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HISTÓRIA DO

BRASIL COLÔNIA

Caroline Silveira Bauer


Povos indígenas e seus
aspectos culturais
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar a população indígena presente no território brasileiro antes


da chegada dos portugueses.
 Descrever a estrutura social e cultural dos povos indígenas no
território ocupado pelos portugueses nos primeiros 100 anos
pós-colonização.
 Analisar o modo como o chamado “processo civilizatório europeu”
alterou o sistema social e cultural dos povos indígenas no Brasil
colônia.

Introdução
Ao chegarem à América, os portugueses estabeleceram um sistema
classificatório bastante simplista para se referir às populações nativas,
o que criou um binarismo extremamente artificial: os tupis, aqueles
indígenas “amigos” dos europeus, e os tapuias, os inimigos ou “desco-
nhecidos”. Essa divisão reuniu em duas categorias uma variedade de
etnias que, por sua vez, possuíam distintas culturas, hábitos e práticas
sociais. Esses foi um dos primeiros atos de colonização da população
indígena que ocupava o território americano em que Portugal realizou
sua expansão.
Neste capítulo, você vai conhecer as principais etnias que ocupavam o
território hoje pertencente ao Brasil na América, sua cultura, seus hábitos
e suas práticas sociais. Estudará, também, de que forma o contato com os
europeus alterou a vivência dos indígenas e de que forma eles reagiram
a esse processo, seja pela assimilação ou pelo confronto.
2 Povos indígenas e seus aspectos culturais

1 Os povos originários da América portuguesa


Existem diferentes teorias sobre a chegada dos seres humanos ao território
americano, com diferenças quanto às datas (algumas afirmam que a ocupação
do território se iniciou 40 mil anos atrás) e quanto as rotas de entrada (algumas
defendem a passagem pelo Estreito de Bering, outras a migração de povos
polinésios, e ainda outras a conjugação de ambas). O território que viria a
ser o Brasil teria sido ocupado há 12 mil anos, e novas pesquisas realizadas
na Amazônia apontam registros de sociedades complexas e sofisticadas do
ponto de vista tecnológico, com desenvolvimento de cerâmicas e uma forte
organização social em cacicados (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

As investigações posteriores, se não mantêm um acordo completo, questionam


as antigas hipóteses de povoamento, baseadas na pressuposição de existência
de sociedades pequenas e simples, de caçadores e coletores, caracterizadas
por uma alta mobilidade e o uso de materiais perecíveis, como cestarias
(OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 21).

Em relação aos povos que ocupavam o território que viria a ser a América
portuguesa, existiam aqueles que ocupavam a região dos Andes e da Amazônia,
os povos da região do Xingu e do cerrado e os povos do litoral. Os indígenas
que ocupavam a região litorânea, majoritariamente tupis-guaranis, possuíam
certa homogeneidade cultural e linguística, e foram os primeiros a estabelecer
contatos com os portugueses.

Com base em algumas diferenças em línguas e cultura, podemos distinguir dois


blocos subdividindo o conjunto tupi-guarani: ao sul, os Guarani ocupavam as
bacias do rios Paraná, Paraguai Uruguai e o litoral, desde a Lagoa dos Patos até
Cananéia (SP); ao norte, os Tupinambá dominavam a costa desde Iguapé até,
pelo menos, o Ceará, e os vales dos rios que desaguam no mar. No interior, a
fronteira recairia entre os rios Tietê e Paranapanema (FAUSTO, 2010, p. 69).

Nessa ocupação territorial, estima-se que houvesse cerca de 1.400 povos


indígenas, pertencentes a grandes famílias linguísticas — tupi-guarani, jê,
karib, aruák, xirianá, tucano — e bastante diversos cultural e socialmente
(OLIVEIRA; FREIRE, 2006) Estima-se que, no momento da chegada dos
portugueses à América, a população indígena fosse de 1 a 3 milhões de
pessoas.
Povos indígenas e seus aspectos culturais 3

Os invasores europeus, ao chegarem à América e ao iniciarem o processo de reconheci-


mento, ocupação e colonização do território, estabeleceram interações com indígenas
que compartilhavam certas características da cultura tupi-guarani. No entanto, como
afirma Monteiro (1994, p. 19):

[...] a despeito das aparências de homogeneidade, qualquer tentativa


de síntese da situação etnográfica do Brasil quinhentista esbarra ime-
diatamente em dois problemas. Em primeiro lugar, a sociedade tupi
permanecia radicalmente segmentada, sendo que as relações entre
segmentos ou mesmo entre unidades locais frequentemente resumiam-
-se a ações bélicas. [...] Em segundo, grande parte do Brasil também era
habitada por sociedades não tupi, representando dezenas de famílias
linguísticas distintas.

Para resolver esse problema, e como forma de dominação cultural, os europeus


reduziram a diversidade étnico-linguística dos indígenas brasileiros a uma classificação
binária: os tupis, considerados “bons” e os tapuias, considerados “maus”.

Na próxima seção, abordaremos mais sobre as características principais


da organização dos povos indígenas. De momento, cabe ressaltar que há entre
esses povos uma distribuição social e de posições, funções, tarefas e respon-
sabilidades que podem ser atribuídas aos indivíduos ou a grupos dentro do
próprio povo. Há grupos responsáveis pela formação dos pajés e dos xamãs,
indivíduos responsáveis pela segurança espiritual e física do povo; há aqueles
que formam os guerreiros, que dominam os conhecimentos sobre a fabricação
de armas e as técnicas de guerra; existem ainda os que se dedicam a formar os
caçadores e os pescadores e a produzir utensílios necessários para o desenvol-
vimento dessas atividades, como canoas, cerâmicas, etc. (LUCIANO, 2006).
Do ponto de vista da organização social, a ausência de poder autoritário
é mais uma característica importante dessa organização social tradicional.
Certas tarefas, responsabilidades e serviços são do encargo dos caciques, mas
eles não têm qualquer poder soberano sobre o grupo. Nesses povos indígenas,
os caciques são mais servidores do seu povo do que chefes,

[...] uma vez que são responsáveis pelas funções de organizar, articular, repre-
sentar e comandar a coletividade, mas sem nenhum poder de decisão, o qual
cabe exclusivamente à totalidade dos indivíduos e dos grupos que constituem
o povo (LUCIANO, 2006, p. 64).
4 Povos indígenas e seus aspectos culturais

E de que forma podemos conhecer esses indígenas? Carlos Fausto (2010,


p. 7) nos auxilia demonstrando quais são as principais fontes para estudarmos
os indígenas antes do contato:

Para conhecer os índios antes do Brasil, temos que recorrer às evidências


fornecidas pela arqueologia e pela linguística histórica, conhecer as descri-
ções legadas pelos colonizadores e missionários dos séculos XVI e XVII e
estudar as populações indígenas contemporâneas. [...] Quanto aos escritos
dos primeiros séculos da colonização, além de lacunares, devem ser lidos
com cuidado. É preciso interpretá-los criticamente, pois neles misturam-se os
medos e os desejos dos conquistadores, que buscam descobrir ouro, catequizar
os gentios, ocupar a terra, escravizar os nativos.

A partir dessas informações, é preciso reforçar que a história dos indígenas


não se concentra apenas ao período colonial, nem anteriormente à coloniza-
ção. Algumas etnias foram exterminadas devido à superioridade militar e
tecnológica dos colonizadores, bem como pelas doenças que foram trazidas à
América pelos europeus, mas isso não significa que os indígenas tenham sido
extintos ou que sua história esteja restrita ao período pré-colonial e colonial
(OLIVEIRA, 2010).

2 Diversidade cultural e econômica


dos povos indígenas
A diversidade cultural dos povos indígenas está diretamente relacionada às
múltiplas etnias que habitavam o território do que veio a ser a América por-
tuguesa. Se à época da conquista estimava-se a existência de 1.400 diferentes
etnias, hoje possuímos 222 povos étnica e socioculturalmente diferenciados,
que falam 180 línguas distintas (LUCIANO, 2006). Levando esse dado em
consideração, será que podemos afirmar que a língua portuguesa é a única
língua falada no Brasil?
Cada um dos povos indígenas possui formas particulares de organização
de suas relações econômicas, políticas e sociais, que refletem suas concepções
culturais. Além disso, essa organização pode ser distinta se pensamos nas
dinâmicas internas dos povos ou nas relações que estabelecem com outros
povos com os quais mantêm contato.
Povos indígenas e seus aspectos culturais 5

Como se organizam socialmente os indígenas? Luciano (2006, p. 43) assim


define a organização social de um povo indígena, lembrando, novamente,
que se trata de uma generalização, e não uma forma universal de sociedade:

Em geral, a base da organização social de um povo indígena é a família extensa,


entendida como uma unidade social articulada em torno de um patriarca ou
de uma matriarca por meio de relações de parentesco ou afinidade política ou
econômica. São denominadas famílias extensas por aglutinarem um número
de pessoas e de famílias muito maior que uma família tradicional europeia.
Uma família extensa indígena geralmente reúne a família do patriarca ou
da matriarca, as famílias dos filhos, dos genros, das noras, dos cunhados e
outras famílias afins que se filiam à grande família por interesses específicos.

Ao contrário do que afirmava o senhor de engenho português Gabriel Soares de Souza,


que escreveu que os indígenas não possuíam nem fé, nem lei, nem rei, os povos que
habitam a América portuguesa possuíam complexas relações sociais. Como afirmado
anteriormente, as relações sociais mais importantes para os povos indígenas eram
as de parentesco e de família estendida. Porém, eram igualmente importantes as
relações de aliança, estabelecidas a partir de necessidades estratégias e momentâneas,
no compartilhamento de interesses recíprocos. Como afirma Luciano-Baniwa (2006,
p. 45): “[...] esses interesses frequentemente estão relacionados à troca de mulheres,
ao compartilhamento de espaços territoriais privilegiados em recursos naturais, aos
interesses comerciais (trocas) ou às alianças de guerras contra inimigos comuns”. As
relações de aliança, dessa forma, podem ser consideradas como estruturantes da
coletividade indígena.

Assim como a organização social, a economia e a política dos povos indí-


genas também expressam uma concepção de mundo, uma cosmologia organi-
zada a partir de mitos, ritos e saberes, transmitidos de geração para geração.
“As mitologias e os conhecimentos tradicionais acerca do mundo natural e
sobrenatural orientam a vida social, os casamentos, o uso de extratos vegetais,
minerais ou animais na cura de doenças, além de muitos hábitos cotidianos”
(LUCIANO, 2006, p. 43).
6 Povos indígenas e seus aspectos culturais

Quanto à sua organização política, ela se baseia na organização social, com


o estabelecimento de grupos hierárquicos chamados sibs, fratrias ou tribos:

Fratria ou sib é uma espécie de linhagem social dentro do grupo étnico, que
está relacionada direta ou indiretamente à origem do povo ou à origem do
mundo, quando os grupos humanos receberam as condições e os meios de
sobrevivência. Os sibs ou fratrias são identificados por nomes de animais,
de plantas ou de constelações estelares que, por si só, já indicam a posição
de hierarquia na organização sociopolítica e econômica do povo. Da mesma
maneira, os nomes dados aos indivíduos indígenas estão diretamente relacio-
nados ao sib ou à fratria a que pertencem, ou seja, à posição hierárquica que
cada indivíduo ocupa dentro do grupo (LUCIANO, 2006, p. 44).

Os modos de vida variam de povo para povo e, como dito anteriormente,


dependem as relações que os indígenas estabelecem com o meio natural que
os cerca e com o sobrenatural. Assim, alguns indígenas vivem nas margens
dos rios, outros, no interior das florestas, e há ainda os que habitam as regiões
montanhosas. “Alguns deles vivem em grandes malocas comunitárias, outros
habitam aldeias ovais compostas por várias casas ou pequenas malocas, ou
ainda casas separadas e dispersas ao longo dos rios e das florestas” (LUCIANO,
2006, p. 44). Essa diversidade também é expressa nas práticas econômicas:
alguns povos indígenas praticam a caça, outros a pesca, ou ainda a agricultura
e a coleta de frutas. Às vezes, mais de uma atividade econômica é desenvolvida
ao mesmo tempo.
Os indígenas que ocupavam o litoral atlântico da América do Sul pratica-
vam a agricultura de coivara (em que se derruba a mata nativa, queima-se o
terreno e plantava-se por um determinado período, com rotação de culturas).
Além disso, caçavam e pescavam. “Entre os Guarani, o milho parece ter sido
o cultivar de base, enquanto os Tupinambá enfatizavam a mandioca amarga
para produção de farinha. Excelentes canoeiros, ambos faziam uso intenso
dos recursos fluviais e marítimos” (FAUSTO, 2010, p. 69).
A disponibilidade de recursos para subsistência influencia diretamente as
relações sociais estabelecidas interna e externamente:

Povos que vivem em terras mais extensas e abundantes em recursos natu-


rais têm a possibilidade de uma vida mais rica, baseada em valores como a
solidariedade, a reciprocidade e a generosidade. Ao passo que os povos que
ocupam terras reduzidas e com recursos naturais escassos vivem conflitos
internos maiores, o que dificulta muitas vezes as práticas tradicionais de
reciprocidade e o espírito comunitário e coletivo (LUCIANO, 2006, p. 45).
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De modo similar, as relações de parentesco e as alianças também influen-


ciam na questão econômica, principalmente na distribuição e no consumo dos
produtos obtidos com as práticas agrícolas, a caça e a pesca.

Quando um caçador consegue uma caça, sua obrigação é distribuí-la em


primeiro lugar entre os membros da sua família extensa e somente satisfeita
essa obrigação é que ele poderá atender a outros membros ou mesmo à co-
munidade inteira (LUCIANO, 2006, p. 46).

Por isso, as cerimônias, as festas e os rituais tinham uma importância muito


grande para os povos indígenas. Essas celebrações estão diretamente relacionadas
às relações de parentesco e às alianças estabelecidas entre os grupos. Assim,
serviam para comemorar conquistas e vitórias, como uma boa colheita, uma
guerra ou o sucesso do pajé em impedir um castigo dos inimigos. Ser convidado
ou não para festas e cerimônias revela explicitamente quais são as fronteiras de
amizade ou inimizade entre grupos ou povos, segundo uma lógica constante de
reciprocidade: “aos amigos, cabe a reciprocidade da amizade; aos inimigos, a
reciprocidade da inimizade e a consequente vingança” (LUCIANO, 2006, p. 45).
Na impossibilidade de abordarmos todas cerimônias, festas e rituais in-
dígenas, falaremos um pouco mais sobre os rituais antropofágicos, que tanto
chocaram os colonizadores europeus. O pesquisador Carlos Fausto (2010, p.
79) relata a importância desse ritual para os povos indígenas que o praticavam:

A execução ritual podia tardar vários meses. Nesse intervalo, o cativo vivia na
casa de seu captor, que lhe cedia irmã ou filha como esposa; sua condição só
se alterava às vésperas da execução, quando era reinimizado e submetido a um
rito de captura. Por fim, era morto e devorado. A execução era um momento
privilegiado de articulação das aldeias em nexos sociais maiores e estava ligada
a concepções sobre o prestígio, a reprodução humana e o destino póstumo.
[...] A guerra e o ritual canibal eram dispositivos cruciais na articulação dos
conjuntos multicomunitários tupinambá, ocupando uma posição que, em
outros sistemas nativos, caberia à circulação de bens de prestígio e utilidades.

É preciso lembrar que nem todos os indígenas eram antropofágicos, mas


que esse ritual era extremamente importante para uma série de etnias, tais
como os caetés, os potiguaras, os tamoios, os tupinambás e os tupiniquins.
A multiplicidade de povos indígenas está diretamente relacionada à diver-
sidade cultural dessas nações, o que é expresso por diferentes relações com a
paisagem natural e o sobrenatural, com as diversas organizações econômicas,
políticas e sociais, além de sua cultura material e de seus hábitos cotidianos.
8 Povos indígenas e seus aspectos culturais

3 Assimilações e confrontos culturais


Como vimos, os indígenas não formavam um grupo coeso, e, portanto, res-
ponderam de formas distintas ao contato com os europeus. Trataremos neste
tópico, de forma geral, das consequências culturais e sociais para os povos
indígenas da interação com os colonos portugueses e com os padres jesuítas.
Antes de começarmos, é necessário fazer duas observações: primeira-
mente, em relação ao que os europeus compreendiam por “civilização” e
por que entendiam que seu objetivo seria “civilizar” os indígenas, o que
nos explicita o etnocentrismo e a lógica racista do colonialismo. Depois,
que nem toda a interação se deu pela aculturação ou extermínio indígena,
tendo diversos povos assimilado características europeias como modifica-
ções culturais — lembrando que a cultura não é algo estático — e como
possibilidade de sobrevivência.
“Civilizar” os indígenas foi visto pelos europeus como uma forma de
inseri-los nas práticas e nos valores compartilhados pelos colonizadores. De
acordo com esses preceitos civilizacionais, havia, portanto, duas formas de
compreender a “humanidade” dos indígenas americanos:

a) Eram seres humanos que estavam degradados, vivendo como selvagens e


canibais, mas possuíam todo o potencial para se tornarem cristãos. [...] b) Eram
seres inferiores, animais que não poderiam se tornar cristãos, mas podiam ser
escravizados ou mortos (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 28).

Assim, é importante pensarmos sobre o conceito de cultura. A “cultura”


não é algo estático e, por isso, expressões como “aculturamento” não fazem
sentido para compreendermos a interação entre os indígenas e os europeus.

Fazem parte de qualquer dinâmica cultural os intercâmbios e as interações


com outras culturas, quando acontecem perdas e ganhos de elementos cul-
turais, inclusive biológicos, mas que não resultam em perdas das identidades
em interação. Dito de outra forma, não existe cultura estática e pura, ela é
sempre o resultado de interações e trocas de experiências e modos de vida
entre indivíduos e grupos sociais (LUCIANO, 2006, p. 49).

A partir dessa compreensão, é importante destacarmos que os indígenas


empreenderam diferentes formas de resistência à dominação cultural e física
dos colonizadores. Essas resistências poderiam ser explícitas, por meio de
confrontos, guerras, destruição e fugas, ou mais veladas, a partir de estratégias
e táticas cotidianas, além dos deslocamentos pelo território.
Povos indígenas e seus aspectos culturais 9

A história demográfica dos índios desde 1500 não deve ser compreendida
apenas como uma sucessão de doenças, massacres e violências diversas.
A dispersão populacional [...] possibilitou diversas reações dos povos indíge-
nas ao contato com os colonizadores, entre as quais a promoção de grandes
deslocamentos para escapar à escravidão e às consequências das moléstias
trazidas pelos europeus (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 24).

O importante é que não reduzamos a interação entre indígenas e coloni-


zadores ao binômio extermínio e mestiçagem, reforçando a criatividade e o
dinamismo dos povos indígenas ao responderem ao contato (OLIVEIRA;
FREIRE, 2006).

As razões dos conflitos com os indígenas foram múltiplas, [...] dentre elas, a
violação dos territórios indígenas — com o deslocamento da fronteira agrí-
cola e demográfica para a implantação da lavoura de cana, engenhos e outras
atividades econômicas — e a instalação de novas formas compulsórias de
relações de trabalho, que violavam a divisão de trabalho, a cultura indígena
e sua liberdade (PARAÍSO, 2011, p. 3).

Assim, confrontos com colonos ocorriam quando estes buscavam escra-


vizar as populações indígenas como mão-de-obra, ou mesmo aniquilá-las,
a fim de dominar seus territórios, caso não se submetessem às formas de
trabalho impostas. É preciso, no entanto, ressaltar que não se tratava somente
da imposição de uma nova forma de organização do trabalho, mas, para os
indígenas, de uma nova forma de viver a partir de outra visão de mundo, que
contrariava substancialmente as suas formas de organização e sua liberdade.
Muitas vezes, o que percebiam no comportamento dos invasores era:

[...] disputa pelos alimentos, a destruição do ecossistema, a imposição de


uma convivência regida pela hierarquia social e política e os novos padrões
comportamentais e de formas de produção, introdução de doenças infec-
tocontagiosas e a apropriação das terras, mulheres e das riquezas naturais
(PARAÍSO, 2011, p. 7).

Na imposição do trabalho compulsório indígena, uma das principais mo-


dificações causadas pela escravidão foi não somente a alteração do regime
de trabalho livre/escravizado, mas o desrespeito às divisões de gênero na
produção agrícola. Para os indígenas tupis e tupinambás, cabia às mulheres o
cultivo da terra. Assim, os indígenas homens, ao serem submetidos ao trabalho
escravo nos canaviais, fugiam quando podiam, como forma de resistência
(OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 39).
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Com os problemas em arregimentar mão-de-obra dos indígenas tupi do litoral, os


colonizadores empreenderam expedições de apresamento no sertão (interior), realizando
“descimentos” dos indígenas capturados para os engenhos e plantações de cana locali-
zados na zona litorânea. Assim, encontraram no sertão os índios tapuias, que não eram
considerados uma opção de ideal de substituição, como afirma Paraíso (1994, p. 194):

Um conjunto de características culturais desses grupos acentuava a sua


rejeição, principalmente por serem tradicionalmente caçadores e coletores
seminômades, o que os fazia corresponder ao imaginário europeu dos
marginais: sem domicílio fixo, habitantes de espaços livres, naturais,
sem senhores ou hierarquia social e, por isso mesmo, inúteis, pois, por
não produzirem excedentes, não representavam qualquer benefício à
coletividade. Devido também a essas características, eram considerados
como mais ameaçadores à segurança, estando além do compreensível, por
não se enquadrarem no estatuto e na taxionomia social vigente na Europa.

Em relação aos padres jesuítas, na tentativa de doutrinar os indígenas na reli-


gião católica, houve um confronto entre o discurso missionário e as figuras e as
práticas empregadas pelos curandeiros e feiticeiros indígenas — os caraíbas, pajés
ou xamãs, que estabeleciam a ligação entre o mundo espiritual e o mundo físico.
Nas aldeias ou nos colégios, os indígenas eram influenciados a abandonar
certas práticas culturais abominadas pelos padres dentro de seus valores
europeus: a antropofagia, a nudez e a poligamia. No âmbito da estratégia
missionária, intérpretes eram adotados, chamados de “línguas”. Além disso,
os colonos se dedicavam ao aprendizado do idioma indígena, enquanto pro-
moviam o ensino do evangelho às crianças por meio da escrita e da leitura.
Nos “colégios de meninos”, os curumins eram educados pela música sacra
e por práticas litúrgicas, “utilizando os jesuítas instrumentos pedagógicos
como catecismos, vocabulários e gramáticas elaboradas com o auxílio de
intérpretes” (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 47).
A nudez, principalmente a nudez feminina, era a algo a ser combatido, em
função dos “maus sentimentos” que despertava nos homens. A vestimenta
foi um tema de constante negociação entre os indígenas aldeados e os padres
jesuítas, pois, se houvesse uma exigência no uso de roupas, corria-se o risco
de os indígenas fugirem ou se revoltarem.
Em relação à dominação cultural e religiosa, os indígenas muitas vezes
resistiam negando o aprendizado, abandonando os aldeamentos e retornando
Povos indígenas e seus aspectos culturais 11

para seus territórios originais. Seu maior problema não era com o cristianismo,
“mas a dificuldade em abandonar seus costumes mágicos e religiosos, regras
de parentesco (poligamia e outros)” (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 47).

FAUSTO, C. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.


LUCIANO, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no
Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, 2006. (Coleção Educação para Todos; 12).
MONTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
OLIVEIRA, J. P. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico. Anuário
Antropológico, 2009 – 1, p. 11–40, 2010.
OLIVEIRA, J. P.; FREIRE, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília: Minis-
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PARAÍSO, M. H. B. De como se obter mão-de-obra indígena na Bahia entre os séculos
XVI e XVIII. Revista de História, n. 129–131, p. 179–208, 1994.
PARAISO, M. H. B. Revoltas indígenas, a criação do governo geral e o regimento de
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Leituras recomendadas
ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
CUNHA, E. T. Índio no Brasil: imaginário em movimento. In: NOVAES, S. C. et al. (Org.).
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RAMINELLI, R. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira.
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12 Povos indígenas e seus aspectos culturais

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