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OS LIMITES DA EXCLUSÃO RELIGIOSA E

RACIAL NA AMÉRICA LATINA COLONIAL

SCHWARTZ, Stuart. Blood and Boundaries: The Limits of Religious and


Racial Exclusion in Early Modern Latin America. Waltham: Brandeis
University Press, 2020. 187 p.

Stuart Schwartz é certamente um compõem uma obra vasta e plural,


dos mais importantes autores da mas coesa; uma obra comprometida
historiografia atual sobre o mundo com o estudo crítico da sociedade e
ibérico na primeira modernidade. de expressões da resistência popular.
Para simplificar, podemos definir Em um novo livro, publicado
este campo como o dos estudos sobre em 2020 pela Brandeis University
Portugal e Espanha, além de seus Press (a sair no Brasil pela editora
domínios e espaços de interesse entre Companhia das Letras), Schwartz
os séculos XV e o XIX. Schwartz retoma sua investigação sobre as raízes
tem pesquisado sobre as dimensões modernas da discriminação religiosa
da vida econômica, social, política e étnica, que iniciara (de uma certa
e cultural, com atenção para a forma) pelo caminho inverso no seu
formação econômica, as instituições estudo sobre a tolerância religiosa e os
do poder e da justiça, a luta social, caminhos alternativos para a salvação.
formas de resistência e negociação, Com efeito, no livro All Can Be Saved
assim como aspectos da cultura (publicado no Brasil em 2009 como
política, intelectual e religiosa dos Cada um na sua lei pela Companhia
povos imersos e submersos nesse das Letras), o historiador trouxe à luz
espaço dos impérios português e atitudes de tolerância, de aceitação e
espanhol. Seus livros, artigos e textos abertura para a diversidade religiosa

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que confrontavam a sociedade territórios limiares das sociedades
ibérica, profundamente marcada pela ibéricas, nos fazer compreender
brutalidade da ortodoxia católica, como a colonização – resultante da
pela violência da inquisição e pelo violenta conquista e domínio de terras
controle do pensamento e dos compor- e povos – confrontou e construiu
tamentos. Este livro – fortemente realidades sociais de transição e que,
inspirado, como bem notou Yosef nos marcos da ortodoxia religiosa,
Kaplan, na obra de Carlo Ginzburg, eram exclusivistas e segregadoras.
que havia estudado no seu Queijos e Como Ginzburg, Schwartz apresentou
os Vermes (1976) as ideias relativistas suas pesquisas na prestigiosa série das
e tolerantes de Menocchio – foi uma Menahem Stern Lectures, abrigadas
incursão no lado mais solar do na Sociedade Histórica de Israel.
pensamento ibérico, na busca Desde 1993, quando foram instituídas
de experiências, pensamentos e em memória do professor Stern,
atitudes que confrontavam a opressiva grandes historiadores são convidados
sociedade ibero-americana. para apresentar três conferências
Já em Blood and Boundaries o ao público, que são publicadas em
historiador toma um caminho mais seguida. Stuart Schwartz esteve
sombrio e difícil. O livro, formado em Israel em 2019 e este novo livro é
por três ensaios que estão profun- o resultado dessas conferências.
damente interligados, investiga a Inicialmente centradas nas
exclusão racial e religiosa na América dimensões religiosas ou étnicas,
Latina colonial. Sua proposta é os limites da exclusão moveram-se
examinar como, nas sociedades para o fenótipo, ou o que podemos
ibéricas, princípios de incorpo- chamar de discriminação racial.
ração ou exclusão foram mudando Desta forma, seu estudo nos ajuda a
de ênfase no curso da primeira apreender a construção do fenômeno
modernidade e, em particular, contemporâneo do racismo nas suas
nas experiências sociais da coloni- raízes modernas e coloniais. O assunto,
zação. Diferentemente do estudo como sabemos, já foi abordado
anterior, o autor quer agora, de forma por ampla bibliografia. Blood and
sintética e impactante, revelar esses Boundaries, contudo, é inovador

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porque seu olhar, como Schwartz políticos” (p. 10). Neste particular,
revela na introdução, não foi capturado seu estudo procura, então, revelar a
“pelo estudo das leis e instituições que resistência e os limites deste mesmo
buscaram fazer cumprir as exclusões processo de marginalização.
e reforçar a hierarquia social, ou no O livro está organizado em três
discurso e padrões do pensamento capítulos, cada um dedicado ao estudo
genealógico que buscaram distinguir de uma dessas condições de fronteira.
pureza e contaminação” (p. 5). Nos dois primeiros, o historiador
Por uma opção deontológica, mais que volta-se para o grupo de conver-
metodológica, o historiador orienta tidos ao cristianismo: os mouriscos,
seu interesse para a compreensão da que eram os muçulmanos convertidos
experiência dos indivíduos, das pessoas ao catolicismo; e os conversos ou
que concretamente vivenciaram as “cristãos-novos”, como se chamavam
situações e condições de restrição e os judeus convertidos em Espanha
que, pela ação das estruturas sociais e e em Portugal. Esses dois grupos,
políticas, pelas instituições do Estado apesar de formalmente integrados
e da Igreja católica, foram margina- às sociedades ibéricas, eram margi-
lizadas, perseguidas e violentadas. nalizados e sofriam várias formas
O livro tem como objetivo compreender de controle, podendo mesmo
como um sistema de exclusões operava ser proibidos de migrar ou fixar
definindo parâmetros de vida para residência na América, por exemplo.
grupos específicos, mas  sobretudo No terceiro capítulo, o historiador
revelar como essas restrições e desvan- estuda a figura do “mestiço”,
tagens, “quando vistas através das termo que designava originalmente
experiências de vida de famílias ou um indivíduo resultado da união,
indivíduos”, poderiam ser “contornadas, em geral violenta, entre europeus
negociadas, ignoradas”, e mesmo e indígenas americanos, e que será
terem fracassado como medidas de ampliado para englobar os descen-
marginalização social, “embora tenham dentes de brancos com negras,
sido relativamente bem-sucedidos particularmente africanas escravi-
em enfraquecer esses grupos como zadas. As categorias de mourisco
atores corporativos com interesses e conversos estão referenciadas à

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relação da cristandade com as outras de mouro. Na América, no trato
duas grandes religiões monoteístas; com os grupos indígenas e mestiços,
já a categoria de mestiço, mais ampla o uso da analogia da fronteira
e polissêmica, refere-se, sobretudo, cultural e religiosa do Mediterrâneo,
a um dos resultados do processo de identificando os povos resistentes
colonização – a conquista e a escra- ou irredentos como “corsários”,
vização dos povos indígenas e o renegados da fé, mouros… persistiu
tráfico e a escravização dos africanos. como metáfora. Afinal, nas palavras
Estes são processos implicados na de Schwartz, “o medo de uma
violência da dominação; os mestiços ação militar muçulmana hostil nas
seriam, então, o resultado do estupro, Índias, sempre algo fantástico,
concubinato e mesmo uniões formais havia diminuído para uma preocu-
(nos padrões cristãos). pação distante no século XVII”.
O primeiro capítulo, sobre os Para a maioria das pessoas na
mouriscos, procura revelar a América espanhola e portuguesa,
existência, imaginária ou real, “os únicos mouros que tocavam
desses muçulmanos (mouros) suas vidas diárias eram os das
convertidos de maneira forçada, lendas da sensual moura encantada,
por ordem dos reis católicos de expressões como trabalhar como
Espanha em 1502 e, depois de um mouro (mourejar), ou os dança-
um século, expulsos dali por rinos mascarados nas encenações
Filipe III, em 1609. Nas Américas, de moros y cristianos…” (p. 38).
sua presença – quase nunca Contudo, o historiador nos alerta
confirmada  – era  sobretudo imagi- que, no amanhecer do século XIX,
nária, em razão do preconceito e “a analogia mudou para a realidade”.
do ódio religiosos, que traçavam as O “antigo inimigo quintessencial”
fronteiras da fé, que os identificavam das sociedades ibéricas cristãs havia
como os reais inimigos da cristandade. chegado na América, mas não eram
Uma categoria sobretudo utilizada “turcos otomanos ou corsários
nas disputas políticas e sociais, berberes”, mas africanos escravi-
quando se projetava no inimigo ou zados – como os fulanis, bornus,
desafeto a condição estigmatizada haussás e iorubás – que utilizaram

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suas “associações étnicas e religiosas de forma elegante, sintetiza neste
para acabar com seu cativeiro e, ensaio muitas das questões formu-
de certa forma, para manter suas ladas, e por vezes respondidas,
culturas e crenças” (p. 39). por  uma vasta bibliografia sobre
No capítulo segundo, o histo- o tema. Em pauta a presença
riador estuda a situação dos “mestiços dos cristãos-novos nas Américas;
da fé”, ou seja, os conversos ou sua situação particular no Brasil, onde,
cristãos-novos – judeus que haviam ao contrário da Hispanoamérica,
sido batizados como católicos, a Inquisição não implantou um
mas eram sempre suspeitos de apos- tribunal; seu protagonismo nas posi-
tasia. A expulsão dos judeus ou a sua ções mais elevadas do comércio e das
conversão forçada, resultara em que, finanças, que  condicionava e limi-
no início do século XVI, não havia tava, por vezes, o controle, mas não
mais em Portugal ou Espanha uma impedia a marginalização e, frequen-
comunidade judaica que, ao menos temente, a cruel perseguição.
de forma pública, pudesse professar O último ensaio, mais amplo,
sua fé. Contudo, mantinham-se ali é dedicado aos mestizos, uma categoria
“milhares de indivíduos ou famílias criada pelo “contato sexual e cultural”
que eram ostensivamente cristãos dos europeus com povos nas
na religião, mas permaneciam étnica Américas. Um fenômeno que “levou
e culturalmente vinculados à nação à mudança de distinções baseadas na
hebraica” (p. 41). Esse senso de religião para uma sociedade aparente-
pertencimento era, ao mesmo mente baseada na cor, ou no fenótipo,
tempo, uma forma de resistência, ou, como muitos argumentaram,
mas também um traço que ampliava a deve ser chamado de raça” (p. 73).
paranoia de uma sociedade e de insti- Com efeito, segundo Schwartz,
tuições intolerantes; dessa maneira, se com o tempo “surgiram taxonomias
fica  claro que os novos conversos raciais”, “o processo de mestiçagem
eram discriminados com base em nunca foi simplesmente biológico”:
regras de “limpeza de sangue”, “as circunstâncias sociais e históricas
o que impedia – paradoxalmente – sempre determinam os parâmetros das
sua plena assimilação. Schwartz, categorias dos povos e suas variadas

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definições ao longo do tempo” O livro não se fecha. São ensaios
(p.  73). Essas são, afinal, categorias que podem ser lidos de forma
instáveis e conjunturais, criadas em autônoma, a depender do interesse
cada espaço e tempo no complexo do leitor. Não são, por isso mesmo,
processo da colonização, que é o da exaustivos, nem pretendem abarcar
formação dos impérios ibéricos. toda a vasta historiografia sobre o
Esse é, certamente, o ensaio assunto, tão ampla para temas tão
mais difícil do livro, pela dimensão complexos. É claro que o assunto
ampla e incerta do objeto. Com efeito, não se encerra nesses ensaios e nos
nas palavras do autor, “o processo recortes propostos. Mas não é algo
de conquista e colonização europeia que possamos exigir do autor –
criou uma miríade de novas categorias pelo contrário! Entre os muitos
humanas e supostas afiliações das quais proveitos do livro de Schwartz se
a miscigenação sexual ou reprodutiva, encontra a sugestão de novos estudos,
a ‘mistura de sangue’, era apenas novas leituras, para compreender
uma dimensão de uma miríade as vivências dos marginalizados,
de contatos culturais e físicos”: desses grupos constituídos e excluídos
Amas de leite africanas ou
pela violenta modernidade europeia,
nativas americanas amamen- na sua dimensão ibérica e colonial.
tavam crianças nascidas de Cabe uma outra consideração.
mães espanholas, os europeus às
Alguém poderia dizer que Schwartz
vezes se tornavam eles mesmos
‘nativos’, os chefes indígenas contribui, com este ensaio, para uma
procuravam brasões espanhóis, nova história global que se pretende
os indígenas pobres costumavam
escrita a partir de uma perspectiva
se vestir como espanhóis ou
mestizos para evitar o pagamento desprendida dos constrangimentos de
de tributos e os mestizos podiam projetos historiográficos nacionais.
alegar ser indígenas para evitar
O estudo dos mecanismos de exclusão
a jurisdição da Inquisição.
Havia intermediários (passeurs) aqui estudados ultrapassa as fronteiras
culturais de muitos tipos. dos impérios português e espanhol
O próprio processo de conquista
e se apresenta em um território mais
provavelmente foi a força mais
transformadora de todas na criação amplo. A noção de um mundo
de novas categorias. (p. 74). ibérico – não mais comprometido

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com as narrativas unionistas e reacio- Estes ensaios podem ser lidos
nárias do fascismo espanhol ou como uma reflexão sobre uma
luso-brasileiro – estão sendo agora das mais angustiantes aporias do
revisitado, reativado por uma histo- contemporâneo: a exclusão social e a
riografia interessada em comparar discriminação racial que ainda definem
e conectar histórias, compreender nossas sociedades. Condições que
dimensões estruturais que atravessam parecem se reforçar no nosso tempo,
os impérios português e espanhol, em paralelo a novas religiões que
confrontar diferenças e encontrar revelam sua índole para a intolerância
semelhanças. Mas, sobretudo, perceber e o fanatismo, corrompendo os avanços
processos que são análogos. dos direitos da pessoa humana,
Não creio, contudo, que a em particular da liberdade e autonomia
novidade esteja nas novas perspectivas, das crenças (religiosas ou não).
novas abordagens. Pelo contrário, Nas palavras de Schwartz, “antigas
Schwartz e outros historiadores há sombras da exclusão – limpieza de
muito têm percorrido um território sangre, a difamação do indigenismo,
historiográfico solidamente consti- as desvantagens impostas às origens dos
tuído. Seu livro é parte de uma densa escravos e os legados e manchas concei-
literatura interessada na dimensão tuais de casta e mestizaje” (p. 110)
global do processo de colonização; ainda pesam nas vidas e experiências
processo que, ao mesmo tempo que de muitos indivíduos e coletividades.
inventa uma América, inventa e trans- Compreender a construção dessas
forma uma Europa conflagrada. violências é um passo para superá-las.

Pedro Puntoni
Universidade de São Paulo

doi: 10.9771/aa.v0i65.48547

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