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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo

Bororo ethics: the survival of a people


Éthique Bororo: la survie d’un peuple
Ética Bororo: la supervivencia de un pueblo

Nelson Gil Tolentino*


Recebido em 28/8/2007; revisado e aprovado em 18/7/2008; aceito em 20/1/2009

Resumo: O presente trabalho focaliza a ação da Igreja, por meio dos missionários salesianos, junto ao povo Bororo
na missão de Meruri, situada no Centro-Oeste brasileiro. Esta abordagem centraliza sua atenção na luta dos índios
Bororo pela sua sobrevivência, seja no contato com os primeiros colonizadores, seja no contato com os missionários.
Entre 1940 e 1960, por razões pouco exploradas por estudiosos até agora, os Bororo residentes em Meruri decidem
morrer. Hoje, contrariando tal decisão, os Bororo de Meruri estão em crescimento demográfico. Diante desses fatos,
duas questões brotam espontaneamente: 1ª) O que levou o povo Bororo a optar pela morte? 2ª) O que motivou esta
nação indígena, já autodeterminada, a recuperar o entusiasmo pela vida? A partir de uma breve reconstrução
histórica da experiência missionária em Meruri - Estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil, o estudo
dimensionará a opção dessa etnia brasileira.
Palavras-chave : Etnia bororo. Territorialidade. Morte. Sobrevivência.
Abstract: The study in hand focuses on the action of the Church, by way of Salesian missionaries, together with the
Bororo people at the Meruri mission, situated in the Brazilian Centro-Oeste. This approach centralizes its attention on
the struggle of the Bororo Indians for their survival, whether in their contact with the first colonizers, or in their contact
with missionaries. Between 1940 and 1960, for reasons little sought out by scholars up to now, the Bororo residents
in Meruri decided to die. Today, going against this decision, the Bororo in Meruri are growing demographically.
Considering these facts, two questions spontaneously present themselves: 1a. What made the Bororo opt for death?
2a. What motivated this indigenous nation, already self-determined, to recuperate enthusiasm for life? Beginning with
a brief historical reconstruction of the missionary experience in Meruri – Mato Grosso State, in the Centro-Oeste region
of Brazil, the study opens out to include the option of this Brazilian ethnic group.
Key-words: Bororo ethnic group. Territoriality. Death. Survival.
Résumé: Ce travail montre l’action de l’Église, par les missionnaires salésiens, auprès du peuple Bororo dans la
mission de Meruri, située dans le Centro-Oeste brésilien. Cet abordage tire l’attention de la lutte des indiens Bororo
pour leur survie, soit par le contact avec les premiers colonisateurs, soit par le contact avec les missionnaires. Entre
1940 et 1960, pour des raisons peu exploitées par les chercheurs jusqu’à présent, les Bororo résidents à Meruri
décident mourir. Actuellement, contrariant une telle décision, les Bororo de Meruri ont une croissance démographique.
Face à ces faits, deux questions se posent spontanément: 1ère) Qu’est ce qui a mené le peuple Bororo à opter pour la
mort? 2ème) Qu’est ce qui a motivé cette nation indigène, déjà autodéterminée, à récupérer l’enthousiasme pour la vie?
A partir d’une reconstruction historique rapide de l’expérience missionnaire à Meruri - État du Mato Grosso, région
Centro-Oeste du Brésil, l’étude dimensionnera l’option de cette ethnie brésilienne.
Mots-clés: Ethnie bororo. Territorialité. Mort. Survie
Resumen: El presente trabajo enfoca la acción de la Iglesia, por medio de los misioneros salesianos, junto al pueblo
Bororo en la misión de Meruri, situada en el Centro-Oeste brasileño. Este enfoque centraliza su atención en la lucha de
los indios Bororo por su supervivencia, sea en contacto con los primeros colonizadores o con los misioneros. Entre
1940 y 1960, por razones poco exploradas hasta el momento por estudiosos, los Bororo residentes en Meruri deciden
morir. Hoy, contrariando tal decisión, los Bororo de Meruri están en crecimiento demográfico. Ante esos hechos, dos
cuestiones surgen espontáneamente: 1ª) ¿Qué llevó al pueblo Bororo optar por la muerte? 2ª) ¿Qué motivó esta nación
indígena, ya autodeterminada, a recuperar el entusiasmo por la vida? A partir de una breve reconstrucción histórica
de la experiencia misionera en Meruri - Estado de Mato Grosso, región Centro-Oeste de Brasil, el estudio dimensionará
la opción de esa etnia brasileña.
Palabras clave : Etnia bororo. Territorialidad. Muerte. Supervivencia.

Introdução destaca também alguns fatos que levaram


os Bororo a se decidirem pela morte; e o que
A pesquisa aborda o ambiente e os pro- os motivou a optar pela vida, avaliando o
tagonistas que interagem no texto, especial- papel da Igreja Católica junto aos Bororo
mente os Bororo e os missionários salesianos, em Meruri.
bem como os aspectos da ação missionária Visto que o presente trabalho quer ser
para a sobrevivência dos Bororo. O estudo o relato da experiência missionária salesiana

* Doutor em Scientiis Educationis (Pedagogia) - Pontificia Studiorum Universitas Salesiana, UPS, Itália; Mestre em
Teologia - Weston Jesuit School of Theology, WJST, Estados Unidos; e atualmente exerce a função de Diretor
Administrativo da Faculdade Salesiana de Vitória - ES. E-mail: ngil@salesiano.com.br

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entre os Bororo de Meruri, na medida do das reservas indígenas. De fato, a descoberta


possível, apoio-me em escritos e depoimentos de ouro garantia-lhes como recompensa
orais que testemunham o ponto de vista dos uma fatia do poder político na Colônia. Além
Bororo e dos missionários1 que viveram ou dos portugueses, alguns colonizadores
ainda vivem em Meruri. espanhois também transitaram pelo territó-
rio Bororo, motivados pela notícia do ouro.
1 Os protagonistas da ação missionária Assim que os colonizadores portugueses
em Meruri descobriram ouro aluvional na Forquilha,
mais tarde arraial de Cuiabá, eles intensifi-
Toda ação supõe ao menos um agente. caram a caça sistemática aos índios. Foram
De um modo geral, a história de contato com muitos os combates. Algumas mulheres
os Bororo envolveu vários agentes e interesses Bororo, juntamente com suas crianças, fo-
diversificados na fase que precedeu o estabe- ram levadas como escravas para Cuiabá. Os
lecimento deste povo em Meruri. Os agentes Bororo, após inúmeras perdas, afastaram-se
envolvidos são pessoas concretas. Elas pode- da região das minas de ouro.
riam ser definidas como seres que experien- O terceiro grupo que o governo convo-
ciaram a vida dentro de um grupo humano cou para amansar os Bororo foram os milita-
específico, situadas num espaço físico e num res que usaram como estratégia para agru-
período determinados. Ao mesmo tempo, par os índios numa Colônia, o sequestro das
essas pessoas se expressaram através de uma crianças Bororo, cujas mães já viviam como
determinada cultura, movidas por interesses escravas em Cuiabá. Enquanto as crianças
particulares. Seria exaustivo definir e anali- permaneciam no cativeiro, suas mães deve-
sar detalhadamente cada grupo envolvido riam providenciar o seu resgate, que consis-
na história de contato com os Bororo. Contu- tia em convencer algum chefe indígena a
do, para a compreensão da ação missionária aderir ao projeto do governo com toda sua
de Meruri, faz-se necessário ao menos um aldeia. As mulheres, chefiadas pela Bororo
breve histórico sobre seus antecedentes. Ana Rosa, voltaram a Cuiabá com um grupo
O próprio governo vigente no Brasil2 de índios e conseguiram assim libertar seus
(NOVAES, 1993, p. 243) foi quem, por pri- filhos. Os militares, com este primeiro grupo
meiro, interferiu na vida dos Bororo, tornan- Bororo, fundaram em 1886 a Colônia Teresa
do público seu projeto de construir uma Cristina3 (AZZI, 2000, p. 25) na margem di-
sociedade burguesa (AZZI, 2000, p. 25). Este reita do rio São Lourenço, a 400 km de
novo modelo de sociedade excluía social- Cuiabá (BORDIGNON, 2001, p. 34-35). Os
mente as etnias indígenas e africanas. Alega- militares, no cumprimento das ordens gover-
va-se contra os negros sua incapacidade in- namentais, visavam como interesse imedia-
telectual para assumir o trabalho remunera- to sua promoção nos quadros do exército.
do. Alegava-se contra os povos indígenas o Em 1895, antes do falimento total da
atraso de sua cultura e o uso improdutivo operação militar na Colônia Teresa Cristina,
de enormes extensões de terra, sem os devi- o governo pediu a ajuda de um último grupo
dos títulos de propriedade. Por trás desta po- para tentar a pacificação dos Bororo: a Igreja
lítica governista escondia-se a intenção de Católica, através dos salesianos. De um modo
apropriar-se das terras dos Bororo e de fazê- geral, a Santa Sé, neste mesmo período, tinha
los trabalhadores produtivos na agricultura assumido a política da conversão dos povos
nacional. A implementação da integração em terras recém-descobertas. Fiéis às diretri-
acelerada dos índios na sociedade civiliza- zes da Igreja, os missionários salesianos fize-
da previa não só a ocupação de suas terras, ram a fusão da política da Santa Sé com a
mas também a supressão de sua cultura. política do governo brasileiro, adotando para
O segundo grupo que interferiu na vida os povos indígenas o lema: “conversão e civili-
Bororo foram os colonizadores portugueses, zação”. Os missionários, mesmo querendo,
ou bandeirantes que, embrenhando-se nas não poderiam agir diferentemente, pois a
matas, tentaram implementar a política go- desobediência civil e eclesiástica não teriam a
vernista. Por trás desta fidelidade ao governo, mínima chance de sobreviver nos quadros
o real interesse dos bandeirantes era o ouro missionários da época (AZZI, 2000, p. 26-27) 4.

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Existem informações de que anteriormente, lher é a chefe da casa e transmite o nome à


a convite do governo espanhol no século XVII, sua descendência. Os filhos e filhas, mesmo
também os “jesuítas entraram em contato com depois de casados, demonstram maior afini-
os Bororo na região do rio Paraguai” dade afetiva com suas mães do que com os
(AGUILERA, 2001, p. 44). De um modo ge- próprios cônjuges. Outra figura de grande
ral, por trás da dedicação dos missionários respeito na cultura Bororo é o ancião, que é
jesuítas e salesianos também havia um inte- membro permanente do “conselho executivo
resse: a conversão dos Bororo ao catolicismo. da aldeia” (BORDIGNON, 2001, p. 48-49).
De um modo específico, a assim cha- As casas dos índios são construídas em cír-
mada pacificação dos Bororos se efetivou culo, conservando igual espaço entre uma e
realmente com a ação dos missionários sale- outra. Além disso, todas as casas são equidis-
sianos. Historicamente, esta ação iniciou-se tantes do Baito. Uma linha invisível que vai
de forma mais independente e sistemática do ponto leste ao oeste, ou vice-versa, sepa-
nos Tachos e se consolidou de vez em Meruri. ra a aldeia em duas metades. Na metade do
Assim, para uma melhor compreensão da norte os moradores são chamados “Ecerae”,
ação da Igreja junto ao povo Bororo, torna-se enquanto os moradores do sul são denomi-
necessária alguma informação mais detalha- nados “Tugarege”. De forma idêntica, tan-
da sobre os próprios índios Bororo, os missio- to os “Ecerae” quanto os “Tugarege” estão
nários salesianos e Meruri, que são respecti- divididos em quatro clãs; e cada clã se sub-
vamente os protagonistas e o palco da pre- divide em vários subclãs. Os moradores do
sente reflexão. norte estão ligados aos do sul por vínculos
de parentesco e de solidariedade. Isto fica
1.1 Os índios Bororo muito claro no casamento e nos funerais. Por
exemplo, os moradores do norte só podem
Originalmente, os índios considerados se casar com moradores do sul; e os funerais
neste trabalho atribuíram a si mesmos e à sua de quem mora numa metade são prepara-
cultura o nome “Bóe”. Mais tarde, os primei- dos pelos habitantes da outra metade.
ros exploradores, antropólogos e missionários A vida ritual na cultura Bororo é in-
deram-lhes o epônimo de Bororo, devido prin- tensa e diuturna. Os ritos propiciam um
cipalmente à repetição frequente desta pala- equilíbrio no relacionamento ecológico e no
vra em seus cantos (ENAWURÉU, 1987, p. relacionamento humano, tanto com os vivos
1). Na verdade, o termo “Bororo” significa o quanto com os mortos. Todos os que partici-
pátio comunitário das cerimônias e danças, pam de um ritual são, ao mesmo tempo,
“interditado às mulheres e crianças” “performers” e “respondents” (NOVAES,
(ALBISETTI; VENTURELLI, 1962, p. 516), 1993, p. 233-234), pois nele “cada um tem
que se localiza diante do Baito. O Baito, por seu lugar marcado, suas obrigações nas ce-
sua vez, é uma casa grande central ou uma rimônias, seus adornos, seus nomes e seus
espécie de centro social, também vetado às cantos” (BORDIGNON, 2001, p. 48). Ocu-
mulheres, onde os homens solteiros moram e pam um lugar de destaque na vida ritual o
os homens casados transcorrem a maior par- xamã dos espíritos e o xamã das almas. O
te do dia. Atualmente, apesar da genuinidade xamã dos espíritos é uma espécie de vidente
clássica da palavra “Bóe” para denominar que orienta, cura, abençoa as pessoas e afu-
este povo, até os próprios índios se autodeno- genta o mal. O xamã das almas, embora seja
minam simplesmente Bororo (ALBISETTI; mais discreto que o xamã dos espíritos, é o
VENTURELLI, 1962, p. 516; ENAWURÉU, mais querido, evoca os mortos e preside al-
1987, p. 1). Então, para evitar ambiguidades, gumas cerimônias. Apesar da matrilineari-
adotaremos o epônimo Bororo para nos refe- dade, as mulheres são excluídas da maioria
rirmos aos índios; e adotaremos a palavra dos ritos Bororo e nos ritos em que são admi-
“não índios” para nos referirmos aos demais tidas, se limitam a cantar. As cerimônias
habitantes, que já estavam integrados na so- Bororo mais conhecidas são o funeral, a im-
ciedade brasileira oficial. posição do nome às crianças, a perfuração
Diferentemente da sociedade civiliza- do lábio inferior e das orelhas, a preparação
da, a sociedade Bororo é matrilinear. A mu- para a caça e a pesca, a festa do matador e

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do couro da onça, a festa do milho e do ga- tabeleciam, por curtos períodos, caçando,
vião real. Dentre todas, o funeral é a cerimô- pescando ou extraindo alguma madeira. No
nia mais solene, a mais importante e a mais levantamento da situação fundiária Bororo,
longa. Pode durar até três meses. É um im- em 2001, os sobreviventes deste povo esta-
portante momento de expressão artística, vam confinados em uma área de 140.245
de socialização e de integração cultural dos hectares, que é 300 vezes menor que aquela
mais jovens, de perpetuação da memória dos que possuiam antes da chegada dos não ín-
antepassados e, paradoxalmente, de reafir- dios (BORDIGNON, 2001, p. 45-46). Ironi-
mação da vida. camente, o artigo 231 § 4o da Constituição
A maioria dos ritos é celebrada no con- Brasileira de 1988 continua afirmando que
junto formado pela casa grande, o Baito, e “as terras habitadas pelos silvícolas são
seu respectivo pátio, Bororo, que são “o inalienáveis” e que lhes cabe, por direito, “a
centro da vida cultural dos índios” sua posse permanente”.
(ENAWURÉU, 1987, p. 41; AGUILERA,
2001, p. 52). 1.2 Os missionários salesianos
Os Bororo têm uma sensibilidade ar-
tística muito grande. São músicos natos e Os salesianos chegaram ao Brasil em
cultivam uma variedade muito grande de 1883 por solicitação do bispo do Rio de Janei-
cantos e de ritmos. Seus dons artísticos se ro, Dom Pedro Maria de Lacerda, após apro-
revelam também através da beleza, da vação pessoal do imperador Dom Pedro II.
pluralidade de materiais utilizados e da har- Não vieram para cuidar de índios, mas sim
monia de cores de seu artesanato. Seus en- para dedicar-se à educação dos filhos dos
feites adornam não só as pessoas, mas tam- não índios. Com efeito, suas quatro primei-
bém todos os objetos de uso, e estão presen- ras fundações em solo brasileiro foram gran-
tes com maior vistosidade em todos os mo- des escolas, em regime de internato
mentos importantes da vida tribal (CASTILHO, 2000, p. 28)6 . Um fato ocorri-
(BORDIGNON, 2001, p. 54). do em Roma, em 1893, foi determinante
Embora os Bororo sejam um dos po- para a ida dos salesianos como missionários
vos mais estudados por antropólogos de di- dos Bororo. Trata-se da sagração do salesiano
ferentes partes do mundo (HARTMANN, Luís Lasagna como “bispo dos índios do Bra-
1976, p. 180-181)5 , sua origem ainda conti- sil e superior das missões salesianas do Uru-
nua desconhecida. Uma das hipóteses mais guai, Paraguai e Brasil” (CASTILHO, 2000,
citadas sugere que os Bororo tenham vindo p. 28). Como superior, Dom Luís Lasagna
da Ásia (ENOGUREU, 2002, p. 14) para o aceitou o pedido do presidente do Estado de
norte brasileiro; e foram descendo “pelos Mato Grosso, Manoel José Murtinho, e assu-
vales dos rios Negro, Amazonas, Madeira, miu, em 19 de abril de 1895, a Colônia Bororo
Mamoré e Guaporé” (ALBISETTI; Teresa Cristina (CASTILHO, 2000, p. 35 e
VENTURELLI, 1962, p. 281), até se fixarem 43). Em 1898, o governo de Mato Grosso dis-
numa ampla extensão territorial bem no cen- pensou “os serviços dos salesianos, porque
tro do país. Historiadores estimam que, an- os índios haviam se retirado para a floresta”
tes da interferência dos não índios, os Bororo (CASTILHO, 2000, p. 48). Em 18 de janeiro
ocupavam uma área ao redor de 40 milhões de 1902, os salesianos fundaram uma mis-
de hectares (BORDIGNON, 2001, p. 45). são autônoma nos Tachos, a 460 km de
Suas terras do lado oeste tocavam a divisa Cuiabá, para reiniciar a atividade missioná-
com a Bolívia; do lado leste, alcançavam o ria com os Bororo. Em 1923, a Missão dos
Estado de Goiás; ao norte, começavam nas Tachos foi transferida para Meruri.
cabeceiras dos rios Cuiabá e Rio das Mortes; Ao traçar o perfil dos missionários sale-
e se estendiam para o sul até às cabeceiras sianos na ótica dos não índios, tentarei real-
dos rios Coxim e Negro (ENAWURÉU, 1987, çar sinteticamente apenas alguns aspectos
p. 42). Devido à fartura de espaço, a mobili- que me parecem relevantes no contato com
dade dos Bororo era muito grande. Tal os Bororo. Dom Bosco fundou os salesianos
mobilidade ajudava a natureza a se recom- sacerdotes e irmãos em 1859; e, em 1872, fun-
por rapidamente nos lugares onde eles se es- dou as irmãs Filhas de Maria Auxiliadora.

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A finalidade de ambas as Congregações era manga, iam com ele procurar resina, lá pro
a educação de meninos e meninas pobres, lado do Boqueirão. Gostavam de ir passear
mais expostos aos perigos da sociedade, vi- com ele, porque ele sempre os mantinha ale-
gres. (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 24, 26 e
sando seu crescimento como honestos cida-
27, p. 525-526).
dãos e bons cristãos. De fato, os salesianos
sempre foram reconhecidos vocacionalmen- Quando o Mestre João Rocco faleceu,
te dentro da Igreja como evangelizadores de as irmãs insistiram para Coqueiro cantar
jovens (SOCIEDADE DE SÃO FRANCISCO para ele como nos funerais Bororo. Coqueiro
DE SALES, 1985, Art. 6). O método educa- enche-se de medo e até duvida da sincerida-
tivo usado pelos salesianos era contrário a de do convite pois, segundo os próprios
toda ação repressiva e se baseava na razão, Bororo, há muito tempo os missionários ha-
na religião e na bondade (CERIA, 1932, p. viam proibido os índios de falar a sua língua
919)7 . A experiência educativa e evangeliza- e de celebrar os funerais no ritual Bororo
dora dos primeiros salesianos era com jovens, (CAMARGO, 1987, XXVII, par. 134, p. 554-
prevalentemente em regime de internato. 555). Visto que a maioria dos índios se unem
Entre as características dos salesianos, dis- ao pedido das irmãs e insistem para ele can-
tinguiam-se o zelo apostólico, a fidelidade à tar, o amor ao Mestre venceu o medo e Co-
Igreja e o respeito às autoridades constituí- queiro cantou. O Mestre João Rocco foi o
das. Dom Bosco adotou para suas congrega- primeiro missionário a receber as honras do
ções o lema: da mihi animas, coetera tolle, que Funeral Bororo (CAMARGO, 1987, XXVII,
significa “dá-me almas, fica com o resto”. par. 119-132, p. 550-554).
Este lema traduzia muito bem o interesse Para Jurandir Irureu, a “aldeia Bororo
prioritário da Igreja de salvar almas e iria precisaria dos salesianos. Tem gente contra,
nortear toda a ação salesiana, também nas mas a maior parte é a favor. Nunca se ouve
falar que padre ensina coisa ruim, coisa à toa.
missões indígenas.
Mas, qual era o perfil dos missionários Padre está esforçando para aprender o ritual
nosso né. Isso é bom!” (BORDIGNON, 2001,
salesianos na ótica dos Bororo? Esta é uma
p. 104). Emília Aroewabo-Baadojebu afirma:
questão difícil de ser abordada. Apesar dis-
so, é uma questão relevante, que pode ser Se eu sou Bororo sou Bororo. [...] O Bororo de
Merúri tem medo de se cortar, de tradição.
respondida, ao menos de modo fragmentá- Ali não está acabado porque os padres está
rio e suscinto, pelos próprios índios. Assim, favorecendo, porque se fosse por eles já teria
apoiando-nos em depoimentos de publi- acabado. Antenor Kacereu diz que “padres,
cações recentes (CAMARGO, 1987; mestres (irmãos religiosos), irmãs que atende
BORDIGNON, 2001, p. 86-161)8 , verifique- esses nossos irmãos de Meruri, ficam fora
mos como os Bororo a partir de sua cosmo- de nossa lei [...]. Depois que o Pe. Falco reco-
visão cultural descrevem os missionários. lheu nós, dessa aldeia para lá, aí que foi
O ancião Bororo Frederico Coqueiro começando a amansar os padres (1965).
Parece que Deus tocou na cabeça, na consci-
considera que o missionário mais estimado
ência dos padres, das irmãs, dos mestres,
pelos Bororo era o Irmão João Rocco então viu que a lei Bororo tem valor.
(CAMARGO, 1987, XXVII, par. 1-5, p. 521- (BORDIGNON, 2001, p. 123 e 126).
522; par. 33, p. 527), que eles carinhosamente
Raimundo Purúbi-Kiedu relembra que
chamam de Mestre. O Mestre Rocco os cati-
“antigamente padre não deixava falar
vara com sua permanente alegria e pela sua
Bororo. Fala que é pecado cantar, dançar
presença amiga e constante entre os índios:
[...]. Agora não, canta na igreja, canta no
Esse Mestre é bom mesmo. Nenhum Bororo cemitério. Não tem nada difícil, nada proi-
nem branco sabe como este Mestre sabe. Só
bido” (BORDIGNON, 2001, p. 133).
esse que sabe trabalhar com os Bororo. Ele
anima os Bororo, ele anima também os ru-
Benjamim Tugure Etúo-Iwagudu define o
ins. É muito bom mesmo. [...] Quando traba- missionário como alguém que “animava,
lhava com os Bororo, o suor lhe corria por incentivava as danças, os assobios”
todo o corpo. Ele ensinava os Bororo a suar (BORDIGNON, 2001, p. 146). Lourenço
como ele. Os Bororo o procuravam frequen- Rondon, atual cacique de Meruri, reconhe-
temente para trabalharem com ele. Costuma- ce que: “os primeiros missionários [...] ti-
vam ir pescar com ele. Iam com ele pegar nham aquele jeito de exigir e o índio era mais

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ingênuo e praticava com escrúpulo o que rias deste ancião Bororo, Meruri emerge atra-
diziam. Mas agora os missionários são dife- vés dos fatos que mais marcaram sua vida,
rentes. Acompanha, mas não briga para no período de 1946 a 1976.
impor as coisas que quer. Tem mais liberda- Frederico Coqueiro nunca estivera an-
de, de tudo, de religião. Uma coisa boa do tes de 1946 em Meruri. Sabia da existência
missionário hoje é que dá valor às nossas dos missionários apenas através das lem-
coisas” (BORDIGNON, 2001, p. 150). De um branças de seus pais, que os mencionavam
modo geral, estes depoimentos revelam a quando se referiam à antiga Colônia Militar
percepção dos Bororo a respeito dos missio- Teresa Cristina. Na realidade, Coqueiro só
nários, em dois períodos distintos. No pri- decide conhecer Meruri aos 31 anos de ida-
meiro período, eles apontam os limites dos de, logo depois da morte de seus pais
missionários que são vistos como autoritários (CAMARGO, 1987, p. 29). O caminho para
diante de seus costumes e repressores de sua Meruri é longo, mas a ansiedade de Coqueiro
cultura. No período posterior, eles sublinham para chegar lá é ainda maior:
a conversão dos missionários à sua cultura. Eu disse: Sim! eu quero ver Meruri! O tempo
Os salesianos respeitam seus costumes, in- estava bonito para o lado de Meruri. Oh! To-
centivam os Bororo a preservar sua identi- das as manhãs eu estava com desejo de partir
dade e se esforçam para se integrarem na para Meruri. Oh! Depois chegou um branco
procedente de Meruri, com carro de boi. Olhei
cultura Bororo.
e disse: — Oh! se ele aceitasse! Se eu pudesse
ir com ele para ver Meruri! [...] Eu disse: — Eu
1.3 Meruri desejo ir com vocês, será que vocês não vão
aceitar? Ele disse: — Sim! Nós queremos. Vai
A mais original descrição escrita de procurar a sua bagagem. Fique pronto. [...]
Meruri encontra-se nas memórias do sábio Então eu peguei alegre minha bagagem. Por
Bororo, Frederico Coqueiro9 . Estas memórias isso sorri. Fiquei muito contente porque fi-
nalmente poderia partir para Meruri. Aí par-
foram relatadas ao missionário Gonçalo
ti. Viajamos de carro de boi. Fomos indo com
Alberto Camargo Ochoa, em tom coloquial, calma. Eu disse: — Oh! que coisa! os bois não
através da língua e das características genuí- andam! se andassem rápido chegaríamos
nas da cultura Bororo (CAMARGO, 1987, logo a Meruri. (CAMARGO, 1987, VII, par. 2-
p. 19) 10 . A antropóloga Renate Brigitte 3, 6, 9-11, p. 320).
Viertler considera essas memórias um “in- Sem perder o humor e a alegria,
sólito e precioso” documento onde, surpre- Coqueiro vai se deliciando com os sons e a
endentemente, “Coqueiro deixa transparecer exuberância da fauna e da flora, mas, su-
os seus sentimentos, o que confere um colo- persticioso como é, também se assusta dian-
rido muito especial à sua narrativa – a ale- te do canto agourento de aves que evocam
gria, ao receber um bolo de arroz ou um pacu os temidos índios Xavante (CAMARGO,
moqueado; a raiva em conviver com os ini- 1987, VII, p. 32411 ; par. 15-19, p. 324-325).
migos Xavante em seu território, pelo que se A sintonia do Bororo com a natureza apare-
pinta com carvão nos olhos; o medo de can- ce transparente nas memórias de Coqueiro.
tar na frente dos missionários após a morte Ele, repetidas vezes, dá a entender que existe
de um mestre salesiano muito amado [...]” até certa cumplicidade de algumas aves com
(CAMARGO, 1987, p. 17). Além disso, os Bororo, pois elas estão sempre atentas
Viertler avalia que a estratégia empregada para alertá-los sobre algum perigo iminente:
pelo P. Ochoa para organizar estas memó- “Oh! os macauãs estavam gritando muito:
rias junto com o Bororo Frederico Coqueiro cauã, cauã, cauã, cauã! Os jivijivi gritavam:
“supera em qualidade a já consagrada técni- jivi jivi jivi jivi jivi jivi jivi! Outras (aves) gri-
ca de pesquisa de campo em Ciências Sociais tavam: churugu churugu churugu, churugu
designada como ‘história de vida’ ” churugu churugu! Por isso eu fiquei muito
(CAMARGO, 1987, p. 17). Coqueiro selecio- assustado” (CAMARGO, 1987, VII, par. 36,
na os fatos de acordo como eles afloram em p. 326). Observador interessado em novos
sua memória e adota um estilo linguístico rico conhecimentos, Coqueiro vai interrogando
em sonoridade, em cores e em metáforas seus companheiros de viagem. O Bororo
próprias de sua cultura. Assim, nas memó- Egídio Iroe Kudu, que se casara com sua

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 241

irmã Cecília Joware Etaga e mora em Meruri cansou para vir a mim. Eu não tenho comi-
(CAMARGO, 1987, VII, par. 6, p. 331), vai da, você vai morrer de fome comigo. Tam-
lhe apresentando os lugares da região que bém não tenho coisas, mas pode ficar mes-
podem ser vistos do caminho que interliga mo à-toa aqui comigo. Disse: — Espere, fi-
que aí um pouco. Eu vou procurar alguma
Sangradouro a Meruri: “Ei, meu cunhado,
coisa. Foi embora e eu fiquei aí. Depois che-
olhe Meruri. Você estava desejando vê-lo. gou. Chegou com rapadura, um pouquinho
Sim! Era mesmo como eu imaginava. Sim! de farinha, um litrinho de arroz, e um
Eu fiquei alegre! Meruri estava para cá. Foi pouquinho de carne. E disse: — Filho, eis
pelas três horas da tarde que eu vi Meruri” sua comidinha, cozinhe para você e coma
(CAMARGO, 1987, VII, par. 48-50, 58-60, este pouquinho. [...] Ele disse: — Sim! vai
p. 328-329). comer sua comidinha e descansar. Você está
Chegando em Meruri, em 1946, muito cansado. (CAMARGO, 1987, VIII, par.
Coqueiro encontra poucos Bororo. Alguns fo- 1-5, p. 330-331).
ram morar à beira do rio das Garças, outros Coqueiro se lembra de muitos outros
foram para a Mata Azul e outros ainda às fatos em Meruri. Todos estes fatos são narra-
margens do rio Barreiro, perto dos Tachos, dos deixando transparecer sempre sua ale-
como a família do respeitado Bororo Tiago gria espontânea e sua natural religiosidade.
Marques, que foi o principal colaborador dos Ele descreve o seu cotidiano dividido entre
autores da Enciclopédia Bororo 12 (ALBISETTI; os trabalhos ao ar livre, o escutar do sino para
VENTURELLI, 1962, p. 0.14-0.17). buscar a comida ou ir para a capela. Ele va-
Quinze anos após sua fundação, loriza e elogia sempre o alimento que recebe,
Meruri já não ostenta a vitalidade de seus principalmente a canjica. Trabalha com dedi-
primórdios. Além do número reduzido dos cação. E muito cedo identifica o Deus dos
Bororo, já não há mais abundância de ali- missionários com o seu Deus Pemo. Esta
mentos e o desânimo vai tomando conta de identificação se revela, por exemplo, nas
todos. O testemunho do Bororo que dá a palavras do Bororo João Garimpeiro: “não
Coqueiro as boas-vindas é um retrato desse se esqueçam do sinal da cruz. São as mesmas
quadro: palavras, os mesmos pensamentos, as mes-
Um homem veio ao meu encontro aqui na mas crenças que os nossos pais falaram para
descida. Ele disse: — Você chegou? Eu dis- nós. Assim ele nos dizia” (CAMARGO, 1987,
se: — Eu cheguei. Ele me disse: — Não tem XII, par. 70, p. 469).
pátio, não tem lugar de espera, à-toa você
veio. Você não veio antes, você não chegou
1.4 Postura crítica do Bororo em Meruri
antes. Por isso, os Bororo se acabaram. Por
isso não tem urucum, resina, penas de arara
vermelha, penas de arara amarela, nenhum O temperamento alegre, calmo e res-
diadema de penas de biguá e nenhum peitoso de Coqueiro não o impede de tomar
diadema de pêlos de macaco. Você não vai uma postura crítica diante de alguns posicio-
ver nada disso. Acabou, não tem mais. Tudo namentos dos missionários. Isto se manifes-
ficou limpo para o céu e para a terra. ta, por exemplo, nos quatro fatos que expo-
(CAMARGO, 1987, VII, par. 62-63, p. 329).
remos brevemente aqui.
Em seguida, Coqueiro se encontra com O primeiro fato aconteceu quando um
o Pe. César Albisetti12 (CAMARGO, 1987, branco acusa os Bororo de terem matado, a
VIII, nota 15, p. 329), que é o diretor da mis- flechadas, uma de suas vacas. Visto que as fle-
são. Este também não lhe esconde o desâni- chas pertenciam a Coqueiro, o padre diretor,
mo e confirma as privações pelas quais estão sem nenhum diálogo, acusa Coqueiro por uma
passando. Contudo, a bondade do P. César, coisa que ele não fez. Devido a esta acusação,
que se revela inicialmente na partilha do ele decide mudar-se de Meruri. Eis, sucinta-
pouco alimento que tem, conquista Coqueiro mente, como Coqueiro descreve este momento:
desde o primeiro encontro:
Ele disse: — Ei, de quem são estas flechas?
Dirigi-me logo a ele dizendo: — Eu cheguei. Qual doido é o dono destas flechas? Nada! O
Ele disse: — Hum! Eu disse: — Eu vim visi- povo só falou: — Ei!... Ei!... Wo!... Aí eu fui lá
tar você. Por isso eu cansei. Para ver você. Aí onde ele estava e disse: — Eis, padre, minhas
ele disse: — Hum! Filho, foi à-toa que você flechas; essas flechas são minhas. [...] Ele disse:

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242 Nelson Gil Tolentino

— Ah! eu vou dar um jeito com você. Você é O quarto fato se refere também aos
muito ruim, você não tem cabeça. [...] Oh! Aí Xavante, quando eles vieram acampar em
a minha tristeza chegou ao limite. Por isso Meruri. Coqueiro assim descreve a chegada
resolvi ir embora. Eu avisei-lhes. Fiz discur- deles:
so para eles dizendo: — Sim! Eu comunico
para vocês que vou embora! (CAMARGO, Os Xavante estão chegando! É para nós es-
1987, XIV, par. 105-106, p. 405). tarmos preparados, que eles vão chegar aqui
hoje. Ficamos com medo, mas falaram para
Na realidade, o seu casamento com a não ficarmos com medo, que eles estavam
Bororo Margarida, radicada em Meruri, fez chegando era para se entregar aos Bororo. E
com que ele desistisse de ir-se embora que, por isso, não era para ficar com medo.
(CAMARGO, 1987, p. 30). Mas, apesar disso, não era para deixar de
O segundo fato se refere à proibição dos ter receio deles, porque nem todos eram bons.
missionários para a realização do Funeral Alguns eram bravos. Manoel Davi chegou
Bororo em Meruri. Coqueiro, porém, não re- com a notícia. Então os Bororo ficaram fa-
nuncia a este ritual que é o mais importante lando muito, se iriam aceitá-los ou não, e
onde colocá-los. Aí falaram que não iriam
na vida e na religião Bororo. Correndo o ris-
colocá-los aqui na aldeia. (CAMARGO,
co de ser excluído de Meruri por tentar con-
1987, XXV, par. 1-2, p. 512).
servar esta tradição cultural, ele vai ser o
celebrante de funerais na aldeia do Bororo Os Xavante acabaram sendo colocados
Tiago Marques, à beira do córrego Fundo ali perto, do outro lado do rio, ao pé do Morro
(CAMARGO, 1987, X, par. 1-120, p. 346-366). de Meruri. Um dia a roça dos Xavante aci-
O terceiro fato aconteceu quando o P. dentalmente pegou fogo. Os Xavante encon-
César Albisetti convidou um grupo Bororo de traram Coqueiro na beira da estrada, acha-
Meruri para ir até Santa Terezinha, à beira ram que ele fosse o culpado, rodearam-no e
do rio das Mortes, para ajudar os salesianos quase o mataram. Coqueiro chega enraive-
construírem ali um centro missionário para cido em Meruri e vai tirar satisfação com o
os Xavante (CAMARGO, 1987, p. 31). P. Bruno Mariano, que era o diretor nesta
Coqueiro fez parte deste grupo. Santa época: “Eu disse: — Padre, você fez feio para
Terezinha estava muito longe de Meruri. O nós. O senhor mandou Xavante nos matar
grupo, viajando de caminhão, gastou uma na estrada. [...] Aí eu fui para casa. Eu esta-
noite inteira para ir de Meruri a Nova va zangado, querendo matar os Xavante. Eu
Xavantina. Empregou mais um dia e uma pus resina no meu rosto, passei carvão nos
noite, viajando de barco a motor pelo rio das meus olhos e fiquei aí zangado”
Mortes, para ir de Nova Xavantina a Santa (CAMARGO, 1987, XXV, par 11, p. 514).
Terezinha14 . Um dia os Bororo decidiram ir Este incidente e a reação de Coqueiro fizeram
tomar cachaça na venda de um branco, ali com que o P. Bruno trasladasse os Xavante
perto. Voltaram para casa com algumas gar- das terras de Meruri para a região de São
rafas e deram para um dos Xavante beber. O Marcos. Eis como, desta vez, o missionário
Xavante embriagou-se. Diante deste fato novo encaminhou a questão: “Então o padre cha-
para a tribo, os demais Xavante colocaram o mou todos os homens sabidos (as lideranças
embriagado no centro da aldeia para matá- Bororo) e disse para eles que era porque aí
lo. Com muito custo, os missionários conse- eles queriam me matar, que ele queria
guiram evitar que matassem o Xavante em- colocá-los longe. [...] Então o P. Bruno per-
briagado. Diante disso, desconsiderando todo guntou para os Bororo onde ele poderia
o trabalho que os Bororo estavam fazendo ali, colocá-los. Então os Bororo disseram que fi-
o missionário que os dirigia naquela emprei- cassem lá (em São Marcos), que assim eles
tada os manda de volta para Meruri. Os não viriam aqui” (CAMARGO, 1987, XXV,
Bororo ficam revoltados com a atitude pri- par. 14-15, p. 515-516). Na resolução desta
mária do missionário. Como protesto contra questão é importante ressaltar três aspectos
a raiva e o radicalismo demonstrados pelo positivos. O primeiro, é que o missionário se
missionário, Coqueiro organiza com seus coloca abertamente a favor dos Bororo em
companheiros uma greve de fome e de silên- suas reivindicações. O segundo aspecto é que
cio no longo caminho de volta para Meruri o missionário não toma mais a decisão sozi-
(CAMARGO, 1987, par. 1-11, p. 481-484). nho; ele não somente consulta a opinião dos

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 243

Bororo, mas também a leva em conta. O ter- ajuda financeira para o trabalho missionário.
ceiro aspecto é o interesse e a união dos A maioria destas cartas oficiais, porém, era
Bororo para defender suas terras e a integri- para prestar contas do que estavam fazendo
dade física de seu povo. junto aos Bororo (MALAN, 1906).
As dimensões racional e afetiva do esti-
2 Alguns aspectos da ação missionária lo de evangelizar dos salesianos foram deter-
entre os Bororo minantes para que o primeiro encontro dos
Bororo com os missionários, na região dos
A atividade missionária dos salesianos Tachos, não terminasse numa tragédia
junto ao povo Bororo pode ser considerada (COLBACCHINI, 1981). Os missionários en-
sob diferentes pontos de vista. Minha consi- contravam-se fisicamente debilitados, pois
deração se refere a alguns aspectos que, a trabalharam exaustivamente na construção
meu ver, tiveram uma incidência mais deter- de choupanas para abrigar-se das intempé-
minante a favor da sobrevivência do povo ries do tempo e da floresta. Ao contrário dos
Bororo. Além disso, os fatos apresentados outros não índios, os missionários não tinham
aqui se referem ao primeiro período desta presentes vistosos para oferecer aos Bororo.
experiência missionária. Dentre os fatos, A lembrança dos massacres perpetuados re-
existe um que é fundamental e incontestá- centemente pelos Bororo afligia o coração dos
vel e dispensa comentários: – os salesianos, missionários. Os missionários temiam, com
depois que se encontraram pela primeira vez com razão, que este primeiro encontro terminasse
os Bororo, nunca mais os abandonaram. num massacre. De fato, os índios já tinham
No final do século XIX, as comunica- decidido matar estes brancos recém-chega-
ções orais ou escritas, entre os habitantes e dos (BORDIGNON, 2001). Tudo isso está
transeuntes das selvas com aqueles dos cen- muito claro no diário e nas cartas do P. João
tros urbanos, ainda eram raras e difíceis de Bálzola, que estava dirigindo a primeira ex-
serem efetuadas15 (DUROURE, 1977, p. 39). pedição dos missionários na missão dos
Apesar disso, três meses antes do primeiro Tachos15 (BALZOLA, 1937). Contrariando
contato com os Bororo, os salesianos já come- as expectativas mais pessimistas, o primeiro
çaram a divulgar seu futuro trabalho missio- encontro transcorreu de uma forma comple-
nário. Procuraram envolver toda a socieda- tamente inesperada. Balzola (1937, p. 110)
de brasileira nesta obra desafiadora, solici- assim o descreveu:
tando apoio material e espiritual de todos os Um dos nossos começou a gritar: Padre,
não índios. A carta que Dom Luís Lasagna Padre, ahí estão os índios! Corro para o lado
escreveu à nação em janeiro de 1895 é um de onde tinha vindo a voz e vejo cinco
testemunho desta prática. Eis o objetivo de robustíssimos selvagens, que vinham ao meu
Dom Lasagna: encontro vociferando: - Borôro bôa! (Somos
bons Borôros)! Não sou capaz de descrever
Implorar com a presente carta circular o pú- o que experimentei naquele instante. Apro-
blico concurso para uma empresa muito ximei-me delles, sorrindo; abracei-os terna-
ardua, e que é importantíssima, não só pelo mente um depois do outro e tratei-os com
seu caracter religioso, mas também pela sua todo o carinho. [...] Eu estive sempre ao lado
natureza summamente humanitaria; uma daquelles pobres filhos da floresta: falei-lhes
empreza, em fim, que certamente redundará do fim da nossa vinda; assegurei-lhes que,
em grande beneficio e honra de toda a nação ao nosso lado, não podiam temer ninguém.
brazileira. Refiro-me à conversão e civiliza-
ção dos pobres indígenas que, como filhos Na descrição que o P. Balzola fez des-
desherdados da familia brasileira [...] espe- te primeiro encontro com os Bororo
ram ha seculos uma mão benefica que che- transparece a importância do uso da razão
gue até às profundezas de suas miserias, e da demonstração de afeto no relaciona-
para levantal-os à dignidade de homens e mento humano. Por um lado, na brevidade
de christãos, e incorporal-os ao resto da na- desta frase “falei-lhes do fim da nossa vinda”
ção. (LASAGNA, 1895, p. 1) encontra-se sucintamente a dimensão racio-
Os missionários também se comunica- nal do sistema preventivo. De acordo com o
vam frequentemente com seus superiores e pensamento salesiano, o destinatário só se
com o governo brasileiro, solicitando-lhes compromete com uma causa quando ele

INTERAÇÕES, Campo Grande, v. 10, n. 2 p. 235-258, jul./dez. 2009.


244 Nelson Gil Tolentino

entende claramente a sua razão. Tudo indi- comentário às memórias de Coqueiro, Afon-
ca que os cinco Bororo entenderam que os so de Castro sublinha que “seu conceito e
missionários não vieram para apoderar-se vivência de Deus tem a concretude da lin-
deles e de suas terras, mas para defendê-los. guagem Bororo e a amplitude e imagem do
Por outro lado, de acordo com a descrição Deus de Jesus Cristo” (CAMARGO, 1987,
do P. Balzola, este primeiro encontro iniciou- p. 10). Pemo é um Deus que alegra a vida
se profundamente envolvido pela dimensão dos Bororo. Pemo está sempre presente no
afetiva. Primeiramente, o missionário tomou pensamento e na vida de Coqueiro. Pemo se
a iniciativa de aproximar-se dos Bororo, comunica com os Bororo através de inspira-
expressando alegria pela sua chegada. Em ções. Pemo ajuda o Bororo enraivecido a re-
seguida, o missionário abraçou os índios ter- cuperar a paz. Coqueiro atribui a uma ins-
namente, criando uma atmosfera de familia- piração divina sua decisão de partir para a
ridade. Finalmente, o missionário tratou os terra de Meruri, empreendendo tão cansati-
Bororo com muita bondade durante todo o va e arriscada viagem. Pemo lhe prometeu
tempo que eles permaneceram ali. E assim, que nesta nova terra ele se encontraria com
diante da razão dada pelo missionário para homens e mulheres, que o iriam orientar para
justificar sua presença na terra Bororo; e di- perseverar no bem e permanecer sempre
ante também da cordialidade que experien- unido a Pemo (CAMARGO, 1987, V, par. 1-
ciaram naquele encontro, os índios percebe- 2, p. 320). De um modo geral, os atributos
ram que os missionários eram diferentes dos deste Deus Bororo coincidem com os atribu-
outros não índios17 . Consequentemente, os tos do Deus revelado por Jesus Cristo. Além
Bororo manifestaram o desejo de se unirem disso, existe uma certa semelhança no signi-
aos missionários para estarem mais seguros ficado de alguns ritos Bororo com ritos cris-
na luta pela sua sobrevivência (BALDUS, tãos. Um exemplo disso é o rito oficial de
1937, p. 113). Na conclusão deste primeiro introdução de uma criança em sua comuni-
encontro, o missionário registrou: “Antes de dade. Para os cristãos, a apresentação da
partir, prometeram-me que, depois de duas criança e a acolhida da comunidade se rea-
luas, haveriam de voltar com outros homens, lizam através do “Ritual do Batismo”. De
para ajudar-nos a construir choupanas e maneira muito similar, a comunidade Bororo
depois iriam buscar as suas famílias” acolhe oficialmente suas crianças através do
(BALZOLA, 1937, p. 110-111). “Ritual da Nominação” 18 (CAMARGO,
Os missionários já encontraram a di- 2001, I, par. 34-71, p. 19-31). Por um lado, a
mensão religiosa profundamente presente na dimensão religiosa, já presente na cultura
cultura Bororo. O ancião Frederico Coquei- Bororo, facilitou a ação evangelizadora dos
ro, por exemplo, sem nunca ter conhecido missionários na apresentação da religião
os missionários já conhecia e amava Deus. cristã. Por outro lado, a variedade dos ritos
Coqueiro é um homem naturalmente piedo- da liturgia católica atraiu a atenção dos
so e sua vida é toda perpassada pela dimen- Bororo, desde o primeiro contato com os mis-
são religiosa. Seu Deus é Pemo, a quem ele sionários (BALZOLA, 1937, p. 110).
ama. Pemo está sempre presente em sua A presença da mulher entre os primei-
vida. Pemo é Pai. Eis como Coqueiro se ex- ros missionários salesianos foi de fundamen-
pressa a respeito do seu Deus: tal importância para despertar a confiança
De quem eu gostava era de Pemo (Deus). Em dos Bororo. Dom Lasagna ressaltou
Deus estava o meu pensamento e o meu cora- [...] a immensa vantagem que resulta de te-
ção (CAMARGO, 1987, VIII, par. 12, p. 332). rem os missionários salesianos nessa difficil
[...] Hum! Isto é meu! Obrigado! Pss... que bom! empreza o apoio e a incomparavel dedica-
Deus é meu pai, por isso ele vai me dar sorte! ção das irmans de Maria Auxiliadora: Ellas
(CAMARGO, 1987, VIII, par. 47, p. 327) pouparão aos sacerdotes contactos incon-
Enquanto na Bíblia o povo só descobre venientes e officios para os quaes seriam
o rosto paterno de Deus, através da revela- pouco aptos. (LASAGNA, 1895, p. 3)
ção de Jesus Cristo, Coqueiro sem ter sido Enquanto Dom Lasagna ressaltava o
catequizado dentro do cristianismo papel complementar das irmãs no trabalho
(CAMARGO, 1987, VIII, par. 16-18, p. 332) missionário, os índios viam aquela nova pre-
chama Pemo carinhosamente de Pai. No sença feminina mais como uma segurança

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 245

contra o abuso sexual de suas mulheres grupo, independentemente de nossas boas in-
(BORDIGNON, 2001, p. 35). Poucos anos tenções, empenho ou até mesmo habilidades
atrás, na Colônia Teresa Cristina que estava naturais. Os missionários perceberam que não
sob os cuidados dos militares, “índios e sol- lhes bastava ter o conhecimento e a prática
dados viviam em inteira promiscuidade, da mensagem evangélica; para que esta men-
num ambiente de conflitos, cachaçadas e sagem pudesse tocar o coração da cultura
luxúria, de que os próprios oficiais participa- Bororo, eles precisavam também comunicá-la
vam” (VON DEN STEINEN apud VIETLER, através da própria língua dos índios. Alguns
1990, p. 66)19 . De fato, os brancos que pre- salesianos aprenderam a língua Bororo antes
cederam os missionários costumavam nego- mesmo do primeiro contato com os índios. Po-
ciar os favores sexuais das mulheres Bororo rém, a maioria dos missionários aprenderam
em troca de qualquer roupa ou adornos vis- a falar Bororo através da convivência diária
tosos vindos da cidade. Existem indícios de com os índios nas missões (NOVAES, 1993,
que esta prática tenha sido uma constante p. 143). De um modo geral, os missionários
também no contato com outras tribos. Por não somente aprenderam a língua dos índios
exemplo, o médico Marcos Pellegrini, que a em nível de comunicação oral para seu uso
serviço do Conselho Indigenista Missionário imediato no cotidiano, mas também apro-
socorreu algumas vezes os Ianomami de fundaram seu estudo em nível científico. Uma
Roraima, relatou que: prova disto é a variedade de publicações que
Uma índia mais velha lhe fez uma pergunta os missionários fizeram para documentar a
que à primeira vista, soou estranha: ‘Não língua e valorizar a cultura Bororo20 . Dentre
existe mulher branca?’ Depois ele entendeu. estas publicações, merece destaque a Enciclo-
Aquelas mulheres só conheciam homens; pédia Bororo, em três volumes, de autoria dos
eram soldados ou garimpeiros, os quais re- salesianos P. César Albisetti e P. Ângelo Jayme
presentavam invasão e doenças. Não vi- Venturelli 21 . O grande mérito e valor científico
nham com suas mulheres e aproveitavam
da Enciclopédia Bororo reside na descoberta
as índias. O sexo, tão natural entre a comu-
da estrutura da língua e de seu valor na vida
nidade, virou produto com valor de troca.
(DIMENSTEIN, 1992, p. 84) do povo Bororo22 .
Os salesianos perceberam que, ao lado
É lógico que os Bororo, inicialmente,
da valorização da língua e preservação da
não tinham a menor idéia sobre a opção de
cultura Bororo, a defesa da terra também era
vida celibatária dos missionários. Na verda-
essencial para a sobrevivência do índio.
de, a presença das irmãs no grupo dos missio-
Embora até o início do século XVIII os Bororo
nários, além de tranquilizar os homens
possuíssem um território de 400.000 km²,
Bororo a respeito de suas mulheres, criou
suficientes para atender às necessidades de
também um clima sadio de familiaridade, de
sua vida nômade, na metade do século XX
respeito e de confiança mútua na missão. Elas
eles já tinham perdido quase a totalidade de
rapidamente conquistaram o coração das
suas terras (CAMARGO, 1987, p. 21). Quan-
crianças e a admiração das mulheres, dedi-
do os missionários fundaram a missão dos
cando-se incansavelmente ao trabalho mis-
Tachos, muitas fazendas de não índios já
sionário com atividades múltiplas, inclusive
tinham se multiplicado e intensificado
indo algumas vezes trabalhar na roça junto
também os conflitos pela posse da terra
com as Bororo (CASTILHO, 2000, p. 77).
Bororo. Duroure (1977, p. 199) documentou
O conhecimento da língua Bororo por
o círculo de violência ao redor desta questão:
parte dos missionários foi de fundamental
[...] o bororo, dono legítimo e secular das ter-
importância, não só no primeiro contato com
ras, necessita delas para a sua vida nômade:
os índios, mas em todo o processo subse- caça, pesca, colheita; o não índio, criador de
quente de evangelização e promoção huma- gado bovino, invade o terreno; o índio es-
na. Na verdade, nós só conseguimos pene- panta o gado, mata e come as rezes; o não
trar profundamente na cultura e na condição índio reage, mata o índio a bala e veneno;
humana de um povo por meio do conheci- por sua vez, o índio reage e mata o invasor.
mento de sua língua. Sacks (1989, p. 8) afir- Na fundação da missão dos Tachos, o
ma que, quando não conhecemos a língua de P. Malan “percebeu que sem terras não se
um grupo humano, somos excluídos deste poderia realizar um trabalho constante e

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246 Nelson Gil Tolentino

progressivo de adaptação cultural dos índios” gioso propriamente dito. O objetivo funda-
(CASTILHO, 2000, p. 70). Devido a isso, em mental de toda atividade evangelizadora dos
1905, os salesianos compraram duas áreas de salesianos era formar honestos cidadãos e
terra na região do Boqueirão e do Barreiro de bons cristãos. Eles procuraram sempre man-
Cima. “Mais tarde, estes lotes foram incorpo- ter um equilíbrio entre a educação cívica e a
rados na reserva indígena dos bororo” educação religiosa. A metodologia emprega-
(CASTILHO, 2000, p. 70)23 . Foi por intermé- da para a consecução deste fim se opunha
dio dos missionários que os Bororo descobri- ao uso de qualquer tipo de ação repressiva.
ram a importância de assegurarem a posse Ao contrário, a metodologia salesiana era
de suas terras, reivindicando a legalização das preventiva e se caracterizava por três dimen-
mesmas junto ao governo, por decreto oficial sões fundamentais e simultâneas: a dimen-
(CASTILHO, 2000, p. 71). Com o aumento e são racional, a dimensão religiosa e a dimen-
a frequência cada vez maior das invasões do são afetiva. O próprio Dom Bosco entregou
território Bororo, os missionários aumentaram esta metodologia preventiva aos salesianos,
na mesma proporção seu compromisso e sua para ser usada em sua práxis educativa e
luta junto com os índios para a defesa de suas evangelizadora, sublinhando a importância
terras. Esta luta culminou em 1976 com o de suas dimensões: “este sistema baseia-se
assassinato do missionário alemão P. Rodolfo inteiramente na razão, na religião e na bon-
Lunkenbein e do Bororo Simão (VIETLER, dade” (CERIA, 1932, p. 919). Em síntese, esta
1990, p. 106). Diante da repercussão nacio- metodologia apela para as riquezas da inte-
nal e da pressão internacional deste evento, o ligência, do amor e do desejo de Deus, que
governo brasileiro demarcou oficialmente cada pessoa possui no íntimo de seu ser (SO-
82.301 hectares para os índios de Meruri24 . CIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE
Esta é a maior área homologada oficialmente SALES, 1985, art. 38).
para o povo Bororo até agora. O ideal missionário e o ardor apostólico
O trabalho missionário dos salesianos foram os fatores que mais contribuíram para
foi inapropriadamente definido como cate- que os salesianos perseverassem em sua pre-
quese. O conceito de catequese vigente na sença e ação entre os Bororo. O ideal missio-
Igreja, quando os salesianos se encontraram nário levou os salesianos a vislumbrar, para
com os Bororo pela primeira vez, consistia além dos limites e das dificuldades do tem-
na transmissão da doutrina cristã através do po presente, uma “terra sem males” 26 para
método da memorização (PIO X, 1905). Os os Bororo. O ardor apostólico, por sua vez,
salesianos nunca se limitaram a dar cate- alimentou o ideal missionário no cotidiano
quese aos Bororo, no sentido estrito desta através de uma mística específica e de um
palavra. Desde o início, o trabalho missio- trabalho incansável. Estes dois fatores foram
nário dos salesianos junto ao povo Bororo o diferencial entre a ação missionária dos
foi sempre desenvolvido numa linha de salesianos e a ação de outros grupos de não
evangelização e de promoção humana. Com índios, na história do contato com os Bororo.
efeito, as próprias orientações que os Nas memórias biográficas de Dom Bosco
salesianos recebiam do superior geral P. havia sempre um sonho por trás das gran-
Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom des decisões de sua vida. Maria Augusta de
Bosco, eram direcionadas mais para a pro- Castilho descreve sucintamente um sonho de
moção humana: cuidar da higiene e da saúde Dom Bosco
dos índios; impedir o infanticídio entre eles; [...] com uma região selvagem, plana, incul-
dedicar-se à sua alfabetização e formação ta, na qual não se viam colinas nem montes,
cristã; implementar o artesanato têxtil; e, na mas homens nus de estatura extraordinária
atual forma menos nômade da vida Bororo, e feroz. [...] Desse momento em diante, Dom
qualificar os índios no manuseio de máqui- Bosco procurou saber mais sobre a região
nas agrícolas para garantir sua missionária da América do Sul. (CASTILHO,
autossustentação25 . O fato de os salesianos 2000, p. 24-25).
não terem reduzido sua atividade O ideal missionário sempre esteve pre-
missionária à catequese em sentido estrito, sente nos sonhos e no horizonte de Dom
não significa que eles colocaram em segun- Bosco, embora ele tenha fundado e qualifica-
do plano a preocupação com o aspecto reli- do os salesianos para serem prioritariamente

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 247

educadores e evangelizadores de jovens. eles estavam perdendo todas as suas terras,


Consequentemente, os salesianos que entra- Gonçalo Alberto Ochoa Camargo30 afirmou
ram em contato com os Bororo pela primei- textualmente:
ra vez não tinham formação missionária es- Foi um momento em que os Bororo estavam
pecífica. Eles se tornaram missionários atra- querendo se auto-extinguir. Com efeito, os
vés da convivência e do aprendizado prático levantamentos acusam um vazio populacio-
com os próprios Bororo. nal durante as décadas de 1940 a 1970.
(CAMARGO, 2001, p. 11)
3 Os Bororo de Meruri decidem morrer O vazio populacional dos Bororo coin-
cide também com o vazio de documentação
A indiferença e a morosidade na solu- da vida deles por parte dos salesianos. Dian-
ção do problema da Reserva de Meruri leva- te da crescente diminuição demográfica dos
ram os Bororo, em anos anteriores, a um Bororo, teriam os salesianos também desani-
desânimo coletivo. Além da questão da ter- mado e considerado sua sobrevivência uma
ra, outros fatores já vinham interferindo na causa perdida? O que estava realmente por
preservação de sua cultura e na sua subsis- trás da decisão dos Bororo de “se autoextin-
tência. Aos poucos, foi se tornando mais ní- guir” ou de se “acabar e não ter mais filhos”?
tida para os próprios índios a falta de pers- Que outras vicissitudes, além do fato de esta-
pectiva para uma sobrevivência digna, como rem perdendo as suas terras, estariam por
povo etnicamente diferenciado. A partir daí trás deste fato? Era o extermínio algo inédito
constata-se uma sensível queda no índice de na vida dos Bororo, ou apenas a reedição de
natalidade em Meruri. Há indícios de que, experiências anteriores? Uma resposta ade-
por trás da escassez de novos nascimentos, quada a cada uma dessas questões exige um
havia a intenção deliberada dos Bororo de estudo bem mais extensivo do que o presente
um autoextermínio gradativo. trabalho. Em todo caso, tentaremos nos de-
Embora nunca tenha sido feito um bruçar brevemente sobre cada uma delas.
estudo aprofundado sobre a decisão dos Constatamos, como ponto de partida, que
Bororo de exterminar-se como povo, alguns embora os Bororo nunca tenham tido a expe-
estudiosos comprometidos com a pesquisa riência de desaparecimento coletivo como
deste grupo indígena já fizeram acenos explí- etnia, o extermínio já tinha sido uma ameaça
citos sobre esta questão. Referindo-se às for- real também para eles, no início do século XX.
mas de resistência dos índios às vicissitudes O extermínio não só dos Bororo, mas
sofridas neste século, Mário Bordignon27 afir- de todos os índios do Brasil, já estava por ser
mou: “Na década de 50 e 60, seja na área decretado, desde 1908, pelo Presidente da
dos missionários salesianos, seja na do S. P. República Afonso Pena, com ampla aprova-
I. – FUNAI, os Bororo queriam acabar e não ção da sociedade burguesa, inclusive do an-
ter mais filhos” (BORDIGNON, 2001, p. 72). tropólogo e diretor do Museu Paulista,
Vietler28 também confirmou uma redução Herman Von Ihering31 . A motivação princi-
drástica dos Bororo no ano de 1967: “a po- pal do governo para promulgar tal decreto
pulação Bororo de Meruri esteve sujeita a era, entre outras, a resistência dos índios para
fortes oscilações, entre um máximo de 217 abandonar seus costumes e integrar-se na
Bororo em 1905, jamais recuperado, e um sociedade brasileira. Neste mesmo ano de
mínimo de 81, em 1967” (VIETLER, 1990, 1908, a figura carismática do P. Malan en-
p. 139). Novaes29 detectou uma diminuição controu uma forma original para reverter a
de informações a respeito dos Bororo neste opinião brasileira a respeito dos índios, valen-
período: do-se da aptidão musical dos Bororo. O mis-
São relativamente muito mais abundantes sionário levou os 21 Bororo integrantes da
as informações sobre o que ocorre entre 1890- banda musical para tocar diante do Presi-
1945, quase inexistentes os dados disponí- dente Afonso Pena, no Palácio do Catete, no
veis para o período que vai de 1945 a 1970. Rio de Janeiro. Na ocasião, os Bororo execu-
(NOVAES, 1993, p. 143-144) taram com perfeição temas clássicos, inclu-
Referindo-se à experiência sofrida pe- sive o Hino Nacional Brasileiro. Os jornais
los Bororo na metade do século XX, quando da época exaltaram as capacidades artísticas

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248 Nelson Gil Tolentino

dos Bororo e noticiaram também o discurso (DUROURE, 1977, p. 136-137). Os índios,


revolucionário do P. Malan, pedindo a resti- ressentidos, resistiram a este tipo de autorita-
tuição aos índios rismo, abandonando a Colônia e embrenhan-
[...] de uma patria que lhes foi roubada em do-se na mata virgem. Diante do desapare-
nome de uma falsa civilização conquistado- cimento em massa dos índios, o governo dis-
ra, liberticida. Patria, senhores, de que são pensou os salesianos e fechou a Colônia
elles os verdadeiros donos, e que saberão Teresa Cristina34 . Este incidente ficou pro-
amar, defender e illustrar, se isto lhes ensi- fundamente gravado na memória dos
narmos com o nosso esforço e nosso exem- anciãos Bororo.
plo. (NOVAES, 1993, p. 171)31
Quando os salesianos assumiram sua
A ação corajosa do P. Malan no Rio de primeira atividade autônoma junto aos
Janeiro foi determinante para a sobrevivên- Bororo, nos Tachos, em 1902, eles procura-
cia dos índios. Depois disso, o debate sobre o ram se adaptar à vida dos índios. Os missio-
extermínio dos índios, em nível nacional e in- nários descobriram a importância que os ri-
ternacional32 , foi perdendo sua força, e seu tuais tinham para os Bororo e lhes deram
respectivo decreto nunca foi promulgado. liberdade para agir de acordo com os seus
O suposto auto extermínio dos Bororo costumes (BORDIGNON, 2001, P. 39;
(CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 146, p. 569) NOVAES, 1993, p. 160). Em 1907, o P.
parece não ter sido uma reação apenas à per- Balzola foi substituído na direção dos Tachos
da de suas terras. No contexto da experiência pelo P. Colbacchini. Com o passar do tem-
missionária, mesmo antes do período que vai po, o P. Colbacchini foi assimilando a estra-
de 1940 a 1970, os Bororo já vinham reagindo nha obsessão de que o Baito era um templo
às interferências em seus costumes, de manei- do demônio, que deveria ser destruído. Como
ra diversificada. Assim, a redução dos nasci- já descrevemos, o Baito era o lugar onde se
mentos Bororo seria a resultante d o somatório realizavam os mais importantes rituais da
de fatos negativos do passado com experiên- tribo, como centro ou “foco de toda a vida
cias contraditórias do presente. Limito-me política tradicional” do povo Bororo
aqui a citar alguns fatos que, a meu ver, pro- (AGUILERA, 2001, p. 48-49). O posiciona-
vocaram juntos a reação culminante do de- mento do P. Colbacchini contrastava, aber-
sânimo coletivo dos Bororo perante a vida. tamente, com orientações já dadas pelo su-
O primeiro fato está ligado à falta de perior geral dos salesianos: “Quanto a cer-
prudência e de comprometimento missioná- tos costumes que estes índios têm, principal-
rio com a causa do índio. Quando o P. mente ao redor de seus mortos, procurai não
Balzola teve que se ausentar da Colônia desprezá-los” 35 . O provincial de Mato
Teresa Cristina, por três meses, substituiu-o, Grosso na época, P. Malan, também reco-
na direção, o inexperiente P. Ângelo nhecia a centralidade do Baito na vida social
Cavatorta. Por mais de dois anos, os sale- e política dos Bororo: “o baito era ao mesmo
sianos tinham se esforçado para promover tempo igreja, assembléia câmara, república,
os índios em todos os sentidos. Os Bororo quartel, officina, refeitório, dormitório, re-
seguiam com docilidade às orientações rece- creio. Ahi officiam os baires, as cerimônias”
idas, esforçando-se na dedicação à agricul- (CASTILHO 36 , 2000, p. 45). O que parece
tura e aos estudos, porque se sentiam acei- mais intrigante na atitude do P. Colbacchini
tos e amados pelos missionários (CASTILHO, é que ele demonstrava conhecer muito bem
2000, P. 45). O P. Cavatorta, logo que che- a importância do Baito para os Bororo:
gou, trocou inexplicavelmente o sistema vi- [...] parecia-nos impossível imaginar uma
gente: colocou soldados armados escoltando aldeia dos índios sem esta cabana central; e
os índios nas roças, proibiu a celebração ri- achávamos mais fácil que eles abandonem
tual do funeral Bororo e humilhou publica- a missão do que este seu inviolável recinto” 36.
mente um dos chefes Bororo mais estimado. Apesar de tudo isso, em 1914, o P.
Os Bororo se recusaram a seguir o novo sis- Colbacchini mandou destruir o Baito, bati-
tema. O diretor substituto, demonstrando zou as famílias Bororo consideradas ainda
certa rejeição aos índios, afirmou que eles não pagãs e mandou erguer uma grande cruz
faziam nenhuma falta para os missionários no lugar do Baito, como sinal do “triunfo de

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 249

Cristo sobre o demônio” (CASTILHO, 2000, não podendo se ausentar sistematicamente


p. 96). Este foi o primeiro golpe de grande de Meruri para assumir uma escola num
vulto e repercussão na cultura Bororo, por- desses povoados, introduziram um internato
que lhe atingiu o próprio âmago. Como re- dentro da missão para atender, conjunta-
sistência, os Bororo passaram a celebrar os mente, os filhos dos índios e os filhos dos não
ritos realizados no Baito de maneira clandes- índios. O regime de internato, porém, era
tina. Referindo-se a esta resistência, o ancião completamente estranho à cultura Bororo,
Frederico Coqueiro relembra: “Quando os pois interferia diretamente na estrutura fa-
Bororo queriam cantar, iam de noite fora da miliar do índio, “separando pais e filhos”
aldeia com as coisas. Ou as roupas de seus (NOVAES, 1993, p. 182). O internato tam-
finados” (CAMARGO, 1987, XXVII, par. bém afetava profundamente a língua Bororo,
134, p. 555). O quinquagenário Bororo pois, desde 1757, os governos brasileiros pro-
Raimundo Purúbi-Kiedu confirma: “antiga- mulgaram decretos exigindo que o ensino
mente o pessoal cantava no mato né, onde formal nas escolas fosse ministrado exclusi-
padre e irmã não escuta” (BORDIGNON, vamente na língua portuguesa39 . Conse-
2001, p. 133). quentemente, a língua portuguesa passou a
A presença dos não índios foi se mul- ser obrigatória no internato, enquanto a lín-
tiplicando rapidamente nas proximidades e gua Bororo passou a ser proibida. Os índios
até mesmo dentro das terras dos Bororo. Em não conseguiram entender que a proibição
1902, registravam-se aí 409 brancos, enquan- da língua Bororo na escola fosse imposta
to em 1923, este número já havia saltado pelo governo. Pelo contrário, os Bororo in-
para 11.247, aproximadamente (NOVAES, terpretaram que tal proibição tivesse sido
1993, p. 185). Até 1970, muitíssimos outros exclusiva decisão do P. César Albisetti, que
brancos, pequenos ou grandes fazendeiros, era o diretor da missão. O P. Ochoa, referin-
chegaram à região de Meruri. Dentre eles, do-se a esta questão, relatou:
vários começaram a invadir a reserva dos Os alunos que viveram esta experiência,
Bororo com a cumplicidade do Estado, que transmitiram a seus filhos a idéia de que os
lhes fornecia títulos legais de terra na pro- missionários não gostavam da língua Bororo,
priedade indígena (ENAWURÉU, 1987, p. e desmotivaram-nos para aprendê-la [...].
36). Diante da invasão sistemática das terras (CAMARGO, 1987, XXVII, nota132, p. 555).
de Meruri com o suporte governamental, as Na verdade, perder a língua significa
reivindicações dos Bororo e dos missionários perder os mitos, “que são o referencial mais
para preservação do território indígena fo- importante da cultura Bororo”
ram sendo completamente ignoradas. (BORDIGNON, 2001, p. 63). Destruindo-se
Tornava-se cada vez mais patente que a re- o mito se destrói a capacidade do índio de
serva de Meruri estava com seus dias conta- conhecer e de transmitir sua história e sua
dos. O crescente número de invasões e o des- cultura. O mito é verdadeiramente o instru-
caso do governo foram criando um senti- mento que permite ao Bororo fazer uma
mento de desânimo coletivo entre os Bororo. releitura do seu passado, interpretar sua
Na verdade, a terra é essencial para sua so- vida presente e projetar-se para o futuro.
brevivência. Tirar a terra do índio significa Aos poucos, diante não só da proibição da
condená-lo à morte. língua Bororo no internato, mas também da
A população branca foi fundando tam- proibição de alguns de seus rituais no centro
bém povoados, cada vez mais perto da mis- da aldeia, os índios chegaram a pensar que
são de Meruri38 . A estrutura urbana dessas os missionários estavam contra sua cultura40 .
vilas incluía a construção de capelas que, do- A presença dos índios Xavante, inimi-
minicalmente, demandavam o atendimento gos tradicionais dos Bororo, foi controvertida
pastoral dos não índios. Visto que os salesia- em Meruri. Em 1957, os Xavante chegaram
nos são por natureza educadores de jovens, em um grupo muito numeroso. Estavam fra-
junto com os cuidados pastorais eles se inte- cos e famintos e não tinham para onde ir.
ressaram também pela alfabetização dos fi- Diante da situação deles e do pedido dos mis-
lhos dos não índios, que se encontravam ex- sionários, os Bororo permitiram que os
cluídos da educação formal. Os missionários, Xavante ficassem em Meruri (CAMARGO,

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250 Nelson Gil Tolentino

1987, p. 32). Muito cedo, porém, recomeçaram número cada vez maior de índios Bororo,
os conflitos entre os Bororo e os Xavante. Isso provocando brigas e ociosidade. A incapa-
ficou claro quando os Xavante ameaçaram cidade de superar a dependência do álcool
matar o Bororo Frederico Coqueiro, como já contribuiu para aumentar ainda mais o de-
descrevemos. Os Bororo e os missionários sânimo coletivo.
decidiram então transferir os Xavante para a De um modo geral, por trás da maioria
região de São Marcos, onde tudo estava por desses fatos, existia sempre uma resistência
construir: a casa para os missionários, as chou- ostensiva, ou velada. A reação dos Bororo
panas e roças para os índios. Os Xavante co- diante de experiências de injustiça, reais ou
meçaram a preparar o terreno para suas roças. supostas, se manifestava de diferentes for-
Inicialmente, enquanto as roças Xavante ain- mas. Por exemplo, diante da atitude severa
da não produziam nada, os missionários e os do substituto do P. Bálzola, que menospreza
Bororo redobraram seus trabalhos nas roças seus valores culturais, os Bororo reagem indo
de Meruri para mandar alimentos para os embora e provocando o fechamento da
Xavante, em São Marcos. Além disso, os Colônia Teresa Cristina. Diante da proibição
Bororo também foram convocados para cons- da celebração de seus rituais próprios, os
truir as casas na nova aldeia dos Xavante. Bororo reagem celebrando-os clandestina-
Enquanto isso, os Xavante se dedicavam ex- mente. Diante da proibição de seus filhos
clusivamente às suas roças. No desabafo de falarem a língua Bororo na escola para favo-
Frederico Coqueiro aparece nítido o paterna- recer a presença dos filhos dos não índios
lismo em relação aos recém-chegados: na missão, os Bororo reagem entregando-se
Os Bororo não deixaram os Xavante preocu- ao abuso do álcool e à ociosidade, como for-
par-se pela comida. [...] Assim, todo dia de mas de chamar a atenção dos missionários
domingo, Mestre mandava o caminhão com para se preocuparem mais com eles. Normal-
comida para eles. [...] Eles podiam plantar o mente, os Bororo são de índole profunda-
que queriam à vontade e aumentar a vonta- mente sensível. Quando se sentem preteridos
de e com gosto, a roça. [...] Por isso estes
pelas pessoas de quem esperam estima e com-
diziam que aqueles lá sim trabalhavam, mas
os de Meruri não trabalhavam. (CAMARGO,
preensão, eles se sentem humilhados e rea-
1987, XXV, par. 17, p. 517). gem com algum tipo de resistência. Os pais
e parentes normalmente nunca humilham
Esta última frase traduz muito bem o
seus filhos, pois eles abandonariam enver-
preconceito que se criou na comparação das
gonhados a própria casa. Quando o missio-
duas etnias, classificando os Bororo de “pre-
nário demonstra incoerência entre o amor
guiçosos” e os Xavante de “trabalhadores”.
que prega e a atitude prática de intolerância
Nesta mesma linha, outras imagens foram
de seus costumes, observa-se:
usadas para sublinhar uma aparente inferio-
ridade dos Bororo. Estes eram apelidados de O relacionamento fica prejudicado, a estima
é perdida, uma greve espontânea se forma
“beberrões”, de “índios mansos”, ou de “po-
no ânimo do indivíduo e, se este tem influên-
bres coitados” (NOVAES, 1993, p. 111-122). cia na comunidade, esta também vai se en-
O fato de os missionários terem intensificado volvendo neste espírito de resistência. Con-
esforços para contatar os Xavante, implan- sidera-se que a pessoa que deveria ligar com
tando para eles, em 1950, a missão de Santa Deus já perdeu este carisma e está se dei-
Terezinha e, a partir de 1957, a missão de xando guiar pelo maligno e por isso pode
São Marcos, explica em parte a diminuição ser desprezada. (CAMARGO, 1987, nota
de informações escritas sobre os Bororo de 100, p. 497)
Meruri, neste período, como observa Novaes Diante de todos estes fatos negativos,
(1993, p. 143-144). por que os Bororo não abandonaram a mis-
O problema do alcoolismo generaliza- são de Meruri em massa, como o fizeram na
do e de epidemias, como a tuberculose e o Colônia Teresa Cristina? Parece que eles per-
sarampo, exterminaram a maioria dos ceberam que já tinham perdido quase todas
Bororo de Jarudori41 (CAMARGO, 1987, as suas terras. Eles não teriam para onde ir e
XXVIII, nota 172, p. 567). Em Meruri, o já não viam nenhuma perspectiva de futuro.
grande problema não eram as epidemais42 , E assim, consciente ou inconscientemente, a
mas sim o alcoolismo, que vitimava um resistência desta vez consistiu em ir desapa-

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 251

recendo aos poucos, sem sair da missão. P. Falco gozava de grande estima de todos
Vietler (1990, p. 140), em sintonia com esta os Bororo, inclusive daqueles que moravam
interpretação, afirmou: “Ainda em 1969, fora da reserva de Meruri, ele imediatamente
queixavam-se os missionários que os Bororo “entrou forte para desativar este processo e
não queriam ter filhos e estes, não queriam salvar a população indígena” (CAMARGO,
tê-los, porque nada tinham a oferecer aos 1987, XXVIII, nota 136, p. 566). Nesta oca-
nascituros”. Neste contexto, a drástica redu- sião, alguns remanescentes dos Bororo de
ção de nascimentos sinaliza muito mais uma Jarudori, que ainda conservavam seus cos-
intenção deliberada de autoextermínio tumes intactos, vieram visitar o novo diretor
gradativo, do que um mero fenômeno aci- e decidiram morar na missão, contribuindo
dental. Tanto esta decisão de autoextermínio enormemente para o resgate da língua e da
quanto a modalidade escolhida são inéditas cultura dos Bororo de Meruri (CAMARGO,
na vida dos Bororo de Meruri. O desapare- 1987, XXVIII, nota 137, p. 567). Na verda-
cimento da comunidade indígena de Meruri de, foi o P. Falco “quem iniciou o processo
seria a maior punição para os salesianos, pois para que os Bororo reconquistassem a pró-
a autoextinção dos Bororo significaria o fra- pria terra e a própria autonomia”
casso total de sua obra missionária no Bra- (CAMARGO, 1987, XXVIII, nota 136, p.
sil. Na verdade, o extermínio dos Bororo, por 566). Coube ao P. Rodolfo Lunkenbein dar
decisão própria ou por iniciativa do gover- continuidade a esta guinada na missão de
no, significaria também uma perda Meruri.
irreparável para a cultura brasileira, que se Em 1965, também a Igreja deu uma
caracteriza pela diversidade étnica. guinada em sua visão de mundo e no seu
posicionamento perante os povos indígenas,
4 Os Bororo recuperam o entusiasmo através das conclusões do Concílio Vaticano
pela vida II. À luz dessas conclusões, o episcopado la-
tino-americano publicou, em 1968, o docu-
A recuperação do entusiasmo dos mento de Medellín e, em 1979, o documento
Bororo pela vida também dependeu da de Puebla, que passaram a ser um referencial
somatória de vários fatos. Dentre eles, em para uma ação pastoral mais comprometida
nível interno, os dois fatos mais significativos com a causa dos oprimidos. O episcopado
foram: a atuação do P. Falco para retomada brasileiro, assimilando rapidamente as novas
da identidade cultural dos Bororo e o martí- orientações eclesiais, assumiu com determi-
rio do P. Rodolfo e do Bororo Simão pela nação a opção preferencial pelos mais pobres
defesa das terras de Meruri. Em nível exter- e, dentre eles, considerou que os povos indí-
no, destacam-se também dois fatores: as no- genas estavam em “situação mais crítica e
vas orientações da Igreja (FLANNERY, de maior abandono” (AGUILERA, 2001, p.
1992), implementadas principalmente atra- 72). Coerentemente, a Conferência Nacional
vés do CIMI, e a promulgação do Estatuto dos Bispos do Brasil (CNBB) fez um apelo
do Índio pelo governo brasileiro. oficial para um maior compromisso de to-
A nomeção do P. João Falco para dire- dos os cristãos com a causa indígena: “para
tor da missão de Meruri, em 1965, foi um que os problemas do índio sejam melhor so-
fator importante para reverter o processo de lucionados é preciso e urgente que sejam
autoextermínio dos Bororo. À semelhança do assumidos consciente, responsável e constan-
P. Malan, o P. Falco era inovador nas idéias, temente por toda a Igreja: bispos, padres,
rápido e enérgico em seu posicionamento. agentes de pastoral e comunidades cristãs”
Ele logo percebeu que a missão indígena de (CNBB, 2002, p. 21). Em 1972, foi criado, e
Meruri estava se transformando num povoa- assumido como organismo da CNBB, o Con-
do de não índios. Entre as causas, o P. Falco selho Indigenista Missionário (CIMI). O P.
identificou a drástica diminuição dos Bororo; Ângelo Jayme Venturelli, missionário sale-
a perda de sua língua e de sua cultura; e a siano e coautor da Enciclopédia Bororo, foi
presença constante e numerosa de não o articulador, fundador e primeiro presidente
índios, dentro da missão, por causa do aten- do CIMI43 . Entre os princípios que funda-
dimento escolar e hospitalar. Visto que o mentam a ação do CIMI, destacam-se: o com-

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252 Nelson Gil Tolentino

promisso com o protagonismo dos povos in- cação da reserva de Meruri. Os não índios,
dígenas nas lutas pelos seus direitos; o respei- que já tinham se estabelecido dentro da área
to à alteridade indígena em sua pluralidade indígena, também se organizaram para im-
étnico-cultural e a valorização dos conheci- pedir a demarcação da reserva de Meruri.
mentos tradicionais dos povos indígenas O problema crucial dos Bororo concentrava-
(CIMI, 1995). se agora nos conflitos pela legalização de
O governo brasileiro, pressionado pela suas terras. Sabendo das garantias legais do
ação da Igreja em nível nacional e interna- Estatuto que protegia o índio, os invasores
cional, publicou o Estatuto do Índio44 , em recrudesceram sua ousadia: exigiam que os
1973. Os propósitos do Estatuto são: preser- índios abandonassem “voluntariamente” suas
var a cultura das comunidades indígenas, terras, e ameaçavam de morte os que perma-
integrá-las “progressiva e harmoniosamente, necessem na reserva de Meruri. O P. Rodolfo
à comunhão nacional”, estendendo-lhes “a não se intimidou. Continuou reanimando os
proteção das leis do País, nos mesmos termos Bororo e empenhando-se intensamente para
em que se aplicam aos demais brasileiros” que as terras fossem demarcadas (MSMT,
(ESTATUTO DO ÍNDIO, 1973, art. 1o). No 1976). No dia 15 de julho de 1976, sessenta
que se refere às terras ocupadas pelos indí- não índios armados, chegando de improviso
genas, o Estatuto afirma: na missão de Meruri, assassinaram o P.
Cabe aos índios ou selvícolas a posse per- Rodolfo e o índio Simão e feriram mais quatro
manente das terras que habitam e o direito Bororo. O duplo assassinato em Meruri teve
ao usufruto exclusivo das riquezas naturais ampla divulgação e repercussão nacional e
e de todas as utilidades naquelas terras exis- internacional46 . Visto que o P. Rodolfo era
tentes. (ESTATUTO DO ÍNDIO, 1973, art. 22) cidadão alemão, além da Igreja, o governo
Paradoxalmente, no mesmo ano de da Alemanha pressionou o governo brasilei-
1973, o Presidente da República interpretou ro para fazer justiça diante do “Massacre de
em mensagem oficial que “os objetivos Meruri”. Desgastado diplomaticamente em
cardiais do Estatuto” consistiam na “rápida nível internacional, o governo brasileiro per-
e salutar integração do índio na civiliza- cebeu que resolver a questão de Meruri torna-
ção” 45 . Tal interpretação demonstrava, cla- va-se um imperativo urgente e indeclinável.
ramente, que a política indigenista oficial não Assim, a reserva dos Bororo foi oficialmente
havia mudado. O Estatuto era mais um ins- demarcada, no mesmo ano de 1976. Contu-
trumento de fachada para defender o gover- do, os assassinos envolvidos no “Massacre
no da ofensiva internacional do que para de- de Meruri” nunca foram condenados.
fender os índios das agressões que vinham A morte do P. Rodolfo e do índio Simão
sofrendo dentro do país. foi o fato mais marcante na reafirmação da
Em 1976, o novo diretor de Meruri era vida por parte dos Bororo de Meruri. A partir
o P. Rodolfo Lunkenbein. Juntamente com o deste acontecimento, eles fizeram uma relei-
P. Gonçalo Alberto Camargo Ochoa, as tura de toda sua situação passada. O fato
irmãs salesianas e outros missionários, o P. do P. Rodolfo ter dado a vida para defender
Rodolfo se identificava profundamente com a causa Bororo desfez a idéia de que os mis-
o povo Bororo, em todas as suas aspirações sionários não se preocupavam com eles ou
e lutas. Por um lado, o ardor apostólico dos não apreciavam sua cultura. A partir deste
missionários tinha o claro apoio das orienta- fato eles assumiram com maior empenho o
ções eclesiais, que recomendavam a valori- momento presente, pois descobriram que os
zação da cultura indígena e a defesa de seus Bororos tinham valor, que era preciso man-
direitos. Por outro lado, a luta dos missioná- ter viva a cultura Bororo, recuperando sua
rios junto com os Bororo pela defesa especí- língua e valorizando seus costumes. Este fato
fica de suas terras tinha, agora, o respaldo também abriu para eles uma perspectiva de
legal do Estatuto do Índio. Incentivada pelos futuro. Eles podiam continuar gerando
missionários, a comunidade Bororo se orga- filhos, pois já tinham a posse legalizada de
nizou e intensificou a reivindicação pela suas terras e já estavam recuperando tam-
posse definitiva de suas terras. Cumprindo bém sua cultura. Em poucas palavras, eles
a lei, o governo autorizou o início da demar- já tinham o que “oferecer aos nascituros”. E

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 253

assim, foi tal o entusiasmo pela vida nas últi- da partilha e da pesquisa do saber
mas três décadas, que a população dos (AGUILERA, 2001, p. 110). Na verdade, este
Bororo de Meruri quintuplicou, passando de tipo de escola recriada passou a ser um instru-
81 pessoas em 1967 para 406 no ano 2000 mento de preservação das raízes culturais do
(VIETLER, 1990, p. 24). povo Bororo. Além disso, os índios não tarda-
A recuperação do entusiasmo pela ram a perceber que a apropriação da comuni-
vida não significou, porém, um retorno me- cação escrita é um meio precioso para preser-
cânico ao estilo de vida que os Bororo leva- var os conhecimentos tribais (LÉVI-STRAUSS,
vam antes do contato com os não índios. O 1996, p. 282). Eles perceberam também que o
contexto de então já não existe mais: o bilinguismo “não significa uma perda da
tempo, o ambiente ecológico e os próprios autoidentificação étnica” (CASTILHO, 2000,
Bororo mudaram (BORDIGNON, 2001, p. p. 14049 ). Pelo contrário, o conhecimento da
66). Eles perceberam que sua sobrevivência língua portuguesa é de fundamental impor-
daqui para frente depende, principalmente, tância no seu relacionamento intercultural.
de um equilíbrio entre o estilo de vida tradi- Em síntese, os Bororo descobriram o alcance
cional do passado e a mudança cultural do e a importância da escola “como arma políti-
tempo presente. O equilíbrio leva-os até a ca” para a “formação, conscientização e
reconsiderar alguns instrumentos que foram capacitação dos mesmos para os novos desa-
usados no passado para descaracterizar ou fios colocados pela situação de contato”
suplantar os seus costumes. É o caso da esco- (AGUILERA, 2001, p. 118).
la e do aprendizado da língua portuguesa, O equilíbrio leva-os também a um re-
por exemplo. torno às origens, dentro de uma perspectiva
A escola de Meruri, considerada ante- renovada. Nesta perspectiva, despontam a
riormente como elemento de desconstrução nova maneira de se organizar na defesa de
dos costumes tribais, passou a ser instrumen- seus direitos e, também, o interesse crescente
to de reconstrução da identidade cultural do na reapropriação dos elementos básicos de
povo Bororo (AGUILERA, 2001, p. 119). A sua cultura.
escola, nos moldes de internato, cortara o elo O relacionamento intercultural altera-
natural de transmissão cultural Bororo, que ra a estrutura organizacional Bororo. O che-
se dava através da interação educativa entre fe era, tradicionalmente, um ancião e a che-
pais e filhos. Esta interação era fundamental fia era uma prerrogativa de direito clânico e
para conservação da “identificação étnica vitalícia. Atualmente, o chefe é um jovem
tribal” (RIBEIRO, 1996, p. 12). O internato e qualificado na cultura Bororo e dos brancos.
a escola que o sucedeu também não levaram Além disso, a chefia é por eleição e temporá-
em conta o diferencial cultural específico dos ria (BORDIGNON, 2001, p. 151). As razões
índios. Consequentemente, a educação desta mudança cultural residem no fato de
formal em Meruri não respeitou as diferenças o chefe ter, atualmente, que promover e
e oficializou a prática tradicional da escola defender o bem comum dos Bororo dentro e
branca (AGUILERA, 2001, p. 13-1447 ). Com fora de sua comunidade. Outra novidade
a recuperação do entusiasmo pela vida, os organizativa são as assembleias das lideran-
Bororo recuperaram também a escola como ças Bororo de diferentes aldeias. Além disso,
“local onde se retomam a memória, as tradi- o chefe Bororo participa regularmente das
ções e as próprias relações dos personagens reuniões dos caciques do Brasil. Estes encon-
que compõem esse universo complexo cha- tros intertribais inauguraram um novo esti-
mado Meruri” (AGUILERA, 2001, p. 118). A lo de defesa de seus direitos, por meio da ar-
atual Escola Indígena de Meruri48 está sendo ticulação e da união entre os povos indígenas
recriada pelos próprios Bororo. Ela é bilíngue, (BORDIGNON, 2001, p. 69). Em depoi-
o conteúdo ensinado nela é a própria cultura mentos recentes dos Bororo, colhidos por
indígena e os professores são todos Bororo. Bordignon, eles apontam três elementos bá-
Apesar de a escola ter um corpo docente de- sicos de sua cultura como os mais importan-
finido, todos os membros da comunidade tes na ordem da preservação: o ritual funerá-
estão envolvidos na interação educativa, tanto rio, o ritual da nominação e a língua Bororo.
os anciãos quanto os mais jovens, por meio Ao lado destas três “referências mais fortes

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254 Nelson Gil Tolentino

da cultura Bororo”, eles acrescentam a im- sob a influência da ação missionária, dimi-
portância dos anciãos para que os mais jo- nuíram sensivelmente ou desapareceram. O
vens possam aprender os elementos básicos maior mérito da Missão Salesiana de Mato
de sua cultura (BORDIGNON, 2001, p. 75). Grosso junto ao povo Bororo foi a preserva-
Há o surgimento de muitos chefes de cerimô- ção de sua existência física. A ação missio-
nias jovens, até com 23 anos de idade, for- nária dos salesianos entre os Bororo, além
mados na área da missão de Meruri. Este é o de ser “uma experiência extraordinariamen-
sinal mais promissor de que as tradições cul- te rica,” é também um referencial pragmático
turais estão sendo preservadas, num proces- “para quem esteja empenhado em amparar
so de reapropriação contínua. Tudo isso leva populações tribais” (RIBEIRO, 1996, p. 30).
a concluir que “os Bororo estão mudando, O ritual ao redor da morte, que é o mais
sim, mas conservando seus valores centrais importante da cultura Bororo, faz paradoxal-
como vivência ou como imaginário coletivo” mente a reafirmação da vida. Semelhan-
(BORDIGNON, 2001, p. 79). temente, a morte do Bororo Simão e do mis-
Tanto o uso atual da escola e da língua sionário P. Rodolfo Lunkenbein levou os
portuguesa quanto a reapropriação da cul- Bororo a optarem definitivamente pela vida.
tura e nova maneira de se organizar indicam O lema do P. Rodolfo em Meruri era: “Eu
uma mudança cultural. Bordignon, em recen- vim para servir e dar a vida”. Os missionários
te estudo sobre os Bororo, considera que as salesianos continuam servindo os Bororo e
mudanças presentes adotadas por eles “são doando-lhes um redobrado entusiasmo pela
um aspecto dos mecanismos de resistência vida. Meruri é, atualmente, a maior reserva
cultural” e “visam dar continuidade à tradi- e a mais populosa aldeia Bororo. A paixão
ção” dos Bororo (BORDIGNON, 2001, p. 65). pela vida entre os Bororo é tão grande, que
eles repetem frequente e orgulhosamente:
Considerações finais “BOE AKEDU KARE! BOE AKEDU
KARE!”
A análise da experiência de Meruri “OS BORORO NÃO ACABAM! OS
sublinha três fatores importantes na ação BORORO NÃO ACABAM!”
missionária. Primeiramente, as orientações
da Igreja, juntamente com o respaldo das leis Notas
civis, são de fundamental importância para 1
Em geral, as traduções de outros idiomas para o Por-
que os missionários possam abraçar sem res- tuguês neste trabalho foram feitas por mim, num
trições a causa indígena. Em segundo lugar, estilo muito livre. De modo mais específico, no que
o ardor apostólico e a qualificação interdis- se refere a traduções da língua Bororo para a língua
ciplinar do missionário são essenciais para Portuguesa, segui a tradução apresentada nos textos
bilíngues que tive em mãos.
que ele se coloque de maneira construtiva 2
O imperador Dom Pedro II governou o Brasil por
diante da comunidade indígena. Em tercei- quase 50 anos, de 1840 a 1889. Logo após a proclama-
ro lugar, o grande desafio do povo Bororo é ção da República, dois militares governaram o Brasil:
conservar sua própria identidade dentro de Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto
um contexto irreversivelmente modificado. (1891-1894). Em 1895, quando os salesianos se encon-
traram com os Bororo pela primeira vez, quem gover-
Isto exige, além da preservação de sua cul- nava o Brasil era o Presidente civil Prudente de Moraes
tura e da unidade tribal, uma postura dife- (1894-1898); e quem governava o Estado do Mato
renciada dos Bororo no meio da sociedade Grosso era Manoel José Murtinho (1891-1895). Em
pluriétnica. seguida o comando do Governo Brasileiro foi exerci-
do pelos seguintes presidentes civis: Manoel Ferraz
A história comprova que os acertos da
de Campos Salles (1898-1902), Francisco de Paula
ação missionária da Igreja, através dos Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Augusto
salesianos, são bem maiores do que os erros Moreira Pena (1906-1909), Nilo Procópio Peçanha
históricos cometidos em Meruri. Prova incon- (1909-1910). Volta ao governo um militar: Hermes
testável disso é o fato de que a população da Fonseca (1910-1914). Logo após, os civis retornam
no governo: Wenceslau Brás Pereira Gomes (1914-
Bororo sob os cuidados dos salesianos sobre- 1918). No período subsequente, merece uma menção
viveu e “aumentou em 55% no Meruri e 96% Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954), porque foi o
no Garças” (NOVAES, 1993, p. 243). Os presidente que permaneceu mais tempo governando
Bororo de outras aldeias, que não estiveram o país (18 anos). Merecem ainda destaque os dois

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 255

12
presidentes naturais do então Estado de Mato Grosso, A Enciclopédia utiliza o nome original Bororo Akirío
onde os Bororo se encontram: o militar Eurico Gaspar Boróro Kejewu, para se referir a Tiago Marques.
13
Dutra (1946-1951) e Jânio da Silva Quadros, que este- O P. Ochoa considera P. César Albisetti, o maior
ve apenas sete meses na presidência, pois renunciou estudioso da cultura Bororo que, junto com os padres
em agosto do mesmo ano de sua eleição, 1961. Pessina e Colbacchini, iniciou um consciencioso tra-
3
A Colônia Teresa Cristina foi fundada por ordem do balho de pesquisa desta cultura, cujos resultados fi-
então governador da Província de Mato Grosso, caram perpetuados em obras como “I Bororos
Joaquim Galdino Pimentel. Orientali Orari Mugudoge del Mato Grosso (Brasile)”,
4
Azzi (2000, p. 41-42) afirma textualmente: “Uma das mais tarde traduzido ao Português, e a Enciclopedia
razões pelas quais retardou-se por alguns anos a im- Bororo, publicada em colaboração com o P. Ângelo J.
plantação da obra salesiana no Brasil foi a fidelidade Venturelli.
às diretrizes romanas. A autoridade da Santa Sé era 14
A real distância entre Santa Terezinha e Nova
acatada por Dom Bosco com grande respeito”. Xavantina é de 130 km, aproximadamente.
5
Seria exaustivo enumerar os muitos trabalhos publi- 15
As dificuldades de comunicação eram também co-
cados sobre os Bororo. À guisa de amostragem, cf. muns entre centros urbanos da Província de Mato
Albisetti e Venturelli, 1962, p. 1037-1046; Viertler, Grosso e outras cidades do Brasil. O Dr. Luís Philipe
1991, p. 219-221; Novaes, 1986, p. 235-242. P. Leite referiu ao P. João Baptista Duroure um
6
Em 1883 fundaram o Colégio Santa Rosa, em Niterói. episódio que ilustra bem este problema: “proclama-
Em 1885 fundaram o Liceu Sagrado Coração de Jesus, da a República a 15 de novembro de 1889, Cuiabá
em São Paulo. Em 1890 fundaram o Colégio São Joa- comemorou em pleno regime republicano, no dia 2
quim, em Lorena. Em 1982 fundaram o Lyceu de Artes de dezembro, o aniversário do Imperador, já destro-
e Offícios, em Campinas. nado.”
7
De autoria do próprio Dom Bosco, este método 16
Carta ao Superior Geral dos Salesianos, P. Miguel
educativo é conhecido como Sistema Preventivo. Rua, em 5 de Junho de 1902. In: Catholic Readings.
8
O P. Ochoa dividiu seu trabalho com os depoimentos São Paulo, 1937, p. 108-109. Eis uma síntese do texto
de Frederico Coqueiro em 30 capítulos, e numerou do P. Bálzola: “estamos um pouco abatidos e achamos
os parágrafos de cada capítulo de modo sequencial. que seja em consequência de privações e da muita
Assim, para facilitar a localização do texto citado na humidade que apanhamos nos quatro meses que
língua Bororo, citaremos primeiro o capítulo ao qual dormimos, quasi ao ar livre [...]. Quem pensa nos
nos referimos usando o algarismo romano, separa- sanguinolentos massacres que se effectuaram no ano
do por uma vírgula do número cardinal que indica o passado entre estes índios e alguns não índios, quem
parágrafo e o número da página correspondente na sabe quanta sêde de vingança alimenta o coração de
versão em português. Por exemplo, a citação IX, par. um selvagem e reflecte nas condições que nos acha-
5, 338: se refere ao capítulo nono do livro, parágrafo mos [...], poderá facilmente comprehender quanta
quinto deste capítulo, na página trezentos e trinta e felicidade tenha sido a nossa de não termos tomado
oito que já pertence à versão desta obra em português. contacto ainda com os selvagens. [...] Há dois ou três
Os textos que precedem os capítulos, como Comen- dias que vemos do lado do norte fogaréos acesos,
tário, Apresentação e Introdução serão citados ape- claro indício que os índios estão se avisinhando; [...] a
nas com a indicação da página. fumaça chega até nós... Como será o encontro? [...] a
9
O missionário salesiano Mário Bordignon, por carta, poucas horas de distancia de nós, no ponto mais
apontou-me alguns limites das Memórias de intrincado da floresta, estavam muitos índios fazen-
Coqueiro. Em síntese, Bordignon diz que Coqueiro do bacururú, isto é: gritavam, cantavam, dançavam,
“omite umas questões sérias da cultura bororo tais o que quer dizer: uma orgia selvagem. O encontro
como: o papel do Bari-pagé para agradar ou afastar o era portanto imminente”.
bope – espíritos do mal; o infanticídio por sonho 17
Cf. o comentário deste encontro em Catholic
agoureiro, os abortos, os contraceptivos; o jorubo- Readings. São Paulo, 1937, p. 111.
veneno; o mori – a vingança. O Coqueiro me confes- 18
O critério adotado para citar este trabalho bilíngue é
sou, em conversa informal, que várias aldeias, espe- o mesmo adotado com as “Memórias de Frederico
cialmente no Pantanal, acabaram porque os bororo Coqueiro”. Quanto ao Ritual da Nominação, cf. tam-
se mataram entre si. Com isso, não quero subestimar bém: Albisetti e Venturelli, Enciclopédia Bororo, v.
a cultura bororo, quero dizer que o missionário en- I, 624-627. Cf. ainda: Ochoa, Meruri na Visão de um
controu uma cultura com seus lados bons e ruins Ancião Bororo, XIX, par. 1-8, 430-442.
como toda cultura tem.” 19
Cf. também Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização:
10
O P. Ochoa publicou os depoimentos de Frederico a integração das populações indígenas no Brasil mo-
Coqueiro em Bororo e também em português, com a derno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 94.
seguinte ressalva: “Achamos que este texto poderia 20
A título de exemplificação, o P. José Pessina, no con-
ser interessante também para as pessoas que desco- tato direto com os índios, pesquisou “os sons, as pa-
nhecem a língua Bororo, pelo que decidimos lavras, o significado” e publicou em 1908 o livro
transcrevê-lo para o português, mesmo sabendo que intitulado: “Elementos de Gramática e Dicionário da
isso diminuiria muito o encanto do texto original Língua dos Bororo-Coroados de Mato Grosso”. O P.
Bororo”. Antonio Colbacchini aprofundou o estudo dos costu-
11
Segundo nota esclarecedora n. 14 do P. Ochoa, mes Bororo e publicou vários livros nesta área:
Coqueiro “Pensa nos Xavante que, ainda não Grammatica dei Bororos-Orarimugudoge (sem data);
contactados, começam a dar sinal de presença nesses A Tribu dos Bororo (1919); I Bororo Orientali
lugares”. “Orarimugudoge” del Mato Grosso (1925); À Luz do

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256 Nelson Gil Tolentino

Cruzeiro do Sul. Os Índios Borôros-Orari do Planal- em Etnologia Indígena e Antropologia da Imagem.


to Oriental de Mato Grosso e a Missão Salesiana (1939); Além de Professora de Antropologia, é tambem Chefe
e em co-autoria com o P. César Albisetti, a obra: Os do Departamento de Antropologia e Professora de
Bororo Orientais Orarimogodógue do Planalto Antropologia na Universidade de São Paulo. Entre
Oriental de Mato Grosso (1942). suas publicações sobre os Bororo, merecem desta-
21
“De poucos grupos indígenas do Brasil possuímos que: Jogo de espelhos: imagens da representação de
descrições etnográficas bastante completas para um si através dos outros (1993); Mulheres, homens e he-
conhecimento satisfatório das respectivas culturas róis: dinâmica e permanência através do cotidiano
tribais. Entre as exceções estão os Bororo, a cujo estudo da vida Bororo (1986).
30
se vêm dedicando há mais de meio século os Padres O missionário salesiano P. Gonçalo Alberto Ochoa
Salesianos. [...] A transcrição dos textos, feita com o Camargo vive, há mais de quarenta anos, com os
devido rigor, acompanhada de cuidadosa tradução e Bororo de Meruri. Fala fluentemente a língua Bororo.
enriquecida com notas explicativas, testemunha bem No campo da antropologia, em tempos recentes, foi
a atitude científica dos autores desta obra, que será quem melhor documentou elementos da cultura
acolhida pelos especialistas como documento fide- Bororo trabalhando junto com os anciãos da tribo.
digno”: Egon Shasen, Apresentação in César Albisetti Entre suas publicações destacam-se: Meruri na visão
and Ângelo Jayme Venturelli, Enciclopédia Bororo, de um ancião Bororo: memórias de Frederico Co-
v. II, Lendas e Antropônimos (Campo Grande: Mu- queiro (2001); O processo evolutivo da pessoa Bororo
seu Regional Dom Bosco, 1969). (2001); BAKARU MAIWU: Novo Testamento em Lín-
22
Esta afirmação reflete o parecer oral que colhi, re- gua Bororo (1992); História mítica Bororo (1990).
31
centemente, do coautor da Enciclopédia Bororo, o P. Herman Von Ihering publicou, na Revista de Antro-
Ângelo Jayme Venturelli. pologia em 1907, um artigo em que sustentava a po-
23
Cf. também o “Despacho da Presidência do Estado sição de que os índios “são um impecilho para a colo-
de Mato Grosso, Cuiabá 7/11/1905, no Livro núme- nização das regiões do sertão que habitam, parece
ro 7 de Títulos e Domínios, Folhas 174 e 176". que não há outro meio de que se possa lançar mão
24
Cf. os Decretos Oficiais do Governo Federal: “Decre- senão o seu extermínio”: cf. CASTILHO, 2000, p. 88.
32
to 76.999/76 de Demarcação” e “Decreto 94014/87 de Cf. também Castilho, 2000, nota 20, p. 66.
33
Homologação”. No XXVI Congresso de Americanistas realizado na
25
Cartas do P. Miguel Rua ao Diretor da Missão entre Áustria (Viena) em 1908, o representante brasileiro
os Bororo in Antonio da Silva Ferreira, La missione Ignácio Batista de Moura discursou: “quanto aos ín-
fra gli indigeni del Mato Grosso. Lettere di Don dios, havia poucos dignos de estudo e compaixão, e
Michele Rua 1892-1909, Publicação da Piccola Biblio- arriscava dizer que nos próximos 50 anos esse povo
teca dell’Istituto Storico Salesiano, Roma: Ed. LAS, iria desaparecer sem deixar vestígios.” Este discurso
2000, p. 1-130. Cf. também CASTILHO, 2000, p. 77-78. foi publicado no Rio de Janeiro pelo Jornal do Co-
26
O mito da “terra sem males” é próprio do povo mércio, no dia 26 de outubro de 1908. Cf. CASTILHO,
Guarani. No imaginário desses índios, a “terra sem 2000, p. 86-87.
34
males” é um lugar paradisíaco, onde “as plantas nas- A Colônia Teresa Cristina foi fechada para a ação
cem por si próprias, a mandioca já vem transformada dos salesianos. De acordo com depoimento por carta
em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. do missionário salesiano Mário Bordignon, o governo
As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem mor- montou nesta Colônia um enorme galpão com várias
rem e aí não há sofrimento”: Conferência Nacional máquinas movidas a vapor e forçou, por muitos anos,
dos Bispos do Brasil (CNBB), Fraternidade e Povos alguns Bororo a trabalharem ali sob o comando se-
Indígenas – Por uma Terra sem Males. Campanha da vero do S. P. I.
35
Fraternidade 2002. São Paulo: Editora Salesiana Dom “Quanto a certi usi che hanno codesti selvaggi,
Bosco, 2002, n. 19, p. 12. specialmente in torno ai loro morti, procurate di non
27
O missionário salesiano Irmão Mário Bordignon tam- disprezzarli.” Giovanni Balzola, Fra gli Indi del
bém viveu por 13 anos consecutivos com os Bororo Brasile. Note Autobiografiche e Testimonianze
de Meruri. Continua ligado a eles. O povo Bororo Raccolte da D. A. Cojazzi. Torino: Società Editrice
introduziu-o na tribo concedendo-lhe o nome de Internazionale, 1932, p. 120.
36
ENAWURÉU. Publicou vários livros. Dentre eles Referindo-se a um relatório do próprio P. Antonio
merecem destaque: Róia e Baile: mudança cultural Malan, intitulado “Das Nossas Missões”, publicado
Bororo (2001); BOE ENOGIEGIDAE BAREGE EIE: tex- pelo Boletim Salesiano em outubro de 1909, p. 257-
to escolar de zoologia segundo a cultura Bororo (1988); 259.
37
Os Bororo na história do Centro-Oeste brasileiro Eis a afirmação original do P. Colbacchini: “ci pareva
(1986). impossibile il poter pensare ad un villaggio di
28
Renate Brigitte Vietler é antropóloga especializada selvaggi senza questa capanna centrale; e ci sembrava
na área da Etnologia Indígena, professora aposenta- più facile che essi abbandonassero la missione a
da da Universidade de São Paulo. Entre suas publica- questo loro inviolabile recinto”: cf. Antonio
ções sobre os Bororo, destacam-se: A refeição das al- Colbacchini, “Il Ciaco Paraguayo e le sue Tribù”, in
mas: uma interpretação etnológica do funeral dos Missione Salesiane 1925. Torino: Società Editrice
índios Bororo – Mato Grosso (1991); A duras penas: Internazionale, 1925, p. 105. Citado em VIETLER,
um histórico das relações entre índios Bororo e “civi- 1991, p. 77.
38
lizados” no Mato Grosso (1990); As aldeias Bororo: Mário Bordignon confirmou-me por carta que: “a
alguns aspectos de sua organização social (1976). presença do branco foi crescendo sistematicamente
29
Sylvia Caiuby Novaes é antropóloga especializada ao ponto de querer se transformar em cidade em 1960,

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Ética Bororo: a sobrevivência de um povo 257

com o nome de Brunópolis. Repetindo a história do um papel muito importante: Pe. Ângelo Venturelli,
surgimento das cidades do Brasil, havia correio, es- Pe. Ochoa, Pe. Rodolfo, etc., envolvendo inclusive os
cola, polícia, igreja, pensão que era uma zona onde as bororo. O cacique Eugênio Rondon participava das
meretrizes eram as bororas. O Pe. Paulo Mohr acabou discussões do CIMI e assinava os documentos, o mes-
com ela. Com o aumento dos brancos os bororo foram mo fazendo o filho dele Lourenço Rondon que em
progressivamente diminuindo até que o Pe. Falco, 1974 coordenou a 2 a Assembléia de caciques do Brasil
antes de tomar posse, resolveu limpar a área, em em Meruri”.
44
1966". Em 1969, apareceram no exterior denúncias sobre o
39
A primeira lei sobre a obrigatoriedade da língua genocídio dos índios no Brasil, inclusive com fotos
portuguesa nas escolas foi promulgada pelo Marquês que documentaram torturas. Em fins de 1971, equipes
de Pombal em 1757. Ao publicar esta lei, o Marquês da FAB e da FUNAI tiveram de resgatar de helicópte-
de Pombal faz a seguinte afirmação: “Procura subju- ro os índios Nambiquara, dispersos pelo vale do rio
gar, através da língua, os povos indígenas e africa- Guaporé (MT). Seu território foi, a partir de 1968,
nos, livrando-os da barbaridade de seus costumes.” leiloado entre firmas colonizadoras e agropecuárias,
Na Constituição de 1934, no Governo de Getúlio e isso mediante certidões negativas expedidas pela
Vargas, é introduzido um capítulo específico para a FUNAI, atestando que não havia índios no vale. Na
educação, na alínea d do § Único do Artigo 150, que época, morreu toda a população Nambiquara abaixo
determina que o ensino seja ministrado em idioma de 15 anos. Vendo aquilo, um médico da Cruz Ver-
pátrio. Em 20 de dezembro de 1961, é promulgada A melha Internacional declarou, em 1973: “A vida des-
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 4 ses índios é uma vergonha não só para o Brasil, mas
024/61, a qual estabelece no Título VI – Da Educação para a humanidade”: CNBB, Os Povos Indígenas, 24.
do Grau Primário, Capítulo II – Do Ensino Primário, Pressionado pela ação da Igreja e pela repercussão
Art. 27 que “O ensino primário é obrigatório a partir internacional destes fatos, o presidente militar Emílio
dos sete anos e só será ministrado na língua nacional Médici promulgou o Estatuto do Índio, no dia 19 de
[...]”: FAULSTICH, Edenilde, Planificação linguística dezembro de 1973, através da Lei 6001.
45
e problemas de normalização, [s.d.]. Disponível em: Pronunciamento do Presidente da República Emílio
<http://www.oslo.sintef.no/portug/ Médici – Mensagem n. 530/73, citado pela CNBB
Faulstich.html>. Acesso em: 31 jul. 2002. (CNBB, 1985, p. 25).
40 46
O Bororo Benjamim Tugure Etúo, que fala muito No “Boletim Informativo – Especial, Junho de 1976"
bem tanto o Bororo quanto o português e é neto do existe uma coletânea intitulada “Imprensa”, que re-
famoso Tiago Aipoboreu, referindo-se à cultura gistra uma síntese de artigos de jornais sobre o assas-
Bororo em Meruri neste período, relatou no seu de- sinato do Bororo Simão e do P. Rodolfo Lunkenbein.
47
poimento: “Aconteceram várias mudanças neste pon- Apresentação de Edir Pina de Barros.
48
to, especialmente pelos missionários. Antigamente A atual Escola de Meruri foi a primeira a ser reconhe-
não podia cantar BAKORORÓ aqui na missão”: cida oficialmente no Brasil como Escola Indígena, pelo
BORDIGNON, 2001, p. 146. Decreto Estadual n. 51/75, publicado no Diário Oficial
41
O avanço sistemático da tuberculose, em todas as em 23/5/75, sendo seu Regimento aprovado pelo
aldeias, chegou a ameaçar o desaparecimento em Parecer n. 029/02/1981. Cf. AGUILERA, 2001, p. 72-
massa dos Bororo, nas décadas de 50 e 60. 73.
42 49
Os salesianos sempre envolveram voluntários leigos Posfácio de Maria Vicentina de Paula do Amaral
na sua ação missionária entre os Bororo. O Dr. Geral- Dick.
do Chaves Salomon, médico especialista da Univer-
sidade de São Paulo, trabalhou gratuita e ininterrupta- Referências
mente por onze anos em Meruri para erradicar a tu-
berculose. O Dr. Geraldo e sua esposa Esther “todos AGUILERA, Antonio Hilário. Currículo e cultura entre
os anos durante os meses de julho, dezembro e janei- os Bororo de Meruri. Campo Grande: UCDB, 2001.
ro, deslocavam-se para as Missões Salesianas de MT, ALBISETTI, Cesar; COLBACCHINI, Antonio. Os Bororo
trazendo todo o material de que precisavam para seu Orientais Orarimogodógue do Planalto Oriental de Mato
trabalho, inclusive os remédios para tratamento das Grosso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
pessoas afetadas pela doença e material para radio-
grafia”: Ochoa, Meruri na Visão de um Ancião Bororo, ALBISETTI, Cesar; VENTURELLI, Angelo Jayme.
XXVIII, nota 143, 570. Entre outros leigos, merece Enciclopédia Bororo. Campo Grande: Museu Regional
uma referência especial a voluntária Agripina Xavier, Dom Bosco, 1962. v. I: Vocabulários e Etnografia.
que chegou à missão de Meruri, em 1939. Ela é notá- ______. Enciclopédia Bororo. Campo Grande: Museu
vel por sua bondade entre os Bororo. Agripina já Regional Dom Bosco, 1969. v. II: Lendas e Antropônimos.
comemorou 73 anos de idade e 62 de permanência
AZZI, Riolando. A obra de Dom Bosco no Brasil. Barbacena:
em Meruri, como voluntária leiga: cf. OCHOA, 1987,
Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa, 2000.
XXVII, nota 114, p. 523.
43 v. I: A implementação da obra salesiana 1883-1908.
CIMI – Setor de Documentação, Ata de Criação do
Conselho Indigenista Missionário – Brasília, 23 de BALDUS, Herbert. Ensaios de etnologia brasileira. São
Abril de 1972. Em depoimento, por carta, o missio- Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. Publicação
nário salesiano Mário Bordignon recomendou-me: da Biblioteca Pedagógica Brasileira, v. 101.
“Na mudança de atitude dos bororo em resolver ter BALZOLA, Giovanni. Fra gli Indi del Brasile. Note
filhos de novo, não ter medo de destacar o nascimen- Autobiografiche e Testimonianze Raccolte da D. A.
to do CIMI, em 1972, no qual os salesianos tiveram Cojazzi. Torino: Società Editrice Internazionale, 1932.

INTERAÇÕES, Campo Grande, v. 10, n. 2 p. 235-258, jul./dez. 2009.


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