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Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos índios Cariri em

Queimada Nova – PI1

Cinthya Valéria Nunes Motta Kós,


cinthyakoss@hotmail.com
PPGANT-UFPI

RESUMO

A presença indígena foi, desde o princípio da história do Piauí, invisibilizada, o estado foi
um dos últimos do Brasil a reconhecer e admitir a existência de uma história indígena e
considerar o ressurgimento de uma cultura autóctone. A resistência a este reconhecimento
tem embasamento na ideia de extermínio total desses grupos, replicada nos registros
oficiais. Os grupos que tem reivindicado recentemente o reconhecimento enquanto grupos
indígenas passam por diferentes tipos de desconfianças, pelos diferentes setores da
sociedade piauiense, na maioria dos casos referentes a uma "repentina" auto declaração,
considerada muita das vezes baseada em critérios fictícios por não apresentarem
distintividade cultural e fenotípicas que os caracterizem como indígenas, baseadas num
representação da idealização do protótipo xinguano. No município de Queimada Nova no
sudeste do Piauí, um grupo indígena vinculado a etnia Cariri, demanda reconhecimento
pelos órgãos competentes. A localização geográfica em que esse grupo se encontra
denuncia tal vinculação - em uma região fronteiriça entre os estados do Pernambuco e da
Bahia, área de ocorrência desses grupos. No mês mo local há também a existência de outros
grupos étnicos; grupos quilombolas que detêm um amplo reconhecimento nos movimento
sociais por sua organização política. Este trabalho tem como objetivo investigar as
condições locais que favoreceram tal situação de "etnogênese", analisando o papel das
relações intersocietárias (com grupos quilombolas) na formação de uma identidade étnica,
considerando a peculiaridade do espaço geográfico onde estas se desenrolam e os limites
físicos e simbólicos (fronteiras físicas e étnicas) no qual estão inseridos.

Palavras-chave: emergência étnica; índios do nordeste; fronteiras, processo de


territorialização.

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto
de 2014, Natal/RN.
Introdução

A presença indígena foi, desde o princípio da história do Piauí, invisibilizada. O


estado foi um dos últimos do Brasil a reconhecer e admitir a existência de uma história
indígena e considerar o ressurgimento de uma cultura indígena.
Na contramão dos dados oficias (que até a pouco tempo afirmava que índios no
estado teriam sido dizimados por completo) é crescente o número de pessoas que se
autodeclaram pertencentes a uma etnia no estado do Piauí. A recente atenção dada a
existência de grupos indígenas em território piauiense demandou a vinda de um escritório
da FUNAI para o estado, afim de se instrumentalizar as ações oficiais de reconhecimento,
que até então estão em processo de regularização.
Circunscrita num bioma de caatinga o grupo social que aqui se propõe a ter como
alvo de estudo, é um caso ilustrativo de um movimento regional de emergência étnica. A
Comunidade Indígena Cariri da Serra Grande é uma dentre as três comunidades declaradas
de procedência indígena no estado, as demais encontram-se no norte do estado: em Piripiri
(Tabajaras) e Pedro II (Tremembés).
Juntamente com o estado do Rio Grande do Norte, e mais remotamente o Ceará, o
Piauí figurou como uma federação na qual a ausência indígena era fato inquestionável.
A reprodução de tal asserção no senso comum se deve a disseminação por intelectuais e
pelas autoridades da idéia de extermínio total da população indígena pelos agentes
colonizadores, que encaravam os grupos autóctones como empecilho a uma ocupação
efetiva de áreas para implantação dos primeiros currais de gado.
Como descreve Odilon Nunes os donos das terras agradavam as missões, se elas se
prestassem a ser instrumento da submissão desses índios aos seus interesses pecuário; mas
se as missões tratassem desses índios como pessoas humanas, a que era preciso instruir e
educar e mesmo defender contra a escravidão positiva, ou disfarçada, os curraleiros
insurgiam-se contra os missionários, recusavam-lhe os meios, intrigavam os índios entre si,
influíam com os governadores para impedir a missão.
Costa (XXXX:2) aponta duas perspectivas correntes no imaginário e na
historiografia local em relação aos grupos autóctones. Uma delas e mais replicada é a ideia
de extermínio total. Os defensores dessa tese tratam a problemática em caráter de denúncia
contra a extrema brutalidade com que foram “arrastados” da região. Afirmam uma total
dizimação, uma história do massacre. Uma outra concepção considera que a história dos
índios do Piauí chega ao fim a partir do aldeamento e “pacificação” dos últimos rebeldes,
na passagem do século XVIII para o XIX. Se não foram completamente destruídos pela
força das armas e das doenças, os poucos sobreviventes do massacre da colonização teriam
se misturado com o restante da população, tento suas “fracas” engolidas pela civilização, e
nascendo, a partir daí, o caboclo, ou mesmo o próprio piauiense (Costa XXXX.2)
Costa aponta ainda para a inviabilidade da tese da total dizimação dos índios, pois
além do interesse que os colonizadores tinham em transformá-lo em mão-de-obra escrava, a
vastidão do território piauiense também favorecia a fuga desses para lugares de difícil
acesso.
Como explica Ribeiro (p.2) o processo civilizador descrito pela historiografia local
era especialmente violento em relação aos povos nativos, algumas vezes apresentada como
projeto e responsabilidade do estado e da coroa portuguesa(Renôr, XXXX), outras como
processo social (Martins,2002).
Situação semelhante é retrata por Cavignac no Rio Grande do Norte em relação
aos negros e índios, como os principais atores sociais da história colonial desde estado que
tiveram uma existência enquanto sujeitos encoberto por uma historiografia: para
levantarmos o manto que encobre as identidades distintas e iniciar investigações,
precisamos começar por uma revisão bibliográfica, sobretudo do que foi produzido
localmente.

Afiliação étnica

Sobre a dificuldade de classificação de um grupo étnico Barreto Filho apud Santos


(2013: 215) explica ser recorrente a existência de “limites fluídos, imprecisos e cinzentos
entre uma cultura ou um povo de outro” .
A classificação etnológica mais importante até hoje pensada sobre os índios no
Brasil foi a executada por Eduardo Galvão, em 1960. Esse etnólogo, se apoiando em
classificações pré-existentes sobre outras regiões do mundo que incluíam o Brasil, sugeriu
as “Áreas Culturais Indígenas do Brasil, de 1900-1959” (MELATTI, 1986 [1970]: 45).
“Uma área cultural é uma região que apresenta uma certa homogeneidade quanto à
presença de certos costumes e de certos artefatos que a caracterizam” (ibid.: 43) (Santos
2013:215).
Em Pesquisa sobre a história do Piauí, obra do célebre historiador piauiense
Odilon Nunes no primeiro capítulo intitulado Pré-história: primeiros contatos com a terra, o
autor aborda o evento da chegada e fixação dos primeiros colonizadores e o tipo de relação
que estes tinham com os grupos autóctones. Afirma o nomadismo ser um fator que
dificultava a nomeação desses grupos enquanto coletivo: difícil é nomear os índios de
determinada região, pois dum modo geral eram nômades; podemos, todavia, nomear os
ocupantes da região num determinado período, ou ainda os que nela se fixaram por mais
longo tempo, a testemunhar a prodigalidade da terra ocupada e a valentia de seus
defensores.
Atualmente convencionou a falar em seis etnias que existiram em território
piauiense: Acroás, Gueguês, Jaicós, Pimenteiras, Tremembés e Tabajaras.
João Gabriel Baptista faz uma compilação das principais cartas geográficas que
descrevem o Piauí até o do século XVII ao XX. Apresenta um quadro resumido da
distribuição das tribos indígenas locais apontada por Pe. Miguel Carvalho em Dezcripção
do certão do Peauhy de 1694. São citadas 36 tribos juntamente com sua localização. Entre
as que se encontram na área de interesse deste trabalho (sudeste do Piauí) tem-se: os
Cupenharoz, Coaratizes, Jaicós, Jendoiz, Meatanz, Ubates, Urius, Ycos (Baptista 1986:
p29-45).
De acordo com Odilon Nunes os mais antigos documentos que se referem ao Piauí
nos fazem conhecer os Tremebés, os Aroás, Cupinharões, Tabajaras e Amoipiras, como
povoadores da bacia do Parnaíba. E detalha:

Os Cupinharões e os Amoipiras parece que não se estabeleceram por longo tempo


na bacia oriental do Parnaíba... Os Amoipira ocupavam a margem esquerda do
S.Francisco, a cento e cinquenta légua da Bahia, onde bandeiras religiosas
mantêm contato com os mesmos e fazem, então, dois descimentos em penosas
viagens de longos meses... Os Cupinharões ocuparam o Canindé. Mantiveram
contato com os devassadores, converteram-se em aliança, para mais tarde lhes
oferecer resistência e enfim abandonar duma vez a bacia oriental do Parnaíba. Os
Tremembés ocuparam o delta do Parnaíba e parte do litoral do Maranhão e Ceará.
Os Aroás de todos eram os tapuias mais bravos e tinham domicílio a margem do
sambito, afluente do Poti. Os Tabajaras eram descendentes dos que vieram pelo
S.Francisco, alcançaram a Serra do Araripe, e finalmente Ibiapaba. Eram tupis
que vieram para o Piauí pelo rio...desviaram sua rota do litoral, em virtude da
resistência oferecida pelos cariris que demoravam, então, na atual região do
nordeste, e que ainda não foram bem definidos pelos etnólogos (Nunes 1975:29-
30).

Ainda na mesma obra o autor cita em vários momentos os índios cariris, como
uma incógnita, considerando porém a importante participação desses no momento histórico
que aborda. Afirma, a maior parte dos indígenas tapuias do Piauí eram do ramo cariri, cuja
palavra quer dizer tristonho, calado, silencioso. Os cariris constituem ainda problema
obscuro para os etnólogos. Uns classificam-nos como grupo autônomo; outros, como
mestiços resultantes de aruaques e caraíbas, e ainda outros, misturas de tupi e tapuia. Em
verdade há contatos culturais entre os cariris e os aruaques e caraíbas (Nunes 1975: 30).
Dados e relatos sobre grupos indígenas que habitavam os sertões são escassos em
decorrência de uma maior atenção dada aos grupos que habitam a zona costeira, que eram
denominados de tupi, em oposição os dos sertões denominados genericamente tapuias,
tendo um efeito homogenizante sobre o conhecimento da diversidade étnica existente nos
sertões. Como explica Mellati (1987 [1970]: 32) apud Santos (2013: 212) anterior ao
desenvolvimento dos conceitos linguísticos no Brasil, os luso-brasileiros classificavam os
indígenas em dois grupos: os tupys e os tapuyas, replicando o mesmo preconceito que os
povos Tupi, mais conhecidos dos portugueses, detinham aos de nações não-Tupi.
A tradução literal da palavra tapuya, na Língua Geral e no Nheengatu era língua
travada ou bárbaro. “Tapuia” era o termo usado por indígenas das nações Tupi
para designar os índios que falavam uma língua muito diferente da sua. É uma
palavra equivalente ao termo bárbaro usado pelos gregos para designar os povos
estrangeiros, principalmente os eslavos que viviam além das fronteiras do norte.
Também, no latim, o termo barbaru tem o mesmo sentido, e era usado pelos
romanos para designar os germanos (PORTO, 2012) citado por Santos (2013:
212).

A língua falada pelos cariris, apesar de ser considerada uma família linguística
extinta encontram-se incluso no tronco linguísticos macro-jê.
Cavignac (2003:16-17) descreve alguns hábitos, procedência e motivos de
deslocamento de grupos cariris que viviam na área correspondente ao estado do Rio Grande
do Norte:
Pouco se sabe sobre os grupos que habitavam o interior, porém podemos pensar
que, antes do contato, existia uma grande diversidade cultural e linguística;
muitos deles pertenciam à família linguística Kariri... Eram agricultores - não
totalmente nômades, como poderíamos pensar, mas tinham uma grande
mobilidade dentro do seu território (Dantas 1941: 97; Lopes 1999; Puntoni 2002;
Pires 1 990)... Perseguidos pelos colonos que queriam tornar-se donos de suas
terras para iniciar a criação de gado e escravizá-los, eles foram tirados delas pelos
bandeirantes (Portalegre et alii.1994: 157-158). Muitos índios teriam se refugiado
primeiro nas montanhas, nas chãs ou sopés das serras, nas cabeceiras ou nas
nascenças dos rios para fugir do inimigo, indo, cada vez mais, para o interior
(Jofilly 1977: 118). Por exemplo, os índios Cariri, originários de uma região
próxima ao Seridó , na Serra da Borborema, fugiram para o Ceará, onde deram o
seu nome aos Cariris Novos. Região montanhosa e relativamente fértil, que foi
ocupada, efetivamente, só no século XIX pelos colonos (Albuquerque 1989: 84).
Os Canindé fugiram da região do Seridó, supõe-se, no início do século XVIII
(Macedo 2002: 49).

Em sua expedição missionária pelos sertões do Piauí (durante quatro anos, desde
1694) o Pe. Miguel de Carvalho divide o estado em trinta regiões utilizando-se como
marcadores acidentes geográficos em torno dos quais haviam agrupamentos humanos. A
região IV corresponde a região a qual se desenvolve esse estudo:

IV- Confina, pela parte nascente, com os sertões desertos que correm para o
Pernambuco, pelos quais se não tem descoberto caminho, nem se vadeiam, em
razão dos muitos gentios bravos que neles habitavam, e só se tem chegado, pela
parte desta povoação, a avistar uma serra chamada o Araripe, que dizem ser
muita alta e que na superfície tem plano de 50 léguas. De uma e outra parte está
rodeada de várias nações de Tapuias bravos....Rio Grande e o Rio Preto que se
metem no Rio São Francisco... estes rios estão ao sertão povoado de muitos
tapuias bravos, valentes guerreiros... como são os Rodeleiros...Para parte do sul,
confina esta povoação com o rio de são Francisco, para qual tem dois caminhos
com distancia igual de 40 léguas, por entre matos desertos, em que não se acha
água no tempo da seca...

A localização geografia na qual se encontra o grupo aqui estudado denuncia uma


evidencia quanto a uma vinculação com o grupo étnico Cariri.
Os Cariris (ou Kariris) são uma família indígena predominante no Nordeste,
presentes desde o Ceará e a Paraíba até a porção setentrional do sertão baiano. Dominavam
especificamente o Planalto da Borborema, a serra dos Kariri e do Araripe. A partir do
século XVII esses grupos foram deslocados e espalhados em regiões vizinhas (entre elas o
Piauí) em um trabalho catequético denominado missões rurais (Dantas; Sampaio e
Carvalho p.438).

Recorte da área estudada, correspondente a Serra Dois Irmãos (Serra Grande). selecionada em vermelho.
Mapa Etno Histórico do Brasil elaborado pelo etnólogo Curt Nimuendajú.

Assim como a família Jê, a família Kariri já foi muito diversa, enquanto os
primeiros eram os senhores dos Cerrados, os segundos foram os senhores das Caatingas.
Apesar de nem uma dessas famílias se restringiram aos respectivos biomas, pois os Jê
também ocupam o sul e leste da Amazônia, a floresta de araucárias da Mata Atlântica, e já
ocuparam uma pequena porção da Caatinga no Piauí (Santos 2013: 288).
A relação de pertencimento étnico e sua vinculação territorial pode ser observada
em relatos orais fornecidos pelos cariri de Serra Grande. De acordo com Halbwachs, citado
por Pollak (1992 p. 2) a memória deve ser entendida como próprio da pessoa e, sobretudo,
como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído
coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Pollack
acrescente apontando os elementos constitutivos da memória, temos:
acontecimentos vividos pessoalmente;
acontecimentos vividos “por tabela”;
pessoas e/ou personagens;
lugares.

O fragmento a seguir do depoimento de Francisca Cariri retratam a predominância


dos elementos apontados acima.

...Como se a gente se envergonhasse de dizer o que nós era e aí os outros povos se


aproximava da gente e a gente convivia com os outros povos e agora vai ser um trabalho
da gente resgatar aquilo que era nosso, a nossa cultura do passado que vivia. As pessoas
mais antigas já fora, meus avós e bisavós já morreram... as pessoas mais velhas são de
sessenta a oitenta anos. Nós temos a memória de alguma coisa que contavam pra gente,
principalmente as formas de discriminação. Nós fomos tão atacados que nossos
antepassados viviam ali foragidos, com medo, nas tocas que temos lá, as tocas deles nas
pedras. E as fontes, temos três fontes tampadas lá por causa que o povo expulsaram nós,
fomos expulsos e mortos e os restantes que ficaram ali escondidos (nas tocas nas pedras)
foram obrigados a tampar estas fontes porque os outros povos que chegaram ali
expulsaram eles se apropriaram. Aí eles disseram “vocês podem ficar, mas as águas não
vão ficar com vocês” que era pra ver se eles iam embora. Sempre, quem mais ficou
foram as mulheres que eram pegas por eles... pra servir como mulher pra eles . Aí foi nós
que ficamos aí, os netos dessas famílias que serviram das mulher que ficaram da nossa
comunidade.

Em um estudo de genética molecular e das populações Sérgio Pena apresenta uma


reconstituição da origem geográfica de linhagens genealógicas para compreender o
processo que gerou o brasileiro atual (2002:11). É apresentado como resultado de pesquisa
um retrato molecular do Brasil no contexto histórico, no qual conclui-se que a maioria das
patrilinhagens é européia enquanto a maioria das matrilinhagens é ameríndia ou africana.
Tal quadro é explicado pelo povoamento pós-cabralino que foi até o início do século XIX
feito por homens de origem européia. Os primeiros imigrantes portugueses (e também
invasões temporárias de franceses e holandeses) não trouxeram suas mulheres, e registros
históricos indicam que iniciaram rapidamente um processo de miscigenação com mulheres
indígena (Sena 2002: 27).
Como expresso no relato de Francisca Cariri (acima) a memória ancestral é
referente somente a figura feminina, a uma matrilinhagem. Reforça Alves em estudos
etnoarqueologico com os índios Cariri de Serra Grande:
Para explicar a descendência do grupo, Zequinha (2011) relembra as histórias
contadas por seus avos e seus pais: “A minha bisavó tinha sido pega a dente de
cachorro, braba mesmo, outras foram pegas a cavalo, para os brancos se casarem
com as índias”, e completa com firmeza a importância do reconhecimento do
grupo, “Temos que respeitar os nossos antepassados [...] que desapareceram, mas
nos estamos aqui, somos a sua descendência, [...] trabalhamos, respeitamos e
somos remanescentes indígenas” (depoimento colhido por Alves 2011:48-49).

Narrativa recorrente entre os grupos indígenas do sertão nordestino, como é o caso do


Seridó no Rio Grande do Norte:
Assim ficaram conhecidos na memória familiar os índios e índias que
sobreviveram à dizimação durante as Guerras dos Bárbaros1 (1683-1725) ou à
escravização em épocas posteriores a estas. Escondidos nos pés de serra ou nas
suas chãs e homiziados nas furnas e grotas, fugindo a todo tempo do alastramento
da fronteira pastorícia, foram literalmente caçados pelos conquistadores, que,
montados em cavalos e com a ajuda de cães de caça, domaram a sua brabeza.
Ainda que existam alguns relatos acerca de caboclos-brabos (SOARES &
PEREIRA, 2000, p.17-8; 21), a maior incidência de histórias de família coletadas
dentre as memórias individuais dos seridoenses recai sobre a presença de
caboclas como tronco genealógico ancestral. É Luís da Câmara Cascudo quem
denuncia por primeiro na historiografia regional, até onde temos conhecimento, a
presença das caboclas-brabas como constituinte da genealogia de famílias do
Seridó. Na sua opinião “Inúmeras famílias-troncos do Seridó e oeste norte-
riograndense tiveram avó-indígena, caçada a casco de cavalo, preferida pelo
fazendeiro, mãe do filho favorito, vaqueiro exímio, multiplicador de fazendas”
(CASCUDO, 1984, p. 43). Muitas vezes essas caboclas capturadas tornaram-se
esposas ou concubinas dos primeiros colonizadores (Macedo 2010: p2-3).

Além dessas contribuições para o entendimento da memória na construção da


identidade Pollack(1992 p.5) aponta ainda a três elementos essenciais: unidade física (o
sentimento de ter fronteiras físicas, ou melhor, de pertencimento, em casos coletivos); uma
continuidade dentro do tempo (no sentido físico, moral e psicológico) e a coerência (que ira
unificar os diferentes elementos que formam o grupo).

Fluxos e Fixos

Os povos indígenas que viviam e vivem no nordeste receberam ate pouco tempo um
tratamento secundário e até preconceituoso (enquanto categoria analítica) dentro
antropologia brasileira, devido a pouca “distintividade cultural” que apresentam. A
ausência de traços diacríticos é encarada como um produto de um longo histórico de
contato com a sociedade envolvente, logo esses grupos aborígenes, são encaixados (por
alguns teóricos) nos moldes da idéia de aculturação. Partindo dessa idéia esses grupos
teriam perdido sua identidade cultural, recebendo assim apenas uma classificação residual,
sob o indelével signo da marginalidade. “Marginal” é alias, justamente a categoria
escolhida por Steward (1946) para classificar dicotomicamente todos os povos sul-
americanos não relacionados às florestas tropicais, caso típicos de todos os povos do
Nordeste se excluídos os Tupi costeiros.
João Pacheco de Oliveira argumenta que a categoria analítica “índios do nordeste”
foi preterida historicamente pela antropologia, sobretudo pela escola americanista, por não
apresentarem uma distintividade característica do protótipo xinguano, e explica o processo
que os tornou “índios misturados”.
Esse decurso ocorre dentro dos movimentos de territorialização apontado pelo o
autor, no que se chama de “mistura”. A primeira se deu em meados do século XVII e início
do século XVIII com os aldeamentos missionários jesuítas. A “mistura‟ foi promovida pela
tentativa de homogeneização de diferentes culturas através da sedentarização, catequese e
disciplinamento do trabalho. A segunda foi promovida pelas agências indigenistas que
estimulavam os casamentos interétnico. A terceira mistura decorreu da reorganização
espacial ocasionada pela Lei de terras de 1850 da qual muitos índios perderam a posse de
suas terras. No fim do século XIX não se falava mais em índios.
Esse processo de aparente extermínio simbólico dos grupos indígenas (para os
otimistas) é indispensável para o entendimento do processo de emergência étnica.
Sobre as “novas etnias” Cristian Teófilo da Silva sugere o conceito “identidade
contrastiva‟ como uma identidade que surge por oposição; do “nós” diante dos “outros”.
lançado por Barth (Silva 2005 p. 116). O autor se posiciona contra ideia de “manipulação
de identidade” como algo inventado”, “ falso” ou “dissimulado” e defende ser este um ato
político consciente e racional de agências e agentes na definição dos grupos e da realidade
social dos mesmos (Silva 2005 p.118).
(...) um jogo de contrastes que pressupõe negociações de imagens e autoimagens,
estratégias de luta e resistência e políticas de representação dos indígenas por
outros agentes que interagem com as tentativas dos próprios indígenas de
participar do processo de definição de si mesmos perante os aparelhos do Estado
e a sociedade envolvente (Silva 2005 p. 118)

Para Manuela Carneiro da Cunha, numa situação interétnica são as próprias


sociedades que constituem as unidades da estrutura interétnica, constituindo-se assim em
grupos étnicos. Os componentes desta estrutura ganham novos significados como
elementos de contraste interétnicos (Cunha 2009 p. 356).
É neste contexto que Cunha, lança as definições de cultura como categoria analítica
de cultura, e “cultura”, como uma narrativa reflexiva que usa cultura para falar de si
mesmo. É dotada de autorreferencia e tomada de consciência.
Em uma crítica dirigida a João Pacheco de Oliveira quanto ao seu instrumental
teórico-analítico, Eduardo Viveiros de Castro considera ser demasiada e errônea a ênfase
dada a este a noção de territorialização e contato interétnico na construção de identidades
coletivas. A crítica recai no primeiro caso por não ser considerado outras dimensões que
permitem ver a operação e a existência de determinadas linguagens e prática de parentesco
(Rosa p. 53). O segundo contra-argumento se deve ao fato de que para um antropólogo
contatualista como João Pacheco de Oliveira, a história dos índios só passa a existir a partir
do contato com os não índios.
De acordo com o objetivo da pesquisa: investigar as condições locais que
favoreceram a emergência étnica dos índios Cariri na comunidade Serra Grande, e através
de quais critérios de pertença, fundam a oposição com o “outro” , entende-se que a
perspectiva de análise de João Pacheco de Oliveira e Fredrick Barth aparece como mais
afinadas ao propósito.
O sentido de etnicidade aqui compartilhado é de inspiração barthiana e é
impecavelmente definido por Lapierre (2011 p. 11):

A etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de „traços culturais‟,


transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo. Ela
provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma organização social
que não cessa de evoluir” (Lapierre 2011 p.11).

Aproximando-se da concepção dinâmica de cultura, considerando principalmente o


fenômeno das etnias emergentes na contemporaneidade, descarta-se a hipótese de
aculturação, que é de caráter evolucionista, pois parte do pressuposto de que a cultura flui
numa única direção. E como propõe Barth, usando o termo “corrente” como metáfora
explicativa de cultura, essa são universos discursivos, que compartilham significados,
comunicando-se em várias direções e estando em constante reformulação. Em processos de
legitimação de uma etnia (enquanto coletividade étnica) os “traços” levados em conta não
só as somas das diferenças “objetivas” mas unicamente o que os próprios autores
consideram como significativo” (Lapierre 2011 p.13). E em casos de confrontos políticos,
alguns traços tradicionais são selecionados para serem restaurados. Tais traços culturais
imersos são de grande importância para o entendimento antropológico da situação estudada,
pois estes se formaram num curso de uma história comum que a memória coletiva do grupo
nunca deixou de transmitir de modo seletivo e de interpretar, transformando determinados
fatos e determinados personagens lendários, por meio de um trabalho do imaginário social,
em símbolos significativos de identidade étnica, agregados a uma origem comum.
A noção de fronteira será aqui abordada sob duas perspectivas diferentes, porém
coextensas. São elas: a noção de fronteira, enquanto limite físico, geográfico e a outra é a
fronteira étnica.
Para a primeira teremos como alicerce as contribuições de Roberto Cardoso de
Oliveira e Stephen Baines, que lançaram as bases para o estudo de relações sociais vividas
em regiões nacionais e/ou étnica estão postas em conjunção com o sentido de
nacionalidade. Sabemos que o foco desses autores recae sobre uma configuração espacial
mais abrangente e em que pesam as questões de estratégias de soberania nacional e
nacionalidade. No caso aqui a atenção se volta para fronteiras interestaduais, porque estas
aparecem como problemáticas a realidade que se pretende estudar. Com implicações
inclusive, numa possível demarcação de terra.
A relação entre fluxos e fronteiras é significante no caso dos índios Cariri de Serra
Grande, num quadro atemporal de percepção de espaço. Este grupo admite uma
procedência pernambucana, mas se consideram piauienses. Atualmente estão em constante
fluxos dentro desta região fronteiriça (PI, PE e BA), por diferentes motivos, trabalho,
estudos, práticas religiosas, relações pessoais entre outros.
Tomemos como exemplo o estudo de Luis Eugenio Campos que ilustra a relação de
identificação de um grupo étnico pertencente a uma unidade federativa diante de outras:
Lo que quiero destacar aqui, es que desde lós próprios municípios oaxaqueños,
Zapotecas o Mixtecos, se construyen e articulan uma serie de representaciones
que también explican lós fenômenos de fronteras, desde um nível local. Y si se
mira desde las comunidades o municípios de base y no a partir de lós estados-
naciones, la frontera, cualquiera que sea, se torna um médio cotidiano de relación
com estos... pueden estar localizados a Miles de kilometros o a unos cuantos
minutos de casa. La frontera em este sentido no es ya separación, sino médio de
comunicación, de conseguir lós insumos necesarios para la vida cotidiana
(Campos, 2005 p. 145).
Cardoso de Oliveira afirma a necessidade de pesquisa de campo que envolva
observação direta, ao estilo da investigação antropológica para sabermos como pensam e
como se relacionam as pessoas nos espaços interculturais, o que não é possível saber pelo
estudo do sistema jurídico que recobre esta área (Cardoso de Oliveira 2005, p 19).
A segunda perspectiva de fronteira é referente às formulações de Fredrick Barth
quanto aos limites étnicos que os grupos criam no processo de identificação e rejeição de
atributos culturais. Muitos pontos do engajamento teórico de Barth já foram apresentados
nos trechos acima, no que se refere à fricção interétnica.
Tal perspectiva permite-nos visualizar os limites transpostos pelas relações de
alteridade, ou seja, nas diferenciações baseadas no movimento de inclusão e exclusão na
produção de uma identidade social. Partindo assim de uma ideia barthiana de fronteira
étnica. Tal discussão se mostra importante nesta proposta de pesquisa, porque como
percebemos na entrevista dada por Francisca Cariri, um incisivo elemento deflagrador da
identidade indígena foi o contato com outros grupos sociais, como no caso, comunidades
quilombolas vizinhas.
Tais fronteiras (boundaries) exprimem os fluxos relacionais diante de outros grupos
sociais e entre si mesmos. Como podemos perceber no depoimento de Francisca Cariri:
Não estamos reivindicando a terra como quilombola porque até mesmo a gente não se
sente. Não temos a característica de sermos negros. Até que nossos antepassados tiveram
os negros, mas nós temos a descendência mais próxima de índio, a gente se identifica mais
próximo de índio do que de mesmo negro. A gente até aceita as duas raças, né? Duas
famílias juntas, negros e índios. Nos viemos num processo já de muitos anos, de trabalho
com a comunidade. A gente vivia oprimido, com nossos antepassados tinha até medo de
dizer que o povo discriminava, que era índio, que era discriminativo e tinham vergonha de
nos identificar como índio. Daí... fundamos a associação de trabalhadores e vinhemos
organizando a comunidade e fazendo levantamento com a comunidade, pensamos que não
adianta a gente se esconder e dizer que nós não somos índios”.
É importante recorremos mais uma vez a historiografia para entendermos tanto a
formação da identidade do grupo estudado, como a relação desses com a vizinhança. A
comunidade quilombola referida no relato acima faz parte de um grupo dominante em
número nas cabeceiras do rio Canindé e comungam com os “caboclos” a categoria de
“moreno” atribuída por outrem.
A ocupação demográfica, justificada em praticas econômicas consiste numa versão
explicativa para um expressivo número de comunidades negras rurais no sudeste do estado.
Situada na primeira zona de colonização, nas proximidades do estado da Bahia e
Pernambuco de onde partiram terços sertanistas, liderados por Domingos Jorge Velho. O
“desbravamento” do território piauiense, em início de formatação, tinha o aniquilamento
dos “grupos bravios” para a instalação das fazendas de gado a principal justificativa para a
vinda desses bandeirantes.
A vinda de escravos negros africanos para o estado era devido ao tipo de
empreendimento (fazendas de gado e plantações de algodão mais especificamente na
caatinga) inferior ao que se tinha em outras partes do país, onde predominava as
plantations.
No ano de 1884 se tem notícia de quilombo no sertão do Piauí. Claudio de
Albuquerque Bastos apud Santos (2006: 75) comenta que foi mandada uma escolta com o
fim de capturar diversos escravos que se achavam reunidos em quilombos, No município de
União. Em 1886 o número de escravos no Piauí chegou a 16.727 e em 1888 tinha
diminuído para quinze mil por diversos fatores: mortandade, libertação dos sexagenários e
saídas para outras Províncias. Com a libertação dos escravos em 13 de maio de 1888,
centenas ainda permaneceram em suas fazendas de gado, houve uma continuação do modo
de vida, porém sem os grilhões da escravidão (Lima, 2002 apud Santos 2006).
Atualmente essa região que no passado fazia parte do município de Jaicós apresenta
um expressivo número de comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares
no estado. A área que correspondia ao município de Paulistana (desmembrada de Jaicós), as
dos municípios de Acauã, Betânia do Piauí, Jacobina do Piauí e Queimada Nova (as três
emancipadas de Paulistana na década de 90) possui atualmente 18 comunidades
quilombolas autodeclaradas e reconhecidas por órgãos competentes. A saber:
Paulistana (05): Angical, Barro Vermelho, Chupeiro, Contente e São Martins;
Acauã (03): Angical de cima, Escondido e Tanque de Cima;
Betânia do Piauí (03): laranjo, Baixão e Silvino;
Jacobina do Piauí (03): Campo alegre, Chapada e Maria;
Queimada Nova (04): Baixa da onça, Pitombeira, Sumidouro e Tapuio.
Se atualmente há uma relação amigável entre índios e negros, o mesmo não
acontece desses dois grupos com os chamados “coelhos” (situação semelhante acontece nos
municípios vizinhos.
Hipoteticamente descendentes de Valério Coelho Rodrigues (português abastardo
que teria comparado uma faixa de terra que ia de Rajada á Oeiras, fundando a cidade de
Paulistana. Proprietários de fazendas de gado e plantações de algodão, possuía um grande
número de negros trazidos da Bahia em regime de cativeiro) os coelhos consistem em um
grupo étnico existente em quase todas cidades do semi-árido piauiense. São de pele branca,
possuem um sistema de parentesco fechado, com casamentos endogâmicos. São apontados
pelos outros grupos como isolados, tímidos... existe entre ele uma autoproteção grupal.
Esses grupos apesar de encontrarem-se na situação de camponeses assim como os demais,
detêm um destaque entre estes referentes ao campo político e econômico dominantes.
Como observa Santos (2006: 204): com relação a política, nos municípios de Paulistana e
Queimada Nova sempre foi comanda pelas famílias de Amorim e Coelho, esta última é
descendente do Capitão Valério Coelho. Essa família de ex-senhores de escravos que vem
se alternando no poder político a décadas, mesmo com a emancipação da cidade de
Queimada Nova, continua de forma direta e indireta, administrando a cidade.
Há momentos que são compartilhados entre os índios de Serra Grandes e os demais
grupos étnicos que vivem no município de Queimada Nova, é o caso da feira que acontece
às segundas-feiras na sede do município e das festas que são oferecidas nas comunidades.
São momentos que é possível perceber a forma de interação entre esses grupos e merece
um aprofundamento. Afirmam que antes havia mais segregação, que os “coelhos” não se
juntavam com gente de cor, antes tinha os locais separado dentro da cidade. Atualmente há
mais mistura nos espaços comuns dentro do município (sindicato, praças, igrejas, bares). Os
grupos étnicos no entanto permanecem geograficamente concentrados em suas
comunidades. Ficando os negros numa aglomeração de comunidades numa área
denominada Jacú; os “coelhos” estão em maior número numa área chamada Cantinho; os
índios cariri na Serra Grande e os ciganos mais aproximados do núcleo da cidade.
São raríssimos os casos de uniões conubiais entre esses grupos. A estabilidade da
ocupação territorial dos grupos que embaçam a teoria das 3 raças (brancos, negros e índios)
em Queimada Nova não implicou numa mestiçagem soberana. Apesar da diminuição da
segregação nos espaços públicos, o distanciamento nas relações afetivas ainda é mantido.
Além disso há um curioso repertório classificatório desses grupos em relação a seus
atributos físicos-biologicos. Assim como a classificação usada pelos teóricos evolucionista
para designar a diversidade étnica brasileira. Nesses municípios citados anteriormente,
identificamos termos como: cabra, cazzo (albino), caboclo, alaranjado, negro, coelho,
maroto (moreno) e marinheiro.
Para cada “tipo antropológico”, para usar o temo de Nina Rodrigues, tem-se um
conjunto de qualidades e as vezes associações atávicas.
São citados marcadores biológicos, como, tipo de cabelo, cor de pele e formato dos
olhos. Daí se fala também em “qualidade do sangue” quando há uma “pureza”. Outros
atributos como grau de interação com outros indivíduos (habilidade relacional) e
participação na economia local são considerados.
A importância de se ressaltar tal quadro de diferenciação por uma estereotipia se
deve ao fato de que mesmo superadas nos estudos antropológicos tais termos terem uso
vigente na região aqui estudada e são acionados o tempo todo para a distinção entre os
grupos aí existentes.
Quanto à noção de territorialidade, esta foi pioneiramente tratada no contexto da
antropologia evolucionista, com Morgan, Fortes e Evans-Pritchard apud Oliveira, como
critério para distinguir formas de governo (baseados em parentesco, território e
propriedade). A antropologia funcionalista o utilizava como um fator de regulação de uma
sociedade e sua localidade no sistema cultural.
Contrapondo a ideia de Bohanan apud Oliveira, de que a ação social não tem
conexão com base fixa territorial, Pacheco de Oliveira (p.54) afirma ser esta última um
ponto chave para se apreender as transformações pelas quais passam uma sociedade, desde
o funcionamento de suas instituições até a significação de suas manifestações culturais.
A partir dessa afirmação Oliveira formula a noção de territorialização, que é um
processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade
sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a
constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social
sobre os recursos ambientais; 4) a reelaborarão da cultura e da relação do passado (Oliveira
1997, p. 55).
O processo de territorialização é em suma, um ato político, deflagrador de
identidades. É o movimento pelo qual um grupo social, dotado de identidade étnica
diferenciadora vem se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismo de tomada de decisão e de representação, e,
reestruturando suas formas culturais (Pacheco de Oliveira 1997, p.56). O autor ressalta
ainda uma diferença entre territorialização e territorialidade, sendo a primeira um processo
social deflagrado pela instância política e o segundo, uma qualidade inerente a cada cultura
(termo mais usado na geografia).
Uma instabilidade territorial pela qual a comunidade cariri passa e deve ser
analisada mais a fundo, está ligada a instalação de um parque de geração de energia eólica
nas terras ocupadas por este grupo, abrangendo também áreas de comunidades quilombolas
ali existentes. A situação foi exposta por meio da mídia virtual: Quero socializar a situação
de angustia e conflito que estão passando os nossos parentes Indígenas da Tribo Kariri em
Serra Grande e a comunidade Quilombola Sumidouro, que vivem a mais de 150 a 200 anos
em Queimada Nova e agora estão sendo ameaçados por Empresas de Energia Eólica para
instalarem seus grandes projetos”, (Rosalina dos Santos, vereadora de Queimada Nova).
A geração de energia com a implantação de um parque eólico é atualmente a
principal causa de temor dos que vivem em Serra Grande em relação aos seus destinos. Em
reunião articulada pelos moradores na ocasião da minha visita a comunidade . Os
participantes demonstraram grande preocupação em relação a uma possível perseguição da
empresa, pois não possuem documento que confirmam posse de terra e temem de serem
impedidos de ter acesso a área em que vivem e assim perder seus costumes e modo de vida,
como eles próprios afirmam. Colocam-se consciente sobre a possibilidade da empresa não
cumprir todos os benefícios que promete, além de considerarem irrisório o valor proposto
pela empresa pelo arrendamento da terra (R$ 2,00 por hectare, por ano). Outro fator
complicador é a compra de terras da serra por pessoas “de baixo da serra” que estariam
repassando estas para a empresa. Afirma Do Carmo: a serra é boa por isso é perseguida. É
pra quem tem coragem por não tem água... agora melhorou por causa das cisternas.
Duas empresas competem para concessão de instalação: Casa dos Ventos e Atlantic.
Considerações Finais

De acordo com Barth os grupos étnicos concentram-se naquilo que é socialmente


efetivo. Um traço fundamental é a característica da autoatribuição ou atribuição por outros
a uma categoria étnica. Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando classifica
uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada
por sua origem e seu meio ambiente. Na medida em que e outros autores usam identidade
étnicas para categorizar a si mesmo e outros, com objetivo de interação, eles formam
grupos étnicos neste sentido organizacional. As características que são levadas em
consideração não são a soma de diferenças “objetivas”, mas somente aquelas que os
próprios atores consideram significantes. O conteúdo cultural das dicotomias étnicas
parecem ser analiticamente de duas ordens: 1. sinais ou signos manifestos – os traços
diacríticos que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade, tais como
vestuário, a língua, a moradia, ou o estilo de vida; e 2. orientações de valores fundamentais
– os padrões, moralidades e excelência pelos quais as ações são julgadas... nenhum desses
tipos de conteúdos culturais deriva de uma lista descritiva de traços ou de diferenças
culturais; não podemos prever a partir de princípios evidentes quais traços serão realçados e
tornados organizacionalmente relevantes pelos atores (Barth 193-194).

Podemos dizer que uma das motivações da recente emergência étnica dos Cariris
de Serra Grande, é a instabilidade territorial devido a instalação de empreendimento nas
terras que ocupam imemorialmente. Motivo esse que vem sendo frequente em outros casos
de “etnogênese” no Brasil. Quando um grupo vulnerável a mudanças indesejadas, decide
descobrir o manto da invisibilidade de uma cultura diferenciada que carregam,
considerando e fazendo uso dos dispositivos jurídicos que lhe dão proteção e lhes garantem
uma existência enquanto tal.

Podemos afirmar ainda que outro fator para tal fenômeno é a realidade interétnica
que esse grupo está inserido, no qual grande parte dos indivíduos com que se relacionam ,
apresentam um sentimento de pertençam a algum grupo com atribuições étnicas.

A unidade entre os diferentes grupos sócias que compõe a área pesquisada é dada
pela peculiaridade ecológica de um clima semi-árido em um bioma de caatinga,
combinação responsável por ciclos de estiagem severas, que são compartilhadas com uma
vivacidade na memória de tais grupos. Barth apresenta quatro formas de relações em
situações em que nichos comum constituem um ponto de articulação entre as populações
distintas entre populações culturalmente distintas (Barth p. 202). Weber (p.274) também
ressalta o alto grau na adaptação a condições naturais externas, como uma das fontes que
dão origem a costumes comum. Esse modo de vida parcialmente compartilhado graças a
um elo ecológico, pode seguramente ter seu raio de alcance geográfico estendido para áreas
circunvizinhas. Esse modo de vida de amplo alcance regional está relacionado ao ethos
sertanejo.
Dessa forma podemos dizer que formação de uma identidade étnica não está
congelada em um tempo e espaço hiper-delimitado. Ela se dá através da relação
reconhecimento/estranhamento com outros grupos, característico do processo de alteridade.
Os elementos que são passiveis de comparação, que são uma moeda de identificação, são
também constantemente ressignificado. Sendo que articulação externa pode ser supralocal,
além das fronteiras político-adminitrativa.

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