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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

DANIEL DE OLIVEIRA SAMPAIO

PRETOS VELHOS: RELIGIÕES NEGRAS NO BRASIL E PRESERVAÇÃO DE


IDENTIDADE

São Luís – MA
2020
2

Pretos Velhos:
Religiões Negras no Brasil e preservação de identidade1

Pretos Velhos: Black Religions in Brazil and identity preservation.

Daniel de Oliveira Sampaio2

Resumo
O presente artigo tem por objetivo delimitar as relações entre as religiões de matriz africana e
afro-indígena no Brasil e a problemática acerca da preservação da identidade sociocultural e
étnica, focando em especial na manifestação religiosa dos Pretos Velhos. Utilizando-se das
concepções teológicas bem como da historiografia acerca do tema, será analisado o campo dos
discursos e das práticas, em contraste com aquilo que fontes e textos podem exprimir. Tratando-
se de um objeto de trabalho com tantos aspectos subjetivos como cultura, religião, religiosidade
entre outros, o desafio se faz presente ao passo em que a união de elementos distintos é capaz
de trazer à tona perspectivas ainda pouco exploradas.
Palavras-Chave: Candomblé. Discurso. Pretos Velhos. Prova. Umbanda.

Abstract
The present article aims to delimit the relations between african-brazilian and afro-indigenous
religions in Brazil and the issue of sociocultural and ethnic identity preservation, focusing
especially in the religious manifestation of Pretos Velhos. Using the theological conceptions as
well as the historiography on the subject, it will be analyzed the discourse and practices, in
contrast to what sources and documents can express. Since the object of work has significantly
subjective aspects such as culture, religion, spirituality, and more, the challenge is present even
though the union of distinct elements can bring to light less explored perspectives.
Keywords: Candomblé. Pretos Velhos. Proof. Speech. Umbanda.

Introdução

1
Artigo entregue para fins de obtenção de nota na disciplina Formações sociais atlânticas, ministrada pelo Prof.
Josenildo de Jesus Pereira (DEHIS /UFMA).
2
Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrando em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Matrícula:
2020107330. E-mail: danielsampaiocortez@gmail.com
3

Historiadores, sociólogos, teólogos e antropólogos se debruçaram sobre o tema das religiões


de matriz africana e afro-indígena desde os fins do século XIX até o presente. Em diversos
casos, há um estudo de como as práticas ritualísticas foram criadas, seu emprego social e
cultural, suas mudanças ao longo do tempo e diferenças regionais. Grande parte foca ainda na
materialidade dos rituais e aquilo que é utilizado. Até mesmo artistas como Benjamin Péret3
vieram ao Brasil retratar tais religiões, extrapolando o campo artístico e influenciando a ciência
etnográfica. Cada um destes estudos possui uma visão acerca da cultura e religiosidade negra,
porém uma parte significativa dos trabalhos realizados partem de um ponto onde se sustentam
em justificativas e explicações materiais e antropológicas, sendo as obras mais antigas
permeadas de preconceitos sobre o tema.
Dada as circunstâncias sociais e econômicas em que os negros africanos foram trazidos às
Américas para o trabalho em cativeiro, suas práticas religiosas não encontrariam uma aceitação
oficial significativa. As condições de seus descendentes não se tornariam muito melhores por
séculos, não sendo de se surpreender que, ao longo do século XX, a maior parte dos escritos
sobre o tema tenham ignorado a opinião e descrição dos principais conhecedores do assunto, os
próprios negros e praticantes de suas crenças em geral, mesmo os não negros.
O foco gira em torno de alguns pilares, sendo preciso o amparo de uma metodologia
historiográfica, bem como a contextualização de onde se inserem tais pilares. Um deles parte
do discurso advindo dos terreiros e qual a relevância que estes podem ter, dentro de suas
subdivisões, para a pesquisa. Outro diz respeito ao processo de análise documental que se possui
e sua problematização, de acordo com o olhar crítico que jogamos sobre eles. Ademais, a
questão da identidade e sua preservação pode ser considerada como a coluna central da
temática. A contextualização, por sua vez, demanda que falemos não só dos praticantes ou dos
documentos, mas igualmente de quais práticas estamos falando e quais entidades estão sendo
cultuadas. Sem nos atentar a religião ou ao que é cultuado, a pesquisa se perderia em achismos
sem fundamento, assim como não se atentar ao método historiográfico transformaria o trabalho
em material unicamente “opinativo”.
Fazendo-se delongar a questão, é preciso cautela, pois os elementos de fé podem cegar as
intenções científicas se tomadas levianamente como absolutas. Tanto quanto os documentos,

3
Benjamin Péret (4 de julho de 1899 - 18 de setembro de 1959): Importante poeta surrealistas francês, bem como
militante trotskista orgânico. Influenciou outros escritores como Octavio Paz e César Moro. Quando esteve no
Brasil, falou sobre terreiros afro-brasileiros e seus rituais religiosos, compilando relatos e registro através de uma
série de artigos intitulados Candomblé e Macumba, no jornal paulistano Diário da Noite (1925-1980).
4

os discursos devem ser analisados minuciosamente. Toda informação obtida necessita tanto ser
respeitada dentro de seu contexto, quanto destrinchada para uma pesquisa consistente.

Pretos velhos, crença, discurso e identidade


O cenário superficialmente introduzido nos traz duas problemáticas iniciais, de acordo com
os objetivos do presente estudo. A primeira diz respeito a capacidade das fontes nos dizerem
algo, pois é necessário ter em mente o período em que foram escritas e por quem foi escrita.
Sabemos atualmente que o longo período escravocrata foi marcado por diversas mazelas e
contradições sociais que afetam até hoje o mundo à nossa volta, no que se refere às disparidades
existentes em nosso país, especialmente para a população negra.
Os relatos nos chegam através de documentos históricos diversos, cada qual representando
o espírito de seu tempo. Infelizmente também é de conhecimento da historiografia que muito
se perdeu ao longo dos séculos, uma vez que não foram produzidos relatos sobre todos os
aspectos da escravidão e seus agentes (ativos ou passivos), bem como a destruição intencional
de muitos documentos, como por exemplo a queima de arquivos ordenada por Ruy Barbosa4
no primeiro governo republicano Havia nos séculos passados um grande manejo social, cultural
e retórico que buscava suprimir a identidade de africanos e seus descendentes no Brasil. Sobre
essa problemática, precisamos ter em mente alguns pontos básicos

Assim, as informações nos chegam cheias de distorções e enviesamentos e


preconceitos. Entretanto, recusar o uso dessas fontes tornaria quase impossível a
pesquisa da história dos socialmente subalternos de modo geral, em especial daqueles
à margem da cultura escrita local. Era esse o caso da maioria dos que aderiam as
religiões de extração africana no Brasil escravocrata. (REIS, João José. 2016 p. 13)

Essa situação pode ser expressa como uma tentativa “civilizatória”, onde julgava-se nos
séculos da escravidão e do colonialismo que haviam dois mundos, o civilizado (branco) e o
bárbaro (não branco). Em particular, o projeto nacional brasileiro necessitava de tal divisão,
uma vez que era o país da América que mais recebera escravizados, ainda que não fossemos
uma potência colonial propriamente dita, locais onde de fato se fomentaram as teorias
racialistas.

Como argumenta o antropólogo Wilson Trajano Filho, ao refletir o emprego do


conceito de “tribo” para definir aos africanos, dois motivos poderiam ser apresentados

4
Ruy Barbosa de Oliveira (5 de novembro de 1849 - 1 de março de 1923): Polímata brasileiro, destacando-se as
áreas da advocacia, diplomacia, política, oratória, escrita entre outras. Quando designado por Deodoro da Fonseca,
então presidente do Brasil, como Ministro da Fazenda, teria ordenado a destruição de arquivos para evitar o
pagamento de indenizações a antigos proprietários de escravos por parte do nascente governo Federal, como atenta
o historiador Américo J. Lacombe.
5

do ponto-de-vista europeu, mas apenas um deles se encaixa na situação brasileira. O


primeiro seria um esforço em demarcar as fronteiras entre civilizados e selvagens, e o
segundo, seria a tentativa de desenhar as diferenças entre os vários povos ditos
primitivos, para classificá-los e hierarquizá-los dentro de seus próprios rincões.
(OLIVA. Anderson Ribeiro. 2009 p.02)

Através do olhar crítico e a problemática das fontes e escritos, a qual ainda retornaremos, é
possível discutir em termos globais a busca pela identidade e o embate no campo discursivo.
Esta situação se torna mais profunda quando se adentra o espectro particular da pesquisa onde,
sob a ótica do culto aos Pretos Velhos, há menos relatos ainda do ponto de vista documental. O
que podemos inferir de modo superficial? Tais entidades espirituais são ditos “espíritos
desencarnados de escravos, quilombolas e libertos que chegaram à velhice e possuíam grande
sabedoria”5. As manifestações dessas próprias entidades dão conta de passar esta definição
visual aos que presenciam os rituais e qualquer praticante de um templo que os cultue pode
rapidamente diferenciá-los de outras entidades. Manifestam-se nos médiuns de maneira
curvada, em geral sentados ou utilizando bengalas e apoios, são vagarosos, costumam estar
fumando algo, tendo a vista aparentemente cansada, entre outros elementos materiais como
roupas e subjetivos como trejeitos.
Mas pode-se perguntar afinal, qual a dificuldade adicional que tais entidades carregam ao
serem analisadas, tanto no aspecto geral quanto pela ótica daqueles que as cultuam? Isso se
demonstra na concepção de que tais seres espirituais promovem o discurso de que, uma vez
encarnados e vivos, participaram da malha social de seu tempo. Há, portanto, o discurso sobre
tais entidades, o discurso das próprias entidades, a historiografia sobre o período escravagista
e, finalmente, a documentação e historiografia que traz à tona as práticas religiosas em que
estão inseridas essas entidades. Permeia os discursos a preservação da identidade e a tentativa
de construção de pertencimento. Mesmo em campos teóricos parcialmente distintos, todos esses
elementos se tangenciam de modo que se torna improdutivo falar sobre um e ignorar o outro.
Trata-se de analisar todas as partes como documentos ou “provas”, de modo a juntar o quebra
cabeça que se aluvia em diversos pedaços.
Corrobora com essa ideia geral o próprio historiador Carlo Ginzburg, se referindo as
questões sobre as fontes.

Mas, ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista
sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, dependem das relações

5
À exemplo, temos Pai Joaquim de Angola, Vovó Maria Conga, Vovô Cipriano das Almas, Velha Cabinda. Todos
tendo sido escravizados, libertos ou quilombolas, vindos do continente africano ou sendo descendentes daqueles
que vieram de lá. Segundo a mitologia dos ritos que os cultuam, suas manifestações apresentam traços comuns
entre si, bem como em diversos templos religiosos. Um desses traços, o mais importante para pesquisa, é a suposta
origem desses espíritos.
6

de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a


imagem total que uma sociedade deixa de si (GINZBURG, Carlo. 2002 p.43)

O historiador, ao analisar e problematizar temas subjetivos como a fé, a cultura ou a crença


se depara, ao tratar de religiões negras, com um campo que não conta com uma documentação
abrangente. Há de fato trabalhos sobre o assunto, mas o acúmulo de documentação ao longo
dos séculos é mais uma vez escasso quando olhamos para o desmantelamento de tais religiões
em solo brasileiro. Como então se utilizar de documentos capciosos, trabalhos por vezes
problemáticos e discursos silenciados, sem que estes entrem em conflito com um trabalho
historiográfico consistente? A busca da pesquisa perpassa por isso, como outros detalhes que
necessitam de um emaranhado de autores que nos tragam ferramentas para este canto
metodológico tão relevante.
Antes de prosseguir com os conceitos metodológicos mais importantes, ou com o arcabouço
documental que se tem sobre os africanos e afrodescendentes em solo brasileiro, é preciso se
situar sobre o contexto em que a pesquisa se insere de modo mais direto. Comecemos pela
primeira religião que oficialmente cultuou as entidades tidas como Pretos Velhos, ainda que
não seja possivelmente a primeira de fato onde eles hajam se manifestado, a Umbanda.
Candomblé, Tambor de Mina, Catimbó, Quimbanda, Terecô e mais uma longa lista
heterogênea de cultos foi criada pelos negros em solo brasileiro. Dentro destas, é a Umbanda
aquela que traz à tona o campo de desenvolvimento da pesquisa, pois surge durante sua criação
a liturgia referente aos Pretos Velhos como a conhecemos hoje. Apenas alguns desses cultos
religiosos os inserem em sua vivência. Os que manifestam estas entidades os encaram como
“almas que viveram e transcenderam até certo nível de iluminação espiritual”, sendo enviadas
de volta como espíritos para ajudar os vivos em sua jornada terrena.
A Umbanda é uma religião afro-brasileira, sincretizando elementos das religiões africanas
com as cristãs. Formou-se no início do século XX no sudeste do Brasil, em São Gonçalo-RJ, a
partir de outros ritos como Candomblé, Catolicismo e Espiritismo. É considerada uma "religião
brasileira por excelência", trazendo a tradição dos deuses africanos (Orixás) e os espíritos de
origem indígena (Caboclos). Para a maior parte dos adeptos, o dia 15 de novembro marca a data
de surgimento da religião, porém oficializada no Brasil apenas em 18 de maio de 2012 pela Lei
12.644. Apesar da legislação permitir o culto da Umbanda, e esta buscar passar por um processo
de “embranquecimento”, ainda era vista com maus olhos pela sociedade ao tempo em que fora
fundada. Isso era uma prática antiga, pois o sentimento social em relação a qualquer
manifestação cultural negra, ainda mais religiosa, era perseguida pelas instituições (civis ou
eclesiásticas), desde muitos séculos como podemos atentar.
7

Durante a escravidão, e mesmo após a abolição, as expressões religiosas negras foram


descritas pelos que ocupavam alguma instância de poder político, eclesiástico e
intelectual: governantes a ordenar repressão à religião dos africanos em nome da boa
ordem social; autoridades policiais a narrar invasões a terreiros e prisões de adeptos;
religiosos preocupados em combater a "feitiçaria" e a superstição; periodistas,
intelectuais e romancistas em campanha civilizatória contra os "bárbaros costumes"
africanos; viajantes estrangeiros ávidos apenas pelo exótico; entre outros. (REIS, João
José. 2016 p.13)

Dentro da Umbanda, se oficializou mais próximo do que temos hoje o culto aos Pretos
Velhos. Estas entidades, já apresentadas anteriormente, tem características em comum, todavia
são apresentadas como seres distintos uns dos outros no que se refere a história pessoal. Todos
são vistos como indivíduos que existiram, com pertencimento e narrativa próprias. O artigo
trata de dois discursos específicos nesse campo. Aquilo que é declarado pelos praticantes da
religião em relação a essas entidades, e aquilo que as próprias entidades são capazes de
verbalizar sobre sua história.
Se há um discurso de proximidade e pertencimento, como seria possível compreender o quão
próximo as estruturas criadas no dito “Novo Mundo” são das estruturas encontradas em África.
Para isso, é preciso olhar para elementos das manifestações religiosas na África Ocidental, de
onde grande parte daquilo que as religiões negras brasileiras utilizam advém. Nas religiões
citadas até agora, é comum o elemento da possessão, onde um espirito ou Orixá6 toma controle
do corpo de um médium, praticando a dança, realizando consultas das mais variadas
(adivinhações, curas, feitiçarias, aconselhamentos). O que teríamos em África, por vez, não se
faz significantemente diferente.

No caso da possessão de indivíduos, um ser do outro mundo entraria no corpo de


um médium, que falaria com sua voz ou com a do médium. No caso de um santuário,
o ser poderia utilizar um objeto material com o mesmo intuito. Obviamente, qualquer
um ao alcance da voz poderia ouvir claramente o ser e assim a revelação obtida seria
perfeitamente clara e precisa. Além disso, o ser poderia iniciar uma conversa e até
responder a perguntas enquanto estivesse habitando o corpo do médium. A possessão
ocorreria apenas depois que o médium entrasse em transe, [...] (THORTON, John. 1992
p.321)

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Orixás são divindades cultuadas pelos africanos da região Ocidental, principalmente pelos Iorubás. São
representados pelas forças da natureza. Olodumare, o ser supremo, os teria enviado para criar o mundo e auxiliar
a humanidade em sua caminhada. Cada um deles possui um conjunto de características e personalidade, hora
divina, hora ‘mortais’.
8

Sendo as religiões negras brasileiras provenientes das africanas, é pertinente que possuam
elementos em comum. Isso por si não garante um continuísmo ou igualdade, mas demonstra
uma preservação, ou tentativa, da identidade cultural dos africanos e seus descendentes em solo
brasileiro. A descrição acima se refere a experiências mais subjetivas, ligadas ao campo das
sensações, e pode ser relativizada em determinados termos, todavia coisas mais materiais e
práticas se mostram mais ainda semelhantes, como o ‘jogo de búzios’.

Uma das formas africanas mais famosas de adivinhação, conhecida mais comumente
por seu nome ioruba, ifá, foi relatada com detalhes em uma descrição de Ajudá do início
do século XVIII. O sacerdota jogava búzios em um tabuleiro especialmente desenhado,
enquanto pedia ao outro mundo que influenciasse o resultado desde evento para
permitir que o adivinho respondesse a perguntas. (THORTON, John. 1992 p.318)

Ainda hoje, em quase qualquer terreiro de Candomblé, Catimbó, Umbanda entre outros, é
possível encontrar aqueles integrantes que possuem o “poder de jogar búzios” e o “dom da
adivinhação e da vidência”. Desde que os primeiros africanos a praticar tais rituais em solo
brasileiro até os dias de hoje, a essência dessas práticas permanece inalterada, mesmo que hajam
interpretações e métodos virtualmente diferentes de fazê-las.
Voltemos então a questão acerca da identidade, sobre a qual falaremos inserida na
perspectiva dos Pretos Velhos. Estas entidades, já apresentadas anteriormente, tem
características em comum, todavia são apresentadas como seres distintos uns dos outros no que
se refere a história pessoal. Todos são vistos como indivíduos que existiram, com pertencimento
e narrativa próprias. Há aquilo que é declarado pelos praticantes da religião em relação a essas
entidades, e aquilo que as próprias entidades são capazes de verbalizar sobre sua história.
Ambas as declarações são convergentes, e se fazem importante para construção da identidade
e de uma memória marginalizada ao longo do tempo. Em entrevista acerca da pesquisa que
baliza esse artigo, um Pai de Santo7 respondeu da seguinte maneira ao ser perguntado o que são
os Pretos Velhos em sua visão pessoal.

Os Pretos Velhos são entidades ancestrais, que tiveram vida terrena sim, como os
encantados, alguns caboclos, índios e tudo, e eles vem numa missão espiritual de
ensinar a caridade, a humildade. Sofreram várias penalidades apesar de tudo, pelo
simples fato de serem negros, e vieram como escravos pro Brasil, alguns deles
nasceram aqui. Eles estão nesse processo evolutivo, de ensinar o homem o que é o bem,
o que é a paz, o que é união, o que é a caridade. Muitos deles já na sua vida terrena
faziam esses tipos de, de trabalho de cura né, nos conhecimentos, então eles voltaram
né, com essa missão espiritual de tá benzendo, curando, dando caminho. (Transcrição
de entrevista com EMANUEL SILVA, 2020)

7
Pai de santo, babalorixá, babaloxá, pai de terreiro ou babá, é o sacerdote líder nas religiões afro-brasileiras. Seu
equivalente feminino é a mãe de santo ou ialorixá.
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Sabendo aquilo que os acólitos da fé enxergam como expressão religiosa dos Pretos Velhos,
resta conectar as manifestações das entidades com a questão da identidade negra. Nos afastando
de questões antropológicas ou sociológicas, adentremos o campo teológico. Sobre o discurso
das próprias manifestações espirituais que se pesquisa, temos o seguinte exemplo de lenda,
expressa por uma das entidades amplamente conhecidas dos praticantes de Umbanda,
Candomblé e outras religiões similares, o Preto Velho Rei Congo.
Diz-se que entre os séculos XVI e XVII, havia um escravo que desde a juventude lutava em
prol de outros africanos que chegavam ao Brasil. Seu nome seria Octacílio, e possuía
conhecimento de ervas medicinais, sendo chamado de “curandeiro” por seus pares e “feiticeiro”
por seus opressores. Ainda assim, brancos e negros o conheciam por saber amenizar ou curar
doenças como a tuberculose. Quando um homem genericamente chamado de “Senhor do café”
viu sua filha doente dessa mesma mazela, ele teria sido chamado para cuidar da criança, sendo
capaz de curá-la. Tendo ficado famoso na região, ele passou a tratar indivíduos em outras
fazendas, percebendo com essas viagens as humilhações sofridas pelos cativos que encontrava.
Dessa forma, ainda jovem Octacílio teria organizado uma fuga em massa, tendo obtido êxito
na empreitada, fortuna que nem todos os revoltosos que tentaram fugir foram capazes de obter.
Não abandonando sua intenção de libertar outros, fugiu pelas matas até encontrar uma
montanha que à época era chamada de “Monte dos Perdidos”. Decidindo se fixar lá, rogou aos
Orixás e começou a organizar um quilombo junto daqueles que haviam fugido com ele, que
viria a ser conhecido como “Quilombo do Congo”. Durante as madrugadas ele teria resgatado
cada vez mais cativos, e em sua primeira incursão em fazendas da região, foi saudado por seus
companheiros como “Rei do Quilombo do Congo”. Seu nome e fama começou a se espalhar,
até que todos passaram a chamá-lo de Rei Congo.
A lenda prossegue, mas podemos nos ater neste ponto da história pois já temos material de
análise o suficiente. Aqui, vemos a primeira citação da entidade sobre si, autodenominada Rei
Congo, uma entidade da Umbanda e outros ritos similares. Manifesta-se como um Preto Velho,
dotado de todas as características já citadas. Una-se isso a descrição dada pelo Pai de Santo
entrevistado relativo a “o que são os Pretos Velhos?”, e temos uma narrativa com um caminho
muito singular. No que isso e outras narrativas similares nos impacta afinal? Ao pesquisar tanto
o discurso quanto a historiografia do tema, precisamos ir além do que é dito e perceber
entrelinhas, intenções, aquilo que se esconde e aquilo que está à vista. Tratando tanto discurso
quanto historiografia como fontes válidas, podemos entender a ideia da preservação da
identidade e o quanto tais entidades das religiões negras foram importantes.
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As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem
muros que obstruem a visão, como pensam os cepticos: no máximo poderíamos
compara-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer
fonte implica já um elemento construtivo. (GINZBURG, Carlo. 2002 p.44)

Levando em conta a citação acima, podemos nos aprofundar em documentos policiais e


jornalísticos como os analisados pelos historiadores Gabriela dos Reis Santos e João José Reis,
ambos no livro Religiões Negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação, como fizemos
nos discursos dos terreiros, de praticantes e das próprias entidades manifestadas. Sigamos então
a partir daí, entrelaçando a história escrita e oral de modo que se faça possível perceber a
questão da identidade e preservação da mesma, observando alguns elementos (mas não todos)
da narrativa de Rei Congo e do Pai de Santo Emanuel Silva em contraste com a bibliografia
proposta.
As religiões negras praticadas nos séculos passados diferiam em partes do que se pratica
hoje. Se não apenas pelas condições sociais e históricas, mas também pelas condições materiais
e físicas. Nos séculos anteriores ao XX não havia Umbanda, porém haviam diversas outras
manifestações, como os chamados Calundus da Bahia.

O termo ‘calundu’, (...), foi usado na América portuguesa para se referir a diferentes
manifestações religiosas de matriz africana e por vezes qualquer tipo de batuque
envolvendo africanos e seus descendentes A origem do termo é banta e diz respeito, na
África Ocidental, a uma grande variedade de manifestações religiosas, em particular o
transe espiritual (REIS, João José. 2016 p.15)

Sabe-se também que os Calundus já eram assim denominados pelos portugueses pelo menos
desde o século XVI. Por uma associação simples, onde vamos tomar por “verdade” a lenda
acerca da vida de Rei Congo de modo positivista, podemos dizer que ele praticava os Calundus,
mesmo que não saibamos qual dessas práticas especificamente ele se fazia valer. Outro fator
simples é que a localidade do Morro dos Perdidos existe ainda hoje, e se encontra no estado
brasileiro do Paraná, entre a cidade de Tijucas do Sul e o Parque Nacional Guaricana. Por fim,
sabemos por seu relato que foi um quilombola e lutou contra fazendeiros da região onde vivia.
Deixaremos agora o positivismo e nos atentaremos ao “espelho retorcido” ao qual devemos
nos manter fiéis. Para a historiografia não é importante em si a veracidade do discurso, mas
suas intenções e entrelinhas. O discurso da entidade Rei Congo, passado por gerações de
umbandistas e de outros praticantes de religiões negras, nitidamente pode ser entendido não
como uma descrição total de fatos, mas como uma passagem de conhecimentos importantes
para a comunidade africana e afro-brasileira. Uma associação proporcionalmente fácil de se
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fazer é sobre a cura. Remédios custam um valor monetário ao qual os mais pobres não têm
acesso parte das vezes, e a maior parte dos pobres ainda hoje no Brasil são compostos por “não-
brancos”. A lenda e a manifestação de Rei Congo passam adiante conhecimentos sobre ervas e
remédios não tradicionais que dizem curar determinadas mazelas e pragas que possam se abater
sobre os que o cultuam ou conhecem. A tentativa de continuísmo sobre um conhecimento
africano e afro-brasileiro então se torna evidente, mesmo onde a cultura escrita não existia.
Juntamente com essa tentativa, a reafirmação de uma identidade cultural e racial existe nas
narrativas contrárias aos meios formais que tratavam qualquer expressão negra (africana ou
afro-brasileira), fosse em qualquer campo: religioso, artístico, científico, político, biológico,
etc. A oralidade e a religião se tornam as ferramentas que cativos, quilombolas e libertos
possuem para afirmar uma existência em seus próprios moldes, concebendo uma auto definição
que os contemplasse. Em um mundo que os silenciava, a população negra encontrou em seus
ritos, mesclados uns aos outros em solo brasileiro, uma maneira de sobreviver.

Trata-se aí de uma forma de literatura que, procurando, portanto, exprimir o que é


proibido designar, encontra, contra esta censura orgânica, meios cada vez mais
arriscados. A literatura oral da plantagem se aparenta cada vez mais com outras técnicas
de conservação — de subsistência — implantadas pelos escravos e seus descendentes
imediatos. A perpétua obrigação de contornar a lei do silêncio faz dela, por toda parte,
uma literatura que não tem naturalmente uma continuidade, se é que se pode dizê-lo
desta forma, mas que irrompe através de fragmentos. O contador de histórias é um
biscateiro da alma coletiva. (GLISSANT, Eduardo. 1989 p.164)

Sendo a análise demonstrada aqui específica, acerca de uma entidade e de um devoto da fé,
como afirmar que isso é válido para qualquer negro, ou qualquer Preto Velho que se manifeste?
Uma vez das dimensões territoriais e culturais do Brasil, no surgimento da Umbanda durante a
república e nos séculos dos calundus no império ou colônia, como pode-se ter dimensão da
importância destes conhecimentos? Questões que podem ser levantadas tanto sobre a atualidade
quanto sobre os séculos passados.

Fora do trabalho comum nada une, aparentemente, os escravos uns aos outros. Como
associar o criador de gado e o agricultor, o homem da floresta com o do campo raso, o
adorador do totem ou do antepassado ao crente do islamismo? Na verdade, ao romper
os marcos da sociedade africana e ao misturar cuidadosamente as etnias, a escravidão
conseguiu destruir as estruturas sociais, mas o negro salvaguardou os valores essenciais
das civilizações africanas - os religiosos. (MATTOSO, Kátia de Queirós. 2003, p.145)

No Brasil, africanos de diversas etnias foram colocados sob uma mesma égide escravagista.
Diferentes culturas e crenças precisaram conviver no mesmo espaço social e material. Os
terreiros formados às margens das senzalas passaram a ser os espaços de sociabilidade. Mesmo
que não se comparasse ao seu continente natal, esses espaços funcionavam como uma
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simbologia de retorno as terras de onde haviam vindo. As disputas étnicas ou sociais que
existiam do outro lado do Atlântico já não faziam sentido, mesmo que houvesse algum
ressentimento. Aqui o inimigo era o homem branco majoritariamente. Nesses espaços, aqueles
que coordenavam e se tornavam líderes para a comunidade de escravos eram sem dúvidas os
mais velhos, e quanto mais as gerações dentro da senzala se afastassem da concepção de África,
mais importante eram esses idosos, guardiões da sabedoria e da religiosidade tão preciosa
àqueles indivíduos.
A unidade dos escravizados, libertos e quilombolas poderia se desfazer em vários aspectos
da vida particular, todavia se uniam de modo geral em aspectos religiosos, nos problemas
sociais sofridos e nas necessidades humanas. Ainda nas questões dos discursos analisados, a
afirmação de que determinadas entidades (negras), dentro de uma determinada fé
(primordialmente negra), são parte da história e realidade material em que vivem os praticantes
(majoritariamente negros) possui uma carga social e simbólica considerável. Chega até mesmo
a negar parte da tentativa de conversão dos africanos escravizados.
Os Pretos Velhos são portanto parte indissociável da construção de identidade. Tanto por
estarem presentes como um elemento de fé e identificação, preservando uma memória sobre o
passado que é importante para determinados grupos, quando pelo fato de que teologicamente
para os praticantes das religiões afro-indígenas eles são tanto entidades quanto ancestrais sociais
que de fato existiram. O indivíduo negro poderia ser sentenciado à marginalidade social de seu
tempo, todavia a entidade, o símbolo espiritual, o fenômeno teológico e mítico, sobreviveria
porque não podia ser punido pelos homens.
A história das próprias religiões é a história de seus agentes. É importante se atentar a este
fato, pois, uma vez que os Pretos Velhos se manifestam apenas em determinados cultos, em
alguns casos adentrando templos que costumeiramente não os cultuam, a compreensão do
“todo” das religiões afro-brasileiras não é necessária, apenas o entendimento dessas como
mecanismos de manutenção de uma identidade negra. Há elementos quase universais que as
unem.
Apesar desta primeira impressão, onde os negros construíram sua religiosidade e as
entidades espirituais estiveram presentes passivamente nesse processo ao serem cultuadas,
pertence a elas (as entidades) também a responsabilidade pelo funcionamento de tais credos e
da memória transmitida. O negro idoso pode não ser cultuado no Candomblé em geral, ou nas
casas de nação Ketu8 do Rio de Janeiro por exemplo, mas participou da construção de ambas

8
Os ritos afro-brasileiros são comumente divididos por ‘nações’, que se referem ao conjunto de ritos de cada etnia
africana que veio escravizada para o Brasil, tendo passado seus costumes adiante. Existe uma quantidade
13

as crenças e, de modo mais ou menos direto, na preservação da memória e identidade de seus


descendentes. Tal trabalho pode ser expresso em termos históricos e sociológicos facilmente.
Evocado novamente, o historiador João José Reis nos apresenta um estudo, já citado aqui, sobre
uma batida policial (devassa), realizada próxima ao fim do século XVIII, em Cachoeira no
recôncavo baiano, onde um grupo de negros haviam sido presos por praticar suas religiões. Nos
atentando as considerações finais do autor, podemos perceber a importância de questões levantadas
ao longo deste artigo.

A devassa de 1785 guarda um grande silêncio. Em nenhum momento, durante o mês


que durou, os africanos presos foram chamados a depor. (...) Temos de nos conformar,
por enquanto, com as referências indiretas sobre o calundu de Pasto de Cachoeira. Elas
de todo modo evidenciam a resistência, resiliência, ou que nome se queira dar, dos
africanos no sentido de não abandonar suas práticas culturais. Foram pessoas como
Sebastião de Guerra que, por não ceder à perseguição, mantiveram vivas, e sempre
renovadas, tradições religiosas hoje parte da personalidade brasileira. (REIS, João José.
2016 p.35)

Há duas informações presentes na obra do autor, mas não no supracitado trecho, que se
fazem de suma importância para a pesquisa. Sebastião de Guerra era o chefe do calundu, da
“casa de feitiçaria africana”, e mais importante ainda ele adentrava o que hoje conhecemos
como terceira idade. Era um velho. Era negro e africano. Surge como uma “prova”, não de que
os ritos são iguais ou as lendas se fazem verdadeiras objetivamente, mas de que há uma relação
identitária, cultural e social, entre as religiões negras, os Pretos Velhos e uma auto afirmação
da ancestralidade e do conhecimento africano. Aqueles capazes de escrever sobre as “crenças
negras” nos séculos escravagistas e aqueles que praticavam tais religiões estão em lados
distintos da balança social. A relação de força mais simbólica é o maniqueísmo dado, de
repressão contra a preservação. Retirados de sua condição de seres humanos, africanos e seus
descendentes utilizaram suas crenças para preservar o máximo que podiam de sua identificação
pessoal.
A concepção de ancestralidade é um elemento importante a se considerar quando levamos
em conta a mentalidade dos povos africanos da região Ocidental da Idade Moderna. As
sociedades “gerontocráticas” são uma constatação do lugar que anciões ocupavam na hierarquia
social, sem impedir na prática que indivíduos sociais mais jovens disputassem o próprio espaço.
O ancião era por muitas vezes o guardião espiritual, aquele mais próximo das divindades, capaz
de transcender e se comunicar, manipulador dos oráculos e presságios. Mais um fator

considerável de variedades ritualísticas, ainda que as fés professadas e as próprias entidades cultuadas sejam iguais
ou próximas. Alguns exemplares das ‘nações’ são os cultos Ketu, Nagô, Ashanti, Mina, Angola, Congo, Jeje, entre
outros.
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determinante é, sem dúvidas, o fato de que em boa parte das culturas africanas que foram
trazidas ao Brasil, há o tempo mítico onde passado e presente andam juntos e são virtualmente
a mesma coisa na psique dos praticantes das religiões negras.
Há outras “provas” da relação de simbiose entre negros idosos e as religiões negras, não só
no campo da documentação policial ou do discurso teológico dos Pretos Velhos. Se nos
debruçarmos sobre trabalhos historiográficos que não tem por objetivo falar da Umbanda, dos
Pretos Velhos ou das religiões negras, seremos capazes de pinçar informações nas fissuras
destes textos.

Quando Guezo ascendeu ao trono do Daomé, mandou várias embaixadas ao Brasil e às


Caraíbas em busca da mãe e nunca a encontrou. Só no século XX é que ela seria
localizada por Pierre Verger, se é que Nã Agontimé foi, como aventou Verger e não
descarta Sérgio Ferretti, a fundadora do Querebetam de Zomadonu, a Casa das Minas
de São Luís do Maranhão. (SILVA, Alberto da Costa e. 2003 - Não Paginado)

Se uma negra africana, advinda do Daomé9, foi criadora de um templo religioso no Brasil, a
Casa das Minas, tendo a mesma provavelmente envelhecido e morrido em solo brasileiro, a
história dos cultos afro-religiosos e suas estruturas estão obrigatoriamente ligados à vida dos
negros idosos, guardiões da fé. Se para a cosmogonia das religiões negras os Pretos Velhos são
parte de seus antepassados, e assim se apresentam quando manifestados, então as Santas Almas
são parte criadora, mantenedora e transformadora dessas religiões, onda a Umbanda se insere.
Para então se entender o imaginário dos praticantes de terreiros acerca dos Pretos Velhos e
os discursos proferidos, se observando as brechas não expostas desses discursos, consideremos
a oralidade e experiência como mecanismos determinantes para a construção das representações
que envolvem a temática, bem como a construção de identidade (pessoal e coletiva), “a
evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. [...]
transformando os “objetos de estudo em ‘sujeitos’” (THOMPSON, 1992, p.137).
Por fim, confrontar a memória construída através dos discursos dos terreiros e dos Pretos
Velhos com as informações que historiadores possuem e fontes fornecem, esboça dentre coisas
como relações sociais ou institucionais, um profundo senso de preservação de identidade. Hora
mais eclética, hora mais ortodoxa, as práticas dentro das religiões negras e o culto específico
das entidades mencionadas por todo artigo buscam, entre tantos elementos, criar um senso de
identificação e até mesmo unidade entre a população negra que chegava aos portos brasileiros
e aqui se reproduzia.

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Daomé foi um Estado da África Ocidental, situado onde hoje fica a nação do Benin. Foi fundado no século XVII
e existiu até 1904, quando foi anexado à África Ocidental Francesa após ter sido conquistado pela potência
colonialista europeia. O Reino manteve relações diplomáticas com o Brasil durante o século XVIII principalmente.
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Considerações Finais
De fato, a cultura africana reconstruída em solo brasileiro não pode ser descrita como um
espelho de seu local de origem. “Mesmo que fossem capazes de transmitir sua cultura para uma
nova geração, ela não seria a mesma da África. A cultura afro-americana tornou-se muito mais
homogênea do que as diversas culturas africanas que a compuseram, [...]” (THORTON, John.
1992 p.279). Contudo, apesar deste ponto importante, reforça-se que o objetivo do artigo não é
afirmar semelhanças e igualdade, mas demonstrar que as semelhanças existentes e a figura dos
Pretos Velhos, negros idosos por excelência, foram e são uma das principais formas de
preservação de identidade e resistência aplicadas por africanos e afro-brasileiros que viveram
durante a vigência da escravidão e mesmo depois que esta foi abolida formalmente.
As relações que se deram ao longo dos séculos dentro das religiões negras, sob a ótica dos
Pretos Velhos, pode não nos dar um quadro completo referente à vivência dentro de terreiros
ou mesmo a relação imagética de si Não pode também afirmar ou quantificar sozinha quanto
dessa identidade permaneceu ou foi perdida. Nos entrega em contrapartida um arcabouço onde
é possível perceber como a questão da identidade negra combatia e sobrevivia, apesar da
destruição ou deturpação de sua cultura nativa.
Os negros idosos eram guardiões, e ainda o são em grande parte, da essência das religiões
negras no Brasil. Ao longo dos séculos parte desses cativos, quilombolas e libertos atuaram
regionalmente de modo mais ou menos combativo, criando um imaginário popular e religioso
sobre si. Com o advento da Umbanda, esse imaginário se popularizou cada vez mais,
preservando uma outra visão sobre negros e mesmo africanos, ao longo do século XX. Como
dito nas páginas anteriores, menos importa a veracidade da manifestação espiritual para a
historiografia, mais importa o simbolismo que carrega o Preto Velho, personificação dos negros
idosos que viveram durante o período escravagista luso-brasileiro. Se indivíduos africanos eram
chefes de Calundus e fundaram terreiros e religiões quando vieram para o Brasil, a eles cabia a
preservação e manutenção de parte da cultura e conhecimento de populações inteiras, algo que
se reflete em seu processo de divinização.
Compreender o espaço da memória, analisar as minúcias e afluências da escravidão
brasileira, registrar o discurso e manifestações das religiões modelando assim as significações
dos Pretos Velhos no universo sócio-histórico, bem como sua auto afirmação racial e social. Se
apoiar em arquivos policiais, judiciais e eclesiásticos que narram alguma materialidade ainda
que enviesada. O caminho ideal para obter o maior número de informações possíveis sobre o
tema parece ser este, tendo-se sempre apego com a metodologia historiográfica ao lidar com
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discursos e fontes, como “obras escritas e não escritas” que demandam atenção para as brechas
que possuem. Uma luta entre o discurso de fé e a documentação tendenciosa, onde o historiador
caminha na corda bamba do ceticismo e do positivismo, para encontrar os elementos que
buscam preservar determinadas identidades num emaranhado complexo de sincretismos e
transformações.

RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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