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Universidade Federal do Espírito Santo

Antropologia Cultural – 2020/2


Ana Clara Pirovani e Giovanna Mont’Mor

Povos indígenas e o cinema


As Hiper Mulheres: ecos da tradição num presente que reinventa o futuro

Introdução

Com a ampliação do acesso às tecnologias digitais nas últimas décadas, houve


um avanço nas produções de registros audiovisuais, tornando observável o
movimento de criação de outras narrativas, por vezes de sujeitos com seus
modos de vida, histórias e identidades que escapavam às lentes de produções.
Segundo Robert Stam e Ella Shohat (2005), a apropriação dessas novas
dinâmicas por grupos que historicamente encontram-se marginalizados
econômica e socialmente, possibilitou que o cinema pudesse abrir mais espaços
para a história que não fosse a dos vencedores. Nesse contrafluxo hegemônico,
surgiu o que compreendemos como “cinema indígena” e outros formatos
audiovisuais que vão desde produções caseiras realizadas pelas comunidades,
passando por ficções, documentários etnográficos e produções publicitárias, por
exemplo.
A abertura desses espaços para novas histórias, implicou também em
reflexões acerca da representatividade, com questionamentos fundados na
compreensão de que alimentar novas visões possíveis surge da necessidade de
outras representações que integrem as multiplicidades individuais e coletivas
dos seres de um mundo que é complexo e diverso. Essas possibilidades se
desdobram também nas maneiras que esses grupos encontram de falarem
sobre si mesmo, sobre seus antepassados, suas cosmologias, reinventando e
descobrindo as maneiras de fazer a partir de seu próprio referencial.

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Metodologia

A metodologia constitui-se neste projeto através da pesquisa bibliográfica aberta


em um escopo que vai desde artigos sobre cinema, análise de imagem e textos
de Antropologia trabalhados durante as aulas de Antropologia Cultural a artigos
sobre a produção audiovisual indígena.

Resultados e discussões

As representações dos povos originários no Brasil que pautam o senso


comum, remontam ao período colonial, quando duas principais perspectivas
corroboraram para os estereótipos ainda hoje reproduzidos. A primeira
perspectiva, a positiva, tem origem no mito do bom selvagem, de Jean-Jacques
Rousseau. O mito considera que o ser humano em seu estado de natureza é
bondoso, inocente, dotado de pureza e que a sociedade é a responsável pela
introdução de hábitos e valores conflituosos com essa essência.
A segunda perspectiva, é a dos povos bárbaros, que escapam do ideal de
progresso histórico –– dado como justificativa para genocídios e etnocídios e que
hoje, mesmo após 500 anos, ainda prescreve discursos e ações ameaçadoras
aos mesmos povos e suas culturas, principalmente através de projetos de
conversão para a religião cristã, e que segundo Clastres (2004): “Eliminar a força
da crença pagã é destruir a substância mesma da sociedade. Aliás, é esse o
resultado visado: conduzir o indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da
selvageria à civilização. O etnocídio é praticado para o bem do selvagem.”
A construção representativa do índio na nossa história imobiliza
identidades, impele valores intrínseco aos mesmos. Num projeto de país
“civilizado”, segundo Sansone:

O que estava em jogo, evidentemente, era a caracterização do Brasil


enquanto país civilizado ou, pelo menos, como um país capaz de
superar o atraso e as contradições para alcançar um lugar ao lado das
luminosas civilizações do hemisfério norte. Intrinsecamente amarrada
aos problemas do índio e da escravidão, a perspectiva de se atingir tal
estado dependia, em última instância, da incorporação ou da eliminação
(e substituição, no caso dos escravos) destes elementos. No entanto,
pelo menos enquanto ainda vigorava a escravidão, o debate em tomo

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das ideias de "raça" e "civilização" fixava-se prioritariamente no índio.
(SANSONE, 1996, p. 18).

Talvez por isso, por causa de nossas projeções herdadas dessas perspectivas
–– do bom selvagem, dos povos bárbaros –– nossos enfrentamentos com
registros de novas formas de viver indígenas sejam tão inquietantes.
Há também as discussões trazidas na obra de Gilberto Freyre que
introduzem ideias acerca da miscigenação, e que reduz a diversidade dos povos
originários ao torna-los objeto homogêneo de análise. A visão freyreana
instaurou um marco na construção do imaginário popular sobre o Brasil em sua
formação, que ainda encontra ressonâncias e confrontos com o reconhecimento
da necessidade de reinvenção dessas posições catalogadas.
Para pensar sobre essa reinvenção de posições, a partir dos
tensionamentos criados, faz-se necessária uma digressão para compreender o
que estamos trazendo de discussão de nossas perspectivas enquanto não
indígenas, visto que sob herança europeia, virtualmente etnocida, perpetuamos
visões e comportamentos acerca da cultura indígena quando pensamos a partir
de nosso padrão, como Clastres (2004), diz: “Chama-se etnocentrismo essa
vocação de avaliar as diferenças pelo padrão da própria cultura.” .
A apropriação do cinema enquanto possibilidade desse espaço de
encontro cultural múltiplo e como instrumento de reinvenção de representações
pensada a partir do próprio indígena, surge então como um aliado, um
possibilitador de novas sínteses, e assim como traz Martins (2014): “(...) a escrita
e a câmera são vistas como instrumentos para a defesa da cultura, mas também
para a sua invenção, de acordo com as necessidades da comunidade”.

As Hiper Mulheres: ecos da tradição num presente que reinventa o futuro

Itão kuegü: as hiper mulheres (2011) tem a direção compartilhada por três
cineastas: Takumã Kuikuro, Leonardo Sette e o antropólogo Carlos Fausto. O
filme narra a preparação e a realização do Jamurikumalu, considerado o maior
ritual feminino do Alto Xingu, no Mato Grosso. Como o título antecipa, as
mulheres estão na centralidade da obra.

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A narrativa se inicia com um relato de preocupação do companheiro de
Tahu, uma índia, que já idosa, é uma das poucas mulheres da tribo que guarda
consigo os cantos do ritual Jamurikumalu. Preocupado com a possibilidade da
morte iminente de Tahu, o velho índio vai até seu sobrinho fazer um pedido para
a realização do ritual, que seria uma possibilidade de preservação da tradição
através da transmissão oral dos cantos. Enquanto isso, Kanu, uma índia adulta
e jovem, também conhecedora dos cantos e ritos, está gravemente doente,
situação que desenvolve uma mistura de tensão e expectativa entre os demais
indígenas pela melhora de Kanu e pela realização do ritual, sendo esse o apoio
da primeira parte do filme.
Se a centralidade das mulheres na obra é algo inquestionável, faz-se
necessário abrir parênteses para o que o registro do ritual interpela enquanto
uma representação reveladora para o espectador não índio. No ritual, nos
deparamos com mulheres que ao experienciarem o mito que deu origem ao
ritual, encenam um movimento aparentemente catártico que se desenvolve na
segunda parte da narrativa.
A narrativa vai ganhando densidade através de fragmentos cotidianos e
em dado momento, ao anoitecer, elas saem em busca de possíveis parceiros
sexuais, desafiando e provocando-os ao se lançarem sobre eles nas redes. O
que se segue, são relatos dados entre risos sobre as reações dos homens. A
comunidade logo é tomada pela comicidade da relação que se estabelece
momentaneamente entre os gêneros. Os cantos das mulheres são eróticos,
envolventes, brincam com as relações sexuais, falam sobre os órgãos
masculinos e em vários momentos isso se torna motivo de piada. Todos se
divertem, incluindo os homens.
E então chega o dia da grande festa. Nele, mulheres adornadas,
transfiguram-se para a dança no pátio central da tribo. Assistida pelos homens,
elas cantam, dançam e se desafiam na luta. As mais jovens vão na frente com
palavras de incentivo de Kanu, a condutora do ritual: “vão lá, vocês não podem
ter vergonha!” ela diz.
É difícil escapar de uma comparação com a relação erótica comum aos não
índios, subvertida aqui através das posições de gênero.

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Em seu percurso, As Hiper Mulheres apresenta corpos femininos sob as
mais diversas circunstâncias: juventude, envelhecimento, doença e a
possibilidade da morte. O ritual aparece como um resgate da possibilidade de
renegociar relações e assim vemos na tela diálogos entre vulnerabilidade e
força, juventude e velhice, tradição e progresso, sensualidade e inocência.

Conclusão

Em aceno às ideias propostas por Walter Benjamin, ao tratar da relação


entre materialidade histórica e o que ele chama de “coisas finas e espirituais”,
destaco o trecho em que ele diz: “Elas (as coisas finas e espirituais) estão vivas
na sua luta como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como
tenacidade, e elas retroagem ao fundo longínquo do tempo”. Em
complementaridade, Michael Löwy diz que num processo dialético, o presente
ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente.
Se a reinvenção encenada e mediada por câmeras aponta novas
representatividades futuras, ela também confronta um presente que se mistura
com o passado através da repetição que busca sustentar a vida daquilo que não
poderá se perder: a tradição. Em sua cena inicial, o filme relata a preocupação
do ancião com a morte não de sua companheira, mas do ritual. É também o
ritual o fio condutor narrativo, e através dele que se revelam aos espectadores
as surpreendentes complexidades das relações entre os kuikuro.
Na última cena vemos Kanu, a índia adulta que esteve doente, deitada na
rede. Com delicadeza, ensina os cânticos do ritual à uma índia mais jovem, que
sentada no chão a observa atentamente. Tahu, a anciã, já não aparece em corpo
na cena. Kanu, enquanto liderança presente, também traz Tahu à cena quando
remonta ao passado em busca da memória de seus cânticos e possibilita através
da transmissão a resistência à máquina de destruição de sua cultura.

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Referências Bibliográficas

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia


política. SP: Cosac Naify, 2004.

FRANCHETTO, Bruna. Mulheres entre os Kuikúro. Estudos Feministas, v. 4,


n. 1. Rio de Janeiro: IFICS/UFRJ- PPCIS/UERJ, p. 35-54, 1996.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira


sob regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003.

Itão kuegü: as hiper mulheres. Documentário, drama. Direção: Takumã Kuikuro,


Carlos Fausto e Leonardo Sette. Tecnologia digital. Colorido, estéreo. 80 min.
Brasil, 2012.

LASMAR, Cristiane. Mulheres Indígenas: representações. Revista Estudos


Feministas, Florianópolis, v. 7, p. 143-156, 1999.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses
“Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. 160pp.

MARTINS, Alice Fátima. As hiper mulheres kuikuro: apontamentos sobre


cinema, corpo e performance. Soc. estado., Brasília, v. 29, n. 3, p. 747-
766, dez. 2014.

MONTEIRO, John Manuel. As "raças" indígenas no pensamento brasileiro


do império. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência
e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil,
1996. 252 pp.

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SANSONE, Lívio. As relações raciais em casa-grande & senzala revisitadas
à luz do processo de internacionalização e globalização. In: MAIO, Marcos
Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência e Sociedade.

STAM, Robert; SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo:


Cosac Naify, 2006. 528p.

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