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DE CORPO E TERRA – EXPERIÊNCIAS (D)E RESISTÊNCIAS EM DOIS

ROMANCES DE AUTORIA FEMININA NEGRA

Jair Zandoná1

Resumo: Pensar as literaturas produzidas por Paulina Chiziane e por Conceição Evaristo, muito
embora partam de experiências e de imaginários particulares – Moçambique e Brasil ficcionalmente
projetados, e mesmo quando seja uma ficção-verdade como sintetiza Constância Lima Duarte (2009)
ao se referir à produção da escritora mineira a partir da noção de identidades atravessadas pelas
questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade põe em destaque as consequências da experiência
colonial, de exploração e controle dos [e sobre os/as] corpos e das terras. Na medida que são objetos
de disputas do projeto colonial, este trabalho se dedicará na análise dos romances O alegre canto da
perdiz, de Paulina Chiziane, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, em um exercício de
aproximação entre as duas experiências (literárias) advindas das marcas da colonialidade,
especialmente no que diz respeito à identidade de mulheres negras, posto que são os corpos dessas
mulheres lugar de resistência e de memória, apesar da dominação e da apropriação a que são
submetidos pelo imaginário e pelo sistema colonial português.
Palavras-chave: Literatura de autoria feminina negra. Identidade. Representação. Gênero. Raça.

Nesse texto quero propor algumas discussões envolvendo personagens femininas negras e
seus corpos, em especial os significados da maternidade encontrados nos romances Ponciá Vicêncio
e O alegre canto da perdiz considerando a experiência colonial e as marcas da colonialidade. O
primeiro texto é de autoria de Conceição Evaristo, escritora além de ter sido responsável pela
Conferência Magna intitulada “Clamar no deserto: entre o poder falar e o poder de se fazer ouvir”
proferida durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 122 ocorrido em julho de 2021, recebeu,
entre outros, o Prêmio do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra, o Prêmio Nicolás
Guillén de Literatura pela Caribbean Philosophical Association e o Prêmio Mestra das Periferias pelo
Instituto Maria e João Aleixo. A outra narrativa é de autoria de Paulina Chiziane, a primeira escritora
moçambicana a publicar um romance em seu país3 e também, em 2021, a primeira escritora a ser

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Realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Doutor e mestre em
Literatura pela mesma instituição. É um dos editores da Revista Anuário de Literatura (PPGL/UFSC) e editor de resenhas
da Revista Estudos Feministas (REF). Integra o quadro de pesquisadores/as do Instituto de Estudos de Gênero/UFSC, do
Literatual/UFSC e do Grupo de Estudos no Campo Discursivo/UFSC. E-mail: jzandona@gmail.com. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-4301-9436.
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A conferência está disponível em: https://youtu.be/WimOFw-5gRU?t=3961.
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Em “Eu-mulher...” as reflexões de Paulina sobre o contexto de publicação de seu primeiro romance, Balada de amor ao
vento, são reveladoras de sua trajetória como escritora: “Como é que a sociedade recebeu a notícia de que eu estava a
escrever o meu livro? Primeiro com cepticismo e muito desprezo da parte dos homens. Muitas pessoas acreditavam e
ainda acreditam que a mulher não é capaz de escrever mais do que poeminhas de amor e cantigas de embalar.
Consideraram-me uma mulher frustrada, desesperada, destituída de razão. Foi um momento terrível para mim. Mas, por
outro lado, estas atitudes tiveram um efeito positivo porque forçaram-me a demonstrar pela prática que as mulheres podem
escrever e escrever bem.” (CHIZIANE, 2013, p. 202)
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agraciada vencedora do prestigiado Prêmio Camões4 (RASCUNHO, 2021). A relação entre
Conceição Evaristo e Paulina Chiziane e suas escritas não é ao acaso. Os sistemas culturais que
compartilham, ainda que em sentidos diversos, produzem injunções específicas de gênero e raça, as
quais estão ligadas ao “modo português” de escrever a história colonial-patriarcal-escravocrata. Daí
que percebemos certos traços comuns e de recorte muito específico, em nossos modos de conceber
as relações sexo-gênero (SCHMIDT, 2016, p. 17). Além disso, ainda em diálogo com as ponderações
da pesquisadora Simone Pereira Schmidt, produções como as de Conceição e Paulina nos permitem
acessar, via literatura, questões que ainda têm escassa representação estética. Dos textos que analisa
em “Sexo, raça, gênero na lógica colonial: o que contam as mulheres”, destaca as

cenas representativas das violências praticadas contra as mulheres negras, em forma de


racismo, abusos, estupros, subordinação e exploração do corpo, cenas quase banalizadas de
tão conhecidas, mas que, paradoxalmente, encontram ainda escassa representação estética e
nos convocam a buscar uma tradição de representação, não apenas estética, mas também
política, ainda desconhecida para a maioria das pessoas, mesmo aquelas que habitam, como
nós, um país onde metade da população se declara negra. (SCHMIDT, 2016, p. 19)

A necessidade de haver representação estética dessas e de outras violências repercute, por


exemplo, na dificuldade de certos grupos sociais (muito elitistas) em lidarem com demandas e
realidades tão prementes. Para ilustrar, vale mencionar o recente caso da professora de história que
foi afastada de uma turma de uma escola privada da cidade de Salvador/BA porque um grupo de
alunos e respectivos responsáveis não consideraram a discussão do livro de contos Olhos d’água
apropriado para “lidar com uma dor que não é nossa.” (MUNIZ, 2021, on-line). Reação bastante
controversa, sendo que o livro de Conceição Evaristo integra o programa Árvore – Leitura transforma
– presente em escolas públicas e privadas de todo o país.

Contranarrativas da lógica colonial

Mulher nenhuma suspeita o destino do filho que embala nos seus braços. Não sabe se é a
estrela que a fará sorrir ou o espinho que fará o seu coração sangrar. Uma mãe desafia todos
os perigos e as sombras más e enche a alma de doces canções. Enquanto embala o filho,
também se embala. (CHIZIANE, 2018, p. 350)

As mulheres que povoam O alegre canto da perdiz, de Paulina, e Ponciá Vicêncio, de


Conceição, podem, todas elas, ser evocadas para este rápido exercício de aproximação: a avó de

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O Prêmio Camões foi instituído em 1988 com o “objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto
de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural de nossa língua comum.” De
Moçambique, antes de Paulina, receberam o prêmio José Craveirinha (1991) e Mia Couto (2013). Disponível em:
https://www.bn.gov.br/explore/premios-literarios/premio-camoes-literatura.
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Ponciá, morta em um momento de desespero pelo marido; sua mãe, Maria Vicêncio; Ponciá, Nêngua
Kainda; Biliza, assassinada por Negro Climério. Serafina, a avó; Delfina, a mãe; Maria das Dores e
Maria Jacinta, as filhas. São essas mulheres, seus corpos e suas experiências que nos interessam e,
não por acaso, seus corpos e suas experiências são marcados pela violência. A violência, aqui, é
entendida a partir do conceito definido por Heleieth Saffioti (2015, p. 63): a violência é a “[...] ruptura
de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade
sexual, integridade moral”. Considerando as práticas coloniais, a ruptura de qualquer integridade é
ainda mais cruciante, na medida que podemos “identificar como o ‘corpo’ foi produzido como um
lugar onde a dominação se exercia, e onde se construía o poder, em termos de gênero e raça.”
(SCHMIDT, 2014, p. 268). Por essa lógica, podemos destacar alguns eventos de Alegre canto da
perdiz: Serafina teve seus filhos “retirados na flor da idade e levados num barco para terras
desconhecidas” (CHIZIANE, 2018, p. 103), o que sintetiza a lógica monetária do colonialismo com
relação aos corpos das mulheres negras escravizadas. Já no caso de Delfina, dos quatro filhos que
teve, são as duas meninas as que mais aparecem na narrativa: Maria das Dores, a filha negra,
concebida na união com José dos Montes, e Maria Jacinta, a filha mestiça, gerada da relação com o
branco Soares. Delfina é quem lança mão do projeto de assimilação para ascender socialmente, pois
“[q]uem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão [...]”.
Para isso, “[m]ata a tua língua, a tua tribo, a tua crença.” (CHIZIANE, 2018, p. 119). Ao jogar de
maneira consciente com o civilizatório erótico5, revela sua obstinação com o mundo dos brancos,
tanto que se orgulhava de afirmar que foi a primeira negra a viver na cidade alta, lançou mão de seu
corpo e de seu sexo para alcançar seus propósitos.
É Maria das Dores, a filha negra de Delfina, e que nos recebe no início da narrativa, ocupa
seu espaço em um continuum que entrelaça as três gerações de mulheres negras marcadas pela
constante necessidade de reconfiguração de si num contexto de dominação colonial e patriarcal. Ela,
a mãe que fugira com seus filhos para protegê-los, mas que no trajeto perdera-os. De nome Maria,
porque “Maria é sinónimo de mulher” (CHIZIANE, 2018, p. 15-16), há 25 anos peregrina em busca
dos filhos perdidos.
No lado de cá do Atlântico, Ponciá também entrelaça três gerações de mulheres da família.
Embora não tenha conhecido sua avó, aprendeu com a mãe a trabalhar com o barro. Perdera o avô,

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O civilizatório erótico diz respeito à lógica do patriarcalismo colonial português, no encontro de corpos femininos negros
e corpos masculinos brancos. Entretanto, é importante enfatizar que apenas o homem branco europeu era efetivamente
sujeito do desejo e da História. (SCHMIDT, 2016, p. 17)
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de quem recebeu uma herança, perdera o pai, e separou-se da mãe e do irmão. Migrada para a cidade,
Ponciá tivera 7 filhos, todos mortos:

Alguns viveram por um dia. [...] Os cinco primeiros ela tivera em casa com a parteira Maria
da Luz. A mulher chorava com ela a perda dos bebês, tão sacudidinhos, mas que não
vingavam nunca. Os dois últimos ela tivera no hospital. Os médicos disseram que eles
morriam por causa de uma complicação de sangue. Depois dos sete, ela nunca mais
engravidou. (EVARISTO, 2017, p. 45-46).

O que as sete mortes prematuras significam na dureza da pobreza vivida por ela e pelo
marido6, continuidade da vida precária de seus antepassados:

Os pais, os avós, os bisavós sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda
a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria,
da forme, do sofrimento, da revolta suicida. Alguns saíam da roça, fugiam para a cidade, com
a vida a se fartar de miséria, e com o coração a sobrar esperança. (EVARISTO, 2017, p. 70)

Assim com ela, seu irmão Luandi fugiu para a cidade “com o coração a sobrar esperança”,
mas a realidade de Ponciá é, como lemos no romance, repleta de sofrimentos. Por isso, com relação
à perda de seus sete filhos, segundo ela mesma conclui, era mesmo melhor não ter filhos, pois
propagaria a miséria (EVARISTO, 2017, p. 58). Apesar do desejo, jamais pode exercer a maternidade.
Com relação ao processo de gestação e nascimento dos filhos, a narradora de Alegre canto da
perdiz sintetiza essa relação da seguinte maneira: “[a] gestação une a mãe e o filho pelo cordão
umbilical num corpo só. O parto separa-os e tornam-se dois. Dois caminhos, dois destinos, dois
mundos” (CHIZIANE, 2018, p. 82). Não por acaso a maternidade e a relação entre a mãe e a filha
[ou os filhos com a mãe] é o fio condutor das duas narrativas: Maria das Dores em sua jornada em
busca de seus filhos perdidos; Maria Vicêncio, que sempre havia vivido na roça, partiu para a cidade
de trem em busca de Ponciá e Luandi. Apesar de estar “atordoada com a coragem que teria de
fabricar”, estava segura de que encontraria os filhos (EVARISTO, 2017, p. 100).
Ponciá era recorrentemente tomada de “vazio na cabeça” (EVARISTO, 2017, p. 40), cheia de
“pensamentos-lembranças” (EVARISTO, 2017, p. 22) e quando voltava a si ficava atordoada. Maria
das Dores era a louca. Ambas partilham, de algum modo, a experiência de alhearem-se de si mesmas

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A descrição do espaço onde vivia com o companheiro é importante para reflexão: “Ponciá Vicêncio correu
vagarosamente os olhos pelo cômodo em que moravam. O pó avolumava-se por cima do armário velho. Pelos caibros do
telhado acumulavam-se teias de aranhas e picumãs. As trouxas de roupas sujas cresciam dias e dias pelos cantinhos do
quarto. As folhas de jornal, que forravam prateleiras do armário, já estavam amareladas pelo tempo e roídas nas pontas
pelos ratos e baratas. Toda noite ela contemplava o desleixo da casa, a falta de asseio que lhe incomodava tanto, mas
faltava-lhe coragem para mudar aquela ambiência. Fechou os olhos e relembrou da casinha de chão de barro batido de
sua infância. O solo era todo liso e por igual, mesmo seco dava a impressão de ser escorregadio. Tudo ali era de barro.
Panelas, canecas, enfeites e até uma colher com que a mãe servia o feijão. Ao lembrar da mãe, sentiu um aperto no peito.
O que acontecera com ela? Teria morrido?” (EVARISTO, 2017, p. 22)
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e também de serem inebriadas pelos sentidos do reencontro. No caso de Ponciá, o irmão encontra-a
na estação, durante a ronda em seu primeiro dia de seu trabalho. Leva-a ao encontro da mãe, pois
Maria sabia que era hora de levar a filha novamente para perto do rio, tão importante para ela e seus
antepassados.
Quando Maria das Dores reconhece no padre e no médico, ambos irmãos sem mãe, os seus
filhos perdidos no passado, “[d]eixaram-se ficar abraçados momentos intermináveis. Não estavam
ainda conscientes daquele encontro. Podia ser sonho. Podia ser realidade.” (CHIZIANE, 2018, p.
320). Depois que mãe e filhos se reencontraram, José dos Montes, seu pai, também revela-se para ela,
até então refugiado no silêncio mudo para abafar a dor de tê-la abandonado. Igualmente Simba, a
quem Delfina havia dado a filha e sua virgindade como pagamento na tentativa de garantir o próprio
futuro em um mundo colonial, manifesta-se. Passado reencontrando o presente, ou, citando uma vez
mais o romance, eram três

gerações sonhando com o mesmo monte. Buscando-se eternamente. Estilhaços de um vido


que se apanham, que se colam e se enformam numa bilha nova, refactária, fraca, que já não
pode conter água, mas ornamenta o centro de uma mesa. Buscando a identidade roubada pelo
bico de um abutre. (CHIZIANE, 2018, p. 322)

A bilha, mesmo quando transformada em ornamento, assim como os trabalhos de barro de


Ponciá, rementem às partículas desse material “que a mão divina moldava para insuflar o novo sopro
de vida. Começam a surgir figuras, formas, rostos, almas. A vida começava naquele instante.”
(CHIZIANE, 2018, p. 335). Porque já outros tempos se anunciavam, todos vindos da fome de séculos.
O contexto de reencontro entre Delfina e a filha negra marca a transformação dos (seus)
mundos. Ela sabia que apesar de ter gerado Maria das Dores com muito amor, com seu nascimento a
vida lhe havia imposto as regras da maternidade segundo a lógica colonial vigente (CHIZIANE, 2018,
p. 308-309). Por esse motivo, no diálogo entre as duas, após tantos anos separadas (de muito
sofrimento, culpa, dor), a celebração do afeto é cingida com o melhor abraço do mundo, capaz de
sentir aquele barro negro moldado pela criação divina:

Delfina oferece à filha o melhor abraço do mundo. Sente-lhe a pele áspera. Ela é um pedaço
de barro da criação divina, barro negro com sangue vermelho. Que foi vítima da loucura.
Loucura da fome e da guerra. Da vitória e da derrota. Da hierarquia entre as raças. Da
imoralidade social. Da união e da ruptura. Loucura do destino, loucura de sorte e azar, loucura
de vida e de morte. Loucura na cidade, no campo. Loucura de terra na luta pela existência.

– Separação? Nunca! Nunca mais! — grita Delfina.

– Falas a verdade, mãe?

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– Estaremos juntas para sempre! Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença, até que a
morte nos separe! (CHIZIANE, 2018, p. 333)

Na condição de mãe, culpa-se por saber que contribuíra para os conflitos que os filhos pretos
e mulatos herdariam e que precisariam guerrear até entenderem-se. José dos Montes é perspicaz
quanto à angústia da antiga companheira: “[a] culpa não foi tua, Delfina. Fomos um homem e uma
mulher na construção do mundo. Eu e tu assimilados. Voluntários servidores do regime. Lacaios.
Matamos e morremos.” (CHIZIANE, 2018, p. 343) O que importa, então, é celebrar a reunião da
família, junto com a chegada do novo século.

À guisa de conclusão

Os dois romances trazem os reencontros necessários para seguirem e darem sentido à vida,
resistem apensar das vidas precarizadas. Como mencionei no início do texto sobre a relação entre as
duas escritoras e suas escritas não é ao acaso. Quis retomar seus textos por essa estreita relação que
se costura entre as gerações, a avó, a mãe, a filha. Relações tão profundas que vão ao encontro das
palavras de Conceição de ontem. O seu texto tem o poder de fazer ser ouvida e a escrevivência é lugar
de fala. Daí que retomando Grada Kilomba (2019) o ato de escrita é ato político e, por isso, como
“um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais, tornando-se a/o
escritora/escritor ‘validada/o’ e ‘legitimada/o’ e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade
que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada.” (KILOMBA, 2019, p. 28). Em “Falando
de Ponciá Vicêncio” texto que abre a edição de 2017 do romance, Conceição Evaristo lembra sobre
sua “primeira publicação solo”:

Se para algumas mulheres o ato de escrever está imbuído de um sentido político, enquanto
afirmação de autoria de mulheres diante da grande presença de escritores homens liderando
numericamente o campo das publicações literárias, para outras, esse sentido é redobrado. O
ato político de escrever vem acrescido do ato político de publicar, urna vez que, para algumas,
a oportunidade de publicação, o reconhecimento de suas escritas, e os entraves a ser vencidos,
não se localizam apenas na condição de a autora ser inédita ou desconhecida. Não só a
condição de gênero vai interferir nas oportunidades de publicação e na invisibilidade da
autoria dessas mulheres, mas também a condição étnica e social. (EVARISTO, 2017, n.p.)

Constância Lima Duarte (2009), por sua vez, aponta que a literatura de autoria assumidamente
negra é ao mesmo tempo projeto político e social, testemunho e ficção. Por isso suas produções são
ato de resistência (hooks, 2019), uma vez que a literatura possibilita a construção de “uma
contranarrativa da memória colonial” (SCHMIDT, 2016, p. 119). Por essa senda, vale recuperar, por
fim, as reflexões propostas por Conceição Evaristo na mesa em que participou na edição da Abralin

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em 2020, quando afirmou que sua escrita não existe para embalar a casa grande. Pelo contrário. A
escritora situou a escrevivência em duas imagens importantes: a mãe preta que tem não apenas o
corpo, mas a voz escravizada, contando histórias para as crianças brancas; e Carolina Maria de Jesus.

Referências

CHIZIANE, Paulina. Eu mulher... Por uma nova visão do mundo. Abril – Revista do Núcleo de
Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, v. 5, n. 10, p. 199-205, abr. 2013 [1994].
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Porto Alegre: Dublinense, 2018.
DUARTE, Constância Lima. Gênero e violência na literatura afro-brasileira. In: TORNQUIST,
Carmen Susana; COELHO, Clair Castilhos; LAGO, Mara Coelho de Souza; LISBOA, Teresa Kleba.
Leituras de resistência: corpo violência, poder. V. 1. Florianópolis: Mulheres, 2009, p. 315-324.
EVARISTO, Conceição. Discursos de/sobre mulheres afro-latino-americanas. Abralin ao Vivo, 25
jul. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mOhK99FV0Xc. Acesso em: 30 out.
2021.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2017 [2003].
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. de Cátia Bocaiuva
Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. de Jess Oliveira.
Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, Colombia, n. 9, p. 73-101, julio-
diciembre, 2008.
MUNIZ, Tailane. Professora do Vitória Régia é afastada de turma por abordar livro de escritora negra
em sala de aula. Metro1, 19 de novembro de 2021 às 15:25. Disponível em:
https://www.metro1.com.br/noticias/cidade/115433,professora-do-vitoria-regia-e-afastada-de-
turma-por-abordar-livro-de-escritora-negra-em-sala-de-aula. Acesso em: 20 out. 2021.
RASCUNHO. Paulina Chiziane, do Moçambique, vence Prêmio Camões 2021. Rascunho,
20/10/2021. Disponível em: https://rascunho.com.br/noticias/paulina-chiziane-do-mocambique-
vence-premio-camoes-2021/. Acesso em: 30 out. 2021.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
SCHMIDT, Simone Pereira. Os corpos das mulheres e a memória colonial. In: FUNCK, Susana
Bornéo; MINELLA, Luzinete Simões; ASSIS, Gláucia de Oliveira (orgs). Linguagens e narrativas:
desafios feministas. Tubarão: Ed. Copiart, 2014, p. 267-281.
SCHMIDT, Simone Pereira. Sexo, raça, gênero na lógica colonial: o que contam as mulheres. In:
ZINANI, Cecil Jeanine Albert; SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos. Trajetórias de literatura e gênero:
territórios reinventados. Caxias do Sul, Editora da UCS, 2016, p. 13-24.

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Body and clay – experiences and resistance in two novels written by black women
Abstract: Thinking about the literatures produced by Paulina Chiziane and Conceição Evaristo,
although starting from experiences and private imaginary – Mozambique and Brazil fictionally
projected, and even if it is a fiction-truth as synthesizes Constância Lima Duarte (2009) when
referring to the production of mining writer –, from the notion of identities crossed by ethnic-racial
issues, gender and sexuality highlights the consequences of colonial experience, exploitation and
control of [and over] bodies and clay. As they are disputed objects of the colonial project, this research
will be devoted to the analysis of the novels O alegre canto da perdiz by Paulina Chiziane and Ponciá
Vicêncio by Conceição Evaristo. To this end, it proposes to perform an approximation exercise
between the two (literary) experiences arising from the marks of coloniality, especially with regard
to the identity of black women, since these women's bodies are a place of resistance and memory,
despite of domination and appropriation to which they are subjected by the imaginary and the
Portuguese colonial system.
Keywords: Black women writers. Identity. Representation. Gender. Race.

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