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A violência contra a mulher Xavante

que aos poucos se vê


“A palavra índio não retrata minha experiência de pertencimento a um povo. Não sou índio, sou Munduruku. Pertenço a um
povo e esse povo tem um lugar, uma história, tradição, cultura, religiosidade, economia... No entanto, quando as pessoas me
chamam de índio, elas ignoram a minha experiência de humanidade. Quando digo que não sou índio, digo que não sou uma ideia
que as pessoas desenvolveram equivocadamente” (Daniel Munduruku - fala retirada da Mesa “A imperdoável capacidade
humana de apagar seus antepassados”, da Festa Literária Internacional de Cachoeira - FLICA / Bahia)

Esse depoimento mostra que a invisibilização dos indígenas no Brasil começa pelo nome, mas
se estende a todo o seu universo. A incompreensão da sua língua (enquanto eles se esforçam
para compreender o português), a redução do seu território, a consequente diminuição da caça e da
pesca, a incorporação de hábitos como o consumo exagerado de açúcar,sal e álcool são dramas
em grande parte invisíveis. Talvez porque a sociedade envolvente os trate como selvagens (página 2).
Nesse contexto, a mulher indígena, como a Xavante, que é tema deste jornal, sofre dupla invisibilização,
étnica e de gênero (página 8), mas trata-se de um processo que está em fase de reversão, graças à luta
dessas guerreiras. É o que este jornal tenta captar a partir do seu nome, com a palavra completa INVISÍVEIS,
produzida nas cores tradicionais dos Xavante. Mas a parte vermelha do nome busca demonstrar que aos
poucos a palvara VISÍVEIS começa a refletir a vida dessas mulheres e do seu povo.
Drama especial é o das mulheres vítimas de violência, tema central deste jornal, abordado com o relato
dos estupros sofridos - muitas vezes por meninas vulneráveis - e suas possíveis explicações (páginas 3 e
4). Mas também há a punição cultural relacionada ao sexo, retratada para contextualizar adequadamente
o assunto (página 6), a mudança de hábito representada pelo ato das vítimas em denunciar os estupros
fora do seu próprio sistema de normas, controles e punições (página 5) e, finalmente, a violência indireta
sofrida pelas Xavante que se prostituem para sobreviver (página7).
Este jornal - fruto de uma das 10 pautas nacionais vencedoras do 9o Prêmio Jovem Jornalista
Fernando Pacheco Jordão 2017, do Instituto Vladimir Herzog (SP) - trata, portanto, de uma invisibilização
histórica, mas procurando captar o movimento de visibilização que dela emerge, ainda que lentamente.
Foto: Skarleth Martins / Arquivo NPD
2 OUTUBRO 2017

História marcada pela interferência


Depois de resistirem durante muitos anos ao contato com a sociedade

Foto: João Paulo Fernandes


E
envolvente, os Xavante lutam hoje pela sobrevivência física e cultural
stimativas apontam que antes cargo do então Serviço de Proteção ao Índio de origem e encontraram 61,5% do território
de 1500 o território brasileiro (SPI), atual Fundação Nacional do Índio (Fu- explorado à exaustão pela pecuária.
era habitado por 5 milhões de nai), a tarefa de “pacificar” os Xavante. Com o passar dos anos, devido à
pessoas, segundo documento Nesta época, por motivos ainda reação de alguns membros da comunidade
da Unesco do ano de 2006. desconhecidos, surgiram rivalidades e lu- em buscar seus direitos e, com o auxílio do
Essa população nativa caiu para 896 mil ha- tas sangrentas entre vários grupos do povo Xavante Mário Juruna (PDT/RJ), primeiro e
bitantes em 2010, o que representa 0,4% do Xavante, que resultaram na morte de uma único índigena até hoje à chegar ao posto de
País, segundo dados do Instituo Brasileiro de equipe de pacificação do SPI chefiada por deputado federal (1983 à 1987), a luta pela
Geografia e Estatística (IBGE). Pimentel Barbosa (nome de uma das atuais demarcação e homologação das terras tradi-
Reconhecer essa baixa no contin- Tis), em 1941. cionalmente ocupadas ganhou força.
gente populacional indígena é dar o pri- Porém, foi somente em 1946, tam- Professor Magno Silvestri (UFMT)
meiro passo rumo ao esclarecimento da bém com a equipe do SPI, mas já liderada Povo invisível - A imagem do in-
história por trás das profecias de extinção por Francisco Meirelles, que a meta de paci- dígena como um empecilho para o desen- Fluminense (UFF) sobre conflitos territoriais
dos povos, previstas ainda no milênio pas- ficação foi atingida através da troca de bens volvimento, preguiçoso e improdutivo está que envolvem o povo Xavante e explicou que
sado, e sobre as “pacificações” - mesmo com representantes do grupo Xavante lide- fortemente marcada nos municípios em que “o poder dos Xavante tem uma forte relação
que em menor grau - ainda impostas. rados pelo indígena Apöena. A celebração estão localizadas as Terras Indígenas. O pre- com os sonhos, que ocorre após as exausti-
Os povos originários resistem e da mídia foi intensa e a publicidade em torno conceito contrasta com a imagem de outros vas atividades de caça, que se estendem por
dão continuidade aos seus projetos coleti- da pacificação dos Xavante alçou Meirelles e membros da comunidade não Xava nte, que vastas áreas de terra, dia após dia. Então, a
vos de vida, reconhecendo os valores her- Apöena à posição de heróis nacionais. enxergam os indígenas como valiosos prote- orientação dos anciãos, a cultura que eles
dados de seus antepassados, expressando tores das florestas, dos rios, e possíveis sal- transmitem para os mais jovens, tem muita
e vivendo sua cultura através dos ritos e vadores do planeta, ou que reconhecem os relação com a integridade territorial. Se esse
crenças. São projetos de vida de 305 et- indígenas como povo e nação e o seu direito território está devastado, não tem mais caça
nias que resistiram a toda essa história de a um mínimo de auto-determinação e ma- pra esse povo. O ancião ou aquele guerreiro
opressão e repressão. nutenção da sua cultura e do seu território. perdem o poder do sonho”.
Entre as etnias que quase sucum- O texto de Luís Donisete Grupioni, “O território possui então uma
biram estão os A’uwê Uptabi, o Povo Ver- publicado em 1995 pela Unesco, explica que importância tão subjetiva e tão ampla que
Foto: Lamonica /Museu do Índio, 1951

dadeiro, ou Xavante, como são conhecidos “a imagem de um índio genérico, estereoti- a gente não dá conta de entender. Somos
pela sociedade não-indígena. São cerca de 20 pado, que vive nu no mato, mora em ocas e acostumados a tratar a natureza e as terras
mil indígenas que ocupam o leste do esta- tabas, permanece predominante, tanto na es- como recurso, como bem a ser consumido,
do de Mato Grosso, divididos em sete terras cola como nos meios de comunicação”. mas ela não é apenas isso, ele é vida, é ma-
indígenas (TIs): Areões (município de Água Segundo o agente de indigenismo e téria, espírito e isso fica distante do que nos
Boa), Marechal Rondom (Paranatinga), Pa- ex-coordenador regional da Funai em Bar- acostumamos a ter como valor”, acrescen-
rabubure (Campinápolis), Pimentel Barbosa ra do Garças, Gustavo Sanches Nunes dos tou Magno.
(Canarana e Ribeirão Cascalheira), Sangra- Santos, “lá no Sudeste, o pessoal adora ín- Um exemplo claro da nova organi-
douro (General Carneiro, Novo São Joaquim dio e aqui o pessoal odeia eles. Eu fui ver zação de vida foi abordado pelo diácono sa-
e Poxoréu), São Marcos (Barra do Garças) e as histórias, principalmente aquelas em que lesiano e membro do Conselho Indigenista
Marãiwatsédé (Alto da Boa Vista, Bom Jesus o povo acha que eles nascem aposentados. Missionário (Cimi) José Alves de Oliveira,
do Araguaia e São Félix do Araguaia). Essa é uma das que faz mais mal. O povo que atua na região de Campinápolis. “Na
acha que eles estão no ‘bem bom da vida’, só hora do Dabatsa (casamento), o rapaz tinha
Guerreiros pacificados - O povo porque são índios. Falam que eles não traba- que demonstrar um grande gesto ao pai da
Xavante, segundo o livro do sacerdote cató- lham ou que são burros porque não falam a noiva antes de ele entregar a filha. Qual é
Encontro entre Meireles e xavantes o grande gesto? Ir à caçada e trazer muitos
lico Bartolomeu Giaccaria e do missionário nossa língua”.
alemão Adalberto Heide, Xavante - o Povo Au- Foi somente em 1960, quando quase De acordo com Gustavo, o Xavan- animais, carne. Quando o pai da menina vê
têntico (1972), diz ser oriundo do mar, mas as todas as aldeias já haviam estabelecido algum te possui três fontes de renda principais: “A o genro dele com muita carne, o velho fica
primeiras notícias das quais temos conheci- tipo de contato pacífico com as representa- primeira são os benefícios sociais, como o tranquilo, porque sabe que a filha não vai
mento são de 1784 e 1788, quando já habita- ções da sociedade envolvente, que essa paci- Bolsa Família, a aposentadoria rural, o salá- passar fome, não vai passar necessidade. Mas
vam a região do norte de Goiás e sofreram a ficação foi reconhecida. Durante os anos se- rio maternidade e o auxílio doença. A segun- com esse processo de demarcação de terra e
primeira tentativa de pacificação empreendida guintes, várias doenças foram contraídas por da, é o salário de servidor na Saúde ou na a caça cada vez mais escassa, criou-se outro
pelo então governador da província, Tristão meio de roupas usadas doadas às aldeias, fato Educação. A terceira, são os empregos em modo de ver a sobrevivência da filha, o salá-
da Cunha. Os Xavante foram então submeti- que resultou na morte da maioria dos anciões, atividades privadas. Mas a maior parte é de rio”, afirma José Alves.
dos à governança da Coroa portuguesa, que principais transmissores da cultura. benefícios sociais. Os Xavante enfrentam A liberdade cultural buscada por
os manteve em uma aldeia única chamada Nos anos de 1970 os incentivos fiscais muitas dificuldades para conseguir emprego. todos os povos do mundo passa necessa-
Carretão. Nesse aldeamento, militarmente destinados à colonização e ao desenvolvimen- Há muito preconceito”, conclui ele. riamente, no caso do povo Xavante, pela
vigiado e sob constantes abusos, enfraque- to econômico atraíram colonos para as áreas O contato com a sociedade envolven- manutenção dos seus modos próprios de vi-
ceram e caminharam rapidamente rumo à tradicionalmente ocupadas pelos Xavante e o te gerou profundas modificações na cultura, ver, o que significa formas de organizar tra-
extinção. território, que durante quase cem anos havia enfraquecendo as matrizes cosmológicas e balhos, de dividir bens, de educar filhos, de
Em 1850/1860, um pequeno grupo reestruturado seu modo de vida, estava ame- míticas em torno das quais a vida na aldeia contar histórias de vida, de praticar rituais e
conseguiu fugir e atravessar o Rio Araguaia açado. era moldada. de tomar decisões sobre a vida coletiva.
(que marca boa parte da divisa de Goiás e Segundo o relatório do Instituto So- Dentro da cultura Xavante, os sonhos Dessa maneira, os Auwê Uptabi não
Mato Grosso) e o Rio das Mortes (afluente cioambiental (ISA), que explica sobre a his- definem nomes, cantos, rituais; são previsões são participantes de uma sociedade do pas-
mato-grossense do Araguaia), chegando à tória da pacificação, “o acesso a porções do de boas ou más notícias e definem o papel de sado. São povos de hoje, dentro de uma cul-
Serra do Roncador, parte norte-oriental do território tradicional do povo Xavante envol- cada indivíduo dentro da aldeia. O ritual tura que também se transforma, que repre-
Planalto Central Brasileiro. Neste local, con- veu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos Waiá’rini (iniciação espiritual), que pode senta uma parcela significativa da população
seguiram se restabelecer, recusando qual- em que, para disponibilizar terras à produção durar até três meses, dependendo da brasileira e que por sua diversidade cultural,
quer contato com outra sociedade durante capitalista, autoridades alteraram mapas e aldeia, é baseado na territórios, conhecimentos e valores ajudam
quase um século. atestaram a ausência de habitantes indígenas”, privação de comida, a construir o Brasil.
Em 1932, dois padres católicos sale- relata o documento. água e conforto, na
sianos, Pedro Sacilotti (32 anos) e João Fu- A fome e os constantes conflitos tentativa de induzir
chs (52 anos), foram mortos por um grupo com os colonos fizeram com que alguns gru- os participantes a
de xavantes descontentes com a invasão de pos procurassem ajuda nos postos do SPI, sonharem e, assim,
seus territórios durante a Missão Mato Gros- enquanto outros pediam auxílio em missões definir quem são os
so, projeto da Igreja Católica para promover salesianas. Em meados dos anos 1970, as novos curandeiros, guerrei-
a aproximação com os indígenas da região. famílias que haviam deixado as terras habi- ros e sonhadores daquela
Hoje, ambos são mártires da Missão Sale- tadas retornaram e acharam áreas ocupadas comunidade.
siana, que ainda é efetiva nas TIs do Mato por colonos e fazendeiros destinadas ao O geógrafo e his-
Ilustração: Ana Carolina Custódio

Grosso, principalmente em Sangradouro. agronegócio. Em algumas localidades, ha- toriador Magno Silvestri,
Em 1938, o governo de Getúlio Var- viam sido estabelecidas cidades inteiras. professor da Universidade
gas deu início à famosa Marcha para o Oeste, O caso mais conhecido - e recente - é Federal de Mato Gros-
tendo como objetivo a migração de parte da dos indígenas de Marãiwatsédé (municípios so, Campus Universitário
população brasileira para a região “desocupa- de Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia do Araguaia, em Barra do
da” do centro do Brasil, trazendo um novo e São Félix do Araguaia), que, somente depois Garças, está em fase final do
risco de contato aos A’uwê. Ficou sob o en- de 34 anos, conseguiram retornar à sua terra doutorado na Universidade Federal
OUTUBRO 2017 3

Violência dentro e fora do seu mundo


Delegacias de polícia e de defesa da mulher registram muitos casos de violência sexual contra mulheres
Xavante. Maioria das vítimas têm menos de 14 anos e os agressores são, em geral, da própria etnia

D
e acordo com estatística di- A Secretaria Especial dos Direitos
vulgada pelo Fórum Brasi- Humanos da Presidência da República tam-
leiro de Segurança Pública bém não possui informações sobre os casos
(FBSP), cerca de 45.500 denunciados. Por isso, foi necessário recor-
mulheres foram estupra- rer à Ouvidoria da Secretaria Especial de Po-
das em 2015 no Brasil. Isso significa que líticas para as Mulheres para obter os dados.

ilustração: Ana Carolina Custódio


a cada 11,5 minutos uma mulher sofre vio- Após consulta à área técnica da Secretaria de
lência sexual no País. Enfrentamento à Violência contra as Mulhe-
No mesmo ano, o estado de Mato res, a Ouvidoria informou que a Central de
Grosso acumulou 45 registros, mais que Atendimento 180 não possui dados estatís-
o dobro da média nacional, que foi de ticos sobre exploração sexual indígena que
22,2 casos registrados a cada 100 mil ha- possam certificar o fato. A Central 180 é um
bitantes. O estado perde apenas para o
serviço à disposição do cidadão para denun-
Acre e Mato Grosso do Sul, que registra-
ram, respectivamente, 65,2 e 53,9 casos a ciar, com proteção do anonimato, os casos
cada 100 mil habitantes. de violência contra a mulher.
Já a Delegacia Especializada de De- Nesse contexto de carência ou con-
fesa da Mulher (DEDM) de Barra do Gar- tradição de informações, surpreende o fato
ças (MT) registrou 20 casos de estupro no de nem a Fundação Nacional do Índio (Fu-
município de Barra do Garças (MT) nos nai) ter dados. Não há registros de estupros
primeiros cinco meses de 2017. O Delegado e todos os servidores procurados formal ou
Heródoto Souza Fontenelle informa que a Releitura de um desenho feito por uma adolescente Xavante da Escola Couto Magalhães, Campinápolis (MT) informalmente, falando ou não em nome da
cidade mantém os mesmos índices registra- entidade, negam a existência do fato ou dizem
dos de janeiro a maio de 2016. O quarto e último caso não docu- A população Xavante dessas três re- que existe, mas não há documentos ou dados.
Já em relação às mulheres indígenas, mentado em delegacias de polícia foi in- giões é, respectivamente, de 3.487, 1.427 e O agente de indigenismo da Funai
o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), formado por uma psicóloga do serviço de 7.621 indígenas, segundo dados do IBGE de Gustavo Gomes Sanches Nunes dos San-
órgão vinculado à Conferência Nacional dos saúde indígena. Este, tem como vítima uma 2010, o que representa um total de 12.535 tos confirma a existência desse tipo de fatos
Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica, xavante adolescente e como agressor um ho- membros dessa etnia. Já a população Xa- e chegou a comentar um caso de um indí-
informa que, durante o ano de 2015, foram mem da própria etnia. vante total apontada pelo mesmo censo é de gena que teria relatado a ele o estupro de
registrados nove casos de violência sexual, Seis dos oito casos em que a idade está 19.259 indígenas. E a população dos Bororo sua filha por um fazendeiro não indígena,
assim distribuídos: Amapá (1), Mato Grosso identifdicada são de meninas menores de 14 é de 1.817 pessoas. mas que, após ter ouvido a recomendação
(1), Mato Grosso do Sul (3), Rio Grande do anos de idade, consideradas vulneráveis aos É possível, portanto, haver casos de de que deveria denunciar o caso à polícia,
Sul (1), Roraima (2) e São Paulo (1). olhos do Estado brasileiro. A maioria das víti- violência sexual nas demais quatro regiões e o indígena teria dito que, se recebesse R$
Entretanto, no que diz respeito somen- mas é da etnia Xavante, mas há casos em que entre os demais Xavante da região. Além dis- 5 mil, não levaria o caso adiante. Gustavo
te a Mato Grosso, esses dados representam a vítima e o agressor são da etnia Bororo, das so, é preciso considerar que muitos não são também confirma a inexistência de dados e
apenas 5,9% dos casos apurados pela presente Terras Indígenas de Meruri (General Carnei- denunciados ou não chegam a ser comenta- a ausência de políticas para o assunto.
reportagem em uma pequena parte do territó- ro e Barra do Garças) e Sangradouro (General dos pelas vítimas e seus familiares, por vergo- Alguns servidores da Funai e da Ca-
rio do estado e de sua área indígena. No total, Carneiro, Novo São Joaquim e Poxoreéu). nha, medo e outros fatores. E não é diferente sai em Barra do Garças e Campinápolis se-
foram identificados 17 casos de violência se- com as mulheres da chamada sociedade en- quer aceitaram responder perguntas sobre
xual contra mulheres indígenas ocorridos nos volvente. Nesta, o número de casos denuncia- o tema, sob alegação de não poderem falar
municípios de Barra do Garças, General Car- dos ou divulgados também é considerado pe- oficialmente pelo órgão ou de que esse é um
neiro e Campinápolis nos últimos nove anos, a las autoridades da área, entidades de proteção assunto complexo e que envolve a cultura
grande maioria nos últimos três. Desses, 16 são à mulher ou estudiosos como bem inferior ao própria dos indígenas.
de estupro e um de assédio sexual. dos que ocorrem efetivamente. Contudo, os 17 fatos aqui identifi-
Treze casos estão documentados em O ex-juíz da Terceira Vara Cível cados (ver página 04) não parecem se en-
Boletins de Ocorrência e Inquéritos abertos na de Barra do Garças, Wagner Plaza, hoje quadrar em questões estritamente culturais
Delegacia da Mulher de Barra do Garças ou atuando em Rondonópolis (MT), diz que (veja matéria sobre estes à página 6), porque
nas delegacias de Polícia Civil das outras duas “os dados de violência sexual e domés- se referem a estupros, a maioria de meninas
cidades citadas e três foram relatados com ri- tica não são bem fiéis. Há o que chama- vulneráveis, que estão sendo denunciados
queza de detalhes por fontes públicas, motivo mos de cifra negra, os fatos que aconte- pelos próprios indígenas, vítimas ou lideran-
pelo qual foram incluídos na estatística. (Veja o cem e não chegam ao Poder Judiciário. ças, nas delegacias dos municípios em que
quadro completo dos casos na pág 04) Uma quantidade mínima de crimes sexu- ocorreram.
Um dos quatro casos não documen- ais chega a público”. Isso reforça a hipótese de que, dife-
tados em delegacias foi relatado pelo 2º te- Para Plaza, é a cultura dos povos in- rentemente de outra situação que envolve a
nente Alexandro Silva e pelo soldado Márcio dígenas que impede o acesso a essas infor- cultura específica, os estupros informados-
Maciel, ambos da Polícia Militar de Campi- mações. “Acho que a sociedade indígena nesta e na página 4 não são atos tolerados
nápolis. Seria o de uma menina de nove anos é mais machista, sequer deixando chegar pelos indígenas ou, no mínimo, de que, se
de idade, que teria engravidado no ato desse ao conhecimento da sociedade branca os alguma vez eram aceitos e naturalizados
estupro e, posteriormente, abortado. Caso de estupro sob investigação na fatos. Com certeza, as indígenas são abu- como parte da cultura, não tem mais apoio
O segundo caso não registrado foi DEDM de Barra do Garças sadas sexualmente, mas não há qualquer unânime, assim como foi abandonado,
relatado pela assistente social da equipe vo- apoio ou forma de repressão ao agressor”, por exemplo, o infanticídio, largamente
lante do Centro de Referência de Assistência Entre os agressores, a grande maio- afirma o magistrado. praticado pelos Xavante no passado.
Social (Cras) de Barra do Garças, órgão do ria (15) é de homens da própria etnia. So- Por outro lado, e além do fato de
governo federal, Suelainy Rodrigues Morei- mente três são da sociedade envolvente. que a mulher não indígena também não
Neste caso, homens que possuem algum
Foto: João Paulo Fernandes

ra, que atende 49 aldeias da Terra Indígena denuncia sempre, é preciso considerar
tipo de vínculo com os indígenas. Um dos
São Marcos, em Barra do Garças. que a sociedade indígena possui seu pró-
três agressores não indígenas, segundos os
Trata-se do caso de uma menina de relatos ou registros policiais, é um freteiro prio sistema de normas, controles e pu-
12 anos estuprada na sua aldeia, cujo agres- (que faz transporte de e para os indígenas), nições, baseado na sua própria tradição
sor, segundo Suelainy, seria o primo da víti- outro é motorista de ônibus escolar e o cultural, o que pode ter inibido a denûn-
ma, professor da escola local. Essa menina terceiro, um Policial Militar do Estado de cia e a busca por proteção e punição em
teria fugido para a cidade com a mãe dela Goiás. São denúncias que ainda passam por outro sistema.
e, segundo Suelainy, está morando em uma investigação e segredo de justiça. Por isso, Fragilidade dos dados - É ní-
casa alugada na cidade de Aragarças (GO), não podem ter nomes de vítimas e supostos tida a falta e o desencontro de informa-
separada de Barra do Garças apenas pelas agressores divulgados. ções sobre a violência sexual contra as
pontes dos rios Garças e Araguaia. O número de casos de violência se- mulheres indígenas. Além do Cimi, so-
Já o terceiro caso não registrado xual contra as mulheres indígenas em todo mente a Organização das Nações Unidas
em delegacias foi informado pela diretora o território da etnia Xavante pode ser maior (ONU) possui dados sobre os indígenas.
da Escola Estadual Couto Magalhães, de do que os casos aqui apontados. Isso por- Um relatório da ONU de 2010 afirma
Campinápolis, Miriam Lacerda. Trata-se que, em razão do tempo e da logística da que uma em cada três índias sofre vio-
de assédio sexual denunciado pelos pais reportagem, apenas os casos de Barra do lência sexual durante a vida, em todo o
de alunas, que apontam um motorista de Garças, General Carneiro e Campinápolis mundo. Mas o organismo não tem dados Gustavo Gomes Sanches Nunes dos
ônibus escolar da Prefeitura da cidade
foram pesquisados. específicos sobre o Brasil. Santos - agente de indigenismo/Funai
como o agressor.
4 OUTUBRO 2017

Sentimento de impunidade, alcoolismo e drogas são


apontados como explicação para os estupros
U
m dos possíveis fatores a ex- ter coragem de denunciar, pois percebemos Contudo, por um lado, essas visões
plicar a prática dos estupros um comportamento machista por parte do expressam o ordenamento jurídico do Esta-
por parte dos indígenas seria índio Xavante”. do brasileiro, no qual estão inseridos os in-
o fato de eles acreditarem A investigadora acredita que a cultura dígenas, elas representam um conflito com

Foto: Mauro de Sousa /Cam.Mun. de Campunápolis


que somente a Polícia Fede- esteja sendo usada para justificar a violência a visão dos próprios indígenas e de muitos
ral pode intervir em crimes que envolvam a contra a mulher indígena que ela teve a expe- estudiosos, ainda que não de forma absoluta.
etnia. Isso pode explicar certo sentimento de riência de acompanhar, pois esse argumento Alguns pesquisadores, entre os quais a pro-
impunidade quando se trata de crimes come- já foi usado em situações que o indígena dizia fessora Águeda Aparecida da Cruz Borges,
tidos por indígenas. ser um comportamento cultural. que há 14 anos procura aplicar o método
Contudo, o delegado da Polícia Fede- Segundo Andrea, a lei penal vale Paulo Freire à alfabetização dos indígenas,
ral de Barra do Garças, Divino Alves Caetano para todos, inclusive para o indígena. “Eles concordam com que a lei nacional deva se es-
Neto, diz que existe uma nova decisão sobre acreditam que estão acima da lei”, afirma tender claramente aos indígenas que escolhe-
a forma de atuação do órgão. O trabalho po- a investigadora. O único caso em que a lei ram viver entre os não indígenas, nas cidades.
licial é compartilhado com os órgãos de segu- não pode ser aplicada seria o de silvíco- Mas, ao mesmo tempo, não concordam com
rança pública estaduais. Isso muda a tradição las ou indígenas em completo isolamento. a integralidade da interpretação das autorida-
de atendimento policial vigente até 2010. “Não podemos considerar os indígenas lo- des policiais e judiciais acima apresentadas.
Segundo o Delegado, em 2010, o cais assim: todos eles frequentam a cidade”, Essa visão envolve a questão de auto-
Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou completou Andrea. determinação dos povos. A ideia está basea-
a súmula de número 140, que autoriza a Polí- O Delegado Heródoto de Souza Fon- da no conceito de povo e nação. Se os Xa-
cia Civil a agir em qualquer assunto criminal tenelle, da Delegacia Especializada de Defesa vante e todos os demais indígenas brasileiros
na sua jurisdição. Pela nova distribuição de da Mulher (DEDM), concorda com a exis- forem considerados como povo, nação, justi-
atribuições, todos os casos que forem con- tência de um sentimento de impunidade por fica-se a noção de independência em relação
siderados contra a coletividade devem ser ao europeu, que aportou no Brasil quando
parte de indígenas Xavante, que, segundo ele,
reportados à Polícia Federal. os indígenas já viviam aqui, também consi- Vereador Libércio Serewiba - PV
ainda não entenderam que essas leis podem
Coletividade, neste caso, refere-se a derado representante de um povo ou uma
questões que podem ferir a etnia de forma ser aplicadas a eles. nação. Neste sentido, trata-se de dois povos Os fatores de caráter jurídico até
geral. “Quando um índio individualmente O Delegado defende que “o trata- ou nações, cada qual com os seus sistemas, aqui apontados, com destaque para um pos-
pratica ou é vítima de algum crime, a atri- mento é igualitário. Hoje, não existe o índio costumes, tradições. Qual seria a razão de a sível sentimento de impunidade, explicam
buição já é da Polícia Civil. Está sumulado não civilizado. Aqui em nossa região todos os lei do europeu se sobrepor à dos povos ori- apenas parcialmente a sensação de liber-
pelo STJ que não competem à Polícia Federal índios têm contato com a civilização. Então, ginários do Brasil? dade que o agressor pode ter em praticar
esses casos. Um crime contra a coletividade são considerados civilizados. Não há porque Essa linha de raciocínio é defendida o abuso sexual. Não esclarecem, contudo,
indígena típico da região é a invasão de terras tratar esses fatos de forma diferenciada, nem pelo indígena José Acácio Serere Xavan- o que vem antes dessa impressão, que é a
indígenas”, afirma o delegado. à margem da lei. O sentimento de impunida- te ao dizer que “esse sistema A’we Uptabi sua tendência ou propensão (psicológica,
A investigadora de Polícia Civil e pre- de está caindo por terra. Mas eles acreditam [povo verdadeiro] tem de ser respeitado cultural, biológica ou de outra natureza) à
sidente da Rede de Enfrentamento à Violên- que nossa intervenção seja ilegal”. pelo waradzu (homem branco) e nós tam- agressão.
cia Contra Mulher de Barra do Garças (Rede O ex-juiz da Terceira Vara Cível de bém respeitaríamos o sistema waradzu, A explicação para esse aspecto do
de Frente), Andrea Cristine Oliveira Costa problema está vinculada, ao menos em par-
Barra do Garças Wagner Plaza também en- tendo uma constituição paralela produzida
Guirra, afirma que “os indígenas acham que te, segundo alguns depoimentos, à relação
tende que a lei não faz distinção. “O objeto segundo nossa cultura”. Seria uma espécie
estão protegidos pela cultura. A cultura indí- interétnica, forçada, entre outras coisas, pela
gena é muito fechada. Eles acreditam na im- da lei é a proteção da criança e do adolescen- de diplomacia cultural aplicada ao relacio- redução do território tradicional indígena. À
punidade. Eles não acreditam que alguém vai te, de qualquer raça ou sexo”, afirma Plaza. namento interétnico. medida que o Xavante absorve aspectos cul-
turais da sociedade envolvente, ele começa a
interagir com costumes que são prejudiciais
à sua saúde. O consumo de álcool e drogas
MAPA DOS CASOS DE ESTUPRO tem sido apontado como uma das consequ-
ências negativas da forma como se deu essa
Caso 1 Ano da denúncia: 2015 Tipo de registro: Inquérito (PJC) relação ao longo da história e causa para prá-
Idade da vítima: 13 anos Local: aldeia de Barra do Garças ticas não habituais, como a violência sexual.
Agressor: indígena xavante Tipo de registro: Inquérito (DEDM) Caso 13 A psicóloga e responsável técnica do
Denunciante: marido Idade da vítima: 13 anos Programa de Saúde Mental do Distrito Sani-
Local: aldeia de Barra do Garças Caso 7 e 8 Agressor: indígena xavante
Tipo de registro: B.O. (DEDM) Duas vítimas e o mesmo agressor Denunciante: Não informado tário Especial Indígena (DSEI) Xavante, Ana
Ano da denúncia: 2015 Idade das vítimas: Não informado Ano da denúncia: 2015 Cristina Ferreira, diz que “é difícil quantificar
Agressor: indígena Bororo Local da denúncia: Campinápolis o que é qualificado, sobre o perfil epidemio-
Caso 2 Denunciante: Não informado Tipo de registro: Inquérito (PJC) lógico existente. Além do álcool, há o consu-
Idade da vítima: 16 anos Ano da denúncia: Não informado mo de outras drogas como a maconha. O uso
Agressor: não indígena Local: Barra do Garças Caso 14
Denunciante: marido Tipo de registro: Transitado em julgado, Idade da vítima: Não informado dessas substâncias não determina o abuso
Ano da denúncia: 2015 com condenação Agressor: não indígena sexual, mas influencia bastante”, conclui ela.
Local : Barra do Garças Denunciante: Professora de Campinápolis A profissional explica que o proble-
Tipo de registro: B.O. (DEDM) Caso 9 Ano da denúncia: 2017 ma precisa ser entendido numa perspectiva
Idade da vítima: Não informado Local da denúncia: Campinápolis histórica, pois “a bebida alcoólica foi usada
Caso 3 Agressor: indígena xavante Tipo de registro: Ata da escola
Idade da vítima: 26 anos Denunciante: Não informado pela sociedade envolvente na época da co-
Agressor: indígena xavante Ano da denúncia: 2008 Caso 15 lonização como instrumento de dominação
Denunciante: a própria vítima Local: General Carneiro Idade da vítima: Não informado desses povos. Foi um processo de alcooliza-
Ano da denúncia: 2016 Tipo de registro: Inquérito (PJC) Agressor: indígena xavante ção, para chegar ao ponto que chegou hoje”.
Local: aldeia de Barra do Garças, Denunciante: Não informado O vereador Xavante de Campinápo-
Tipo de registro: B.O. (DEDM) Caso 10 Ano da denúncia: Não informado
Idade da vítima: Não informado Local da denúncia: Campinápolis lis, Libércio Ernesto Serewiba, diz que “a
Caso 4 Agressor: indígena xavante Tipo de registro: Relato (PMs) bebida traz prejuízos para a família indígena.
Idade da vítima: 10 anos Denunciante: Não informado Mas a proibição da venda para o indígena se-
Agressor: não indígena Ano da denúncia: 2012 Caso 16 ria algo difícil, porque a oposição seria muito
Denunciante: marido Local: General Carneiro Idade da vítima: 12 grande. Então, a falta de orientação dos pais
Ano da denúncia: 2017 Tipo de registro: Inquérito (PJC) Agressor: indígena xavante
Local: aldeia de Barra do Garças Denunciante: Funcionária do Cras pode colaborar para o uso de bebidas”.
Tipo de registro: B.O. (DEDM) Caso 11 Ano da denúncia: Não informado A professora indígena da Escola Es-
Idade da vítima: Não informado Local da denúncia: Barra do Garças tadual Etenhiritipá, localizada na cidade de
Caso 5 Agressor: indígena xavante Tipo de registro: Não informado
Ribeirão Cascalheira, Terra Indígena Pimen-
Idade da vítima: 13 anos Denunciante: Não informado
Agressor: indígena xavante Ano da denúncia: 2014 Caso 17 tel Barbosa (Aldeia Wederã), Severiá Maria
Denunciante: pai da vítima Local da denúncia: General Carneiro Idade da vítima: Adolescente Idioriê, afirma que o organismo do indígena
Ano da denúncia: 2015 Tipo de registro: Inquérito (PJC) Agressor: indígena xavante não está preparado para receber o álcool. Se-
Local: aldeia de Barra do Garças Denunciante: funcionária da Saúde
Tipo de registro: Inquérito (DEDM) Caso 12 Indígena gundo ela, o uso de bebida alcoólica não faz
Idade da vítima: Não informado Ano da denúncia: Não informado parte da tradição Xavante. “O indígena que
Caso 6 Agressor: indígena xavante Local da denúncia: Barra do Garças começa a beber na aldeia não bebe cerveja
Idade da vítima: 12 anos Denunciante: Não informado Tipo de registro: Não informado
Agressor: indígena xavante Ano da denúncia: 2016 ou vinho, mas bebe a pinga [aguardente/ca-
Denunciante: mãe da vítima Local da denúncia: General Carneiro chaça]. O índio quer ser socialmente aceito e
para isso faz uso de bebidas e drogas”.
OUTUBRO 2017 5

Mudança de hábito
Os Xavante estão denunciando cada vez mais os casos de estupro praticados pelos próprios indígenas às delegacias
de polícia. Uma das explicações é o fato ao enfraquecimento do sistema interno de normas e punições

T
reze dos 17 casos de estupro As opiniões sobre o significado des-
contra mulheres indígenas sa mudança de hábitos divergem, revelando
informados nas páginas 3 e a complexidade que há para compreender as
4 deste jornal, boa parte de interações culturais do Xavante com a so-
meninas menores de 14 anos, ciedade majoritária ou envolvente, simplo-
foram denunciados pelos próprios Xavante riamente chamada de branca.
em delegacias da Polícia Civil. O procurador da República Wilson
Dentro da cultura desses povos Rocha Fernandes Assis, que trabalhou com
originários, existe um sistema de normas os indígenas Xavante enquanto exerceu o
que penaliza práticas não aprovadas por cargo em Barra do Garças, até 2016, diz que
eles. Mesmo assim, os Xavante começam “a gente erra quando acha estranho que o

Foto: João Paulo Fernandes

Foto: João Paulo Fernandes


a procurar a sociedade envolvente como índio[sic] procure uma delegacia para resol-
forma de serem atendidos quando ocor- ver questões internas que não foram resol-
rem esses delitos. vidas na sua comunidade. Não há nada de
Os povos originários estão sendo in- estranho nisso. São cidadãos brasileiros for-
seridos no contexto urbano e, à medida que çados a manter relações conosco enquanto
isso acontece, eles também absorvem aspectos sociedades separadas, mas em relação. En-
da cultura ocidental, sem perder suas caracte- tão não tem nada de estranho nisso”
rísticas culturais. Algumas questões começam No entendimento do procurador,
a surgir nesse processo interétnico, como o que hoje atua no Ministério Público Fe-
possível enfraquecimento da cultura indígena, deral (MPF) em Anápolis (GO), mesmo
em detrimento ao uso de recursos disponíveis que a prática de denunciar crimes contra
pela sociedade envolvente, como os órgãos da a dignidade sexual não fosse parte da cul-
Segurança Pública e o Poder Judiciário. tura indígena, “tudo é cultural. Não existe
O agente de indigenismo da Coor- uma cultura estacionada. A cultura é dinâ-
denação Regional Xavante da Funai, Gus- mica, tanto a nossa quanto a deles. Assim
tavo Gomes Sanches Nunes dos Santos, como a gente não pode compreender que o
diz que há uma mudança de postura em branco se comporte daqui a 100 anos, se vis-
curso, mas que o fato de haver denúncias ta e coma, como faz hoje, não tem o direito Dr. Wilson Rocha Fernandes, Líder indígena José Acácio
às delegacias de polícia deve ser visto como de exigir isso em relação ao índio também. Procurador da República Serere Xavante
parte natural do processo de contatos cres- Grande parte da nossa alimentação vem da
centes com a comunidade não indígena. comunidade indígena. A gente tem uma difi- Se isso acontecesse, significaria que valores políticos e organizacionais da socie-
Para Gustavo, “quando algum tipo culdade enorme de reconhecer essa herança. “nossas leis já não regem nosso povo, por- dade envolvente foram assimilados. Por isso,
de violência contra a mulher acontecia, o A gente invisibiliza a comunidade e as contri- que, se nós tivermos que buscar uma solução há um processo de fragilização cultural, por
Xavante tinha suas formas de punição mui- buições que ela deu para nossa cultura”. no grupo de fora, é porque a gente enquanto causa desse contato, mas ela se reinventa”.
ser [Xavante] não existe mais. A gente não No entendimento de Magno, o
teria mais respeito pela mulher, pela palavra contato interétnico pode causar o enfra-
“existemcomunidades em que o líder dela. A gente não pode deixar chegar a nossa quecimento da autoridade indígena, o que
tem flagrantes perdas de legitimidade. destruição”, disse a professora. colabora para o desequilíbrio do poder da
Isso certamente leva à violência, seja Entretanto, Severiá considera que
em casos específicos de indígenas que não
comunidade, mas esses contatos também
acrescentam novos valores, absorvidos
ela qua for. Inclusive a violência sexual” encontram mais segurança interna na so- pelo Xavante. De acordo com o professor,
lução de seus conflitos internos, é preciso “existem comunidades em que o líder tem
recorrer às leis gerais do país. flagrantes perdas de legitimidade. Isso cer-
to bem consolidadas. Por isso, é positiva Por outro lado, a professora Severiá Já o professor Magno Silvestri tamente leva à violência, seja ela qual for.
a denúncia na delegacia, pois, se não há Maria Idioriê, da etnia Karajá, casada por mui- (UFMT - Araguaia) diz que essa postura de Inclusive a violência sexual. Se partirmos
solução na cultura, então eles procuram a tos anos com um Xavante, explica que, na T.I. denunciar os casos de estupro em delegacias do contato interétnico, há valores que não
sociedade envolvente, isto é, já se esgotou Xavante em que viveu por 15 anos, da área de significa uma mudança e uma fragilização, assimilamos, como os indígenas também
o modo deles de resolverem. Eles conside- Pimentel Barbosa (municípios de Canarana e Ri- mas não perda da cultura. “Certamente, nas não compreendem e não assimilam valores
ram o abuso sexual como um crime menor, beirão Cascalheira), se casos de violência sexual relações interétnicas que se estabeleceram do não indígena”.
mesmo assim eles têm os limites culturais fossem denunciados a um órgão de segurança desde o contato sistemático com o povo O líder Xavante José Acácio Serere
que precisam ser respeitados”. pública, isso poderio significar o fim da cultura. Xavante a partir da década de 1940, alguns Xavante, da cidade de Campinápolis (MT),
que denunciou pessoalmente um dos casos
de estupro à Delegacia de Polícia da cidade,
a pedido da família da vítima, reconhece a
mudança de atitudes hoje em curso, atri-
buindo-a, também, ao enfraquecimento das
tradições e dos costumes internos, especial-
mente da figura do líder.
Mas ele defende que a punição con-
tra o crime do estupro volte a ser aplicada
para indígenas no contexto da aldeia. “Se
for crime praticado por indígena, dentro da
cultura a gente penaliza.” Para Serere, como
Foto: João Paulo Fernandes

é conhecido em Campinápolis, isso não sig-


nifica impunidade. “Não admito isso. Até
dentro da cultura sou capaz de morrer de-
fendendo as crianças”, afirma.
Serere diz que é preciso ter um
tipo de punição que respeite a cultura Xa-
vante. “Vamos supor que isso aconteça
com 20 mil indígenas. Ou seja, guerreiros
que praticaram esse crime. Aí todos eles
vão ser presos. Vai acontecer a extinção
do povo indígena. Então, sugiro que te-
mos que capacitar uma nova geração para
combater esse crime, respeitando sempre
nossa cultura”, diz o indígena. No entan-
to, quando o estupro acontece por mem-
bros da sociedade não indígena, Serere
entende que a denúncia deve ser feita na
DEDM de Barra do Garças (MT): única delegacia especializada da região leste de Mato Grosso Delegacia de Polícia.
6 OUTUBRO 2017

“Punição do sexo”
O estupro coletivo ainda é aplicado como pena às mulheres que violam regras
importantes da comunidade Xavante, mas começa a ser questionado

A
separação de gênero dos
Xavante é algo tão flagrante
dentro das aldeias que, em
uma primeira análise e sob
o olhar do waradzu (não indí-
gena, na língua Xavante), eles acabam sendo
considerados machistas.

Foto: Kariny Ellen Oliveira / Arquivo NPD


Aparentemente, na sociedade Xavante,
a mulher assume papel secundário. Sobre ela
recai o reino absoluto da casa. Na página 16 do
livro Xavante Ano 2000 (UCDB, 2000), o autor,
sacerdote salesiano Bartolomeu Giaccaria, diz
que é “a mulher é quem providencia a constru-
ção do lar, quem prepara e distribui os alimen-
tos obtidos na caça e é a ela que pertencem os
produtos da lavoura”. Além disso, a figura ma-
terna é a principal responsável pela educação da
criança nos primeiros anos de vida.
O diácono salesiano e membro do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
José Alves de Oliveira, que atua na região
de Nova Xavantina e Campinápolis há cin-
co anos, reforça que é importante entender
o universo Xavante. Ele diz que a mulher
Mulher fica restrita à casa durante os rituais exclusivamente masculinos
está “voltada a uma liderança mais interna,
enquanto o homem tem esse poder no âm- A professora da Escola Estadual “Uma mulher casou com alguém. Só encontros para debates femininos motivados
bito externo”. A vida social é própria para Indígena Etenhiritipá, Severiá Maria Idio- que uma vez, ou várias vezes, ela fez paquera por órgãos indigenistas e, em paralelo, a pre-
o homem; sua participação se dá no Wa’rã riê, nasceu em uma aldeia Karajá e, apesar com homem de outro ‘círculo’. É proibido, ocupação de homens - em sua maioria jovens
(reunião diária e exclusivamente masculina da rixa histórica entre os respectivos povos, é crime! Aí a população fica sabendo que ela - em demonstrar desconforto e contrarieda-
no centro da aldeia para tomada de decisões foi casada por 13 anos com um Xavante. tem caso proibido. Mesmo não permitido, de a esse aspecto cultural.
importantes da comunidade), na caça e nas Conhecedora da cultura não indígena e for- ela faz escondido. O homem leva a situação Um dos exemplos foi dado por um
viagens para conversas com autoridades. mada em Letras-Inglês e com Mestrado em para o Waiá (segredo dos homens) e a pena é pesquisador, que não quis se identificar,
É comum nas aldeias a manutenção Educação na Universidade Federal de Mato que todos os homens vão ter relação sexual relatou uma roda de conversa que teria
de espaços e ritos culturalmente masculinos Grosso no ano de 2016, explicou tudo que com ela”, acrescentou José Acácio Serere, o
ou, como o caso do rito Abadzi’rãihidiba presenciado em uma aldeia Xavante. Nes-
(iniciação familiar), em que o objetivo é a se diálogo, uma liderança indígena em as-
representação e a confirmação do valor da censão teria se aproximado do líder, mais
obediência da mulher ao homem. Uma mu- “Então, existe o estupro como a maior velho, e manifestado a sua contrariedade,
lher atravessar caminhos masculinos é uma punição que pode ocorrer a uma mulher, dizendo que essa prática precisaria ser re-
transgressão passível de pena, dentre elas pensada. Esse é um indício de que essa
o estupro coletivo, ou como preferem os quando transgride a regra” forma de punição pode vir a ser extinta,
Xavante, a “punição do sexo”. Essa expres- especialmente com as novas lideranças.
são não se refere exclusivamente à punição
decorrente de desrespeito a regras sexuais, presenciou nos anos de casada dentro da líder mencionado anteriormente. Segundo
mas à forma de aplicação da pena, ou seja, o aldeia Xavante de Pimentel Barbosa, nos ele, essa atitude da mulher é tratada pela cul-
estupro coletivo da transgressora. municípios mato-grossenses de Canarana e tura Xavante como uma desonra. “Ela se
Um dos líderes indígenas em Cam- Ribeirão Cascalheira. torna uma mulher desonrosa. O corpo é dela
pinápolis, José Acacio Serere Xavante, reve- Severiá, como é mais conhecida no e ela pode fazer o que quiser, mas respeitan-
lou a complexidade dessa questão e o peri- círculo acadêmico da UFMT, relata que “o do nossos valores, porque, se não, acaba a
go da generalização, já que aldeias indígenas Xavante pode ter mais de uma mulher, des- linhagem, acaba a cultura”.
de diversas localidades adotam diferentes de que ele possa cuidar delas, cuidar bem de Já a professora e diretora de escola
métodos de punição, mesmo pertencendo todas. A tradição Xavante é: o marido pode Marcelina, embora demonstrando certo des-
a uma só etnia. namorar com as minhas irmãs e primas e conforto quando questionada, também inse-
A punição ocorre principalmente em eu posso namorar com os irmãos e os pri- riu a punição no âmbito da cultura, diferen-
duas ocasiões: a primeira quando a mulher mos dele – pelo lado do pai; não é qualquer temente dos casos de estupro denunciados
não respeita o segredo dos homens, como primo! Tem que ser dos meninos do clã do nas delegacias da região. “Quando tem esse
o ritual Wai’á Rini (iniciação espiritual), e o pai”. Ela diz estranhar o conceito “estupro ritual deles, as mulheres têm que respeitar. A
segundo, e mais comum, quando são que- cultural” utilizado por alguns membros da mulher tem que ficar em casa, não pode sair.
bradas as regras das relações sexuais. sociedade envolvente e afirma que os Xa- Já escutei falar de mulheres que foram puni-
vante não toleram o estupro. A única prática das por desrespeitarem”, explicou.
confirmada por ela, mas como exceção, é A aplicação da punição sexual
a existência do que ela própria denominou não é exclusiva do povo Xavante, segundo
“estupro coletivo”, não como prática corri- a antropóloga Carmem Junqueira, que estu-
Foto: João Paulo Fernandes

queira, mas exclusivamente como punição, da a cultura dos Kamaiurá. "Se uma mulher
que seria aplicada à mulher que ousa espio- olhar a flauta jacuí, ela é estuprada por toda
nar os rituais masculinos. “Mas, na prática, a aldeia. Esse é o castigo. Nunca soube de
Foto: João Paulo Fernandes

ao menos no grupo em que eu vivi, nunca alguma que tenha sido punida, mas conta-
acontece, porque a punição é tão severa que se que uma mulher, de tal povo, que pas-
nenhuma mulher se arrisca”, diz Severiá. sou inadvertidamente, talvez tenha sofrido
Todos os indígenas entrevistados as consequências. Então, existe o estupro
para esta reportagem, homens e mulheres, como a maior punição que pode ocorrer a
confirmam a existência dessa punição e a uma mulher, quando transgride a regra de
entendem como cultural, embora, em geral, não poder ver as flautas". Essas declarações
os homens se apressem bem mais em justi- constam de uma entrevista concedida por
ficá-la. Um deles é o chefe da Casa de Saú- Carmem ao site SciELO Brasil.
de Indígena (Casai) de Campinápolis (MT), A prática do estupro coletivo, confir-
o técnico em enfermagem e líder Xavante mada apenas como punição do sexo, começa
Lino Tsere’ubudzi Moritu. “Existe, mas é a perder o status de unanimidade entre os
da cultura, é cultural!”, diz ele rapidamente e Xavante, seja devido ao contato com a socie-
com certo constrangimento ou contrarieda- dade não indígena ou por mais respeito a mu-
Lino Tsere’ubudzi Moritu, chefe da
de com a pergunta. lher. Dentro das aldeias, já começam a surgir Professora Severiá Maria Idioriê
Casai de Campinápolis
OUTUBRO 2017 7

Violência indireta
A prostituição se transformou em alternativa de sobrevivência para várias
mulheres Xavante e, em alguns casos, para a inserção na sociedade de consumo

N
o imaginário comum so- não é vista com bons olhos por Marcelina Para o professor universitário Magno local pelos indígenas decorrente de salários
cial, a mulher indígena e muitos outros Xavante da região. O líder Silvestri (UFMT), a redução territorial é um de professores e servidores da saúde, de
seria a silvícola, que mora Serere, casado com uma mulher não indí- dos principais fatores que levam os indíge- aposentadorias e pensões e de programas
no mato, longe da civiliza- gena e morador da cidade de Campinápolis, nas a viver em estado de penúria. “A própria sociais públicos. Fernanda é mais uma voz
ção. Mas essa imagem não vê a prostituição como culpa dos homens. imposição da lógica territorial que o Esta- da cidade a confirmar a existência da pros-
coincide com a atual realidade dos indígenas “Quem está errado é o marido, porque do faz a eles, retirando a caça, a coleta e a tituição das mulheres indígenas, que classi-
Xavante, pois o contato com a sociedade en- quem deve garantir o sustento é ele. Quan- pesca que havia em certa ‘abundância’, faz fica como um problema social, ao lado da
volvente já é tão grande que diariamente um do a mulher não tem [esposo], quem garan- com que muitas comunidades passem neces- pobreza e do alcoolismo.
considerável número deles se desloca até as te é o pai”, pontua. sidade. Mesmo com a roça, muitas famílias Segundo o assistente social da Casa
cidades originariamente não indígenas. Mui- Na Casa de Saúde Indígena (Casai) dependem ainda da assistência dos órgãos de Saúde Indígena (Casai) no município de
tos até já vivem nelas. As aldeias possuem da cidade, órgão vinculado ao Ministério da indigenistas, com cesta básica, e assim o Bol- Campinápolis, Divino Pereira de Jesus, a mi-
tecnologia, o meio ambiente já não oferece Saúde, a prostituição de mulheres indígenas sa Família se torna o carro-chefe para conse- gração para a cidade ocorre sem que exista
a base do sustento, o dinheiro é moeda de já é vista como um problema social, ao lado guir recursos do Estado”, pontua uma política pública que se preocupe ade-
troca, o álcool é vício, o agronegócio reduz o do alcoolismo e da diabetes. Neste caso, por Em Campinápolis, a oportunidade quadamente com as condições de vida na
território, as mudanças climáticas e o agrotó- causa do consumo de açúcar e sal, presentes de emprego para homens e mulheres indíge- cidade. “O poder público não está preocu-
xico influenciam na colheita. nos refrigerantes e outros produtos larga- nas se resume aos cargos nas escolas, inclu- pado em criar políticas públicas para essa
Espremidas pelo território, pela falta mente consumidos pela população indígena. sive de professor, e nas unidades de saúde. parte da população. E a Funai também está
de recursos e pela ausência de políticas pú- O diagnóstico é compartilhado pelo chefe Os comerciantes não contratam os indígenas deixando a desejar”, comenta.
blicas, segundo depoimentos, as mulheres local do órgão, o líder indígena Lino Tse- porque se protegem no preconceito do senso O coordenador técnico da Funda-
indígenas de Campinápolis (MT) têm re- re’ubudzi Moritu e o assistente social Divino comum ao afirmarem que os indígenas rou- ção Nacional do Índio (Funai) em Cam-
corrido à prostituição, especialmente para Pereira de Jesus. bam, não sabem trabalhar ou são preguiçosos. pinápolis (MT), Isaac Mie Ajawe, confir-
garantir o sustento, mas também para se in- O agente de indigenismo da Funai Esse preconceito foi relatado por vereadores, ma que não há apoio e recursos para uma
serir no mercado de consumo característico Gustavo Gomes, que atuou como coorde- funcionários públicos, servidores da área in- política de inserção do jovem Xavante na
do mundo capitalista. Alguns homens tam- nador da Regional Xavante de 2013 até abril dígena, funcionários de escolas, entre outras cidade, como oferta de cursos profissio-
bém recorrem a essa prática, pelas mesmas de 2017, confirma a existência da prostitui- fontes. Também é possível constatar essa im- nalizantes e outras medidas. “A Funai não
razões, mas com a venda do corpo de suas ção e as necessidades pelas quais os indígenas pressão andando pela cidade. dá assistência para quem mora na cidade,
filhas ou esposas. passam. “A prostituição existe, é por questão Uma exceção à onda de preconcei- porque atua dentro das aldeias. Sabemos
Segundo a diretora da Escola Es- que há mais de 400 famílias de Xavante
tadual Couto Magalhães, Miriam Lagares, que moram aqui na cidade de Campinápo-
muitas alunas indígenas se prostituem pela “A prostituição existe, é por questão de lis. O papel da Funai hoje é simplesmente
falta de recursos para sobreviver na cidade.
“A prostituição é por necessidade. Pela fal-
miséria mesmo” guardar o direito deles; ela deixou de ser
tutor”, acrescenta Isaac.
ta de comida dentro de casa. Elas chegam O agente de indigenismo da FUNAI
e se oferecer por R$10,00/20,00. Percebo de miséria mesmo. O Xavante, eu vejo que é tos é Dalva Silva, comerciante e dona de Gustavo Gomes informa que “a renda dos
quando elas chegam com roupas, batons e 100% de necessidade. É nítido que eles estão hotel na cidade, que há quatro anos man- Xavante normalmente é do aposentado rural
dinheiro, porque muitas vêm estudar na ci- passando dificuldades”. tém mulheres indígenas Xavante no quadro [R$ 937,00], que sustenta dois ou três filhos
dade e não têm condições de manter as coi- A crescente prostituição de indíge- de funcionários. Ela critica os seus colegas adultos e vinte netos. Essa renda é dividida
com mais 30 pessoas”. Entretanto, ele lem-
sas básicas, como água e energia”. Segundo nas, assim como o alcoolismo, a diabetes e comerciantes e diz que a relação de patroa
bra que alguns indígenas são funcionários
a diretora, essa oferta do corpo ocorre es- outros problemas, está relacionada, segundo e empregada é de confiança. Ela designa a nos serviços de educação e saúde e que, por-
pontaneamente nas ruas e nos espaços pú- os depoimentos colhidos, à forma com que função de ir aos supermercados às suas duas tanto, têm renda melhor.
blicos da cidade. se deu a relação interétnica, isto é, o contato funcionarias indígenas e diz nunca ter havido Segundo o Censo do Instituto Bra-
Entretanto, a prostituição também com os não indígenas, como uma violência qualquer motivo que a fizesse desconfiar das sileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de
ocorre dentro das aldeias. A diretora da es- indireta. Não é direta porque, diferente- funcionárias ou para se decepcionar com a 2010. Segundo o levantamento, Campiná-
cola estadual Aldeona, Marcelina Ro’onhiwe, mente do estupro, na prostituição, o sexo qualidade do serviço polis está entre os municípios que possuem
diz que dentro da aldeia também encontra é consentido, voluntário. Mas a violência se A vereadora Fernanda Maia (PSC) um dos maiores índice de pobreza (47,48%)
mulheres vendendo o corpo aos madeirei- faz presente porque a decisão de oferta do afirma que o preconceito esconde uma em relação aos outros municípios de Mato
ros, por necessidade ou pela aproximação corpo aos homens não indígenas em troca grande contradição, já que, segundo ela, os Grosso. O Índice de Desenvolvimento Hu-
com o não indígena e seus hábitos. “Dentro de dinheiro ou bens não é rigorosamente indígenas sustentam a economia da cidade. mano (IDH) chega a 0,538. A “síntese do va-
lor do rendimento nominal mediano mensal
da aldeia já tem prostituição de mulheres in- voluntária. Segundo os depoimentos, ela é “Hoje, sabemos que quem mantém a eco-
per capita dos domicílios particulares per-
dígenas com o branco. As mulheres querem fruto da necessidade criada a partir dessa re- nomia de Campinápolis são os indígenas. manentes da zona rural”, segundo a classifi-
ficar e pra eles é normal”. lação desfavorável com a sociedade majori- São mais de oito mil indígenas no municí- cação do instituto, é de R$ 93,33. Esse dado
Mesmo com sua existência reconhe- tária, ou de incorporação abrupta de valores pio [53,5% da população]! Se retirarem eles, da zona rural, portanto, é bem inferior ao da
cida pela comunidade indígena, e conside- não originais, como o consumo de itens não o município entra em falência”, comenta. zona urbana, de R$ 403,33 mensais, embora
rada normal em alguns casos, a prostituição tradicionais da cultura. Ela se refere ao dinheiro gasto no comércio este também seja extremamente baixo.
Foto: Sckarleth Martins / Arquivo NPD

Miséria leva as mulheres Xavante a saírem da aldeia


8 OUTUBRO 2017

Duplamente invisibilizadas
Mulheres Xavante sofrem com a invisibilização étnica e de gênero,
mas lutam por respeito e participação nas políticas que afetam a comunidade

A
sociedade indígena sofre depoimentos de mulheres indígenas que
constante invisibilização por sofreram algum tipo de violência domés-
parte da sociedade envolven- tica. No livro, elas destacam o motivo de
te, seja pela inexistência ou procurarem a lei de fora de suas comunida-
pela ineficiência de políticas des: “Nossas leis internas devem ser valo-
públicas, pelo desconhecimento da cultura rizadas, mas existem problemas que foram

Foto: João Paulo Fernandes


ou até mesmo pela falta de reconhecimen- introduzidos em nossas aldeias, como o
to dos seus membros como seres humanos. álcool e a droga, que nos levam a precisar
Esse é o cenário de várias etnias e não é dife- de ajuda externa”.
rente com o Povo Xavante. Marcelina Ro’onhiwe entende que
A professora indígena Karajá Seve- essa postura não significa que a essência
riá Idioriê, que foi casada com um homem da cultura Xavante esteja se perdendo. Ela
Xavante da aldeia Wederã, Terra Indígena afirma que, ao menos em Campinápolis
Pimentel Barbosa, localizada nos municípios (MT), o alcoolismo e a incorporação de ou-
de Canarana (320 km de Barra do Garças tros elementos da cultura do homem não
e 840 km de Cuiabá) e Ribeirão Cascalhei- indígena são a causa por trás das agressões.
ra (381 km de Barra do Garças e 885 km Além da violência sexual sofrida
de Cuiabá) e conviveu com o povo do seu por mulheres indígenas e relatadas neste
marido por mais de 15 anos, aponta que a jornal especial, em 2013, foram abertos
invisibilização aos povos indígenas existe, e dois inquéritos policiais de violência do-
que ela acontece especialmente por parte das Marcelina traduz a lei Maria da Penha para a língua xavante méstica física (lesão corporal) contra mu-
políticas públicas. “A invisibilidade acontece lheres Xavante na Delegacia Especializa-
o tempo todo, principalmente pelas políticas não podemos participar? Festa. Na festa [ritu- re calúnia, difamação ou injúria”. da de Barra do Garças.
governamentais, quando os indígenas não al] é tudo dos homens”. De acordo com ela, “Eu sofria, meu marido bebia. Ele fa- A presidente da Rede de Enfren-
são consultados para as políticas públicas que o que muda é a participação na tomada de de- lava mal de mim para minha mãe. Hoje, sou tamento à Violência Contra a Mulher de
deveriam estar salvaguardando o ser humano cisões coletivas: “igual na vida do não índio, a diferente. Já falo o português, tenho conheci- Barra do Garças (Rede de Frente) e inves-
que o indígena é”, comenta ela. mulher tem que participar também”. mento e posso registrar na delegacia o nome tigadora de Polícia Civil, Andrea Cristine
Severiá também aponta a invisibiliza- Apesar de ser uma luta por visibili- dele”. Marcelina não só conhece a Lei Maria Oliveira Costa Guirra, vê essas mudanças
ção por parte das outras instituições, como dade, no sentido de que a mulher seja vista da Penha (que tipifica e penaliza os casos de como confiança nas instituições original-
os veículos de comunicação, que fazem gene- e de que haja o reconhecimento de sua ca- violência doméstica) como a traduz para as mente não indígenas. “Em algum momen-
ralizações incorretas ao reportarem as infor- pacidade, o professor universitário Magno outras mulheres da sua aldeia. “Nem todas to, alguém conversou com elas. Para a mu-
mações sobre os povos indígenas. Segundo a Silvestri (UFMT, Campus Araguaia) enxerga as mulheres falam o português. Por isso, lher vir aqui, ela tem que ter um mínimo
professora, os jornais não identificam a etnia, o movimento das mulheres indígenas como eu gosto de dialogar e passar meu conhe- de confiança e o desespero por ajuda”.
a terra e a aldeia e, em alguns casos, usam fo- uma estratégia de organização comunitária cimento para elas. Eu traduzo e levo para Mesmo havendo demanda por parte
tografia de outros povos para se referirem aos e não como oposição aos homens. “Eu vejo elas”, diz Marcelina. das mulheres indígenas, nem a Funai, nem a
Xavante. “Não é somente no jornalismo; é em o movimento de mulheres indígenas antece- Durante os encontros de mulheres Rede de Enfrentamento à Violência Contra
qualquer lugar. Tem que pesquisar para falar”, dendo a questão da política identitária, vin- realizados nas diversas aldeias pela Coorde- a Mulher ou a Delegacia Especializada têm,
afirma. Ela relata um episódio da juventude, culado a uma estratégia de fortalecimento da nação Regional Xavante da Funai, cuja sede até o momento, políticas específicas que
quando foi convidada para um evento na cida- comunidade na qual elas estão inseridas, por- está localizada na cidade de Barra do Gar- contemplem as dificuldades que as mulheres
de de Goiás (GO) e colocaram somente uma que o movimento das mulheres indígenas me ças, muitas mulheres pedem para que seja indígenas Xavante enfrentam, como o desco-
cadeira, para ela ou para a outra pessoa que parece o fortalecimento de outras demandas, discutida a Lei Maria da Penha, segundo a nhecimento da língua portuguesa e dos seus
representava o Movimento Negro. “Fizeram outras questões, que são comunitárias. Na indigenista da Funai Maíra Ribeiro. “Fize- direitos como mulher previstos na legislação
a gente ficar brigando, enquanto deveriam ter verdade, elas são as porta-vozes das questões mos vários encontros em aldeias diferentes. brasileira. Mesmo assim, como se percebe
colocado mais cadeira e ter alguém que repre- para as quais os homens não são. Os homens Sempre com mulheres. Falamos de exames em outra matéria deste jornal, os represen-
sentasse a diversidade”, reclama. estão envolvidos em outras estratégias de preventivos e amamentação. A gente pro- tantes da DEDM e da Rede de Frente defen-
Severiá relata que existem alguns organização. Então, cabe entender o movi- põe a pauta, mas geralmente elas pedem dem que a lei do Estado brasileiro se aplique
espaços da sociedade envolvente que acei- mento das mulheres indígenas, não primei- para inserir a discussão de como é com a plenamente às comunidades indígenas.
tam a indígena civilizada, que tem dinheiro, a ramente por serem mulheres, mas como uma Lei Maria da Penha, sobre a qual elas per- A Funai alega que não possui recur-
professora que ela é, enquanto esses mesmos questão de estratégia comunitária, uma visão guntam e tiram dúvidas. Essa procura apa- sos e que acaba “contemplando” a pauta
ambientes excluem a mulher que sempre mo- do comum da aldeia, da comunidade em que receu em três encontros.” durante os encontros (acima relatados). Os
rou na aldeia. Trata-se, portanto, de uma invi- elas estão inseridas”, afirma Magno. O livro Pelas Mulheres Indígenas (THY- titulares da Rede e da Delegacia dizem não
sibilização étnica, mas ela ocorre também nas DÉWHÁ, 2015), produzido por mulheres compreender a cultura e também alegam
relações de gênero, nas aldeias. Mesmo as- Lei Maria da Penha - Segun- da região Nordeste, ligadas às comunidades a falta de equipe, como aponta Andrea
sim, ao menos no grupo de Pimentel Barbo- do o relato da indígena Xavante Marcelina Karapotó Plaki-ô (Alagoas), Kariri-Xocó Guirra: “Temos um monte de atividades
sa, segundo seu relato, as mulheres estão aos Ro’onhiwe, o esposo dela bebia e aparente- (Alagoas), Pataxó Dois Irmãos (Bahia), Pa- na Rede e precisaríamos de um grupo que
poucos conquistando espaço nas decisões, mente praticava a violência moral, caracteri- taxó Barra Velha (Bahia), Pataxó Hãhãhãe se preparasse. Teríamos que ter um agente
embora o predomínio ainda seja masculino. zada no Art. 7o, parágrafo 5o da Lei Maria da (Bahia), Xokó (Sergipe) e Pankararu (Per- social, um psicólogo e alguém que falasse
Uma prova da invisibilidade e, ao Penha como “qualquer conduta que configu- nambuco), aborda a Lei Maria da Penha e a lingua deles”, afirma.
mesmo tempo, o reconhecimento dela, é
a crescente luta das mulheres indígenas de
todo o Brasil por igualdade e políticas públi-
cas. Para isso, elas vêm se organizando em
movimentos como o Acampamento Terra
Livre, a Aty Kña (Assembleia das Mulheres
Indígenas de Mato Grosso do Sul), o Encon-
tro Nacional de Mulheres Indígenas (2006),
o Projeto Voz das Mulheres Indígenas, cria- JORNAL ESPECIAL PARA O 9o PRÊMIO JOVEM JORNALISTA
do pela Organização das Nações Unidas, a FERNANDO PACHECO JORDÃO (INSTITUTO VLADIMIR HERZOG)
Rede de Juventude Indígena e outros. São
atividades e organizações que se desmem- EQUIPE: CURSO DE JORNALISMO DO CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA (UFMT)
braram por cada etnia e em cada aldeia e vi- (Contemplada na edição 2017 como uma das 10 melhores pautas do Prêmio)
sam maior respeito, proteção e participação
nas decisões que, tempos atrás, eram exclusi- REPORTAGEM E EDIÇÃO: Fernando Ribeiro Lino, Clea Torres Guedes e João Paulo Fernandes
vamente masculinas. DIAGRAMAÇÃO: Ana Carolina Custódio e João Paulo Fernandes
“Nós temos que participar, conversar
e ter reunião. Hoje temos direitos de partici- ORIENTADOR: Prof. Edson Luiz Spenthof
par, somos comunidade também”, afirma a MENTOR: Jor. Paulo Oliveira*
diretora do Colégio Estadual Indígena Alde-
ona (Campinápolis-MT), a Xavante Marcelina * A equipe agradece a valiosa colaboração de Paulo, mas assume integral responsabilidade pelas falhas
Ro’onhiwe, que, indagada sobre a posição da Agradecimento especial à UFMT - Campus Araguaia e ao Núcleo de Produção Digital - MT, pelo apoio.
mulher na aldeia, deixou bem claro: “o que

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