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Esse depoimento mostra que a invisibilização dos indígenas no Brasil começa pelo nome, mas
se estende a todo o seu universo. A incompreensão da sua língua (enquanto eles se esforçam
para compreender o português), a redução do seu território, a consequente diminuição da caça e da
pesca, a incorporação de hábitos como o consumo exagerado de açúcar,sal e álcool são dramas
em grande parte invisíveis. Talvez porque a sociedade envolvente os trate como selvagens (página 2).
Nesse contexto, a mulher indígena, como a Xavante, que é tema deste jornal, sofre dupla invisibilização,
étnica e de gênero (página 8), mas trata-se de um processo que está em fase de reversão, graças à luta
dessas guerreiras. É o que este jornal tenta captar a partir do seu nome, com a palavra completa INVISÍVEIS,
produzida nas cores tradicionais dos Xavante. Mas a parte vermelha do nome busca demonstrar que aos
poucos a palvara VISÍVEIS começa a refletir a vida dessas mulheres e do seu povo.
Drama especial é o das mulheres vítimas de violência, tema central deste jornal, abordado com o relato
dos estupros sofridos - muitas vezes por meninas vulneráveis - e suas possíveis explicações (páginas 3 e
4). Mas também há a punição cultural relacionada ao sexo, retratada para contextualizar adequadamente
o assunto (página 6), a mudança de hábito representada pelo ato das vítimas em denunciar os estupros
fora do seu próprio sistema de normas, controles e punições (página 5) e, finalmente, a violência indireta
sofrida pelas Xavante que se prostituem para sobreviver (página7).
Este jornal - fruto de uma das 10 pautas nacionais vencedoras do 9o Prêmio Jovem Jornalista
Fernando Pacheco Jordão 2017, do Instituto Vladimir Herzog (SP) - trata, portanto, de uma invisibilização
histórica, mas procurando captar o movimento de visibilização que dela emerge, ainda que lentamente.
Foto: Skarleth Martins / Arquivo NPD
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dadeiro, ou Xavante, como são conhecidos “a imagem de um índio genérico, estereoti- a gente não dá conta de entender. Somos
pela sociedade não-indígena. São cerca de 20 pado, que vive nu no mato, mora em ocas e acostumados a tratar a natureza e as terras
mil indígenas que ocupam o leste do esta- tabas, permanece predominante, tanto na es- como recurso, como bem a ser consumido,
do de Mato Grosso, divididos em sete terras cola como nos meios de comunicação”. mas ela não é apenas isso, ele é vida, é ma-
indígenas (TIs): Areões (município de Água Segundo o agente de indigenismo e téria, espírito e isso fica distante do que nos
Boa), Marechal Rondom (Paranatinga), Pa- ex-coordenador regional da Funai em Bar- acostumamos a ter como valor”, acrescen-
rabubure (Campinápolis), Pimentel Barbosa ra do Garças, Gustavo Sanches Nunes dos tou Magno.
(Canarana e Ribeirão Cascalheira), Sangra- Santos, “lá no Sudeste, o pessoal adora ín- Um exemplo claro da nova organi-
douro (General Carneiro, Novo São Joaquim dio e aqui o pessoal odeia eles. Eu fui ver zação de vida foi abordado pelo diácono sa-
e Poxoréu), São Marcos (Barra do Garças) e as histórias, principalmente aquelas em que lesiano e membro do Conselho Indigenista
Marãiwatsédé (Alto da Boa Vista, Bom Jesus o povo acha que eles nascem aposentados. Missionário (Cimi) José Alves de Oliveira,
do Araguaia e São Félix do Araguaia). Essa é uma das que faz mais mal. O povo que atua na região de Campinápolis. “Na
acha que eles estão no ‘bem bom da vida’, só hora do Dabatsa (casamento), o rapaz tinha
Guerreiros pacificados - O povo porque são índios. Falam que eles não traba- que demonstrar um grande gesto ao pai da
Xavante, segundo o livro do sacerdote cató- lham ou que são burros porque não falam a noiva antes de ele entregar a filha. Qual é
Encontro entre Meireles e xavantes o grande gesto? Ir à caçada e trazer muitos
lico Bartolomeu Giaccaria e do missionário nossa língua”.
alemão Adalberto Heide, Xavante - o Povo Au- Foi somente em 1960, quando quase De acordo com Gustavo, o Xavan- animais, carne. Quando o pai da menina vê
têntico (1972), diz ser oriundo do mar, mas as todas as aldeias já haviam estabelecido algum te possui três fontes de renda principais: “A o genro dele com muita carne, o velho fica
primeiras notícias das quais temos conheci- tipo de contato pacífico com as representa- primeira são os benefícios sociais, como o tranquilo, porque sabe que a filha não vai
mento são de 1784 e 1788, quando já habita- ções da sociedade envolvente, que essa paci- Bolsa Família, a aposentadoria rural, o salá- passar fome, não vai passar necessidade. Mas
vam a região do norte de Goiás e sofreram a ficação foi reconhecida. Durante os anos se- rio maternidade e o auxílio doença. A segun- com esse processo de demarcação de terra e
primeira tentativa de pacificação empreendida guintes, várias doenças foram contraídas por da, é o salário de servidor na Saúde ou na a caça cada vez mais escassa, criou-se outro
pelo então governador da província, Tristão meio de roupas usadas doadas às aldeias, fato Educação. A terceira, são os empregos em modo de ver a sobrevivência da filha, o salá-
da Cunha. Os Xavante foram então submeti- que resultou na morte da maioria dos anciões, atividades privadas. Mas a maior parte é de rio”, afirma José Alves.
dos à governança da Coroa portuguesa, que principais transmissores da cultura. benefícios sociais. Os Xavante enfrentam A liberdade cultural buscada por
os manteve em uma aldeia única chamada Nos anos de 1970 os incentivos fiscais muitas dificuldades para conseguir emprego. todos os povos do mundo passa necessa-
Carretão. Nesse aldeamento, militarmente destinados à colonização e ao desenvolvimen- Há muito preconceito”, conclui ele. riamente, no caso do povo Xavante, pela
vigiado e sob constantes abusos, enfraque- to econômico atraíram colonos para as áreas O contato com a sociedade envolven- manutenção dos seus modos próprios de vi-
ceram e caminharam rapidamente rumo à tradicionalmente ocupadas pelos Xavante e o te gerou profundas modificações na cultura, ver, o que significa formas de organizar tra-
extinção. território, que durante quase cem anos havia enfraquecendo as matrizes cosmológicas e balhos, de dividir bens, de educar filhos, de
Em 1850/1860, um pequeno grupo reestruturado seu modo de vida, estava ame- míticas em torno das quais a vida na aldeia contar histórias de vida, de praticar rituais e
conseguiu fugir e atravessar o Rio Araguaia açado. era moldada. de tomar decisões sobre a vida coletiva.
(que marca boa parte da divisa de Goiás e Segundo o relatório do Instituto So- Dentro da cultura Xavante, os sonhos Dessa maneira, os Auwê Uptabi não
Mato Grosso) e o Rio das Mortes (afluente cioambiental (ISA), que explica sobre a his- definem nomes, cantos, rituais; são previsões são participantes de uma sociedade do pas-
mato-grossense do Araguaia), chegando à tória da pacificação, “o acesso a porções do de boas ou más notícias e definem o papel de sado. São povos de hoje, dentro de uma cul-
Serra do Roncador, parte norte-oriental do território tradicional do povo Xavante envol- cada indivíduo dentro da aldeia. O ritual tura que também se transforma, que repre-
Planalto Central Brasileiro. Neste local, con- veu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos Waiá’rini (iniciação espiritual), que pode senta uma parcela significativa da população
seguiram se restabelecer, recusando qual- em que, para disponibilizar terras à produção durar até três meses, dependendo da brasileira e que por sua diversidade cultural,
quer contato com outra sociedade durante capitalista, autoridades alteraram mapas e aldeia, é baseado na territórios, conhecimentos e valores ajudam
quase um século. atestaram a ausência de habitantes indígenas”, privação de comida, a construir o Brasil.
Em 1932, dois padres católicos sale- relata o documento. água e conforto, na
sianos, Pedro Sacilotti (32 anos) e João Fu- A fome e os constantes conflitos tentativa de induzir
chs (52 anos), foram mortos por um grupo com os colonos fizeram com que alguns gru- os participantes a
de xavantes descontentes com a invasão de pos procurassem ajuda nos postos do SPI, sonharem e, assim,
seus territórios durante a Missão Mato Gros- enquanto outros pediam auxílio em missões definir quem são os
so, projeto da Igreja Católica para promover salesianas. Em meados dos anos 1970, as novos curandeiros, guerrei-
a aproximação com os indígenas da região. famílias que haviam deixado as terras habi- ros e sonhadores daquela
Hoje, ambos são mártires da Missão Sale- tadas retornaram e acharam áreas ocupadas comunidade.
siana, que ainda é efetiva nas TIs do Mato por colonos e fazendeiros destinadas ao O geógrafo e his-
Ilustração: Ana Carolina Custódio
Grosso, principalmente em Sangradouro. agronegócio. Em algumas localidades, ha- toriador Magno Silvestri,
Em 1938, o governo de Getúlio Var- viam sido estabelecidas cidades inteiras. professor da Universidade
gas deu início à famosa Marcha para o Oeste, O caso mais conhecido - e recente - é Federal de Mato Gros-
tendo como objetivo a migração de parte da dos indígenas de Marãiwatsédé (municípios so, Campus Universitário
população brasileira para a região “desocupa- de Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia do Araguaia, em Barra do
da” do centro do Brasil, trazendo um novo e São Félix do Araguaia), que, somente depois Garças, está em fase final do
risco de contato aos A’uwê. Ficou sob o en- de 34 anos, conseguiram retornar à sua terra doutorado na Universidade Federal
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e acordo com estatística di- A Secretaria Especial dos Direitos
vulgada pelo Fórum Brasi- Humanos da Presidência da República tam-
leiro de Segurança Pública bém não possui informações sobre os casos
(FBSP), cerca de 45.500 denunciados. Por isso, foi necessário recor-
mulheres foram estupra- rer à Ouvidoria da Secretaria Especial de Po-
das em 2015 no Brasil. Isso significa que líticas para as Mulheres para obter os dados.
ra, que atende 49 aldeias da Terra Indígena denuncia sempre, é preciso considerar
tipo de vínculo com os indígenas. Um dos
São Marcos, em Barra do Garças. que a sociedade indígena possui seu pró-
três agressores não indígenas, segundos os
Trata-se do caso de uma menina de relatos ou registros policiais, é um freteiro prio sistema de normas, controles e pu-
12 anos estuprada na sua aldeia, cujo agres- (que faz transporte de e para os indígenas), nições, baseado na sua própria tradição
sor, segundo Suelainy, seria o primo da víti- outro é motorista de ônibus escolar e o cultural, o que pode ter inibido a denûn-
ma, professor da escola local. Essa menina terceiro, um Policial Militar do Estado de cia e a busca por proteção e punição em
teria fugido para a cidade com a mãe dela Goiás. São denúncias que ainda passam por outro sistema.
e, segundo Suelainy, está morando em uma investigação e segredo de justiça. Por isso, Fragilidade dos dados - É ní-
casa alugada na cidade de Aragarças (GO), não podem ter nomes de vítimas e supostos tida a falta e o desencontro de informa-
separada de Barra do Garças apenas pelas agressores divulgados. ções sobre a violência sexual contra as
pontes dos rios Garças e Araguaia. O número de casos de violência se- mulheres indígenas. Além do Cimi, so-
Já o terceiro caso não registrado xual contra as mulheres indígenas em todo mente a Organização das Nações Unidas
em delegacias foi informado pela diretora o território da etnia Xavante pode ser maior (ONU) possui dados sobre os indígenas.
da Escola Estadual Couto Magalhães, de do que os casos aqui apontados. Isso por- Um relatório da ONU de 2010 afirma
Campinápolis, Miriam Lacerda. Trata-se que, em razão do tempo e da logística da que uma em cada três índias sofre vio-
de assédio sexual denunciado pelos pais reportagem, apenas os casos de Barra do lência sexual durante a vida, em todo o
de alunas, que apontam um motorista de Garças, General Carneiro e Campinápolis mundo. Mas o organismo não tem dados Gustavo Gomes Sanches Nunes dos
ônibus escolar da Prefeitura da cidade
foram pesquisados. específicos sobre o Brasil. Santos - agente de indigenismo/Funai
como o agressor.
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Mudança de hábito
Os Xavante estão denunciando cada vez mais os casos de estupro praticados pelos próprios indígenas às delegacias
de polícia. Uma das explicações é o fato ao enfraquecimento do sistema interno de normas e punições
T
reze dos 17 casos de estupro As opiniões sobre o significado des-
contra mulheres indígenas sa mudança de hábitos divergem, revelando
informados nas páginas 3 e a complexidade que há para compreender as
4 deste jornal, boa parte de interações culturais do Xavante com a so-
meninas menores de 14 anos, ciedade majoritária ou envolvente, simplo-
foram denunciados pelos próprios Xavante riamente chamada de branca.
em delegacias da Polícia Civil. O procurador da República Wilson
Dentro da cultura desses povos Rocha Fernandes Assis, que trabalhou com
originários, existe um sistema de normas os indígenas Xavante enquanto exerceu o
que penaliza práticas não aprovadas por cargo em Barra do Garças, até 2016, diz que
eles. Mesmo assim, os Xavante começam “a gente erra quando acha estranho que o
“Punição do sexo”
O estupro coletivo ainda é aplicado como pena às mulheres que violam regras
importantes da comunidade Xavante, mas começa a ser questionado
A
separação de gênero dos
Xavante é algo tão flagrante
dentro das aldeias que, em
uma primeira análise e sob
o olhar do waradzu (não indí-
gena, na língua Xavante), eles acabam sendo
considerados machistas.
queira, mas exclusivamente como punição, da a cultura dos Kamaiurá. "Se uma mulher
que seria aplicada à mulher que ousa espio- olhar a flauta jacuí, ela é estuprada por toda
nar os rituais masculinos. “Mas, na prática, a aldeia. Esse é o castigo. Nunca soube de
Foto: João Paulo Fernandes
ao menos no grupo em que eu vivi, nunca alguma que tenha sido punida, mas conta-
acontece, porque a punição é tão severa que se que uma mulher, de tal povo, que pas-
nenhuma mulher se arrisca”, diz Severiá. sou inadvertidamente, talvez tenha sofrido
Todos os indígenas entrevistados as consequências. Então, existe o estupro
para esta reportagem, homens e mulheres, como a maior punição que pode ocorrer a
confirmam a existência dessa punição e a uma mulher, quando transgride a regra de
entendem como cultural, embora, em geral, não poder ver as flautas". Essas declarações
os homens se apressem bem mais em justi- constam de uma entrevista concedida por
ficá-la. Um deles é o chefe da Casa de Saú- Carmem ao site SciELO Brasil.
de Indígena (Casai) de Campinápolis (MT), A prática do estupro coletivo, confir-
o técnico em enfermagem e líder Xavante mada apenas como punição do sexo, começa
Lino Tsere’ubudzi Moritu. “Existe, mas é a perder o status de unanimidade entre os
da cultura, é cultural!”, diz ele rapidamente e Xavante, seja devido ao contato com a socie-
com certo constrangimento ou contrarieda- dade não indígena ou por mais respeito a mu-
Lino Tsere’ubudzi Moritu, chefe da
de com a pergunta. lher. Dentro das aldeias, já começam a surgir Professora Severiá Maria Idioriê
Casai de Campinápolis
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Violência indireta
A prostituição se transformou em alternativa de sobrevivência para várias
mulheres Xavante e, em alguns casos, para a inserção na sociedade de consumo
N
o imaginário comum so- não é vista com bons olhos por Marcelina Para o professor universitário Magno local pelos indígenas decorrente de salários
cial, a mulher indígena e muitos outros Xavante da região. O líder Silvestri (UFMT), a redução territorial é um de professores e servidores da saúde, de
seria a silvícola, que mora Serere, casado com uma mulher não indí- dos principais fatores que levam os indíge- aposentadorias e pensões e de programas
no mato, longe da civiliza- gena e morador da cidade de Campinápolis, nas a viver em estado de penúria. “A própria sociais públicos. Fernanda é mais uma voz
ção. Mas essa imagem não vê a prostituição como culpa dos homens. imposição da lógica territorial que o Esta- da cidade a confirmar a existência da pros-
coincide com a atual realidade dos indígenas “Quem está errado é o marido, porque do faz a eles, retirando a caça, a coleta e a tituição das mulheres indígenas, que classi-
Xavante, pois o contato com a sociedade en- quem deve garantir o sustento é ele. Quan- pesca que havia em certa ‘abundância’, faz fica como um problema social, ao lado da
volvente já é tão grande que diariamente um do a mulher não tem [esposo], quem garan- com que muitas comunidades passem neces- pobreza e do alcoolismo.
considerável número deles se desloca até as te é o pai”, pontua. sidade. Mesmo com a roça, muitas famílias Segundo o assistente social da Casa
cidades originariamente não indígenas. Mui- Na Casa de Saúde Indígena (Casai) dependem ainda da assistência dos órgãos de Saúde Indígena (Casai) no município de
tos até já vivem nelas. As aldeias possuem da cidade, órgão vinculado ao Ministério da indigenistas, com cesta básica, e assim o Bol- Campinápolis, Divino Pereira de Jesus, a mi-
tecnologia, o meio ambiente já não oferece Saúde, a prostituição de mulheres indígenas sa Família se torna o carro-chefe para conse- gração para a cidade ocorre sem que exista
a base do sustento, o dinheiro é moeda de já é vista como um problema social, ao lado guir recursos do Estado”, pontua uma política pública que se preocupe ade-
troca, o álcool é vício, o agronegócio reduz o do alcoolismo e da diabetes. Neste caso, por Em Campinápolis, a oportunidade quadamente com as condições de vida na
território, as mudanças climáticas e o agrotó- causa do consumo de açúcar e sal, presentes de emprego para homens e mulheres indíge- cidade. “O poder público não está preocu-
xico influenciam na colheita. nos refrigerantes e outros produtos larga- nas se resume aos cargos nas escolas, inclu- pado em criar políticas públicas para essa
Espremidas pelo território, pela falta mente consumidos pela população indígena. sive de professor, e nas unidades de saúde. parte da população. E a Funai também está
de recursos e pela ausência de políticas pú- O diagnóstico é compartilhado pelo chefe Os comerciantes não contratam os indígenas deixando a desejar”, comenta.
blicas, segundo depoimentos, as mulheres local do órgão, o líder indígena Lino Tse- porque se protegem no preconceito do senso O coordenador técnico da Funda-
indígenas de Campinápolis (MT) têm re- re’ubudzi Moritu e o assistente social Divino comum ao afirmarem que os indígenas rou- ção Nacional do Índio (Funai) em Cam-
corrido à prostituição, especialmente para Pereira de Jesus. bam, não sabem trabalhar ou são preguiçosos. pinápolis (MT), Isaac Mie Ajawe, confir-
garantir o sustento, mas também para se in- O agente de indigenismo da Funai Esse preconceito foi relatado por vereadores, ma que não há apoio e recursos para uma
serir no mercado de consumo característico Gustavo Gomes, que atuou como coorde- funcionários públicos, servidores da área in- política de inserção do jovem Xavante na
do mundo capitalista. Alguns homens tam- nador da Regional Xavante de 2013 até abril dígena, funcionários de escolas, entre outras cidade, como oferta de cursos profissio-
bém recorrem a essa prática, pelas mesmas de 2017, confirma a existência da prostitui- fontes. Também é possível constatar essa im- nalizantes e outras medidas. “A Funai não
razões, mas com a venda do corpo de suas ção e as necessidades pelas quais os indígenas pressão andando pela cidade. dá assistência para quem mora na cidade,
filhas ou esposas. passam. “A prostituição existe, é por questão Uma exceção à onda de preconcei- porque atua dentro das aldeias. Sabemos
Segundo a diretora da Escola Es- que há mais de 400 famílias de Xavante
tadual Couto Magalhães, Miriam Lagares, que moram aqui na cidade de Campinápo-
muitas alunas indígenas se prostituem pela “A prostituição existe, é por questão de lis. O papel da Funai hoje é simplesmente
falta de recursos para sobreviver na cidade.
“A prostituição é por necessidade. Pela fal-
miséria mesmo” guardar o direito deles; ela deixou de ser
tutor”, acrescenta Isaac.
ta de comida dentro de casa. Elas chegam O agente de indigenismo da FUNAI
e se oferecer por R$10,00/20,00. Percebo de miséria mesmo. O Xavante, eu vejo que é tos é Dalva Silva, comerciante e dona de Gustavo Gomes informa que “a renda dos
quando elas chegam com roupas, batons e 100% de necessidade. É nítido que eles estão hotel na cidade, que há quatro anos man- Xavante normalmente é do aposentado rural
dinheiro, porque muitas vêm estudar na ci- passando dificuldades”. tém mulheres indígenas Xavante no quadro [R$ 937,00], que sustenta dois ou três filhos
dade e não têm condições de manter as coi- A crescente prostituição de indíge- de funcionários. Ela critica os seus colegas adultos e vinte netos. Essa renda é dividida
com mais 30 pessoas”. Entretanto, ele lem-
sas básicas, como água e energia”. Segundo nas, assim como o alcoolismo, a diabetes e comerciantes e diz que a relação de patroa
bra que alguns indígenas são funcionários
a diretora, essa oferta do corpo ocorre es- outros problemas, está relacionada, segundo e empregada é de confiança. Ela designa a nos serviços de educação e saúde e que, por-
pontaneamente nas ruas e nos espaços pú- os depoimentos colhidos, à forma com que função de ir aos supermercados às suas duas tanto, têm renda melhor.
blicos da cidade. se deu a relação interétnica, isto é, o contato funcionarias indígenas e diz nunca ter havido Segundo o Censo do Instituto Bra-
Entretanto, a prostituição também com os não indígenas, como uma violência qualquer motivo que a fizesse desconfiar das sileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de
ocorre dentro das aldeias. A diretora da es- indireta. Não é direta porque, diferente- funcionárias ou para se decepcionar com a 2010. Segundo o levantamento, Campiná-
cola estadual Aldeona, Marcelina Ro’onhiwe, mente do estupro, na prostituição, o sexo qualidade do serviço polis está entre os municípios que possuem
diz que dentro da aldeia também encontra é consentido, voluntário. Mas a violência se A vereadora Fernanda Maia (PSC) um dos maiores índice de pobreza (47,48%)
mulheres vendendo o corpo aos madeirei- faz presente porque a decisão de oferta do afirma que o preconceito esconde uma em relação aos outros municípios de Mato
ros, por necessidade ou pela aproximação corpo aos homens não indígenas em troca grande contradição, já que, segundo ela, os Grosso. O Índice de Desenvolvimento Hu-
com o não indígena e seus hábitos. “Dentro de dinheiro ou bens não é rigorosamente indígenas sustentam a economia da cidade. mano (IDH) chega a 0,538. A “síntese do va-
lor do rendimento nominal mediano mensal
da aldeia já tem prostituição de mulheres in- voluntária. Segundo os depoimentos, ela é “Hoje, sabemos que quem mantém a eco-
per capita dos domicílios particulares per-
dígenas com o branco. As mulheres querem fruto da necessidade criada a partir dessa re- nomia de Campinápolis são os indígenas. manentes da zona rural”, segundo a classifi-
ficar e pra eles é normal”. lação desfavorável com a sociedade majori- São mais de oito mil indígenas no municí- cação do instituto, é de R$ 93,33. Esse dado
Mesmo com sua existência reconhe- tária, ou de incorporação abrupta de valores pio [53,5% da população]! Se retirarem eles, da zona rural, portanto, é bem inferior ao da
cida pela comunidade indígena, e conside- não originais, como o consumo de itens não o município entra em falência”, comenta. zona urbana, de R$ 403,33 mensais, embora
rada normal em alguns casos, a prostituição tradicionais da cultura. Ela se refere ao dinheiro gasto no comércio este também seja extremamente baixo.
Foto: Sckarleth Martins / Arquivo NPD
Duplamente invisibilizadas
Mulheres Xavante sofrem com a invisibilização étnica e de gênero,
mas lutam por respeito e participação nas políticas que afetam a comunidade
A
sociedade indígena sofre depoimentos de mulheres indígenas que
constante invisibilização por sofreram algum tipo de violência domés-
parte da sociedade envolven- tica. No livro, elas destacam o motivo de
te, seja pela inexistência ou procurarem a lei de fora de suas comunida-
pela ineficiência de políticas des: “Nossas leis internas devem ser valo-
públicas, pelo desconhecimento da cultura rizadas, mas existem problemas que foram