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São Luís – MA
2020
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Pretos Velhos:
Religiões Negras no Brasil e preservação de identidade1
Resumo
O presente artigo tem por objetivo delimitar as relações entre as religiões de matriz africana e
afro-indígena no Brasil e a problemática acerca da preservação da identidade sociocultural e
étnica, focando em especial na manifestação religiosa dos Pretos Velhos. Utilizando-se das
concepções teológicas bem como da historiografia acerca do tema, será analisado o campo dos
discursos e das práticas, em contraste com aquilo que fontes e textos podem exprimir. Tratando-
se de um objeto de trabalho com tantos aspectos subjetivos como cultura, religião, religiosidade
entre outros, o desafio se faz presente ao passo em que a união de elementos distintos é capaz
de trazer à tona perspectivas ainda pouco exploradas.
Palavras-Chave: Candomblé. Discurso. Pretos Velhos. Prova. Umbanda.
Abstract
The present article aims to delimit the relations between african-brazilian and afro-indigenous
religions in Brazil and the issue of sociocultural and ethnic identity preservation, focusing
especially in the religious manifestation of Pretos Velhos. Using the theological conceptions as
well as the historiography on the subject, it will be analyzed the discourse and practices, in
contrast to what sources and documents can express. Since the object of work has significantly
subjective aspects such as culture, religion, spirituality, and more, the challenge is present even
though the union of distinct elements can bring to light less explored perspectives.
Keywords: Candomblé. Pretos Velhos. Proof. Speech. Umbanda.
Introdução
1
Artigo entregue para fins de obtenção de nota na disciplina Formações sociais atlânticas, ministrada pelo Prof.
Josenildo de Jesus Pereira (DEHIS /UFMA).
2
Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrando em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Matrícula:
2020107330. E-mail: danielsampaiocortez@gmail.com
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Benjamin Péret (4 de julho de 1899 - 18 de setembro de 1959): Importante poeta surrealistas francês, bem como
militante trotskista orgânico. Influenciou outros escritores como Octavio Paz e César Moro. Quando esteve no
Brasil, falou sobre terreiros afro-brasileiros e seus rituais religiosos, compilando relatos e registro através de uma
série de artigos intitulados Candomblé e Macumba, no jornal paulistano Diário da Noite (1925-1980).
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os discursos devem ser analisados minuciosamente. Toda informação obtida necessita tanto ser
respeitada dentro de seu contexto, quanto destrinchada para uma pesquisa consistente.
Essa situação pode ser expressa como uma tentativa “civilizatória”, onde julgava-se nos
séculos da escravidão e do colonialismo que haviam dois mundos, o civilizado (branco) e o
bárbaro (não branco). Em particular, o projeto nacional brasileiro necessitava de tal divisão,
uma vez que era o país da América que mais recebera escravizados, ainda que não fossemos
uma potência colonial propriamente dita, locais onde de fato se fomentaram as teorias
racialistas.
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Ruy Barbosa de Oliveira (5 de novembro de 1849 - 1 de março de 1923): Polímata brasileiro, destacando-se as
áreas da advocacia, diplomacia, política, oratória, escrita entre outras. Quando designado por Deodoro da Fonseca,
então presidente do Brasil, como Ministro da Fazenda, teria ordenado a destruição de arquivos para evitar o
pagamento de indenizações a antigos proprietários de escravos por parte do nascente governo Federal, como atenta
o historiador Américo J. Lacombe.
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Através do olhar crítico e a problemática das fontes e escritos, a qual ainda retornaremos, é
possível discutir em termos globais a busca pela identidade e o embate no campo discursivo.
Esta situação se torna mais profunda quando se adentra o espectro particular da pesquisa onde,
sob a ótica do culto aos Pretos Velhos, há menos relatos ainda do ponto de vista documental. O
que podemos inferir de modo superficial? Tais entidades espirituais são ditos “espíritos
desencarnados de escravos, quilombolas e libertos que chegaram à velhice e possuíam grande
sabedoria”5. As manifestações dessas próprias entidades dão conta de passar esta definição
visual aos que presenciam os rituais e qualquer praticante de um templo que os cultue pode
rapidamente diferenciá-los de outras entidades. Manifestam-se nos médiuns de maneira
curvada, em geral sentados ou utilizando bengalas e apoios, são vagarosos, costumam estar
fumando algo, tendo a vista aparentemente cansada, entre outros elementos materiais como
roupas e subjetivos como trejeitos.
Mas pode-se perguntar afinal, qual a dificuldade adicional que tais entidades carregam ao
serem analisadas, tanto no aspecto geral quanto pela ótica daqueles que as cultuam? Isso se
demonstra na concepção de que tais seres espirituais promovem o discurso de que, uma vez
encarnados e vivos, participaram da malha social de seu tempo. Há, portanto, o discurso sobre
tais entidades, o discurso das próprias entidades, a historiografia sobre o período escravagista
e, finalmente, a documentação e historiografia que traz à tona as práticas religiosas em que
estão inseridas essas entidades. Permeia os discursos a preservação da identidade e a tentativa
de construção de pertencimento. Mesmo em campos teóricos parcialmente distintos, todos esses
elementos se tangenciam de modo que se torna improdutivo falar sobre um e ignorar o outro.
Trata-se de analisar todas as partes como documentos ou “provas”, de modo a juntar o quebra
cabeça que se aluvia em diversos pedaços.
Corrobora com essa ideia geral o próprio historiador Carlo Ginzburg, se referindo as
questões sobre as fontes.
Mas, ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista
sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, dependem das relações
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À exemplo, temos Pai Joaquim de Angola, Vovó Maria Conga, Vovô Cipriano das Almas, Velha Cabinda. Todos
tendo sido escravizados, libertos ou quilombolas, vindos do continente africano ou sendo descendentes daqueles
que vieram de lá. Segundo a mitologia dos ritos que os cultuam, suas manifestações apresentam traços comuns
entre si, bem como em diversos templos religiosos. Um desses traços, o mais importante para pesquisa, é a suposta
origem desses espíritos.
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Dentro da Umbanda, se oficializou mais próximo do que temos hoje o culto aos Pretos
Velhos. Estas entidades, já apresentadas anteriormente, tem características em comum, todavia
são apresentadas como seres distintos uns dos outros no que se refere a história pessoal. Todos
são vistos como indivíduos que existiram, com pertencimento e narrativa próprias. O artigo
trata de dois discursos específicos nesse campo. Aquilo que é declarado pelos praticantes da
religião em relação a essas entidades, e aquilo que as próprias entidades são capazes de
verbalizar sobre sua história.
Se há um discurso de proximidade e pertencimento, como seria possível compreender o quão
próximo as estruturas criadas no dito “Novo Mundo” são das estruturas encontradas em África.
Para isso, é preciso olhar para elementos das manifestações religiosas na África Ocidental, de
onde grande parte daquilo que as religiões negras brasileiras utilizam advém. Nas religiões
citadas até agora, é comum o elemento da possessão, onde um espirito ou Orixá6 toma controle
do corpo de um médium, praticando a dança, realizando consultas das mais variadas
(adivinhações, curas, feitiçarias, aconselhamentos). O que teríamos em África, por vez, não se
faz significantemente diferente.
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Orixás são divindades cultuadas pelos africanos da região Ocidental, principalmente pelos Iorubás. São
representados pelas forças da natureza. Olodumare, o ser supremo, os teria enviado para criar o mundo e auxiliar
a humanidade em sua caminhada. Cada um deles possui um conjunto de características e personalidade, hora
divina, hora ‘mortais’.
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Sendo as religiões negras brasileiras provenientes das africanas, é pertinente que possuam
elementos em comum. Isso por si não garante um continuísmo ou igualdade, mas demonstra
uma preservação, ou tentativa, da identidade cultural dos africanos e seus descendentes em solo
brasileiro. A descrição acima se refere a experiências mais subjetivas, ligadas ao campo das
sensações, e pode ser relativizada em determinados termos, todavia coisas mais materiais e
práticas se mostram mais ainda semelhantes, como o ‘jogo de búzios’.
Uma das formas africanas mais famosas de adivinhação, conhecida mais comumente
por seu nome ioruba, ifá, foi relatada com detalhes em uma descrição de Ajudá do início
do século XVIII. O sacerdota jogava búzios em um tabuleiro especialmente desenhado,
enquanto pedia ao outro mundo que influenciasse o resultado desde evento para
permitir que o adivinho respondesse a perguntas. (THORTON, John. 1992 p.318)
Ainda hoje, em quase qualquer terreiro de Candomblé, Catimbó, Umbanda entre outros, é
possível encontrar aqueles integrantes que possuem o “poder de jogar búzios” e o “dom da
adivinhação e da vidência”. Desde que os primeiros africanos a praticar tais rituais em solo
brasileiro até os dias de hoje, a essência dessas práticas permanece inalterada, mesmo que hajam
interpretações e métodos virtualmente diferentes de fazê-las.
Voltemos então a questão acerca da identidade, sobre a qual falaremos inserida na
perspectiva dos Pretos Velhos. Estas entidades, já apresentadas anteriormente, tem
características em comum, todavia são apresentadas como seres distintos uns dos outros no que
se refere a história pessoal. Todos são vistos como indivíduos que existiram, com pertencimento
e narrativa próprias. Há aquilo que é declarado pelos praticantes da religião em relação a essas
entidades, e aquilo que as próprias entidades são capazes de verbalizar sobre sua história.
Ambas as declarações são convergentes, e se fazem importante para construção da identidade
e de uma memória marginalizada ao longo do tempo. Em entrevista acerca da pesquisa que
baliza esse artigo, um Pai de Santo7 respondeu da seguinte maneira ao ser perguntado o que são
os Pretos Velhos em sua visão pessoal.
Os Pretos Velhos são entidades ancestrais, que tiveram vida terrena sim, como os
encantados, alguns caboclos, índios e tudo, e eles vem numa missão espiritual de
ensinar a caridade, a humildade. Sofreram várias penalidades apesar de tudo, pelo
simples fato de serem negros, e vieram como escravos pro Brasil, alguns deles
nasceram aqui. Eles estão nesse processo evolutivo, de ensinar o homem o que é o bem,
o que é a paz, o que é união, o que é a caridade. Muitos deles já na sua vida terrena
faziam esses tipos de, de trabalho de cura né, nos conhecimentos, então eles voltaram
né, com essa missão espiritual de tá benzendo, curando, dando caminho. (Transcrição
de entrevista com EMANUEL SILVA, 2020)
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Pai de santo, babalorixá, babaloxá, pai de terreiro ou babá, é o sacerdote líder nas religiões afro-brasileiras. Seu
equivalente feminino é a mãe de santo ou ialorixá.
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Sabendo aquilo que os acólitos da fé enxergam como expressão religiosa dos Pretos Velhos,
resta conectar as manifestações das entidades com a questão da identidade negra. Nos afastando
de questões antropológicas ou sociológicas, adentremos o campo teológico. Sobre o discurso
das próprias manifestações espirituais que se pesquisa, temos o seguinte exemplo de lenda,
expressa por uma das entidades amplamente conhecidas dos praticantes de Umbanda,
Candomblé e outras religiões similares, o Preto Velho Rei Congo.
Diz-se que entre os séculos XVI e XVII, havia um escravo que desde a juventude lutava em
prol de outros africanos que chegavam ao Brasil. Seu nome seria Octacílio, e possuía
conhecimento de ervas medicinais, sendo chamado de “curandeiro” por seus pares e “feiticeiro”
por seus opressores. Ainda assim, brancos e negros o conheciam por saber amenizar ou curar
doenças como a tuberculose. Quando um homem genericamente chamado de “Senhor do café”
viu sua filha doente dessa mesma mazela, ele teria sido chamado para cuidar da criança, sendo
capaz de curá-la. Tendo ficado famoso na região, ele passou a tratar indivíduos em outras
fazendas, percebendo com essas viagens as humilhações sofridas pelos cativos que encontrava.
Dessa forma, ainda jovem Octacílio teria organizado uma fuga em massa, tendo obtido êxito
na empreitada, fortuna que nem todos os revoltosos que tentaram fugir foram capazes de obter.
Não abandonando sua intenção de libertar outros, fugiu pelas matas até encontrar uma
montanha que à época era chamada de “Monte dos Perdidos”. Decidindo se fixar lá, rogou aos
Orixás e começou a organizar um quilombo junto daqueles que haviam fugido com ele, que
viria a ser conhecido como “Quilombo do Congo”. Durante as madrugadas ele teria resgatado
cada vez mais cativos, e em sua primeira incursão em fazendas da região, foi saudado por seus
companheiros como “Rei do Quilombo do Congo”. Seu nome e fama começou a se espalhar,
até que todos passaram a chamá-lo de Rei Congo.
A lenda prossegue, mas podemos nos ater neste ponto da história pois já temos material de
análise o suficiente. Aqui, vemos a primeira citação da entidade sobre si, autodenominada Rei
Congo, uma entidade da Umbanda e outros ritos similares. Manifesta-se como um Preto Velho,
dotado de todas as características já citadas. Una-se isso a descrição dada pelo Pai de Santo
entrevistado relativo a “o que são os Pretos Velhos?”, e temos uma narrativa com um caminho
muito singular. No que isso e outras narrativas similares nos impacta afinal? Ao pesquisar tanto
o discurso quanto a historiografia do tema, precisamos ir além do que é dito e perceber
entrelinhas, intenções, aquilo que se esconde e aquilo que está à vista. Tratando tanto discurso
quanto historiografia como fontes válidas, podemos entender a ideia da preservação da
identidade e o quanto tais entidades das religiões negras foram importantes.
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As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem
muros que obstruem a visão, como pensam os cepticos: no máximo poderíamos
compara-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer
fonte implica já um elemento construtivo. (GINZBURG, Carlo. 2002 p.44)
O termo ‘calundu’, (...), foi usado na América portuguesa para se referir a diferentes
manifestações religiosas de matriz africana e por vezes qualquer tipo de batuque
envolvendo africanos e seus descendentes A origem do termo é banta e diz respeito, na
África Ocidental, a uma grande variedade de manifestações religiosas, em particular o
transe espiritual (REIS, João José. 2016 p.15)
Sabe-se também que os Calundus já eram assim denominados pelos portugueses pelo menos
desde o século XVI. Por uma associação simples, onde vamos tomar por “verdade” a lenda
acerca da vida de Rei Congo de modo positivista, podemos dizer que ele praticava os Calundus,
mesmo que não saibamos qual dessas práticas especificamente ele se fazia valer. Outro fator
simples é que a localidade do Morro dos Perdidos existe ainda hoje, e se encontra no estado
brasileiro do Paraná, entre a cidade de Tijucas do Sul e o Parque Nacional Guaricana. Por fim,
sabemos por seu relato que foi um quilombola e lutou contra fazendeiros da região onde vivia.
Deixaremos agora o positivismo e nos atentaremos ao “espelho retorcido” ao qual devemos
nos manter fiéis. Para a historiografia não é importante em si a veracidade do discurso, mas
suas intenções e entrelinhas. O discurso da entidade Rei Congo, passado por gerações de
umbandistas e de outros praticantes de religiões negras, nitidamente pode ser entendido não
como uma descrição total de fatos, mas como uma passagem de conhecimentos importantes
para a comunidade africana e afro-brasileira. Uma associação proporcionalmente fácil de se
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fazer é sobre a cura. Remédios custam um valor monetário ao qual os mais pobres não têm
acesso parte das vezes, e a maior parte dos pobres ainda hoje no Brasil são compostos por “não-
brancos”. A lenda e a manifestação de Rei Congo passam adiante conhecimentos sobre ervas e
remédios não tradicionais que dizem curar determinadas mazelas e pragas que possam se abater
sobre os que o cultuam ou conhecem. A tentativa de continuísmo sobre um conhecimento
africano e afro-brasileiro então se torna evidente, mesmo onde a cultura escrita não existia.
Juntamente com essa tentativa, a reafirmação de uma identidade cultural e racial existe nas
narrativas contrárias aos meios formais que tratavam qualquer expressão negra (africana ou
afro-brasileira), fosse em qualquer campo: religioso, artístico, científico, político, biológico,
etc. A oralidade e a religião se tornam as ferramentas que cativos, quilombolas e libertos
possuem para afirmar uma existência em seus próprios moldes, concebendo uma auto definição
que os contemplasse. Em um mundo que os silenciava, a população negra encontrou em seus
ritos, mesclados uns aos outros em solo brasileiro, uma maneira de sobreviver.
Sendo a análise demonstrada aqui específica, acerca de uma entidade e de um devoto da fé,
como afirmar que isso é válido para qualquer negro, ou qualquer Preto Velho que se manifeste?
Uma vez das dimensões territoriais e culturais do Brasil, no surgimento da Umbanda durante a
república e nos séculos dos calundus no império ou colônia, como pode-se ter dimensão da
importância destes conhecimentos? Questões que podem ser levantadas tanto sobre a atualidade
quanto sobre os séculos passados.
Fora do trabalho comum nada une, aparentemente, os escravos uns aos outros. Como
associar o criador de gado e o agricultor, o homem da floresta com o do campo raso, o
adorador do totem ou do antepassado ao crente do islamismo? Na verdade, ao romper
os marcos da sociedade africana e ao misturar cuidadosamente as etnias, a escravidão
conseguiu destruir as estruturas sociais, mas o negro salvaguardou os valores essenciais
das civilizações africanas - os religiosos. (MATTOSO, Kátia de Queirós. 2003, p.145)
No Brasil, africanos de diversas etnias foram colocados sob uma mesma égide escravagista.
Diferentes culturas e crenças precisaram conviver no mesmo espaço social e material. Os
terreiros formados às margens das senzalas passaram a ser os espaços de sociabilidade. Mesmo
que não se comparasse ao seu continente natal, esses espaços funcionavam como uma
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simbologia de retorno as terras de onde haviam vindo. As disputas étnicas ou sociais que
existiam do outro lado do Atlântico já não faziam sentido, mesmo que houvesse algum
ressentimento. Aqui o inimigo era o homem branco majoritariamente. Nesses espaços, aqueles
que coordenavam e se tornavam líderes para a comunidade de escravos eram sem dúvidas os
mais velhos, e quanto mais as gerações dentro da senzala se afastassem da concepção de África,
mais importante eram esses idosos, guardiões da sabedoria e da religiosidade tão preciosa
àqueles indivíduos.
A unidade dos escravizados, libertos e quilombolas poderia se desfazer em vários aspectos
da vida particular, todavia se uniam de modo geral em aspectos religiosos, nos problemas
sociais sofridos e nas necessidades humanas. Ainda nas questões dos discursos analisados, a
afirmação de que determinadas entidades (negras), dentro de uma determinada fé
(primordialmente negra), são parte da história e realidade material em que vivem os praticantes
(majoritariamente negros) possui uma carga social e simbólica considerável. Chega até mesmo
a negar parte da tentativa de conversão dos africanos escravizados.
Os Pretos Velhos são portanto parte indissociável da construção de identidade. Tanto por
estarem presentes como um elemento de fé e identificação, preservando uma memória sobre o
passado que é importante para determinados grupos, quando pelo fato de que teologicamente
para os praticantes das religiões afro-indígenas eles são tanto entidades quanto ancestrais sociais
que de fato existiram. O indivíduo negro poderia ser sentenciado à marginalidade social de seu
tempo, todavia a entidade, o símbolo espiritual, o fenômeno teológico e mítico, sobreviveria
porque não podia ser punido pelos homens.
A história das próprias religiões é a história de seus agentes. É importante se atentar a este
fato, pois, uma vez que os Pretos Velhos se manifestam apenas em determinados cultos, em
alguns casos adentrando templos que costumeiramente não os cultuam, a compreensão do
“todo” das religiões afro-brasileiras não é necessária, apenas o entendimento dessas como
mecanismos de manutenção de uma identidade negra. Há elementos quase universais que as
unem.
Apesar desta primeira impressão, onde os negros construíram sua religiosidade e as
entidades espirituais estiveram presentes passivamente nesse processo ao serem cultuadas,
pertence a elas (as entidades) também a responsabilidade pelo funcionamento de tais credos e
da memória transmitida. O negro idoso pode não ser cultuado no Candomblé em geral, ou nas
casas de nação Ketu8 do Rio de Janeiro por exemplo, mas participou da construção de ambas
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Os ritos afro-brasileiros são comumente divididos por ‘nações’, que se referem ao conjunto de ritos de cada etnia
africana que veio escravizada para o Brasil, tendo passado seus costumes adiante. Existe uma quantidade
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Há duas informações presentes na obra do autor, mas não no supracitado trecho, que se
fazem de suma importância para a pesquisa. Sebastião de Guerra era o chefe do calundu, da
“casa de feitiçaria africana”, e mais importante ainda ele adentrava o que hoje conhecemos
como terceira idade. Era um velho. Era negro e africano. Surge como uma “prova”, não de que
os ritos são iguais ou as lendas se fazem verdadeiras objetivamente, mas de que há uma relação
identitária, cultural e social, entre as religiões negras, os Pretos Velhos e uma auto afirmação
da ancestralidade e do conhecimento africano. Aqueles capazes de escrever sobre as “crenças
negras” nos séculos escravagistas e aqueles que praticavam tais religiões estão em lados
distintos da balança social. A relação de força mais simbólica é o maniqueísmo dado, de
repressão contra a preservação. Retirados de sua condição de seres humanos, africanos e seus
descendentes utilizaram suas crenças para preservar o máximo que podiam de sua identificação
pessoal.
A concepção de ancestralidade é um elemento importante a se considerar quando levamos
em conta a mentalidade dos povos africanos da região Ocidental da Idade Moderna. As
sociedades “gerontocráticas” são uma constatação do lugar que anciões ocupavam na hierarquia
social, sem impedir na prática que indivíduos sociais mais jovens disputassem o próprio espaço.
O ancião era por muitas vezes o guardião espiritual, aquele mais próximo das divindades, capaz
de transcender e se comunicar, manipulador dos oráculos e presságios. Mais um fator
considerável de variedades ritualísticas, ainda que as fés professadas e as próprias entidades cultuadas sejam iguais
ou próximas. Alguns exemplares das ‘nações’ são os cultos Ketu, Nagô, Ashanti, Mina, Angola, Congo, Jeje, entre
outros.
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determinante é, sem dúvidas, o fato de que em boa parte das culturas africanas que foram
trazidas ao Brasil, há o tempo mítico onde passado e presente andam juntos e são virtualmente
a mesma coisa na psique dos praticantes das religiões negras.
Há outras “provas” da relação de simbiose entre negros idosos e as religiões negras, não só
no campo da documentação policial ou do discurso teológico dos Pretos Velhos. Se nos
debruçarmos sobre trabalhos historiográficos que não tem por objetivo falar da Umbanda, dos
Pretos Velhos ou das religiões negras, seremos capazes de pinçar informações nas fissuras
destes textos.
Se uma negra africana, advinda do Daomé9, foi criadora de um templo religioso no Brasil, a
Casa das Minas, tendo a mesma provavelmente envelhecido e morrido em solo brasileiro, a
história dos cultos afro-religiosos e suas estruturas estão obrigatoriamente ligados à vida dos
negros idosos, guardiões da fé. Se para a cosmogonia das religiões negras os Pretos Velhos são
parte de seus antepassados, e assim se apresentam quando manifestados, então as Santas Almas
são parte criadora, mantenedora e transformadora dessas religiões, onda a Umbanda se insere.
Para então se entender o imaginário dos praticantes de terreiros acerca dos Pretos Velhos e
os discursos proferidos, se observando as brechas não expostas desses discursos, consideremos
a oralidade e experiência como mecanismos determinantes para a construção das representações
que envolvem a temática, bem como a construção de identidade (pessoal e coletiva), “a
evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. [...]
transformando os “objetos de estudo em ‘sujeitos’” (THOMPSON, 1992, p.137).
Por fim, confrontar a memória construída através dos discursos dos terreiros e dos Pretos
Velhos com as informações que historiadores possuem e fontes fornecem, esboça dentre coisas
como relações sociais ou institucionais, um profundo senso de preservação de identidade. Hora
mais eclética, hora mais ortodoxa, as práticas dentro das religiões negras e o culto específico
das entidades mencionadas por todo artigo buscam, entre tantos elementos, criar um senso de
identificação e até mesmo unidade entre a população negra que chegava aos portos brasileiros
e aqui se reproduzia.
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Daomé foi um Estado da África Ocidental, situado onde hoje fica a nação do Benin. Foi fundado no século XVII
e existiu até 1904, quando foi anexado à África Ocidental Francesa após ter sido conquistado pela potência
colonialista europeia. O Reino manteve relações diplomáticas com o Brasil durante o século XVIII principalmente.
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Considerações Finais
De fato, a cultura africana reconstruída em solo brasileiro não pode ser descrita como um
espelho de seu local de origem. “Mesmo que fossem capazes de transmitir sua cultura para uma
nova geração, ela não seria a mesma da África. A cultura afro-americana tornou-se muito mais
homogênea do que as diversas culturas africanas que a compuseram, [...]” (THORTON, John.
1992 p.279). Contudo, apesar deste ponto importante, reforça-se que o objetivo do artigo não é
afirmar semelhanças e igualdade, mas demonstrar que as semelhanças existentes e a figura dos
Pretos Velhos, negros idosos por excelência, foram e são uma das principais formas de
preservação de identidade e resistência aplicadas por africanos e afro-brasileiros que viveram
durante a vigência da escravidão e mesmo depois que esta foi abolida formalmente.
As relações que se deram ao longo dos séculos dentro das religiões negras, sob a ótica dos
Pretos Velhos, pode não nos dar um quadro completo referente à vivência dentro de terreiros
ou mesmo a relação imagética de si Não pode também afirmar ou quantificar sozinha quanto
dessa identidade permaneceu ou foi perdida. Nos entrega em contrapartida um arcabouço onde
é possível perceber como a questão da identidade negra combatia e sobrevivia, apesar da
destruição ou deturpação de sua cultura nativa.
Os negros idosos eram guardiões, e ainda o são em grande parte, da essência das religiões
negras no Brasil. Ao longo dos séculos parte desses cativos, quilombolas e libertos atuaram
regionalmente de modo mais ou menos combativo, criando um imaginário popular e religioso
sobre si. Com o advento da Umbanda, esse imaginário se popularizou cada vez mais,
preservando uma outra visão sobre negros e mesmo africanos, ao longo do século XX. Como
dito nas páginas anteriores, menos importa a veracidade da manifestação espiritual para a
historiografia, mais importa o simbolismo que carrega o Preto Velho, personificação dos negros
idosos que viveram durante o período escravagista luso-brasileiro. Se indivíduos africanos eram
chefes de Calundus e fundaram terreiros e religiões quando vieram para o Brasil, a eles cabia a
preservação e manutenção de parte da cultura e conhecimento de populações inteiras, algo que
se reflete em seu processo de divinização.
Compreender o espaço da memória, analisar as minúcias e afluências da escravidão
brasileira, registrar o discurso e manifestações das religiões modelando assim as significações
dos Pretos Velhos no universo sócio-histórico, bem como sua auto afirmação racial e social. Se
apoiar em arquivos policiais, judiciais e eclesiásticos que narram alguma materialidade ainda
que enviesada. O caminho ideal para obter o maior número de informações possíveis sobre o
tema parece ser este, tendo-se sempre apego com a metodologia historiográfica ao lidar com
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discursos e fontes, como “obras escritas e não escritas” que demandam atenção para as brechas
que possuem. Uma luta entre o discurso de fé e a documentação tendenciosa, onde o historiador
caminha na corda bamba do ceticismo e do positivismo, para encontrar os elementos que
buscam preservar determinadas identidades num emaranhado complexo de sincretismos e
transformações.
RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense. 2003.
OLIVA. Anderson Ribeiro. A Invenção da África no Brasil: Os africanos diante dos
imaginários e discursos brasileiros dos séculos XIX e XX. Revista África e Africanidades.
Ano I, n. 4, fev. 2009. ISSN 1983-2354.