a formas tradicionais que considerava intimamente relacionadas à
religião. Seus desastres políticos e os sofrimentos que precisou suportar foram
interpretados na Igreja como ataques contra a fé católica.
Logo depois que morreu, em 7 de fevereiro de 1878, surgiram vozes que
pediam sua canonização. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II, em 3 de
setembro de 2000.
Pio IX é considerado, na tradição salesiana, como o grande protetor da
nossa Congregação e honrado como “o Papa de Dom Bosco”. Seria muito
difícil que a Sociedade Salesiana e as Constituições conseguissem a aprova-
ção de Roma sem o interesse e a intervenção favorável de Pio IX. O grande
número de cartas dirigidas por Dom Bosco a Pio IX quando muitos falavam
de seus momentos difíceis, demonstra claramente a devoção pessoal de Dom
Bosco pelo Papa.

24
O Concílio Vaticano I (1869-1870) aumentou consideravelmente o âmbito da autoridade
papal. A declaração da Infalibilidade Pontifícia, em 18 de julho de 1870, foi aprovada pela imensa
maioria dos bispos: 533 contra 2. Não obstante, mais de 55 bispos, entre alemães, franceses e piemon-
teses deixaram o Concílio antes de emitirem o voto.

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Dom Bosco: história e carisma 1

O STATUTO DO REI CARLOS ALBERTO

O ano 1848 é conhecido frequentemente como “o ano das revoluções”.


Umas 50 revoltas, insurreições e revoluções tiveram lugar na Europa nesse
ano; muitas delas nos estados regionais da Itália. O rei Fernando de Nápoles,
o grão-duque Leopoldo da Toscana e o papa Pio IX viram-se obrigados a
conceder constituições aos seus respectivos súditos.
No Piemonte, o rei Carlos Alberto, antecipando-se à revolução, aceitou
esses pedidos e concedeu um Statuto (Constituição). O arcebispo Franzoni
precisou dispensá-lo do voto que fizera de não ceder às pressões liberais.
Embora o rei mantivesse muito poder, na prática, com o Statuto de Car-
los Alberto, o Reino de Sardenha transformou-se numa monarquia cons-
titucional. O Parlamento e os ministros, em especial o primeiro-ministro
Cavour, chegaram a exercer sempre mais poder na determinação da política
do Estado. O Statuto continuou a ser a lei da Itália unida até a eliminação da
monarquia e a proclamação da República em 1946.
O Statuto de Carlos Alberto continha disposições importantes. Algumas
delas merecem menção:

• A religião católica continuava a ser religião de Estado, mas de


acordo com a lei, toleravam-se outras religiões.
• Havia duas câmaras ou casas: a Câmara dos deputados (elegível)
e o Senado (nomeado pelo rei). Elas compartilham o poder legis-
lativo com o rei.
• Garantia-se a liberdade da pessoa, do culto e da imprensa.
• Todos eram iguais perante a lei.
• A casa e a propriedade de qualquer pessoa eram invioláveis.
• Arcebispos e bispos podiam ser nomeados como membros do
Senado; os senadores e deputados não tinham direito a qual-
quer salário.

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Capítulo XIX

OS PRIMEIROS PASSOS DO ORATÓRIO

Os acontecimentos da revolução de 1848 são o marco histórico glo-


bal pelo qual o Oratório conhecerá sua consolidação e seu desenvolvimento.
Eram tempos turbulentos, que pediam audácia e prudência, especialmente
para uma pessoa como Dom Bosco, que tinha certezas teológicas irremoví-
veis sobre o poder papal.

1. Desenvolvimento do Oratório de São Francisco de Sales


Com o Oratório já situado na propriedade Pinardi, em 1846, Dom Bos-
co desenvolveu um plano de ampliação sistemática dos locais em vista da
expansão posterior.1

Aquisição da casa e do terreno Pinardi (1846-1851)


O contrato Pinardi-Borel para o aluguel do telheiro fora assinado em
1º de abril de 1846, com validade de três anos. Pouco mais tarde, foram
subarrendados outros três quartos do segundo andar da casa, com escritura
assinada pelo senhor Soave e o teólogo Borel, em 5 de junho de 1846. Segun-
do Lemoyne,2 Dom Bosco arrendou outro quarto (o quarto), antes de deixar
Turim, em agosto, e ir aos Becchi para uma convalescença que perdurou por
quatro meses.
Em 3 de novembro, Dom Bosco regressou dos Becchi com sua mãe. Um
mês depois, em 1º de dezembro, sublocou do senhor Soave toda a casa Pinardi
e o terreno adjacente por 710 liras anuais (mais 59 liras extras), pelo período
até 31 de dezembro de 1848. O senhor Soave reservou parte do primeiro andar

1
Sobre as compras e vendas das propriedades de Dom Bosco entre 1848 e 1884, como constam
no Cartório de Escrituras da cidade de Turim, cf. J. Bracco, Don Bosco e l’istituzioni, 145-150.
2
MB II, 500.

505

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Dom Bosco: história e carisma 1

para sua fábrica de amido, até 1º de março de 1848. Dom Bosco assinou pela
primeira vez como contratante.3
Quando expirou o tempo de arrendamento do senhor Soave, o teólogo
Borel, atuando novamente como contratante, substituiu-o como arrendatário
e assinou o aluguel da casa e da propriedade com o senhor Pinardi por 150
liras a mais ao ano. O contrato ia de 1º de abril de 1849 a 31 de março de
1852. Devido a um assassinato nos locais da vizinha casa Bellezza, Pinardi pôs
à venda para Dom Bosco a casa e a propriedade, com a participação do teólo-
go Borel e dos padres Cafasso e Roberto Murialdo, por 28 mil liras. A escritura
foi assinada em 19 de fevereiro de 1851. Assim, o Oratório de São Francisco
de Sales ficava definitivamente estável em seu domicílio permanente.

Inícios e primeiros passos da casa anexa (1847)


Estabelecido na casa Pinardi (1846), Dom Bosco, respondendo mais uma
vez a uma necessidade premente, abriu um internato ou residência juvenil,4
ou seja, uma casa para jovens carentes e sem morada (1847). Seguia o exem-
plo de muitos santos de tempos anteriores: São Felipe Neri (1515-1595), São
José de Calasanz (1556-1648), São Vicente de Paulo (1581-1660), São João
Batista de La Salle (1651-1719). Alguns de seus contemporâneos também
responderam de maneira semelhante às mesmas necessidades.5
A criação dessa casa foi um passo da máxima importância no desenvol-
vimento da obra de Dom Bosco. Ele a concebia como extensão do Oratório;
queria que fosse uma casa para os meninos realmente mais pobres do Orató-
rio. Isso fez da casa anexa uma instituição, senão idêntica, ao menos o mais
próximo da obra do Oratório. De fato, foi sua expansão lógica, tanto que,
quando colocou esta obra pela primeira vez (1858) no texto das Constitui-
ções, Dom Bosco escreveu:

Percebemos que alguns (jovens) vivem tão abandonados que, se não forem
abrigados, seria inútil todo cuidado para com eles. Por isso, enquanto possível,
abrir-se-ão casas de acolhida nas quais, com os meios proporcionados pela
divina Providência, seja-lhes providenciado alojamento, alimento e vestuário.
Enquanto forem instruídos nas verdades da fé, serão iniciados em algum ofício

Dom Bosco trouxera algum dinheiro de casa, obtido com a venda de um terreno (MO, 191),
3

não chegando, porém, a 769 liras. Acredita-se que padre Cafasso e outros que apoiavam a obra do
Oratório de Dom Bosco tenham dado o restante.
4
O nome dado por Dom Bosco era Casa annessa all’Oratorio di San Francesco di Sales (Casa
anexa ao Oratório de São Francisco de Sales, também descrito como Ospizio [albergue, internato].
5
Cf. P. Stella, Vita, 113.

506

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Os primeiros passos do Oratório

ou arte de trabalho, como se faz atualmente na casa anexa ao Oratório de São


Francisco de Sales desta cidade.6

A importância da casa também está no fato que, quase desde o início,


ela foi o espaço em que o Fundador ampliou sua experiência na educação da
juventude, tanto dos aprendizes como dos estudantes, incluindo os que, com
o tempo, dariam continuidade à própria obra.
Com essa iniciativa, e por meio dela, “o que se fez no Oratório de São
Francisco de Sales” converteu-se em modelo da obra salesiana em todas as par-
tes. Foi dessa forma que “a experiência do Oratório” chegou a ser normativa.

Contrato original Pinardi-Borel (1º de abril de 1846).

Início da residência na casa Pinardi e seus primeiros internos


Uma tarde chuvosa de maio de 1847, como recorda em suas Memórias,
Dom Bosco e Mamãe Margarida alojaram um órfão de 15 anos de Valsésia,
cujo nome não é citado, mas que não tinha onde morar. Margarida “fez-lhe
um sermãozinho” antes de levá-lo para dormir. Dom Bosco acrescenta: “A ele

6
Constituições da Sociedade Salesiana (1858), “O escopo desta sociedade”, artigo 4, em F. Motto,
Costituzioni, 74. Intenção semelhante é expressa no artigo 2º das Constituições da Sociedade de Caridade
em benefício dos jovens órfãos e abandonados de Turim, fundada em 1849 pelo padre Cocchi e outros. Foi
esse o grupo que construiu o Colégio dos Pequenos Aprendizes (P. Stella, Spiritualità, 114-115, nota 37).

507

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Dom Bosco: história e carisma 1

juntou-se logo outro”.7 De acordo com Lemoyne, Dom Bosco encontrou o


segundo menino no Corso San Massimo, também órfão e sem casa, choran-
do enquanto apoiava o rosto numa árvore.8
Na Nota histórica de 1854, depois de descrever o aluguel dos quartos
anexos na casa Pinardi, Dom Bosco continua a apresentar muito brevemente
o início da residência: “Dois jovenzinhos receberam alojamento. Eram po-
bres, órfãos e sem trabalho, ignorantes em matéria religiosa. Assim começou
a casa, que jamais deixou de crescer”.9
É possível que os dois meninos apresentados como os primeiros inter-
nos da residência sejam os mesmos mencionados nas Memórias; a condição
social era a mesma, o que também está acordo com a sequência da narração
nos dois documentos. Deve-se notar, contudo, que nas Memórias o verdadei-
ro início acontece em maio com um menino (o menino sem nome, órfão de
Valsésia), enquanto na Nota histórica, de 1854, o início sem data acontece
com dois meninos.
Os registros eram feitos no Oratório por algum setor da administra-
ção. Alguns livros contêm informações relativas aos residentes dos primeiros
tempos. O primeiro a se levar em consideração intitula-se Anágrafe (Registro
de família ou população) de 1847 até 1869.10 Anota os nomes dos internos
aceitos em Valdocco em cada ano escolar: 2 em 1847, 1 em 1848, 2 em
1849, e assim por diante, até 375 em 1869. Com a reserva de que “o regis-
tro familiar foi compilado tardiamente, em 1870 ou até mais tarde”, como
escreve Stella:

Em 1847, são anotados no registro dois meninos que passam a viver no Ora-
tório como internos, ambos nascidos em Turim: Felipe Reviglio e Jacinto
Arnaud. Reviglio, nascido em 1831, entrou como estudante interno em 10
de outubro de 1847 e saiu em setembro de 1858. Mais tarde, foi ordenado
padre e esteve como pároco na igreja de Santo Agostinho em Turim. Arnaud,
nascido em 1826, entrou como interno aprendiz em 25 de outubro de 1847,
tendo saído em 5 de fevereiro de 1856. Nenhum dos dois corresponde ao
jovem de Valsésia de que fala Dom Bosco [nas Memórias].11

MO, 197.
7

MB III, 208. O Corso San Massimo é o atual Corso Regina Margherita.


8

9
Nota histórica, 175, parágrafo final no Apêndice mais adiante.
10
P. Stella, Economia, 175 descreve-o (em 1980) como “o primeiro livro importante do pri-
meiro grupo, que entrou no ASC provindo do escritório do secretário da casa salesiana de Valdocco,
não catalogado”.
11
P. Stella, Economia, 175-176.

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Os primeiros passos do Oratório

Acrescente-se que nem estes jovens correspondem aos dois descritos por
Dom Bosco na Nota histórica, citado acima, exceto no número.
Stella alude em seguida “a um registro mais antigo, da mão de Dom
Bosco, que se intitula Arquivo Familiar e traz informações sobre pessoas que
residiam em Valdocco nos anos 1847-1853”.12 Trata-se de um rascunho no
qual Dom Bosco anota nomes, datas, cotas de pagamento, expedientes rela-
tivos a alguns indivíduos em particular, mas, como se apresentam, não eram
exaustivos nem estavam em ordem rigorosa.
A informação dada por Dom Bosco sobre algumas pessoas que ingres-
saram em 1847 como residentes pode ser resumida assim: 16 de outubro,
Alexandre Pescarmona, cota mensal 55,50 liras; 23 de outubro, padre Carlos
Palazzolo, cota mensal 35 liras; de 29 de outubro de 1847 a 20 de fevereiro de
1848, padre Pedro Ponte, cota mensal 50 liras; 2 de novembro, seminarista
(João Batista) Bertagna, cota mensal 50 liras; 9 de novembro, “o menino Luís
Parone veio com Dom Bosco” (não se anota a cota). (Seguem as anotações
de outros anos.)
Não fica claro o que este “registro familiar” representa para o início da
residência do Oratório. Alguns dados são evidentes. Primeiro, que no Ora-
tório residiam outras pessoas além dos meninos internos: em 1847, dois pa-
dres e um seminarista, que pagavam normalmente pelo alojamento, como
também o faziam alguns meninos. Segundo, que a anotação tem início em
outubro, não em maio, quando se recebeu o órfão de Valsésia, como afirmam
as Memórias. Terceiro, que não é provável que este seja um registro completo
dos meninos acolhidos como residentes, uma vez que aos dois mencionados
aqui, Pescarmona e Parone, devem-se acrescentar os dois mencionados no Re-
gistro familiar, Reviglio e Arnaud. Além disso, sabe-se que até fins de 1847 os
jovens “aos quais se dava alojamento” na casa eram 6 ou 7, incluindo um par
de estudantes. Quarto, e mais importante, que Alexandre Pescarmona não
é chamado de órfão de Valsésia, pois era filho de João B. Pescarmona, pro-
prietário de terras, anteriormente prefeito de Castelnuovo. A pensão e outros
assuntos são estabelecidos num contrato privado entre o senhor Pescarmona
e Dom Bosco.13 O menino Luís Parone, “que veio com Dom Bosco”, indi-
cando talvez que se tratasse de um ato de caridade, não deve ser levado em
conta, pois foi recebido em novembro, não em maio.

P. Stella, Economia, 176. O Registro Familiar está em ASC A220ss. Cadernetas-registro


12

doméstico: o Oratório de 16/10/1847 a 14/8/1853, 1-40: FDB 753 C6-E12. Transcrito em Stella,
Economia, 559-571.
13
Documento assinado por Dom Bosco, em ASC 132: contratos autógrafos, Pescarmona, FDB
1099 C8.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A descrição dos inícios da casa nas Notas históricas de 1862, embora seja
específica, é suficientemente detalhada para oferecer uma alternativa à relação
tradicional. Vale a pena citá-la:

A casa anexa ao Oratório de São Francisco de Sales. Entre os jovens que acor-
riam a este Oratório, estavam alguns que eram tão pobres e abandonados que
todo o cuidado que lhes era oferecido teria sido de pouca utilidade, se não
lhes fosse dado alojamento em algum lugar e não lhes desse alimento e roupa.
Nós procuramos suprir esta necessidade com a casa anexa, também chamada
(simplesmente) Oratório de São Francisco de Sales. Começamos por arrendar
uma pequena casa em 184714 proporcionando residência a alguns dos mais
pobres. Nessa época, costumavam ir ao trabalho fora (de casa), em diversos
lugares da cidade, retornando à casa do Oratório para comer e dormir. Con-
tudo, a grave carência que se sentia em diversas localidades da província (de
Turim) foi a causa da nossa decisão de ampliar a admissão também aos que
não frequentavam o Oratório de Turim. Uma coisa levou a outra. Em todas
as partes, aos bandos, surgiam jovens abandonados. Foi então que se estabele-
ceu a regra pela qual se admitiam apenas meninos entre doze e dezoito anos,
órfãos de ambos os pais, e que estivessem num estado de mísera pobreza e não
tivessem ninguém que cuidasse deles.15

A motivação para alugar a casa é narrada aqui quase com as mesmas


palavras do rascunho das Constituições Salesianas do mesmo período. A des-
crição da criação da casa em 1847 (“alugar uma casa” para proporcionar ha-
bitação para alguns dos “mais pobres”) é suficientemente genérica como para
permitir uma especificação posterior. Nada, porém, sugere que se iniciasse
em maio com um jovem órfão de Valsésia.

Possível caráter simbólico do “órfão de Valsésia”


Como já se viu com o episódio de Garelli, que pretendia contar os iní-
cios do Oratório nas Memórias, é possível que a história do órfão de Valsésia,
que indica o início da segunda instituição de Dom Bosco, também tenha
caráter simbólico. Não se pode subestimar de modo algum a importância da
casa anexa na expansão do Oratório como ponto de partida do enorme de-
senvolvimento que se seguiu. Pode-se dizer, portanto, que a história dos iní-
cios da “casa anexa ao Oratório” com um órfão (sem nome) de Valsésia forma
um díptico, pelo conteúdo e a retórica, com a história do mesmo início do

14
Trata-se da casa Pinardi.
15
As Notas históricas de 1862 estão num capítulo posterior.

510

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Os primeiros passos do Oratório

Oratório com um órfão (Garelli ?) de Asti. Não se deve desprezar a hipótese


de que as duas histórias pudessem ser simbólicas, mais do que históricas.
O tipo de “jovem órfão em perigo, sem casa, abandonado”, marca não só a
origem dos inícios, mas também define o caráter da obra durante o seu desen-
volvimento. Essa ideia foi mantida constantemente por Dom Bosco em seu
pensamento e em suas declarações, mesmo quando, por exemplo, acorreram
à escola do Oratório e, mais tarde, às demais escolas em outros lugares, jovens
que tinham casa, não eram abandonados nem órfãos e nem sequer estavam
(estritamente) em situação de risco.
Estudantes e aprendizes viveram na casa desde os inícios, como Pes-
carmona e Reviglio. Eram estudantes da escola secundária (bacharelado).
Outros nomes, identificáveis com facilidade, aparecem nos registros: Ângelo
Sávio (1850) e João Cagliero (1851) que, como Pescarmona, eram de Castel-
nuovo; Miguel Rua e João Batista Francesia (1852), ambos de Turim, tinham
frequentado o Oratório. Nessa época, os internos na Casa eram cerca de 30:
uns 20 aprendizes e uns 10 estudantes. Todos eles viviam com Dom Bosco e
Mamãe Margarida na casa Pinardi que, logicamente, estava superpovoada.16

A igreja de São Francisco de Sales (1852)


Embora a casa precisasse de um novo edifício para residência, depois de
adquirir a casa Pinardi e o terreno em 1851, o principal projeto de construção
de Dom Bosco foi a igreja de São Francisco de Sales, inaugurada em 20 de
junho de 1852.17 Entretanto, Dom Bosco não contava com um grupo sufi-
ciente de benfeitores. Em vista desse projeto, Dom Bosco lançou sua primeira
campanha em grande escala em busca de fundos, por meio de uma rifa benefi-
cente ou loteria, a primeira das nove que faria em seguida.18 O padre Cafasso,
à época Reitor do Colégio Eclesiástico, também reuniu algum dinheiro.

A residência na ala leste da “casa de Dom Bosco” (1853)


A residência até então era a casa Pinardi. Contudo, continuava a aumen-
tar o número de aprendizes e estudantes internos. Por isso, depois da inaugu-
ração da igreja de São Francisco de Sales, Dom Bosco começou a fazer planos

16
O padre Francisco Puecher, em seu relatório ao padre Rosmini, em junho de 1850, também
assinala que os internos na residência (casa Pinardi) eram cerca de 30.
17
Para a descrição detalhada dos projetos e da construção da igreja dedicada a São Francisco de
Sales, cf. F. Giraudi, L’Oratorio, 111-120. Para a história dos edifícios construídos entre 1851 e 1859,
cf. P. Stella, Economia, 86-100.
18
Sobre as solicitações de Dom Bosco às autoridades, o significado desta primeira rifa e de outras
que se seguiram, cf. J. Bracco, Don Bosco e le istituzioni, 130-138. A resposta da municipalidade aos
pedidos de Dom Bosco para a permissão de emitir loterias foi sempre razoável e positiva.

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Dom Bosco: história e carisma 1

para construir um edifício amplo, que substituísse a pequena casa Pinardi


como “residência anexa ao Oratório de São Francisco de Sales”. Seria locali-
zada entre a igreja de São Francisco de Sales a oeste e a casa Filippi, ainda não
adquirida, a leste, compreendendo o espaço ocupado pela casa Pinardi. Con-
tudo, como dificilmente poderia permitir-se eliminar a casa Pinardi, decidiu
construir somente a parte leste do edifício projetado.19
A obra caminhava bem até que, em 20 de novembro de 1852, parte
do segundo andar a leste desmoronou. Três operários feriram-se gravemente.
Dom Bosco, sem delongas, mandou que se reparasse o estrago. O trabalho
continuou, mas, quando a estrutura estava para chegar ao teto, à meia-noite
de 2 de dezembro de 1852, o edifício todo veio abaixo, comprometendo
também a parte da casa Pinardi onde estavam os aposentos de Dom Bosco.
Na manhã seguinte, enquanto os fiscais municipais examinavam o edifício,
a parede que ainda estava em pé também desmoronou. Como era inverno, a
obra foi paralisada. Para continuar a programação na residência, Dom Bosco
transformou a velha capela Pinardi em dormitório e dispôs as salas de aulas
diurnas e noturnas na igreja de São Francisco de Sales.
A obra foi reiniciada na primavera de 1853. Em março, a comissão mu-
nicipal paralisou os trabalhos e exigiu que se contasse com arquiteto e cons-
trutor diplomado. O primeiro construtor foi multado por negligência. O
edifício foi concluído em outubro de 1853 e logo ocupado, não sem risco,
pois o reboco não secara totalmente. A velha capela Pinardi transformou-se
então em sala de aulas e estudo. Dom Bosco transferiu-se a um quarto no
terceiro andar da ala leste da nova casa, conhecida desde então como a “casa
de Dom Bosco”. Mais tarde, com os novos acréscimos que se seguiram nessa
ala, o quarto transformou-se em sala de espera dos aposentos de Dom Bosco.
Nesse ano, dos 100 meninos residentes, uns 65% eram aprendizes que
trabalhavam fora, enquanto os demais, uns 35%, eram estudantes. Nessa
época (1853) teve início a organização das oficinas na casa.

A construção da ala oeste da residência.


Demolição do telheiro e da casa Pinardi (1856)
Com a construção de uma segunda seção da casa de Dom Bosco em
1856, foi iniciada uma nova expansão,20 que substituiria a casa Pinardi,
demolida não sem muita pena, ao mesmo tempo em que o telheiro-capela.

19
Cf. F. Giraudi, L’Oratorio, 127-132.
20
Cf. F. Giraudi, L’Oratorio, 127-132.

512

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Os primeiros passos do Oratório

Novamente, durante a construção, aconteceu um acidente quando se re-


tiravam os andaimes e as vigas de sustentação. Uma viga atravessou o teto
do andar mais elevado, que desmoronou, arrastando com ele parte dos
andares inferiores. O dano foi reparado e o edifício pôde ser ocupado em
outubro de 1856.
Os residentes chegaram a 200; agora, os estudantes superavam, em nú-
mero, 65% a 35% os artesãos. 21 Nessa época (1855-1856), foram introduzi-
dos na residência os cursos secundários (ginnasio: bacharelado).

Desenvolvimento da escola e do grupo de estudantes na casa


Desde outubro de 1847, quando foi aceito o primeiro estudante, até
1851-1852, Dom Bosco, ajudado pelo padre Merla, fora professor no en-
sino secundário.22 A partir de 1851-1852, Dom Bosco começou a mandar
os estudantes a escolas particulares da cidade. Os professores particulares,
Carlos Bonzanino e padre Picco, aceitaram gratuitamente os meninos po-
bres de Dom Bosco; estes eram indicados aos demais estudantes, a maioria
deles de famílias bem situadas, como modelos de dedicação aos deveres e de
boa conduta.
Em 1855-1856, Dom Bosco introduziu um programa de estudos secun-
dários na casa, conforme a reforma escolar de Boncompagni (1848); iniciou
pelo terceiro ano de bacharelado (ginnasio), tendo como professor o veterano
seminarista salesiano de 17 anos, João Francesia. Em 1859-1860 conseguiu
estabelecer um programa completo dos estudos secundários em regime de
internato com cinco anos de bacharelado (ginnasio), seguindo a programação
escolar de Casati (1859).23
A partir de então, o grupo de estudantes passou a adquirir importân-
cia crescente por várias razões. A primeira, porque, alinhado com a nova

21
Cf. P. Stella, Economia, 86-100; 180-181; F. Giraudi, L’Oratorio 111-131. Cf. também MB IV, 666.
22
Fazemos aqui apenas uma pequena referência à escola do Oratório e à comunidade de estu-
dantes. Informações mais detalhadas serão dadas no contexto da criação da primeira escola salesiana em
1863. Como também, será descrita mais adiante a comunidade dos artesãos ou aprendizes e das oficinas.
23
No início da Revolução Liberal e da Constituição de 1848, deu-se uma reforma escolar, obra
do ministro da Instrução Pública Carlos Bongiovanni. A reforma colocava toda a educação pública sob o
controle do Estado (substituindo a legislação educativa do rei Carlos Félix, de 1822) e eliminava, de fato,
o controle da Igreja. Entretanto, permitia a existência de escolas particulares, desde que cumprissem os
requisitos dos novos estatutos. Escola particular era aquela dirigida por um professor com a devida licen-
ça (em geral em sua própria casa) ou por uma instituição. Havia várias escolas desse tipo na cidade. Em
1859, o ministro Gábrio Casati, seguindo o programa liberal de secularização, publicou uma nova refor-
ma educativa de grande alcance, que exigiu a reorganização do programa de estudos na escola do Ora-
tório que, à época, já estava plenamente estabelecida com cinco anos de estudos secundários (ginnasio).

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Dom Bosco: história e carisma 1

política de educação popular adotada pelo Estado, Dom Bosco se sentiu


sempre mais comprometido com a educação através das escolas para os
pobres, com a finalidade de fazer deles “bons cristãos e honestos cidadãos”.
Em segundo lugar, como o número de estudantes era sempre maior, che-
gando a superar aos poucos os aprendizes, na proporção de 2 para 1, porque
a escola se converteu no melhor veículo para a “experiência” educativa de
Dom Bosco. Em terceiro lugar e mais importante, porque através da escola,
Dom Bosco pretendia cultivar vocações para o sacerdócio e, no seu caso,
para a Sociedade Salesiana, entre os meninos (pobres) que demonstrassem
boa conduta, boa vontade e inteligência.
Em relação a este último, a escola do Oratório, ao mesmo tempo em que
pretendia cumprir a lei em matéria de ensino, era dirigida como podia ser em
tempos de Restauração, ou seja, como um autêntico seminário menor.
De fato, ainda antes de estabelecer o programa completo de estudos
secundários no Oratório, Dom Bosco começou a fazer propaganda da re-
sidência e da escola do Oratório, sublinhando sua finalidade e seu caráter
caritativo. Elas eram pensadas para “órfãos” que fossem “desamparados e sem
residência fixa” (!). Em 7 de novembro de 1857, uma nota no diário católico
L’Armonia publicava um anúncio assinalando as condições de admissão, que
constituíam, idealmente, um manifesto da sua opção pelos pobres:

1. O menino deve ter 12 anos completos e não passar dos 18.


2. Deve ser órfão de pai e mãe, e não ter irmãos, irmãs ou outros
parentes que possam dar-lhe assistência.
3. Deve ser totalmente pobre e abandonado. Tendo cumprido as
duas primeiras condições, se tiver algum bem pessoal, deveria
levá-lo consigo para contribuir nos gastos, porque não seria justo
que vivesse da caridade de outros.
4. O menino deve ser sadio; não ter qualquer deformidade física e
não sofrer de doença repugnante ou contagiosa.
5. Serão admitidos preferencialmente os que participam do Oratório
de São Luís, do Anjo da Guarda e de São Francisco de Sales, pois
a casa é especialmente destinada a receber os meninos totalmente
pobres e abandonados.24
Como Lemoyne anota, essa declaração de intenções pretende ressal-
tar “publicamente” a opção preferencial pelos “pobres e abandonados” que
24
MB V, 753.

514

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Os primeiros passos do Oratório

inspirara inicialmente a criação da casa. Todavia, embora mostrasse em ge-


ral a situação da comunidade dos aprendizes, não refletia realmente a co-
munidade dos estudantes. Bom número destes, embora geralmente pobres,
não eram nem órfãos nem abandonados; alguns deles, ao menos em parte,
pagavam pensão pelo alojamento e estudo. Sabe-se disso pelos registros do
Oratório, como o Registro Familiar do próprio Dom Bosco.25
Dom Bosco não fez essa declaração por motivos estritamente publicitá-
rios; com ela, expressava seu autêntico compromisso com os carentes. Baric-
co, em sua descrição de Turim, escrita em 1868, nas duas partes dedicadas às
instituições escolares e de caridade, anota que os Oratórios de Dom Bosco
pertenciam à última categoria:

O Oratório de São Francisco de Sales, dirigido por Dom Bosco, deve ser clas-
sificado como instituição de caridade mais do que acadêmica. Os honorários
cobrados pela moradia e alojamento são extremamente modestos, e a maioria
de seus alunos é mantida gratuitamente. Talvez menos de uma centena pague
a cifra de 24 liras por mês. Dos 504 estudantes da residência do instituto, 445
estão matriculados na escola secundária [...].
No programa de estudos são matriculados jovens de boa conduta que con-
cluíram os cursos de estudos fundamentais. São aceitos totalmente gratuitos
(e são a maioria) ou contribuem com um modesto emolumento que vai de
5 a 24 liras por mês. Por outro lado, os aprendizes operários são admitidos
gratuitamente. Devem ter ao menos 12 anos e ser órfãos de pai e mãe, e não
ter ninguém que os possa assistir.26

Deve-se recordar também que os oratorianos, nos domingos e dias


festivos, continuavam a participar do Oratório em número sempre cres-
cente, para as funções religiosas, a instrução catequética e a diversão. Os
internos da casa uniam-se a eles nessas atividades, alguns como encarre-
gados e animadores.
Como o número de meninos que acorriam ao Oratório de São Francisco
de Sales nos domingos e dias festivos chegava a várias centenas, sentiu-se a
necessidade de abrir um segundo Oratório e, pouco depois, um terceiro. O
Oratório de São Luís foi criado em 1847, na região de Porta Nova, na parte
sul da cidade, e o Oratório do Anjo da Guarda, do padre Cocchi, no bairro
de Vanchiglia, foi reaberto por Dom Bosco em 1849.

25
Cf. P. Stella, Economia, 202-204; Lemoyne também anota que, mesmo antes de 1851, alguns
internos pagavam regularmente uma mensalidade, MB III, 611.
26
P. Baricco, Torino descritta II, 708 e 813.

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Dom Bosco: história e carisma 1

2. O Oratório de São Luís de Porta Nova (1847)27


O número dos meninos que acorriam ao Oratório de São Francisco
de Sales crescia sem parar, em grande parte por causa dos esforços de Dom
Bosco e do teólogo Borel, para proporcionar-lhes educação cívica e religiosa.
Nos dias festivos, eram tantos os meninos, que apenas um grupo podia entrar
na capela. Uns duzentos permaneciam no pátio enquanto se celebravam as
funções religiosas. Tampouco o pátio, embora grande, era amplo o suficiente
para permitir a recreação a tantos meninos.

Projeto de um novo Oratório


Após as funções da tarde, num dia festivo de agosto, Dom Bosco cha-
mou de lado o teólogo Borel e lhe disse: “O senhor terá notado que desde
alguns domingos, especialmente hoje, os meninos que vêm ao Oratório che-
gam a 800. Como se vê, não cabem todos na igreja, e os que entram ficam
tão apertados que dão trabalho. E, quanto mais tempo passar, será pior. Não
convém diminuir o número deixando alguns para fora, porque seria como
abandoná-los, ou pior, expô-los ao perigo de se perderem. Como fazer, então,
senhor teólogo?”.
Respondeu Borel: “Já notei, e convenci-me de que o local que inicialmen-
te parecia bastante espaçoso tornou-se muito pequeno. Teremos que partir
novamente e emigrar para outro lugar, assim como os grous e as andorinhas
fazem todos os anos?”.28
“Parece-me que poderemos nos organizar sem ter que deixar este local.
Pelas perguntas que tenho feito, sei que a terça parte dos meninos vem do
lado oeste da cidade e alguns devem fazer de 1 a 3 quilômetros de caminhada.
Pois bem, se abríssemos outro Oratório por aqueles lados, não lhe parece que
conseguiríamos o nosso intento, mesmo permanecendo aqui?”, respondeu
Dom Bosco.
A resposta de Dom Bosco deixou o sábio teólogo um tanto pensativo;
depois, exclamou com ar alegre: “Magnífica proposta”. “Dessa forma, tere-
mos duas vantagens”, continuou Dom Bosco, “ao diminuir o número dos
meninos deste Oratório, poderemos atender melhor os que ficarem. Além
disso, atrairemos para o novo Oratório muitos daqueles que vêm até aqui,
pois vivem muito distantes”.

Cf. a descrição do padre Bonetti em MB III, 268 e 281.


27

Recorde-se que Dom Bosco e o teólogo Borel ainda não tinham comprado a faixa de terra de
28

Pinardi, mas somente a tinham arrendado (do senhor Soave).

516

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Os primeiros passos do Oratório

Os dois amigos estavam perfeitamente de acordo. Na manhã seguinte,


Dom Bosco apresentou-se a dom Fransoni e expôs a questão e o projeto de
um segundo Oratório para as reuniões dos dias festivos, pedindo-lhe o apoio
e o iluminado conselho. O digníssimo arcebispo louvou e aprovou o projeto
e, conhecedor como era das necessidades do povo que lhe fora confiado, su-
geriu que o novo Oratório se instalasse no centro da cidade. Reanimado com
a resposta, Dom Bosco visitou a região e procurou um lugar adequado perto
de Porta Nova.

Escolha do local e negociação para o seu aluguel


Depois de pesar as vantagens e os inconvenientes de uma ou outra op-
ção, Dom Bosco decidiu escolher um lugar chamado Viale del Re (Avenida do
Rei) hoje avenida Vítor Manuel II, nas proximidades do Pó. O lugar, atual-
mente repleto de grandes construções, cruzado por ruas espaçosas e deliciosos
jardins, não era na época mais do que um grande terreno cheio de mato, com
alguns casebres espalhados desordenadamente e sem qualquer planejamento,
habitados quase todos por lavadeiras.
Como era uma extensão aberta, fora da cidade, prestava-se para reuniões
populares. Sobretudo nos dias festivos, juntavam-se bandos de meninos de-
socupados e ali muitos deles permaneciam durante a hora do catecismo e das
funções paroquiais, crescendo na ignorância religiosa, expostos a todo mal.
Era, pois, um lugar apropriado para a finalidade perseguida por Dom Bosco,
que, como experto capitão, o escolheu expressamente como posição estratégi-
ca para levantar o seu acampamento.
Havia no local uma pequena casa, com um mísero pórtico e um pátio.
Perguntou de quem era e soube que sua proprietária era a senhora Vaglien-
ti.29 Dom Bosco foi visitá-la, explicou-lhe seu plano e pediu que lhe alugasse
o local. A boa senhora estava disposta ao contrato, mas não sabia chegar a
um acordo sobre o preço do aluguel. A discussão prolongava-se e já estavam
a ponto de romper os acordos, quando um caso singular veio desfazer toda
dificuldade. O céu estava escuro. De repente, ribombou o estrondo de um
raio fragoroso. A piedosa senhora, espantada, dirigiu suplicante a Dom Bos-
co: “Se o Senhor me livrar do raio eu lhe cedo a casa pela soma que o senhor
me oferecer”. “Obrigado, senhora”, respondeu Dom Bosco, “peço ao Senhor
que a abençoe agora e sempre”. Poucos minutos depois, cessava o rumor
da trovoada, apagando-se os relâmpagos, e assinava-se o contrato por 450
liras. Podia-se dizer que o raio até favorecia a Dom Bosco e se convertia em

29
Não se anota outro nome da senhora Vaglienti. Cf. P. Stella, Economia, 644.

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Dom Bosco: história e carisma 1

intermediário benévolo. Enquanto se despedia dos inquilinos, chegavam os


operários para preparar a capela.

Anuncia-se o Oratório aos meninos


Certo domingo, Dom Bosco reuniu os meninos ao seu redor e anun-
ciou-lhes que logo seria aberto um segundo Oratório, servindo-se de um
exemplo adequado:

– Meus queridos filhos, quando as abelhas se multiplicam muito numa


colmeia, um enxame sai dela, formam uma nova família e voam para
habitar outros lugares. Como vedes, somos tantos aqui, que nem nos
podemos mexer. No mesmo pátio, a cada instante, alguém tropeça
em outro, cai por terra e quebra o nariz. Na igreja, estamos como sar-
dinhas num cesto. O que fazer? Vamos imitar as abelhas: formaremos
outra família e iremos abrir um segundo Oratório.

Essas palavras foram acolhidas com um grito de alegria. Esperou que o en-
tusiasmo juvenil se acalmasse e, então, o bom padre resumiu sua fala dizendo:

– Agora, estais curiosos para saber onde será aberto o novo Oratório
e quem de vós irá para lá; quereis saber quando ele se abrirá, logo
ou mais adiante; e que nome se vai dar a ele. Fazei silêncio e eu o
direi. O Oratório será aberto perto de Porta Nova, próximo à ponte
de ferro sobre o rio Pó. Portanto, deverão ir para lá os que moram
por aqueles lados; porque lhes fica mais perto, e também para atrair,
com seu exemplo, outros meninos daqueles lados.
– E quando será aberto?
– Os operários já estão trabalhando para preparar a capela, e eu espe-
ro que poderemos benzê-la no próximo dia 8 de dezembro, festa da
Imaculada Conceição de Maria. Dessa forma, do mesmo modo que
fizemos com o primeiro, abriremos o segundo Oratório num dia de-
dicado à Mãe de Deus, e o colocaremos sob a sua poderosa proteção.
– E como o chamaremos?
– Ele será chamado Oratório de São Luís, por dois motivos: primei-
ro, para oferecer aos meninos um modelo de inocência e virtude
como o que a própria Igreja nos propõe em São Luís Gonzaga, e
imitá-lo; segundo, em reconhecimento e gratidão ao nosso arcebis-
po dom Fransoni, que tanto nos quer, nos ajuda e nos protege. O
que vos parece? Estais contentes?

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Os primeiros passos do Oratório

A resposta foi uma estrondosa salva de “Sim, sim”, seguida de repetidos


vivas. A notícia correu da boca dos meninos às suas famílias e às escolas e
oficinas do bairro. Começou-se a ver grupos de meninos que iam visitar o
lugar do novo Oratório. Ao ver que era adequado aos seus jogos, ficavam sa-
tisfeitos, mas cada dia que passava sem que fosse aberto parecia-lhes um ano.
Resultou, então, que algumas semanas antes da inauguração, o Oratório já
era conhecidíssimo naquelas paragens.

A inauguração na festa da Imaculada Conceição


(8 de dezembro de 1847)
Ao aproximar-se do dia da abertura, foi pedido a dom Fransoni a fa-
culdade de benzer a capela do novo Oratório. O zeloso e sempre benévolo
arcebispo concedeu amplíssimas faculdades sem qualquer restrição.
Dom Bosco comunicou, no domingo anterior, que a inauguração do
anunciado Oratório seria celebrada da próxima festa da Imaculada; convidou
os meninos do sul da cidade para que estivessem pela manhã no local já co-
nhecido, e que haveria comodidade para se confessarem. Em seguida, seria
benta a capela e se celebraria a Missa em que poderiam comungar os que
estivessem preparados. Disse-lhes:

– Sim, dirigi-vos para lá, em muitos, com devoção, queridos filhos,


porque se trata de honrar devidamente a nossa queridíssima Mãe e Rai-
nha do Céu Maria Imaculada. Trata-se de implorar-lhe para que volte
seus olhos misericordiosos ao novo Oratório, que vos coloque sob o seu
manto, vos defenda e faça prosperar para o bem de muitos meninos.
Os que são desta região façam o mesmo no Oratório de São Francisco
de Sales. Assim, nesse dia memorável, seremos como duas famílias que,
embora separadas corporalmente, viverão unidas em espírito, celebran-
do nos dois extremos de Turim a mais santa, a mais amável de todas as
criaturas, a grande Mãe de Deus, sempre pura e Imaculada.
Ao sair da igreja, uma multidão de meninos rodeou Dom Bosco e o
teólogo Borel, enquanto um prometia levar um parente ao novo Oratório,
outro, o vizinho, outro ainda, um amigo. Os dois padres tiveram o feliz pres-
ságio de que, pela misericórdia de Deus, a nova obra não fracassaria.
À véspera da grande festa da Imaculada, já estava pronta a capela que
seria dedicada a São Luís. A caridade de vários benfeitores e benfeitoras, que
eram então os chamados cooperadores de Dom Bosco, tinha preparado um
quadro do santo, candelabros, velas, toalhas, alva, casula, capa pluvial, bancos,

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Dom Bosco: história e carisma 1

genuflexórios, um pequeno armário e uma mesa para a sacristia. Algumas se-


nhoras piedosas bordaram a maior parte dos ornamentos. Os poucos objetos
que ainda faltavam para as funções sagradas foram levados do Oratório de São
Francisco de Sales ou pedidos emprestados à paróquia próxima.
O dia 8 de dezembro de 1847 amanheceu em meio a uma espessa e
abundante nevada. Era o terceiro aniversário da bênção, no Pequeno Hospi-
tal da marquesa Barolo, da primeira capela do Oratório de São Francisco de
Sales que, a partir desse dia, recebeu o nome do dulcíssimo Santo e começou
a ampliar-se de modo surpreendente.30 Sinal de que também este segundo
Oratório faria, como o primeiro, muito bem à juventude.
O mau tempo não impediu que os meninos acorressem em grande nú-
mero. Às 7 da manhã, alguns já esperavam para se confessar e, pelas 8, a
capela estava cheia. O teólogo Borel realizou a cerimônia, pois Dom Bosco
devia atender ao Oratório de Valdocco. Benzeu a capela, celebrou a Missa e
dirigiu, depois, um pequeno afetuoso sermão aos meninos.

O Diretor e a equipe de animação


Foi adotado o Regulamento do Oratório de São Francisco de Sales, e
tudo era feito com os mesmos métodos. Como Dom Bosco não podia estar
pessoalmente à frente do novo Oratório, consultou o teólogo Borel e decidiu
confiá-lo a vários padres zelosos, que nas festas levavam com eles alguns me-
ninos mais velhos e inteligentes de Valdocco para ajudá-los.
O teólogo Jacinto Cárpano foi o primeiro diretor do novo Oratório, a
quem Dom Bosco e o teólogo Borel faziam frequentes visitas.31 Padre (Pedro)
Ponte foi o seguinte, ao qual sucedeu o padre (Paulo Francisco) Rossi, homem
muito zeloso, mas de saúde precária. Morreu ainda jovem, aos 28 anos. Seguiu-
-se um intervalo de vários anos nos quais não houve um diretor fixo. Nessa
época, Dom Bosco teve à disposição alguns seminaristas que enviava ao “São
Luís” aos domingos e dias festivos. A cada semana cabia a um padre de Turim ir
até lá para confessar e dizer a Santa Missa, como também pregar. Em algumas
ocasiões, pôde contar com um padre para a pregação e as devoções da tarde.
Algum tempo depois, Dom Bosco pediu ao padre (Leonardo) Murialdo
que aceitasse o posto de diretor do Oratório de São Luís. Os meninos apro-
veitaram muito enquanto padre Murialdo esteve com eles, quando então foi

A primeira capela do Oratório, benta e dedicada a São Francisco de Sales em 8 de dezembro


30

de 1844, não se situava no Refúgio, mas nas dependências dos padres do Pequeno Hospital, embora
Dom Bosco vivesse no Refúgio com o teólogo Borel.
31
Os traços biográficos do padre Cárpano são apresentados no apêndice a seguir.

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Os primeiros passos do Oratório

nomeado diretor da Escola dos Aprendizes, outra instituição muito útil de


Turim.32 Padre (Teodoro) Scolari foi o diretor seguinte; trabalhou ali durante
alguns anos com zelo admirável. Enfim, Dom Bosco confiou o Oratório de
São Luís a diversos padres de Valdocco. O Oratório ainda existe, vinculado
agora à escola e igreja de São João Evangelista erigida na mesma propriedade.

Padre (São) Leonardo Murialdo (1828-1900).

Oposição de várias frentes


O Oratório de São Luís foi uma das fundações de Dom Bosco que, des-
de o início, sofreu mais duramente as perseguições. Os ataques começaram
pelas lavadeiras que viviam no lugar. Ficaram furiosas quando se inteiraram
que Dom Bosco alugara o local para estabelecer um Oratório; depois de mui-
tas discussões entre si, puseram-se de acordo para, com ameaças e injúrias,
assediarem o pobre padre a fim de fazê-lo desistir do contrato.33 Foi quando,
certo dia em que Dom Bosco e a senhora [proprietária] foram visitar os locais

Os traços biográficos de (São) Leonardo Murialdo são apresentados no apêndice a seguir.


32

Grupos de lavadeiras exerciam o seu trabalho em alguns locais ao longo às margens do rio Pó,
33

que estava muito perto, a leste.

521

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Dom Bosco: história e carisma 1

alugados para ver o que se podia arrumar, viram-se cercados por uma dúzia
daquelas mulheres, que protestavam com todo tipo de ameaças e insultos.
Dom Bosco tentou acalmá-las, mas em vão. A senhora, enfim, convenceu-as:

– Estais enganadas, minhas queridas inquilinas; acreditais que este


padre venha tirar-lhes o pão, mas é o contrário, vem dar-vos mais
dele. Neste momento, ele coloca aqui um Oratório, depois criará
um colégio para meninos e vos dará roupa a lavar, meias a costurar,
camisas e lençóis a remendar e tudo o mais. Então, por que vos
colocais contra ele em vez de agradecer-lhe? Para moradia, eu mes-
ma vos preparei outra aqui perto. Assim, continuareis perto do Pó,
tereis comodidade para lavar e estender a roupa ao sol e, ao mesmo
tempo, tereis mais trabalho e mais ganhos.
As palavras da senhora surtiram o efeito desejado. As lavadeiras se tran-
quilizaram e pediram perdão a Dom Bosco pela insolência. Depois deste
pequeno incidente, deixaram em paz o Oratório e o seu fundador.
Outras dificuldades maiores esperavam por Dom Bosco. Uma petição
apresentada ao rei Carlos Alberto por diversos cidadãos solicitava a emancipa-
ção de judeus e valdenses.34 Recebida a aprovação, os judeus em pouco tempo
chegaram a ser os mais ricos proprietários do Piemonte. Os pastores valdenses
também saíram dos vales e das montanhas onde viviam isolados e estenderam-se
pelas principais cidades do norte da Itália, cogitando todos os meios para semear
a cizânia de seus erros perniciosos, procurando atrair o povo para as doutrinas
de Waldo. A fim de obter mais facilmente sua finalidade, distribuíram livros,
abriram escolas, fizeram conferências, criaram capelas e construíram templos.
Dom Bosco e o Oratório de São Luís Gonzaga foram os primeiros a
experimentar os frutos amargos da liberdade, porque os valdenses, instalados
em Turim, foram estabelecer-se perto desse Oratório. Ali, com o pretexto de
explicar a Bíblia, falavam com veemência contra o Papa, os bispos, os padres,
o celibato, a confissão, a Santa Missa, o purgatório, a invocação dos santos e,
principalmente, contra Maria Santíssima. Acreditavam que suscitariam gran-
de entusiasmo entre o povo e atrairiam pessoas sensatas que os escutassem;
contudo, logo se desenganaram, pois pouquíssimos turineses atreveram-se a
renunciar à própria fé e frequentar suas assembleias. Os seduzidos não passa-
ram de algumas dezenas: jovenzinhos ociosos, ignorantes e de maus costumes,
que só esperavam um pretexto para não praticar a própria religião.

A concessão de direitos civis e liberdade de culto aos judeus e valdenses (protestantes) foi pro-
34

posta em novembro de 1847 e promulgada como lei com a Constituição (Statuto) em março de 1848.
Fazia parte das reformas liberais concedidas pelo rei Carlos Alberto.

522

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Os primeiros passos do Oratório

Houve entre eles certo Pugno, sapateiro pobre que, cansado de manejar
suas ferramentas, chegou a ser um dos pregadores mais raivosos. Várias vezes
foi visitar Dom Bosco para discutir com ele; e, a não ser pela compaixão que
o pobre homem despertava, seria o caso de rir às escâncaras, ouvindo fan-
farrear um remendão convertido da noite para o dia em teólogo e apóstolo!
Quando os protestantes viram que não podiam fazer muitos prosélitos entre
os adultos, adotaram outro método que, infelizmente, resultou sempre válido
para desencaminhar as almas. Tinham dinheiro e usaram-no para corromper
a juventude, que não suspeitava da finalidade dos valdenses. Essa finalidade
foi levada em seguida à prática e o primeiro objetivo foi o Oratório de São
Luís, que estava ao lado e era então frequentado por quase 500 meninos.
Num domingo, alguns dos sectários ficaram no caminho que levava ao Ora-
tório; outros se colocaram o mais perto possível do lugar do recreio; e, com
palavras amáveis ou frases picantes, procuravam atrair os meninos: “O que
ides fazer ali? Vinde conosco, e vos levaremos a divertimentos agradáveis;
ouvireis coisas interessantes e vos daremos 80 centavos [de lira] e um livro
muito bonito”.
Quem conhece a volubilidade juvenil e o provérbio “cavalheiro podero-
so é o senhor dinheiro”, não se admirarão de alguns meninos terem embar-
cado nessas promessas. Dessa forma, uns 50 meninos foram às reuniões dos
valdenses. Depois do sermãozinho, cada menino recebeu os 80 centavos e o
livro do famoso apóstata De Sanctis, contra a confissão.
Depois de receber o pagamento e o convite para retornar, vários meni-
nos, sem perceber a fraude em que se tinham metido, apresentaram-se in-
genuamente na mesma tarde no Oratório e contaram o que tinha aconteci-
do. Então, o sábio diretor, teólogo Cárpano, tomou ciência de que os lobos
atentavam contra a vida dos cordeiros que Dom Bosco lhe havia confiado
e incendiou-se de santo zelo para impedir os estragos. Confiscou todos os
livros que pôde e, depois, valendo-se da parábola evangélica do Bom Pastor,
do mercenário e do lobo, explicou também aos meninos a trama dos hereges,
infundindo-lhes tanto horror às suas reuniões, que todos lhe prometeram não
irem mais, nem por todo o ouro do mundo, àquelas reuniões. Contudo, as
batalhas continuaram a ser tão furiosas e repetidas que Dom Bosco, o teólogo
Borel e o teólogo Cárpano passaram dias e horas tremendas.
No domingo seguinte os sequazes dos valdenses voltaram a esperar os
meninos para tirá-los do Oratório; desta vez, porém, não lhes foi tão fácil, por-
que os jovens mais velhos, prevenidos pelos superiores, os vigiavam, estavam
atentos aos seus passos e logo que os viam dirigir-se aos meninos do Oratório,
diziam-lhes que, sem falar nada, fossem diretamente ao Oratório tão depressa

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Dom Bosco: história e carisma 1

quanto pudessem. Os discípulos de Pedro Valdo, diante de argumentos tão


vivos, gostariam de responder com violências; mas, vendo-se inferiores em nú-
mero e temendo receber, em vez de dar, retiraram-se dizendo: “Voltaremos a
nos ver”. Com esse modo ameaçador de proceder entendia-se que a questão se
revestiria de aspecto mais grave no domingo seguinte. Por isso, a fim de evitar
perigos e contratempos desagradáveis, os meninos foram aconselhados a, da-
quele dia em diante, quando aqueles infelizes se aproximassem, eles voltassem
as costas sem dizer nada e entrassem no pátio do Oratório.
Veio, então, o domingo seguinte e cumpriram-se as previsões. À tarde,
30 ou 40 rapazes apresentaram-se numa determinada hora no campo vizi-
nho. À sua vista, os meninos do Oratório, obedecendo ao conselho recebido,
retiraram-se como cordeirinhos ao próprio redil; os recém-chegados, porém,
começaram a lançar pedras furiosamente. Caíam pedras contra as portas, pe-
dras contra as janelas, pedras nos telhados, pedras entre os garotinhos atemo-
rizados, alguns dos quais ficaram feridos.
E não foi esta a única vez que em aconteceram cenas tão dolorosas. Du-
rante vários meses renovaram-se quase em todas as reuniões, com pesar de Dom
Bosco e de seus ajudantes, como é fácil de imaginar. Os hereges e seus iniciados,
não conseguindo envolver os jovens em suas redes, pensaram em, ao menos
longe do Oratório, amedrontá-los com suas ameaças. Atacavam-nos a pedradas
quando caminhavam em pequenos grupos e, na maioria das vezes, esperavam
que estivessem na igreja, lançando, então, uma verdadeira chuva de pedras con-
tra a porta e as janelas assustando e fazendo chorar os menores, e obrigando o
diretor a suspender as funções sagradas. E ainda se teve que sofrer outros fatos
lamentáveis. Certo dia, os teólogos Borel e Cárpano estavam na sacristia, prepa-
rando-se para a bênção. Um sicário, tendo subido à janela que dava para a rua,
disparou-lhes dois tiros de pistola, e as duas balas, roçando o rosto dos padres,
cravaram-se na parede oposta. Deve-se imaginar o pânico que se propagou por
toda a Igreja e a alegria que se seguiu vendo-se o golpe falido. Vê-se claramente
que os inimigos não agiam por brincadeira: queriam fechar o Oratório a todo
custo. Dom Bosco e seus ajudantes, contudo, tiveram tanta constância e fortale-
za que acabaram por serem senhores da situação.
Passaram-se muitos anos desde aquela época, e o Oratório de São Luís
continuou a prosperar. Além disso, no lugar da pequena capela onde foram
disparadas as balas, ergue-se hoje a bela igreja de São João Evangelista, um
dos mais belos edifícios religiosos de Turim. Com a generosidade dos Salesia-
nos Cooperadores, Dom Bosco pôde erigir essa Igreja como demonstração
permanente de afeto e gratidão a Pio IX.35
35
A igreja de São João Evangelista e o edifício do colégio foram planejados por Dom Bosco no
final da década de 1870 e construídos em 1882.

524

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Os primeiros passos do Oratório

3. O Oratório do Anjo da Guarda no bairro de


Vanchiglia (1849)

O Oratório do Anjo da Guarda do padre Cocchi


A noroeste da cidade de Turim existe o bairro de Vanchiglia, habitado
em sua maior parte pelas classes sociais mais baixas. Nessa época, havia na
parte mais ao sul do bairro, um grupo de casas chamadas Moschino, cujos
habitantes, sobretudo os jovens, eram um grande problema para a polícia.
Perto do lugar, o padre (João) Cocchi, um dos padres da paróquia da Anun-
ciação, fundou um oratório semelhante ao nosso, em suas finalidades.36 A
ele acorriam, sobretudo, meninos mais velhos que eram atraídos, principal-
mente, pelos jogos e diversões oferecidos. Com esses meios, o bom padre
conseguia mantê-los afastados das más companhias e dos lugares perigosos
de divertimento.

Motivos do fechamento do Oratório em 1849


O Oratório foi fechado em 1849, principalmente pelas suas dívidas.
Recrudescera a guerra entre Itália e Áustria, que inflamou a chama patriótica
e o ardor guerreiro entre aqueles jovens já estavam acostumados a manejar
a espada e o rifle em combates simulados. Ansiosos por participar de um
exercício bélico real, muitos deles alistaram-se e arrolaram-se no exército. No
início estavam muito animados e, em sua imaginação, acreditavam-se capa-
zes de realizar atos de bravura e voltar cobertos de glória. Contudo, depois
de uma longa marcha e antes de conseguirem chegar ao campo de batalha,
inteiraram-se da derrota do exército do Piemonte. Isso causou um duro golpe
e o fim de suas esperanças imaginárias, retornando tristes para Turim.
Entretanto, além do abandono de grande número de meninos, outra di-
ficuldade contribuiu para o fechamento do Oratório. Padre Cocchi sonhara
com uma casa para os aprendizes pobres e começara por alugar uma pequena
casa e acolher vários meninos. Como era pobre, viu-se obrigado, como Dom
Bosco, a buscar na caridade os meios para conduzir o projeto; com isso, o
trabalho caritativo e outras ocupações na paróquia impediram-no de reabrir
o Oratório.

36
Esta breve descrição da reabertura por Dom Bosco do Oratório do Anjo da Guarda do pa-
dre Cocchi foi tomada, adaptando-a, do padre Bonetti, Storia dell’Oratorio, 159-160. A descrição
do fechamento do Oratório durante a Primeira Guerra do Piemonte contra a Áustria torna óbvio o
“patriotismo” do padre Cocchi.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Reabertura do Oratório em 1849


As coisas caminharam assim por vários meses, até que Dom Bosco e o
teólogo Borel, cientes da grande necessidade de um oratório para os domin-
gos e dias festivos no bairro de Vanchiglia, conversaram sobre o assunto com
o padre Cocchi. Sua opinião era de que Dom Bosco assumisse a obra; assim,
logo depois, nos inícios de outubro, com a aprovação do arcebispo, o Orató-
rio foi reaberto com o mesmo nome de Anjo da Guarda.
Padre (Jacinto) Cárpano foi nomeado seu primeiro diretor.37 Foi suce-
dido pelo padre (João B.) Vola e mais tarde pelo padre (Roberto) Murialdo.
Este, bem conhecido pela piedade e zelo, dirigiu a difícil obra durante vários
anos e, sob a sua direção, o Oratório floresceu e prosperou mais do que o
esperado. Os meninos que o frequentavam chegaram muitas vezes a 300 e, às
vezes, 400; por isso, em pouco tempo, a pequena capela não pôde conter a to-
dos e foi preciso torná-la maior. As funções religiosas, as práticas de piedade,
os jogos etc., que ali se praticavam, eram os mesmos em vigor nos Oratórios
de São Francisco de Sales e de São Luís.

Encerramento do Oratório do Anjo da Guarda e anexação


ao Oratório da Barolo, junto à Paróquia de Santa Júlia
O Oratório do Anjo da Guarda continuou no mesmo lugar, sob a orien-
tação de Dom Bosco, até 1866. Nesse ano, a marquesa Barolo construiu a
igreja paroquial dedicada a Santa Júlia. A rica e caridosa senhora também
contribuiu para erigir um oratório ao lado da igreja, com a finalidade de dar
instrução religiosa às crianças durante a Quaresma e nos domingos e dias
festivos. Quando foi aberto, Dom Bosco, vendo que ele era suficiente para
atender às necessidades da vizinhança, encerrou o velho Oratório e enviou os
padres e seminaristas ao Oratório de São José, no subúrbio de São Salvário,
onde eram muito necessários.38

37
Ver os traços biográficos do padre Cárpano no Apêndice a seguir.
38
Sobre o Oratório de São José, assumido por Dom Bosco na década de 1860, se tratará mais adiante.

526

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Apêndice

O MARQUÊS LUÍS FRANSONI (1789-1862),


ARCEBISPO DE TURIM

O marquês Luís Fransoni nasceu no seio de uma nobre família genovesa


em 29 de março de 1789. Durante seus primeiros anos, em plena Revolução
Francesa e o período napoleônico, ele e sua família viveram no exílio, viajan-
do por toda a Itália (Florença, Nápoles, Roma). Essa experiência deixou no
coração de Luís uma profunda aversão aos movimentos revolucionários dos
quais sua família fora vítima.
Por tradição familiar e por temperamento pessoal, abraçou a causa con-
servadora. É provável que sua atitude tardia contra as reformas liberais (edu-
cação das massas, criação de programas sociais, desenvolvimento da indústria
e tecnologia) estivesse, em parte, fundada nas experiências pessoais. Era tam-
bém o resultado de uma política intransigente em defesa das prerrogativas
mantidas até então pela Igreja como suas.
Um de seus irmãos, Santiago, 16 anos mais velho do que ele, era padre
em Roma, e mais tarde chegou a ser cardeal e prefeito da Sagrada Congrega-
ção de Propaganda Fide. Luís começou o estudo da Teologia em 1810, mas
só recebeu o hábito clerical quando retornou de Gênova em 1814. Sua for-
mação pastoral teve uma orientação antirrigorista, mas a educação em geral e
a formação teológica em particular careceram da profundidade exigida pelos
importantes temas que deveria enfrentar. Isso se refletiria depois em atuações
concretas relativas aos seminários e à formação do clero.

Arcebispo de Turim e a chegada da Revolução Liberal


Em 1821, aos 32 anos, foi nomeado bispo de Fossano. Dez anos depois,
à morte do arcebispo Columbano Chiaverotti em 1831, foi nomeado admi-
nistrador da arquidiocese de Turim e, em 24 de fevereiro de 1832, proposto
pelo rei Carlos Alberto, como arcebispo, cargo que manteve durante trinta
anos, até sua morte no exílio em 1862.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os primeiros doze anos do seu mandato na arquidiocese de Turim


foram pacíficos. Caracterizam-se por um bom relacionamento com a mo-
narquia e as autoridades do Estado. Contudo, de 1844 a 1847, ao iniciar-se
a implantação das reformas liberais e sem que a situação política fosse
alterada, esses relacionamentos se romperam e terminaram em confronto
e oposição. Em 1844, o rei Carlos Alberto fundou na universidade uma
Escola Normal de Professores e convidou o famoso educador Ferrante
Aporti para ministrar uma série de aulas sobre metodologia. O arcebispo,
contrário a essa nomeação, proibiu ao clero a participação em suas au-
las. Em outubro de 1847, num clima de crescente euforia liberal, foram
aprovados os decretos sobre a liberdade de imprensa e de religião. Esses
decretos permitiam a edição e circulação de livros e periódicos de dife-
rentes tendências políticas e concediam os direitos civis e a liberdade de
culto aos judeus e valdenses.
A oposição do arcebispo às reformas liberais, que já expressara em di-
versos âmbitos, radicalizou-se ainda mais. As primeiras pessoas que se viram
afetadas por esse confronto foram os seminaristas e as Faculdades de Teologia
da Universidade e do Seminário. Seguiu-se um período (1847-1849) de con-
flitos e de profunda crise entre o clero e o laicato católico. Pôs-se à prova, de
modo especial, a identidade vocacional dos seminaristas e dos padres jovens,
porque se viram aprisionados entre lealdades conflitantes, além da atração
por essas ideias e da euforia patriótica e o nervosismo dominante devido à
Revolução Liberal.
As justas demandas dos cidadãos, os importantes e urgentes temas em
debate (reformas liberais, constituição, Guerra da Independência italiana
contra a Áustria etc.) entraram em conflito com a inquebrantável oposição
do arcebispo a qualquer reforma liberal. Ele pensava que toda mudança po-
lítica e social era obra do perverso espírito revolucionário, que buscava des-
fazer a obra da Igreja e o estilo de vida tradicional. Causou grande mal-estar
a rigidez das normas do arcebispo que proibiam aos seminaristas e ao clero a
participação em manifestações e atos públicos de natureza patriótica. Muitos
seminaristas e padres ignoraram essas diretrizes, e o arcebispo reagiu, suspen-
dendo-os da ordem e do exercício do ministério. Em fevereiro de 1848, ele
fechou o seminário; os seminaristas que aceitaram as normas do arcebispo
foram readmitidos nos seminários de Chieri e Bra.
A partir de fevereiro de 1848, dom Fransoni começou a receber ataques
pessoais na imprensa e outras manifestações hostis; teve de suportar inclusive
insultos da coletividade. Suas aparições públicas eram ocasião de demonstra-
ções de hostilidade da parte de provocadores anticlericais e do populacho.

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Os primeiros passos do Oratório

Com a conivência policial, chegou a estar frequentemente em perigo. Tinha-se


convertido em símbolo da ruptura que estava se dando entre o Estado liberal
e a Igreja.

Exílio “voluntário” e retorno


O arcebispo estava disposto a permanecer no posto, mas em março de
1848, pelas pressões que chegavam de vários ambientes, e a “convite” do
Governo, exilou-se “voluntariamente” na Suíça, onde ficou até 1849, quando
retornou ao reino de Chambéry (Saboia) aceitando o convite do arcebispo
local. Nesse tempo foi apresentado um pedido para o seu retorno, assinado
por um milhar de padres de Turim, ao ministro de Assuntos Eclesiásticos e
Justiça, o conde Clemente Solaro della Margherita. O arcebispo Fransoni
retornou a sua diocese em 26 de fevereiro de 1850.

Prisão e exílio definitivo


O tempo do seu exílio “voluntário” fora uma época de caos. A alocução
papal de 29 de abril de 1848, em que Pio IX declarou sua neutralidade na
Primeira Guerra da Independência, abalou o povo e marcou o colapso do
movimento neoguelfo. Seguiu-se o sobressalto da fuga do Papa e a decla-
ração da República Romana de Mazzini (1848-1849). À confusão política,
acrescentou-se a derrota do exército italiano na guerra e a abdicação do rei
Carlos Alberto. Em 25 de fevereiro de 1850 veio a acrescentar-se a lamentável
aprovação do projeto de lei Siccardi que abolia antigos privilégios da Igreja.
O retorno do arcebispo, portanto, aconteceu num momento muito crítico.
Vítor Manuel II e seu Governo tentaram persuadi-lo a partir novamente. Na
verdade, estavam decididos a tirá-lo do caminho. Ele, porém, recusou-se. A
Lei Siccardi deu-lhe a oportunidade de dirigir uma circular aos membros
do clero da arquidiocese prescrevendo um modus operandi temporal que se
devia cumprir (no caso de que, por exemplo, um padre fosse levado perante
o tribunal civil), até que a Santa Sé decretasse a norma a seguir. A carta foi
considerada um delito e o arcebispo levado perante o tribunal. Não deu im-
portância à citação e foi condenado à revelia a um mês de prisão na fortaleza
militar da cidade e a pagar uma multa. Ao sair da prisão (2 de junho), en-
frentou uma nova crise. O ministro da Agricultura e Comércio, conde Pedro
Derossi di Santarosa, que, como membro do Governo D’Azeglio, votara a
favor do projeto da Lei Siccardi, estava em ponto de morte. Como católico
praticante, pediu os últimos sacramentos. O arcebispo solicitou a assessoria
de uma comissão de teólogos, que incluía o padre José Cafasso, e sua opinião
foi que o conde devia reparar o escândalo com uma retratação pública. Ele

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Dom Bosco: história e carisma 1

se negou e morreu sem receber o viático, embora tenha recebido a absolvi-


ção sacramental e a sepultura cristã na Paróquia de São Carlos. O funeral
converteu-se em motim; o pároco e sua comunidade, dos Servos de Maria,
foram expulsos da paróquia e do convento.
O arcebispo foi acusado de abuso de poder, de atividades contra o Es-
tado e de ruptura da paz. Em 7 de agosto, foi detido em sua casa de campo
e encarcerado na fortaleza de Fenestrelle. Posteriormente, foi condenado ao
exílio perpétuo. Em 28 de setembro de 1850, uma escolta acompanhou-
-o até a fronteira francesa. Optou por instalar-se em Lyon. De ali, durante
doze anos, manteve-se em contato com sua diocese através de uma rede de
homens de negócios dignos de confiança, que transmitiam relatórios aos vi-
gários da diocese, por meio do padre Anglésio Cottolengo, que atuava como
intermediário. Dessa forma, embora não satisfatoriamente, ele “governou” a
arquidiocese. Negou-se a pedir demissão, apesar de, em Turim, o Governo
ter tentado obter a sua renúncia, mesmo quando a sugestão de que deveria
fazê-lo chegou-lhe do próprio Santo Padre. O arcebispo Fransoni morreu em
Lyon no dia 26 de março de 1862.
Homem de grande integridade, assim como de consciência honesta e
entusiasta, dom Fransoni foi, sobretudo, um bispo aguerrido. Deu abun-
dantes provas disso, embora com grande perda pessoal, pela sua decidida
defesa daqueles que considerava direitos da Igreja. Fosse por formação ou por
caráter pessoal, não soube estar à altura do momento histórico; identificou
muitas vezes a causa da Religião e da Igreja com a causa de um conservadoris-
mo extremo. Agarrou-se sem concessões aos ideais da antiga ordem política e
social e opôs-se aos democratas revolucionários que tentavam e conseguiram
fazer do Ressurgimento uma cruzada contra a Igreja, considerada como ini-
miga do progresso e, em geral, do bem-estar do povo italiano.

Dom Fransoni e Dom Bosco


O arcebispo ordenou Dom Bosco em 1841, depois de lhe permitir que
fizesse privadamente o quarto ano de Teologia, durante o verão de 1840. Nos
anos de permanência no Colégio Eclesiástico, Dom Bosco conversou frequen-
temente com o arcebispo, que acolheu os planos do seu Oratório e concedeu-
-lhe a aprovação e a bênção pastoral. Criou-se uma grande familiaridade entre
o prelado santo e o padre zeloso. Dom Bosco não deu passo sem primeiro
consultar-se com o arcebispo. Só depois solicitaria da Igreja a aprovação da
sua obra. “Desde que iniciei em 1841 a obra dos oratórios, com um simples
catecismo... tudo fiz com o consentimento e sob a direção de dom Fransoni”.39

39
MB II, 69-75.

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Os primeiros passos do Oratório

“Como não iniciava nada sem informar verbalmente ou por escrito a dom
Fransoni, ia frequentemente visitá-lo no palácio, onde sempre era bem rece-
bido [...]. Além disso, com suas visitas ao palácio arquiepiscopal, Dom Bosco
participava dos sofrimentos e das alegrias do seu superior eclesiástico”.40
Tudo parece indicar que Dom Bosco visitou dom Fransoni quando es-
teve preso. Além do verdadeiro afeto e do seu sentimento de lealdade, é de se
supor que Dom Bosco compartilhasse os pontos de vista políticos conserva-
dores do arcebispo.
O arcebispo apoiava Dom Bosco em seu trabalho e, depois de ter co-
municado aos párocos, concedeu-lhe certa “jurisdição” sobre os meninos do
Oratório para prepará-los e admiti-los, por exemplo, à primeira Comunhão
e à Confirmação e ao cumprimento do preceito pascal.41 Por isso, Dom Bos-
co entendeu que o Oratório poderia funcionar como uma “paróquia”. O
arcebispo visitou pela primeira vez o Oratório na festa de São Luís, em 21
de junho de 1847, para administrar a Confirmação. O Oratório de São Luís
(1847) foi assim chamado em homenagem ao arcebispo.42
Na época da crise do Oratório (1849-1852), criada pela diversidade de
critério nos assuntos de administração, educação e política, o arcebispo, que es-
tava no exílio, nomeou Dom Bosco como único diretor espiritual dos três ora-
tórios com um decreto oficial de 3 de março de 1852.43 Mais tarde, Dom Bosco
citaria o decreto como prova de que a Igreja aprovava a sua Pia Sociedade.
O arcebispo Fransoni continuou a favorecer Dom Bosco, inclusive con-
tra o conselho da sua Chancelaria, como, por exemplo, no tema da admissão
e formação dos seminaristas diocesanos no Oratório que, na prática, funcio-
nou como “seminário substituto” da diocese de 1849 a 1863, anos em que o
seminário de Turim permaneceu fechado.
Em 1858, Dom Bosco pôde mostrar a Pio IX uma carta em que dom
Fransoni o pressionava a criar uma instituição permanente que continuasse
a obra dos oratórios. Em 1860, Dom Bosco enviou ao arcebispo no exílio, o
primeiro rascunho das Constituições Salesianas, assinado por 22 membros.
O arcebispo animou-o, mesmo quando declinou de expressar a sua opinião.
Dom Bosco demonstrou-lhe gratidão fazendo com que fosse representado
no relevo das portas de bronze da igreja de São João Evangelista, no Oratório
de São Luís.
40
MB II, 185-186.
41
MB III, 196.
42
MB III, 228.
43
MB IV, 378.

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Dom Bosco: história e carisma 1

O TEÓLOGO JACINTO CÁRPANO (1821-1894)


Jacinto Cárpano nasceu em Turim, em agosto de 1821, onde morreria
em 26 de maio de 1894. Foi um dos primeiros colaboradores de Dom Bosco
nos tempos do Oratório ambulante. Em 1844, logo depois da ordenação,
o padre Cafasso “indicou-o” para ser ajudante de Dom Bosco e, com a sua
ajuda, Dom Bosco restaurou as aulas noturnas que funcionaram com des-
continuidade por falta de professores.44 Quando o Oratório se estabeleceu
no telheiro Pinardi (abril de 1846), o padre Cárpano ofereceu um tecido
muito fino para fazer as toalhas do altar.45 No verão de 1846, enquanto Dom
Bosco convalescia nos Becchi, ele dirigia o Oratório, com outros padres, sob
a direção do teólogo Borel. Ele também proveu com frequência o dinheiro
para a alimentação durante as excursões dos meninos. Compôs alguns versos,
musicados pelo padre Luís Nasi, que os meninos cantaram para celebrar a
recuperação e o regresso de Dom Bosco, em 8 de novembro de 1846.46
Em 29 de junho de 1847, foi celebrada pela primeira vez a festa de
São Luís no Oratório. Dom Fransoni aceitou o convite, mas não pôde usar
a mitra na capela porque o teto era muito baixo. Como diversão, o teólogo
Cárpano encenou uma comédia intitulada Um cabo de Napoleão.47
As Memórias Biográficas narram um estranho incidente no outono de 1847.
Dom Bosco estava em visita ao padre Rosmini em Stresa; o teólogo Cárpano
com dois meninos de nome Barretta e Costa encarregaram-se do Oratório. Estes
jovens ajudavam no Oratório e cantavam no coro com vozes principais. Naquele
fim de semana, o teólogo Cárpano e os dois jovens não foram cumprir os seus
deveres no Oratório. Dom Bosco adivinhou o fato e, ao voltar, enfrentou-os
separadamente. Padre Cárpano sentiu-se muito mal, pensando que os meninos
tinham contado o fato a Dom Bosco, mas aceitou a censura com humildade
quando soube que Dom Bosco soubera por si só da sua ausência.48
O Oratório de São Luís começou a funcionar no dia da festa da Ima-
culada Conceição de 1847 e o teólogo Cárpano foi nomeado seu primeiro
diretor. Sofreu muito, até com um atentado à sua vida quando se preparava
para dar a bênção com o Santíssimo.49

MB II, 346.
44

MB II, 430.
45

46
José Buzzetti conservou aqueles versos e entregou-os ao padre Lemoyne pouco antes da sua
morte. Cf. MB II, 501.
47
MB III, 228.
48
MB III, 250.
49
G. Bonetti, Cinque lustri, 113-117.

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Os primeiros passos do Oratório

Em 1849, padre Ponte foi nomeado diretor desse Oratório enquanto o


teólogo Cárpano foi nomeado diretor do Oratório do Anjo da Guarda, no
bairro de Vanchiglia, cargo que ocupou até 1853. As Memórias Biográficas
narram a difícil situação do Oratório do Anjo da Guarda e como o padre
Cárpano se fazia amigo dos meninos de Vanchiglia.50 Godofredo Casalis es-
creve sobre a caridade do padre Cárpano:
Gostaria de mencionar os planos do teólogo Cárpano de abrir uma casa
para trabalhadores despedidos dos hospitais e que não puderam encontrar
logo um emprego, ou não tiveram a possibilidade de retornar ao trabalho. Ele
está totalmente decidido a continuar e concluir o projeto, se a ajuda desejada
não se fizer esperar.51
Quando padre Cárpano foi nomeado capelão do Cemitério da Santa
Cruz (São Pedro in vincoli), renunciou ao Oratório do Anjo da Guarda. Não
deixou, porém, de trabalhar pelos “pobres e abandonados”. À sua morte, em
26 de maio de 1894, foi-lhe tributada uma homenagem em Missa presidida
pelo padre Bartolomeu Roetti, superior da Pequena Casa da Divina Provi-
dência, quando o coral do Oratório de São Francisco de Sales se apresentou e
o padre Francesia fez o sermão.52

SÃO LEONARDO MURIALDO (1828-1900)


O padre Leonardo Murialdo, que era primo mais moço do padre Ro-
berto Murialdo, nasceu em Turim no dia 26 de outubro de 1828, numa
uma família rica. Estudou com os padres das Escolas Pias; entrou no
seminário e obteve o doutorado em Teologia na Universidade de Turim.
Ordenou-se em 1851. Atuou nos oratórios como colaborador do padre
Cocchi e de Dom Bosco e, mais tarde, criou a Sociedade de São José para
cuidar de jovens em situação de risco. Ainda antes da ordenação, traba-
lhou no Oratório do Anjo da Guarda, no bairro de Vanchiglia, que fora
fundado pelo padre Cocchi e confiado à direção do padre Roberto Mu-
rialdo; este teve de enfrentar os bandos que aterrorizavam a região, mas
já conseguira dominar a situação quando seu primo Leonardo se uniu à
“equipe”. As boas maneiras e a paciência de Leonardo contribuíram para
apaziguar muitos jovens e neutralizar outros.

MB III, 560-561. Padre João Vola sucedeu o teólogo Cárpano como diretor. O Oratório
50

encontrou dificuldades por causa do bando de Vanchiglia, como descreve José Brósio, o bersagliere, em
suas memórias (cf. MB III, 558-559).
51
G. Casalis, Dizionario (...), XXI, 718 (Centros de educação).
52
Bollettino Salesiano (1894), 84, em E. Valentini, Preistoria dei Cooperatori, 134.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Leonardo passou ali os primeiros anos de sacerdócio, enquanto Dom


Bosco estabelecia o Oratório de São Luís, perto de Porta Nova, ao sul da
cidade, em locais alugados da senhora Vaglienti. Como em Valdocco, a
fundação do novo Oratório deveu-se ao desenvolvimento daquela região
e a consequente imigração de trabalhadores empobrecidos, à incipien-
te industrialização e, em especial, à presença e atividade dos valdenses.
Certa manhã, Dom Bosco encontrou o padre Leonardo Murialdo em
Via Dora Grossa (mais tarde, Via Garibaldi, onde vivia) e convidou-o
para um café nas proximidades. Em seguida, contratou-o como diretor
do Oratório de São Luís. Levou-o a esse cargo, não só o seu zelo, como
também a experiência adquirida no Oratório do Anjo da Guarda, do
bairro de Vanchiglia.
Padre Murialdo e o senhor Bellingeri (que atuava como vice-diretor)
remodelaram a capela e os locais do Oratório e iniciaram aulas de música
instrumental sustentadas com seus próprios recursos. A equipe, coordenada
pelo padre Murialdo, incluía o senhor Ernesto Murialdo, advogado, o conde
Francisco Viancini di Viancino, o marquês Ludovico Scarampi di Pruney e
um grupo de Valdocco formado pelos seminaristas salesianos Rua, Cagliero,
Albera, Durando, Cerruti e outros. O trabalho mais difícil foi criar as aulas
diárias para competir com a escola dos valdenses, que dispunha de mais
recursos. O Oratório prosperou sob a direção do padre Murialdo, que ali
ficou até 1865.
Em 1865-1866, desejoso de pôr-se em contato com as diversas expe-
riências pedagógicas e com a escola francesa de espiritualidade, foi a Paris e
frequentou o Seminário de São Sulpício. Ao retornar a Turim em 1866, foi-
-lhe oferecida a direção do Collegio degli Artigianelli (Colégio dos Pequenos
Aprendizes), fundado em 1861-1863 pelo padre João Cocchi, sob os auspí-
cios da Sociedade para Jovens Órfãos e Abandonados. Tinha por finalidade
proporcionar educação cristã e trabalho aos jovens pobres dos 8 aos 20 anos.
Um dos sócios do projeto do padre Cocchi, o padre Berizzi, de Biella, foi
seu diretor, quando Cocchi dedicou-se a outros trabalhos. Quando o bispo
solicitou o padre Berizzi, este convenceu o padre Murialdo a aceitar o cargo
de diretor do Colégio.
Murialdo recusou inicialmente devido à insegurança econômica da casa.
Mas aceitou quando viu a necessidade e o grande bem que ali se tinha realiza-
do. Sob sua direção, a escola obteve uma grande reputação pelos métodos de
acompanhamento vocacional e a excelente equipe acadêmica. Em 1873, ele
fundou nos Pequenos Aprendizes, a Pia Sociedade de São José, uma obra em

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Os primeiros passos do Oratório

muitos aspectos muito semelhante à Sociedade Salesiana, e obteve reconheci-


mento por outras atuações.
Ele foi um dos primeiros a promover na Itália o movimento operário
católico, criando em Turim as Associações Operárias Católicas e, em 1871,
La voce dell’Operario (A Voz do Operário). A fim de efetivar a renovação
cristã da sociedade e obter liberdade para a Igreja, ele participou ativa-
mente da Obra dos Congressos,53 envolveu-se nos comitês católicos e ini-
ciou muitas associações católicas. No VI Congresso Católico de Nápoles
(1883), fundou uma Federação Nacional que coordenasse as atividades de
apostolado da imprensa e iniciou, nessa época, a revista mensal La Buona
Stampa (A Boa Imprensa).
Padre Muriado ficou gravemente enfermo no último dia de 1884. Em
8 de janeiro de 1885, pediram a Dom Bosco que lhe fosse dar sua bênção.
Assim o fez, e disse aos josefinos que ele ia se recuperar, porque ainda era
necessário para cuidar da jovem Congregação.54 De fato, Murialdo morreu
dezesseis anos depois, em 30 de março de 1900. Foi beatificado em 3 de no-
vembro de 1963 e canonizado em 3 de maio de 1970.
O testemunho de Murialdo no Processo de Beatificação e Canonização
de Dom Bosco, embora comedido, revela uma grande estima por ele. Diz que
chegou a conhecê-lo pelo santo que era. Murialdo e Dom Bosco dedicaram-
-se ao mesmo tipo de trabalho em favor da mesma classe de jovens e com a
mesma inspiração: a glória de Deus e a salvação das almas. Diferente de Dom
Bosco pela origem e educação, ele era, também, pela personalidade e pelo
estilo. Foram semelhantes, sem dúvida, no zelo pelas almas e pela vocação de
serviço aos jovens pobres e abandonados. Murialdo fundou uma congregação
religiosa que, em linhas gerais, tinha o mesmo objetivo e o mesmo espírito da
Congregação Salesiana.

53
Com a ocupação de Roma, os setores católicos “intransigentes”, daqueles que defendiam a qualquer
custo o direito papal contra o Estado italiano, “usurpador”, e os defensores do abstencionismo político,
impuseram-se aos católicos moderados, que estavam a favor de um acordo com o Estado. Os “intransigen-
tes” conseguiram um instrumento efetivo de organização na Opera dei Congressi (Congresso Católico de
Operários), fundado em 1875. Este se situou como contrapartida ao crescente movimento operário e ao
incipiente socialismo organizado na Itália. Em especial, de 1885 em diante, promoveu um conjunto de
atividades de bem-estar econômico e social, principalmente nas zonas rurais do norte e do centro. Con-
temporaneamente, foram fundados os Cooperadores Salesianos. Embora em alguns aspectos seus objetivos
coincidissem com os da Opera dei Congressi, diferiam em que renunciavam ao diálogo político e se propu-
nham a ajudar a causa dos operários católicos colaborando com o apostolado salesiano em favor dos jovens.
54
MB XVII, 652.

535

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Dom Bosco: história e carisma 1

Por que não se fez salesiano? É a pergunta que se poderia fazer. Um biógrafo
de Murialdo, Castellani, dá algumas razões para isso. Ele levou muito a sério as
suas obrigações e relações com a família. Seu enorme amor à liberdade, como
admitiria mais tarde na história da sua vocação, distanciou-o da vida religiosa.
“Fez-se religioso” só aos 45 anos, quando fundou uma congregação religiosa, e
isso, não sem uma dura batalha. Ele estava convencido de que, como padre dioce-
sano, podia seguir o ideal de santidade pessoal e apostolado em favor dos pobres.
É certo que Dom Bosco alimentou esperanças quanto a ele, e que sen-
tiu tê-lo deixado “escapar”. Em 1858, quando padre Murialdo era diretor do
Oratório de São Luís, os dois participaram juntos de uma audiência papal, e
Dom Bosco apresentou-o a Pio IX com palavras que indicavam a esperança
de mantê-lo em sua família. Dez anos depois, o papa perguntou-lhe sobre
aquele “bom padre de Turim”. Dom Bosco respondeu-lhe: “Deixei-o escapar”.
Quando, casualmente, Dom Bosco se encontrava com Murialdo, repreendia-
-o dizendo: “Padre, fugiste de mim!”. Ambos mantiveram durante suas vidas
uma profunda e duradoura amizade, guiada pela compreensão recíproca.

NOTA INTRODUTÓRIA AO
“PLANO DE REGULAMENTO” DE 185455
As palavras do Santo Evangelho “Ut filios Dei, qui erant dispersi, con-
gregaret in unum” (Para reunir os filhos de Deus que estavam dispersos) que
nos mostram o Divino Salvador descido do céu à terra para reunir os filhos
55
O manuscrito do plano de regulamento do Oratório de São Francisco de Sales de Turim,
bairro de Valdocco, de 1854, foi editado criticamente, com um estudo introdutório e notas, por Pietro
Braido, “Don Bosco per i giovani: L’Oratorio, una ‘Congregazione degli Oratori’”. Documenti (Picco-
la Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 9). Roma: LAS, 1988, 30-34, 34-55.
Apresentamos aqui os dois primeiros capítulos desses Regulamentos: (1) “Introduzione”
(Introdução), que estabelece as razões básicas e os inícios da obra do oratório; (2) “Cenno Storico
dell’Oratorio di San Francesco di Sales” (Nota histórica do Oratório de São Francisco de Sales), que
descreve as origens e o desenvolvimento inicial do Oratório como preâmbulo do Regulamento.
O autógrafo de Dom Bosco da Introdução e Nota Histórica está em ASC A 220-27; Oratorio 1,
FDB 1,872 B3-C5. Uma cópia completa dos Regulamentos (não da mão de Dom Bosco) está em ASC
D482s; Regolamento dell’Oratorio, FDB 1,955 D6 - 1,956 B3. Esses regulamentos começaram a ser
preparados nos primeiros anos cinquenta, tendo por base as experiências realizadas até então. O Resu-
mo aqui tratado data de 1854. Deve-se ressaltar que estes são os Regulamentos para o Oratório original
de meninos, ou seja, a reunião de meninos aos domingos e dias festivos para as funções religiosas, sua
instrução e recreação. O Regulamento para os internos da casa e escola de Valdocco (redigidos mais
tarde como Regulamentos das Casas Salesianas) são outra coisa. Os dois conjuntos de Regulamentos
passaram por sucessivas revisões, levando em conta as novas experiências, até sua publicação oficial em
1877. Primeira publicação: Uma parte da Introdução (linhas 1-25, 47-51) foi publicada por Lemoyne
nas Memórias Biográficas (MB II, 44-45). O Cenno storico (Nota histórica) não foi publicado, embora
fosse conhecido, e historiadores como Ceria e Stella referiam-se a ele.

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Os primeiros passos do Oratório

de Deus dispersos pelas várias partes do mundo, parece-me poder aplicar-se


literalmente à juventude de nossos dias. Essa porção da sociedade humana,
a mais delicada, a mais preciosa, na qual se fundamentam as esperanças de
um futuro lisonjeiro, por si mesma não é de índole ruim. Deixando de lado
a negligência dos pais, o ócio, a convivência com maus companheiros, so-
bretudo nos dias festivos, torna-se fácil insinuar nesses corações sensíveis os
princípios da ordem, dos bons costumes, do respeito, da religião; porque,
caso aconteça alguma vez que já nessa idade se encontrem alguns que este-
jam corrompidos, isso se deve mais por falta de reflexão do que por malícia
propriamente dita.
Os jovens têm real necessidade de uma ajuda benéfica que se preocupe
com eles, ensine-lhes a praticar a virtude e os afaste do vício. A dificuldade
está em como reuni-los, como falar-lhes e como reformar os seus costumes.
Foi essa a missão do Filho de Deus; e isso só pode fazê-lo a sua santa religião.
Contudo, esta religião, que é eterna e imutável em si mesma, que foi e será
sempre a mestra dos homens, tem uma lei tão perfeita que sabe submeter-
-se às vicissitudes dos tempos e adaptar-se às variadas condições de todos os
homens. Os Oratórios são muito indicados entre os meios adequados para
difundir o espírito de religião nas almas ignorantes e abandonadas. Eles são
reuniões nas quais os jovens, depois de participarem das funções religiosas,
entretêm-se em diversões sadias e agradáveis.
As contribuições que me foram dadas pelas autoridades civis e eclesiásti-
cas, o zelo demonstrado por muitas pessoas dignas que me deram ajuda ma-
terial ou me auxiliaram diretamente em meu trabalho, são um sinal evidente
das bênçãos do Senhor e da consideração pública.
Chegou agora o momento de expor um marco regulamentar que possa
servir como plano da organização deste setor do sagrado ministério e umas
linhas-guia para os muitos padres e leigos que trabalham nele com grande
dedicação e compromisso caridoso.
Comecei várias vezes (a preparar este marco), mas sempre renunciei por
causa das inumeráveis dificuldades que precisei vencer. Agora, a fim de pre-
servar a unidade do espírito e a uniformidade da disciplina, assim como para
cumprir o desejo de pessoas de autoridade que me aconselharam a fazê-lo,
decidi completar o trabalho, sem me preocupar com o resultado.
Quero, porém, que se entenda desde o início, que não é meu propósito
elaborar uma lei ou preceito para ninguém. Meu único objetivo é expor o
que fazemos no Oratório de jovens de São Francisco de Sales em Valdocco, e
como se foi fazendo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Certas expressões aqui apresentadas poderiam induzir alguns a pensa-


rem que estou buscando minha honra e glória pessoal. Que ninguém pense
assim; mas atribuam tudo somente ao meu compromisso de escrever como se
fazem as coisas atualmente e como elas ainda estão neste momento.
Quando me entreguei a este aspecto do sagrado ministério, entendi
consagrar todos os meus trabalhos para a maior glória de Deus e o proveito
das almas, entendi entregar-me à formação de bons cidadãos nesta vida, para
que um dia fossem dignos cidadãos do céu. Que Deus me ajude a continuar
assim até o último alento de minha vida.

NOTA HISTÓRICA (CENNO STORICO)


DO ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALES
Este Oratório, uma reunião de jovens nos domingos e dias festivos,
teve início na igreja de São Francisco de Assis. Durante muitos anos, no
verão, padre José Cafasso costumava ensinar o catecismo dominical aos
meninos operários num pequeno ambiente anexo à sacristia da mencionada
igreja. O enorme trabalho que esse padre tinha nas mãos obrigou-o a inter-
romper as atividades que muito apreciava. Eu o assumi a partir de 1841 e
comecei a reunir no mesmo lugar dois jovens adultos que precisavam muito
de instrução religiosa.56 Outros mais se uniram a eles e, em 1842, chegaram
a 20 e, às vezes, 25.
Desde o início, aprendi duas coisas muito importantes: a primeira, é
que em geral os jovens não são maus por si mesmos, mas que frequentemente
isso ocorre por causa do contato com maus companheiros; a segunda, que
mesmo os maus meninos são susceptíveis de grande mudança moral quando
são separados dos demais.
As aulas de catecismo continuaram no mesmo ritmo, em 1843, che-
gando a 50 [meninos], o máximo que era possível alojar no local que me
foi dado. Enquanto isso, eu pude comprovar ao visitar as prisões que os
desafortunados prisioneiros desses lugares de castigo eram, em geral, me-
ninos pobres que vinham de longe para a cidade, quer pela necessidade de
encontrar trabalho, quer porque animados por alguma cabeça oca. Esses jo-
vens, quando deixados a si mesmos, sobretudo nos domingos e dias festivos,
gastam em jogos (de azar) ou em guloseimas o pouco dinheiro que ganham
durante a semana. Esse é o início de muitos vícios; em muito pouco tempo,

56
Comparar o que se diz aqui de “dois jovens adultos” com o que Dom Bosco diz nas Memórias
sobre B. Garelli.

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Os primeiros passos do Oratório

meninos que eram bons, veem-se em perigo e põem outros em perigo. As


prisões, de modo algum, podem torná-los melhores porque, enquanto estão
presos, aprendem formas refinadas de fazer o mal, de modo que quando
saem da prisão, estão piores.
Dediquei-me, por isso, a essa classe de jovens, por ser a mais abando-
nada e em maior perigo e, ao longo da semana, com promessas ou pequenos
presentes, procurei conseguir mais alunos. Tive sucesso, e seu número cresceu
muito, de modo que, quando no verão de 1844 puseram-me locais mais am-
plos à disposição, vi-me com cerca de 80 meninos ao meu redor. Experimen-
tei grande satisfação ao ser circundado por alunos que se comportavam como
me agradava, que começavam a trabalhar, e cuja conduta eu atestava tanto
nos dias da semana quanto aos domingos. Quando os contemplava (senta-
dos à minha frente), eu podia ver alguns que voltaram para os pais dos quais
tinham fugido, outros colocados com algum empregador; todos eles muito
bem encaminhados na aprendizagem da religião.
Entretanto, a vida de comunidade num lugar como o Colégio de São
Francisco de Assis, o silêncio e a boa ordem exigida para as funções que se
celebravam na bem frequentada igreja pública, alteraram meus planos. E,
embora o benemérito e lembrado padre Guala me tenha animado a conti-
nuar, apesar disso, percebi claramente que precisava de locais novos (e mais
amplos). Isso porque a instrução religiosa ocupa os meninos durante certo
tempo, depois do que eles precisam de alguma saída: excursões, jogos, e assim
por diante.
A Providência pensou nisso e, em fins de outubro de 1844, fui nome-
ado diretor espiritual do Refúgio. Convidei meus jovens para visitarem-me
em minha nova residência; e, no domingo seguinte, reuniram-se ali em
número superior ao habitual. Minha casa servia de oratório e de pátio. Que
espetáculo! Nem a cadeira, nem a mesa, ou qualquer outra coisa da casa
deixaram de ser amigavelmente ocupadas.
Diante disso, eu e o teólogo Borelli (padre João), que desde então se
convertera num eminentíssimo ajudante, escolhêramos um quarto que servia
de refeitório e sala de estar para os padres que trabalhavam no Refúgio, que
pareceu suficiente para nossos propósitos, e o adaptamos como capela. O
arcebispo deu sua benigna aprovação e, no dia da Imaculada Conceição de
Maria (8 de dezembro de 1844), a capela pela qual tanto tínhamos suspira-
do, foi benta, com a permissão de celebrar o santo sacrifício da Missa e dar a
bênção com o Santíssimo Sacramento.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Ficou demonstrado que a notícia de uma capela destinada unicamente


aos jovens, com funções litúrgicas preparadas especialmente para eles, com
um pequeno espaço livre para brincarem, foi um poderoso atrativo; dessa
forma, a nossa igreja, que começou então a se chamar oratório,57 encheu-
-se rapidamente. Tivemos que nos arranjar como podíamos. As aulas de
catecismo eram dadas por todos os cantos: nos quartos, na cozinha e nos
corredores. Tudo era Oratório.
As coisas caminhavam quando um acontecimento (ou melhor, a ação da
Divina Providência por caminhos misteriosos) remexeu com nosso oratório.
Em 10 de agosto de 1845 foi aberto o Pequeno Hospital de Santa Madalena,
e tornou-se necessário destinar a outros usos os locais que vínhamos utilizan-
do durante nove meses. Precisei buscar outro lugar de reunião [...].58
Entretanto, como o inverno se aproximava e o clima já não permitia
excursões pelo campo, eu e o teólogo Borel alugamos três quartos na casa
Moretta, bastante distante do atual Oratório de Valdocco. Durante aquele
inverno, nossas atividades ficaram limitadas apenas às aulas de catecismo nas
tardes dos domingos e dias festivos.59
Nessa época, tornaram-se mais insistentes as calúnias que corriam
já havia algum tempo de que os oratórios eram um modo deliberado de
afastar os jovens de suas paróquias para instruí-los com teorias suspeitas.
Fundamentavam essas críticas no fato de eu permitir-lhes todo tipo de
diversões, contanto que não pecassem ou não fizessem algo repreensível.
Como resposta às críticas (de que eu estava afastando os jovens de suas pa-
róquias), fiz notar que meu propósito era reunir somente aqueles que não
pertencessem a qualquer paróquia. Na verdade, a maioria dos meninos era
de fora da cidade, e nem sequer sabiam qual a paróquia deles. Contudo,
quanto mais eu tratava de esclarecer o assunto, mais insidiosos eram os
comentários a respeito.
Com grande pena e não pequenos inconvenientes para nossas reuniões,
em março de 1846 deixamos a casa Moretta e arrendamos o prado dos irmãos
57
Cf. MO, 137.
58
Segue uma descrição da caminhada itinerante, com a mesma sequência das Memórias do Oratório:
São Martinho nos Moinhos Dora; Cemitério da Santa Cruz (San Pietro in vincoli), um período “sem lo-
cal”; casa Moretta (para a sequência correta e os detalhes, ver o que foi tratado anteriormente). Novamente,
nem aqui nem nas Memórias Dom Bosco fala do sonho que teve ao deixar o Pequeno Hospital. Lemoyne,
contudo, nas Memórias Biográficas situa o (primeiro) Sonho dos Santos Mártires neste contexto.
59
As aulas noturnas de catecismo podem coincidir ou não com as “aulas noturnas” iniciadas na
casa Moretta, em 1845, como Dom Bosco declara em suas Memórias (MO, 146), ou segundo sua de-
claração na Nota histórica de 1862 (que se explicará num capítulo posterior), na casa Pinardi, em 1846.

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Os primeiros passos do Oratório

Filippi, onde atualmente há uma fundição de ferro. Ali me encontrei a céu


aberto, em meio a um campo cercado de uma pequena sebe, que deixava
passagem livre a quem quisesse entrar. Contávamos com 300 e até 400 jovens
que encontravam seu paraíso terrestre naquele Oratório, no qual a abóbada
do céu servia de teto e de paredes. Para piorar a situação, o vigário da cida-
de, marquês (Miguel) Cavour, informado preconceituosamente sobre estas
reuniões de fim de semana, mandou que me levassem à Câmara Municipal.
Informou-me brevemente dos rumores sobre o Oratório, e me disse: “Meu
bom padre, aceite meu conselho, deixe esses delinquentes, que não farão ou-
tra coisa senão dar desgosto ao senhor e às autoridades públicas. Garantiram-
-me que essas reuniões são perigosas e, portanto, não posso tolerá-las”.
Respondi-lhe: “Não tenho outra finalidade, senhor marquês, a não ser
melhorar a sorte desses pobres filhos do povo. Não peço recursos econômi-
cos; somente um lugar onde reuni-los. Espero, dessa forma, poder diminuir
o número dos vagabundos e dos que vão povoar as prisões”.60
O arcebispo estava a par de tudo e me aconselhava a ter paciência e ânimo.
Enquanto isso, para atender mais diretamente os meus meninos, fui obrigado a
deixar o Refúgio; e, como resultado, fiquei sem emprego e sem meios.61
Dava-se a qualquer um dos meus projetos uma interpretação distorcida,
falava-se que eu estava fisicamente extenuado, com minha saúde deteriorada,
a ponto de correrem vozes de que eu estava louco. Incapaz de fazer os outros
compreenderem meus planos me propus a esperar um pouco, porque estava
profundamente convencido de que os acontecimentos comprovariam que eu
estava certo no que fazia. Além disso, eu desejava tanto possuir um local
adequado que já imaginava ser realidade. Foi esse o motivo pelo qual até
meus melhores amigos pensavam que eu estava fora da razão. E meus colabo-
radores, como viam que eu não cedia à opinião deles e não desistia de meus
empreendimentos, abandonaram-me totalmente.
O teólogo Borelli acompanhou-me com minhas ideias. Contudo,
achando que não tínhamos outro caminho, pensou que deveríamos acolher
apenas uma dúzia de meninos mais novos e ensinar-lhes o catecismo priva-
damente. Ele queria esperar uma oportunidade melhor para continuar com
nossos planos.

O diálogo continua nas Memórias, cf. MO, 153.


60

Embora o Oratório tenha deixado o Pequeno Hospital, Dom Bosco continuou como con-
61

tratado da marquesa Barolo, com salário e moradia no Refúgio. Desde fins de 1845 e durante 1846,
a marquesa pressionou Dom Bosco para que se desfizesse do Oratório e se unisse aos seus padres. Foi
quanto Dom Bosco se demitiu (ou foi demitido).

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Dom Bosco: história e carisma 1

“Não, o caminho não é esse. Esta é uma obra de Deus; Ele iniciou-a e
Ele deve levá-la a termo”, respondi. E ele insistia: “Enquanto isso, porém,
onde reunir os nossos meninos?”. “No Oratório”, eu disse. “Mas, onde está o
Oratório?” “Eu o vejo ali, já pronto. Eu vejo uma igreja, uma casa e um pátio
fechado. Está ali e eu o vejo.” “Mas onde estão todas essas coisas?” “Não sei
onde estão, mas eu as vejo.”
Eu insistia por causa do meu vivo desejo de ter todas essas coisas. Estava
totalmente convencido de que Deus me haveria de proporcioná-lo.62
O teólogo Borelli sentiu-se desolado com meu estado e expressou, pe-
nalizado, suas dúvidas sobre minha saúde mental. Padre Cafasso aconse-
lhou-me, no momento, a não tomar qualquer decisão. O arcebispo (Luís
Fransoni), contudo, era da opinião que eu continuasse com a obra. Ao
mesmo tempo, o marquês Cavour sustentava com firmeza a opinião de que
essas reuniões eram perigosas, como dizia, e deveriam ser abolidas. Entre-
tanto, não querendo tomar uma decisão que desagradasse ao arcebispo, ele
convocou uma reunião com seus colaboradores no palácio arquiepiscopal.
O arcebispo confidenciou-me mais tarde que parecia o juízo final. A dis-
cussão foi breve, mas o veredicto foi que essas reuniões deveriam ser abso-
lutamente canceladas.
Por sorte, o conde (Luís ?) Provana di Collegno trabalhava então no
Conselho do Vigário como chefe do Departamento de Contas. Tinha-me
sempre animado e ajudado economicamente no meu trabalho, tanto com seu
dinheiro pessoal como em nome de Sua Majestade o rei Carlos Alberto. Esse
soberano, de grata memória, apreciava a obra do Oratório e enviava ajuda
econômica nos momentos de grande necessidade.63
Mediante o conde Collegno, ele me expressava sua satisfação com frequ-
ência pelo nosso especial ministério sacerdotal. Considerava nosso ministério
no mesmo nível das missões estrangeiras e teria desejado ver essas reuniões
de jovens em perigo em todas as cidades do seu reino. Quando se inteirou
do meu sucesso, enviou-me 300 francos pelo mesmo conde com palavras
de incentivo. Também fez saber ao escritório do vigário que gostaria que as
reuniões dominicais de jovens continuassem. O vigário devia ter o cuidado
de prevenir qualquer desordem que pudesse surgir.

62
Dom Bosco, nesse momento, não fala que teve um sonho. Lemoyne, porém, narra um (segun-
do) Sonho dos Santos Mártires.
63
Na época em que estes Regulamentos foram escritos (1854), Carlos Alberto já havia morrido em
seu exílio voluntário (1849) depois da derrota sofrida na Primeira Guerra da Independência contra a Áustria.

542

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Os primeiros passos do Oratório

O vigário obedeceu e deu os passos para efetivá-lo. Colocou certo núme-


ro de guardas de segurança para cuidar da ordem e lhe darem informação. Os
guardas sentavam-se durante o catecismo, o sermão e os cantos, e permane-
ciam durante o recreio, e logo informavam ao vigário sobre tudo. Aos poucos,
sua atitude melhorou e, graças a isso, também a situação do Oratório.64

INÍCIOS DO ATUAL [1854] ORATÓRIO DE VALDOCCO


E SEU DESENVOLVIMENTO65
Pouco depois, nós alugamos outros quartos na casa do senhor Pinardi e
iniciamos as aulas dominicais e noturnas. O cavalheiro Gonella, nosso destacado
benfeitor, ficou tão impressionado que criou classes similares em Santa Pelágia.66
A municipalidade, depois de considerar o assunto, também abriu au-
las noturnas em vários bairros, de modo que todo aprendiz que o desejasse
podia receber ensino fundamental. Certo domingo de abril de 1846, a atual
igreja foi benta, com a faculdade de celebrar a Santa Missa, ensinar o cate-
cismo e dar a bênção com o Santíssimo Sacramento.67
As classes dominicais e noturnas tiveram grande êxito com aulas de lei-
tura, de elementos de aritmética e de língua italiana, das quais se fez uma
exibição pública no Oratório.
Pelo mês de novembro, instalei-me numa casa anexa ao Oratório.68 Mui-
tos padres, incluindo padres (João Batista) Vola, (Jacinto) Cárpano e (José)
Trivero, participaram da vida do Oratório.

64
Nas Memórias de Dom Bosco (MO, 152) há um relato paralelo da oposição do vigário Cavour
nesses mesmos termos, datado em 1874. Contudo, este parágrafo da Nota histórica de 1854, quando fala
do conde Colegno e do favor do rei pelo Oratório, também suaviza consideravelmente a atitude do vigário.
A carta de Dom Bosco de 1846 ao vigário também parece indicar uma atitude diversa em relação a esta.
65
A história do último dia nos prados Filippi, o aluguel do telheiro Pinardi e a instalação são
mais bem descritos nas Memórias (MO, 160).
66
Dom Bosco refere-se ao cavalheiro Marcos Gonella (1822-1851) que foi, de fato, um grande
benfeitor. Entretanto, foi o pai de Marcos, André, que, em 3 de dezembro de 1845 (P. Stella, Economia,
64-65), obteve a permissão do rei para criar as classes noturnas para adultos em Santa Pelágia, igreja
da Obra para a Instrução dos Pobres (Mendicância Instruída). As aulas foram confiadas aos Irmãos
das Escolas Cristãs. Tanto Dom Bosco como os Irmãos se atribuíram o mérito de serem os primeiros a
estabelecer as aulas noturnas.
67
A “atual igreja” refere-se à primeira capela Pinardi. Deve-se notar, porém, que por volta de
1854 (presumivelmente no tempo em que escrevia), a capela original (embora ainda não demolida) já
tivesse sido substituída pelo uso da igreja maior de São Francisco de Sales, construída em 1852. Parece,
portanto, que a Nota histórica tinha sido preparada antes e que a expressão nunca foi mudada.
68
Em inícios de novembro, Dom Bosco retornara dos Becchi com sua mãe; ele passara cerca
de três meses ali, recuperando-se de uma doença. Nesse momento (fins de 1846), a casa anexa ainda
não existia. Seu início foi em 1847, na casa Pinardi, em que Dom Bosco tinha alugado alguns quartos.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Ano 1847. Com a aprovação das autoridades eclesiásticas foi instituída a


Companhia de São Luís. Conseguimos uma estátua do santo e, antes da festa
solene de São Luís, celebramos os “Seis domingos”, com grande afluência.
No dia da festa, o arcebispo (Luís Fransoni) veio administrar o sacra-
mento da Confirmação a grande número de meninos, foi encenada uma pe-
quena comédia e houve cantos e música. Alugaram-se novos quartos, poden-
do-se aumentar as aulas noturnas. Deu-se alojamento a dois pobres meninos,
órfãos, sem trabalho, ignorantes em religião e, assim, começou o internato,
que aos poucos foi crescendo.
(Há, em seguida, um breve resumo do desenvolvimento da obra nos
anos 1847-1854, no qual Dom Bosco relata a abertura dos Oratórios de São
Luís e do Anjo da Guarda, e outros eventos notáveis.)

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Capítulo XX

OS ORATÓRIOS DE DOM BOSCO


(1849-1852): CONFLITOS,
CRISES E SOLUÇÃO

Os padres e leigos que se encarregavam do trabalho com os jo-


vens em situação de risco eram muito numerosos nos inícios da década
de1850. Os Oratórios contavam com um diretor e um número suficien-
te de catequistas, tanto padres quanto leigos, alguns muito jovens, que
assistiam os meninos e supervisionavam as atividades. O pessoal diretivo
dos Oratórios, de modo especial, formava uma espécie de associação
informal de homens e mulheres, unidos basicamente pelo mesmo desejo
de ajudar os jovens.
Em 1849, o Oratório de São Francisco de Sales, de Dom Bosco, em
Valdocco, era considerado o mais importante pelo número de jovens e
de atividades, e porque contava com a melhor equipe e era o mais bem
dirigido. O Oratório de São Luís, a sul do Borgo São Salvário, também
fundado por Dom Bosco, era conduzido por padres e leigos muito mo-
tivados. Era o caso também do Oratório do Anjo da Guarda, a noroeste
de Vanchiglia, fundado pelo padre Cocchi e, depois, reaberto por Dom
Bosco. Em 1851-1852, padre Cocchi abriu o Oratório de São Martinho
nos moinhos do Borgo Dora.1
Antes de comentar a caminhada dos Oratórios e seus problemas nos
anos 1849-1852, convém apresentar brevemente os colaboradores de Dom
Bosco, tendo como apoio os documentos que os mencionam.

1
Em Turim também havia muitos oratórios nas paróquias, que funcionavam como parte das
atividades paroquiais de instrução religiosa. Aqui, não nos referimos a esses oratórios.

545

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Dom Bosco: história e carisma 1

1. Primeiros sócios e colaboradores de Dom Bosco na


obra dos Oratórios
Carta de Dom Bosco, de 20 de fevereiro de 1850,
à Mendicità Istruita
Em carta aos administradores da Mendicità Istruita (Mendicância Ins-
truída ou Sociedade para a Instrução e o Cuidado dos Pobres),2 Dom Bosco
menciona os que trabalhavam no Oratório, escrevendo:
Até agora, o trabalho foi conduzido graças à ajuda de grande número de pa-
dres e leigos caridosos. Os padres principalmente envolvidos são: padre [João]
Borrelli, padre [Jacinto] Cárpano, doutor [João] Vola, padre [Pedro] Ponte,
padre [João] Grassino, padre [Roberto Félix] Murialdo, padre [João Francis-
co] Giacomelli e o professor [Francisco] Marengo.

Memorial do Oratório, do teólogo Borel


Em um caderno que chamou de Memorial do Oratório,3 o teólogo Borel
indica os primeiros benfeitores, anotando o nome dos doadores e suas con-
tribuições. Não especifica quais as outras maneiras com que ajudavam no
Oratório. A lista inclui:
Cônegos Fissore, Vacchetta, Melano, Duprez, Fantolini e Zappata; padres Aime-
ri, Berteu, Saccarelli, Vola, Cárpano, Paulo Rossi, Pacchiotti, Pullini e Durando;
conde Rademaker, marquês Gustavo Cavour; general Miguel Engelfred; Carlos
Richelmy; procuradores Molina e Blengini; baronesa Borsarelli e sua filha, se-
nhorita Moia; cavalheiro Borbonese; condessa Masino; senhora Cavallo e senho-
ra Bogner; Benedito Mussa; Antônio Burdin; Gagliardi e família Bianchi.

As Notas históricas, de Dom Bosco (Cenni storici), de 1862


Em um comentário acrescentado por Dom Bosco às Notas históricas
de 1862, ele menciona alguns colaboradores muito próximos no trabalho
do Oratório:

2
Epistolario I Motto, 96. Para o texto completo da carta, ver Apêndice, no final do capítulo. A Regia
Opera della Mendicità Istruita (Real Instituto para a Instrução dos Pobres), era uma associação legalmente
fundada em fins do século XVIII; era bem favorecida e tinha por objetivo ajudar os pobres e instruí-los.
Aprovada por Decreto Real, ela iniciou, em meados da década de 1840, aulas diurnas e noturnas, sendo o
ensino dos meninos dado pelos Irmãos de La Salle e, das meninas, pelas Irmãs de São José de Annecy.
3
ASC A049ss: Persone, FDBM 552 E4-12. O teólogo Borel cuidou durante muitos anos das
“atas” do Oratório.

546

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Entre os padres que prestaram ajuda material e moral no trabalho dos Orató-
rios festivos, deve-se mencionar padre Sebastião Pacchiotti, padre Jacinto Cár-
pano, padre João Vola, padre José Trivero, padre Pedro Ponte, padre Leonardo
Murialdo, cavalheiro Roberto Murialdo, padre Miguel Rua, padre Vitório
Alasonatti. Merece destaque muito especial o teólogo padre João Borel por ter
sido promotor e sustentáculo da obra. Esteve sempre disponível e trabalhou
com entusiasmo e eficácia o tempo todo e de todos os modos.4

Artigo de Dom Bosco no Bollettino Salesiano sobre os


primeiros Salesianos Cooperadores
Escrevendo no Boletim Salesiano, recentemente fundado, em 1877,
Dom Bosco fala dos seus primeiros Cooperadores, ou seja, das pessoas que
estiveram relacionadas de diversas maneiras com a obra do Oratório. Ele
menciona 58 nomes de padres e leigos, homens e mulheres.5
[...] Muitos padres e leigos cristãos zelosos queriam unir-se a Dom Bosco
nesse ministério. Entre os primeiros e mais importantes, recordamos os ze-
losos e de digna memória, teólogo padre João Borel, padre José Cafasso e
cônego (Carlos Antônio) Borsarelli [di Rifreddo]. Foram estes os primeiros
Cooperadores dentre o clero. Contudo, como tinham outras ocupações indis-
pensáveis, só podiam estar à disposição por algumas horas e em determinadas
ocasiões. Recorremos então à ajuda de senhores da nobreza e da classe média,
e recebemos uma resposta generosa de muitos deles. Eles vinham e dedica-
vam-se a ensinar o catecismo, dar aulas, supervisionar os meninos dentro e
fora da igreja. Com dedicação exemplar, guiavam os meninos nas orações e
nos cantos, preparavam-nos para a recepção dos sacramentos da penitência,
da comunhão e da confirmação.
Além da igreja, estavam sempre prontos para receber os meninos ao chegarem
ao Oratório, indicar-lhes o lugar no recreio, tomar parte em seus jogos, man-
tendo a ordem com boas maneiras.
Outra ocupação importante dos Cooperadores era “a bolsa de trabalho”. Mui-
tos meninos eram de fora da cidade, às vezes de lugares muito distantes; viam-se
sozinhos, sem meios de vida, sem trabalho, sem ninguém que se preocupasse

4
Cf. Notas históricas, de 1862, em ASC A220ss: Oratorio 2.1, FDB 1,972 C10-D4 (autógrafo de
Dom Bosco); 2.2 FDB 1,972 E9 - 1,973 A6 (cópia corrigida por Dom Bosco) e 2.3 FDB 1,972 E1-8
(última cópia corrigida por Dom Bosco); publicada em P. Braido, Don Bosco per i giovanni: l’ “Oratorio”
una Congregazione degli Oratori. Documenti. Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 9. Roma:
LAS, 1988. Tradução espanhola em J. M. Prellezo, El sistema preventivo, 91s.
5
A declaração detalhada de Dom Bosco foi publicada no Bibliofilo Cattolico ou Bollettino Salesia-
no 3, 6 de setembro de 1877, transcrita por Eugênio Valentini em Preistoria dei Cooperatori, 114-150.

547

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Dom Bosco: história e carisma 1

com eles. Alguns Cooperadores cuidavam desses meninos; faziam com que es-
tivessem limpos; colocavam-nos com algum patrão honrado e preparavam-nos
para se apresentarem ao local do trabalho. Durante a semana, visitavam os jo-
vens e cuidavam dos que voltavam ao Oratório no domingo seguinte, para
que não perdessem num dia o que tinham ganhado com o trabalho de várias
semanas. Muitos desses Cooperadores, com grande sacrifício pessoal, vinham
assiduamente todas as tardes durante o inverno e davam aulas de leitura, escri-
ta, canto, aritmética e língua italiana. Outros vinham diariamente ao meio-dia
para ensinar catecismo aos jovens mais carentes de instrução [...].6
Entre os numerosos padres que se associaram ao trabalho, podemos mencionar
os seguintes: os irmãos [João] Inácio e João [Batista] Vola; padre [Paulo Fran-
cisco] Rossi, que morreu como diretor do Oratório de São Luís; o procurador
[João Batista] Destefanis. Deus já chamou todos eles para sua morada do céu.
A eles, devemos acrescentar o padre Roberto Murialdo, atualmente diretor de
A Família de São Pedro e o padre Leonardo Murialdo, atual diretor do Insti-
tuto dos Pequenos Aprendizes. Entre os mais antigos padres cooperadores que
ainda vivem (Deus seja bendito) devem ser mencionados os seguintes: padre
José Trivero; cavalheiro padre Jacinto Cárpano; padre Miguel Ángel Chiatelli-
no; padre Ascânio Sávio; padre João Giacomelli; professor [?] doutor Chia-
ves; padre Antônio Bósio, então pároco; padre Sebastião Pacchiotti; professor
[João Batista] Musso; cônego [?] Musso, professor; padre Pedro Ponti [Pon-
te]; cônego Luís Nasi; cônego professor [Francisco] Marengo; padre Francisco
Onesti, professor; padre Emiliano Manacorda, agora bispo de Fossano; cônego
Eugênio Galletti, agora bispo de Alba [...].7
Tivemos cooperadores, homens e mulheres. Alguns dos nossos alunos não eram
muito asseados, mas descuidados e sujos. Ninguém os suportava e nenhum
patrão os queria receber em sua fábrica. Muitas mulheres caridosas vinham em
sua ajuda [...]. A primeira dessas mulheres foi a senhora Margarida Gastaldi.8

Os citados “colegas, ajudantes, benfeitores, cooperadores” dos primeiros


anos, colaboravam de várias maneiras com Dom Bosco no trabalho dos Ora-
tórios. Padre José Cafasso e o teólogo Borel foram, de longe, os mais notáveis.
Eram próximos na importância padre Jacinto Cárpano e os primos padres
Roberto e Leonardo Murialdo. Dentre os colaboradores leigos, talvez os mais
dedicados, foram o barão Bianco di Barbânia, o marquês e a marquesa (De
Maistre) Fassati, o conde Balbo de Vinadio e a senhora Margarida Gastaldi.

Mencionam-se muitos leigos.


6

Falta aqui um parágrafo no qual se descreve como se conservava a ordem e como o Oratório era
7

conduzido, conforme uma série de regras que não recorriam a ameaças ou castigos.
8
Era a mãe do arcebispo Gastaldi. Citam-se outras dez senhoras.

548

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Dom Bosco, desde o início, concebeu a obra do Oratório como um


trabalho em colaboração, iniciado e levado a cabo por uma união variada
de forças. Foi esse, sem dúvida, o primeiro conceito da “sociedade” que iria
trabalhar pelos jovens pobres, ou seja, uma associação de pessoas voluntárias
comprometidas, que se dedicassem pessoalmente e com seus recursos (em
diversos níveis) à obra dos Oratórios. É nesse sentido que Dom Bosco falaria
mais tarde da Sociedade Salesiana e das Constituições, como se existissem já
em 1841.
Ele jamais abandonou a ideia de um trabalho em colaboração, mesmo
depois de fundar a Sociedade Salesiana como congregação religiosa de vida
comum e de votos simples (1859-1874). Deve-se lembrar, portanto, que ele
não pensou a Sociedade Salesiana como substituta da antiga associação, mas
como o grupo central daqueles que se tinham comprometido totalmente
com a obra. Ao escrever no Boletim Salesiano em 1877, considerava os “re-
cém-fundados” Cooperadores como continuadores do serviço de colaboração
dos primeiros tempos.9
As “graças espirituais” obtidas em Roma em 1845 e 1850 e o decreto do
arcebispo Fransoni, de 1852, em que era nomeado único diretor espiritual dos
três Oratórios, foram citados por Dom Bosco como documentos da aprovação
eclesiástica dessa associação de colaboradores dos quais era o “superior”.

2. Fase crítica no desenvolvimento do Oratório de Turim


(1849-1852)
Crises, decisões e desacordos
Ao longo da década de 1840, surgiram profundos dissensos entre os
diversos diretores e grupos de catequistas sobre o conceito e a organização do
oratório. Dom Bosco distinguia-se deles pelo modo como trabalhava e pela
ideia de como devia ser o Oratório. Talvez, com maior insistência do que
nenhum de seus parceiros, ele ressaltava a natureza religiosa e espiritual do
Oratório, tal como o concebia. Castellani ressalta que o Oratório do Anjo da
Guarda do padre Cocchi dava tanta prioridade à ginástica e aos exercícios que
parecia um campo de treinamento militar.10
9
A fundação (ou reorganização) dos Salesianos Cooperadores em 1876 pretendia continuar,
com aspectos diversos, o serviço original de colaboração. Os Cooperadores não queriam ser “benfei-
tores” da Sociedade Salesiana, mas colaboradores da Sociedade Salesiana no serviço aos jovens pobres.
10
A. Castellani, Leonardo Murialdo I, 400; ver também MB III, 563-564. Como se dirá mais
adiante, Dom Bosco sentiu a necessidade de introduzir algumas dessas formas de recreação.

549

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Dom Bosco: história e carisma 1

Além das diferenças na prática pastoral, havia diferenças na ideologia


política, que se acentuaram na crise político-militar de 1848-1849.11 Entre-
tanto, os dissensos não acabaram quando a crise passou. Antes, acentuaram-
-se ainda mais, porque se acelerou a escalada do Risorgimento e o trabalho dos
Oratórios recebeu novos impulsos com a entrada de novas forças e das doa-
ções da Sociedade de São Vicente de Paulo. Nessa época, Dom Bosco, em-
bora externamente pretendesse neutralidade, assumira uma postura conser-
vadora, solidário com padre Cafasso, arcebispo Fransoni e Pio IX. Pensavam
como ele padres Borel, Cárpano, Roberto Murialdo e, mais tarde, Leonardo
Murialdo, além de outros padres e leigos.
Dom Bosco viu-se, então, numa situação comprometida em relação aos
padres mais “patriotas” que trabalhavam na obra do Oratório, como padres
Cocchi e Ponte. Contudo, havia também problemas mais práticos. Com fre-
quência, ele precisou substituir os diretores e catequistas; surgiram choques
e desencontros dentro e fora do Oratório por questões de competência, pelo
desejo de trabalhar com independência, por dificuldades relacionadas com os
párocos, pela distribuição desigual dos recursos, pela rivalidade em garantir
os benfeitores etc. Não se devem descartar também as dificuldades surgidas
das diferenças de caráter.
Note-se, de novo, que a organização original do Oratório foi um serviço
em colaboração, em que padres e leigos trabalhavam juntos como iguais,
sócios e colegas. Dom Bosco, todavia, procurou criar desde o início o “seu”
Oratório e considerava os colaboradores como ajudantes subordinados e ele
na qualidade de “superior” da “Congregação dos Oratórios”.
Ainda em 1847, surgira uma proposta de federalizar os Oratórios de
Turim, os atuais e os futuros, e outros serviços, sob a mesma estrutura dio-
cesana, que salvaguardassem os interesses de cada um e fossem árbitros nos
casos de dissenso. Era este o ponto de vista de um grupo de padres muito res-
peitáveis, como padre Marco Antônio Durando, superior dos vicentinos, do
professor padre Amadeu Peyron, do cônego José Ortalda e do cônego Lou-
renço Gastaldi. Eles pediram a Dom Bosco a ao padre Cocchi, diretores dos
Oratórios, que aceitassem essa proposta. Dom Bosco, embora manifestasse
sua boa vontade de trabalhar com outros, recusou-se a entrar num grupo
formal, que poderia limitar sua independência.
Para Lemoyne, segundo informa ou interpreta nas Memórias Biográficas,
as razões de Dom Bosco eram estas:

11
MB III, 453-454.

550

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

1. Estratégia no trabalho do Oratório: “Padre João Cocchi está entu-


siasmado com os treinamentos; para atrair os meninos, fazem exer-
cícios com bastões e fuzis; por outro lado, em seu Oratório quase
não há funções de igreja. Eu, ao contrário, procuro que o nosso
bastão seja a Palavra de Deus e que as outras armas sejam a confis-
são e a comunhão frequentes. Considero as diversões como meio
para levar os meninos ao catecismo”.
2. Compromisso político: “Os outros vários chefes de Oratório, quem
mais quem menos, todos estão comprometidos com questões polí-
ticas, enquanto a pregação deles, frequentemente, mais do que ins-
trução é arenga patriótica. Eu não quero imiscuir-me em política,
de modo algum”.12
Outra tentativa no mesmo sentido foi feita em 1849, com o apoio do
próprio padre Cafasso, cuja autoridade moral, como diretor espiritual e pro-
tetor da maioria dos padres comprometidos no ministério da juventude, era
de grande peso. Não se chegou a um acordo. Os terríveis acontecimentos de
1848-1849 (a Revolução Liberal, a guerra contra a Áustria etc.) e a prisão e o
exílio do arcebispo Fransoni, em 1850, impediram qualquer outra iniciativa.
A crise com padre Ponte no Oratório de São Luís
Casalis, ao falar em 1851 das instituições de caridade que atuavam em
Turim, tem palavras de louvor para os três Oratórios de Dom Bosco e para os
padres que os dirigiam. Louvando concretamente o padre Cárpano, escreve:
As vantagens obtidas pelos meninos que participam desses Oratórios são a edu-
cação dos costumes e a cultura da razão e do coração, de forma que em pouco
tempo adquirem um aspecto afetuoso e humano, afeiçoam-se ao trabalho e con-
vertem-se em bons cristãos e ótimos cidadãos. Esses frutos, que são abundantes,
certamente induzirão o Governo a levar em consideração uma obra que muito
ajuda a classe mais pobre do povo, usufruindo do zelo que anima a muitos pa-
dres entregues a esse gênero de beneficência, com o qual se podem afastar do
ócio e converter em pessoas úteis para a pátria e a sociedade muitos jovens que,
sem os cuidados que lhes são prodigalizados, certamente acabariam mal.
Não podemos deixar de falar que o benemérito teólogo Cárpano concebeu a
ideia de abrir um estabelecimento para recolher os trabalhadores que, recém-
-saídos de um hospital, não encontram logo trabalho ou então são incapazes
por causa da saúde delicada, e não tardará em levar a cabo a feliz ideia, se não
lhe faltarem os apoios nos quais confia firmemente.

12
MB IV, 310-311. É evidente que aqui Lemoyne conta uma história, não sem preconceitos.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Alguém poderá dizer que somos demasiadamente minuciosos ao falar dessas


instituições; mas formarão outra opinião todos os que conhecem o reconhe-
cimento existente da parte do público, único prêmio que recebem de suas
contínuas e pesadas fadigas estes beneméritos personagens que gastam a vida
em favor desses meninos. Seria injusto negar este tributo de gratidão a quem
tem o merecido direito.13

Parece que padre Cárpano estivesse pensando em mudar de ministé-


rio; não podemos especificar a data e as circunstâncias pelas quais deixou os
Oratórios. Sabemos, porém, pelo testemunho do padre Bonetti,14 que ele foi
o primeiro diretor do Oratório de São Luís à sua abertura em 1847; depois,
foi também diretor do Oratório do Anjo da Guarda, quando Dom Bosco o
reabriu em 1849. Provavelmente deixou o Oratório em 1853.15
Ao padre Cárpano seguiram-se no Oratório de São Luís outros diretores
durante breves períodos, até quando foi nomeado padre Ponte, um padre
zeloso e competente, sob cuja direção o Oratório alcançou um considerá-
vel desenvolvimento.16 Ajudaram-no, entre outros, padre Francisco Rossi, o
procurador Caetano Bellingeri e um grupo de catequistas. Ao padre Ponte
sucedeu padre Paulo Rossi, homem de grande zelo, mas de saúde precária.
De fato, morreu pouco depois, aos 28 anos. Seguiram-se vários anos sem um
diretor fixo. Nessa época, Dom Bosco podia dispor de alguns seminaristas,
que costumava enviar ao Oratório de São Luís aos domingos e dias festivos.
Contava todas as semanas com os serviços de um padre de Turim, que ia
confessar, dizer Missa e também pregar. De vez em quando, contava com um
padre para o sermão e as celebrações da tarde.

Crise no Oratório de São Luís


A crise de que falamos chegou ao auge durante o mandato do padre
Ponte, podendo ser situada nos anos 1849-1851.

13
G. Casalis, Dizionario (...), vol. XXI, 714-718.
14
G. Bonetti, Storia dell’Oratorio, 103-107.
15
Sobre a data da retirada do padre Cárpano, Lemoyne traz afirmações contraditórias: em MB
III, 562, foi em 1853; mas em MB IV, 310, foi antes, em 1851.
16
Pedro Ponte nasceu em Pancalieri (Turim), em 1821. Viveu “com Dom Bosco” em Valdocco
por mais de um ano (1847-1848. Cf. MB III, 253) e foi um dos primeiros colaboradores no trabalho
do Oratório. No Colégio Eclesiástico, ele era encarregado, sob a direção do padre Cafasso, da instrução
religiosa dos limpadores de chaminé em colaboração com padre Cárpano. Foi diretor do Oratório de São
Luís nos anos 1849-1850. Em seguida, foi capelão da marquesa Barolo e de suas obras e seu testamentei-
ro após sua morte. Supervisionou a construção da igreja de Santa Júlia, erguida com doação testamentá-
ria da marquesa no bairro de Vanchiglia, sendo seu primeiro reitor. Morreu em 2 de outubro de 1892.

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Nem todos, como sabemos, estavam de acordo com Dom Bosco so-
bre o modo de conduzir um Oratório, não havendo unanimidade entre os
catequistas dos três Oratórios.17 As diferenças explodiram em 1851 entre
os catequistas dos Oratórios do Anjo da Guarda e os de São Luís. Ao que
parece, padre Ponte era o centro dessas diferenças. Provavelmente, a preo-
cupação com a unidade de direção apresentada por Dom Bosco tenha cria-
do ressentimento por ser interpretada como desejo de dominar ou ganhar
fama.18 Por sugestão do padre Cafasso, foi convocada uma reunião dos
padres dos Oratórios (citam-se seis, incluídos os padres Roberto Murialdo
e João Cocchi): “Padre Pedro Ponte foi convidado a participar e explicar
as suas queixas, mas declinou de participar. Nessa reunião, Dom Bosco
mostrou-se disposto a concessões sem ter que renunciar à autoridade que
lhe correspondia por direito”.19
Como solução temporária, Dom Bosco sugeriu que padre Cafasso reco-
mendasse padre Ponte à marquesa Barolo, que estava buscando um capelão
pessoal. Padre Ponte aceitou a oferta da marquesa e, em outubro de 1851,
acompanhou-a e ao seu secretário Sílvio Péllico20 numa viagem a Roma. Dom
Bosco pediu a padre Félix Rossi que assumisse a direção do Oratório de São
Luís. Seguiu-se uma correspondência entre o padre Ponte e o teólogo Borel,
que atuava em nome de Dom Bosco. Em resposta à carta do padre Ponte em
que enumerava suas queixas quanto a alguns assuntos, o teólogo Borel revela
indiretamente alguns aspectos da disputa:

Entre outras coisas, não duvidamos que se trate de um dano notável para a
união, reter e conservar a propriedade e o uso das coisas que se adquiriram
para o bem de um Oratório, excluindo os demais Oratórios do seu uso; como
também que, num mesmo Oratório, um membro possa servir-se dos objetos
ali existentes para uso do Oratório, excluindo os outros membros quando
ausentes. Estamos todos de acordo em pensar e querer que as ofertas recebi-
das em cada um dos Oratórios na pessoa do relativo diretor se tenham como

17
Sobre um episódio ocorrido no Oratório de São Francisco de Sales, ver MB IV, 311-312,
citado por Lemoyne, de acordo com as Memórias de José Brósio, das quais falaremos em breve.
18
Ver a declaração de Dom Bosco, Introdução dos Regulamentos para os meninos do Oratório, de 1854.
19
MB IV, 311 ss.
20
Sílvio Péllico (1789-1854) foi patriota e escritor, fundador e editor (1818-1819) do diário pa-
triótico-liberal Il Conciliatore. Suspeito de atividades revolucionárias na Revolução carbonária de 1822,
ele foi condenado (1822) a 15 anos de trabalhos forçados e encarcerado na fortaleza de Speielberg
(Áustria), mas libertado em 1830. Desde então, viveu em Turim e, a partir de 1834, foi bibliotecário e
secretário da marquesa Barolo. Como esta, ele defendeu as reformas das prisões. É conhecido por uma
obra escrita na prisão: Le mie prigioni (1832) (As minhas prisões). Escreveu teatro (tragédias), publicou
uma tradução do Manfred, de Byron. É também autor de poesia mística e religiosa.

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Dom Bosco: história e carisma 1

feitas a todos os Oratórios e se for o caso informarei aos benfeitores sobre o


espírito que nos rege e os fundamentos dos Oratórios.21

Em sua resposta, padre Pedro Ponte escreve, entre outras coisas:


Eu creio que a origem da desunião, que até agora se deplora entre nós, proce-
de do fato de não se ter uma cabeça à qual recorrer e do demasiado mutismo
reinante [...]. Procure V. R. remediar estes inconvenientes e a causa da desu-
nião desaparecerá. Após maduro exame e plena consciência, tomei a resolu-
ção que já manifestei e que não posso mudar; se, por acaso, os objetos que
deixei no Oratório de Porta Nova incomodassem de algum modo, irei buscá-
-los assim que chegar a Turim. Contudo, se estiverem atrapalhando, darei
as ordens necessárias para que sejam retirados em minha ausência. Quanto
ao futuro, se o Senhor quiser que eu empregue ainda minhas frágeis forças
em favor dos Oratórios, com muito gosto eu me adaptarei à determinação
tomada de fazer causa comum.22

Padre Cafasso tentou restaurar a harmonia. Escreveu uma carta a padre


Ponte que, nessa ocasião, fora a Nápoles com a marquesa Barolo,23 a respeito
de uma decisão que não especifica: “Começo por recomendar-lhe que aban-
done toda sorte de inquietude e pressa quanto à decisão a tomar no assunto
de que me fala”. Garantia-lhe que os companheiros do Oratório não o faziam
por rancor ou animosidade, e que na realidade sempre esperavam a sua cola-
boração. E continuava:
V. S. pode decidir, em consciência, como crer oportuno, já que é dono das
coisas que estão em discussão [...]. Apesar disso, se quiser saber a minha opi-
nião [...], o senhor faria muito bem se as colocasse à disposição dos Oratórios,
mas com a faculdade de servir-se o senhor mesmo delas antes dos demais,
enquanto possa prestar-se, como assim o espero, a esta obra do Senhor.

A sugestão do padre Cafasso não surtiu efeito. Padre Ponte continuou


como capelão das instituições da marquesa e, pouco depois, como diretor do
Oratório de São Martinho, aberto pelo padre Cocchi nos Moinhos.
Quais eram os motivos reais da disputa? As fontes de que dispomos não
são suficientes para reconstruir detalhadamente os fatos. Segundo os textos
citados, parece que o assunto tinha a ver com a independência do diretor e
o uso dos equipamentos e subvenções em cada Oratório. O padre Ponte e

21
Cf. MB IV, 313.
22
Cf. MB IV, 316.
23
Cf. MB IV, 368.

554

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

sua equipe diretiva dedicavam tempo e, aparentemente, também recursos,


ao Oratório de São Luís. Isso, contudo, justificaria a exigência de indepen-
dência? Não podemos dizer se outros fatores de caráter pessoal, político ou
pastoral entravam no assunto. Concretamente, a queixa do padre Ponte de
“não se ter uma cabeça à qual recorrer” é desconcertante, como também o é
o “silêncio” de Dom Bosco em todo o episódio.

O Oratório de São Francisco de Sales na casa Pinardi (desenho de Bartolomeu Bellísio).

Crise no Oratório de São Francisco de Sales: desafio a Dom Bosco


Lemoyne fala de outro desafio mais sério a Dom Bosco e ao Oratório de
São Francisco de Sales apresentado por um grupo de colaboradores descon-
tentes, tendo à frente um padre que não nomeia, mas a quem dá o pseudôni-
mo de padre Rodrigo.24
A fonte de Lemoyne sobre a nova crise é um relato de 46 páginas, cujo
autor é José Brósio, um dos primeiros catequistas e jovens ajudantes de Dom
Bosco.25 O relato foi escrito provavelmente logo após a morte de Dom Bosco
em 1888, quando padre Bonetti recolhia material para o Processo Diocesano
de Beatificação. A certa altura do relato, Brósio dirige-se concretamente ao
padre Bonetti.26

MB IV, 370-374.
24

ASC A049ss: Persone, Brosio Giuseppe “Il bersagliere”, FDB 554 E10 - 555 D8. Este relatório
25

parece que ainda não foi publicado.


26
G. Brosio, Informe, relato I, 23, FDBM 555 B10.

555

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Dom Bosco: história e carisma 1

O relato consta de duas partes: a primeira, com seis capítulos (páginas


1-32); a segunda, com uma narração contínua (páginas 1-14). Em seu con-
junto, o relato descreve os acontecimentos do Oratório de São Francisco de
Sales e narra episódios laudatórios de Dom Bosco. Brósio dá bastante espaço
a si mesmo como líder dos meninos do Oratório nos recreios. Descreve-se
como confidente de Dom Bosco e protagonista dos acontecimentos da crise.
O relato recobre um amplo espaço de recordações de épocas diversas. Inte-
ressa à nossa história as informações sobre a atividade do grupo de padres e
outros senhores, liderados pelo padre “sem nome”, que foram seguidos por
catequistas e jovens mais veteranos. Pretendiam desafiar Dom Bosco e acabar
com o Oratório.27
O relato menciona uma “conspiração” para arruinar o Oratório de São
Francisco de Sales, fazendo com que os colaboradores de Dom Bosco o aban-
donassem. Concretamente, a primeira parte descreve os esforços para afastar
de Dom Bosco os seus colaboradores; a segunda parte fala de uma reunião
para acusar Dom Bosco de difamar o pessoal do Oratório na circular da rifa
de 1851-1852. Houve confrontações.
Já se questionou o testemunho de Brósio, mas não parece que existam
razões de peso para duvidar da sua confiabilidade.

Primeiro relato de Brósio


É bem provável que ao saberem que padre Cocchi cogitava abrir o Oratório
de São Martinho nos moinhos de Borgo Dora, pouco distante a leste, alguns
catequistas de Valdocco pensassem em unir-se à nova aventura. Padre Cocchi era
um animador de Oratório muito conhecido e atraente. Ele fundara o Oratório
do Anjo da Guarda, no Moschino, bairro de Vanchiglia, o primeiro do seu tipo
em Turim. É pensável que o Oratório projetado por ele em São Martinho preci-
sasse de catequistas e de mais pessoal. Talvez houvesse até um pedido de ajuda, e
alguns catequistas de Dom Bosco o tenham visto como interessante.
Não há dúvidas de que alguns catequistas e outras pessoas de Valdocco
eram desleais e contrários a Dom Bosco; voltaram-se, então, para o padre
Cocchi porque, entre outras coisas, não estavam satisfeitos pelo modo como o
Oratório de Dom Bosco era dirigido. O relato de Brósio dá um passo a mais;
fala de uma conspiração real, promovida por gente poderosa. Ele escreve:

27
A primeira informação está no relato I, C1.4 (16 -19) FDBM 555 B3-6. A segunda informação,
no relato II (1-5), FDBM 555 C7-11. Brósio fala de alguns padres e de um deles em particular, que parece
ter sido o chefe do grupo. Fala também de “senhores”, talvez aludindo a leigos ou aos padres menciona-
dos anteriormente. Estes são “conspiradores”; entre eles há catequistas e jovens (líderes dos meninos do
Oratório) que os protagonistas atraíram ou tentaram atrair. Ninguém é identificado pelo próprio nome.

556

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Em 1850 ou 1851, deflagrava-se um complô secreto para destruir o Oratório


(de São Francisco de Sales). Os próprios organizadores o admitiam, e alguns
reverendos que ajudavam no Oratório estavam entre os chefes da conspi-
ração. Aos domingos, estes senhores vinham ao Oratório para convidar os
mais velhos a passearem com eles fora da cidade, pagando-lhes a refeição e a
merenda em restaurantes; desse modo, certo número de meninos faltava em
quase todos os dias festivos.28

Brósio, que era líder indiscutível das atividades juvenis do Oratório de


Valdocco, recebera algumas visitas dos “protestantes” (valdenses), que lhe
tinham oferecido um emprego lucrativo e segurança se abandonasse Dom
Bosco e afastasse os meninos do Oratório. Brósio acrescenta: “Não só os pro-
testantes como também alguns senhores católicos – e até padres – me ofere-
ceram presentes, dinheiro e ofertas, para que fizesse algo para acabar com o
Oratório”.29 E relata um dos incidentes:

“O padre” veio certo dia festivo convidar-me para um passeio pelo campo; co-
muniquei imediatamente a Dom Bosco, mesmo tendo-me ele proibido de lhe
falar daquelas desagradáveis reuniões. Dom Bosco permitiu que eu aceitasse,
e fui com prazer a fim de ver o rumo que as coisas tomavam. No domingo
seguinte, depois das funções da manhã, saí do Oratório para encontrar-me
no lugar marcado, ou seja, na Porta Palácio. Ali já estavam os outros colegas
que me esperavam com os senhores [não se dizem os nomes] que acreditavam
que eu não me apresentaria. Ao ver-me chegar, celebraram o fato e, satisfeitos,
me beijaram e abraçaram. O cavalheiro [padre?] exclamou: “Hoje será a nossa
maior festa, porque contamos com nosso íntimo amigo, com nosso querido
bersagliere [soldado]”. (Eles pensavam que eu não me apresentaria).
Tomamos a rua Milão e fomos andando até o restaurante Centauro onde, logo
que chegamos, serviram-nos alguns refrescos. Ao meio-dia apresentaram-nos
uma comida estupenda: não se poderia esperar mais. Vinhos finos e abundan-
tes. Depois de comer, começaram as diversões. Jogamos bochas, cantamos,
corremos enquanto continuavam a servir-nos ótimos vinhos. Passou-se assim
o dia todo. Ao anoitecer voltamos à cidade e, ao chegar a Porta Palácio, fomos
tomar um café e nos separamos para ir cada um à própria casa com o convite
de nos encontrarmos novamente no domingo seguinte pela manhã, na igreja
de... [não diz a igreja]. Eu, em vez de ir para casa, fui ao Oratório contar a

28
Brosio, Informe, relato I, 16, FDBM 555 B3.
29
Brosio, Informe, relato I, 16, FDBM 555 B3.

557

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Dom Bosco: história e carisma 1

Dom Bosco tudo que tinha acontecido e perguntar-lhe o que deveria fazer
no domingo seguinte. Dom Bosco, depois de ouvir-me até terminar, disse-
-me que eu fosse. No domingo seguinte, encontramo-nos na igreja indicada.
Terminada a Missa, levaram-nos ao café chamado das Galerias de São Carlos,
que se localizava em Porta Nova (hoje via Roma) para o café da manhã. Nas
duas ocasiões, insistiram para que abandonássemos o Oratório; diziam-nos
que Deus está em todos os lugares e que podíamos nos santificar em qualquer
lugar, se o quiséssemos.30 À tarde, retornei ao Oratório para prestar contas de
tudo a Dom Bosco e comuniquei-lhe o novo convite para uma merenda no
domingo seguinte; Dom Bosco, porém, não me deixou voltar àquela gente.
O padre dera-me 6 escudos de prata (30 liras),31 acreditando que dessa forma
conseguiria mais facilmente seu desejo de filiar-me para sempre ao seu grupo.
Não queria aceitá-los; mas deu-me tantas razões, ao pôr as moedas em minhas
mãos, que fiquei gelado e como pedra, como uma estátua de mármore. Assim
que peguei o dinheiro, perdi a tranquilidade, fiquei com remorso, acredi-
tando ter traído Dom Bosco só por tê-lo aceitado, e imediatamente o dei
em esmola a um pobre pai de família que muito precisava. Corri depois ao
Oratório para expor a Dom Bosco o que tinha acontecido. Ele me disse que
podia ter ficado com o dinheiro sem nenhum escrúpulo, mas que tinha feito
uma boa ação ao dá-lo em esmola.32

Deduz-se desse relato que uma coalizão de leigos católicos e padres, um


destes em especial, por alguma razão, estavam decididos a acabar com o Ora-
tório de Dom Bosco, manipulando o pessoal. Tentavam afastar os catequistas
com subornos em dinheiro, refeições e diversões, talvez esperando que fossem
para o Oratório do padre Cocchi a ser aberto em São Martinho.

Segundo relato de Brósio


As hostilidades dos “conspiradores” não se aquietaram, segundo narra
Brósio em outro episódio que se deve situar em fins de 1851 e princípios
de 1852. O mesmo grupo de “cavalheiros”, liderados por um padre anôni-
mo (parece ter sido uma pessoa importante da cidade), sentiu-se ofendido

30
Essas pessoas, embora inclinadas ao mal, como “bons católicos” ouviram missa e sermão.
O padre sem nome (Lemoyne chama-o de padre Rodrigo, cf. MB IV, 375) parece ter preparado
celebrações dominicais na igreja indicada.
31
O escudo, equivalente a 5 liras, era uma soma considerável.
32
G. Brosio, Informe, relato I 16-19, FDBM 555 B3-6. Brósio também acrescenta que um
beneficiado de São João prometeu-lhe muitas vantagens se abandonasse Dom Bosco e se inscrevesse
no Oratório dos filipinos.

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

porque viram como expansionistas os planos de Dom Bosco, determinado a


construir sua própria igreja (de São Francisco de Sales) e estava organizando
uma grande rifa para recolher fundos. Demonstravam-se ofendidos com o
modo como os meninos do Oratório eram descritos na carta circular para a
ocasião. Aproveitando o descontentamento entre o pessoal do Oratório de
Valdocco, os dissidentes tentaram novamente afastar os melhores catequistas
e dividir o Oratório. Com esse propósito, os “conspiradores” convocaram
uma reunião com a finalidade de acusar Dom Bosco de ter difamado, em sua
circular sobre a rifa, os que trabalhavam no Oratório.
Desde que adquiriu a casa Pinardi e o terreno contíguo, em 19 de fe-
vereiro de 1851, Dom Bosco planejava todo o complexo de Valdocco. Seu
primeiro projeto grandioso era edificar a igreja de São Francisco de Sales,
que inaugurou em 20 de junho de 1852. As ajudas recebidas eram escassas e
não garantidas. Seguindo o conselho de alguns amigos, Dom Bosco obteve
licença da municipalidade para fazer uma rifa; a primeira (e talvez a de maior
sucesso) das 9 feitas durante sua vida.33 Para a sua realização, ele fazia uma
breve história e descrição do Oratório.

Completam-se agora dez anos desde os inícios de uma modesta obra bene-
ficente no distrito de Valdocco desta cidade sob o título de Oratório de São
Francisco de Sales, voltada unicamente ao bem intelectual e moral dessa parte
da juventude que, pela incúria dos pais, pelo contato com amizades perversas
ou pela falta de meios, encontra-se exposta continuamente ao perigo da cor-
rupção. Algumas pessoas, amantes da boa educação do povo, viram com pesar
como aumentasse a cada dia o número de jovens ociosos e mal-aconselhados
que, vivendo de esmola ou fraude pelas vias públicas, constituem um peso so-
cial e são, frequentemente, instrumentos de delito. Viram também, com sen-
timento de profunda tristeza, que muitos dos que se dedicavam ao exercício
das artes em indústrias da cidade, empregavam os dias festivos para gastar no
jogo e em diversões desordenadas o escasso dinheiro ganho durante a semana
[...]. Por isso, instituiu-se um Oratório dedicado a São Francisco de Sales; [...]
providenciou-se o necessário para a celebração das funções religiosas e para
dar educação moral e cívica aos meninos.34

Com estas e outras expressões Dom Bosco se tornava culpado, assim


clamava a oposição, de difamar todo o pessoal do Oratório, sem distinção,

Para a história detalhada da rifa, cf. MB IV, 326.355ss.


33

A carta-circular é datada em 20 de dezembro de 1851; ver Epistolario I Motto, carta 94, 139-141;
34

MB IV, 329.

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Dom Bosco: história e carisma 1

qualificando-os de vagabundos e ladrões. Era preciso confrontá-lo e pedir-lhe


um desagravo.
A fim de pressionar, e com o objetivo último de persuadir o pessoal do
Oratório a abandonar Dom Bosco, convocou-se uma reunião. Brósio escreve:

Certo dia festivo, depois das funções da tarde, fomos convidados por alguns
senhores a uma conferência para resolver uma questão que, segundo diziam,
tinha a ver com a nossa honra. Alguns dos mais instruídos e inteligentes sus-
peitaram de uma armadilha, e não intervieram. Tratava-se, de fato, nem mais
nem menos, de acusar Dom Bosco de nos ter insultado e desonrado publica-
mente chamando-nos de vagabundos e ladrões. A acusação baseava-se na re-
cente carta sobre a loteria escrita e distribuída por Dom Bosco [...]. A circular
deixava de mencionar que muitos jovens (os catequistas em particular) eram
pessoas de bom caráter, de boas e até ricas famílias.35

Quando foram lidos os termos da “acusação”, toda a assembleia foi to-


mada de grande excitação. Nesse momento, Brósio tomou a palavra. Em
seu discurso pediu a todos que pensassem e agissem com calma; em seguida,
continuou (resumo):

Se Dom Bosco reconhecer o erro, termina toda a questão; se, ao contrário, re-
cusar a retratar-se, será inevitável agir, nesse caso. Contudo, antes de chegar a
esse extremo, examinemos com calma se as frases dessa circular requerem um
protesto violento de nossa parte. Observe-se verdadeiramente se essas frases
nos ofendem e desonram. Se não houver na circular um período que distinga
as duas categorias de jovens do Oratório, talvez se deva a um erro de imprensa
ou a uma omissão involuntária, porque me pareceria muito audacioso e ma-
licioso que Dom Bosco tivesse querido dessa forma atentar contra a honra de
jovens aos quais tanto ama. Meu parecer é que uma simples queixa, apresenta-
da por nós a Dom Bosco, é mais do que suficiente para obter explicações. Ele
mesmo será o primeiro a propor a reconciliação, tão desejada por ele. Dessa
forma, serão poupados graves desgostos a ele e a nós, que poderiam causar
males maiores às duas partes, que depois teríamos de lamentar.36

As palavras de conciliação de Brósio caíram no vazio. Sentiu-se um silên-


cio glacial em toda a sala; depois de um murmúrio de desaprovação, começou
a gritaria. Os promotores e cúmplices daquela espécie de revolução não dei-

G. Brosio, Informe, relato II, 1, FDBM 555 C7.


35

G. Brosio, Informe, relato II, 1-2, FDBM 555 C7-8. O parágrafo é um resumo do texto de
36

Brósio, mais complicado. Lemoyne, embora pretenda citá-lo, faz uma narração mais elaborada.

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

xaram fugir ocasião tão propícia aos seus intentos. Tão logo terminada a gri-
taria, levantou-se certo indivíduo, impondo rigoroso silêncio, e disse: “Vosso
companheiro falou que bastariam umas observações amigáveis para corrigir as
frases da circular e reparar assim a vossa honra. Dom Bosco só oferece descul-
pas ou explicações hipócritas”. E concluiu: “Será essa a verdade que desejais?”.
Irrompeu um furioso estrondo na audiência. Estava claro que, para ficarem
bem com a audiência, aqueles senhores tinham ouvido as palavras conciliató-
rias de Brósio. Optaram, porém, por chegar a um violento cisma.37
No domingo seguinte, um pequeno grupo de meninos mais insolentes,
liderados por [não se diz o nome] confrontaram-se com Dom Bosco na sacris-
tia. Brósio estava entretendo os meninos com marchas militares e, ao passar
casualmente pela sacristia, ouviu que lá dentro se gritava. Entrou para ver o que
estava acontecendo e viu um rapazola que acabava de falar. Deteve-se e viu que
Dom Bosco lhe respondia tranquilamente; a carta, ele dizia, falava em geral dos
meninos em perigo que eram a maioria dos que participavam, já que o Oratório
tinha sido fundado para eles. Os catequistas e jovens de bom caráter e de boas
famílias deviam gloriar-se de ir ao Oratório para cooperar dessa maneira em tão
boa ação. O rapaz que protestara, sem escutar Dom Bosco, começou a proferir
insultos. Brósio esteve a ponto de intervir fisicamente contra o vilão. Dom Bos-
co, porém, afastando-o, interveio em defesa do Oratório. Brósio continua:

Dom Bosco ficou furioso; dirigiu-se ao menino e repreendeu-o severamente,


chamando-o de biricchino (moleque) e ameaçando expulsá-lo do Oratório.
[...] Juro, e é a verdade, que nos quarenta anos de conhecimento de Dom Bos-
co, nunca o vi tão nervoso. E tinha toda a razão, porque aquela gente procu-
rava acabar com seu mais preciso tesouro, o seu Oratório e os seus meninos.38

O abandono do pessoal do Oratório de São Francisco de Sales foi sig-


nificativo e danoso. O grupo dissidente incluía catequistas, padres e alguns
senhores que estavam envolvidos diretamente ou colaboravam na caminha-
da do Oratório.
Em fevereiro de 1852, padre Cocchi abriu o Oratório que planejara nos
moinhos de Borgo Dora. Muitos dos dissidentes foram para o Oratório de São
Martinho. Padre Cocchi, envolvido de algum modo na disputa, aceitou-os; apesar
de tudo, eram trabalhadores dedicados e significavam um recurso de grande valor.
37
G. Brosio, Informe, relato II, 2-3, FDBM 555 C8-9. Lemoyne, ainda pretendendo citar,
acrescenta esta conclusão: “Naquele momento, irrompeu na sala um rugido de furor e decidiu-se que
todos abandonassem o Oratório e Dom Bosco” (MB IV, 372).
38
G. Brosio, Informe, relato II, 4, FDBM 555, D10. Lemoyne suaviza a linguagem nesta pas-
sagem, omitindo a referencia à fúria e ao desgosto de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 1

No Oratório de São Martinho desfrutaram de melhor cartaz do que em


Valdocco. Os catequistas fiéis a Dom Bosco, Brósio entre eles, romperam toda
relação com os dissidentes. Outros, porém, como Carlos Gastini, pensaram que
podiam dividir o seu tempo entre os dois Oratórios. Dom Bosco aceitou esta
solução durante algum tempo; depois, pediu-lhes que escolhessem.39 Lemoyne
acrescenta que esses acontecimentos obrigaram Dom Bosco a treinar às pressas
novos catequistas, escolhendo-os entre os melhores meninos do Oratório.40
Brósio conclui o seu relato afirmando que, embora a oposição fosse der-
rotada em sua tentativa de acabar com o Oratório de Dom Bosco, tomaram-se
medidas para aumentar as atividades recreativas, talvez para tornar o Oratório
mais atrativo (competir com o de São Martinho?). Brósio, por sua vez, conti-
nuou com seus exercícios militares e jogos de guerra. Como o pátio do Orató-
rio era muito pequeno, seu batalhão usava um terreno baldio que ficava a sul,
que Dom Bosco comprara recentemente do seminário e que, mais tarde, seria
identificado como “o campo dos sonhos”. A partir dali, o batalhão de Brósio
expandia-se para leste por uns campos ainda sem lavrar, chegando até o bairro de
São Donato, perto do Oratório de São Martinho. Brósio continua dizendo: “Ali
chegando, eu comprava dois grandes cestos de frutas com o dinheiro que Dom
Bosco me dava para esse fim, e as distribuía entre os meus soldados”.41

3. Dom Bosco e seus Oratórios obtêm reconhecimento


Dom Bosco desejara há muito tempo que as autoridades eclesiásticas
conhecessem o trabalho dos Oratórios e o aprovasse. Em 1850 foi até Pio IX
para solicitar graças especiais em favor das três “congregações” das quais era
diretor, e que, em suas próprias palavras, foram “legitimamente” estabelecidas
em Turim para “instruir os jovens abandonados na religião e na piedade”.
Foi-lhe concedido o que pediu.42 Dom Bosco fez valer esses apoios e conside-
rava-os como sinais de “aprovação”.
39
MB IV, 376. Carlos Gastini (1833-1902) foi um dos primeiros oratorianos internos na resi-
dência do Oratório (casa annessa). Ele recebeu a batina em 2 de fevereiro de 1851, com José Buzzetti,
Félix Reviglio e Tiago Bellia. Era engenhoso e trabalhador, dedicado ao Oratório. Cf. MB IV, 246-247.
40
MB IV, 381ss. Aqui, Lemoyne fala de catequistas, antigos e novos, informação não dada no
relato de Brósio.
41
G. Brosio, Informe, relato II, 4-5, FDBM 555 D10-11.
42
Os decretos papais, com data de 28 de setembro de 1850, eram uma resposta aos pedidos
de Dom Bosco em 28 de agosto (cf. Epistolario I, F. Motto, 110-111); concediam indulgências à
“Congregação estabelecida com o título e sob o patronato de São Francisco de Sales” e à “Congregação
estabelecida com o título e sob o patronato do Anjo da Guarda”. Os dois documentos papais são con-
servados nos Arquivos Centrais Salesianos. É provável que também houvesse um terceiro decreto para
a “Congregação estabelecida com o título e sob o patronato de São Luís”. Cf. MB IV, 93.530.

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Dom Bosco entre seus meninos em 1861 (pelo fotógrafo Francisco Serra).

Mais importante, contudo, foi o Decreto de 31 de março de 1852 do exila-


do arcebispo Fransoni. Com ele, o arcebispo nomeava (reconhecia) Dom Bosco
como “único diretor espiritual” dos três Oratórios de São Francisco de Sales, de
São Luís e do Anjo da Guarda. No decreto, eram concedidas faculdades relativas
à assistência à Missa, a recepção de sacramentos, a instrução catequética etc.; na
prática, tornavam aqueles Oratórios independentes de qualquer paróquia. Como
Dom Bosco explicava, “o Oratório é a paróquia dos jovens sem paróquia”.
Um segundo decreto da mesma data e de igual importância, ao menos
por suas implicações, tornava padre Roberto Murialdo “diretor espiritual do
Oratório do Anjo da Guarda”, dependente de Dom Bosco.43
43
Os decretos originais estão nos Arquivos da diocese de Turim e (em cópia autenticada em 12
de maio de 1868) nos Arquivos Centrais Salesianos; estão editados em MB IV, 528-530.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Estes decretos acabaram com a crise. As forças que os impulsionaram


e os fatos que levaram a essa decisão tão importante do arcebispo não são
bem documentados. O que se falou anteriormente é a melhor explicação
sobre o assunto.
Parece que a resolução do arcebispo se deveu à necessidade que ele via
de dar estabilidade à obra dos Oratórios. De aí, não duvidar em preferir
Dom Bosco aos outros padres também comprometidos na obra. Não ou-
sou deter as iniciativas do padre Cocchi, colocando-o sob a autoridade de
Dom Bosco. Seu decreto, sem dúvida, eliminava na prática “a oposição” e
ligava para sempre o nome de Dom Bosco à obra dos Oratórios. Por isso,
conferiu a Dom Bosco alguns direitos que ele não terá dúvidas em reclamar
mais tarde.

Características dos Oratórios de Dom Bosco


Dom Bosco conhecera experiências anteriores e outros modelos de ora-
tórios; por exemplo, os Oratórios da Lombardia (Milão, Bérgamo e Bréscia)
e, muito antes, os Oratórios de São Felipe Neri, em Roma. Em Turim, pôde
ver uma experiência básica, o Oratório do Anjo da Guarda do padre Cocchi.
Pode-se afirmar, portanto, que ele era continuador de experiências anteriores,
e que, a partir delas, foi extraindo as características essenciais do Oratório:
instrução religiosa e atividades recreativas com finalidade educativa. O Ora-
tório, como deve ser qualquer obra salesiana, dirigia-se aos jovens: um lar,
uma igreja, uma escola e um pátio.
Dom Bosco aceitou a tradição, mas conseguiu dotar seus Oratórios de
algumas características próprias. Podemos enumerar algumas dessas carac-
terísticas, fazendo notar que outros Oratórios, como os do padre Chocchi,
se diferenciavam em primeiro lugar, pelos objetivos específicos. As obser-
vações a seguir levam em conta principalmente os Oratórios que funciona-
vam nas paróquias.
Tradicionalmente, os Oratórios eram uma atividade paroquial ou, ao
menos, dependiam de uma paróquia. Os Oratórios de Dom Bosco transcen-
diam a instituição paroquial. Talvez, ele tenha logo percebido a insuficiência
da estrutura paroquial e sua incapacidade para resolver a nova situação dos
jovens. Essa percepção fez com que compreendesse o modo de encarar os
problemas que afetavam os jovens. A localização apartada do Oratório de

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

Valdocco, escolhida apesar do caráter difícil do bairro, garantia a indepen-


dência do seu trabalho.44
Os oratórios tradicionais eram apenas “oratórios festivos”, ou seja,
reuniam-se apenas nos domingos e dias festivos, e só durante algumas
horas da tarde. Dom Bosco reunia os jovens o dia todo, proporcionando-
-lhes tudo aquilo de que precisassem. Mais tarde, ampliou seu Oratório
criando aulas diurnas e noturnas, visitando os meninos no trabalho e
“assistindo-os”, ou seja, provendo a todas as suas necessidades reais. Esta
proximidade exigia uma relação que abrangia a semana toda. Isso, mais a
importância da instrução religiosa, era provavelmente a marca distintiva
dos Oratórios de Dom Bosco.
O oratório tradicional era definido principalmente pela assistência à
igreja e às reuniões em determinados locais paroquiais. Os meninos que iam
ao Oratório de São Francisco de Sales, inclusive depois da fase itinerante, iam
“passar o dia com Dom Bosco”, onde quer que o Oratório estivesse “situado”.
Os locais eram “meios” necessários para criar um Oratório.
Os oratórios tradicionais eram seletivos, centravam a atenção nos meni-
nos melhores. Os pais apresentavam os jovens e garantiam sua boa conduta.
Dom Bosco, ao contrário, fundou seu Oratório para todos e dava preferência,
até onde fosse possível, aos verdadeiros pobres e abandonados, jovens saídos
das prisões, desempregados, à deriva, em perigo, pertencentes às camadas
mais pobres da sociedade.45
No oratório tradicional, a importância dos jogos e do pátio era limi-
tada. O pátio era o “jardim de recreio”, termo usado às vezes por Dom
Bosco por acreditar que era pertinente chamar de pátio aos mesmos Ora-
tórios (!). O pátio de Dom Bosco e os jogos que nele se faziam permitiam
uma ampla possibilidade de distração juvenil, de que também o pessoal
do Oratório participava.

44
Em carta de 13 de março de 1846 ao vigário Cavour, Dom Bosco faz notar o fato de que a
propriedade Pinardi estava distante de todas as igrejas paroquiais.
45
Dom Bosco não permitia que membros de bandos ou meninos sempre avessos à religião parti-
cipassem indiscriminadamente do Oratório; mas tentava conquistá-los e, com frequência, o conseguia.

565

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Apêndice

NOTA BIOGRÁFICA DE JOSÉ BRÓSIO

Quem foi José Brósio? Em seu relato, ele se atribui a honra de ter conhe-
cido Dom Bosco quando este ainda era seminarista em Chieri e ali passava
o tempo com os meninos. Quando os seminaristas iam à “catedral” para as
celebrações religiosas, todos procuravam pelo “seminarista de cabelos cres-
pos”. Brósio ficou tão impressionado com a maneira de Dom Bosco atrair
os meninos, que desejava conhecê-lo melhor. Foi-lhe fácil, por ser amigo dos
Comollo; quando visitava Luís Comollo no seminário, encontrava-o sempre
em companhia de João Bosco. Chegou, assim, a ser seu amigo.46
Sabe-se pelo seu relato que foi para Turim e começou a trabalhar como
vendedor, ao mesmo tempo em que ajudava no Oratório. Lemoyne diz que
Brósio ajudou Dom Bosco no Oratório desde 1841, e continuou ligado a
ele por 46 anos.47 Quando escreveu o seu relato, diz ter convivido com Dom
Bosco por 43 anos.48
Depois de deixar os bersaglieri, corpo do exército, no qual se alistara
durante a guerra de 1848-1849, Brósio continuou a ser um fiel ajudante de
Dom Bosco. Como se vestia sempre com uniforme militar ficou conheci-
do como “o bersagliere”.49 Os bersaglieri eram a elite militar, corpo de gran-
de mobilidade no exército do Piemonte. Montados em bicicletas, podiam
mover-se rapidamente. No contexto da Primeira Guerra da Independência
(1848-1849), como o entusiasmo patriótico aumentara muito, Dom Bosco
permitiu que os meninos fizessem exercícios militares e batalhas simuladas
sob a direção de Brósio, “il bersagliere”.
Quando padre Vola foi nomeado diretor do Oratório do Anjo da Guar-
da, em Vanchiglia, Dom Bosco enviou Brósio àquele oratório para dar aulas
de catecismo e dirigir o recreio dos meninos. A região estava muito exposta
à ação de um bando hostil. Como Brósio introduzira ginástica e jogos de
46
G. Brosio, Informe, relato I, FDB 554 E 12.
47
MB III, 74-75.
48
G. Brosio, Informe, relato II, 4, FDB 555 C10.
49
G. Brosio, Informe, relato I, 23 FDB 555 B10.

566

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

guerra, os meninos, “armados” e em formação militar, enfrentaram em algu-


mas ocasiões, o bando e seu chefe, conhecido como “barrabás”.50
A crise do Oratório passou, não sem consequências, mas Dom Bosco,
em 1852, saiu dela respaldado por dom Fransoni.
Às vezes, Dom Bosco servia-se da casa de Brósio, que ficava perto, como
retiro para poder escrever e trabalhar sem ser incomodado. Certa vez, insistiu
com Brósio para que estudasse e pudesse ser professor. Brósio tentou, mas
depois de algum tempo, precisou admitir não ter nem tempo nem vocação,
mas continuou a fazer parte do Oratório durante toda a sua vida.

TEXTOS DE DOM BOSCO SOBRE O PRIMEIRO


ORATÓRIO
Carta de Dom Bosco aos Administradores da Mendicância Instruída,
20 de fevereiro de 185051
Ilustríssimos Senhores:
O padre João Bosco, desejoso de proporcionar aos jovens mais
abandonados todos os benefícios civis, religiosos e morais que lhe
fossem possíveis, começou em 1841 a reunir certo número deles
num local contíguo à igreja de São Francisco de Assis. Dada a situa-
ção do local, o número deles foi limitado a 70 ou 80 [faz-se menção
à mudança para o Refúgio e à época do Oratório itinerante].
Em 1846, pôde-se alugar o local onde se abriu o Oratório de São
Francisco de Sales, em Valdocco. Ali aumentou a afluência dos jo-
vens; às vezes, reuniam-se de 600 a 700 jovens, dos 12 aos 20 anos,
a maior parte deles vinha das prisões ou corria o risco de ir parar
nelas [faz-se menção ao Oratório que, em fins de 1847, fora aberto
em Porta Nova, sob o título de São Luís].
Como as necessidades dos tempos demonstraram sempre mais a
necessidade de educar e atender aos meninos abandonados, em ou-
tubro de 1849, em Vanchiglia, foi reaberto o [Oratório] do Anjo da
Guarda, encerrado um ano antes pelo muito zeloso sacerdote padre
João Cocchi, vice-pároco de Nossa Senhora da Anunciação. Entre
os 3 oratórios, chega-se frequentemente a 1 mil meninos [descre-
vem-se as atividades de diversões e recreios].
50
G. Brosio, Informe, relato I, Introdução, 3-4, FDB 554 E 12 - 555 A1. MB XVII, 853s.
[Barrabás = barabba, em italiano, significa ladrão, bandido, meliante.]
51
Epistolario I Motto, 96ss.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Há também uma residência para acolher de 20 a 30 meninos em


situações particulares de extrema necessidade, em que alguns deles
vivem frequentemente. Até o momento, fez-se tudo com a ajuda de
algumas pessoas caridosas, eclesiásticas e leigas. Os padres dedicados
a isso de modo especial são os teólogos Borel, Cárpano, Vola, os
reverendos Ponte, Grassino, Murialdo e Giacomelli, e o professor
Marengo [formulam-se as necessidades econômicas e o pedido de
ajuda apoiado no fato de o objetivo dos Oratórios coincidir com o
da Mendicità Istruita].
Nota: em resposta ao pedido, os administradores da associação recomen-
daram uma oferta de ajuda, mas nem sempre responderam favoravel-
mente às solicitações de Dom Bosco.
Declaração de Dom Bosco no Boletim Salesiano: primeiros sócios e
Cooperadores de Dom Bosco na obra do Oratório
A partir de 1841, a instrução religiosa era dada aos meninos mais
pobres e abandonados; em concreto, aos jovens que se encontravam
em perigo de, a qualquer momento, acabarem na prisão. A messe
era grande e crescia a cada dia. Dom Bosco via-se rodeado, às vezes,
por 500 ou 600 meninos e sentia-se incapaz de mantê-los ocupados
e atendê-los. Diante dessas circunstâncias, muitos padres zelosos e
leigos cristãos quiseram associar-se a Dom Bosco em seu ministério.
Dentre os primeiros e mais importantes de todos, recordarmos padre
João Borel, padre José Cafasso e cônego (Carlos Antônio) Borsarelli
[de Rifreddo]. Foram estes os primeiros cooperadores dentre o clero,
mas como tinham outras ocupações inevitáveis, só podiam estar à
disposição durante algumas horas e em determinadas ocasiões.
Recorremos, então, à ajuda de senhores da nobreza e da classe mé-
dia, e recebemos uma resposta generosa de muitos deles. Eles vi-
nham e dedicavam-se a ensinar catecismo, dar aulas, supervisionar
os meninos dentro e fora da igreja. Com dedicação exemplar, guia-
vam os meninos nas orações e nos cantos, preparavam-nos para a
recepção dos sacramentos da penitência, da comunhão e da confir-
mação. Além de permanecerem na igreja, estavam sempre prontos
a receber os meninos quando estes chegavam ao Oratório, indicar-
-lhes o lugar no recreio, participar de seus jogos e garantir a ordem
com boas maneiras.
Outra ocupação importante dos cooperadores era a “bolsa de tra-
balho”. Muitos meninos eram de fora da cidade, às vezes de luga-
res muito distantes; viam-se sozinhos, sem meios de subsistência,

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

sem trabalho, sem ninguém que se preocupasse com eles. Por isso,
alguns cooperadores cuidavam dos meninos, faziam com que se
mantivessem limpos, colocavam-nos com algum patrão honrado e
preparavam-nos para apresentar-se ao lugar de trabalho. Durante a
semana, visitavam os jovens e procuravam fazer com que retornas-
sem ao Oratório no domingo seguinte; e que não perdessem num só
dia o que tinham ganho com o trabalho de várias semanas. Muitos
desses cooperadores, com grande sacrifício pessoal, durante o inver-
no, vinham assiduamente todas as tardes e davam aulas de leitura,
escrita, canto, aritmética e língua italiana. Outros, por sua vez, vi-
nham diariamente ao meio-dia para ensinar catecismo aos jovens
mais carentes de instrução.
Dos numerosos leigos que merecem o nosso reconhecimento pela ca-
ridade e dedicação, o empresário senhor José Gagliardi era um dos que
mais sobressaíam. Generosamente, ele dedicava todo o tempo livre
e todas as reservas para ajudar os meninos do Oratório. Costumava
chamá-los afetuosamente de “nossos meninos”. Faleceu há alguns anos
e será gratamente recordado enquanto perdurar a obra dos oratórios.
Deus o chamou para Si os seguintes cooperadores que nos ajudavam:
[?] Campagna, banqueiro; João Fino, empresário; cavalheiro José Cot-
ta; e o bem conhecido conde Vitório de Camburzano.
Entre os que estão vivos, queremos que conste nosso reconheci-
mento agradecido ao conde Carlos Cays; a José Dupré; ao marquês
Domingos Fassati; ao marquês João Scarampi; aos três irmãos, con-
des Carlos, Eugênio e Francisco De Maistre; ao cavalheiro Marcos
Gonella; ao conde Francisco [Viancini di] Viancino; ao cavalheiro
Clemente di Villanova; ao conde Casimiro di Brozzolo; ao cava-
lheiro Lourenço d’Agliano; ao senhor Miguel Scanagatti; ao barão
Carlos Bianco di Barbania e a muitos outros.
Entre os numerosos padres que se associaram ao nosso trabalho, po-
demos mencionar os seguintes: irmãos [João] Inácio e João [Batista]
Vola; padre [Paulo Francisco] Rossi, que morreu como diretor do
Oratório de São Luís; o procurador [João Batista] Destefanis. Deus
chamou todos eles para sua morada no céu. A estes nomes, devemos
acrescentar os do padre Roberto Murialdo, atualmente diretor de A
Família de São Pedro, e do padre Leonardo Murialdo, atual diretor
do Instituto dos Pequenos Aprendizes (Artigianelli).
Entre os mais antigos padres cooperadores que ainda vivem (Deus
seja bendito), deve-se mencionar os seguintes: padre José Trivero;
cavalheiro padre Jacinto Cárpano; padre Miguel Ângelo Chiatellino;

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Dom Bosco: história e carisma 1

padre Ascânio Sávio; padre João Giacomelli; o professor [?] padre


Chiaves; padre Antônio Bósio, então pároco; padre Sebastião Pac-
chiotti; professor [João Batista] Musso; cônego [?] Musso, profes-
sor; padre Pedro Ponti [Ponte]; cônego Luís Nasi; cônego professor
[Francisco] Marengo; padre Francisco Onesti, professor; padre Emi-
liano Manacorda, agora bispo de Fossano; cônego Eugênio Galletti,
agora bispo de Alba. Devemos reconhecer, sobretudo, a colabora-
ção do nosso arcebispo, o então cônego [Lourenço] Gastaldi. Esta-
va sempre disponível para pregar, confessar e dar aulas. Ele sempre
considerou os Oratórios festivos como uma obra providencial, uma
obra orientada e conduzida por Deus.52
Todos estes cooperadores vinham aos campos de Valdocco para tra-
balhar. O bairro agora está cheio de edifícios, mas naquela época era
quase completamente desabitado. Eles vinham e dedicavam tempo,
dinheiro e suas melhores energias em favor dos jovens em perigo,
para reuni-los a fim de instruí-los nas verdades da fé e devolvê-los à
sociedade convertidos em bons e proveitosos cidadãos [...].53
Tivemos cooperadores, homens e mulheres. Alguns de nossos alu-
nos não eram muito asseados, mas descuidados e sujos. Ninguém os
suportava e nenhum patrão os queria receber em suas oficinas. Mui-
tas mulheres caridosas vieram em sua ajuda. Lavavam, costuravam,
passavam como também davam roupas novas e roupas íntimas a es-
ses meninos, segundo suas necessidades. [...] Chefe dessas mulheres
era a senhora Margarida Gastaldi, que trabalhou no Oratório como
cooperadora, com sua filha (as duas já receberam o seu prêmio) e
sua sobrinha, Lourencinha Massè. Outras colaboradoras fiéis foram
a marquesa Maria Fossati, a condessa Gabriela Corsi, a condessa
Bosco-Riccardi e sua filha Julieta, a condessa Casazza Ricardi, a no-
bre senhorita Cândida Bosco, a condessa Bosco-Cantono, a senhora
Vicentina Occhiena, a senhora Bianco Juva e muitas outras. Um
bom número de instituições caritativas e educativas também uniu
esforços em favor dos jovens pobres.
Todos pareciam inflamados de entusiasmo nesta obra de misericór-
dia, que era muito parecida à de “vestir quem estava nu”. Os meni-
nos, agradecidos pelos benefícios recebidos, também se ofereciam

52
Deve-se levar em conta que isso foi escrito em fins de 1877, quando o conflito entre Dom
Bosco e o arcebispo Gastaldi chegava ao seu nível máximo, depois de uma série de choques, com a
publicação do primeiro panfleto difamatório anônimo.
53
São descritos aqui alguns breves parágrafos sobre a maneira como o Oratório era dirigido,
segundo uma série de normas, sem recorrer a ameaças ou castigos. Estes seriam os Regulamentos para os
meninos do Oratório, de 1854, dos quais citamos a introdução do próprio Dom Bosco e a Nota histórica.

570

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

de boa vontade para cantar, ajudar como ministrantes naquelas


mesmas instituições. Expressavam a sua gratidão por seus benfeito-
res nas orações da manhã e da noite.

CORRESPONDÊNCIA BOREL-CAFASSO-PONTE,
SOBRE A CRISE DO ORATÓRIO
Carta do teólogo Borel ao padre Pedro Ponte
Padre Pedro Ponte, em carta ao teólogo Borel, queixava-se da situação
do Oratório e dos danos que estava sofrendo. Padre Borel respondeu-lhe:54
Turim, 23 de outubro de 1851
Mui querido e reverendo senhor padre Pedro Ponte:
Preocupa-nos sempre mais o bem dos Oratórios; por isso, entende-
mos que a união entre os membros, de qualquer tipo que eles sejam,
é o melhor conselho, porque assim teremos Deus conosco. Portan-
to, estejamos todos de acordo, com a ajuda divina, para promover
esta união tão desejada, seja estreitando sempre mais este espírito
entre nós, seja evitando tudo o que a ele se oponha.
Entre outras coisas, não duvidamos que se trate de um dano notável
para a união, reter e conservar a propriedade e o uso das coisas que
se adquiriram para o bem de um Oratório, excluindo os demais
Oratórios do seu uso; como também que, num mesmo Oratório,
um membro possa servir-se dos objetos ali existentes para uso do
Oratório, excluindo os outros membros quando ausentes. Estamos
todos de acordo em pensar e querer que todo Oratório, na pessoa
do seu diretor, tenha como feitas para os três as ofertas recebidas por
ele, correspondendo-nos, em tal caso, informar às pessoas benfeito-
ras do espírito que nos rege e dos fundamentos do Oratório.
Levou-nos a esta decisão o conteúdo da carta de V. R. e o fato aná-
logo subsequente. Portanto, como pode acontecer devido à nossa
escassez de equipamentos que numa determinada festa falte algo no
Oratório, será bom, então, como estamos habituados a fazer, que os
outros concorram com o pessoal e o trabalho; e, se acontecer que al-
gum de nós creia oportuno, empreste algo seu ou tome emprestado
de outros aquilo que lhe convenha; além de ficar muito reconheci-
dos, é nossa intenção que seja devolvido e levado de volta o quanto
antes, como se tem feito até agora. Temos exemplo disso nos inícios,

54
Borel a Ponte, 23 de outubro de 1851. MB IV, 313.

571

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Dom Bosco: história e carisma 1

quando generosamente o Oratório de São Luís emprestou várias ve-


zes. Não devemos temer, por isso, que cesse a assistência divina aos
Oratórios. Pelo contrário, devem-se esperar maiores bênçãos.
Cada membro aumente sua caridade, amplie o caminho para fazer o
maior bem à juventude; estaria para dizer que se introduza mais no
interior da comunhão dos santos, que se livre de tudo que se refira à
propriedade ou à própria vontade, para adentrar-se no espírito puro
de caridade sem ser distraído por interesses pessoais. Não é menor o
interesse de cada sócio, porque nada é subtraído ao bem particular
do Oratório ao qual se dedica, mas também tem a vantagem de
que, se os outros desfrutam de sua comunhão, também ele goza da
comunhão dos demais. Isso fique dito agora e para sempre. Bendito
seja o Senhor se vivermos todos do mesmo espírito e, assim, juntos,
trabalharmos pela juventude em todos os cantos da cidade.
Provo muita alegria ao lhe poder comunicar que os Oratórios são
suficientemente atendidos e que os jovens continuam com a mesma
afluência, docilidade e religiosidade. Depois da ausência do que-
ridíssimo padre Grassino, o Senhor moveu o coração do teólogo
Murialdo para assumir seu cargo em Vanchiglia e já tomou posse.
O queridíssimo teólogo Rossi cuida do Oratório de São Luís e fará
a prática da tarde até [a festa de] Todos os Santos, enquanto eu
continuo com a da manhã. Dom Bosco ocupa-se do [Oratório] de
São Francisco de Sales; caso contrário ele supre [as ausências]. A
nova igreja já está chegando ao término de suas paredes e, antes do
inverno, estará coberta com as telhas.
Recebi notícias da feliz chegada a Florença da senhora marquesa e
de V. R. Sinto que o senhor Péllico já tenha sofrido o suficiente. On-
tem, 22, as Irmãs de Santa Maria Madalena renovaram as orações
pela nova viagem de sua fundadora e benfeitora a Roma.
Não passa um dia sem que eu apresente ao Senhor meus votos pela
prosperidade, vida longa e satisfação da mesma. Não tenho nada de
importante a comunicar sobre o mosteiro ou o Refúgio. Parece-me
que tudo caminhe bastante bem, pelo que a senhora marquesa pode
ficar tranquila com esta palavra.
Todos os padres passam bem, como aquele que escreve e que está
agora em casa e se esforça por nela permanecer o mais possível, para
o bem das famílias e para alegrar a quem tanto as ama e faz o bem.
Quero pedir uma coisa a V. R.: que me faça saber, o quanto antes,
sobre a sua decisão a respeito do que lhe escrevi sobre os Oratórios e

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

o nosso espírito para governá-los; e que ordens deseja dar em relação


a tudo o que não pertença aos Oratórios.
À espera de tão grato favor e renovando-lhe meus sentimentos de grande
estima e sincera caridade, tenho a honra de declarar-me de V. R.

Afeiçoadíssimo amigo e servidor João Borel, presbítero


Diretor do Refúgio

Carta do padre Ponte ao teólogo Borel


Roma, 4 de novembro de 185155
O reverendo padre Pedro Ponte
Ao teólogo João Borel, diretor do Refúgio:
Mui querido e reverendo senhor teólogo:
Recebi com grande prazer a carta que V. R. se dignou escrever-me; sua
leitura alegrou meu coração. Eu muito precisava receber notícias dos
Oratórios: sua falta me inquietava; graças a Deus, já estou tranquilo.
Passemos ao assunto principal da carta. A união que V. R. tanto quer
entre os diretores dos Oratórios é o objeto principal dos meus desejos;
anseio de todo o coração pelo momento em que, dissipadas as dife-
renças e todos de acordo, poderemos esperar seguramente uma ajuda
mais abundante do Senhor e um merecimento maior pelas nossas fa-
digas. Creio que a origem da desunião, que até agora se deplora entre
nós, procede de não ter uma cabeça à qual se dirigir e do demasiado
mutismo reinante; e não sou somente eu a deplorá-lo. Procure V. R.
remediar esses inconvenientes e terá desaparecido a causa da desunião.
Depois de maduro exame e plena consciência, tomei a resolução
que já manifestei e que não posso mudar; se, por acaso, os objetos
que deixei no Oratório de Porta Nova incomodassem de alguma
maneira, eu os farei retirar tão logo chegue a Turim. Contudo, se
importunassem, darei as ordens necessárias para que sejam tirados
em minha ausência. Para o futuro (se o Senhor quiser que eu ain-
da empregue as minhas frágeis forças em favor dos Oratórios) com
muito gosto me adaptarei à determinação tomada de fazer causa
comum; isto é, as ofertas recebidas em cada um dos Oratórios na
pessoa do relativo diretor se tenham como feitas a todos os Orató-
rios e se for o caso informarei aos benfeitores sobre o espírito que
nos rege e os fundamentos dos Oratórios.
55
Cf. MB IV, 316.

573

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Dom Bosco: história e carisma 1

Muito me alegra saber que, graças aos cuidados de V. R. e do caríssimo


teólogo Rossi, o Oratório de Porta Nova continue sempre bem. De
minha parte, embora distante com o corpo, estou sempre entre eles
com o coração e, em minhas pobres orações, não cesso de recomendar
esta obra a Deus; e quando, dentro de pouco tempo como espero, for
recebido em audiência pelo Vigário de Jesus Cristo, lhe pedirei a sua
santa bênção para os diretores e para os meninos.
Nossa viagem até agora tem sido boa. A senhora marquesa goza de boa
saúde e ficou muito satisfeita com as boas notícias sobre seus estabele-
cimentos. O senhor Péllico já está bem, depois de alguns poucos dias
enfermo. Reze V. R. por mim e faça rezar aos meninos. Cumprimentos
a todos os padres dos Oratórios e com a consoladora esperança de rece-
ber dentro de pouco mais notícias sobre a caminhada dos mesmos, por
bondade de V. R., declaro-me, com todo respeito e com a mais sentida
efusão do coração, de V. S. caríssima.

E sempre afeiçoadíssimo amigo Pedro Ponte, presbítero.

Carta do padre Cafasso ao padre Pedro Ponte56


Turim, aos 6 de janeiro de 1852
Meu muito estimado padre Pedro:
Acreditava ter podido responder à sua apreciadíssima, antes que
o senhor saísse de Roma, mas não tive esse prazer, e não me foi
possível de modo algum devido a uma série contínua de ocupa-
ções e dificuldades.
Passando, pois, em seguida e neste momento, ao tema mais im-
portante, começo por recomendar-lhe que deponha toda sorte de
inquietação e pressa quanto à decisão a tomar no assunto de que
me fala, porque estou certo de que os companheiros não o fazem
por preconceito, nem por aversão ao senhor, nem por vontade de
romper, pois sei que sempre esperam a sua colaboração, quando o
Senhor o quiser de novo em Turim e oxalá fosse bem depressa. V.
S., em consciência, pode decidir-se como crer oportuno, já que é
senhor de si, e se quiser que eu adiante a minha opinião, no presen-
te estado das coisas, penso que o senhor faria muito bem cedendo
tudo, não a algum indivíduo, mas para uso dos Oratórios, com a
faculdade, porém, de o senhor mesmo servir-se de tudo antes dos
56
Padre Cafasso a padre Pedro Ponte, 4 de janeiro de 1852; cf. MB IV, 368.

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

outros, enquanto possa prestar-se, como assim o espero, a essa obra


do Senhor. Caso pense em agir de outro modo, faça-o com plena
liberdade e tome por não dito o que lhe sugeri.
Volto a repetir-lhe que permaneça alegre, sereno e tranquilo, pois há
cruzes em todos os lugares, embora agrade ao Senhor a tranquilida-
de e a paz em todas as partes.
Peço-lhe que diga à senhora marquesa que, mesmo distantes, é pos-
sível rezar reciprocamente, e que eu não a esqueço em minhas pou-
cas orações. Muitas saudações ao senhor Péllico, e tenha-me sempre
como de coração o sou, por,

Seu afeiçoadíssimo José Cafasso, presbítero.

DECRETOS DO ARCEBISPO FRANSONI,


DE 31 DE MARÇO DE 185257
Decreto que nomeia Dom Bosco oficialmente diretor espiritual dos três
Oratórios de São Francisco de Sales, de São Luís e do Anjo da Guarda
Luís dos Marchesi e Fransoni, Cavalheiro da Suprema Ordem da
Anunciação,
por graça de Deus, e da Sé Apostólica Arcebispo de Turim
Ao mui reverendo senhor padre João Bosco, de Castelnuovo, sacer-
dote de nossa Diocese:

Ao congratularmos convosco, digno sacerdote do Senhor, que com


caridade industriosa soubestes organizar a nunca suficientemente lou-
vada Congregação em favor dos meninos pobres do Oratório público
de São Francisco de Sales, em Valdocco, acreditamos ser justo teste-
munhar, pela presente, a nossa total gratidão, nomeando-vos efeti-
vamente Diretor Geral Espiritual do Oratório de São Francisco de
Sales, ao qual desejamos que continuem unidos e dependentes do
mesmo, os de São Luís Gonzaga e do Santo Anjo da Guarda, a fim de
que a obra, iniciada com tão felizes auspícios, progrida e se amplie no
vínculo da caridade, para a verdadeira glória de Deus e a edificação do
próximo, conferindo-vos todas as faculdades, que para tão santo fim
são necessárias e oportunas.
Mandamos, entretanto, inserir nas atas da nossa Cúria arquiepisco-
pal o presente decreto original, facultando ao nosso Chanceler fazer
cópias do mesmo.
57
MB IV, 378-381.

575

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Dom Bosco: história e carisma 1

Turim, 31 de março de 1852.


Assinado: Felipe Ravina, vigário-geral,
e subscreve: Balladore, chanceler
Esta é uma cópia do original.
Balladore, chanceler

[Cópia, conforme o original.


Turim, 12 de maio de 1868. Dou fé, teólogo Gaude Pró-Chanceler.]58

O arcebispo de Turim, Luís Fransoni (1789-1862).

58
Os favores e faculdades concedidas pela Autoridade Eclesiástica de Turim ao Oratório de São
Francisco de Sales são estes:
1. Celebrar a Santa Missa, rezada e cantada, dar a bênção com o Santíssimo, organizar tríduos,
novenas, exercícios espirituais.
2. Ensinar o catecismo, pregar, preparar os meninos para a Primeira Comunhão, a Confissão e
a Confirmação.
3. Faculdade de cumprir em qualquer uma de nossas igrejas o preceito Pascal, tanto para os me-
ninos como para os adultos que ali participarem. Benzer os ornamentos sagrados, hábitos eclesiásticos
e impô-los aos jovens que manifestassem vocação sacerdotal, mas destinados ao serviço dos Oratórios
e internos em uma casa anexa.
Estas faculdades deixavam, às vezes, algumas incertezas na hora de serem executadas. Por isso mes-
mo dom Fransoni, com decreto de 31 de março de 1852, concedia-as de modo absoluto e sem limitações,
ou seja, concedia todas as faculdades que fossem úteis ou necessários para a boa caminhada de tudo o que
acontecia na direção do Oratório de São Francisco de Sales, em Valdocco, de São Luis, em Porta Nova, e
do Anjo da Guarda, em Vanchiglia [nota de Aldo Giraudo, responsável pela edição inglesa].

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Os oratórios de Dom Bosco (1849-1852): conflitos, crises e solução

O arcebispo fazia acompanhar um decreto no qual nomeava o teólogo


Roberto Murialdo, diretor espiritual do Oratório do Anjo da Guarda, na
dependência de Dom Bosco.

Luís dos Marchesi e Fransoni, cavalheiro da Suprema Ordem da


Anunciação,
cavalheiro da Grã-Cruz, condecorado com a grande insígnia,
da Ordem de São Maurício e São Lázaro,
por graça de Deus e da Sé Apostólica Arcebispo de Turim

Saúda
O mui reverendo senhor teólogo Roberto Murialdo, sacerdote de
Turim.
Considerando a grande diligência e o fervoroso zelo com que, como
digno padre, atendeis diligente e assiduamente à instrução cristã
dos meninos pobres que se reúnem no Oratório público do Santo
Anjo da Guarda, no bairro de Vanchiglia desta cidade, acreditamos
apreciar o vosso trabalho dando-vos, pela Presente, público teste-
munho da nossa plena gratidão, nomeando-vos Diretor Espiritual
efetivo deste Oratório, com a única condição de que, através de
Vós se conservem sempre fielmente a unidade e a dependência do
senhor João Bosco, Diretor Geral do Oratório de São Francisco de
Sales em Valdocco e fundador desta pia instituição, conferindo-vos
as faculdades necessárias e oportunas para tão santo fim.
Mandamos, entretanto, inserir nas atas da nossa Cúria arquiepisco-
pal o presente decreto original, facultando ao nosso Chanceler fazer
cópias do mesmo.
Dado em Turim, aos trinta e um de março de mil oitocentos e
cinquenta e dois.
Assinado no original por: Felipe Ravina, vigário-geral
Selado e subscrito: Balladore, chanceler
[Esta é uma cópia do original.
Balladore, chanceler.]

577

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Capítulo XXI

O REGULAMENTO DE DOM BOSCO


PARA O ORATÓRIO E SEUS PRIMEIROS
ESCRITOS (1844-1849)

Antes que dom Fransoni (1852) nomeasse Dom Bosco diretor espiritual
encarregado dos três Oratórios de Turim e se abrisse, assim, um novo capítulo
na história do Oratório, convém recordar dois aspectos importantes da ati-
vidade anterior de Dom Bosco: a atividade reguladora do Oratório “festivo”
e a criação das primeiras sociedades juvenis que ali surgiram – a Companhia
de São Luís e a Sociedade de Mútuo Socorro – como resposta às necessidades
manifestadas pelos próprios meninos e, de modo especial, os primeiros escri-
tos educativos e piedosos de Dom Bosco.

1. Regulamento do Oratório
Pietro Braido assinala que o título mais longo, “Plano de Regulamento
para o Oratório masculino de São Francisco de Sales em Turim, no bairro de
Valdocco” aparecia também no manuscrito do Regulamento e foi transcrito
na página que continha a Introdução, quando em 1854 se acrescentaram a In-
trodução e a Cronologia. Nesse momento, o título mais curto, “Regulamento
primitivo do Oratório de São Francisco de Sales”, ocupou seu lugar. Poder-
-se-ia deduzir dos títulos que Dom Bosco elaborou o Regulamento tendo em
mente unicamente o Oratório de São Francisco de Sales. Braido escreve:

O Regulamento tem uma história própria [distinta da Introdução e da Cro-


nologia] e, ao menos nas seções originais que se conservam, pode localizar-se
numa data muito precoce como 1851/1852, o que levaria [o texto] a um mo-
mento anterior a 1852, antes que o arcebispo Luís Fransoni designasse Dom
Bosco diretor espiritual geral dos três Oratórios [...].1

Cf. P. Braido, Don Bosco per i giovani, 20. Lemoyne data o primeiro Regulamento em 1847
1

(MB III, 97) e equipara este suposto primeiro esboço com a edição impressa de 1887, última publicada
por Dom Bosco, anotando que “as diferenças não são muitas” (MB III, 97).

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

O Regulamento propriamente dito, portanto, começou a ser esboçado


no início da década de 1850, antes que a Introdução e a Cronologia (1854)
fossem acrescentadas como prefácio em 1854. Desejando transmitir aqui a
ideia da organização que regia a vida e a atividade do Oratório, apresentare-
mos os títulos dos capítulos da primeira edição impressa de 1877, reimpressa
em fac-símile em Opere Edite.2
Extrato da primeira edição impressa de 1877
As citações a seguir esclarecem o quão profundamente espiritual e mo-
tivadora era a norma de vida apresentada aos meninos incultos dos bairros
mais pobres de Turim. E quão poderosamente empenhados estavam os cola-
boradores do Oratório na educação e formação desses jovens.
A finalidade do Oratório festivo é entreter a juventude nos dias festivos
com diversões agradáveis, depois de terem assistido às sagradas funções de igreja.
1. Dizemos: “Entreter a juventude nos dias festivos”, porque se têm
em especial consideração os jovens trabalhadores que, sobretudo
nos dias festivos, ficam expostos a grandes perigos morais e corpo-
rais. Não se excluem os estudantes que desejem participar nos dias
festivos ou de férias.
2. Dizemos: “com diversões agradáveis”, realmente adequadas para
se divertirem e não para se cansarem. Não se permitem, portanto,
jogos, diversões, saltos, corridas ou qualquer outra maneira de re-
creio que possa comprometer a saúde ou a moral dos alunos.
3. Dizemos: “Depois de terem assistido às sagradas funções de igreja”,
porque a instrução religiosa é a primeira coisa que se pretende:
tudo mais é acessório e apenas incentivo para atrair a juventude.
O Oratório é colocado sob a proteção de São Francisco de Sales porque
aqueles que pretendem dedicar-se a tal gênero de trabalho devem ter este
santo como modelo de caridade e de boas maneiras, que são as fontes de onde
brotam os frutos esperados da Obra dos Oratórios.

2. Primeiras sociedades do Oratório


As sociedades [“Companhias”] promovidas por Dom Bosco3 dividem-
-se em dois períodos, cada um com seu contexto específico. As primeiras

2
OE XXIX, 31-94. Tratava-se de um livrete de 12,5 x 8 cm, de 59 páginas, contando capa e
contracapa; a paginação citada é a do original.
3
“Companhia” é uma terminologia pós-tridentina para as associações religiosas. Hoje, prefere-se
falar de “associação” ou “sociedade”.

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Dom Bosco: história e carisma 1

foram organizadas no Oratório respondendo às necessidades das pessoas que


o frequentavam. As outras foram criadas para a casa anexa ao Oratório, tendo
como referente especial, não exclusivo, a comunidade de estudantes, e em
resposta às suas necessidades educativas e espirituais.
Segue uma breve descrição das duas primeiras sociedades oratorianas: a
Companhia de São Luís e a Sociedade de Mútuo Socorro.

Companhia de São Luís Gonzaga


Fundação e finalidade
A Companhia de São Luís foi fundada por Dom Bosco em 1847. Em-
bora já trabalhasse com um grupo de jovens desde 1844, esta foi a primeira
organização juvenil concebida por ele. Sua finalidade era promover as práticas
religiosas e o serviço cristão de seus membros entre os meninos do Oratório.4
Ao escolher São Luís Gonzaga como patrono, Dom Bosco tentava adap-
tar às circunstâncias e necessidades de seus jovens o modelo de vida piedosa e
espiritual patrocinado pela Companhia de Jesus, modelo já aceito em escolas
e paróquias. Outra Companhia de São Luís fundada pelo padre João Batista
Rubino, para jovens, era muito ativa nas paróquias da diocese de Cúneo.
Em 1846, Dom Bosco redigira um folheto intitulado “Seis domingos em
honra de São Luís” e o incluíra no O jovem cristão. Os “Seis domingos” serviam
para preparar a festa de São Luís em fins de junho; os meninos do Oratório
traziam-no consigo como se fosse um documento de identidade. Em 1847,
Dom Bosco fundou seu segundo Oratório sob o patrocínio de São Luís. Era
intenção dele, portanto, apresentar o santo como modelo para seus jovens.
O Regulamento da Companhia de São Luís, sobretudo a terminologia
empregada, enquadra-se na tradição posterior ao Concílio de Trento relativa
às associações religiosas. Os membros são “confrades”; o superior religioso é
o “pai espiritual”; o moderador é o “prior”, um leigo escolhido por maioria
dos sócios. Dom Bosco introduziu muitos elementos, dos quais o de maior
novidade era que a Companhia dirigia-se a grande número de jovens que se
reuniam fora da cidade, sem ligação com as formas paroquiais tradicionais.
A festa de São Luís foi celebrada pela primeira vez no Oratório em 1847.
A Companhia teve um papel importante em sua organização. O arcebispo
Fransoni conferiu o sacramento da confirmação durante a Missa solene, se-
guida da récita das vésperas e de uma procissão à tarde. Em continuação,
4
Para ver as ideias e o processo de fundação e aprovação da organização e funcionamento da
Companhia de São Luís, ver MO, 192-193.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

houve um desfile, pequenas peças teatrais, lançamento de balões coloridos e


fogos de artifício, enquanto chegavam da vizinha taberna A Jardineira rumo-
res de baile e música.

Estampa de São Luís Gonzaga com a lembrança autógrafa e a assinatura de Dom Bosco: “Se o imi-
tares aqui na terra, ele, sem dúvida, te ajudará a ser seu companheiro, compartilhando sua glória no
céu. Afetuosamente em J. C. P. João Bosco” (Estampa cedida cortesmente por J. Coggiola).

A Companhia funcionava não só como organizadora de festas religiosas,


mas desde seus inícios foi também instrumento pelo qual a orientação espiri-
tual e religiosa de Dom Bosco e do teólogo Borel chegou à massa do Orató-
rio. Ressalte-se que a Companhia foi fundada para os meninos do Oratório.
Nesses anos, o internato estava apenas em seus inícios.
O leigo “prior”, eleito pelos “confrades”, devia ser um senhor com pos-
sibilidades econômicas que pudesse ajudar monetariamente nas atividades,
financiando merendas ocasionais ou trazendo guloseimas nos dias de festa.
Um dos membros mais destacados da Companhia seria eleito “vice-prior”.
Ambos, de acordo com o Regulamento, dirigiam os jovens durante a oração e
o canto. Está claro que Dom Bosco desejava contar com a ajuda dos próprios
jovens, melhor do que a dos clérigos, em várias tarefas.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Regulamento
O arcebispo Fransoni aprovou a Companhia de São Luís com um res-
crito autógrafo de 12 de abril de 1847 e concedeu indulgências, além de
expressar o desejo de ser o primeiro inscrito na Companhia.
As regras básicas definem um “estilo de vida” a imitar, segundo o exem-
plo de São Luís.5

1. Como São Luís foi um modelo exemplar, todos os que desejam ins-
crever-se em sua Companhia devem procurar evitar o quanto possível
o escândalo e dar bom exemplo em tudo, sobretudo no cumprimen-
to dos deveres de um bom cristão. São Luís foi, desde criança, muito
exato no cumprimento de seus deveres, muito amigo dos exercícios
piedosos e tão devoto quando ia à igreja, que as pessoas acorriam para
contemplar sua modéstia e recolhimento.
2. Os sócios procurarão aproximar-se da sagrada confissão e comu-
nhão a cada quinze dias e até mesmo com maior frequência, es-
pecialmente nas principais solenidades. São estas as armas com as
quais se alcança a vitória completa contra o demônio. São Luís,
desde muito pequeno, aproximava-se desses sacramentos a cada
oito dias e com maior frequência quando ficou um pouco mais
maduro. Quem, por algum motivo, não pudesse cumprir essa nor-
ma, poderia comutá-la por outra prática de piedade com o conse-
lho do Diretor da Companhia. Exorta-se, também, aos inscritos a
receberem os sacramentos e assistirem às funções sagradas em sua
própria capela, para edificação dos companheiros.
3. Fugir dos maus companheiros como da peste e preocupar-se em
não manter conversas maliciosas. São Luís não só evitava essas con-
versas, como também era tão modesto que, em sua presença, nin-
guém se atrevia a proferir palavras menos puras.
4. Ter muita caridade com os companheiros, perdoando generosa-
mente toda ofensa. São Luís retribuía os insultos com a amizade.
5. Comprometer-se em manter a ordem na Casa de Deus, animando
os outros a praticarem a santidade e a se inscreverem na Companhia.
São Luís, levado pelo amor ao próximo, foi assistir os empesteados, o
que lhe ocasionou a morte.
6. Pôr grande diligência no trabalho e no cumprimento dos próprios
deveres, sendo muito obedientes aos pais e demais superiores.
5
MB III, 216ss.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

7. Quando um sócio ficar doente, todos devem apressar-se na oração por


ele, oferecendo-se para ajudá-lo nas coisas materiais, de acordo com as
próprias forças.
Na segunda parte do Regulamento do Oratório, Dom Bosco acrescen-
tou a estes artigos fundamentais, algumas normas para que a Companhia
tivesse uma organização bem definida.6
1. A finalidade que os sócios da Companhia de São Luís se propõem
é imitar este santo nas virtudes compatíveis com o próprio estado
e obter sua proteção durante a vida e na hora da morte.
2. A aprovação do arcebispo de Turim deve-nos animar a nos inscre-
vermos nessa Companhia.
3. Para tranquilidade de todos, faz-se constar que o Regulamento da
Companhia de São Luís não obriga sob pena de pecado, nem se-
quer venial; de modo que, se alguém faltar a uma de suas regras,
priva-se de um bem espiritual, mas não comete nenhum pecado. A
promessa feita no altar de São Luís não é um voto, mas quem não
tiver vontade de cumpri-la, é melhor que não se inscreva.
4. A companhia é dirigida por um padre, com o título de Diretor
Espiritual, e por um Prior, que deve ser um leigo.
5. O Diretor Espiritual é nomeado pelo Superior do Oratório. En-
carrega-se de vigiar para que todos os congregados observem o
Regulamento; aceita quem julgar digno; conserva o registro dos
sócios atuais e falecidos; e visita os doentes da Sociedade de Mútuo
Socorro. A duração do seu cargo é ilimitada.
6. O Prior é eleito por maioria dos votos dos sócios reunidos da
Companhia. Seu cargo dura um ano, mas ele pode ser reeleito. A
data fixada para a eleição do Prior é a noite de Páscoa.

A fórmula
Eu, N.N., prometo fazer o quanto possível para imitar São Luís
Gonzaga; assim sendo, fugirei dos maus companheiros, evitarei as
conversas maliciosas, animarei os demais à santidade com as palavras
e o bom exemplo, tanto na igreja como fora dela; prometo também
observar o Regulamento da Companhia. Tudo isso espero cumprir
com a ajuda do Senhor e a proteção do Santo. Direi todos os dias:
6
As normas acrescentadas estão na Parte II, Capítulo IX do Regulamento do Oratório, como
em OE XXIX, 75-76.

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Dom Bosco: história e carisma 1

“Glorioso São Luís Gonzaga, eu vos suplico humildemente que


me tomeis sob a vossa proteção e me obtenhais do Senhor a graça
de imitar vossas virtudes durante minha vida para merecer uma
santa morte e ser um dia participante da vossa glória no Paraíso.
Amém”.
Pai, Ave, Glória etc. Meu Jesus, misericórdia.

Sociedade de Mútuo Socorro


Dom Bosco fundou a Sociedade de Mútuo Socorro em 1849, mas escre-
veu seu Regulamento e inaugurou-a oficialmente em 1º de junho de 1850.7
A Sociedade era uma associação de jovens aprendizes, criada no interior da
Companhia de São Luís como seguro contra o desemprego temporário ou
a doença. Os membros pagavam 1 lira e meia como cota de inscrição, mais
5 centavos todos os domingos. Essas contribuições formavam um fundo do
qual seus membros recebiam os benefícios em períodos de doença ou de-
semprego. Dom Bosco fundou essa Sociedade para afastar os aprendizes dos
perigos morais e religiosos encontrados nas associações de mútuo socorro ou
nos sindicatos da cidade.
Vista a natureza da Sociedade, a terminologia usada já não era a das
associações religiosas tradicionais. Como em outras associações de trabalha-
dores, usavam-se termos como “administrador”, “diretor” etc. O diretor do
Oratório era ex officio também diretor da Sociedade. O diretor espiritual da
Companhia de São Luís era o diretor espiritual da Sociedade e visitador dos
doentes etc.
As práticas piedosas da sociedade eram as mesmas da Companhia de
São Luís. Em 1857, a Sociedade de Mútuo Socorro uniu-se à Conferência de
São Vicente de Paulo, fundada anexa ao Oratório,8 mas não deixou de existir
e funcionar. Possivelmente, a Conferência de São Vicente tenha garantido seu
funcionamento numa época em que as sociedades de auxílio tinham proble-
mas em toda a cidade.

7
Cf. P. Stella, Economia, 261 (na página 62-63 consta 1848). A sociedade e sua finalidade são
descritas por Dom Bosco no livrete Società di mutuo soccorso di alcuni individui della Compagnia di san
Luigi eretta nell’Oratorio di San Francesco di Sales […]. Turim: Tip. Speriani, 1850. OE IV, 83-90. Para
mais detalhes sobre sua fundação, atividades e dificuldades encontradas, ver MB IV, 65ss.
8
As Conferências de São Vicente de Paulo, introduzidas a partir de Lyon, eram muito ativas em
Turim e apoiaram o trabalho de Dom Bosco. O conde Carlos Cays, mais tarde padre salesiano, foi o
primeiro diretor das conferências. Dom Bosco escolheu um grupo de jovens e criou uma conferência
no Oratório. Embora as conferências não admitissem pessoas jovens como membros, satisfizeram Dom
Bosco, e o grupo do Oratório foi afiliado como “adjunto”.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

3. Os primeiros escritos de Dom Bosco (1844-1849)


Pode ser que a atividade mais importante de Dom Bosco não tenha sido
a editorial, mas foi notável, tanto pelo tempo empregado como pelos resul-
tados obtidos. Em carta de 1885, “Sobre o Apostolado da Imprensa”, Dom
Bosco escreveu: “Esta é uma das tarefas mais importantes que me foi pedida
pela Providência e sabeis como trabalhei nisso dura e incansavelmente, mes-
mo quando me dedicava a outros mil trabalhos”.9 Ele considerava a atividade
de autor e editor como parte de sua vocação.
O ano 1850 marca o início desse compromisso, que se tornou mais cla-
ro com a publicação das Leituras Católicas, a partir de 1853. A dedicação de
Dom Bosco ao apostolado da imprensa foi sua resposta ao apelo dos bispos
piemonteses para que se escrevesse em defesa da fé e da Igreja. Os primeiros
escritos de Dom Bosco eram, principalmente, produções ad hoc para preen-
cher uma necessidade imediata surgida das situações ministeriais.

As obras e o sucesso de Dom Bosco como escritor


As listas parciais das publicações de Dom Bosco também dão fé da sua
dedicação nesse campo. Seu trabalho como escritor compreende 170 obras
“maiores”, segundo o repertório de Stella e Desramaut.10 Em meados de 1856
já tinha escrito algumas delas. Em seu testamento de 26 de julho de 1856, Dom
Bosco declara-se autor de 26 obras.11 Vale a pena citar a seção do testamento:

E para que ninguém me atribua escritos que não são meus, apresento uma
lista dos livros compostos ou compilados por mim, cuja propriedade literária
eu conservei e quero transmitir aos meus herdeiros, para que façam deles o
uso que julgarem para a maior glória de Deus e o bem das almas.

1. Breves notas sobre a vida do jovem Luís Comollo (2a ed.)


2. O devoto do Anjo da Guarda (anônimo)
3. As sete dores de Maria, consideradas em forma de meditação (anônimo)
4. Exercício de devoção à Misericórdia Divina (anônimo)
5. História sagrada para uso das escolas (2a ed.)
6. História eclesiástica para uso das escolas (2a ed.)

9
Uma cópia impressa desta carta com a firma autêntica [?] de Dom Bosco aparece em ASC A175
Lettere circolari ai Salesiani, FDB 1368 C12-D3. O texto é citado em Epistolario IV Ceria, 318-321,
e em Lettere circolari di Don Bosco e di don Rua. Turim: Tip. dell’Oratorio di San Francesco di Sales,
1896, 24-29. Não aparece nas Memórias Biográficas.
10
Pietro Stella, Gli scritti a stampa di San Giovanni Bosco. Roma: LAS, 1977; F. Desramaut,
Don Bosco, 1369-1375.
11
MB X, 1332-1333, ASC A223 Testamenti; FDBM 73 A8-9, MB X, 1332-1333.

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Dom Bosco: história e carisma 1

7. O jovem instruído (3a ed.)


8. O cristão orientado para a virtude e a civilidade (anônimo)
9. O sistema métrico simplificado (5a ed.)
10. O católico instruído em sua religião (2a ed.)
11. Fatos contemporâneos expostos em forma de diálogo
12. Drama-disputa entre um advogado e um ministro protestante
13. Coletânea de acontecimentos curiosos contemporâneos
14. Os seis domingos de São Luís
15. Notas históricas sobre o milagre do Santíssimo Sacramento
16. Conversações entre um advogado e um pároco rural sobre a confissão
17. Conversão de um valdense: fato contemporâneo
18. Maneira fácil de aprender a Bíblia sagrada (2a ed.)
19. A força da boa educação: episódio contemporâneo
20. Vida de São Pancrácio, mártir
21. História da Itália contada à juventude
22. A chave do paraíso nas mãos do católico
23. Vida de São Pedro Apóstolo. Idem de São Paulo
24. Duas conferências sobre o purgatório e os sufrágios pelos defuntos
25. Vidas dos papas até o ano 221

Algumas dessas obras foram editadas várias vezes e tiveram grande popu-
laridade e ampla difusão. Durante a vida de Dom Bosco, O jovem instruído
(Il giovane provveduto, 1847) chegou a 118 edições e ele viveu para vê-lo
traduzido em francês, espanhol e português. Igualmente, A chave do paraíso
(La chiave del paradiso, 1856) chegou a 44 edições. A jovem cristã (La figlia
cristiana provveduta, 1878) chegou a 28 edições. A História sagrada (Storia
sacra, 1847) foi editada 20 vezes, como também a História da Itália (Storia
d’Italia) teve 10 edições, as biografias Vida de Domingos Sávio (1859) e Vida
de Luís Comollo (1844) foram editadas 6 e 4 vezes, respectivamente.
Como explicar o sucesso de Dom Bosco? Além de tudo, ele não era um
intelectual e, de fato, a maioria de suas obras, com alguma exceção, não con-
tinha nada de novo. Embora não tenha sido um pensador original em sentido
estrito, era leitor insaciável, dotado de memória fenomenal. Além disso, ele
foi um compilador cuidadoso e seletivo de material proveniente de um redu-
zido número de fontes disponíveis.
O estilo de Dom Bosco como escritor foi peculiar. Sua linguagem e for-
ma evoluíram ao longo dos anos; percebe-se uma grande diferença entre seus
primeiros escritos e os escritos mais tardios. No conjunto, porém, em todas
as etapas, seu estilo difere dos literatos contemporâneos. A espontaneidade, o

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

imediatismo, o estilo concreto, a simplicidade linear e o esforço consciente de


evitar os floreados retóricos dos escritores do seu século tornaram-no popular
na época, situando-o atualmente entre os melhores da sua geração. Em seus
escritos e sermões, ele consegue ser direto de forma poética com o uso de
metáforas, histórias e caracterizações. Era um grande comunicador.
As obras de Dom Bosco podem ser classificadas segundo as necessidades
que percebia e as preocupações tidas nos diversos momentos de sua vida. Seus
primeiros escritos, publicados entre 1844 e 1849, com o Oratório em mente, têm
finalidade educativa e devocional. Apresentamos, a seguir, uma breve descrição
das obras 1-2, 4-9 e 14, mencionadas na lista acima do testamento de 1856.

Biografia de Comollo (1844)


A biografia foi concluída por Dom Bosco quando ainda residia no Colé-
gio Eclesiástico. Baseava-se em parte num manuscrito redigido por ele quan-
do ainda estava no seminário, intitulada Doença e morte do jovem seminarista
Luís Comollo [...].12

Capa da Vida de Luís Comollo (1844), de Dom Bosco.

12
Infermità e morte del giovane Chierico Luigi Comollo scritta dal suo collega C. Gio. Bosco: nozione
sulla nostra amicizia e sulla sua vita. Trata-se de um manuscrito de 23 páginas, em FDBM 305 C11-E10.

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Dom Bosco: história e carisma 1

A biografia, destinada aos seminaristas, era uma homenagem ao semina-


rista exemplar e também amigo querido. Tinha pouco a dizer aos meninos do
Oratório, mas muito aos bons alunos do internato, sobretudo aos membros
da Companhia da Imaculada, que ele estava orientando para o sacerdócio.

O devoto do Anjo da Guarda (1845)


Esta obra, originariamente, era uma novena em preparação à festa dos
Anjos da Guarda (2 de outubro), com um roteiro acrescentado para o mesmo
dia da festa, que incluía uma meditação bastante longa, um pequeno exer-
cício de piedade e uma “história ou fato edificante”. O livrete pode ter sido
idealizado inicialmente para a Companhia do Anjo da Guarda, com sede na
igreja de São Francisco de Assis.
A devoção ao anjo da guarda particular era muito importante no século
XIX. Como diz Dom Bosco, na Introdução, essa devoção é um sinal de pre-
destinação. “Dentre os sinais de predestinação, os teólogos [...] enumeram a
devoção intensa aos anjos da guarda.”

História da Igreja (1845)


A História eclesiástica era basicamente uma obra didática para uso dos
jovens nas escolas e para o povo em geral.13 A obra contém a eclesiologia de
Dom Bosco e sua visão relativa às religiões não católicas; por isso, deve ser
considerada como complemento da sua atividade apologética antivaldense na
década de 1850.

Origem e publicação
A ideia de escrever uma história da Igreja pode ter ocorrido a Dom
Bosco no Colégio Eclesiástico, quando se dedicava à catequese dos jovens
aos domingos. Obviamente, à hora das aulas de história e moral recorreria
à Bíblia e à história da Igreja, já que a catequese de Dom Bosco era simples,
mais histórica do que dogmática, como também o eram as suas leituras na
época de seminário.
13
Storia ecclesiastica ad uso delle scuole utile per ogni ceto di persone dedicata all’onorat.mo signore F.
[H] Ervé de la Croix provinciale dei Fratelli d[etti] i[gnorantelli] d[elle] s[cuole] c[ristiane] compilata dal sa-
cerdote B. G. Turim: Tip. Speirani e Ferrero, 398 p. Outras edições durante a vida de Dom Bosco: 1848,
1870, 1871, completamente revisada, 1879, 1888, em OE I, 160-556. Estudos: Alberto Caviglia, Ope-
re e scritti editi e inediti di Don Bosco [...]. Turim: SEI, vol. I/2, 1929, XXIV-572 p. F. Molinari, “La storia
ecclesiastica di Don Bosco”. In: P. Braido (ed.), Don Bosco nella Chiesa a servizio dell’umanità: studi e
testimonianze. Roma: LAS, 1987, 203-237; F. Desramaut, Don Bosco, 204-213. Guio-me nos parágra-
fos seguintes, sobretudo pelo estudo detalhado de Desramaut e os comentários esclarecedores de Stella.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

No seminário, Dom Bosco escutara durante as refeições a leitura da exten-


sa História Eclesiástica do ex-jesuíta Bérault-Bercastel e lera por própria conta os
27 volumes da História Eclesiástica do abade Claude Fleury (“sem saber que de-
via evitá-la”) provavelmente na tradução italiana de Gaspar Gozzi. Leu também
a História universal da Igreja, do barão Matthieu-Richard-Auguste Henrion,
talvez numa tradução italiana de 14 volumes publicada entre 1839 e 1843,
enquanto estava no Colégio Eclesiástico.
Essas obras podem ter servido de inspiração, mas por causa da sua finali-
dade, ao escrever a história (como ele mesmo indica no Prefácio), começou a
buscar livros do gênero que fossem apropriados aos jovens.14 Encontrou con-
teúdos desse tipo sobre a história sagrada, mas ficou decepcionado no campo
da história da Igreja. Algumas dessas histórias eram por demais volumosas.
Outras deixavam de lado a história da Igreja e faziam digressões sobre a his-
tória secular. Outras expunham sem qualquer limite e, usando uma retórica
exagerada e polêmica, apenas o que a Igreja tinha feito. Outras, ainda, tradu-
zidas de idiomas estrangeiros, pareciam envergonhar-se de falar dos papas e
dos grandes fatos que constituíam a glória do catolicismo.
Com o beneplácito das autoridades (assim dizia), Dom Bosco assumiu
a tarefa de compilar um resumo da história da Igreja adequada aos jovens.
Ele dedicou o pouco tempo livre de que dispunha como capelão nas obras
da marquesa Barolo para concluir o projeto entre 1844 e 1845. No mesmo
ano (1844), o conde Collegno colocara as escolas municipais de Turim sob
a direção dos Irmãos das Escolas Cristãs, que receberam o Exequatur real
(reconhecimento jurídico). Como indica o título, a história era dedicada “ao
honorável senhor irmão Hervé de la Croix, provincial dos Irmãos das Escolas
Cristãs, [popularmente] conhecidos como [mestres] dos pequenos ignoran-
tes”. Dom Bosco visitava frequentemente sua escola. A dedicatória fala da
existência de boa relação, quem sabe de interesse prático de Dom Bosco, que
procurava introduzir o livro no sistema escolar. Três anos depois (1848) foi
preciso fazer uma segunda edição revista.

Estrutura, fontes, conteúdos


Servindo-se de um recurso catequético (perguntas e respostas), a história
divide-se em seis épocas, com uma seção preliminar ou preâmbulo. A segun-
da pergunta do preâmbulo define a Igreja.

[A Igreja] é a congregação que professa a fé e a doutrina de Jesus Cristo e é


governada por um chefe supremo, que é o vigário de Cristo na terra. Ela é

14
Storia eclesiastica (1845), 7, em OE I, 165.

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Dom Bosco: história e carisma 1

nomeada, às vezes, como igreja grega, latina ou índia, mas sempre se entende
em referência à mesma Igreja católica, apostólica e romana.15

A visão de Igreja como congregação unida pela fé em Cristo e sua


mensagem e por sua submissão ao Papa (os bispos não são levados em
consideração) já estabelece os conceitos básicos. No pensamento de Dom
Bosco, a Igreja tem um aspecto exterior e outro interior, ambos claramente
delineados. Nenhuma concessão a uma Igreja espiritual que abrace dissi-
dentes e gente de boa vontade. As únicas pessoas que pertencem à Igreja
são os cristãos governados pelo Papa.
A primeira edição da História eclesiástica (1845) contém algumas figuras
que foram gradualmente eliminadas em edições posteriores. A maior e mais
importante delas foi mantida na contracapa, composta por dois campos: o
campo superior contém a insígnia do papado: tiara, tríplice cruz etc.; o cam-
po inferior mostra a cena de Cristo que entrega as chaves do reino a Pedro
(Mt 16,19). A Igreja, cuja história se narra, é obra dos papas de Roma, dos
quais é feita uma lista que aparece como apêndice, numa sucessão ininterrup-
ta de São Pedro a Gregório XVI.
Ao compilar a História, Dom Bosco simplificava as coisas. Serviu-se
apenas de autores ortodoxos no sentido estrito do termo e adequados a lei-
tores jovens. Tomou como modelo a breve História eclesial do jesuíta Jean-
-Nicolas Loriquet. A breve apresentação dialogada de Loriquet, organizada
em períodos extensos e com enfoque conservador e contrarrevolucionário
deve ter atraído Dom Bosco.16 A obra de Loriquet era curta, de modo que
Dom Bosco extraiu material adicional de uma História eclesiástica anônima
que fora publicada recentemente em Turim.17 Aqui, a divisão era por séculos
e a cada século correspondiam dois capítulos: o primeiro, dedicado ao estudo
dos papas; o segundo, a outras informações sobre a Igreja.
Com estes modelos diante de si, Dom Bosco construiu a sua História
(1) em seis épocas, precedidas de uma seção preliminar geral, (2) dialogadas,
(3) com ênfase nos papas.

15
Storia eclesiastica (1845), 14, em OE I, 172.
16
Jean-Nicolas Loriquet, Histoire ecclésiastique A. M. D. G. Tradução anônima para o italiano.
Turim: Marietti, 1844, 130 p. A.M.D.G. (Ad Majorem Dei Gloriam, para a maior glória de Deus). O
padre jesuíta Loriquet (1767-1845) era um conhecido professor e escritor que publicara alguns livros
para leitores jovens, incluindo uma História da França para uso dos jovens (1814 e 1816), imitada por
Dom Bosco em sua História da Itália contada aos jovens (1856 e 1859). As duas foram queimadas pelos
liberais em ambos os países por serem jesuíticas e reacionárias (cf. Desramaut, Don Bosco, 553-554).
17
Storia della Chiesa dalla sua fondazione fino al pontificato di Gregorio XVI. Torino: Marietti,
1843, VIII+360 p.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

Ele confessa que suas leituras tinham sido mais extensas, mas que só in-
clui o material mais adequado aos jovens simples, de língua italiana, e omite
ou apenas menciona o puramente profano ou civil, árido ou de pouco inte-
resse. Mantém e narra detalhadamente passagens “ternas e comoventes”, váli-
das não só para instruir a mente, mas também educar o coração.18 O martírio
de São Brás, tomado da História de Bérault-Bercastel, é um bom exemplo. Ao
episódio, Dom Bosco acrescenta dois milagres realizados pelo santo enquan-
to era levado à morte. Um deles é o milagre da espinha de peixe:

Certa mãe aproximou-se chorando e pôs o seu único filho aos pés do santo.
O menino estava agonizando devido a uma espinha de peixe atravessada na
garganta. São Brás, comovido ao ver o menino em estado lamentável, fez uma
breve oração e imediatamente o menino ficou curado.19

O outro milagre também é extraordinário. Jogado ao mar para morrer


afogado, São Brás fez o sinal da cruz e caminhou tranquilamente sobre as
ondas. Depois, sentou-se e convidou os hereges a caminharem sobre as águas
até onde ele estava. Alguns tentaram, mas se afogaram. O santo foi enfim
decapitado em 315 d.C.20
A obra contém características atraentes, como, por exemplo, a menção
do papel das ordens religiosas, especialmente aquelas dedicadas à caridade.
Em seu conjunto é um documento excelente do pensamento eclesiológico
conservador de Dom Bosco.

Seis domingos de São Luís Gonzaga (1846)


Os Seis domingos concluem a primeira parte de O jovem instruído e, por
isso, a pequena obra não é mencionada separadamente nas Opere edite.21 O
folheto foi escrito depois que Dom Bosco, muito doente, se estabelecesse na
Casa Pinardi (1º de abril de 1846).22
18
Storia ecclesiastica (1845), 9-10, Prefazio, em OE I, 167-168.
19
Storia ecclesiastica (1845), 110, em OE I, 268.
20
Ibid. Outro episódio, tomado também de Bérault-Bercastel, parece esboçado para jogar com
as emoções de jovens impressionáveis. A resposta à pergunta: “Que atrocidades foram cometidas por
alguns judeus fanáticos?”, descrevia a tortura cruel do jovem São Werner, martirizado pelos judeus em
Trieste na Semana Santa de 1287. Cf. Storia ecclesiastica (1845), 256-266, em OE I, 413-414, tomado
de Bérault-Bercastel, ed. italiana de Zigno (F. Desramaut, Don Bosco, 219, nota 123).
21
Le sei domeniche e la novena di san Luigi Gonzaga con un cenno sulla vita del santo. Turim:
Speirani e Ferrero, 1846, 32 p. (outras edições: 1854, 1864, 1878, 1886, 1888).
22
Única fonte da obra pode ter sido um pequeno livro escrito pelo padre jesuíta De Mattei, Il
Giovane angelico san Luigi Gonzaga proposta in esemplare di ben vivere [...] a celebrare con frutto le sei
domeniche [...], publicado em Gênova, em 1843.

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Dom Bosco: história e carisma 1

O folheto contém práticas piedosas para os seis domingos e a novena


que precedem a festa de São Luís. Para o dia da festa, 21 de junho, ele oferece
uma meditação, um pequeno exercício piedoso, 6 pais-nossos, ave-marias,
glórias e uma oração final. As meditações repetiam as tradições piedosas sobre
o santo e suas virtudes, como aquela que, sendo pajem em seu palácio, nunca
olhava para sua mãe ou para o rosto da imperatriz. Dá-se muita ênfase ao fato
de entregar-se a Deus desde a infância, sinal de predestinação. Este é um dos
pontos-chave da espiritualidade juvenil de Dom Bosco.

Exercício de devoção à Misericórdia de Deus (fins de 1846)


A obra é, com toda probabilidade, uma apresentação detalhada do que se
fazia nas instituições da marquesa Barolo, uma prática que ela mesma introdu-
zira obtendo de Roma aprovação e indulgências.23 Sua finalidade era oferecer
reparação a Deus, durante a semana de carnaval, pelos pecados de “todos os
países do mundo, tendo presente que também nós somos pecadores”.
A fonte principal foi o Exercício da boa morte, de Santo Afonso. Depois
da leitura inicial, o exercício para cada um dos seis dias consistia numa medi-
tação, uma prática piedosa, o canto do Miserere ou do Benedictus e a bênção
com o Santíssimo Sacramento. As meditações davam ênfase à infinita mise-
ricórdia de Deus por todos os homens. Enquanto o mundo desfrutava de
prazeres pecaminosos durante o carnaval, o devoto meditava sobre a morte e
a salvação da alma, crendo que Deus sempre perdoa o penitente.
Dom Bosco foi mais além. Este exercício é o primeiro testemunho de
uma opção espiritual importante tomada por ele em total oposição à imagem
de Deus juiz severo, como era proposto no catecismo diocesano tradicional.
Deus, com a sua “amorevolezza” (cuidado amoroso e terno) é, por natureza,
bom e amoroso, fonte de todo o bem, disposto a abraçar quem se arrepender.

O jovem instruído (1ª edição, 1847)24


A “Nota introdutória” é a declaração mais pessoal do amor de Dom Bos-
co pelos jovens. Suas palavras, resumidamente, dizem: a fim de dissuadi-los [os
jovens] de serem virtuosos, o diabo procura confundi-los de duas maneiras. A
primeira (relativa à piedade jansenista) é fazê-los crer que a vida cristã é uma

Esercizio di divozione alla misericordia di Dio. Turim: Eredi Botta [n. d.], 112 p., em OE II, 71-181.
23

Il giovane provveduto per la pratica de’ suoi doveri, degli esercizi di cristiana pietà, per la recita
24

dell’Ufficio della Beata Vergine e de’ principali vespri dell’anno, coll’aggiunta di una scelta di laudi
sacre, ecc. Turim: Paravia e Co., 1847, 352 p., em OE II, 183-532. Cf. Pietro Stella, Valori spirituali
nel “Giovane Provveduto” di san Giovanni Bosco. Roma: Scuola Grafica Ragazzi di Don Bosco, 1960; F.
Desramaut, Don Bosco, 245-249.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

vida triste. Ao contrário, é uma vida alegre: “Servir ao Senhor com alegria”.
A segunda é “tentar que adieis a vossa entrega a Deus até a velhice. Estaríeis
correndo um grande risco. É importante que façais uma opção por Deus en-
quanto sois jovens. Este livro pretende ensinar-vos o caminho”. E conclui:

Meus amigos, eu vos amo de todo o meu coração, e basta que sejais jovens
para que eu vos ame muito. Encontrareis certamente livros escritos por pes-
soas muito mais virtuosas e instruídas do que eu, mas garanto-vos que dificil-
mente encontrareis alguém que vos ame mais do que eu em Jesus Cristo ou a
quem interesse a vossa verdadeira felicidade mais do que a mim.

Parte I. O que um jovem precisa saber e fazer para ser virtuoso: trata-se
de capítulos que explicam aos jovens a prática das “obrigações cristãs” (9-75).
Apresenta 4 séries de meditações que proporcionam orientação espiritual e
ascética para a vida cristã de um jovem. Têm origem nas obras de Santo Afon-
so, Máximas eternas e Preparação para a morte, e no livro de Charles Gobinet
(1614-1690), Instruction de la jeunesse, entre outros. Suas principais ideias
estruturais são: Deus ama os jovens e quer que todos se encaminhem para
o céu. Uma vida de santidade e alegria, tal e qual os santos nos ensinaram:
obediência, leitura espiritual e Palavra de Deus são os caminhos para a san-
tidade. Entretanto, deve-se estar em guarda diante do comodismo, das más
companhias, das más conversas, do escândalo, das tentações e sugestões do
demônio. Seguem 7 considerações importantes (todas, menos uma, derivam
literalmente das Máximas eternas, de Santo Afonso): fim do homem, pecado,
inferno etc. A última meditação, sobre o paraíso, deriva da Introdução à vida
devota, de São Francisco de Sales. Há uma breve reflexão adicional sobre Ma-
ria. Com os Seis domingos de São Luís, já publicados em separado, conclui-se
a primeira parte.25
Parte II. Série de práticas piedosas ou exercícios de devoção (76-143),
com orações da manhã e da noite (do catecismo diocesano abreviado),
sugestões e orações para “assistir” a Missa, confissão, comunhão e visita ao
Santíssimo Sacramento (de Santo Afonso), devoções marianas, via-sacra e
(como conclusão à segunda parte) o exercício da boa morte.
Parte III. Seção “litúrgica”, com as vésperas (salmos e hinos) para todos
os domingos do ano e o pequeno ofício da Santíssima Virgem Maria (144-
320), com o acréscimo de uma pequena coleção de hinos populares (só o texto)

Ver extratos da “Introdução” e da “Primeira parte” de O jovem instruído, no Apêndice. Os


25

textos transcritos com a adequada atualização ortográfica são da edição em português: Dom Bosco,
O jovem instruído na prática de seus deveres religiosos. São Paulo: Livraria Editora Salesiana, 1957.

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Dom Bosco: história e carisma 1

(321-347). Esta seção litúrgica (menos importante) incluía também as formas


de ajudar a Missa.
Em 1851, Dom Bosco publicou uma 2ª edição ampliada de O jovem
instruído. O material adicional consistia basicamente num tratado apologéti-
co intitulado A Igreja católica, apostólica e romana é a única Igreja verdadeira
de Jesus Cristo. Advertências aos católicos. Nossos pastores nos unem ao Papa e
o Papa nos une a Deus. O folheto de 24 páginas, em formato pequeno, fora
publicado à parte em 1850.
O jovem instruído pode parecer sobrecarregado de práticas devotas, mas
na “Introdução” e na “Primeira Parte”, Dom Bosco consegue expor um pro-
grama espiritual perfeitamente adequado aos jovens. O amor de Deus aos
jovens e a alegria de iniciar um itinerário de santidade enquanto se é jovem
constitui a base, e muitos jovens construíram sua vida espiritual sobre ela.

História sagrada (1847)


Desramaut nos dá a seguinte descrição das características gerais desta obra.26
A Bíblia é, para Dom Bosco, a “base da nossa santa religião, pois contém
os dogmas e suas comprovações” (p. 7). Outra razão para escrevê-la deve ter
sido a possibilidade de colocar nas mãos dos jovens uma história sagrada “ex-
purgada”, como reza o título, para uso nas escolas.
A História sagrada de Dom Bosco, como sua História eclesiástica, apre-
senta-se em forma de perguntas e respostas. Trata-se nitidamente de uma
compilação de manuais da época. Para o último período judaico, Dom Bosco
faz referência à obra Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo (p. 17, 137, 154,
163), mas quiçá não tenha consultado a fonte original.
O livro é ilustrado com imagens de episódios bíblicos: 39 do Antigo Testa-
mento e 28 do Novo, que, segundo Caviglia, procedem todos de obras francesas.
Em estilo fundamentalista, Dom Bosco apresenta a Bíblia como verdadeira em
sentido literal e histórico em suas seções narrativas, porque Deus é o seu autor e
foi escrita por meio dos profetas, apóstolos etc. A inspiração do Espírito Santo
garante que a Bíblia está livre do menor erro (p. 10). Moisés escreveu a história do
mundo desde suas origens até o momento de sua morte. Ele é o primeiro autor
cujos escritos sobreviveram e é a nossa fonte para conhecer essa história (p. 67).

26
Storia sacra per uso delle scuole utile ad ogni stato di persone (arricchita di analoghe incisioni,
compilata dal sacerdote Gioanni Bosco). Turim: pelos tipógrafos-editores Speirani e Ferrero, 1847, 212 p.
(outras edições em 1853, 1863, 1866 etc.), em OE III, 2-212; Texto e Introdução, em Alberto Caviglia,
Opere scritti editi e inediti di Don Bosco I/2: Storia Sacra. Turim: SEI, 1929. Cf. F. Desramaut, Don Bosco,
249-254; Natale Cerrato, La catechesi di Don Bosco nella sua Storia sacra. Roma: UPS, 1979.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

Capa da História sagrada (Storia sacra), de Dom Bosco (1847).

Para o Antigo Testamento, Dom Bosco apresenta uma cronologia deta-


lhada, dividindo-o em seis épocas. Por exemplo, a primeira vai desde a criação
do mundo (ano 1) ao dilúvio universal (no ano 1656 da terra). Também se
dão as datas de acontecimentos singulares. Por exemplo, Abel foi assassinado
no ano 129 da terra.
Para o Novo Testamento, porém, não apresenta uma cronologia deta-
lhada, mas diz simplesmente que a sétima época vai “desde a vinda de Jesus
Cristo no ano 4000 da terra até sua ascensão no ano 33 d.C.” (p. 157).
A interpretação literal e a cronologia são comuns aos manuais da época.
A principal preocupação doutrinal que orienta Dom Bosco é a soterio-
logia. O homem pecou, apesar de ter sido criado bom. Deus, porém, prome-
teu um salvador. Quando o mundo parecia perdido, Deus levantou o povo
escolhido com Abraão, Moisés e os profetas. As profecias foram cumpridas
em Cristo, que comprovou a verdade do seu ensinamento com os milagres,
sendo a ressurreição e a ascensão os maiores de todos. Ele edificou a sua Igreja
sobre Pedro etc.
Dom Bosco destaca episódios bíblicos que transmitem implícita ou ex-
plicitamente lições morais para a juventude, às vezes de forma inesperada.
Por exemplo, o episódio do morto que retornou à vida quando foi lançado

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Dom Bosco: história e carisma 1

ao túmulo de Eliseu e entrou em contato com os ossos do profeta, serve para


inculcar veneração às relíquias dos santos.27
A História sagrada teve muitíssimo sucesso, provavelmente pela sua sim-
plicidade, tendo sido editada várias vezes. Os comentários de capa numa
edição de 1956, antes do Vaticano II, recomendavam-na aos professores que
estivessem preparando seus exames de habilitação (recomendação da autori-
dade escolar italiana) e para professores de religião (recomendação da Sagrada
Congregação do Concílio).
As obras descritas até aqui foram publicadas antes do ano da Revolução
(1848-1849). Nesse ano, Dom Bosco organizava o Oratório na casa Pinardi,
e tinha fundado no ano anterior um local para acolhida na casa Pinardi e
iniciado o Oratório de São Luís ao sul da cidade.
Das três publicações do período da Revolução Liberal (1848-1849) só
uma, O amigo da juventude, aparece diretamente relacionada com os aconte-
cimentos do Ano Revolucionário. A segunda obra do período, sobre São Vi-
cente de Paulo, apesar do título e da finalidade declarada, era essencialmente
devocional. A terceira obra, o pequeno Tratado sobre o sistema métrico, era um
folheto educativo destinado a iniciar os jovens trabalhadores nos mistérios
do sistema métrico, implantado por lei no Reino da Sardenha nesse período.

O amigo da juventude (1848-1849)


Era um periódico editado duas vezes por semana. Foi publicado de sába-
do 21 de outubro de 1848 a sábado 14 de maio de 1849, ou seja, 61 números
durante oito meses.28 Sua circulação foi pequena, a julgar pelo número das
faturas de correio conservadas nos Arquivos Salesianos. Começou com 137
envios e chegou ao máximo de 700. Ao final, o periódico fundiu-se com
L’Istruttore del Popolo (O Instrutor do Povo).
O amigo da juventude poderia ser uma boa fonte para entender os sen-
timentos políticos de Dom Bosco naquela época, mas só o seu primeiro nú-
mero chegou até nossos dias. Apoiava uma monarquia constitucional com
instituições liberais e era patriota no que se referia à libertação e unificação da
Itália. Contudo, não seria justificado concluir que era esse o pensamento de
Dom Bosco. A circular com que Dom Bosco convidava um seleto grupo de
senhores católicos a “investir” no periódico indica que a razão de acolher essa

Cf. episódio em 2Rs 13,21.


27

L’amico della gioventù: giornale religioso, morale e politico, em OE XXXVIII, 289-290. Cf. P.
28

Stella, Economia, 344-346; MB III, 479ss. Os números 1-23 foram impressos por Marietti; os núme-
ros 24-61, por Speirani e Ferrero.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

ideia era financeira. Os 24 investidores que compraram parte do periódico


não foram capazes de salvá-lo.29
A publicidade da Gazzetta Piemontese e o próprio Lemoyne parecem in-
sistir na natureza política do periódico de Dom Bosco, que o tinha chamado
de “periódico religioso, moral e político”. Contudo, como indica Stella, e o
primeiro número parece confirmar, não se tratava de um periódico político.
Na verdade, propunha manter-se distante de partidarismos políticos e dis-
cussões, mesmo tratando de notícias políticas e de outro tipo. Seu objetivo
específico parece ter sido contrastar os ataques à Igreja e à religião católica
pela imprensa liberal, especialmente pelo diário anticlerical La Gazzetta del
Popolo. A mencionada circular inicia com esta declaração: “A liberdade de
imprensa e a intromissão de alguns periódicos nos assuntos da religião, para
desonrá-la e vilipendiá-la, convencem da grande necessidade de periódicos
religiosos para contrastar os que estão à espreita contra a verdade”.

O cristão encaminhado à virtude e à cortesia


segundo o espírito de São Vicente de Paulo (1848)
Como o título indicava e o prefácio explica, o propósito do livro é apre-
sentar um modelo cristão de virtude e, ao mesmo tempo, de cortesia: edu-
cação e bons modos, para orientar especialmente o clero em seu trato com a
gente culta.30 A fonte de Dom Bosco para esta obra foi um livro semelhante,
mais extenso, publicado em Gênova como tradução de uma obra francesa
anterior sobre São Vicente.
Dom Bosco já escrevera práticas piedosas em honra dos Anjos da Guar-
da, de São Luís e da Misericórdia de Deus. Com esta obra, ele propunha um
mês (julho) de práticas piedosas em louvor de São Vicente de Paulo segundo
o modelo do mês de São José (março) e de Maria (maio).
As meditações diárias e as orações continuavam com uma prática que
recolhia as máximas favoritas de Dom Bosco. Os temas das meditações (as
virtudes) seriam certamente úteis para levar uma vida cristã, mas não é fácil
ver como poderiam ser um guia para a cortesia em sociedade. O mais impor-
tante do livro é que ele indica, sete anos depois de sua ordenação, que Dom

Epistolario I Motto, 83-84.


29

Il cristiano guidato alla virtù ed alla civiltà secondo lo spirito di san Vincenzo de’Paoli (opera che
30

può servire a consacrare il mese di luglio in onore del medesimo santo). Turim: Paravia e Co., 1848,
288 p. A obra aparecia como de autor anônimo no testamento de 1856. Foi publicada também anoni-
mamente em OE III, 215-503, como o havia sido em 1848. Entretanto, será assinada por Dom Bosco
nas edições de 1877 e 1887.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Bosco buscava São Vicente como modelo, num momento em que a obra de
caridade de Dom Bosco já estava sendo comparada à de São Vicente de Paulo
pela imprensa católica.

Introdução ao sistema métrico (1849)


O periódico católico L’Armonia, em seu número de 1º de junho de 1849,
examinava e louvava este livro.31 O metro e seu sistema foram instaurados na
França em 1791. Tornou-se obrigatório no Reino da Sardenha a partir de
1º de janeiro de 1850. Esse sistema substituía as antigas e confusas medidas
mantidas em cada região desde tempos imemoráveis. Em vista disso, Dom
Bosco escreveu este pequeno tratado em 1849. A obra foi um sucesso; novas
edições apareceram em 1851, 1855 e, com outro título, em 1875.32
Dom Bosco tira a exposição do sistema e os fatores de conversão de
outras obras mais extensas, mas ele mesmo redige os problemas com o duplo
propósito instrutivo e indiretamente moralizante. Um exemplo: “Um jovem
gasta 2 francos por semana em bebida e tabaco. Quanto poderia economizar
num ano se não se entregasse a esses vícios?”.
Segundo relata Bonetti, seguido por Lemoyne, no domingo 16 de de-
zembro de 1849, um exercício público sobre o sistema métrico aconteceu
com grande sucesso no Oratório perante uma distinta audiência na qual es-
tava o educador Ferrante Aporti.33

31
Traz por título, Il sistema metrico decimale ridotto a semplicità. Turim: G. B. Paravia, 1849. Não
sobreviveu nenhum exemplar da primeira edição de maio de 1849 (?), mas, como indica P. Stella
(Economia, 337), poucos meses depois, ainda em 1849, foi publicada uma edição ampliada e revista.
Esta edição está em OE IV, 1-80. A capa traz: Il sistema metrico decimale ridotto a semplicità (preceduto
dalle quattro prime operazioni dell’aritmetica ad uso degli artigiani e della gente di campagna), per
cura del sacerdote Bosco Gio. Edizione seconda migliorata ed accresciuta. Turim: Gio. Battista Paravia
& Comp, 1849. Ver também E. Desramaut, Don Bosco, 289-292.
32
Para a resenha de L’Armonia, ver MB III, 408. Cf. Michael Ribotta, “Don Bosco’s battle
against illiteracy”, Journal of Salesian Studies 1:1 (1990) 6-15.
33
G. Bonetti, Storia dell’Oratorio, 161-162.

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Apêndice

EXTRATOS DE O JOVEM INSTRUÍDO

Aos jovens
Dois são os ardis de que principalmente costuma servir-se o demônio
para afastar os jovens do caminho da virtude. O primeiro é fazer crer que,
para servir a Deus, é preciso levar uma vida melancólica, longe de todo diver-
timento e prazer. Não é assim, queridos jovens. Quero ensinar-vos o plano
de uma vida cristã, que vos faça felizes e ao mesmo tempo vos dê a conhecer
quais são os verdadeiros divertimentos e as verdadeiras alegrias, de tal forma
que possais dizer com o santo profeta Davi: Sirvamos ao Senhor em santa
alegria [Servite Domino in laetitia]. Tal é precisamente o fim deste livrinho:
ensinar-vos a servir a Deus e a viver sempre alegres.
Outro engano é a esperança de ter uma longa vida e converter-vos mais
tarde, quando velhos, ou na hora da morte. Tomai cuidado, meus filhos, por-
que muitos foram vítimas deste engano. Quem nos garante que chegaremos
à velhice? Seria preciso fazer um contrato com a morte para que nos esperasse
até lá. Mas a vida e a morte estão nas mãos de Deus, que delas pode dispor
como melhor lhe agrada.
E, mesmo que Deus vos concedesse uma vida longa, ouvi o grande aviso
que vos dá: o caminho que o homem começa a trilhar na juventude, por esse
mesmo continuará na velhice, até a morte. Ou seja, se começarmos a viver
bem agora que somos jovens, continuaremos a viver bem pela vida afora, e
teremos uma boa morte, que será o princípio da felicidade eterna.
Ao contrário, se desde jovens nos deixarmos dominar pelos vícios, ge-
ralmente assim continuaremos em todas as fases de nossa vida, até a morte, e
será início funesto de uma infelicíssima eternidade.
Para que tal desgraça não vos aconteça, aqui vos proponho uma breve e
fácil norma de vida, mas suficiente para vos tornardes consolação para vossos

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Dom Bosco: história e carisma 1

pais, honra para a pátria, bons cidadãos na terra e mais tarde venturosos ha-
bitantes do céu.
Este pequeno livro divide-se em três partes. Na primeira, encontra-
reis as coisas principais que deveis praticar e o que haveis de evitar para
viverdes como bons cristãos. Na segunda parte estão colecionadas várias
práticas devotas [em uso nas paróquias e nas casas de educação]. Na úl-
tima parte encontram-se o ofício de Nossa Senhora e dos Domingos [e o
ofício de defuntos. Enfim, encontrareis um diálogo sobre os fundamentos
da nossa santa religião católica segundo as necessidades presentes] e uma
coleção de cantos sacros.
Meus amigos, eu vos amo de todo o meu coração, e basta que sejais
jovens para que eu vos ame muito. Encontrareis certamente livros escritos
por pessoas muito mais virtuosas e instruídas do que eu, mas garanto-vos
que dificilmente encontrareis alguém que vos ame mais do que eu em
Jesus Cristo ou a quem interesse a vossa verdadeira felicidade mais do que
a mim [Em vosso coração, conservais o tesouro da virtude; enquanto pos-
suís tal tesouro, tendes tudo; mas se o perderdes, tornar-vos-eis os mais
infelizes do mundo].
O Senhor esteja sempre convosco e faça com que, pela prática destas
poucas normas, possais alcançar a salvação da vossa alma e aumentar assim a
glória de Deus, único fim deste livrinho.
Vivei alegres, e que o Senhor esteja convosco.

Afeiçoadíssimo em Jesus Cristo,


João Bosco, Presbítero

Primeira parte. Do que necessita um jovem para ser virtuoso


Artigo 1o Conhecimento de Deus
Observai, queridos filhos, tudo o que existe no céu e na terra. O sol,
a lua, as estrelas, o ar, a água, o fogo; tempo houve em que estas coisas não
existiam. [Jamais alguma coisa pôde dar existência a si mesma.] Deus, com
a sua onipotência, tirou-as todas do nada, criando-as. É por isso que ele se
chama Criador.
Este Deus, que sempre existiu e que sempre há de existir, depois de ter
criado todas as coisas que há no céu e a terra, criou também o homem, que
é a mais [nobre e] perfeita de todas as criaturas visíveis. Por isso, os nossos
olhos, a boca, a língua, os ouvidos, as mãos, os pés, são todos dons do Senhor.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

O homem distingue-se de todos os outros animais principalmente por


ter uma alma que pensa, raciocina, quer e conhece o que é bem e o que é
mal. Esta alma, por ser puro espírito, não pode morrer como o corpo, mas
quando este for levado à sepultura, irá ela começar outra vida, que jamais
há de acabar. Se praticar o bem, será sempre feliz com Deus no céu, onde
gozará de todos os bens eternamente. Se fizer o mal, será punida com um
terrível castigo no inferno, onde padecerá para sempre [o fogo e] toda a sorte
de tormentos.
Considerai, pois, meus filhos, que vós todos fostes criados para o céu,
e que Deus experimenta uma grande pena quando se vê obrigado a mandar
alguém ao inferno. Ó, quanto o Senhor vos ama e deseja que pratiqueis boas
obras, para assim vos tornardes participantes da sua glória no céu.

Artigo 2o O Senhor tem um amor especial pelos jovens


Queridos jovens, persuadidos como estamos de termos sido criados para
o céu, devemos dirigir todas as nossas ações para alcançar este grande fim. A
isso nos há de mover o prêmio que Deus nos promete [...]. E, embora ele
ame a todos os homens, por serem obra de suas mãos, consagra um afeto todo
particular aos jovens e encontra suas delícias em permanecer no meio deles.
[Portanto, vós sois a delícia e a predileção de Deus que vos criou.] Ele vos
ama, porque de vós espera muitas boas obras; ama-vos porque estais numa
idade simples, humilde, inocente e, em geral, não vos tornastes ainda vítimas
do inimigo infernal.
Há ainda outras provas não menores da especial benevolência que o
divino Redentor tem para convosco. Ele afirma que considera como feito a
si mesmo todo o bem feito aos jovens. Ele ameaçava terrivelmente aqueles
que com palavras ou ações vos dão escândalos. São estas as suas palavras: “Se
alguém escandalizar a um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe
fora que lhe atassem ao pescoço uma mó de moinho e o lançassem ao fundo
do mar”. Ele gostava muito que as crianças o seguissem, chamava-as para
perto de si, abraçava-as e dava-lhes sua santa bênção. [Deixai – dizia – que as
crianças venham a mim, demonstrando assim muito claramente que vós, os
jovens, sois as delícias do seu coração.]
Visto que o Senhor vos ama tanto, deve ser vosso firme propósito cor-
responder-lhe, fazendo tudo o que lhe agrada e evitando tudo o que possa
desgostá-lo.

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Dom Bosco: história e carisma 1

Artigo 3o A salvação do cristão depende ordinariamente do tempo


da juventude
São dois os lugares reservados na outra vida: para os maus, o inferno,
onde se sofrem todos os tormentos; para os bons, o Céu, onde se gozam
de todos os bens. Mas o Senhor vos diz claramente que se começardes a
ser bons no tempo da juventude, continuareis a sê-lo no resto da vida, que
será coroada com uma eternidade de glória. Pelo contrário, se começardes a
viver mal no tempo da juventude, muito facilmente continuareis assim até a
morte, e isto vos conduzirá inevitavelmente ao inferno.
Por isso, quando virdes homens de idade avançada entregues ao vício
da embriaguez, do jogo, da blasfêmia, podereis quase sempre dizer que tais
vícios começaram na juventude [...]. O homem segue na velhice o mesmo ca-
minho que iniciou na juventude. Ah! filho querido – diz o Senhor –, recorda-
-te do teu Criador no tempo de tua juventude.
Em outra passagem, ele declara feliz o homem que desde a sua adoles-
cência tenha levado o jugo dos mandamentos [...].
Esta verdade foi bem conhecida pelos santos, especialmente por Santa Rosa
de Lima e por São Luís Gonzaga, que, tendo começado a servir fervorosamente
a Deus desde a mais tenra idade, quando adultos só achavam gosto nas coisas de
Deus e assim se tornaram grandes santos. O mesmo se diga do filho de Tobias
que, desde o início de sua juventude, foi sempre obediente e submisso aos seus
pais. Estes morreram e ele continuou a viver virtuosamente até a morte.
Alguns, porém, dirão: “Se começarmos agora a servir a Deus, nossa vida
será triste e melancólica”. Respondo-vos que isso não é verdade. Andará triste
quem serve ao demônio, pois que por mais que se esforce para estar alegre,
terá sempre o coração a lhe segredar entre lágrimas: “És infeliz porque és ini-
migo do teu Deus”. Quem mais afável do que São Luís Gonzaga? Quem mais
alegre [e bem humorado] do que São Felipe Neri e São Vicente de Paulo?
Não obstante, suas vidas foram um contínuo exercício de todas as virtudes.
Ânimo, pois, meus caros filhos; dedicai-vos em tempo à virtude e eu
vos garanto que tereis sempre o coração alegre e contente e experimentareis
quanto é suave [e agradável] o serviço do Senhor.

Artigo 4o A primeira virtude de um jovem é a obediência aos pais e


superiores
Assim como uma plantinha, embora colocada em bom terreno no jar-
dim, contudo toma forma defeituosa e vai definhando se não for cultiva-
da e, de algum modo, guiada até certa altura, assim vós, meus caros filhos,

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

inclinar-vos-eis fatalmente para o mal, se não vos deixardes guiar por quem
está encarregado de vos dirigir. Essa guia vós a tendes nos vossos pais [e nos
que fazem suas vezes]; a eles deveis obedecer com docilidade. Honra teu pai
e tua mãe e terás vida longa na terra, diz o Senhor. Mas em que consiste esse
honrar? Consiste em obedecer-lhes, respeitá-los e prestar-lhes assistência.
Obediência. – Quando vos mandam alguma coisa, fazei-a prontamente,
sem resistir; guardai-vos de proceder como alguns que resmungam, encolhem
os ombros, sacodem a cabeça e, o que é pior, respondem mal. Estes fazem
grande injúria a seus pais e também a Deus, pois nas ordens dos pais se ma-
nifesta a vontade de Deus. Nosso Salvador, apesar de ser todo-poderoso, para
ensinar-nos a obedecer foi submisso em tudo à Santíssima Virgem e a São
José, na humilde ocupação de artesão [e era-lhes submisso]. Para obedecer a
seu Pai celeste ofereceu-se à morte dolorosíssima da cruz [fez-se obediente até
a morte, e morte de cruz].
Respeito. – Deveis também ter grande respeito a vosso pai e vossa mãe;
não façais coisa alguma sem sua licença, não deis demonstração de enfado em
sua presença, nem conteis a outros os seus defeitos. São Luís Gonzaga não fazia
nada sem licença e, na falta de outrem, ele a pedia aos seus [próprios] emprega-
dos. O jovem Luís Comollo foi obrigado um dia a estar longe de seus pais por
mais tempo do que lhe tinham permitido. Mas ao chegar a casa, todo choroso
pediu logo humildemente perdão daquela desobediência involuntária.
Assistência. – Enfim, deveis prestar assistência em suas necessidades, com os
serviços domésticos de que fordes capazes, especialmente lhes entregando o di-
nheiro ou qualquer outra coisa que vos venha às mãos, usando de tudo conforme
suas orientações. É também estrito dever de um jovem rezar de manhã e à noite
por seus pais, para que Deus lhes conceda todos os bens espirituais e temporais.
Tudo o que vos disse acerca da obediência e do respeito aos pais, deveis
também praticar em relação a qualquer outro superior eclesiástico ou secular
e, por isso, também em relação aos vossos professores, dos quais igualmente
recebereis de boa vontade, com humildade e respeito, os ensinamentos, os
conselhos, as correções, certos de que tudo o que eles fazem é para vossa
maior vantagem; a obediência prestada aos superiores é como se fosse presta-
da ao mesmo Jesus Cristo e a Nossa Senhora.
Duas coisas vos recomendo com o maior empenho. A primeira é que
sejais sinceros com os superiores, não encobrindo nunca as vossas faltas com
fingimentos, muito menos as negando. Dizei sempre a verdade com franqueza.
As mentiras [além de ofenderem a Deus] vos tornam filhos do demônio, que
é o príncipe da mentira, e, vindo-se depois a saber a verdade, passareis por

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Dom Bosco: história e carisma 1

mentirosos, com grande desdouro perante os superiores e os companheiros.


A segunda, é que aceiteis os conselhos e as advertências dos superiores como
norma de vossa vida e do vosso modo de agir. Felizes vós, se assim fizerdes; os
vossos dias serão venturosos, todas as vossas ações serão bem ordenadas e servi-
rão de edificação aos outros. Por isso, concluo dizendo-vos: o jovem obediente
chegará a ser santo; pelo contrário, o desobediente não tem nenhuma virtude.

Meios de perseverança: qual deve ser o principal interesse do jovem


Artigo 1o O que fazer nas tentações
Também na vossa idade [amados jovens] o demônio arma laços para
vos roubar a alma. Deveis, pois, vigiar atentamente para não cairdes, quando
fordes tentados, isto é, quando o demônio vos sugerir o mal.
Muito contribuirá a preservar-vos das tentações evitar as ocasiões, as más
conversas e os espetáculos públicos, onde não há nada de bom e onde sempre
aprende algo ruim. Procurai estar sempre ocupados [em coisas do ofício, ou
com o estudo, ou com o canto ou tocando instrumentos musicais]; e quando
não tendes nada para fazer, armai altarinhos, arranjai imagens ou quadros ou
ide entreter-vos algum tempo em diversões honestas, sempre com a devida
licença dos pais. [Procurai fazer – diz São Jerônimo – que o demônio não vos
encontre nunca desocupado.]
Quando fordes tentados, não espereis que a tentação se apodere de vosso
coração, mas fazei logo alguma coisa para livrar-vos dela, ou pelo trabalho ou
pela oração. E se a tentação continuar fazei o sinal da cruz, beijai algum objeto
bento, dizendo: [“Nossa Senhora Auxiliadora, rogai por mim”], “São Luís,
faze com que eu não ofenda ao meu Deus”. Indico-vos este santo, porque foi
proposto pela Igreja como patrono especial e modelo dos jovens. Ele, com
efeito, para vencer as tentações, fugia de todas as ocasiões; jejuava frequen-
temente a pão e água; açoitava-se de tal forma, que as roupas, as paredes e o
chão ficavam salpicados de seu sangue inocente. Foi assim que ele obteve uma
completa vitória sobre todas as tentações. Assim a obtereis também vós, se
procurardes imitá-lo ao menos na mortificação dos sentidos, especialmente na
modéstia, e se vos recomendardes de coração a ele, quando fordes tentados.

Artigo 2o Astúcias de que se serve o demônio para enganar os jovens


O primeiro laço que o demônio costuma armar-vos [para prejudicar] a
vossa alma consiste em sugerir-vos o pensamento de que será muito difícil,
durante quarenta, cinquenta ou sessenta anos que vos promete de vida, cami-
nhar pela difícil vereda da virtude, sempre afastados dos prazeres.

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

Quando o demônio vos sugerir este pensamento, respondei-lhe: “Quem


me garante que chegarei a essa idade? A minha vida está nas mãos de Deus; pode
ser que o dia de hoje seja o último da minha vida. Quantos companheiros meus
desapareceram deste mundo na flor dos anos! E por que não poderia suceder-me
o mesmo?”. E mesmo quando tivéssemos que trabalhar alguns anos para Nosso
Senhor, não teremos uma recompensa extraordinária na eternidade de glória e
de alegria, no Céu?
Além disso, vemos que os que vivem na graça de Deus estão sempre ale-
gres e mesmo no tempo das aflições têm o coração feliz. Ao contrário, os que
se entregam aos prazeres vivem mal humorados [e inquietos], e por mais que
se esforcem em achar a paz nos seus divertimentos, sentem-se cada vez mais
infelizes [diz o Senhor].
Alguém acrescentará: Somos jovens; se começarmos a pensar na eternida-
de, no inferno, isso nos tornará melancólicos e pode até transtornar-nos o juízo.
De acordo, o pensamento de uma eternidade infeliz, o pensamento de um
suplício que não há de acabar nunca mais é, de fato, um pensamento triste
e aterrador. Dizei-me, porém: se só o pensar nisso pode transtornar o juízo,
que seria se para lá fôssemos realmente? Melhor será, portanto, pensar nisso
agora, para não cair mais tarde, pois é certo que se nisso pensarmos frequen-
temente, conseguiremos evitá-lo.
Observai, porém, que, se é triste o pensamento do inferno, enche-nos
de consolação a esperança daquele paraíso onde se gozam todos os bens. Por
isso é que os santos, enquanto pensavam seriamente na eternidade das penas,
viviam em grande alegria, com a firme esperança em Deus de serem delas
preservados e de chegarem um dia à posse dos bens infinitos, que o Senhor
reserva a quem o serve. Ânimo, portanto, ó meus caros, começai a servir ao
Senhor e experimentareis a satisfação do vosso coração [...].

Artigo 6o O jovem na escolha do estado


Deus, em seus eternos desígnios, marcou para cada um de nós uma
determinada condição de vida e as graças relativas. Como em todos os casos,
também neste, que é de capital importância, deve o cristão procurar conhe-
cer a vontade divina, imitando a Jesus Cristo, que proclamava ter vindo ao
mundo somente para cumprir a vontade de seu eterno Pai. É, pois, de suma
importância, meus filhos, que procureis ver bem claramente neste assunto,
para não vos iniciardes em ocupações às quais o Senhor não vos escolheu.
A algumas pessoas, favorecidas de modo singular, Deus manifestou de
forma extraordinária o estado a que as chamava. Vós, porém, não pretendais

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Dom Bosco: história e carisma 1

tanto, mas consolai-vos com a segurança de que Deus vos guiará pelo reto
caminho, contanto que da vossa parte não descureis os meios oportunos para
tomar uma prudente determinação.
Um dos meios fundamentais é conservar-se puro durante a infância e a ju-
ventude, ou reparar com uma sincera penitência os anos passados infelizmente
no pecado. Outro meio é a oração humilde e perseverante. Será bom repetir
com São Paulo: “Senhor, que quereis que eu faça?”. Ou como Samuel: “Falai,
Senhor, que o vosso servo vos escuta”. Ou com o salmista: “Ensinai-me a fazer
a vossa vontade, porque sois vós o meu Deus”, ou alguma outra expressão se-
melhante de confiança.
E quando chegar o momento de tomar uma decisão, dirigi-vos a Deus
com orações especiais e frequentes; aplicai para esse fim a santa Missa que ou-
virdes, aplicai algumas comunhões. Podereis também fazer alguma novena,
algum tríduo, alguma abstinência, visitar algum santuário insigne.
Recorrei também a Nossa Senhora, que é a Mãe do Bom Conselho, a
São José, seu esposo que sempre foi fidelíssimo às ordens divinas, ao Anjo da
Guarda, aos vossos santos patronos.
Ótima coisa seria, sendo possível, antes de tomar uma decisão impor-
tante, fazer os exercícios espirituais ou algum dia de retiro.
Prometei que haveis de fazer a vontade de Deus, aconteça o que acontecer e
apesar da desaprovação de quem julga de acordo com o ponto de vista do mundo.
Acontecendo que vossos pais ou outras pessoas de respeito quisessem
dissuadir-vos do caminho ao qual Deus vos chama, lembrai-vos que então é
o caso de pôr em prática o grande aviso do Senhor de obedecer antes a Deus
que não aos homens. Não esqueçais absolutamente o respeito e a honra que
lhes deveis; respondei e tratai sempre com humildade e mansidão, mas sem
prejudicar o supremo interesse de vossa alma. Tomai conselho sobre o modo
de vos haverdes e confiai naquele que tudo pode. Consultai o confessor, de-
clarando com toda a clareza o vosso caso e as vossas disposições.
Quando São Francisco de Sales manifestou em sua casa que Deus o
chamava ao sacerdócio, os pais lhe observaram que na qualidade de primo-
gênito da família, devia ser seu apoio e sustentáculo, que a inclinação ao
estado eclesiástico provinha de uma devoção indiscreta e que ele poderia
perfeitamente tornar-se santo mesmo vivendo no mundo; e até para obrigá-
-lo de certa forma a seguir suas intenções propuseram-lhe um casamento
nobre e vantajoso. Mas nada pôde demovê-lo do seu propósito. Antepôs
constantemente a vontade de Deus à vontade dos pais, a quem amava com
toda a ternura e dedicava profundo respeito; preferiu renunciar a todas as

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O Regulamento de Dom Bosco para o Oratório e seus primeiros escritos (1844-1849)

vantagens temporais a ter que faltar à graça da vocação. E os pais, que, não
obstante alguma ideia menos reta, derivada do ponto de vista mundano,
eram pessoas piedosas, mais tarde tiveram que se declarar satisfeitos com a
resolução do filho.

O AMIGO DA JUVENTUDE.34 PROGRAMA EDITORIAL


O desejo ardente de educação, informação e distração através da
leitura, que invadiu todos os níveis da sociedade em diversos graus,
é o distintivo desta geração. Este anseio por cultivar a mente esten-
de-se a todos os degraus da escala social. Os livros publicados são
incapazes de proporcionar informação sobre os acontecimentos que
sucedem diariamente; por isso, os periódicos se tornam necessários.
Esta necessidade tem sido sentida com maior urgência desde a pro-
mulgação das instituições liberais, incluída a liberdade de imprensa,
pelo nosso magnânimo soberano, o rei Carlos Alberto.
Os numerosos periódicos publicados proclamam a busca do bem do
povo. Entretanto, nenhum deles, até onde sei, tem por finalidade
principal cuidar e promover o que o povo tem de mais valioso: o
profundo e forte apego à nossa religião católica e a genuína edu-
cação cristã. Falamos de uma genuína educação cristã porque na
presente crise (é preciso reconhecê-lo) o nosso povo está exposto,
sobretudo os jovens, a uma variedade de opiniões preconceituosas
que podem levá-los a sérios erros. Os editores deste periódico, por-
tanto, comprometem-se a preencher este vazio e remediar esta falha.
Sua prioridade e principal finalidade é confirmar o nosso povo na
fé católica, ensinando sua verdade inquestionável, sua beleza sobre-
natural e o grande bem que dela jorra como de uma fonte perpétua
para o indivíduo e a totalidade da sociedade. Propósito paralelo é ins-
truir e educar nosso povo na virtude que (como ensina o Apóstolo) é
útil para todos, pois leva a promessa de Deus à vida presente e futura.
Em segundo lugar, como as novas conquistas das artes e das ciências
podem contribuir muito para a educação moral do povo, este peri-
ódico não poupará esforços e se servirá de todos os meios possíveis
para iluminar e cultivar os corações das pessoas.

34
L’Amico della Gioventù. Giornale Religioso, Morale e Politico, ano 1, núm. 1 (Turim: sábado,
21 de outubro de 1848).

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Dom Bosco: história e carisma 1

Em terceiro lugar, vemos que manter-se ao corrente dos fatos diá-


rios converteu-se numa necessidade para todas as classes de pessoas.
Por isso, cada número, até o final, incluirá um resumo dessas notí-
cias, relativas tanto à sociedade civil quanto à Igreja, que possam ser
de interesse para os nossos leitores ou simplesmente preencher seu
desejo de serem informados.
A orientação deste periódico e de seus editores é alheia aos partidos
políticos, ao confronto, à controvérsia e à polêmica. Portanto, não
terão lugar em suas páginas discussões e debates. Trataremos ape-
nas de proporcionar uma orientação para os jovens, prevenindo-os
contra o que possa atacar as verdades da fé, corromper sua moral ou
pervertê-los.
Os editores convocam todos os presbíteros que cuidam das almas,
os padres da cidade e da aldeia, os professores, os chefes de família
e todos os que se ocupam de coração com a promoção religiosa das
pessoas a nos ajudarem de todo modo possível. Esta é uma tarefa
que (assim esperamos) beneficiará a toda classe de pessoas, especial-
mente os jovens. Eles são a parte mais preciosa da sociedade, pois
neles repousam as esperanças do país, o bem-estar das famílias e a
honra da Igreja e do Estado.
Os editores

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Bibliografia

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Dom Bosco: história e carisma 1

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LENTI, Arthur. “The most wonderful day of my life’: the sesquicentennial of Don Bosco’s
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612

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Índice geral

Siglas e abreviaturas.............................................................................................. 5
Apresentação do Reitor-Mor................................................................................ 7
Apresentação do autor.......................................................................................... 9
Apresentação dos editores de língua espanhola.................................................... 11
Apresentação do Primeiro volume...................................................................... 13
Parte I: Fontes
Capítulo I
As fontes: uma apresentação
1. Visão global das fontes................................................................................... 17
Arquivos............................................................................................................. 17
Dom Bosco como fonte..................................................................................... 18
Primeiras fontes salesianas.................................................................................. 19
Depoimentos de testemunhas no Processo de Beatificação e Canonização.......... 19
A tradição biográfica de Dom Bosco................................................................... 20
2. Cronistas e crônicas....................................................................................... 21
O período Ruffino-Bonetti (1861-1864)............................................................ 21
Criação de um Comitê.................................................................................... 21
As crônicas de Ruffino..................................................................................... 23
As crônicas de Bonetti .................................................................................... 23
O período Barberis-Berto (1875-1879).............................................................. 24
O despertar da consciência e o esforço renovado de informar.............................. 24
Barberis e suas crônicas................................................................................... 25
Berto e seus relatos.......................................................................................... 26
O período Lemoyne-Viglietti (1884-1888)........................................................ 27
As crônicas dos últimos anos de Dom Bosco....................................................... 27
Lemoyne e suas crônicas................................................................................... 27
As crônicas de Viglietti ................................................................................... 29
Comentário conclusivo....................................................................................... 29
Apêndice
NOTAS BIOGRÁFICAS DOS CRONISTAS SALESIANOS................................... 30
Domingos Ruffino (1840-1865)......................................................................... 30

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Dom Bosco: história e carisma 1

João Bonetti (1838-1891).................................................................................. 30


Júlio Barberis (1847-1927)................................................................................. 32
Joaquim Berto (1847-1914)............................................................................... 34
Carlos Viglietti (1864-1915).............................................................................. 34

Capítulo II
A TRADIÇÃO BIOGRÁFICA DE DOM BOSCO
1. As primeiras biografias................................................................................... 36
Os primeiros esboços biográficos de Dom Bosco................................................ 36
“Don Bosco”, de Carlos d’Espiney...................................................................... 37
O “Don Bosco” de d’Espiney traduzido para o espanhol e adaptado ................... 38
“Don Bosco” de Alberto Du Boÿs...................................................................... 39
“Vida de Dom Bosco” de Villefranche................................................................ 41
A atitude ambivalente de Dom Bosco perante a sua própria biografia................. 42
2. João Batista Lemoyne, biógrafo de Dom Bosco............................................. 44
O projeto de uma biografia e a opção de Lemoyne para o trabalho..................... 44
Recolhendo a documentação............................................................................ 45
Os Documenti de Lemoyne............................................................................ 45
As Memórias Biográficas: a etapa de Lemoyne...................................................... 47
As Memórias Biográficas: a etapa Amadei-Ceria................................................... 48
Conclusão.......................................................................................................... 49
Apêndice
BREVE CRÔNICA DA Historiografia DE DOM BOSCO.......................... 51
1. A historiografia antiga, uma “narração histórica” (1860-1960)..................... 51
Um juízo de valor........................................................................................... 53
2. A nova historiografia salesiana (1960...)........................................................ 54
Um juízo de valor........................................................................................... 56
3. As edições críticas das fontes e da história da Congregação (1982...)............ 57
Sem retorno..., para o futuro............................................................................ 58
NOTAS BIOGRÁFICAS DOS AUTORES DAS MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS........... 59
João Batista Lemoyne (1839-1916)................................................................... 59
Primeiros anos................................................................................................ 60
A formação do seminário e a ordenação sacerdotal............................................ 60
Encontro com Dom Bosco. Decisão vocacional.................................................. 62

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Índice geral

Um ano com Dom Bosco e a profissão perpétua................................................. 65


Diretor do colégio salesiano de Lanzo (1865-1877).......................................... 66
Diretor espiritual local das Filhas de Maria Auxiliadora em Mornese
e em Nizza (1877-1883)................................................................................ 66
Secretário de Dom Bosco e do Capítulo Superior (1883-1916).......................... 67
Ângelo Amadei (1868-1945)............................................................................. 69
Eugênio Ceria (1870-1957)............................................................................... 70
AS MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS E SUA CONFIABILIDADE HISTÓRICA.............. 71
Coleta e organização dos documentos................................................................ 71
Compreensão e utilização dos documentos......................................................... 74
Falta de conhecimentos de crítica na interpretação............................................ 76
O emprego dos documentos.............................................................................. 79
A fisionomia “carismática” de Dom Bosco.......................................................... 84
O método de Amadei e de Ceria........................................................................ 88
Comentário final................................................................................................ 91

Capítulo III
AS MEMÓRIAS DO ORATÓRIO, DE DOM BOSCO,
E A HISTÓRIA DO ORATÓRIO, DO PADRE BONETTI

I. MEMÓRIAS DO ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALES......................... 94


1. Origem e publicação...................................................................................... 94
Intenção expressa de Dom Bosco e propósito implícito...................................... 95
As circunstâncias da redação............................................................................... 97
A época dos escritos intencionais de Dom Bosco................................................ 98
Forma literária das Memórias: autobiografia?....................................................... 99
Plano narrativo............................................................................................ 101
1854 como terminus ad quem da narração.................................................. 103
2. A intenção de Dom Bosco e sua base histórica............................................ 105
As Memórias, parábola e meta-história.............................................................. 105
Episódios convertidos em categorias................................................................. 106
Oposição dos párocos a Dom Bosco................................................................. 106
Perseguido como “revolucionário” pelas autoridades civis.................................. 106
Abandonado e sozinho.................................................................................. 107
O não envolvimento político de Dom Bosco.................................................... 108
Ataques contra a vida de Dom Bosco por parte dos “protestantes”..................... 109

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Dom Bosco: história e carisma 1

As Memórias, uma história que garante a Providência de Deus e ratifica


o caráter carismático do Oratório..................................................................... 110
Instruído e guiado através dos sonhos.............................................................. 111
Proteção e retribuição divina......................................................................... 112
Profecia e realidade....................................................................................... 112
As Memórias, relato divertido e estimulante.................................................... 112

3. Intenção educativa: as Memórias, prelúdio narrativo do tratado


sobre o Sistema Preventivo.............................................................................. 113
“Educar” a juventude, vocação de Deus............................................................ 113
O Oratório, primeiro veículo da vocação a serviço dos jovens........................... 113
A “casa anexa ao Oratório”: casa e refúgio como segundo
instrumento educativo...................................................................................... 114
Assistência: atividade integral de caridade em favor dos jovens.......................... 114
Cuidar dos jovens em perigo implica satisfazer todas as suas
verdadeiras necessidades................................................................................... 115
Religião como fundamento ou prioridade........................................................ 116
O método ou estilo da caridade pastoral (embora não se lhe dê esse nome)
é evidente nas Memórias................................................................................... 117
Viver para os jovens e deixá-los “ser jovens”...................................................... 118
A relação educativa........................................................................................... 118
Conclusão........................................................................................................ 120
II. A HISTÓRIA DO ORATÓRIO, DO PADRE BONETTI.................................. 120

Parte II: Vida


Capítulo IV
DA REVOLUÇÃO FRANCESA AO CONGRESSO DE VIENA
1. A Itália sob Napoleão................................................................................... 125
O legado napoleônico...................................................................................... 126
A política eclesiástica de Napoleão.................................................................... 127
2. O Congresso de Viena................................................................................. 128
A Restauração na Itália..................................................................................... 129
O reino da Sardenha e a Casa de Saboia........................................................... 130
Apêndice
NOTA BIOGRÁFICA DO PAPA PIO VII (1742-1823)......................................... 132
METTERNICH E A DOMINAÇÃO AUSTRÍACA DA ITÁLIA (1815-1848)........ 134

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Índice geral

Significado de alguns termos políticos.............................................................. 135


Política liberal ............................................................................................. 135
República..................................................................................................... 135
“Ressurgimento”............................................................................................ 136

Capítulo V
A TERRA NATAL E A FAMÍLIA DE DOM BOSCO

1. O Piemonte e a capital Turim..................................................................... 138


Chieri e Castelnuovo........................................................................................ 139
A “cascina” e o sistema de parceria no Piemonte no século XIX........................ 140
A terra e os cultivos.......................................................................................... 141
2. A família Bosco............................................................................................ 143
Francisco Bosco e sua família............................................................................ 144
Data de nascimento e batismo de João Melquior Bosco.................................... 144
Morte de Francisco Luís Bosco......................................................................... 146
O lugar do nascimento de Dom Bosco............................................................ 147
A pequena casa dos Becchi............................................................................... 147
A situação de Francisco Luís Bosco................................................................... 148
A situação de Margarida Bosco após a morte do esposo.................................... 150
Conclusão........................................................................................................ 152
Apêndice
DISCUSSÃO SOBRE O LUGAR DE NASCIMENTO DE DOM BOSCO............ 154

Capítulo VI
UMA INFÂNCIA ESPERANÇOSA EM TEMPOS
DE COMOÇÃO POLÍTICA (1815-1824)
1. As revoluções abortadas em Nápoles e no Piemonte (1820-1821).............. 157
2. Margarida Bosco e sua família na casa dos Becchi....................................... 159
Margarida, mãe e educadora............................................................................. 161
João Bosco no ensino fundamental de Capriglio............................................... 165
Margarida e a vocação de João.......................................................................... 167
O sonho vocacional....................................................................................... 167
Contexto, estímulos e imagens do sonho.......................................................... 169
A atitude do próprio Dom Bosco.................................................................... 170

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Dom Bosco: história e carisma 1

Apêndice
MARGARIDA OCCHIENA BOSCO (1788-1856):
ÁRVORE GENEALÓGICA E REPERTÓRIO BIOGRÁFICO.............................. 172
ÚLTIMOS ANOS DE MARGARIDA BOSCO (1846-1856)................................ 181
A década de Mamãe Margarida........................................................................ 182
Palavras de Mamãe Margarida a Dom Bosco no dia de sua morte..................... 183
NOTA BIOGRÁFICA DE PADRE JOSÉ ANTÔNIO LACQUA (1764-1847)......... 183
MARIANA, OU JOANA MARIA OCCHIENA (1785-1857),
IRMÃ MAIS VELHA DE MAMÃE MARGARIDA............................................... 185

Capítulo VII
AS PROVAÇÕES DE UM ADOLESCENTE (1824-1830)
1. O relacionamento com Antônio.................................................................. 187
As opções de Margarida.................................................................................... 188
João Bosco trabalha como empregado (1827-1829).......................................... 189
O retorno de João............................................................................................. 191
O silêncio de Dom Bosco sobre esse período.................................................... 193
Encontro de João Bosco com padre João Calosso.............................................. 194
A divisão da herança Bosco............................................................................... 197
2. A adolescência problemática de João Bosco................................................. 198
A ausência de um pai e a presença de uma mãe................................................. 199
A figura do pai................................................................................................. 200
Padre João Calosso e o jovem João Bosco: uma relação de pai e filho................ 201
Conclusão........................................................................................................ 202
Apêndice
CRONOLOGIA CORRIGIDA ATÉ 1831........................................................... 203
NOTA BIOGRÁFICA DE ANTÔNIO JOSÉ BOSCO,
MEIO-IRMÃO DE DOM BOSCO (1808-1849).................................................. 205
NOTA BIOGRÁFICA DE JOSÉ LUÍS BOSCO,
IRMÃO MAIS VELHO DE DOM BOSCO (1813-1862)..................................................208
NOTA BIOGRÁFICA DO PADRE JOÃO MELQUIOR CALOSSO (1760-1830)........211

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Índice geral

Capítulo VIII
JOÃO BOSCO NA ESCOLA DE CASTELNUOVO
E OS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS DOS INÍCIOS DE 1830
1. O primeiro encontro com José Cafasso, seminarista.................................... 212
José Bosco, meeiro............................................................................................ 213
João Bosco na escola de Castelnuovo................................................................ 213
2. Importância do ano em Castelnuovo........................................................... 215
Férias de verão no sítio Matta, de Sussambrino................................................. 216
3. As revoluções de 1830-1831 e o avanço do Ressurgimento......................... 216
Mazzini e a Jovem Itália.................................................................................... 217
Apêndice
A REFORMA ESCOLAR DO REI CARLOS FÉLIX............................................. 219

Capítulo IX
JOÃO BOSCO NA ESCOLA SECUNDÁRIA PÚBLICA DE CHIERI (1831-1835)

1. A cidade de Chieri....................................................................................... 221


A escola secundária pública.............................................................................. 222
2. João Bosco na escola de Chieri (1831-1835)............................................... 224
Enquadramento e acontecimentos significativos............................................... 224
O sexto, o quinto e o quarto anos de Gramática em um só ano [1831-1832]....... 225
Terceiro ano de gramática [1832-1833]......................................................... 227
A Sociedade da Alegria. Vida social e amizades................................................. 227
Vida espiritual e prática religiosa ..................................................................... 229
A Confirmação............................................................................................. 230
Exame da segunda série de Humanidades....................................................... 230
Segunda série de Humanidades (1833-1834)................................................. 230
Estudo e leituras de João Bosco........................................................................ 231
O episódio de Jonas.......................................................................................... 232
Crise e discernimento vocacional (primavera de 1834)..................................... 233
Primeira série de Retórica [1834-1835]......................................................... 233
Luís Comollo................................................................................................ 234
Apêndice
A ESCOLA SECUNDÁRIA NA REFORMA DE 1822.......................................... 236
Calendário, horários e administração econômica.............................................. 236

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Dom Bosco: história e carisma 1

Os deveres dos estudantes em geral................................................................... 237


Deveres dos professores e mestres..................................................................... 237
Admissão e promoção....................................................................................... 238
Certificados de professores e mestres................................................................. 238
Alojamento dos estudantes............................................................................... 238
Diretores espirituais, celebrações e Exercícios Espirituais.................................. 239

Capítulo X
CRISE E DISCERNIMENTO VOCACIONAL EM CHIERI (1834-1835)

1. O sonho vocacional de João Bosco.............................................................. 241


Luta interior de João Bosco para o discernimento vocacional............................ 242
Relato de Lemoyne da primeira crise e discernimento....................................... 244
Relato de Lemoyne da segunda crise e discernimento....................................... 246
Breve reconstrução crítica.............................................................................. 246
O “projeto”, o “caso” e os “obstáculos”.............................................................. 247
2. Opção de João Bosco pelos jovens............................................................... 248
Apêndice
DIVERSOS TESTEMUNHOS SOBRE O SONHO DA VOCAÇÃO
NOS BECCHI (1824-1825)................................................................................ 250

Elaboração de Lemoyne sobre uma conexão sobrenatural do sonho (de 9 a 22 anos).....250


Testemunho de José Turco no processo diocesano............................................... 250
Narração do relato de José Turco pelo padre Barberis....................................... 251
Testemunho do padre Rua no Processo Diocesano,
citando relatos de Lúcia Turco e outros........................................................... 252
Sonho do “mandato imperioso”...................................................................... 253
O sonho do conserto da roupa........................................................................ 253
Testemunho de dom Cagliero no processo diocesano......................................... 253
Comentário final.......................................................................................... 254

Capítulo XI
FORMAÇÃO SACERDOTAL DE JOÃO BOSCO NO SEMINÁRIO DE CHIERI
1. A decisão de João Bosco de entrar no Seminário......................................... 255
A Escola Secundária e o recrutamento vocacional durante a Restauração.......... 255
O serviço militar.............................................................................................. 256
Considerações econômicas................................................................................ 257

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Índice geral

A opção de ser seminarista residente................................................................. 257


Vestidura clerical.............................................................................................. 260
2. A entrada no Seminário............................................................................... 261
A formação no seminário.................................................................................. 262
A vida de seminário...................................................................................... 263
Férias de verão.............................................................................................. 264
Amizade e morte prematura de Luís Comollo.................................................. 265
O teólogo João Borel........................................................................................ 267
Estudos............................................................................................................ 268
Leituras no seminário....................................................................................... 270
3. A descoberta de Luís Comollo e da sua espiritualidade............................... 273
A biografia de Luís Comollo............................................................................. 277
Apêndice
DOM COLUMBANO CHIAVEROTI (1754-1831), ARCEBISPO DE TURIM
(1818-1831)...................................................................................................... 280
O SEMINÁRIO DA ARQUIDIOCESE DE TURIM............................................ 282
Antes de Napoleão........................................................................................ 282
Durante o período napoleônico...................................................................... 283
Depois de Napoleão...................................................................................... 284
O modelo de formação sacerdotal da reforma de Chiaveroti............................. 285
Fundação e organização do seminário de Chieri............................................. 286
Regulamento do Seminário de Chieri pelo arcebispo Luís Fransoni................... 288
Disciplina............................................................................................... 288
Estudos................................................................................................... 289
OS SEMINÁRIOS DA ARQUIDIOCESE DE TURIM A PARTIR DE 1840.......... 290
BIOGRAFIA DE LUÍS COMOLLO ESCRITA POR DOM BOSCO (1817-1839).........290
Estrutura, fontes e conteúdo da biografia........................................................ 290
Extratos da primeira edição (1844)............................................................... 291
Primeiros anos.............................................................................................. 292
Comollo inscreve-se na escola pública de Chieri ............................................. 292
Comollo recebe o hábito clerical e entra no Seminário..................................... 293
A doença e a morte de Comollo...................................................................... 295

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Dom Bosco: história e carisma 1

Capítulo XII
ÚLTIMO ANO NO SEMINÁRIO E PRIMEIRO DE
MINISTÉRIO SACERDOTAL (1840-1841)
1. Último ano de João Bosco no seminário...................................................... 299
A tonsura e as ordens menores.......................................................................... 300
O quarto ano de Teologia durante as férias de verão de 1840............................ 301
Subdiaconato e diaconato................................................................................. 302
Preparação para a ordenação sacerdotal............................................................. 303
O retiro espiritual, as lembranças e as nove resoluções...................................... 305
As lembranças............................................................................................... 305
As nove resoluções.......................................................................................... 307
Ordenação sacerdotal e “Primeira Missa”.......................................................... 310
As Missas de Dom Bosco, de Turim a Castelnuovo: uma peregrinação............. 312
Missa solene de Dom Bosco na paróquia natal de Castelnuovo......................... 313
A presença de Mamãe Margarida.................................................................. 314
2. O primeiro período de ministério sacerdotal em Castelnuovo
(10 de junho - 2 de novembro de 1841).............................................................. 315
Um breve período de exercício ministerial........................................................ 316
Dom Bosco opta pelo Colégio Eclesiástico....................................................... 317
Apêndice
O CONTEXTO TEOLÓGICO E ECLESIAL...................................................... 318
Jansenismo....................................................................................................... 318
Doutrina..................................................................................................... 319
O jansenismo na França................................................................................ 320
Jansenistas e Magistério. Controvérsia sobre os ensinamentos
do Augustinus de Jansen................................................................................. 321
Jansenistas e jesuítas: controvérsia em teologia moral e sacramental................... 323
Piedade e espiritualidade jansenista............................................................... 323
SISTEMAS MORAIS......................................................................................... 324
Probabilismo................................................................................................ 325
Laxismo....................................................................................................... 325
Probabiliorismo............................................................................................ 326
Equiprobabilismo......................................................................................... 326
Tuciorismo................................................................................................... 326

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Índice geral

CONCEPÇÕES ECLESIOLÓGICAS................................................................. 327


Conciliarismo............................................................................................... 327
Galicanismo................................................................................................. 329
Febronianismo ............................................................................................. 330
Josefinismo................................................................................................... 331

Capítulo XIII
O COLÉGIO ECLESIÁSTICO E DOM BOSCO (1841-1844)
1. Contexto eclesial e teológico........................................................................ 334
Os jesuítas e as Associações de Amizade............................................................ 337
A Congregação dos Oblatos de Maria Virgem.................................................. 339
2. O Colégio Eclesiástico................................................................................. 339
O Colégio Eclesiástico estabelecido em São Francisco de Assis.......................... 340
Vida e espírito do Colégio Eclesiástico ............................................................. 342
Atividades acadêmicas................................................................................... 345
Experiências pastorais práticas....................................................................... 346
Sobrevivência e desenvolvimento: o reitorado de Guala (1817-1848)............... 347
Período de ouro: o reitorado do padre Cafasso (1848-1860)............................. 349
Período crítico: o episcopado de dom Gastaldi (1860-1876)............................. 350
Aprofundamento da crise e encerramento........................................................ 353
Padre José Allamano e o novo Colégio............................................................. 353
Conclusão........................................................................................................ 355
3. Dom Bosco no Colégio Eclesiástico............................................................ 355
1841-1842....................................................................................................... 356
1842-1843....................................................................................................... 357
1843-1844....................................................................................................... 358
A experiência de Dom Bosco com padre Cafasso
como mestre e diretor espiritual........................................................................ 360
Formação política e eclesiológica conservadora................................................. 360
Apêndice
NOTAS BIOGRÁFICAS DE SÃO JOSÉ CAFASSO (1811-1860)........................... 364
Em favor dos jovens “pobres e abandonados”................................................... 368
Em favor dos doentes e moribundos................................................................ 369
Em favor dos presos e condenados à morte....................................................... 369

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Dom Bosco: história e carisma 1

GREGÓRIO XVI (1765-1846): AVERSÃO TOTAL AO LIBERALISMO............... 374


SANTO AFONSO DE LIGÓRIO (1696-1787).................................................... 375
SÃO FELIPE NERI (1515-1595), SANTO AMIGO DOS JOVENS....................... 376
SÃO FRANCISCO DE SALES (1567-1622): BISPO E SANTO HUMANISTA...... 377

Capítulo XIV
JOVENS “POBRES E ABANDONADOS”
NA TURIM DOS MEADOS DO SÉCULO XIX
1. A Turim da juventude “pobre e abandonada”.............................................. 379
Transformação demográfica, aumento da população, expansão urbana............. 379
O bairro do Moschino................................................................................... 381
O bairro de Vanchiglia.................................................................................. 382
O bairro de Borgo Dora................................................................................ 383
O bairro de Valdocco..................................................................................... 384
2. Os jovens “pobres e abandonados” que Dom Bosco conheceu.................... 385
Os jovens e meninos em perigo........................................................................ 385
Filhos de gente pobre....................................................................................... 387
Delinquência juvenil........................................................................................ 388
Mendigos, ladrões e fugitivos.......................................................................... 389
Os bandos juvenis......................................................................................... 390
As prisões e a política penal............................................................................ 392
3. Enfrentando o problema.............................................................................. 394
Insuficiência das estruturas paroquiais.............................................................. 394
Nova compreensão e novo compromisso.......................................................... 395
Apêndice
TURIM E A CASA DE SABOIA. UM RESUMO HISTÓRICO............................ 396
Turim romana e medieval............................................................................. 396
A Casa de Saboia.......................................................................................... 397
Turim e o Ducado de Saboia......................................................................... 397
Turim no Reino da Sardenha........................................................................ 398
Turim durante a Revolução Francesa e o período napoleônico.......................... 398
Turim dos reis Carlos Alberto e Vítor Manuel II............................................. 399
OS PADRES NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX. NÚMERO,
SITUAÇÃO E OCUPAÇÕES............................................................................. 400

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Índice geral

Número dos padres antes, durante e depois da Revolução Liberal de 1848........ 400
O censo de 1833........................................................................................... 401
O ano da ordenação de Dom Bosco e as ordenações da década.......................... 401
Ocupação ministerial dos padres no período da Restauração............................. 402
Párocos, coadjutores e colaboradores................................................................ 403
Capelães de aldeias e outras capelanias........................................................... 403
Padres no ensino e na administração de escolas................................................ 404
Padres sem trabalho pastoral.......................................................................... 404

Capítulo XV
OS INÍCIOS DO ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
1. Os inícios do Oratório nas Memórias de Dom Bosco................................. 406
“Jovens saídos da prisão voltavam logo a ela”.................................................... 407
Bartolomeu Garelli e o início do Oratório........................................................ 408
2. O início do Oratório nos primeiros relatos “oficiais” de Dom Bosco.......... 411
Os inícios do Oratório na Nota histórica de 1854............................................. 411
Os inícios do Oratório nas Notas históricas de 1862.......................................... 415
3. A “tradição” Garelli..................................................................................... 416
O nome “Garelli”............................................................................................. 417
Possível caráter simbólico da história de Garelli................................................ 417
Outras afirmações de Dom Bosco sobre a origem do Oratório.......................... 418
Apêndice
BREVE NOTA BIOGRÁFICA DO PADRE JOÃO COCCHI (1813-1895)............ 420

Capítulo XVI
DOM BOSCO E AS OBRAS DA MARQUESA BAROLO (1844-1846)
1. Um ano decisivo: 1844................................................................................ 425
Crise e decisão vocacional................................................................................. 425
O sonho vocacional de 1844 no contexto da decisão vocacional....................... 426
Sonho de 1844 (Fonte: Memórias de Dom Bosco)........................................... 427
Variante do Sonho de 1844 (Primeiro Sonho dos Santos Mártires)................... 427
Segundo Sonho dos Santos Mártires (Fonte: apenas Lemoyne).......................... 428
O Sonho de 1844 nas Memórias do Oratório................................................... 428
O Sonho de 1844, narrado pelo padre Barberis................................................ 429

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Dom Bosco: história e carisma 1

O Primeiro Sonho dos Santos Mártires............................................................. 431


O Segundo Sonho dos Santos Mártires............................................................. 433
O “Outro Sonho”............................................................................................. 433
Um ano determinante: 1844............................................................................ 433
2. O período “itinerante” do Oratório de São Francisco de Sales.................... 435
O Oratório no Refúgio da marquesa Barolo
(20 de outubro - 1º de dezembro de 1844)..................................................... 435
O Oratório no Pequeno Hospital de Santa Filomena
(8 de dezembro de 1844 - 18 de maio de 1845)............................................. 436
O Oratório no cemitério de Santa Cruz (São Pedro in vincoli)
(25 de maio de 1845)................................................................................... 437
O Oratório sem lugar para reunião (de 1º de junho a 6 de julho de 1845).......... 439
O Oratório em São Martinho, nos moinhos do rio Dora
(de 13 de julho até fins de dezembro de 1845)................................................ 439
O Oratório na casa do padre João Batista Moretta
(de domingo, 4 de janeiro, até inícios de março de 1846)................................ 440
O Oratório utiliza o prado dos irmãos Filippi (inícios de março de 1846)........ 441
Enfim, uma casa definitiva (1º de abril de 1846)........................................... 441
Apêndice

BIOGRAFIA DO TEÓLOGO PADRE JOÃO BOREL (1801-1873)...................... 442


SUMÁRIO BIOGRÁFICO DA MARQUESA BAROLO, JÚLIA FALLETTI,
NASCIDA COLBERT DE MAULÉVRIER (1785-1864)..................................... 451

Capítulo XVII
COMPROMISSO VOCACIONAL DEFINITIVO DE DOM BOSCO (1844-1846)
1. Questões preliminares................................................................................. 456
Os párocos opõem-se a Dom Bosco?................................................................ 457
Dom Bosco perseguido como “revolucionário”?................................................ 457
Dom Bosco abandonado e sozinho?................................................................. 458
2. Instalação do Oratório na propriedade do senhor Pinardi........................... 460
A versão das Memórias de Dom Bosco.............................................................. 460
Reconstrução da história da instalação.............................................................. 461
Comentário.................................................................................................. 463
3. O confronto com a marquesa Barolo.
Opção vocacional defintiva de Dom Bosco...................................................... 465

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Índice geral

Antecedentes.................................................................................................... 465
A saúde delicada de Dom Bosco e os acontecimentos que o levaram
ao confronto..................................................................................................... 466
O confronto..................................................................................................... 467
4. A doença de Dom Bosco de 1844 a 1846.................................................... 469
Doença e agravamento..................................................................................... 469
A crise.............................................................................................................. 471
Apêndice
CARTA DO TEÓLOGO BOREL À MARQUESA BAROLO SOBRE
A SAÚDE DE DOM BOSCO............................................................................. 473
CARTA DE DOM BOSCO AO VIGÁRIO REAL,
MARQUÊS MIGUEL DE CAVOUR................................................................... 474
CARTA DA MARQUESA BAROLO AO PADRE BOREL.................................... 476
INSTRUÇÃO CATEQUÉTICA NO ORATÓRIO DE DOM BOSCO.................. 479
A instrução catequética, prioridade no Oratório de Dom Bosco........................ 479
O catecismo usado no Oratório...................................................................... 481
Proposta de Dom Bosco para um Catecismo mais simples................................. 482
Linhas-guia para a instrução catequética nos Oratórios................................... 482

Capítulo XVIII
A REVOLUÇÃO LIBERAL E O RESSURGIMENTO ITALIANO (1848-1849)
1. Até a Revolução Liberal de 1848................................................................. 484
“A Jovem Itália” e o ideal republicano de Mazzini............................................. 484
Vicente Gioberti (1801-1852)...................................................................... 485
O conde César Balbo (1779-1853)................................................................ 486
Máximo Taparelli d’Azeglio (1798-1866)...................................................... 487
O Papa Pio IX (1846-1878)............................................................................. 489

2. O ano da revolução: a primeira guerra do Piemonte contra a Áustria


(1848-1849).................................................................................................... 490
A extensão das revoluções em 1848 e o fim da era Metternich.......................... 491
As Constituições de 1848................................................................................. 492
Os Cinco Dias de Milão (18-22 de março de 1848)......................................... 493
Carlos Alberto e a Primeira Guerra da Independência...................................... 494
A derrota de Carlos Alberto - O armistício de Vigévano (9 de agosto de 1848)..........495

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Dom Bosco: história e carisma 1

O assassinato de De Rossi (1848) e a República Romana (1849)...................... 496


Reavivamento da guerra do Piemonte contra a Áustria -
Derrota de Novara (1849)................................................................................ 497
Luís Napoleão Bonaparte e Roma - A queda da República Romana
e a restauração de Pio IX.................................................................................. 499
Capitulação de Veneza...................................................................................... 500
3. Perspectivas políticas depois de 1849.......................................................... 500
Apêndice
NOTA BIOGRÁFICA DO PAPA PIO IX (1792-1878).......................................... 501
O STATUTO DO REI CARLOS ALBERTO........................................................ 504

Capítulo XIX
OS PRIMEIROS PASSOS DO ORATÓRIO
1. Desenvolvimento do Oratório de São Francisco de Sales............................. 505
Aquisição da casa e do terreno Pinardi (1846-1851)......................................... 505
Inícios e primeiros passos da casa anexa (1847)................................................ 506
Início da residência na casa Pinardi e seus primeiros internos............................ 507
Possível caráter simbólico do “órfão de Valsésia”............................................... 510
A igreja de São Francisco de Sales (1852).......................................................... 511
A residência na ala leste da “casa de Dom Bosco” (1853).................................. 511
A construção da ala oeste da residência............................................................. 512
Demolição do telheiro e da casa Pinardi (1856)................................................ 512
Desenvolvimento da escola e do grupo de estudantes na casa............................ 513
2. O Oratório de São Luís de Porta Nova (1847)............................................ 516
Projeto de um novo Oratório........................................................................... 516
Escolha do local e negociação para o seu aluguel............................................... 517
Anuncia-se o Oratório aos meninos.................................................................. 518
A inauguração na festa da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1847)............519
O Diretor e a equipe de animação.................................................................... 520
Oposição de várias frentes................................................................................ 521
3. O Oratório do Anjo da Guarda no bairro de Vanchiglia (1849).................. 525
O Oratório do Anjo da Guarda do padre Cocchi............................................. 525
Motivos do fechamento do Oratório em 1849.................................................. 525

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Índice geral

Reabertura do Oratório em 1849..................................................................... 526


Encerramento do Oratório do Anjo da Guarda e anexação ao
Oratório da Barolo, junto à Paróquia de Santa Júlia.......................................... 526
Apêndice
O MARQUÊS LUÍS FRANSONI (1789-1862), ARCEBISPO DE TURIM............. 527
Arcebispo de Turim e a chegada da Revolução Liberal..................................... 527
Exílio “voluntário” e retorno.......................................................................... 529
Prisão e exílio definitivo................................................................................ 529
Dom Fransoni e Dom Bosco.......................................................................... 530
O TEÓLOGO JACINTO CÁRPANO (1821-1894).............................................. 532
SÃO LEONARDO MURIALDO (1828-1900)..................................................... 533
NOTA INTRODUTÓRIA AO “PLANO DE REGULAMENTO” DE 1854 .......... 536
NOTA HISTÓRICA (CENNO STORICO) DO ORATÓRIO
DE SÃO FRANCISCO DE SALES...................................................................... 538
INÍCIOS DO ATUAL [1854] ORATÓRIO DE VALDOCCO E
SEU DESENVOLVIMENTO............................................................................. 543

Capítulo XX
OS ORATÓRIOS DE DOM BOSCO (1849-1852):
CONFLITOS, CRISES E SOLUÇÃO
1. Primeiros sócios e colaboradores de Dom Bosco na obra dos Oratórios........546
Carta de Dom Bosco, de 20 de fevereiro de 1850, à Mendicità Istruita............ 546
Memorial do Oratório, do teólogo Borel............................................................ 546
As Notas históricas, de Dom Bosco (Cenni storici), de 1862............................ 546
Artigo de Dom Bosco no Bollettino Salesiano
sobre os primeiros Salesianos Cooperadores...................................................... 547
2. Fase crítica no desenvolvimento do Oratório de Turim (1849-1852).......... 549
Crises, decisões e desacordos............................................................................. 549
A crise com padre Ponte no Oratório de São Luís............................................. 551
Crise no Oratório de São Luís........................................................................ 552
Crise no Oratório de São Francisco de Sales: desafio a Dom Bosco................... 555
Primeiro relato de Brósio............................................................................... 556
Segundo relato de Brósio................................................................................ 558
3. Dom Bosco e seus Oratórios obtêm reconhecimento.................................. 562
Características dos Oratórios de Dom Bosco.................................................... 564

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Dom Bosco: história e carisma 1

Apêndice
NOTA BIOGRÁFICA DE JOSÉ BRÓSIO........................................................... 566
TEXTOS DE DOM BOSCO SOBRE O PRIMEIRO ORATÓRIO........................ 567
Carta de Dom Bosco aos Administradores da Mendicância Instruída,
20 de fevereiro de 1850................................................................................. 567
Declaração de Dom Bosco no Boletim Salesiano:
primeiros sócios e Cooperadores de Dom Bosco na obra do Oratório.................. 568
CORRESPONDÊNCIA BOREL-CAFASSO-PONTE,
SOBRE A CRISE DO ORATÓRIO..................................................................... 571
Carta do teólogo Borel ao padre Pedro Ponte................................................... 571
Carta do padre Ponte ao teólogo Borel............................................................ 573
Carta do padre Cafasso ao padre Pedro Ponte................................................. 574
DECRETOS DO ARCEBISPO FRANSONI, DE 31 DE MARÇO DE 1852.......... 575
Decreto que nomeia Dom Bosco oficialmente diretor espiritual
dos três Oratórios de São Francisco de Sales, de São Luís e do Anjo da Guarda....... 575

Capítulo XXI
O REGULAMENTO DE DOM BOSCO PARA O ORATÓRIO E
SEUS PRIMEIROS ESCRITOS (1844-1849)
1. Regulamento do Oratório............................................................................ 578
Extrato da primeira edição impressa de 1877.................................................... 579
2. Primeiras sociedades do Oratório................................................................ 579
Companhia de São Luís Gonzaga..................................................................... 580
Fundação e finalidade................................................................................... 580
Regulamento................................................................................................ 582
A fórmula.................................................................................................... 583
Sociedade de Mútuo Socorro............................................................................ 584

3. Os primeiros escritos de Dom Bosco (1844-1849)...................................... 585


As obras e o sucesso de Dom Bosco como escritor............................................ 585
Biografia de Comollo (1844)............................................................................ 587
O devoto do Anjo da Guarda (1845)................................................................ 588
História da Igreja (1845).................................................................................. 588
Origem e publicação..................................................................................... 588
Estrutura, fontes, conteúdos........................................................................... 589
Seis domingos de São Luís Gonzaga (1846)...................................................... 591
Exercício de devoção à Misericórdia de Deus (fins de 1846)............................. 592

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Índice geral

O jovem instruído (1ª edição, 1847)................................................................ 592


História sagrada (1847).................................................................................... 594
O amigo da juventude (1848-1849)................................................................. 596
O cristão encaminhado à virtude e à cortesia
segundo o espírito de São Vicente de Paulo (1848)........................................... 597
Introdução ao sistema métrico (1849).............................................................. 598
Apêndice
EXTRATOS DE O JOVEM INSTRUÍDO............................................................ 599
Aos jovens..................................................................................................... 599
Primeira parte. Do que necessita um jovem para ser virtuoso........................... 600
Meios de perseverança: qual deve ser o principal interesse do jovem................... 604
O AMIGO DA JUVENTUDE. PROGRAMA EDITORIAL........................... 607

Bibliografia............................................................................................. 609
O autor............................................................................................................. 632

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O autor

Arthur J. Lenti publicou numerosos artigos sobre Dom Bosco e outros temas
salesianos no Journal of Salesian Studies e em Ricerche Storiche Salesiane.
Formado em Sagrada Escritura e Teologia, depois de lecionar por mais de trinta anos
na cidade de Aptos, na Califórnia, e no Josephinum, em Ohio (Estados Unidos), chegou
à Don Bosco Hall, em Berkeley, Califórnia, em 1975, onde desde 1984 desenvolve um
intenso trabalho de pesquisa e ensino no Institute of Salesian Spirituality.
Seu livro mais recente é Don Bosco and his pope and his bishop: the trials of a founder
(Dom Bosco, seus papas e seus bispos: as dificuldades de um fundador). LAS: Roma, 2006.

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