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Eu deixei o leito às três da manhã, porque quando a gente perde o sono começa a pensar nas

misérias que nos rodeiam. (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que
resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de
brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades.
(...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. Fiz o café e fui
carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. As
horas em que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários.

Carolina Maria de Jesus,


Quarto de despejo (1960)
FERNANDA RODRIGUES DE MIRANDA
MARIA APARECIDA CRUZ DE OLIVEIRA

(ORGANIZADORAS)

ANA MARIA GONÇALVES


Cartografia crítica

1ª edição
© Maria Aparecida Cruz de Oliveira e Fernanda Rodrigues de Miranda, 2020.

ISBN: 978-65-00-11666-3

Comissão editorial:
Berttoni Licarião
Gislene Barral
Graziele Frederico
Patrícia Nakagome
Paula Queiroz Dutra
Pedro Ivo Macedo
Regina Dalcastagnè

Conselho científico:
Florencia Garramuño (Universidade Nacional de San Andrés)
Gabriel Albuquerque (UFAM)
Helena González Fernández (Universidade de Barcelona)
Horst Nitschack (Universidade do Chile)
José Leonardo Tonus (Universidade Paris-Sorbonne)
Luciene Azevedo (UFBA)
Ricardo Barberena (PUC-RS)
Rejane Cristina Rocha (UFSCar)
Rosana Kohl Bines (PUC-Rio)
Vivaldo Andrade dos Santos (Universidade de Georgetown)

Capa:
Pedro Paulo Teixeira

Arte da capa:
Francisco Dalcastagnè Miguel

Revisão:
Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva

Diagramação:
Berttoni Licarião

Uma publicação do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília

www.gelbc.com
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Uma carta para Kehinde, de Michel Yakini
SEÇÃO 1: AMOR, MATERNIDADE E ANCESTRALIDADE
(Re) Tecendo a palavra mãe: maternidade negra em Um defeito de cor como disrupção do nacionalismo brasileiro Fabiana
Carneiro da Silva
Oroboro mnemônico: caminhos de ancestralidade em Um defeito de cor Camila de Matos Silva
O amor cura: mulheres negras, ancestralidade e afetividade em Um defeito de cor Júlia Dias da Silva
Ancestralidade feminina negra e laços entre mulheres em Um defeito de cor Dulcilei da Conceição Lima
Memória das águas performando o passado: sal de cura e cicatrização Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro
SEÇÃO 2. INSUBMISSÕES, LUTAS E OUTRAS GUERRAS
Para enegrecer os modos de saber: histórias de negras lutas nas letras de Um defeito de cor Simone de Jesus Santos
Enaltecimento das ancestralidades afro-brasileiras como resposta massiva à hegemonia literária Gabriel Estides Delgado
Ancestralidade africana e estratégias de insubmissão em Um defeito de cor Karina de Almeida Calado
História e ficção em Um defeito de cor: o envolvimento de Luísa Mahin/Kehinde/Luísa Gama na Revolta dos Malês e na
Sabinada Ana Maria Vieira Silva
Infância e resistência: projetando mulheres negras intelectuais Maria Aparecida Cruz de Oliveira
SEÇÃO 3: DIÁSPORA ATLÂNTICA, MEMÓRIAS E OUTROS TERRITÓRIOS
Na rota do Atlântico: Kehinde e o movimento pendular das identidades diaspóricas Cristiane Côrtes
Liminariedade e gramática da diáspora amefricana em Um defeito de cor Danielle de Luna e Silva
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: historiografias sobre a escravidão Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo
Narrativas e cartografias da cidade de Salvador a partir de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves Gabriela Leandro Pereira
Sofia de Carvalho Costa e Lima
Nomes de ruas em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves Lucie Josephe de Lannoy
Circulação de Mundos no Romance e colonialidade nacional prescrita na narrativa da experiência histórica negra Fernanda
Rodrigues Miranda
SEÇÃO 4. MULHERES NEGRAS, RELIGIOSIDADE E OUTROS PERTENCIMENTOS
“Era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto”: o nome como aspecto de agência e cosmovisão em Um
defeito de cor Oluwa Seyi Salles Bento
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: romance de formação feminino e negro Aline Alves Arruda
Representação e protagonismo da mulher negra no romance Um defeito de cor Daiana Nascimento dos Santos Augusto Marcos
Fagundes Oliveira Paulo Roberto Alves dos Santos
A presença de mulheres no comércio do Atlântico Negro na escrita de Antônio Olinto e de Ana Maria Gonçalves Édimo de
Almeida Pereira
APRESENTAÇÃO

Existe um antes e um depois de Um defeito de cor. Um romance paradigmático para a literatura


brasileira e para a escrita em língua portuguesa, representativo para as afrodescendências latino-
americanas, incontornável para as geografias da colonização que ainda demarcam o nosso
espaço-tempo e a nossa memória.

O romance assegura a condição de poder narrar, ou melhor, do poder da narrativa, naquilo que
constitui sua potência mais libertadora: a quebra do silêncio que persiste sobre as experiências
históricas de pessoas negras na emergência da modernidade, na diáspora forçada de africanas e
africanos, na retomada de posse do seu passado e genealogia, recompostas por um princípio
ficção.

Um romance que nasce da pesquisa – de uma autora em busca de arquivos inauditos – mas que
torna cada leitor pesquisador um pouco, pois no ato da leitura vamos também mergulhando em
um caminho de descobertas que nos permite imaginar o que antes era elipse, ou silêncio.

Composto por uma autora negra, protagonizado e narrado por uma mulher negra, Ana Maria
Gonçalves acresce a este corpo autoral um proeminente campo reflexivo, dado o reduzido –
porém presente – número de romances de autoria negra na literatura brasileira –este território de
narrativas em disputa. De igual forma, amplia o campo de intérpretes negros da nação e da
História dentro da escrita literária.

Nesta coletânea de artigos e ensaios revela-se uma cartografia abrangente do pensamento até
aqui produzido em torno de Um defeito de cor, texturas críticas de proposições variadas, reunidas
nessa que é a primeira antologia dedicada ao romance já publicada no Brasil. Desde
pesquisadores-leitores, cujos trabalhos acadêmicos versam sobre a obra ou as questões que ela
tangencia, a leitores-autores, que identificam no romance múltiplas entradas analíticas, políticas,
afetivas – as abordagens aqui reunidas apontam para a pluralidade de acessos e caminhos
interpretativos.

O livro se organiza em quatro seções temáticas abrangentes e, ao final, oferta um presente a


Kehinde: uma carta na qual ela é a destinatária e não mais a remetente, escrita por Michel
Yakini.

A Seção 1: “Amor, maternidade e ancestralidade” começa com o artigo (Re) Tecendo a palavra
mãe: maternidade negra em Um defeito de cor como disrupção do nacionalismo brasileiro,
de Fabiana Carneiro da Silva. O texto adentra inicialmente o mito da mãe preta como o signo de
uma interdição, enfatizando que ao lado do estereótipo da “mulata”, a “mãe preta” configura a
outra forma como a mulher negra foi principalmente representada pela literatura alçada à
condição de nacional no Brasil, ambas as formulações impeditivas à maternidade da mulher
negra. O romance de Gonçalves rompe com tais representações e Kehinde se descreve na
narração ficcional como sendo, dentre outros fatores, detentora da capacidade de concepção,
expressa no ato de dar à luz quatro filhos. Entretanto, a maternidade de Kehinde é atravessada
pela perda, e só é possível de ser vivida efetivamente quando ela retorna para a África, lá
assumindo uma posição identitária complexa.

No segundo artigo da seção, Oroboro mnemônico: caminhos de ancestralidade em Um defeito


de cor, Camila de Matos Silva mostra ao leitor a comunidade de mulheres que habita o entorno
de Kehinde, conhecidas por nós através do seu mergulho narrativo na memória. A autora une a
ideia de ciclo (oroboro) à memória (mnemônico), por considerar que dentro do “espaço”
ancestral de Um defeito de cor, muitas coisas/pessoas vão e vêm – adquirindo uma característica
de autoconhecimento; transformação; renovação; aprendizado e rotas de fuga/cura para Kehinde
e para muitas outras personagens. Através do oroboro e de outros signos da religiosidade negra,
o artigo mostra como, ao longo da narrativa, Kehinde tece uma colcha de memórias de mulheres
afro-brasileiras e africanas.

No artigo seguinte dessa seção: O amor cura: mulheres negras, ancestralidade e afetividade
em Um defeito de cor, Júlia Dias da Silva ampara-se em algumas ideias da pensadora Beatriz
Nascimento e de outros intelectuais negros para percorrer a trajetória de Kehinde, ancorando
seus movimentos na ancestralidade, nos saberes e nos afetos compartilhados com outras
mulheres negras. O artigo destaca ainda a constituição identitária de Kehinde a partir do
protagonismo coletivo de mulheres negras que se articularam em torno de confrarias e
irmandades religiosas, salientando a força da organização coletiva e afetiva para os enredos
representativos da protagonista. No texto de Julia Dias, o amor é pensado e articulado como uma
chave de sobrevivência.

No artigo quarto, Ancestralidade feminina negra e laços entre mulheres em Um defeito de


cor, Dulcilei da Conceição Lima percorre o papel do mito de Luíza Mahin na identidade coletiva,
apontando a forma como ele organiza o romance de Ana Maria Gonçalves. Nesse domínio, a
autora traça algumas linhas comparativas com o romance histórico Malês: a insurreição das
senzalas (1933), de Pedro Calmon, que igualmente mistura história e ficção. Em um segundo
eixo comparativo, Lima analisa a opção de Ana Maria Gonçalves em respeitar o desejo expresso
por Luiz Gama em sua célebre carta, não atribuindo um nome ao pai, mas mantendo a incógnita
a esse respeito. Para a autora, este é um dos muitos mecanismos criados por Gonçalves na
tentativa de estabelecer um diálogo direto entre Um defeito de cor e a Carta a Lúcio de
Mendonça: colocando mãe e filho frente a frente, como se as informações estivessem sendo
confrontadas.

Finalizando essa seção, Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro nos brinda com o artigo Memória
das águas performando o passado: sal de cura e cicatrização, no qual introduz o conceito de
Literatura abèbè, um instrumento cognitivo de análise literária das textualidades afroatlânticas
pensado por ela de maneira experimental em Um defeito de cor. Segundo a autora, tal literatura
se funda em referências ancestrais e configura-se da ordem do iniciático, uma vez que se entende
que conhecer essa produção literária auxilia, sobremaneira, em processos de/para
(auto)conhecimentos permeados por etapas que vão desde a (auto)rejeição, repugnância,
sabotagem, mas podendo desaguar também em (auto)aceitação, revelação, cuidado, amor, cura e
porque não, (auto)realização.

A Seção 2, intitulada: “Insubmissões, lutas e outras guerras”, se abre com o artigo Para
enegrecer os modos de saber: histórias de negras lutas nas letras de Um defeito de cor, de
Simone de Jesus Santos. A autora defende que a reunião das memórias de si e de outros(as)
propicia à protagonista criar sua versão sobre algumas rebeliões promovidas por negros(as) no
Brasil. A criatividade reside no resultado de seu relato, isto é, no texto literário que representa o
agenciamento de negros (as). Pode-se então afirmar que fatos passados podem ter sua força
plástica e dinâmica evidenciadas e que as “feridas” do tempo decorrido da escravidão e da
exploração colonial são, sim, passíveis de transformação. Em Um defeito de cor (2006), o
passado de negros na América Latina é revisitado pela arte e personagens, fatos, experiências,
vivências, percursos, de algum modo documentados pela historiografia, são selecionados,
combinados e transformados no como se da escrita literária.

Na sequência, Gabriel Estides Delgado, em seu texto Enaltecimento das ancestralidades afro-
brasileiras como resposta massiva à hegemonia literária, salienta como a ficcionalização da
história empreendida no romance Um defeito de cor é capaz de sedimentar determinado
repertório simbólico e material ausente tanto das narrativas historiográficas hegemônicas quanto
da sociologia crítica brasileira, experiências, enfim, suprimidas pela narrativa eurocêntrica; o
protagonismo narrativo africano, o resgate de sua ancestralidade diversa – imune parcialmente às
investidas do sequestro, tráfico e espoliação. Partindo dessa premissa, mas sem negar a diferença
entre o registro sociológico e o literário, o autor coteja o livro de Gonçalves com a tese A
integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes, abordando ainda os limites
formais do romance.

O terceiro texto dessa seção tem autoria de Karina de Almeida Calado e se intitula
Ancestralidade africana e estratégias de insubmissão em Um defeito de cor. O artigo parte de
uma reflexão sobre o tom testemunhal que permeia a narrativa de Um defeito de cor,
compreendendo que a voz da narradora-personagem, Kehinde, ergue-se contra o silenciamento
de mulheres negras que cruzaram o Atlântico. Segundo Calado, essa voz é concebida como uma
voz de insubmissão porque, como destacou Glissant (2011), o espaço do navio negreiro era
também de silenciamento, de murmúrios abafados. Destacando que a estratégia narrativa
impressa no testemunho é um dos aspectos fundamentais empregados no propósito de releitura
da diáspora e evocação do repertório cultural africano presente no texto, a autora disserta sobre
os roteiros de Kehinde pelas histórias orais que permeiam seu relato.

Em História e ficção em Um defeito de cor: o envolvimento de Luísa Mahin/Kehinde/Luísa


Gama na Revolta dos Malês e na Sabinada, Ana Maria Vieira Silva adentra a discussão entre
os limites e trânsitos da História e da ficção, destacando que no romance a autora enfatiza as
relações cotidianas dos africanos com seus senhores, bem como suas participações políticas nos
acontecimentos relevantes daquela época, principalmente nas revoltas negras ocorridas na Bahia
nas primeiras décadas do século XIX, culminando nas que tiveram maior repercussão histórica –
A Revolta dos Malês e a Sabinada, das quais a protagonista participou ao lado de personagens
históricos que lideraram essas manifestações. O estudo de Silva se fundamenta na teoria que
define como metaficção o subtipo de romance que instaura uma crise na historicidade, uma vez
que seus personagens fictícios convivem ao lado de personagens históricos, num contexto
também historicamente situado, mas manipulado pelo autor intencionalmente.

Finalizando essa seção, Maria Aparecida Cruz de Oliveira nos oferta: Infância e resistência:
projetando mulheres negras intelectuais, em que desenvolve uma leitura comparada entre as
infâncias das personagens Kehinde e Maria-Nova, protagonista da narrativa Becos da memória,
de Conceição Evaristo. Para a autora, ambas podem ser lidas em uma perspectiva de potencial do
futuro: são representações de meninas negras que projetam mulheres negras intelectuais. Oliveira
considera que as personagens meninas são potenciais intelectuais porque ensaiam o seu perfil.
Como bem caracterizou Bell Hooks, “intelectual é alguém que lida com ideias transgredindo
fronteiras discursivas, porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo”.

A Seção 3: “Diáspora atlântica, memórias e outros territórios” é iniciada com o texto de Cristiane
Côrtes, cujo título é Na rota do Atlântico: Kehinde e o movimento pendular das identidades
diaspóricas. Seu artigo propõe discutir a condição do sujeito diaspórico a partir de um
movimento denominado pendular. Para tanto, parte das reflexões de Paul Gilroy e Edouard
Glissant a respeito da diáspora africana e as retoma para observar a metáfora do pêndulo. Por
intermédio dessa metáfora, a autora reflete sobre a posição do sujeito diaspórico na produção de
contranarrativas, cuja circularidade leva a uma desarticulação dos discursos etnocêntricos no
caminho de uma sociedade mais justa.

Na sequência da seção, apresentamos o texto de Danielle de Luna e Silva, Liminariedade e


gramática da diáspora amefricana em Um defeito de cor. O texto traz as figuras dos abikus e
ogbanjes de Um defeito de cor e aponta a relação deles com as desconexões e deslocamentos
advindos da diáspora Amefricana. Na análise, o romance não aponta apenas para a narrativa de
um Brasil escravagista, mas também traz a reflexão do processo atual de apropriação e descaso
com o corpo negro. Uma vez que ele continua a ser cativo, controlado, explorado, aprisionado e
mortos, considerando os dados da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (2015) sobre número de negros que ocupam o Sistema Prisional no Brasil e de
assassinatos, todos sistematicamente autorizados e silenciados pelas políticas de segurança
pública brasileira.

O texto seguinte é o da Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo: Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves: historiografias sobre a escravidão. Ele está conectado com o texto anterior porque
discute o processo em que o corpo negro perde sua humanidade para se tornar sujeito-coisa,
sujeito-objeto, sujeito-mercadoria etc. A autora discute como a tessitura da Diáspora negra no
Brasil mostra-se ligada ao genocídio da população negra vinda da África. A partir das ideias de
Achille Mbembe (2013), pensa o genocídio como uma organização política e econômica
orientada pelo necropoder e uma necropolítica, em que o poder é exercido delimitando quais
corpos e sujeitos são passíveis de morte. A partir das ideias de slave narratives – narrativas de
ex-escravizadas e as neo-slave narratives – narrativas contemporâneas da escravidão apresenta
como o romance desestabiliza, questiona e tensiona uma tradição historiográfica sobre o Brasil
escravocrata do século XIX.

Enquanto os textos anteriores denunciam o aniquilamento dos corpos negros, em Narrativas e


cartografias da cidade de Salvador a partir de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves,
de Gabriela Leandro Pereira e Sofia de Carvalho Costa e Lima, temos um estudo do corpo negro
habitando os espaços da cidade no século XIX e registrando-se nos espaços da história como na
Revolta dos Malês. Nessa relação entre cartográficos e literatura, as autoras tratam o romance
como uma potente narrativa para acionar um imaginário sobre o lugar da mulher negra nos
espaços da cidade e na história e a cidades enquanto lócus da socialização dos negros. Esse
artigo não apenas pensa a presença dos negros no mapa da cidade, mas também reflete como a
leitura desses mapas superam a dimensão cartesiana dos georreferenciamentos e categorias
físico-territoriais, quando pensa o mapa como instrumento que apresenta discursos, interesses e
relações existentes nos territórios.

Lucie Josephe de Lannoy também apresenta um estudo urbano da cidade em Nomes de ruas em
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. O recorte da análise é a cidade de Salvador. A
autora reflete que, assim como as personagens, as vias, vielas, ruas, ladeiras, becos, avenidas
também comunicam. A cidade se vê transformada pela significância dos nomes das ruas etc. Na
narrativa, esses nomes não são arbitrários, eles corroboram com os arquivos históricos e com o
imaginário social e cultural representado no romance. Importante também é a relação que autora
faz das cicatrizes no corpo da cidade com as marcas do corpo de Kehinde, ambas símbolo do
silencio forçado.

É sobre os silêncios e a recuperação e transmissão/continuidade da memória da mulher negra que


trata o texto Circulação de mundos no romance e colonialidade nacional prescrita na
narrativa da experiência histórica negra, de Fernanda Rodrigues Miranda. O artigo apresenta
as potencialidades das configurações estéticas do romance para “dá palavra contra o silêncio”
que a história relegou às mulheres negras. A cartografia volta a ser tematizada nesta seção para
pontuar como elas formam as personagens diaspóricas ao tangenciar suas experiências religiosas,
culturais, linguísticas, afetiva e política.

Na Seção 4: “Mulheres negras, religiosidade e outros pertencimentos”, Oluwa Seyi Salles Bento
traz o texto “Era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto”: o nome
como aspecto de agência e cosmovisão em Um defeito de cor. Trata-se da discussão sobre o
papel definidor que os nomes das personagens negras ocupam na narrativa. A escolha deles,
como o de Kehinde, deixa nítido a que cosmovisão as personagens estão vinculadas. O exercício
de nomear é pensado aqui como uma estratégia para construir personagens negras sujeito de si e
no mundo.

Já em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: romance de formação feminino e negro,


Aline Alves Arruda discute o romance de formação burguês do século XIX, como o clássico Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe para compará-los com a narrativa de Ana
Maria Gonçalves. Assim, Um defeito de cor é apresentado como um romance de formação
contemporâneo feminino e negro, mas se distancia dos bildungsroman tradicional europeu ao
romper com a perspectiva do gênero e da etnia. As marcas femininas e étnicas são explicitadas
através da memória e a da diáspora africana.
Em Representação e protagonismo da mulher negra no romance Um defeito de cor, Daiana
Nascimento Dos Santos, Augusto Marcos Fagundes Oliveira, Paulo Roberto Alves Dos Santos
analisam a representação e o protagonismo histórico da mulher negra. Entendem que a obra
aponta as mudanças socioculturais relacionadas às demandas sociais das primeiras décadas do
século XXI e à identidade brasileira em relação às minorias – sua ascensão e sua representação
social. Enfim, a proposta é mostrar a articulação de uma representação literária do Brasil,
alicerçada no projeto de releitura histórica.

Para finalizar esta seção, Édimo de Almeida Pereira apresenta o texto A presença de mulheres
no comércio do Atlântico Negro na escrita de Antônio Olinto e de Ana Maria Gonçalves.
Em um exercício comparativo entre o romance A casa da água (1969), de Antonio Olinto e Um
defeito de cor (2006), o autor pensa as relações de aproximação e afastamento das personagens
Mariana, a matriarca da narrativa de Olinto e Kehinde, de Ana Maria Gonçalves.

Desejamos a todas e todos bons ventos e boa leitura!

Fernanda Rodrigues de Miranda


Maria Aparecida Cruz de Oliveira
Uma carta para Kehinde, de Michel Yakini

Querida Kehinde,

Passei a semana toda pensando em escrever esta carta pra você, direto de 2019, onde este tipo de
escrita é um objeto raro. Neste exato momento, a maioria das pessoas que eu conheço tão na
internet, uma espécie de teia comunicativa, imagina só: essa teia permite você falar com os
muçurumins sem precisar ir até a Baixa do Sapateiro, através de uma caixinha de luz que as
pessoas carregam nas mãos você pode receber as encomendas dos seus quitutes sem precisar sair
de casa ou que o Tico e o Hilário faça a comunicação com os fregueses, uma beleza, né?

Uma parte das pessoas dessa dimensão tão na internet por felicidade, é porque um ex-
governante, nascido em Pernambuco, rebento de origem oprimida, foi preso arbitrariamente e
agora foi solto e visto como herói, já que o governante atual, eleito usando somente a internet,
vem queimando as florestas do Brasil, tem raiva de gente preta, tem raiva do amor entre pessoas
do mesmo sexo, tem raiva da vida, e o povo diz que se a gente trocar um pelo outro tudo há de
melhorar por aqui.

Uma baita sinuca de bico, pois uma outra parte desse pessoal todo, uma negrada ligeira, como os
muçurumins, gente descendente da sua história e que tem a mesma fé no Ifá do
BabaOgumfiditimi ficou feliz, pois não deseja prisão nem pro seu pior inimigo, mas sabe que a
soltura de uma única pessoa não significa nossa liberdade real. A maioria dos presos desse tempo
Kehinde, continuam sendo as mesmas pessoas que tú tanto viu sofrer torturas cruéis nos navios,
praças e senzalas, gente como a gente que tá no Brasil e não se sente daqui, que se for à África,
há de se estranhar por lá, como em certo ponto aconteceu contigo, um banzo de não
pertencimento sem fim, espelho e arranhão na mesma medida, como se tivéssemos um defeito de
cor.

Às vezes Kehinde, dá a impressão que, conforme o tempo passa, a vida fica mais rápida e mais
facilitada, mas a história de quem carrega o lombo da dor é tão parecida, como essa que você
conta de séculos atrás, porque antes a gente sabia a história dos séculos, depois das décadas, hoje
em dia, a gente marca o tempo dos acontecimentos pelo ano ou até mesmo pelo mês, e a única
história que continua cíclica e pingando de segundo a segundo é a da opressão.

Mas isto a maioria já sabe, ou finge não saber, não é novidade, é parte do jogo todo. Sabe
Kehinde, umas das discussões mais acaloradas do nosso tempo é se a terra é redonda ou se terra
é plana. Faz um tempo já, aliás, desde o seu tempo, os cientistas afirmavam que a terra era
redonda e agora muita gente fica brava quando alguém professa o contrário, mas olha só: a terra
só há de ser redonda pra quem gira, nénão?

O ponto, Kehinde, é algo que você ensina bem pra gente, a escolha. Do que adianta afirmar a
terra é redonda, se teimamos em viver em um modo plano, bidimensional, quiçá quadrado?

Pra ser redondo e esférico, é preciso que esse mundo gire em nossa intenção, em nosso saber e
fazer. Quando somos orientados pela materialidade plana, e sua finitude bidimensional e
polarizada, nossa vida passa a ser estruturada assim, nossas ideias também, pensamos em
começo, meio e fim, mas viver um mundo e uma terra esférica exige algo pra além disso, caso
contrário seria impossível escrever essa carta pra você, ler sua narração, no tempo redondo, onde
tempo e o espaço se fundem, onde a parte tá no todo, assim como o todo tá na parte.

Um mestre de samba de coco, falou um dia desses sobre a importância do giro anti-horário na
dança. Ele explicou que o sentido regente da dimensão material e cronológica é horário e por
isso, pra firmar e harmonizar com a energia emanada pela música, era preciso inverter (girar ao
contrário, considerar, conceber e praticar outro sentido, pra fazer esse redondo valer). Assim
dançar no anti-horário faz a terra ser redonda e se movimentar, em vários sentidos, faz a conexão
com o multidimensional. Capaz que se a gente perguntar qual a forma da terra, depois de um
bailado, a resposta seja: a terra só pode ser redonda.

Pra conversar contigo agora Kehinde, eu me concedi a dança. Girei pra tá contigo em toda
leitura. Pra confiar no anúncio quântico da autora da obra, na introdução do livro, explicando que
atraiu, criou a recebeu a informação de toda história, há quem diga que é sorte ou mentira,
mundo plano. Essa história, dos seus manuscritos achados pela autora me lembrou um
contemporâneo seu, o Gonçalo, chamado pra bailar pelo escritor Luis Fulano de Tal, em “A
Noite dos Cristais”. Gonçalo era descendente de haussá, local de Salvador e fugiu pra Guiana
Francesa pra fintar a escravidão e, como você, deixou sua história grafada num futuro possível.
Capaz que até se encontraram por aí, por um acaso você lembra de ter conhecido alguém com
esse nome, Kehinde?

Se é ficção ou verdade não importa, tudo que é criado existe agora em alguma dimensão possível
e isso basta pra gente se apegar na sua criança curiosa em Savalu ou na fase adulta em Salvador
ou na griô que tú revela no fim da vida, na mágica da literatura, que permite de 80 anos ser
fecundado em 900 páginas.

Com sua criança aprendi que mesmo numa travessia sangrenta, medida pelo medo de virar
carneiro do paraíso, há sempre o motivo da gratidão, seja pelo momento do raro alimento, pela
chegada na terra desconhecida, gratidão pelo sol e pelo mar, e por tá viva. Com sua fase adulta
aprendi que é possível ter gratidão pelos voduns da avó, pelos orixás da mãe, pela acolhida dos
muçurumins e pela cozinha do padre pra fazer os seus cookies.

E a você Kehinde, expresso cá a minha gratidão, por me apresentar Nega Florinda a Akpalô do
seu tempo, como hoje faz Kiusam de Oliveira, Mariana Per, Mirta Portillo, Giselda Perê, Danuza
Novaes, Thayame Porto... Nega Florinda me fez lembrar o motivo do pretuguês de Lélia
Gonzáles existir, pra falar das cadeira, dos menino, e saber que é mais de um, sem redundância.
Pra gente tá, ficá, abraçá, recebê e aprendê sem receio de colocar consoante no final, no
português com língua preta, africana, pretuguês na coerência. Gratidão por me relembrar que o
significado de Mina não é só mulher de malandro afanador da Boca do Lixo, como me ensinou o
Paulinho Duma Perna Torta nas prosas de João Antonio, mas no giro de antes, muito antes, com
a Casa das Minas, povo da Costa, dos voduns de Agontimé, a rainha.

Em outra parte, você conta das Galés, o navio-prisão, e isso me remeteu à palavra Galera. Um
dia desses uma amiga italiana, observava uma roda de brasileiros falando “num sei que lá a
Galera... eu tava com a Galera, e aquela Galera...”, e depois na hora de ir embora, minha amiga
me explicou que Galera, na Itália, é onde os escravizados esperavam antes de seguir no navio.
Cheguei em casa e fui ver a tradução e a palavra significa Prisão, história cíclica, vaivendo…

Por isso muitas coisas se repetem Kehinde, a gente ouve você falar e se vê, a exigência da carta
de alforria pra poder andar na rua, parece o da carteira de trabalho assinada pra evitar prisão
quando aqui surgiu a Lei da Vadiagem, ou da tensão de sempre ter o documento de identidade no
bolso pra evitar o esculacho de samango no enquadro policial. As estratégias cooperativas e
comunitárias também são parecidas. As histórias contadas por você parecem sementes das
associações negras que surgem logo depois, labutando cadastro de emprego, aula de leitura e
escrita, a bola de meia pro revide da manhã, mas também o baile, o encontro, o sorriso negro.

Ainda mais com essa história ensinada pelo Baba, sobre contrato que os Abikus fazem desde o
Orum pra findar a vida tão cedo, me deixam encucado pra saber se gente não vem de papel
passado, e se nossa cota aqui é ficar esquivando o que não é adianto no meio de tanta certeza
amarga.

Parece que foi ontem, eu voltava de um sarau em Salvador, parecido com o encontro de sará,
com celebração, palavra sagrada e circularidade, junto com dois amigos e quando me dei conta
gente andava na mesma região da venda dos seus quitutes, Pelourinho, Sapateiro, e um amigo me
contava sobre histórias da revolta do muçurumins em Salvador, do malês, sobre o lugar onde
ficou preso o lendário Pacífico Licutan, sobre o comércio da Baixa, sobre os lugares que
firmaram o Candomblé na região, ao unificar o culto dos orixás, e mais a frente, quase chegando
no ápice da revolta onde ficava o quartel dos militares, um homem pendurado num caminhão de
lixos, olhou pra gente e disse “Salaam Aleikum”, e prontamente um dos meus amigos respondeu
“Alaikum As-Salaam”. O cara pareceu adivinhar qual era a nossa prosa, confirmando a verdade e
abrindo o portal do século 19, bem ali.

Você indica esse portal durante todo o livro né, Kehinde? Me marcou a justiça de Xangô,
regendo a definhação do sinhô José Carlos, pagando caro o abuso por ser o pai biológico de
Bonjokô, isso me fez lembrar uma outra história contada por amigo escritor, o Allan, menino de
alá, a história das “Costas Lanhadas”, chibatadas que ardem no tronco, mas sangram em dobro
no corpo da casa-grande.

E essa história da sua imagem de Oxum? Minou a íris. Lembrou de um ensinamento de um dia
desses, sobre a diferença entre acreditar e ter certeza. Porque quando o jogo do Baba revelou
sobre a proteção da sua orixá, você ficou com a certeza, já sabia que isso tava acontecendo e por
isso tudo correu da melhor forma. Você provou da abundância do nível espiritual, que pode vir
inesperadamente, mas representa uma sincronia de energia, que quando tem seu fluxo permitido
se manifesta onde bem quiser.

Incrível como essa dádiva, apesar das dificuldades, fez seu caminho tão próspero e frutífero no
Brasil e principalmente depois, no retorno à terra-mãe, um retorno inspirador, mesmo com a
fatalidade de não conseguir abraçar um de seus filhos, essa uma ferida dolorida e sangrenta em
meio a tantas conquistas. Te ouvir fez eu me conhecer melhor, no espelho e nas contradições,
que tanto humanizam nossa história. Sem a sua voz, somos simplesmente vítimas ou algozes do
processo todo, e isso não é excludente nem determina a ordem das coisas. Tú demonstra que tudo
pode acontecer ao mesmo tempo, dependendo do contexto tudo vira de cabeça pra baixo, só
vivendo pra saber.

São desafios, Kehinde, você representa uma fortaleza eterna. Tenha certeza: mesmo sem poder
encontrar seu querido, ele soube bem quem você é sempre teve orgulho de ser seu filho, pois
acreditou na sua história e recebeu sua desejada última benção. Você permitiu a terra girar,
escrevendo as cartas raras de hoje, e me encontrando no infinito, assim nos conhecemos. Como
no poema de Birago Diop sigo na certeza que “este é o sopro dos antepassados/Os que morreram
nunca partiram/ estão na sombra que se ilumina/e na sombra que se torna espessa/os mortos não
estão debaixo da terra/estão nas árvores que estremece/estão no bosque que geme/estão na água
que dorme/estão na cova/estão na multidão/os mortos não estão mortos/Os que morreram nunca
estão ausentes/estão no seio da mulher/estão na criança que chora/ e no tição que se inflama/Os
mortos não estão debaixo da terra/estão no fogo que se apaga/estão na erva que choram/estão no
penhasco que se lamenta/estão na selva/estão na mansão/os mortos não estão mortos. Tão vivos
como você, Kehinde.

Permaneça em paz,

Gratidão por me ouvir!

Michel Yakini[1]
SEÇÃO 1: AMOR, MATERNIDADE E ANCESTRALIDADE
(Re) Tecendo a palavra mãe: maternidade negra em Um defeito de
cor como disrupção do nacionalismo brasileiro
[2]
Fabiana Carneiro da Silva

“Mãe preta”: o signo de uma interdição

Ainda que esteja presente no corpus da literatura brasileira de modo explícito e reiterado e que
tenha passado a constituir um número considerável de estudos, sobretudo no universo das
ciências humanas, tais como a história e a antropologia, a figura da “mãe preta”, até
recentemente, não recebeu a devida atenção da crítica literária, conforme sublinha Sônia
Roncador, quem, desde a teoria literária, propôs-se a delimitar esse estudo (2008, p. 129-152).
Somando-se ao estereótipo da “mulata”, a “mãe preta” configura a outra forma com que a mulher
negra foi principalmente representada pela literatura alçada à condição de nacional no Brasil. Em
ambas as representações, tolhe-se a possibilidade de que essa mulher seja representada
subjetivamente enquanto mãe, na medida em que num dos casos ela é estéril (conforme indica o
termo “multa”, do qual deriva “mulata”, e que se refere à espécie resultante do cruzamento entre
um cavalo e um jumento) e no outro sua relação com o próprio filho é invisibilizada, sendo que a
inserção do elemento “preta” como caracterizador da ideia (tão essencializada) de “mãe”
demarca com intensidade a racialização e a posição subalterna atribuída à mulher negra e
formaliza, como veremos a seguir, um sistema em que a justaposição dos dois termos gera um
curto circuito semântico.

A “mãe preta” estabelece correspondência com a figura que no contexto literário,


cinematográfico e midiático estadunidense fixou-se como “mammy”, isto é, a representação da
trabalhadora negra doméstica do período escravista que, em consonância com a explicação de
Roncador (2008), sendo escravizada ou liberta, é destituída da relação com seus próprios filhos e
passa a cuidar e amamentar os filhos das famílias escravizadoras brancas. Tal qual indicado por
Kimberly Wallace-Sanders (2008, p. 18), em análise baseada sobretudo em significativos
romances do século XIX nos Estados Unidos, a “mammy” é caracterizada como uma mulher de
pele preta (remetida à África enquanto forma de marcar distanciamento do fenótipo vinculado à
miscigenação), enérgica, com autoridade respeitada pela crianças de quem cuida, solitária e
atrelada ao sentimento de tristeza e dor.

No âmbito da literatura canônica brasileira, a “mãe preta” é alçada, de acordo com Roncador
(2008), à condição de mito, no qual aparece como símbolo da “fidelidade incondicional” e do
“servilismo absoluto à classe senhorial”; uma mulher que, “apesar de lhe ter sido retirado o filho,
ama e acolhe com doçura a criança branca a que deverá amamentar”. Nesse contínuo, de modo
análogo à figura da “mammy”, a “mãe preta” poderia ser descrita nos termos deste mito como
aquela que ama os filhos dos brancos mais do que os próprios filhos:

This early characterization lays the troubling foundation for the enigma of the
mammy’s maternity: her love for her charges becomes more sublime, more
extraordinary when it surpasses her love for her own flesh and blood, children who
are owned by her master, or at times, by the young charges themselves (Wallace-
Sanders, 2008, p. 18)[3].

Além de Sônia Roncador (2008), como uma das escassas fontes que se detém nessa
representação na literatura brasileira, destaca-se a pesquisa de Rafaela de Andrade Deiab (2006)
que, desde a antropologia social, produziu a dissertação intitulada A mãe-preta na literatura
brasileira: a ambiguidade como construção social (1880-1950). Em seu trabalho, Deiab busca
analisar a representação social das “mães pretas” na literatura produzida no Brasil no período
pós-abolição. A pesquisa, que, de acordo com ela, foi desenvolvida preocupando-se “menos com
uma suposta ‘realidade histórica’ das escravas domésticas e amas-de-leite, do que com as versões
que essa memória da ‘mãe-preta’ permite veicular”, delimita e evidencia a ambiguidade com que
as amas-de-leite foram incorporadas às obras literárias apresentadas, sendo que na maioria das
vezes “o processo de construção dessa memória implic[ou] em uma seleção que reelabor[ou]
determinadas imagens (permeadas por afetividade, santidade, gratidão) em detrimento de outras
(que evocam violência, conflito)” (Deiab, 2006, p. 24-25).

Apesar de não realizar uma análise detida dos textos literários propriamente ditos, Deiab faz um
levantamento significativo das referências a “mães pretas” presentes nos autores que entre 1880 e
1950 publicaram no Brasil, incluindo aí textos integrantes da literatura infantil. Mapeia-se, então,
como no transcorrer do tempo a imagem da escravizada ou liberta que amamenta o filho branco
dos (ex)escravizadores se modifica (inclusive nas formas de representação fotográfica) de modo
a acompanhar o processo de modernização do país e, com ele, o desejo de apagamento do
recente passado escravista. Nessa direção, a imagem da “mãe preta”, configurada a partir da
oposição com o “filho branco”, vai sendo ajustada ao projeto do Estado de construção de uma
identidade nacional mestiça e, por mais que se enraize na vexatória estrutura escravagista
colonial, continua a ser evocada e reelaborada.

Em consonância com isso, a presença das amas-de-leite na produção literária do período – e,


como veremos, também em parte do século XX – surge, como uma forma de acomodação de
conflitos e estabelecimento, por meio da ênfase no afeto da “mãe preta” pelo filho de seu
“senhor”, de um precário equilíbrio entre posições tão arbitrariamente desiguais. Deiab sustenta,
assim, a hipótese de que “seja como memória oficial, seja como memória popular ou do senso
comum, ela (a figura da “mãe preta”) permite fazer as pazes com recente passado escravocrata
que, se não podia ser esquecido, podia ao menos ser lembrado em sua faceta mais íntima, afetiva
e também dilacerante” (2006, p.24). No aprofundamento da análise dessas representações, o
trabalho de Deiab (2006) mostra como, para os escritores pesquisados, a positividade da
representação literária da “mãe preta” vinculou-se ao sentimento de perda, lamentosa, de uma
tradição cultuada por eles e que tinha essa figura como representante.

Em avaliação de mesmo sentido chega o trabalho de Roncador (2008) já citado aqui. De acordo
com esta autora, depois de um certo declínio, a “mãe preta” como personagem se popularizou,
principalmente, nas memórias de infância de escritores modernistas publicadas entre as décadas
de 1930 e 1960. Além de em Gilberto Freyre e José Lins do Rego, também citados por Deiab,
constata-se sua presença em textos de Carlos Drummond de Andrade e José Américo de
Almeida, todos com publicações nas quais encontram-se mães negras rememoradas, segundo
Roncador (2008), como elemento que remete à nostalgia de uma tradição aristocrática em
decadência. Em vez, portanto, do antagonismo entre a família senhorial (incluindo como
elemento significativo as brancas escravizadoras a quem são conferidos os atributos de pureza,
castidade e maternidade) e escravizadas/ libertas (interditadas de exercerem sua própria
maternidade e, de modo correlato, de constituírem sua família), o que se produz em termos
simbólicos no imaginário da época é a imagem da conciliação e do carinho[4], ou, nos termos de
Roncador, uma “utopia da confraternização das duas raças” (2008, p. 134).

É dessa forma que o fato de parte das mulheres negras terem tido a família branca como um
espaço de exercício de sua maternidade ao longo do século XIX não é problematizado pela
literatura organizada em torno do projeto de construção nacional e que, ao contrário disso,
reforça simbolicamente a obstrução da possibilidade de as mulheres negras constituírem seus
próprios laços afetivos e reprodutivos.[5] Sendo assim, as representações que buscaram
literariamente configurar a prática da amamentação mercenária, na qual afeto e violência
estabelecem interdependência, instituiram-na de uma conotação positiva, revelando-se parciais e
mitificadoras.[6]

Conceição Evaristo (2005) foi quem contemporaneamente chamou atenção para a quase ausência
da representação da maternidade da mulher negra no campo literário do país[7] e, reiterando o
argumento desenvolvido até aqui, escreveu: “Quanto à mãe-preta, aquela que causa comiseração
ao poeta, cuida dos filhos dos brancos em detrimento dos seus. Mata-se no discurso literário a
sua prole, ou melhor, na ficção elas surgem como mulheres infecundas e, portanto, perigosas”
(Evaristo, 2005, p. 2). Nesse contínuo, Evaristo salienta e aprofunda a reflexão que tem como
núcleo os vínculos entre um projeto nacional excludente e a literatura:

A representação literária da mulher negra, ainda ancorada nas imagens de seu


passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor,
não desenha para ela a imagem de mulher-mãe, perfil desenhado para as mulheres
brancas em geral. Personagens negras como Rita Baiana, Gabriela, e outras não são
construídas como mulheres que geram descendência. Observando que o imaginário
sobre a mulher na cultura ocidental constrói-se na dialética do bem e do mal, do
anjo e demônio, cujas figuras símbolos são Eva e de Maria e que o corpo da mulher
se salva pela maternidade, a ausência de tal representação para a mulher negra,
acaba por fixar a mulher negra no lugar de um mal não redimido (Evaristo, 2005, p.
2).

A contundência das asserções de Evaristo – somadas à tecitura conceitual que sinteticamente


(re)construir aqui – reverberam na produção literária contemporânea, sobretudo naquela
produzida desde a rubrica da literatura negra, e abrem caminho para a elaboração das hipóteses
que são apresentadas nesse artigo. A discursividade resultante do encontro das narrativas
canônicas evocadas ratifica que o corpo da mulher negra, quando mãe, é lido nessas obras como
corpo-força-de-trabalho, na medida em que a capacidade geradora da mulher negra é afirmada,
mas negada simultaneamente no gesto de interdição da relação dela com seus próprios filhos.
Um defeito de cor, conforme veremos, opera um giro crítico nessa lógica de representação ao
encená-la, tendo, porém, a fertilidade da mulher negra como um fato assumido e o
desaparecimento de seus filhos como um problema central.
Kehinde: mãe de Banjokô, Omotunde, João e Maria Clara

Tendo provocado impacto no momento de seu lançamento, sido resenhado por Millôr Fernandes
e Idelber Avelar e recebido o prêmio “Casa de las Américas” em 2011, Um defeito de cor,
passados treze anos desde que veio a público, tem uma fortuna crítica considerável. Dentre as
publicações sobre o romance, destacam-se sobretudo leituras que, além de discutirem o gênero
da obra, delimitam em sua análise temas que recorrentemente são vinculados às questões da
diáspora negra, tais como a memória transatlântica, resiliência e identidade e consciência
intelectual negra[8]. A questão da maternidade não instigou o interesse da crítica até o
surgimento, em 2014, da tese No colo das iabás: raça e gênero em escritoras afro-brasileiras
contemporâneas, de Vania Maria Ferreira de Vasconcelos.

Nesse trabalho, Vasconcelos tem a maternidade como fio condutor, o qual permite que ela se
debruce sobre a análise da obra de Ana Maria Gonçalves, assim como na de Conceição Evaristo
e em contos de outras autoras (cujo principal suporte de publicação foram os Cadernos Negros)
identificadas por ela como “afro-brasileiras”. No intuito de desenvolver uma reflexão feminista
sobre as formas como gênero e raça são construídos nessas escritas, Vasconcelos entende ser a
“maternidade” uma potente chave de leitura na medida em que:

o tema está presente na ficção e poesia das autoras afrodescendentes, negando a


lógica patriarcal de dominação que buscou construir uma imagem dessas mulheres
sempre distante da figura materna, como produtos úteis à fantasia sexual masculina.
As novas representações, trazidas mais e mais pelas escritoras, vão construindo
outros sentidos, distantes dos antigos estereótipos, a partir de perspectivas que
partem da experiência de mulheres que tem buscado desde as primeiras ações
feministas, apropriarem-se daquilo que se diz sobre elas mesmas (Vasconcelos,
2014, p. 181).

Resguardando o fato de que o procedimento de “leitura feminista” no que se refere a Um defeito


de cor, tal como operado por Vasconcelos, possa ser problematizado (e farei isso adiante), sua
sagaz identificação da maternidade como elemento central da obra repercute em consonância
com minha hipótese de leitura, de modo que parece imprescindível a afirmação formulada por
ela, segundo a qual no romance:
A ideia de reunir toda a memória do que viveu para deixar ao filho é a razão que a
leva a reconstruir o que provavelmente foi a experiência de muitos africanos que
viveram nas principais cidades brasileiras do século XIX. Esse povo está
representado nas agonias e vitórias de Kehinde. Por outro lado, ao escrever uma
narrativa na qual uma mãe busca deixar registro de sua vida para o filho, Gonçalves
constrói uma protagonista de caráter peculiar, uma mulher que, apesar da
experiência da escravidão, coloca-se como centro da história, insiste em narrar a si
mesma, não permitindo que ninguém conte a história que é dela (Vasconcelos,
2014, p. 172).

Concordamos, pois, que uma leitura atenta à narração de Kehinde reconhece que, a
despeito dos outros sentidos que podem ser depreendidos do relato e das múltiplas facetas que
ela assume ao longo do enredo – dentre elas: mulher africana, escravizada, negra de tabuleiro,
revolucionária atuante na Rebelião do Malês, liberta, vodunsi, vendedora de armas, empresária
no setor da construção civil e até mesmo mulher capaz de matar para defender sua vida – é a
necessidade de comunicação com o filho e redenção da culpa sentida pela separação entre ambos
que motiva o surgimento do texto. O dado é explicitado nas últimas páginas do romance:

Andei muito doente nos últimos três anos, e só não morri porque o encontro já
estava marcado para daqui a pouco, assim que eu terminar esse meu pedido de
desculpas. Porque é assim que vejo tudo isso, como um grande mea-culpa. Muito
maior do que o pedido ao João, à Maria Clara, ao genro, às noras e a todos os netos
que foram se despedir de mim no porto de Lagos, onde eu e a Geninha tomamos
este navio. Tentaram me convencer a ficar argumentando que eu não aguentaria a
viagem, que não teria como te encontrar e nem sabia se você ainda estava vivo ou
morando no mesmo lugar, em São Paulo. Mas nada disso teve importância, pois eu
tinha a certeza de que precisava vir, precisava te contar tudo que estou contando
agora. Se vai chegar às suas mãos, também não sei (....) Se alguém vai contá-la a
alguém qualquer dia desses eu não sei, mas fiz o que tinha que ser feito (Gonçalves,
2006, p. 945).

Na esteira do que desenvolvemos até aqui, em aliança com o que declara a narradora, a
delimitação de Vasconcelos (2014) é precisa e contribui para que notemos como a representação
de Kehinde distancia-se tanto da figura da “mulata” quanto da “mãe preta” que marcaram a
presença da mulher negra no cânone da literatura brasileira. Ao caracterizar-se a si mesma, na
narração ficcional, Kehinde descreve uma mulher de pele preta que, dentre outros fatores, é
detentora da capacidade de concepção, expressa no ato de dar a luz a quatro filhos: Banjokô,
Omotunde (ou Luiz), João e Maria Clara.
Vasconcelos (2014) também flagra isso e, objetivando a interpretação de Um defeito de cor,
concebe o romance como uma “história do possível” (tomando o termo de empréstimo de Tânia
Swain) de modo que delimita o vínculo entre Kehinde e as outras personagens femininas
presentes na narrativa, particularmente com mulheres de sua linhagem familiar, a fim de
visibilizá-las e analisar os possíveis significados que sua representação condensa. Nessa direção,
navega por águas que recuperam o arquétipo da mãe no Ocidente e tenta contrapô-lo às noções
de maternidade africanas presentes nas escritas de autoria negra-femininas. No entanto, apesar de
esboçar o mesmo gesto crítico no que se refere à matização do postulado “feminismo”, em
determinados momentos, seu trabalho parece perder de vista a tensão que problematiza as
essencializações basilares de certas categorias teóricas utilizadas e acaba por aproximar a obra de
um espectro conceitual que exigiria mediações mais desenvolvidas. É esse procedimento que
pode ser constatado em estamentos como:

Podemos também observar que Kehinde é construída sob uma perspectiva feminista
por parte da autora, porque a personagem não se deixa dominar por homens, depois
de liberta e, mesmo quando apaixonada, não abandona seus objetivos ou abre mão
da independência financeira, por exemplo. Consideramos importante o fato da
autora ter escolhido para sua personagem uma família formada por mãe e avó,
mulheres fortes e independentes, sem nenhum homem que lhes questionasse as
decisões. Esta característica é também importante na forma como vivencia suas
experiências maternais (Vasconcelos, 2014, p. 182).

A diferença histórica entre a condição das mulheres brancas e das mulheres negras, assim como
entre os processos de emancipação de tais grupos que, apesar da divergência em relação a muitas
pautas, uniram-se estrategicamente – diferença essa magistralmente desenvolvida, no que se
refere ao contexto estadunidense, por Angela Davis (2016)[9] – mesmo que mencionada, não tem
sustentada na tese a relevância que possui para o universo das “escrevivências”[10] das mulheres
negras. Desse modo, ainda que busque deslocar os referenciais eurocêntricos, evocando a
cosmovisão iorubana, no texto, resulta frágil o procedimento que estabelece conexão entre os
postulados feministas e o universo mitológico dos orixás a fim de operar uma transposição deles
às caracterizações das personagens do romance. Nesse sentido, sem deixar de ratificar que a tese
se trata de uma leitura substancial da obra de Gonçalves e detém o mérito da identificação da
maternidade como chave de leitura do livro, nossas águas seguem cursos distintos.

A referência às amas de leite recebe pouco investimento de análise no trabalho de Vasconcelos


(2014), mas, a meu ver, é fundamental, enquanto figura contrastiva ligada ao discurso da
nacionalidade, para a compreensão de como Um defeito de cor, ao encenar a fala de uma mãe,
desafia as formas [racistas] de controle da imagem da mulher negra na literatura. Ana Maria
Gonçalves (2006) mergulha nas contradições da maternidade negra no século XIX e produz um
romance que trata, dentre outras coisas, da luta da mulher negra por exercer essa maternidade –
encarando os temas correlatos a isso, como a omissão/abandono masculina, a discriminação, a
solidão e a culpa. A trajetória de vida da narradora e sua forma particular de contá-la, a uma só
vez, recupera e desmonta a lógica do corpo da mulher negra como reprodutor do filho ausente
(ou apagado/ subtraído/assassinado) que vimos caracterizar a representação da “mãe preta”.

É isso que podemos constatar se nos detivermos na forma como se dá a relação da narradora com
cada um de seus filhos. O primogênito, Banjokô, é fruto do estupro de Kehinde, ainda em
condição de escrava, pelo seu então escravizador, José Carlos. Numa das passagens mais
violentas da obra, ela narra esse estupro como uma experiência de morte que somente finda,
meses depois, com a percepção dos movimentos de Banjokô em sua barriga:

Eu queria morrer, mas continuava mais viva que nunca, sentindo a dor do corte na
boca, o peso do corpo do sinhô José Carlos sobre o meu e os movimentos do
membro dele dentro da minha racha, que mais pareciam chibatadas. Eu queria
morrer e sair sorrindo, dançando e cantando, como minha mãe tinha feito (...) De
todo o resto que aconteceu depois, só tomei consciência quatro ou cinco meses mais
tarde, quando meu filho começou a mexer dentro da minha barriga. Foi só na hora
em que ele se mexeu que entendi que estava viva e queria continuar viva. Se não
por mim, pelo menos por ele, a quem imediatamente comecei a chamar de Banjokô,
‘sente-se e fique comigo’, para prevenir caso fosse um abiku, como eu já pressentia
(Gonçalves, 2006, p. 171-173).

A analogia entre a penetração do pênis do sinhô e as chibatadas escancaram com a força da


imagem literária a vulnerabilidade do corpo da mulher negra nesse período. Com a mesma
habilidade formal, o desdobramento do episódio – que tem como agravante o estupro e mutilação
também de Lourenço, então companheiro de Kehinde – correlaciona o estupro à possibilidade de
concepção de uma nova vida, a mesma que perversamente retira a narradora do estado de torpor
e é lida por ela como um novo sentido de existência.

É na gestação dessa criança e nos anos subsequentes ao seu nascimento que o leitor pode
acompanhar em detalhes as primeiras constrições à maternidade experienciadas por Kehinde.[11]
Banjokô nasce no porto de Salvador quando da chegada de Kehinde em companhia de sua
“sinhá”, já viúva, Ana Felipa Dusseldorf Albuquerque de Almeida Carvalho Gama. Essa
senhora, caracterizada como uma mulher cruel e amarga por ter sofrido sucessivos abortos e não
ter conseguido dar à luz a um filho daquele que, via estupro, engravidou Kehinde, aproveita-se
de seu poder de propriedade sobre o bebê e aproxima-se dele, buscando exercer a desejada
maternidade. Simultaneamente, passa a usar os recursos de que dispõe para afastá-lo de sua mãe;
o primeiro recurso é a locação de Kehinde a uma família inglesa; o segundo, a indicação de que
ela trabalhe como escrava de ganho e, assim, permaneça o maior tempo possível afastada da casa
senhorial.

Kehinde é, dessa maneira, coagida a acompanhar o crescimento de Banjokô no “seio de uma


família branca”, isto é, recebendo a educação e afetos daquela que lhe oprime e agride, moral e
fisicamente.[12] A situação da narradora é dramaticamente intensificada pelo dado de que,
enquanto escravo, Banjokô poderia ter uma vida muito mais dura sem a proteção da sinhá, sendo
vendido ou submetido ao trabalho infantil; essa mesma proteção implicava, contudo, o
afastamento daquela que teria o direito sobre sua criação. Desse modo, nas passagens em que
essa interdição é narrada, evidencia-se a hierarquização existente entre as experiências de
mulheres brancas e negras no século XIX no Brasil e enfatiza-se a dificuldade dolorosa da mãe
negra ver-se apartada de seu bebê.

No entanto, a potência dessa representação não se esgota aí. Se acompanharmos o


desdobramento da narrativa dessa etapa da vida de Kehinde e aprofundarmos sua análise,
constatamos que o romance encena as restrições à dimensão materna da narradora, mas,
simultaneamente, realiza uma inversão na lógica que vimos ser recorrente na caracterização das
mulheres negras como mães na literatura. Desse modo, é significativo que Kehinde, sendo mãe,
não é forçada ao trabalho como ama de leite. A autora recupera a imagem que discutimos aqui
para apresentá-la (desde uma descrição que parece retomar a caricatura da “ mammy”) e em
seguida, ressignificá-la:

Nos três primeiros dias eu não consegui amamentar o Banjokô, pois meu peito
estava seco, e tive medo que ele se apegasse demais à ama-de-leite que a sinhá
arrumou, a Joana, escrava de uma vizinha. Ela era uma preta gorda e de cara lisa e
risonha, a pele sempre brilhando, o cabelo esticado para cima e preso com uma
tira de pano bem no alto da cabeça, parecido com um pompom, como os que a
sinhá usava para empoar o rosto. A Joana tinha dado à luz havia mais de três anos e
o filho tinha morrido com dias de vida, mas o leite dela nunca chegou a secar, pois
estava sempre dando o peito. Ela quase não pôde ficar com o Banjokô, porque na
época já amamentava três crianças, filhos de sinhás, mas a pedido da sinhá Ana
Felipa à sinhá dela, e com a promessa de que nenhuma das mães brancas ficaria
sabendo que ela estava amamentando um preto, o acordo foi feito, não sei se
envolvendo algum dinheiro. À noite sozinha com o meu filho, a Esméria me
orientava a colocá-lo no peito, mesmo que não saísse nada. E foi assim que fiz,
sendo que certo dia o leite brotou. (Gonçalves, 2006, p. 190, grifos meus).

A partir do momento em que passa a produzir leite, Kehinde amamenta o seu próprio filho e,
numa construção de grande força simbólica, é a sinhá quem aparece na narrativa marcada pela
esterilidade[13]. O lugar da falta e da impotência é, assim, transferido para Ana Felipa, como
podemos ver no seguinte trecho que narra, como patético, o desespero dela por ser mãe:

Depois, com a justificativa de que ele [Banjokô] poderia atrapalhar nosso serviço, [a
sinhá] começou a pedir à Antônia que o levasse para o quarto dela, onde fechava a
porta e dizia que precisava descansar, que não queria ser incomodada. Esquecendo-
se disso, a Antônia uma vez entrou no quarto e a viu sentada na poltrona com ele no
colo. A poltrona ficava de costas para a porta, mas ela teve quase certeza de que
sinhá estava tentando dar o peito a ele, que resmungava baixinho e se calava quando
ela começava a cantar. (Gonçalves, 2006, p. 191).

A cena em que Ana Felipa tenta dar o peito – que não produz leite – ao bebê, que a rejeita, volve
em frágil o papel da mulher branca construído pelo ocidente de modo idealizado como a posição
da plenitude. A forma como a relação entre “mulher negra” e “mulher branca” é acionada no
mito da “mãe preta”, nesse caso, é deslocada.

Outra dimensão que é relevante na caracterização dessa narradora é o dado de que ela não deixa
de expressar os seus desejos, tanto enquanto amante, na relação que mantém com Francisco,
quanto como estudiosa a partir da leitura cada vez mais voraz de livros que ela encontra na casa
do padre Heinz (aquele que cede espaço para a produção do seu produto de ganho). Delineia-se
uma subjetividade que apresenta movimentos autorreflexivos profundos e, dentre eles, o
sentimento de culpa pela impossibilidade de dedicação integral a Banjokô, que convive com uma
consciência preocupada com a sobrevivência e, nesse sentido, atenta às oportunidades do
momento.

Esse sentimento apresenta-se crescente ao longo da narrativa e dá mostras de uma focalização da


maternidade negra que acolhe suas contradições e, assim, afasta-se da idealização ou do
essencialismo. Isso sublinha a distância da forma como Kehinde se caracteriza e uma mirada
vitimizadora ou, como vimos ser traço ligado ao mito das “mães pretas”, da prevalência dos
sentimentos de dor e sofrimento que compõem essas personagens. Nesse contínuo, também é
narrada a concepção do segundo filho de Kehinde, o qual é fruto do vínculo amoroso entre ela e
o português Alberto, já em momento posterior à conquista de sua alforria e da de seu filho
primeiro. O personagem Alberto, por sua vez, desde a ótica de Kehinde, vai sendo
gradativamente caracterizado ao longo da narrativa como um homem de fraco caráter. Tal
construção é tecida por meio de suas ações, conforme podemos acompanhar no fato de ele não
assumir publicamente a relação com Kehinde. Na situação do segundo parto da narradora, a
complicada configuração do relacionamento interracial aparece entrevista. Uma vez mais
inscrevendo no repertório das imagens literárias a fertilidade da mulher negra, Kehinde conta:[14]

O Alberto estava apavorado, e até gostei quando ele perguntou se eu podia ficar
sozinha enquanto ia à procura de uma aparadeira. Eu disse que sim, que me sentiria
mais segura tendo uma aparadeira por perto, mas na verdade queria mesmo era me
livrar dele, que estava me deixando nervosa. Ao contrário do nascimento do
Banjokô, eu não gritei nem chorei; era como se aquele filho estivesse sendo puxado
de dentro de mim por mãos muito habilidosas. Assim que fiquei sozinha e com mais
liberdade para abrir as pernas e aliviar a pressão, senti a cabecinha querendo sair.
Fiz um pouco de força e a carne perto da racha começou a se rasgar sem dor
alguma. Eu me sentia leve e tranquila (...) Comecei a sorrir e estava quase tendo
meu filho sozinha naquele quarto vazio e estranho quando a Esméria voltou com
alguns panos pendurados no ombro e um tacho de água quente. Ela nem teve tempo
de perguntar pelo Alberto; apenas se agachou entre as minhas pernas e aparou meu
filho, dizendo que era um menino, perfeitinho (Gonçalves, 2006, p. 398).

É possível apreender a força da narradora que praticamente dá à luz sozinha. A construção


narrativa reforça, assim, o laço entre mãe e filho, cordão pulsante que alinhava todo o enredo da
obra e também desvela a dificuldade da constituição das famílias negras. O sentimento de leveza
e tranquilidade que ela afirma sentir, associado à ausência de Alberto, parece conter
inversamente um prenúncio do que viria a ser, dez anos depois, a principal desgraça da vida de
Kehinde: a venda de Omotunde[15], que nasce livre, como escravo, por seu próprio pai.
A consumação de Kehinde como mãe de Banjokô e Omotunde[16] dá início a um breve período
em que ela pode exercer sua maternidade e desfrutar de uma condição de vida mais estável, indo
morar num sítio e estabelecendo sociedade com Alberto na administração de uma padaria.
Contudo, a boa-venturança desse tempo é abreviada pelo processo de crise da relação amorosa, a
qual tem fim a partir do anúncio do casamento entre Alberto e uma brasileira. De volta à cidade,
num novo empenho de superação da conjuntura adversa, Kehinde e seus filhos passam a morar
numa casa menor e os irmãos tornam-se cada vez mais cúmplices. É nesse ínterim que Kehinde
sofre a perda do primeiro de seus filhos, Banjokô – aquele que por ser abiku já tinha sua
passagem pela terra (Aye) prevista como rápida cumpre seu destino (Odu) e se fere mortalmente
com uma faca. Pode-se constatar que, no construto interno ao romance, a morte do primeiro filho
de Kehinde recebe uma explicação espiritual, que, contudo, não pode ser lida a despeito do
contexto político brasileiro também encenado no texto, no qual se articulava uma rebelião
escrava. Nessa direção, não deixa de ter força simbólica que a morte de Banjokô tenha sido
concretizada via uma faca que deveria, ironicamente, munir os negros rebeldes contra os brancos
senhores.

De modo distinto, Kehinde também perde o segundo filho. A perda de Omotunde é estritamente
relacionada à participação de Kehinde na rebelião escrava, na medida em que o desfecho trágico
da ação instaura uma severa perseguição política aos africanos no Brasil, perseguição que, em
última instância, impele a narradora a sair de Salvador, numa viagem que, depois, ganha
contornos religiosos, deixando a criança sob os cuidados das amigas e do pai que, por sua vez,
em desespero por dinheiro para sanar dívidas de jogo, vende o pequeno a um traficante de
escravos.

Ao saber do ocorrido, três anos depois de sua partida, Kehinde, já iniciada como vodunsi, volta a
Salvador e tem início a busca que não cessará até a última página do livro. Aos poucos, ela vai
encontrando pistas sobre o percurso de Omotunde e segue ao seu encalço, passando por São
Paulo e Rio de Janeiro. De volta à Bahia, sem sucesso em sua procura, ela entra em estado de
tristeza aguda e, sob a influência de um sonho, em uma de suas idas ao cais na esperança de
encontrar o filho, decide voltar à África. Retomando a proposição que tece a leitura seletiva que
realizo nesse artigo, por meio de tal recurso dá-se corpo à subjetividade da narradora, que é
notoriamente marcada pela experiência da maternidade, correlacionada ao processo de
constituição do Brasil enquanto nação.

Nesse sentido, ao iniciar sua viagem de retorno tendo a falta dos filhos como companhia, a
experiência de Kehinde sinaliza o contexto que Manuela Carneiro da Cunha (2012) (citada na
bibliografia do romance) bem analisou. De acordo com a antropóloga, os africanos libertos no
Brasil, sobretudo após a revolta dos Malês[17], eram tidos como “apátridas”, isto é, não tinham
direitos de cidadãos e nem privilégios como estrangeiros. Indesejados por serem considerados
um ameaça ao sistema escravista, na medida em que podiam criar alianças com os outros negros
do país, foram de diversas maneiras forçados à imigração de volta à África.[18]

A referência a esse dado histórico no construto interno ao romance poderia explicar a facilidade
que Kehinde encontra para o seu regresso ao Daomé. As restrições e deportações da população
africana liberta tinham, assim, estreita relação com as discussões sobre a formação do Brasil, as
quais tiveram início após a independência. O recurso ideológico posto em ação para conferir
legitimidade ao território reivindicado, segundo Cunha (2012), foi a ênfase em raízes imaginárias
através da figura do indígena. Concebe-se assim como necessária uma nação homogênea em que
a população negra passa a ser um problema: “Seja como for, o que José Bonifácio silencia será
no entanto dito em alto e bom som pelos antiescravagistas das décadas de 1830 e 1840: a
homogeneidade necessária à existência da nação passava pela exclusão dos negros. Uma nação
de livres, sim, mas de livres brancos” (Cunha, 2012, p. 110).[19]

Sendo assim, o retorno empreendido por Kehinde, em 1847, não lhe era uma experiência
exclusiva. Em termos simbólicos, desenvolvendo minha tese, a passagem aponta para a
constatação da impossibilidade do exercício pleno da maternidade negra em território brasileiro,
dado que retoma os desenvolvimentos das proposições iniciais deste artigo, mas que não tem
nessa assertiva o esgotamento de sua análise. Se acompanharmos essa segunda travessia de
Kehinde, veremos que ela configura uma nova reviravolta do enredo, a qual ressignifica a
narrativa.[20]

No barco, após ter conhecido e se envolvido amorosamente com o comerciante nascido em Serra
Leoa, John – aquele que se compromete a seguir viagem, vender os produtos dela e retornar –,
Kehinde desembarca, vinte e seis dias depois, grávida. Por meio de uma rezadeira, confirma, em
seus primeiros dias em Uidá, o que já era uma intuição: “Não sei dizer como me senti,
principalmente quando a rezadeira disse que eu era abençoada, pois seriam ibêjis. Eu queria
apenas ter ficado alegre, muito alegre, mas de imediato muitas preocupações apareceram para
roubar esse meu direito” (Gonçalves, 2006, p. 748). A notícia da gravidez surpreende o leitor e,
uma vez mais, coloca em cena a potência da concepção de Kehinde lado a lado com a
consciência das adversidades que se inscrevem como inerentes ao empreendimento de realizar-se
como mãe.

Em consonância com isso, as preocupações quanto ao seu futuro incerto substituem assim a
alegria da notícia sobre os gêmeos, mas, no esforço de decidir levar a gestação adiante ou não,
sua experiência pregressa de perda fala mais alto e, desafiando mais uma vez a lógica da
interdição, decreta um “sim” como resposta ao dilema interno:

Uma das coisas que mais me ajudaram a decidir foi o seu sumiço, foi eu estar
sozinha depois de já ter dado vida a dois filhos, foi medo de morrer sozinha, sem ter
quem olhasse por mim ou fizesse uma serenata bonita em minha partida. Eu já não
era tão nova, tinha trinta e sete anos, e talvez não surgisse outra oportunidade
(Gonçalves, 2006, p. 748).

Poucas páginas depois da rememoração dessa decisão, a narradora, mantendo a reconstituição


cronológica de sua trajetória, relata o terceiro parto que experienciou. O trecho, mais abreviado
do que a descrição dos partos anteriores, reinsere a participação fundamental dos orixás, na
figura de Nanã, e da avó de Kehinde, assim como o pouco protagonismo do pai dos bebês no ato
de seus nascimentos, de modo análogo aos partos de Omotunde e Banjokô. Em direção outra,
porém, o sentido que é atribuído ao parto em terras africanas e, ademais, a reedição da
experiência da mãe de Kehinde, que também gerou e deu a luz a gêmeas (Kehinde e Taiwo),
parece indicar, então, um alinhamento do percurso da narradora à parcela de sua história fincada
no passado africano, sublinhando a fertilidade como indício de força pessoal e expressão desde a
lógica iorubana daquilo que se concebe, em acordo com o que nos explica Ronilda Ribeiro
(1995, p.135), como a mais importante marca do vigor feminino, a saber, a maternidade.

Nessa direção, por um lado, a nova experiência de maternidade é vivida positivamente, e o


processo de aleitamento, por exemplo, surge nessa etapa do romance circunscrito a um âmbito de
liberdade e abundância:

A Maria Clara e o João não saíam dos meus peitos, e todos diziam que assim era
bom, que eles cresceriam melhor e mais depressa. Mas aquilo acabava comigo, que
estava ficando quase tão magra quanto tinha sido a Aina, enquanto ela engordava,
feliz com boa a vida que estava levando, apesar de trabalhar bastante” (Gonçalves,
2006, p. 767).

Esse segmento da narrativa, que como veremos não se encerra simplesmente como consumação
harmônica, é relevante porque, para além de afirmar a maternidade negra como realização
possível, amplia a compreensão que se produz da trajetória da narradora, deslocando a
experiência da escravização enquanto definidora estanque de tal percurso. A análise minuciosa
do romance evidencia que a condição de africana em diáspora e, depois, de retornada de Kehinde
é relatada de forma a tecer intrincadamente alguns dos dilemas de sua experiência.

Sinalizando isso, por outro lado, a narração do processo de ascensão social no novo território,
que ocorre em coesão com a maternagem, está conectada ao procedimento de manter certa
distância dos traços que a caracterizariam como pertencente a essa localidade. Desse modo,
algumas de suas ações de afastamento da identidade africana indicam o reconhecimento por
Kehinde da estrutura geopolítica daquele momento em que a identidade brasileira, ainda que
evocando a marca da escravidão, conferia uma condição de privilégio aos que a possuíam em
Uidá (e Lagos, para onde se muda depois). Passando pela escolha dos nomes dos filhos, Maria
Clara e João, os valores que Kehinde adota na criação deles vão delineando uma experiência
como mãe estruturada por configurações distintas daquelas que engendraram sua vivência no
Brasil. A alteração de seu nome para Luísa Andrade da Silva (vinculado ao tratamento como
“sinhá”) pode ser lida como índice significativo de tal processo, o qual sustenta a complexidade
da obra e conforma, em consonância com as necessidades de negociação de sua nacionalidade, o
estatuto de estrangeira da narradora: no Brasil era africana e, agora, em África se colocava como
brasileira.

A busca por um lugar para criar seus filhos realiza-se em África. O que a trama narrativa do
romance parece dizer é que somente nesse outro território e desde uma posição identitária
complexa, o mecanismo de interdição à sua maternidade é neutralizado e ela consegue constituir
família, tornando-se mãe e avó de muitos netos. Tal dado merece ênfase como contraposição à
experiência negra brasileira e desde uma leitura simbólica pode ser lido como crítica aos modos
como o discurso nacionalista brasileiro inseriu a mulher negra na literatura. Contudo, o desejo de
encontrar o filho perdido mantém Kehinde ligada ao Brasil. Essa ambivalência sublinha sua
inquietação e o sentimento de falta que lhe constitui. Inverte-se, assim, a mirada da narradora que
agora olha para o outro lado do oceano, em direção ao Brasil, na busca pelo filho, na esperança
de uma realização que, porém, o romance findará sem poder concretizar. A potência de conexão
entre o século XIX e XXI contida nesse olhar inquieto permanece aguda e lança sobre a literatura
concebida como nacional importantes problematizações. A interface entre literatura e sociedade
transfigurada em Um defeito de cor remete a um desconforto sinalizado por outros sujeitos que
se juntam em coletivo a Kehinde para questionar qual o lugar que lhes cabe no território
chamado Brasil.
O Brasil como pergunta na/da literatura negra

O enredo de Um defeito de cor cria assim uma relação viva entre Brasil e África, e, se quisermos
ser mais específicos, entre a emergente nação Brasil e o reino do Daomé. Por meio da divisão da
narradora Kehinde no que diz respeito, sobretudo, ao seu filho Omotunde, cria-se uma
vinculação inquestionável entre uma ascendência africana e uma descendência brasileira, sendo
que esta, conforme o romance parece propor, infelizmente, não vinga, como Banjokô, ou
permanece, assim como Omotunde, invisibilizada (desaparecida). É nesse movimento complexo,
que precisou ser analiticamente explicitado aqui, que o romance se encontra com as proposições
de Conceição Evaristo apresentadas no primeiro segmento deste artigo. Em atuação que sublinha
a matriz africana da sociedade brasileira e dá a ver o estatuto complexo e ideologicamente
orientado com que tal repertório foi incorporado pela intelectualidade (branca) do país, Evaristo
formula um questionamento que é fundamental para a reflexão que estamos tecendo:

O que se argumenta aqui é o que essa falta de representação materna para a mulher
negra na literatura brasileira pode significar. Estaria a literatura, assim como a
história, produzindo um apagamento ou destacando determinados aspectos em
detrimento de outros, e assim ocultando os sentidos de uma matriz africana na
sociedade brasileira? (Evaristo, 2005, p. 03).

A essa deixa reflexiva Um defeito de cor parece responder enquanto transfiguração estética do
problema. A obra coloca em primeiro plano o procedimento que dantes foi apontado como motor
para o funcionamento do mito da “mãe preta”, a saber, a subtração da criança negra, o filho, do
campo discursivo da literatura e da crítica. Contudo, em Um defeito de cor essa subtração, além
de ser visibilizada, é problematizada, é chorada, é sentida e, acima de tudo, não é dada como um
fato consumado. A última travessia de Kehinde em direção ao Brasil expressa a não desistência
dela em encontrar o filho e poderia ser lida, assim, como um devir do reconhecimento dessa
ascendência africana sublinhada por Evaristo.

Ao analisar a polêmica ocorrida em torno da denúncia de conteúdo racista na obra de Monteiro


Lobato[21], o crítico Marcos Natali (2016) nos encontra nessa hipótese de leitura de Um defeito de
cor visto que coloca o infanticídio (da criança negra) simbolicamente operado na discursividade
nacionalista – efetivamente pelas forças opressoras do estado (como a polícia) – como elemento
central da reflexão crítica. Em sua abordagem do debate, constituinte do capítulo da recente tese
de livre docência intitulado “Uma segunda Esméria: Do amor à literatura (e ao escravo) (sobre
Monteiro Lobato)”, Natali (2016) elabora, dentre outras proposições potentes, a ideia de que na
reação negativa de parte da crítica e intelectualidade do país à denúncia estava presente a
reivindicação da leitura da obra de Lobato (e da literatura em geral) como forma de adesão a uma
narrativa particular da história nacional e da tradição literária. Esse procedimento, como apontou
Ana Maria Gonçalves (2016) em comentário à mesma polêmica, retirou a centralidade da
preocupação com a criança negra, que estaria vulnerável aos conteúdos de depreciação da mulher
negra nas situações de leitura da obra de Lobato em sala de aula, em prol de uma discussão sobre
a autonomia da literatura (o alarde da “censura” foi mobilizado pelos que reagiram contra a
denúncia) que focalizou a experiência de liberdade centrada nos sujeitos brancos, os quais não
constituem alvo da violência do racismo.[22] Natali recupera essa indicação e mostra como a
subtração da criança negra do campo simbólico justifica-se na evocação, sob o lastro de “um
direito à construção retrospectiva da experiência familiar e histórica sob a luz do afeto”, da
nostalgia do escravo e, em especial, da “mãe preta” (2016, p. 181).

Nessa direção, Natali expõe como os argumentos formulados publicamente no debate permitiram
ver que parte do giro ideológico analisado aqui nas incorporações da figura da “mãe preta” no
final do século XIX e início do século XX, segue vexatoriamente presente nas formulações do
século XXI. É isso o que verificamos no depoimento de Leyla Perrone-Moisés à Academia de
Letras Brasileiras em 2005, citado pelo crítico:

Todo autor de biografia tende a começar pela infância. Na autobiografia intelectual,


necessariamente, são os primeiros livros, as primeiras leituras. O primeiro livro que
li na minha vida, aos cinco anos, se chamava Rosa Maria no Reino Encantado, de
Érico Veríssimo. (...) Logo em seguida, passei para Monteiro Lobato. Sobre isso,
vou dizer algumas coisas porque, se não são importantes, pelo menos formam uma
figura. Passei a minha infância numa cidadezinha de Minas Gerais, Passa-Quatro,
num vale da serra da Mantiqueira (...). Em casa, tínhamos um quintal muito grande,
com muitas árvores frutíferas, e levávamos uma vida quase que de sítio. Então li
Monteiro Lobato num contexto de Sítio do Pica-Pau Amarelo, porque lia seus livros
em cima de uma árvore, uma amoreira que eu considerava minha. Subia, sentava-
me num galho lá em cima, e assim li todo o Monteiro Lobato. Não havia o Rabicó,
mas havia as galinhas etc. E eu tinha uma tia Anastácia, porque a cozinheira era
uma negra muito escura que, de um modo politicamente incorreto, tinha o apelido
de Vavão. Era como nós, crianças, pronunciávamos “carvão”. Mas acho que foi
ela mesma que se auto-apelidou Vavão (Perrone-Moisés, 2005 apud Natali, 2016,
p. 335).
A citação prescinde de comentários. Contudo, Natali segue no desenvolvimento de sua análise e
escreve:

É como se a cena descrita em seu depoimento memorialístico, com tudo aquilo que
ela reverbera, em particular a localização da introdução à leitura no espaço
doméstico da família e do privilégio, fosse uma espécie de patrimônio nacional a ser
generalizado. É como se o ingresso no mundo das letras tivesse que ser o
recebimento de uma herança que inclui a naturalização de certa visão de mundo,
como se a própria existência da cultura nacional dependesse da capacidade de
preservar o que há nessa cena original de confluência entre literatura e poder. É
como se, ainda, “Perpetuar isso [fosse] patriótico, esse racismo que ‘faz parte do
patrimônio cultural de todos nós’”, como escreveu a romancista Ana Maria
Gonçalves citando carta pública assinada por vários autores da literatura infantil
brasileira. É claro que é possível que seja exatamente isso mesmo o patriotismo
(brasileiro ou não) e que ele não possa sobreviver sem esse conjunto de gestos
excludentes e discriminatórios, e neste caso os signatários estariam equivocados não
na percepção de que as críticas são uma ameaça à ideia de país, mas apenas na
negação do aspecto violento do nacionalismo (Natali, 2016, p. 164).

Acompanhamos, portanto, a construção de um argumento afiado que, reconhecendo a negação


do direito da maternidade à mulher negra (o texto de Natali não deixa dúvidas quanto ao vínculo
entre o desaparecimento da criança negra e a representação maternal da mulher negra), chega ao
mesmo ponto sugerido por Conceição Evaristo (2005) no início desta seção, a saber, ao
questionamento da rede discursiva do nacionalismo brasileiro. Subjacente à reação inconformada
de parte da crítica ao indicativo do órgão estatal de reconhecer a necessidade de mediação do
conteúdo racista presente no livro de Lobato, atualizou-se um intrincado mecanismo ideológico,
segundo o qual, de acordo com Natali (2016), a literatura é concebida como um “gênero
blindado”, isto é, imune a questionamentos éticos e resistente a avaliações morais e políticas.
Neste processo, em defesa da “liberdade de expressão” e da irredutibilidade da literatura a “um
mero” instrumento pedagógico, vinculou-se a obra literária à narrativa nacionalista do país como
forma de garantia e segurança da perspectiva da História expressa por esses sujeitos críticos
(brancos).

O não reconhecimento da “violência do nacionalismo”, que em última instância exclui ou


subalterniza os negros e negras do campo entendido como coletivo, perfaz um novo gesto de
violência, o qual demonstra a incapacidade dos agentes desta ação colocarem-se no lugar do
outro (a despeito do pedido de Ana Maria Gonçalves e dos avanços no que tange à discussão
sobre o racismo no país). Por isso, escreve Natali:

Dado o assunto em pauta, o gesto que exclui a possibilidade da leitura dissonante –


má fé e ignorância sendo as únicas explicações possíveis para a discordância –
acaba tendo como resultado a interdição da verbalização das formas e das
consequências do racismo na tradição cultural nacional, como se a simples
expressão de contrariedade fosse a traição de um pacto antigo, talvez o pacto da
própria formação da nação: o elemento negro (uma personagem, por exemplo) será
assimilado pela cultura nacional e será parte de sua autorrepresentação, porém
sempre de maneira subalterna. A possibilidade da suavidade dessa absorção é a
própria imagem que se faz da nação (sua face oculta é a hostilidade que emerge
quando o afeto é recusado) (2016, p. 178-179).

De modo contundente, ele define, portanto, a literatura, assim como a crítica, como agentes de
opressão no que se refere ao racismo estrutural brasileiro. A pergunta que recupera a trama do
romance Amada de Toni Morrison e encerra o capítulo, “O que mudaria se pensássemos nessa
cena, a de um infanticídio, cometido com a finalidade de proteger a filha da instituição legal da
escravidão, como o momento de fundação do país?”(Natali, 2016, p. 194), vincula a fundação da
nação ao procedimento simbólico que apresentamos ao longo desse trabalho e que acredito ter
em Um defeito de cor um gesto de problematização.

Ao apresentar a relação entre mãe e filho negros como núcleo estruturante de seu romance, Ana
Maria Gonçalves, autora que se enuncia como negra, permite que se visibilize esse emaranhado
ideológico e reafirma a participação da literatura na disputa pelo que se compreende como Brasil,
reapropriando-se dela desde um âmbito de interesses comprometido com a experiência sensível
das comunidades negras nesse território. Esse gesto torna-se ainda mais explícito se a análise do
romance for remetida de modo comparatista a outras narrativas historiográficas e literárias,
sobretudo na contraposição com a figura da “mãe preta”. A polêmica contemporânea em torno da
representação da Tia Nastácia e as considerações críticas de Natali sobre ela somam-se assim aos
desenvolvimentos analíticos operados neste artigo e reforçam a compreensão da relevância da
forma como a maternidade é representada em Um defeito de cor para a discussão sobre o
nacionalismo no Brasil.

Recuando em direção ao passado, constata-se como em diversos momentos históricos a ideia da


mãe negra submissa ao sofrimento e carinhosa para com a prole de seus escravizadores vem
sendo atualizada e como uma produção simbólica que tem início no século XIX foi responsável
pela elaboração dessa imagem sem que a violência inerente à subtração dos filhos negros da
relação com essas mulheres fosse nela problematizada. Nesse sentido, explica-se o fato de que
dentre as produções que compreendem o que as historiografias literárias definiram como período
de formação nacional encontremos as obras de José de Alencar e nesse conjunto, a título de
precioso exemplo, a peça Mãe, publicada entre 1859-1860 no Rio de Janeiro. Nela, a escrava
Joana protagoniza o drama como uma mãe que, a fim de proteger o filho, Jorge, do estigma da
escravidão (a história se passa em 1855), omite deste a relação biológica entre ambos e declara-
se sua ama de leite, isto é, sua “mãe preta”. A perversa trama da peça leva Jorge a descobrir a
verdadeira identidade da mãe, que, contudo, na tentativa de resguardar a imagem social do filho,
recusa-se até o seu derradeiro momento de vida, o pedido que este lhe implora (“Eu sou teu
filho!... Dize!... Uma vez ao menos... este nome”) e morre negando a maternidade.[23] O amor
sublime materno que “até mesmo uma escrava pode sentir” é representado como contíguo ao
martírio pelo qual passa a escrava que, por meio dessa atitude, converte-se (desde a dimensão
pedagógica da peça) em exemplo.[24] Publicado no mesmo ano, porém tendo permanecido na
invisibilidade, encontramos o trabalho de Maria Firmina dos Reis. Com uma representação da
maternidade negra contundentemente contrária a essa, no seu romance Úrsula (1859) o relato da
personagem Mãe Susana expõe a dor da separação entre mãe e filha motivada pelo tráfico
escravista, assim como, em 1887, essa mesma autora concebe uma outra personagem,
coincidentemente Joana, que no conto “A escrava”, de modo dramático e nada heroico, também
declara o sofrimento de uma mãe de descendência africana que se vê apartada de seus filhos no
Brasil. Ao contrário da personagem de Alencar que morre sem pode dizer-se mãe e tem nesse
gesto uma celebração, às contemporâneas personagens de Firmina dos Reis afirmam sua
maternidade, circunscritas a violência. Em detrimento dessas obras e de seu potencial crítico, é o
trabalho de Alencar (a despeito de qualquer consideração ética que mencione o público
posicionamento favorável à escravidão desse autor) que passou a figurar como referência
significativa do cânone comprometido com o projeto de formação nacional. O panorama que
vislumbramos nessa ponte entre presente e passado evidencia uma ideologia em entranhado
funcionamento.

A tensão que Um defeito de cor estabelece com o discurso nacionalista pode ser vinculada à
linhagem que tem início com o trabalho de Firmina dos Reis e que hoje compõe um conjunto de
obras que se projeta como literatura negra e/ou afro-brasileira. O debate em torno desses
conceitos é rico e repleto de nuances e pressupostos de acentuada relevância na discussão sobre o
âmbito literário do Brasil. Para além de definições conclusivas, porém, deve-se reconhecer e
alimentar a necessidade dessa reflexão e aproximar-se dos textos literários, conforme escreve
Maria Nazareth Soares Fonseca (2011), percebendo o agenciamento que cada um deles
estabelece entre a linguagem e o combate ao racismo e à invisibilização do negro:
é pertinente auscultar o texto e perceber os sentidos que ele ajuda a construir na
contramão, nos caminhos marginais, mas por isso mesmo, menos percorridos por
parafernália teórica [...] mais que se prender a conceituações, importa possibilitar a
entrada dos textos em maior circulação, aprendê-los em sua feitura, discutir a
materialidade discursiva com que se apresentam, assumindo as inovações de sua
escrita. Vários escritos têm realizado a façanha de imprimir o político nos arranjos
do texto que prefere se desligar da encenação do protesto explícito (Fonseca, 2011).

Nesse sentido, e ainda em consonância com as proposições de Fonseca (2011), a análise da


representação da maternidade negra em Um defeito de cor sinaliza como essa obra instaura, por
meio de sua linguagem, um espaço de produtivo trânsito entre os discursos que conformam o que
se entende como Brasil e, especialmente, sobre a relevância da mulher negra e da ascendência
africana na construção desse espaço. O livro parece corroborar a necessidade de que se afirme,
como o fez Cuti, que o “Brasil é dos brasileiros, porém é preciso acrescentar que é de todos os
brasileiros”. Tal demanda reitera o fato de que a “palavra ‘Brasil”, segundo Cuti, “esconde
crimes e criminosos”. E “é com versões como essas que se foi constituindo uma formação
discursiva, um jeito coletivo de encarar os fatos no tocante à questão racial” (Cuti, 2010, p. 11).

A insistência por parte do corpo crítico analisado por Natali (2010) de que a literatura seria uma
entidade, a priori, comprometida com o senso crítico e com o melhoramento humano, assim
como a noção de Brasil como entidade coesa e harmônica (lugar da democracia racial), revelam-
se, no embate com o contradiscurso negro, ideológicas (no sentido clássico de uma das acepções
de ideologia, isto é, uma noção particular que se generaliza como universal) e têm na e pela
literatura um campo de disputa. Nas palavras de Cuti:

Certa mordaça em torno da questão racial brasileira vem sendo rasgada por seguidas
gerações, mas sua fibra é forte, tecida nas instâncias do poder, e a literatura é um
dos seus fios que mais oferece resistência, pois, quando vibra, ainda entoa loas às
ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando, com seu veneno, o
imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou indiretamente. A
literatura, pois, precisa de forte antídoto contra o racismo nela entranhado (Cuti,
2010, p. 13).

Considerando a acepção de literatura que surge de uma apropriação dela por parte dos negros e
negras, ou seja, “antídoto” contra o “veneno” nela mesmo “entranhado”, Cuti tem uma produção
teórica e literária significativa que dialoga com a crítica que veio à tona na polêmica sobre
Lobato e numa análise sobre os termos “literatura brasileira”, “afro-brasileira” e “negro-
brasileira” mobiliza de modo agudo a discussão em torno da identidade nacional:

A nostalgia da origem que surpreendeu os africanos quando recém-chegados ao


Brasil dissolveu-se gradativamente nos embates da sobrevivência, em todos os
níveis, inclusive o cultural. Como cultura não tem cor, acostumou-se a falar da
‘contribuição do negro para a cultura brasileira’. A ideia de ‘brasileiro’ sem ‘negro’
nos remete ao racismo do século XIX, traduzido pelos ideólogos brasileiros como
um desaparecimento do negro pela miscigenação. Brasileiro, então, para aqueles
ideólogos passou a ser sinônimo de não negro, ou seja, o espectro branco para o
qual toda ‘contribuição’ negra e indígena deve convergir . (Cuti, 2010, p. 42).

O núcleo do argumento de Cuti é, pois, a consciência de que a produção literária


enquadrada como negra, no Brasil, relaciona-se a uma experiência particular de enfrentamento
do racismo, que o termo “brasileiro” não contempla – ao contrário solapa via ideologia da
branquitude (segundo ele, abrindo senda para o debate que mencionamos, o termo afro-brasileiro
também não dá conta essa experiência, já que nem todo afro-brasileiro é necessariamente – e isso
significa fenotipicamente – negro).
O conjunto de obras reconhecidas como negro-brasileiras por Cuti (muitas delas
presentes também na delimitação de Eduardo de Assis Duarte) referem-se, como ele afirma, a
uma singularidade negra e ao mesmo tempo brasileira, inclusive em termos linguísticos, já que,
ao contrário de outras nações africanas, assumiu-se aqui a língua portuguesa como matriz desses
discursos. O tom da pele somado à assertividade negra por parte da autoria dos textos literários
teria como efeito a validação da identidade negra na disputa do Brasil como nação diaspórica.
Desafiando o silêncio e as lacunas da literatura canônica, o termo “negro”, segundo Cuti,
constitui-se, assim, como um signo ameaçador que tem dentre os seus objetivos o de:

Revelar o que o Brasil esconde de si mesmo pela ação do racismo do qual a cultura
nacional está impregnada, como também alertar para o como a reação escrita de
uma subjetividade subjugada redundou e redunda na prática de formas que atendam
não ao chamado de uma herança africana, mas à necessidade de uma ruptura com o
processo de alienação que o racismo provoca (Cuti, 2010, p. 46).

Talvez em sentido mais profundo que o termo “negro” a assunção de uma “maternidade
negra” e com ela o reconhecimento e valoração dessa matriz africana do Brasil, ainda constitui-
se ameaçadora e tem no diálogo que Um defeito de cor pode promover com o cânone literário e
com o seu suplemento negro, um mecanismo de, respectivamente, contestação e afirmação. Ana
Maria Gonçalves declarou publicamente que se entendeu como negra a partir da escrita do
livro[25]; mais do que isso, em conversa no evento “Melanina Acentuada”, ocorrido em
Salvador, em 2016, ela afirmou que a pesquisa realizada para a escrita da obra permitiu a
elaboração da história a que ela não teve acesso em sua formação. Em consonância com Cuti
(2010), então, pode-se entender a obra como um construto via elaboração ficcional desse Brasil
que se esconde de si mesmo. Conforme buscamos evidenciar, a construção formal do enredo da
obra tem na representação da maternidade forte potência semântica, que é disruptiva do que se
entende como nacional, apontando para as estratégias de opressão e subtração dos elementos
negros como fundamento ideológico dessa discursividade. O livro faz-se assim terra fértil de
onde surgem questões caras ao contemporâneo.
Referências

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Oroboro mnemônico: caminhos de ancestralidade em Um defeito de
cor
Camila de Matos Silva[26]

Memórias coletadas: um oroboro mnemônico e feminino

As personagens femininas de Um defeito de cor são profundas, complexas e trazem a visão do


negro para o centro do discurso, pela memória individual de Kehinde, construída pela/na
coletividade. As mulheres, assim como a protagonista, são esperançosas, resilientes, mesmo
perante todas as adversidades; são muitas as histórias que povoam mulheres na obra, como Nega
Florinda, Agontimé, Claudina, Esméria, sua avó, sua mãe, Tytilaio, Adeola, Assunta, Mãezinha,
Conceição, Geninha, Ìyá Kumani etc. Dentre este imenso grupo de mulheres que ronda Kehinde,
consideramos que todas essas formam um oroboro, de ajuda mútua, pois em toda a narrativa as
mulheres (selecionadas pela personagem principal) vão prestando solidariedade – ensinando e
aprendendo. Podemos demonstrar, por exemplo, quando a protagonista monta uma oficina de
charutos e resolve contratar mulheres: “Contratei mulheres, o que me redimia um pouco da culpa
de não dar emprego a quem realmente precisava, pois elas tinham dificuldades de sobreviver do
próprio trabalho, além do fato de muitas arcarem sozinhas com a responsabilidade de criar filhos
não assumidos pelos homens” (Gonçalves, 2006, p. 547).

Atrelando escrita feminina à memória e à violência, cabe a nós abordarmos a resiliência das
autoras afro-brasileiras contemporâneas e de suas personagens. Desse modo, a História
“oficial”adquire em Ana Maria Gonçalves lugar de resistência, de denúncia e de busca
identitária; e sem dúvidas o seu recurso utilizado é o de ir em busca dos “rastros da
ancestralidade, realizando, assim, um reencontro que, por muito tempo, ficou, esquecido”(Bernd,
2012, s/p). É na tentativa de trazer à tona vozes dos sujeitos marginalizados e juntar os rastros
(Ricoeur, 2007), instalados a partir do caos da escravidão, que a personagem Kehinde se
fortalece como sujeito atuante e não se acomoda perante as adversidades. Sua sagacidade marca
sua personalidade, como quando se recusou a ser batizada e trocar de nome, pulando no mar e
nadando até a ilha de Itaparica para não receber o nome de “branca”. No mercado da Bahia,
quando estava à venda e os mercadores lhe perguntaram seu nome, ela responde “Kehinde”,
entretanto, ao ser questionada que não poderia ter sido batizada com tal nome e que não constava
nenhuma Kehinde nos registros, ela logo consegue recorrer à memória e sua esperteza: “Foi
então que me lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre, quando eu deveria ter sido
batizada, mas não quis que soubesse dessa história. A Tanischa tinha me contado o nome dado a
ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me
considerei Kehinde” (Gonçalves, 2006, p. 73).

Pelo olhar feminino, ela transporta o leitor para o século XIX e demonstra, através de suas
memórias e de memórias selecionadas, como a identidade afro-brasileira foi se consolidando ao
longo do período escravocrata, ancorada sempre em exclusão, maus tratos e violência. Para Zilá
Bernd (2012, s/p), o romance faz emergir “Nas penas de Ana Maria Gonçalves, revivificada pela
enunciação feminina e pela astuciosa recuperação dos vestígios, dos rastros e das marcas
conservadas na tradição oral e recupera pelos testemunhos inscritos na memória coletiva de
várias gerações”. Todo o percurso histórico feito por Kehinde passa por suas lembranças ou pelo
que sobrou delas (ou ainda pelas memórias do coletivo). A obra, portanto, apresenta uma seleção
de histórias com/de mulheres e essas, por suas vezes, auxiliam na construção da memória
individual da personagem central, bem como no processo memorialístico do livro o que se
configura como um mnemônio coletivo - construto coletivo e individual pautado nos rastros da
memória. Relembrando Wander Melo Miranda: “A reevocação do passado constitui-se a partir
de uma dupla cisão, que concerne, simultaneamente, ao tempo e à identidade: é por que o eu
reevocado é diverso do eu atual que este pode afirma-se em todas as suas prerrogativas. Assim,
será contado não apenas o que aconteceu noutro tempo, mas como um outro, que ele era tornou-
se, de certa fora, ele mesmo” (1992, p. 31).

Kehinde é muito mais que uma colecionadora de histórias, é pois, na verdade, uma selecionadora
delas, cartografando, assim, um oroboro mnemônio. Esta noção estratégica refere-se ao ciclo de
memória; unimos a ideia de ciclo (oroboro) à memória (mnemônico), por consideramos que
dentro do “espaço” ancestral de Um defeito de Cor, muitas coisas/pessoas vão e vem –
adquirindo uma característica de autoconhecimento; transformação; renovação; aprendizado e
rotas de fuga/cura para Kehinde e para muitas outras personagens. Consideramos oroboro
mnemônico a partir da ideia de transitoriedade e renovação, da revificação dos fatos e traumas
para resistirem. Assim são as mulheres e as histórias na vida da narradora – algo que vai e vem,
sempre criando/gerando resiliência. Roland Walter (2008a) nos esclarece acerca da experiência
coletiva, de troca, na diáspora e formação identitária:

Viver sem limites e fronteiras, tornar-se uma encruzilhada diaspórica, significa que
a subjetividade evocada nesta existência é constituída por múltiplas trajetórias
históricas, linguísticas, étnico-raciais e culturais. Significa abrir-se para os outros
fora e dentro de si, ou seja, aceitar e respeitar diferenças. Se a construção social de
lugares em espaços transnacionais e transculturais informa a episteme, então é
crucial lembrar que noções de identidade, ethos, cosmovisão, lugar, espaço,
fronteira, tempo e agir interagem e se caracteriza mutuamente. O conceito da
diáspora e a teorização na/da encruzilhada diaspórica e transcultural pode fornecer
uma compreensão antiessencialista de formações identitárias e de cidadanias
interculturais e transnacionais (Walter, 2008a, p. 43).

Ao longo da narrativa, Kehinde vai tecendo uma colcha de memórias, de mulheres afro-
brasileiras e africanas. Jacques Le Goff (1990, p. 14) nos recorda que “O tempo histórico
encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a
alimenta”. Em relação ao romance, o tempo histórico, referido por Le Goff, possui tanto o intuito
de subverter a História “oficial” como fazer emergir histórias que compõem sua memória
individual e a memória coletiva afro-feminina. Como o mesmo ainda afirma, “Tal como o
passado não é a história, no entanto o seu objetivo, também a memória não é a história, mas um
dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar da elaboração da história” (idem, 1990,
p. 50). Para tal, vejamos a passagem em que Kehinde também fala de memórias das quais se
alimenta.

Certas cantigas voltavam à memória, as que a minha mãe cantava para nos fazer
dormir e as que a minha avó cantava enquanto tecia ou conversava com os voduns.
Acho que acontecia a mesma coisa com a minha avó, porque às vezes eu olhava
para ela e a pegava sorrindo, abrindo a boca para dizer palavras apenas para dentro
dela mesma, entregue à moleza que nos fazia estar no presente e no passado ao
mesmo tempo, como se desta maneira pudéssemos evitar o futuro incerto, que
ninguém sabia onde ou como seria (Gonçalves, 2006, p. 52).

Em relação ao oroboro ele já aparece no capítulo um, no fragmento intitulado “O destino” como
algo que irá definitivamente nortear a vida daquela família:

Sentada sob o iroco, a minha avó fazia um tapete [...]. Os guerreiros já estavam de
partida quando um deles se interessou pelo tapete da minha avó e reconheceu
alguns símbolos de Dan. Ele tirou o tapete das mãos dela e começou a chamá-la de
feiticeira, enquanto outro guerreiro apontava a lança para o desenho da cobra que
engole o próprio rabo que havia, mais sugerida do que desenhada, na parede acima
da entrada da nossa casa (Gonçalves, 2006, p. 21-22).

Como mencionamos anteriormente, o conjunto de mulheres retratadas abre espaço para o que
consideramos representar um oroboro mnemônico. Propomos oroboro ao invés de apenas roda
pelo fato de o primeiro representar a serpente que devora a própria calda, serpente que
acompanha Kehinde durante toda sua trajetória (seja em sonhos, seja pelos voduns). O oroboro,
por ser construído representando um movimento espiral e contínuo, é um processo dinâmico e
transformador da vida. É aquele que cria, renova e remonta identidades – a partir das memórias
selecionadas e contadas ao longo desses movimentos. Mesmo com a morte do corpo, o oroboro é
capaz de fazer “renascer”, a partir da ancestralidade e da memória. A partir disso, observamos
que sua avó é o gatilho para a maneira que a narradora elege para contar/escrever sua história e a
dos seus. Isso ocorre desde o primeiro capítulo quando ela descreve sobre sua avó, sendo assim
Kehinde evoca toda a ancestralidade da mesma desde o início do romance, como um possível
ponto de partida – mas que também é de chegada:

O nome dela, Dúrójaiyé, era o mesmo que ―fica, tu serás mimadaǁ. A minha avó
Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era uma abiku [...]. A minha avó nasceu
em Abomé, a capital do reino de Daomé, ou Dan-home, onde o rei governava da
casa assentada sobre as entranhas de Dan. Ela dizia que esta é uma história muito
antiga, do tempo em que os homens ainda respeitavam as árvores, quando o rei
Abaka foi pedir ao vizinho Dan um pedaço de terra para aumentar o seu reino.
Daquela vez, Dan já deu a terra de má vontade, e quando Abaka pediu outro pedaço
para construir um castelo, Dan ficou bravo e respondeu que Abaka podia construir o
castelo sobre a sua barriga, pois não daria mais terra alguma. Com raiva da resposta
mal-educada, o rei Abaka matou Dan e, sobre as entranhas espalhadas no chão,
ergueu um palácio suntuoso, a partir do qual teve início o grande império do povo
iorubá. Dan também é o nome da serpente sagrada, mas esta história fica para mais
tarde ou para outra pessoa contar quando chegar a hora dela, porque agora preciso
falar de um tempo que começou muito depois, quando a perseguição do rei monstro
Adandozan obrigou a minha avó a sair de Abomé e se mudar para Savalu
(Gonçalves, 2006, p. 19-20).

A avó de Kehinde exerce um papel especial no romance, pois ela é a voz ancestral que ecoa (vai
e vem) durante toda a narrativa – traz consigo a História do reino do Daomé composta de um
misticismo significativo, uma vez que o reino de Abakaé construído sobre os restos mortais de
Dan. Ponto instigante está no fato de o reino ser construído sob o ventre de Dan – novamente
início e “fim” e a força feminina, simbolizada pelo ventre. Recorremos a Chevalier e Gheerbrant
(1986) em relação aos símbolos.

Percebemos como esse símbolo se distingue do simples signo, e como abre um


leque de possibilidades para os grandes conjuntos de imaginários, arquétipos, mitos,
estruturas. Apesar de sua importância, não insistiremos mais nesses problemas
terminológicos. Vale a pena aprofundar a naturalização do próprio símbolo. Em sua
origem, o símbolo é um objeto cortado em duas partes, seja cerâmica, madeira ou
metal. Duas pessoas permanecem, cada uma com uma parte; dois convidados, o
criador e o devedor, dois peregrinos, dois seres que querem se separar por um longo
tempo. Reunindo os dois lados, eles reconhecerão posteriormente seus laços de
hospitalidade, suas dívidas, sua amizade, etc (Chevalier; Gheerbrant, 1986, p. 22-23
– minha tradução).

Trouxemos este excerto em razão de acreditarmos que a simbologia acerca de Dan permeia não
somente a construção do reino do rei Abaka, mas o próprio rei Dan. Dan também simboliza a
serpente dentro da nação Jeje Mahi – sendo no Brasil; considerado um dos maiores voduns
dentro do culto dos voduns. Ao pensamos em oroboro, lembramos da cobra e de toda sua
movimentação, sua “dança”, sua performance rítmica, cujo todo espaço do sagrado e mnemônico
se movimentam, transformado (no sentido mítico-místico) tudo e todos. Assim, analisamos a
memória: como um grande oroboro afro-feminino que fortalece tanto a personagem principal,
Kehinde, como colabora para o fortalecimento da identidade afro-feminina e da memória
coletiva, a partir da força ancestral e memorialística. Recordando Ricoeur (2007):

[...] nada temos de melhor que a memória para garantir que algo ocorreu antes de
formarmos sua lembrança. A própria historiografia, digamo-lo desde já, não
conseguirá remover a convicção, sempre criticada e sempre reafirmada, de que o
referente último da memória continua sendo o passado, independente do que possa
significar a preteridade do passado (Ricoeur, 2007, p. 26).

A respeito desse posicionamento é interessante demarcar que ele não sobrepõe a historiografia à
memória, o que é bastante pertinente para nossa análise, visto que consideramos que a História
silenciou muitas outras histórias, contudo não as apagou da memória, adquirindo caráter
testemunhal, possibilitando a manifestação da alteridade, como constata Magnabosco (2002):

No mundo público, a palavra testemunhal vem denunciando a representação a


invisibilidade feminina, a violência do gênero sexual e tem requisitado uma
transformação sobre essas práticas culturais. No plano pessoal, a palavra tem
permitido uma cura psicológica pela recuperação e legitimação, a partir do próprio
sujeito, das assertivas de sua vida (Magnabosco, 2002, p. 171).

O caráter testemunhal da obra nos lança para os estudos de Maurice Halbwachs, de acordo com o
mesmo, a memória deve ser pensada em uma dimensão que ultrapassa o plano individual, visto
que as memórias dos indivíduos não se constituem apenas a partir das suas memórias, mas são
também construções de grupos sociais – são esses quem determinam o que é memorável
(Halbwachs, 1990). Em relação à noção individual de memória, o autor parte do pressuposto de
que para tal é necessário que um indivíduo tenha participação em um fato, seja como ouvinte ou
ator, desde que se recorde do fato. A partir disso, Halbwachs nos esclarece que os testemunhos
são necessários para que o fato (ou fatos) se perpetue e se torne memorável, desencadeando o
que o autor conceituará de memória coletiva. Desse modo, pensamos em Kehinde como uma
grande contadora e testemunha de histórias, mesmo que em muitos acontecimentos ela estivesse
sozinha, suas histórias foram partilhadas com outras mulheres e vice-versa. Neste aspecto é que a
memória coletiva cumpre seu papel. Retomado as ideias de Halbwachs:

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam
seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que
a lembrança que nos recordam possa reconstruída sobre um fundamento comum
(Halbwachs, 1990, p. 22).

À luz do que abordamos até o momento, Michael Pollak, ao falar sobre as memórias do nazismo
relata sobre o “enquadramento de memórias”, o conceito nos apetece, para pensarmos acerca das
memórias selecionadas pela narradora. Para o pesquisador, uma vez que as memórias
emergidas/subterrâneas ultrapassam o espaço do público e conseguem reivindicar seus espaços,
elas “se acoplam a essa disputa da memória”. Pollak (1989) refere-se a um embate de memórias
do público e do privado, o que deveria ser oficial e o que deveria ser esquecido, tal qual ocorre
no período escravocrata, e Kehinde procura evidenciar a memória e os relatos emergidos. Para o
estudioso:

O longo silêncio sobre o passado longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência


que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao
mesmo tempo ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes
familiares e de amizades esperando a hora da verdade e redistribuição das cartas
políticas e ideológicas (Pollak, 1989, p. 6).

Acreditamos ser esse um dos desejos da narradora, ao escolher por certas histórias e memórias
em detrimentos a outras, para que, cuidadosamente, os discursos virem contradiscursos, pautados
em figuras firmes, de mulheres cujas trajetórias foram de luta; no intuito de formar ideologias e
reconstruir identidade através dos rastros memorialísticos. Também por caracterizar o que
Ricoeur (2007, p. 57) irá conceituar como “momento de reconhecimento”, Kehinde sente
empatia por algumas histórias: “O momento da recordação é então o do reconhecimento. Esse
momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus da rememoração tácita à memória
declarativa, mais uma vez pronta para a narração”. Nessa perspectiva, ela se utiliza tanto do
“enquadramento de memória” como do “momento de reconhecimento”, para narrar os “não-
ditos”, afim de alterarem a ordem axiológica da História e reorganizar não apenas sua memória
individual, mas a memória coletiva, para Pollak (1989, p. 10), “[...] o que está em jogo na
memória é também o sentido de identidade individual e do grupo”. A narradora resgata histórias,
muitas vezes traumáticas, que ficaram à margem, como Pollak (1989) nomeia de “memórias
clandestinas e inaudíveis”, como a passagem da escravizada Verenciana. O sinhô José Carlos,
marido da sinhá Ana Felipa, tinha muitas de suas escravizadas como “amantes” sexuais –
ocorrências comuns no período colonial. No entanto, a sinhá não conseguia segurar as crianças
que gerava, abortando sempre que engravidava. Em contrapartida, Verenciana engravidou do
sinhô, e como punição a sinhá Ana Felipa arrancou os olhos da escravizada:

Mandou que os homens segurassem a Verenciana com toda força, arrancou o lenço
da cabeça dela, agarrou firme nos cabelos e enfiou a faca perto de um dos olhos.
Enquanto o sangue espirra longe, a sinhá dizia que olhos daquela cor, esverdeados,
não combinavam com preto, e fazia a faca rasgar a carne até contornar por completo
o olho, quando então enfiou os dedos por dentro do corte, agarrou a bola que
formava o olho e puxou, deixando um buraco no lugar. [...]. Examinou o olho
arrancado, limpou o sangue no vestido e disse que era bonito, mas que só
funcionava se tivesse um par. Fez a mesma coisa com o outro olho, guardando os
dois no bolso, quando então disse aos homens que podiam levá-la e que não a
deixassem morrer de jeito nenhum, porque ela tinha que saber o que significava
sentir um filho crescendo da barriga e depois não poder vê-lo, e também porque
queria saber se o senhor seu marido ainda ia querer se deitar com uma preta sem
olhos (Gonçalves, 2006, p. 105-107).

Ao partilhar isso, Kehinde permite que haja a transposição da memória individual para a
memória coletiva, suas memórias ao serem compartilhadas se territorializando na escrita
permitindo que ela acesse seus testemunhos e os projete. Como afirma Halbwachs (1990, p. 29),
“[...] o primeiro testemunho a que devemos recorrer será sempre o nosso”. Retomando Pierre
Nora (1993), acerca “dos lugares da memória”, o historiador elucida que não há memória
espontânea “que são necessários criarmos arquivos” sendo operações forjadas. Assim, Nora
(1993) afirma que:
Porque a coerção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e somente
sobre o indivíduo como sua revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal
com seu próprio passado. A atomização de uma memória geral em memória privada
dá à lei da lembrança um intenso poder de coerção interior. Ela obrigada cada um a
se relembrar e reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade. Esse
pertencimento, em troca, o engaja inteiramente (Nora, 1993, p. 18).

No jogo de troca e pertencimento identitário, Um defeito de cor nos apresenta a figura de Taiwo,
irmã gêmea de Kehinde. Para a cultura africana, acredita-se que irmãos gêmeos dividem a
mesma alma: “Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza disto
depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber, porque foi só então que a parte que
ela tinha na nossa alma ficou somente para mim” (Gonçalves, 2006, p. 21). Na passagem a
seguir, a personagem volta a mencionar sobre a alma partilhada: “Eu olhava para a Taiwo e, de
repente, a alma que partilhávamos se transportava imediatamente para Uidá, ou para Salavu, e
brincávamos todos juntos, a Taiwo, eu, o Kokumo, a minha mãe e a minha avó” (idem, 2006, p.
52). A princípio, a protagonista relata que ambas dividiam a mesma alma, no entanto adiante na
narrativa, quando vai contar sobre a morte da irmã, confessa:

A minha avó me acordou no meio do sonho em que eu estava em uma canoa,


remando pelos rios de Salavu, e me disse para segurar bem forte a mão da Taiwo.
Entendi que era a hora de nos despedirmos, e a Taiwo estava alegre em partir para
se encontrar com pessoas que gostavam dela e estavam esperando no Orum. Apertei
mais forte ainda a mão dela, para que a sua parte na nossa alma não fosse embora e
ficasse comigo. Era nisto que eu pensava, mas não sei se foi assim que aconteceu,
como também não sei dizer se era essa a intenção da minha avó (Gonçalves, 2006,
p. 60).

A avó das gêmeas após a morte de Taiwo transmite um ensinamento à Kehinde no qual ela deve
providenciar um pingente, que simbolizasse a irmã – evitando o afastamento de sua alma: “Eu e
a Taiwo tínhamos nascido com a mesma alma e eu precisava dela sempre por perto para
continuar tendo a alma por inteiro. Depois da morte dela, o único jeito de isso acontecer é por
meio da imagem em um pingente benzido por quem sabe o que está fazendo” (Gonçalves, 2006,
p. 60). Ao desembarcar no Brasil, Kehinde cria um pingente provisório. Ao narrar a viagem de
volta ao Brasil, confessa: “Manter a Taiwo viva, esse era o papel do pingente, ou amuleto, que eu
trago sempre comigo, pendurado no pescoço” (Gonçalves, 2006, p. 91). O pingente garante a ela
não apenas que sua alma continue indivisível, sobretudo que os laços com a irmã continuem,
pois não são raras as passagens durante a obra que Taiwo se comunica com a irmã através de
sonhos, como na primeira passagem em que a irmã aparece no sonho para anunciar algo ruim.
Segundo Prandi (2001, p. 50): “O passado mítico é um passado vivo, e seus habitantes o tempo
todo agem e interferem no presente”. Kehinde, mesmo se separando de Taiwo, não perde o elo
espiritual, bem como com sua avó. Suas raízes ancestrais possibilitam que ela continue ligada a
elas seja por memórias, seja pelos sonhos – que acontecem geralmente como mensagens. Pierre
Nora (1993) ao contrapor História e memória afirma:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a


história uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se
acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, globais
ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, cenas,
censura ou projeções (Nora, 1993, p. 9).

A relação entre Kehinde e seus mortos é um pilar dentro do romance, a partir dessa relação que
muitas de suas decisões são tomadas e muitas ocorrências em sua vida explicadas, como quando
ela sofre o estupro, pelo sinhô, no capitulo “A posse” e, após certo tempo, ele é picado por uma
possível cobra, passagem na qual Kehinde relata ser uma mescla de sonho e realidade: “[...] ela
me contou uma história que achei fazer parte do sonho que tive com minha avó, e que só soube
que era verdade meses depois” (Gonçalves, 2006, p. 173). Laura Padilha nos esclarece que: “A
ancestralidade contribui a essência de uma visão que os teóricos das culturas africanas chamam
de visão negro-africana do mundo. Tal força faz com que os vivos, os mortos, o natural e o
sobrenatural, os elementos cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e
indissolúvel cadeia significativa” (Padilha, 1995, p. 10). Este movimento cíclico permanecerá
sincronizando o contemporâneo e o passado, em uma temporalidade que “atrai para si o passado
e o futuro” (Martins, 2002, p. 85). Nesta linha, Prandi (2001) afirma:

Para os iorubas e outros povos africanos, antes do contato com a cultura europeia,
os acontecimentos, atos heroicos, descobertas os acontecimentos atos heroicos,
descobertas e toda sorte de eventos dos quais a vida presente seria a continuação.
[...]. Cada mito atende a uma necessidade de explicação tópica e justifica fatos e
crenças que compõem a existência de quem o cultiva, o que não impede de haver
versões conflitantes quando os fatos e os interesses a justificar são diferentes. O
mito fala do passado remoto que explica a vida no presente. O tempo mítico é
apenas o passado distante e fatos separados por um intervalo de tempo muito grande
podem ser apresentados nos mitos como ocorrências de uma mesma época,
concomitantemente (Prandi, 2001, p. 48-49).
Os entrelaçamentos de todos os elementos levantados por Padilha (1995), Prandi (2001) e
Martins (2002) podem ser constados na passagem após o estupro, em que ela fica em uma
espécie de “coma/transe” por meses. Como se o sono fosse não apenas um momento de fraqueza,
mas, sobretudo, no qual seus ancestrais pudessem cuidar dela, trazendo força e trabalhando
espiritualmente para sua recuperação e justiça – pois é a partir desse sonho que o sinhô é
“picado” pela cobra. Vejamos a passagem:

Durante todo aquele tempo, antes que ele [o filho fruto do estupro] se mexessem,
muitas coisas aconteceram e passaram por mim como se fossem uma porção de
histórias de pessoas que eu conhecia vagamente, mas que não me diziam respeito.
Histórias que me contavam como quem está fazendo uma criança dormir. E era
apenas isto que eu queria, já que não tinha conseguido morrer. Dormir, dormir e
dormir. Na primeira noite depois que o Cipriano me levou carregada e me jogou
sobre uma esteira na senzala pequena, mandando a Esméria cuidar de mim, sonhei
com minha avó. Eu me lembro das gargalhadas, reais e descaradas como nunca
foram, e acho que até acordei por causas dela, reais. No sonho eu vi em todos os
lugares, em Salavu, em Uidá, em lugar que não conheci, mas que imaginei ser
Abomé, no navio e até mesmo na ilha, onde ela nunca esteve Os lugares sucediam
atrás dela como um espelho, e ela ficava parava, gargalhando, enquanto tecia um
enorme tapete com o desenho de uma cobra que já estava quase completa, só
faltando um pedaço do rabo (Gonçalves, 2006, p. 173).

A própria falta do rabo da cobra nos leva a mais de uma interpretação – a picada da cobra, que,
aliás, ninguém conseguiu achar no quarto do sinhô. A justiça do vodum Dan – o qual avó de
Kehinde era iniciada no culto e nos lança novamente ao início de toda a narrativa – quando os
guerreiros ao visualizam o tapete, da cobra que mordia o próprio rabo, em que a sua avó bordava,
estupra e mata a sua mãe e mata Kokumo. A simbologia de Dan, a ancestralidade da personagem
central conecta-a aos seus mortos – monta um oroboro, pois leva a personagem ao retorno da
cena de estupro e violência de sua mãe e morte de seu irmão. Todavia, na primeira cena de
estupro desencadeou apenas em “morte” e na segunda, desencadeia vida, tendo em vista que
Kehinde ficará grávida do sinhô José Carlos. Recorrendo às pesquisas de Leda Martins (2002):

Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o


tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de
inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada na qual os eventos,
desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene
transformação. Nascimento maturação e morte tornam-se, pois, contingências
naturais, necessárias na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais
e existenciais (Martins, 2002, p. 84).

Apesar de ela se referir muito mais à sua avó que à sua mãe, as passagens em que a mãe aparece
são de muita doçura, suscitando no leitor algumas reflexões acerca da mulher em África, inserida
em uma cultura machista. A mãe de Kehinde, Dúróoríìke, foi casada em Abomé, com um bom
guerreiro e nomeado ministro do rei do Daomé, fez da mãe da Kehinde sua terceira esposa,
porém, como ao longo do casamento ela só atraiu abikus, o guerreiro não se importou quando
Dúróoríìke resolveu partir:

Ele já era ministro quando se casou com minha mãe, fazendo dela sua terceira
esposa. Mas como ao longo dos anos a minha mãe só atraiu abikus e o Babatunde
precisava de filhos que quisessem viver e se tornar guerreiros como ele, não se
importou quando ela foi embora com minha avó. O que ele não sabia era que a
minha mãe estava pejada e já tinha aprendido a enganar abikus (Gonçalves, 2006, p.
20).

Compondo memórias e identidade Kehinde nos apresenta Esméria, que cumpre papel de mãe –
avó e amiga, como uma continuidade da maternagem que ela perde primeiro em África e depois
nas águas do Atlântico, as terras baianas trazem para sua vida a figura maternal e protetora da
escravizada. De início, Esméria sente empatia pela criança que chega à fazenda e é escolhida
para ser a “criança-brinquedo” da sinhazinha Maria Clara, “a Esméria disse que eu seria para ela,
um brinquedo, e era como tal que eu devia agir, ficar quieta e esperar que ela quisesse brincar
comigo, do que ela quisesse” (Gonçalves, 2006, p. 78). Notamos o amor que se instala entre as
duas durante o romance e como o elo maternal de fato ocorre e permanece durante toda a
narrativa. Esméria acompanha a protagonista em praticamente todos os momentos de sua vida,
sendo sem dúvias um continum familiar de Kehinde, em solo brasileiro. Vejamos a descrição da
tristeza/amor que a narradora transpassa quando a avó-mãe-amiga falece:

Passei dias sentindo grande tristeza e o peito apertado, como se lembranças da


Esméria fossem tomando todo o espaço do meu de dentro, como diria a Blimunda.
A pior sensação era de não ter dito quanto gostava dela, quanto ela tinha sido
importante para mim, como mãe, avó e grande amiga. A Esméria representava tudo
isso, tudo o que tinha perdido antes de chegar ao Brasil, e que encontrei nela no
primeiro dia da minha estada na casa-grande da ilha. Eu tinha viva, e ainda tenho, a
imagem da Esméria sentada ao meu lado enquanto eu comia na porta da cozinha,
olhando para mim como se dissesse que a partir daquele momento eu estaria sob a
responsabilidade dela, que tudo faria para que eu sofresse o mínimo possível. Uma
das primeiras coisas me disse foi para não conversar nunca em línguas de África se
houvesse algum branco por perto, mas foi cantando em eve que a saudade e a dor da
perda foram diminuindo. Quando ficava muito triste, eu começava a cantar coisas
que nem sabia que me lembrava, as canções que a minha avó tinha cantado para o
Kokumo e para minha mãe, antes de sairmos de Salavu (Gonçalves, 2006, p. 624).

Nesta passagem percebemos novamente a força do oroboro - sentimento de transitoriedade e do


mnemônico - retorno à ancestralidade, com isso nos lembramos da citação do pesquisador.
Kehinde canta em eve, uma das línguas que falava quando criança e que sua avó cantava. O fato
de cantar coisas, as quais segundo ela, nem se lembrava que sabia nos leva a acreditar que a
memória não é apenas algo intrínseco, mas que constitui a identidade do sujeito e que funciona
como um continuum ancestral – oroboro mnemônico, aquilo que vai e volta em ciclo ancestral,
sempre se ressignificando.

Titilayo é outra figura feminina que deixa profundas marcas na narradora, sempre abordada por
ela de maneira muito especial. Titilayo e a sua família possuem o significado da alegria,
renascendo em Kehinde o desejo de felicidade em meio a tanta tristeza, a própria escolha do
nome da personagem nos remete a esse significado. Titilayo significa “a felicidade eterna” e seu
filho Ayodele “a alegria vem para o lar”, mesmo que o tempo em Uidá tenha sido curto e mais
experiências traumáticas tenham surgido, a personagem central nunca perde a alegria e saudade
ao relembrar desse tempo: “Tenho boas recordações daquele tempo, quando tudo era novo, todos
os momentos eram felizes e eu nem sequer imaginava o que ainda estava para acontecer”
(Gonçalves, 2006, p. 34). Como se esse curto tempo em Uidá e com a Titilayo fosse um preparo,
um “frescor” de encorajamento para enfrentar o que Kehinde nem sabia que estava porvir, sua
captura e de sua irmã como presentes da sorte por serem ibêjis. Quando, anos mais tarde, retorna
à África Kehinde decide ir para Uidá ao invés de Salavu e vai regressar à casa dos amigos. Ela
retorna a Uidá, porque lá não estão os mortos, mas os vivos; ela volta para recomeçar “como
quando esteve em Uidá pela primeira vez ― eu me sentia como se tivesse nascido de novo”
(idem, 2006, p. 33). Todavia, sem deixar de lado sua ancestralidade: “Em África, eu estava muito
mais perto da minha mãe e do Kokumo, que tinham ficado enterrados lá, e da minha avó e da
Taiwo, que nem tinham chegado ao Brasil” (ibidem, 2006, p. 744). Novamente a simbologia, do
retorno para o recomeço. Apesar de Kehinde regressar e Titilayo ter falecido há quinze anos, é
recebida com muita alegria e amor pelos que ficaram. Notamos na passagem do reencontro,
quando ela reconhece os traços da Nourbesse, esposa do Ayodele, filho da Titilayo:

Quando me reconheceu, ela deu um grito para dentro da casa chamando pela
Hanna, a filha, e me abraçou, pedindo aos dois rapazes que entrassem com o baú.
Assim que abracei a Hanna, a Nourbesse pediu que eu a seguisse até o quarto, pois
queria me mostrar algo. Era um quadro, que ela tirou de um baú e me entregou
depois de limpar com as mãos um pouco da grossa camada de pó que embaçava o
desenho. Ainda estava sujo e um pouco desbotado, mas reconheci um coração e a
frase Ekun Dayo, torna duelo em alegria, o quadro que estava pendurado na casa de
cômodos onde eu tinha morado com a Taiwo e a minha avó. A emoção de rever
aquilo, mais o cansaço, fez com que eu perdesse as pernas e caísse desmaiada
(Gonçalves, 2006, p. 744).

Outra figura que nos remete ao ciclo e à memória é a mãe de Kehinde. A narradora nos conta que
sua mãe ao abandonar o marido e partir juntamente com sua mãe (avó de Kehinde), do Daomé,
andaram muitos dias “até saber em que deveriam ficar ao pé do iroco”. O iroco é considerado
uma das quatro árvores sagradas da África, geralmente cultuadas em todas as regiões que ainda
praticam a religião dos orixás. Segundo os iorubás, o iroco é a morada de espíritos infantis, os
abikus. Bem como a mãe de Kehinde, seu irmão, e dois dos quatro filhos da narradora, sendo sua
filha também mãe de um abiku. Em a Mitologia dos Orixás, Prandi (2001) relata que: “No
começo dos tempos, a primeira árvore plantada foi o Iroco. Iroco foi a primeira de todas as
árvores, mais antiga que o mogno, o pé de obi e o algodoeiro. Na mais velha das árvores de
Iroco, morava seu espírito. E o espírito de Iroko era capaz de muitas mágicas e magias (2001, p.
162).

Sendo o iroco a mais velha, considerada como “A Grande Árvore” ou “Árvore Sagrada”, é assim
que Kehinde conta sua história e dos seus: no ir e vir. Sua família, ao partir do Daomé, fecha um
ciclo para dar início a outro. Também é aos pés do iroco que Kehinde vê sua mãe e seu irmão,
dois abikus, morrerem, e como as raízes da grande árvore, formam-se os riozinhos de sangue:
“Eu me lembro do riozinho de sangue que escorreu da boca do Kokumo quase alcançou o tronco
do iroco” (Gonçalves, 2006, p. 23). A narrativa prossegue com o chamado dos abikus, para sua
mãe, e estupro seguido de morte da sua mãe: “Ela não parou de sorrir um minuto sequer, e tão
logo surgiu um riozinho de sangue escorrendo na direção do riozinho do Kokumo, a minha mãe
correu para perto dele e o abraçou” (idem, 2006, p. 24). Os dois riozinhos de sangue se unem,
como um possível símbolo de reencontro dos abikus: “O riozinho da minha mãe primeiro correu
lado a lado com o do Kokumo, depois se juntou a ele e o espichou um pouco mais” (ibidem
2006, p. 25). Nas cenas finais da narrativa, quando dois de seus netos morrem, sendo um - o filho
de sua filha Maria Clara um abiku, Kehinde conta:

Algumas pessoas tinham continuado a busca na lagoa e chegaram com os dois


corpinhos do jeito que tinham sido encontrados, um no abraço do outro, e meus dois
filhos também se abraçaram, como se estivessem seguindo o exemplo. Não tivemos
como evitar as visitas, os pêsames e as homenagens falsas e verdadeiras, e fizemos
o funeral e o enterro das crianças o mais rápido possível, porque é muito triste ver
corpinhos tão novos sem vida e sem frutos, como também tinha sido o caso do seu
irmão, o Banjokô. Depois que a Isabel chegou de Uidá e se despediu do filho,
depois que os padres encomendaram os anjinhos e rezaram uma missa na sala da
minha casa, mandei abrir uma cova no quintal e colocamos os dois juntinhos lá
dentro, do jeito que estavam. No dia seguinte, quando já estávamos novamente só
os da casa, plantamos um iroco por cima, para que pelo menos a árvore crescesse e
desses frutos. Depois do enterro dos dois netos de uma só vez e depois que a casa
voltou a ficar silenciosa, nunca entendi tão bem a sinhazinha quando ela dizia que
queria morrer (Gonçalves, 2006, p. 944).

Novamente, os elementos água e iroco, como símbolos de vida e morte – ciclo, como um grande
oroboro na/da vida de Kehinde, sempre se renovando. Ela encerra a narrativa fazendo o caminho
de volta, nas águas do Atlântico, cega e velha, Kehinde tem Geninha – quem esteve ao seu lado
até o final da narrativa, personagem que além de ter cuidado dela, na África, escreve as
cartas/relato ao filho perdido. Geninha é o olhar, a continuidade da história da narradora, uma
vez que ela ouve e escreve tudo. É sob as águas do Atlântico, como ao retorno à mãe de todos –
Iemanjá, que os laços de renovação acontecem, pois não fica claro se a narradora consegue
chegar ao Brasil com vida. A sua cegueira vai acontecendo aos poucos, em um olho de cada vez,
como riozinhos de sangue “[...] logo em seguida ficava muito vermelho, todo ele, para depois a
vermelhidão ir se reduzindo ao que parecia com vários riozinhos de sangue” (Gonçalves, 2006,
p. 932). Ainda a respeito de Dan e do oroboro, Kehinde vai explicar acerca do nome do filho
perdido, o que também nos sugestiona a pensarmos que ele sobreviveu, mesmo sendo um abiku:

O ritual foi igual ao que eu já tinha presenciado, e todos festejaram muito porque
meu novo filho chorou quando a água jogada para o alto respingou no rosto dele.
Isso significava que ele queria viver, estava gritando isso para o mundo e para as
pessoas ao seu redor do jeito que sabia. [...], a você foi dado o nome Omptunde
Adeleke Danbiran, sendo que Omotunde significa ―a criança voltouǁ, Adeleke
quer dizer que a criança será―mais poderosa que os inimigos, e Danbiran, assim
como o apelido do Banjakô é uma homenagem à minha avó e aos seus voduns,
principalmente Dan (Gonçalves, 2006, p. 403-404).
Na mesma direção, a protagonista irá narrar novamente sobre Dan e Oxumaré, a princípio pode
nos parecer algo repetitivo, mas vejamos a passagem:

A minha avó gostava de desenhar arco-íris nos tapetes que tecia, [...]. Algumas
pessoas acreditam que o arco-íris é uma serpente das profundezas que vai beber
água no céu, mas a minha avó dizia que ele é Oxumaré, o que controla o bom
tempo. [...]. A chuva é a água que ele deixa respirar sobre a terra, porque as mãos
estão sempre ocupadas, carregando duas serpentes de ferro. Oxumaré não é homem
nem mulher, mas as duas coisas juntas. Durante seis meses ele vive como homem e
mora perto das árvores, e durante os outros seis é uma mulher muito bonita que vive
nas matas e nas lagoas. No corpo de mulher, Oxumaré é Dani, que o nome feminino
da cobra Dan, e minha avó desenhava uma Dani como a cobra enrodilhada que
come o próprio rabo. Ela dizia que essa cobra, sem começo ou fim, é a mesma coisa
que o trabalho de Oxumaré, que não pode parar de levar as águas até o céu, de onde
elas tornam a cair, e para onde ele torna a levá-las, sem descanso. Era uma Dani que
a minha avó estava tecendo no dia em que os guerreiros apareceram na nossa casa,
em Salavu (Gonçalves, 2006, p. 592-593).

Ao mencionar que sua avó bordava uma Dani e não Dan, Kehinde evoca mais uma vez a força
feminina para a mitologia africana e a manifestação desta força dentro da narrativa. Quando
Oxumaré se transforma em Dani esse orixá que é do panteão dahomeano, é a própria imagem
mitopoética do arco-íris que sai da terra e fecunda o mar. Ao recorrermos a Chevalier e
Gheerbrant acerca do arco-íris, encontramos como umas definições a seguinte descrição:

O arco-íris sempre expressa, em todos os lugares, união, relaxamento e troca entre


os dois. Embora, o arco-íris corresponda ao domínio das águas superiores, são as
[...] duas metades do ovo do mundo, reunidas como signo da restauração da ordem
cósmica, bem como da gestação de um novo ciclo (Chevalier; Gheerbrant, 1986, p.
135 – tradução minha).

Nesse sentido, notamos que a presença/força do feminino ronda a personagem em toda a


narrativa, em um ir e vir constante sem começo, meio ou fim, definidos. Ao mencionar que sua
avó bordava uma Dani e não Dan, Kehinde evoca mais uma vez a energia ancestral e fecunda
“feminina que a norteia, e como um arco-íris – corresponde anifiestamente al domínio de las
Aguas Superiores” – ou seja – pelas águas de Iemanjá indo e vindo na travessia do Atlântico e
pelas águas de Oxum que rege seu orí, e faz o curso da vida da narradora ser como um rio, ora
calmo, ora turbulento, em um bambalango e recomeço sem fim.
Religiosidade: cartografando o axé maternal em um baile cíclico

As mulheres negras da diáspora tentaram e continuam tentando lutar por um discurso religioso
que abarque valores africanos, mesmo que para isso precisem (re)organizar e (re)criar, com isso,
a memória mais uma vez se torna a primeira prática ritualística dentro do axé. Kehinde
cartografia/tece história de resistência, em que muitas permeiam as mulheres de/do axé, essas
possuem em si o axé capaz de fazer fluir e preservar a ancestralidade africana; bem como faz
referências significativas figuras mítico-místicas femininas, reforçando uma escrita pelos rastros
ancestrais. De acordo com Halbwachs (1990, p. 30), “[...] nossas lembranças permanecem
coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos que somente nós
estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”. As lembranças da protagonista estão
em constante processo de avivamento, ao cartografar mulheres e histórias míticas a narradora
revive e remonta de certa maneira um mapa ancestral, que se inicia ainda em África com sua avó.
A fim de tecermos parte do mapa ancestral que a narradora traça em sua vida, temos as Ìyámis
importantes para a representação feminina, aquelas que vieram antes, ligadas à força da criação,
ao mistério:

Ouvimos o barulho das galinhas e logo depois o pio triste de um pássaro escondido
entre a folhagem da Grande Árvore, e a minha avó disse que aquilo não era bom
sinal. [...] Como se já não houvesse sombra sob o iroco, uma outra sombra ainda
mais escura e no formato de asas de um grande pássaro passou sobre a cabeça da
minha avó. Eu já tinha ouvido falar daquele tipo de pássaro, era uma das ìyámis,
uma das sete mulheres-pássaro que quase sempre carregam más notícias
(Gonçalves, 2006, p. 21-22).

Temidas, em África e no Brasil, por serem consideradas grandes feiticeiras as ìyámis são umas
das mais importantes e respeitadas divindades do candomblé. São consideradas pelos
antepassados como as grandes mães ancestrais. Essas grandes senhoras são, sem dúvidas, o
maior símbolo do poder feminino da cultura ioruba, são consideradas também o próprio princípio
genitor feminino, a representação máxima da ancestralidade feminina. Ao retratar sobre os eguns
e egunguns Kehinde retoma o mito da criação do mundo por Olodumaré. Olodumaré enviou
Ogum, Obarixá e Oduá, entretanto Oduá, a única mulher e a única sem poderes, ao questionar
Olodumáre recebe dele “o poder do pássaro contido em uma cabaça, o que fez dela uma Ìyá
Won, a nossa mãe-suprema, a mãe de todas as coisas e para toda eternidade, a que dá
continuidade a tudo o que existe ou venha a existir” (Gonçalves, 2006, p. 578).

A protagonista de início apresenta uma expertise, narrando sobre grandes símbolos ancestrais
que, ora estão ligados a sua própria ancestralidade (como os cultos e ensinamentos sua avó), ora
como as ìyámis, que estão ligadas a todos, por representarem o princípio gerador, bem como a
simbologia de Dan vodum e Dan rei – formando desta maneira um grande oroboro mnemônico e
ancestral: constituído na mística dos voduns, nas ìyámís e na sua memória individual.
Retomando Chevalier e Gheerbrant acerca dos oroboros: “Ouroboros: serpente que se fecha
sobre si mesma e morde a própria calda, simbolizando um ciclo de evolução. Este símbolo
representa, ao mesmo tempo, movimento, continuidade, autofecundação e eterno retorno”
(Chevalier; Gheerbrant, 1986, p. 722, tradução minha). Tanto as ìyámís como a Dani [que a avó
de Kehinde bordava] fazem referência uma das forças femininas mais antigas para a cultura
mítica, africana. Podemos notar na passagem a seguir:

Com o poder dos pássaros, as mulheres receberam de graça e de nascimento o axé,


que é uma energia que os homens têm em cativar. Não me lembro direito da
explicação para este poder estar desde sempre com as mulheres, mas acho que está
relacionado ao ninho, representado pela cabeça, ou ao ovo, gerado pelo pássaro. Só
sei que, por meio dele, as mulheres passaram a ser as que geram, as que fertilizam,
as donas da barriga, que é por onde circula toda a energia e a vida do corpo, através
do sangue (Gonçalves, 2006, p. 578).

Nesse sentido, o fio condutor da narrativa tem seu coser pela ancestralidade feminina, Kehinde
vai delineando o mapa pela voz e escrita cartográfica, uma vez que essa vai selecionando
mulheres e figuras femininas mítico-religiosas. Optamos por mapa ancestral, uma vez que ela é
um sujeito viajante, que ocupa o entre-lugar, está em constantes travessias. Cartografar mais
especificamente personagens e figuras míticas relacionadas à religiosidade tem grande
importância, por representarem rastros de memória imprescindíveis para o mapa ancestral afro-
brasileiro. Leda Martins (1997) afirma que:

Com nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus modos singulares e diversos
de visão de mundo, sua alteridade linguística, artísticas, étnicas, religiosas, cultural,
suas diferentes formas de organização social e de simbolização do real. As culturas
negras que matizaram os territórios americanos, em sua formulação e modos
constitutivos, evidenciam o cruzamento das tradições e memórias orais africanas
com todos os outros códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ ou ágrafos, com que
se confrontaram. E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade
afro-brasileira (Martins, 1997, p. 26).

Seguindo nesta linha das figuras míticas, falaremos de Nanã, a yabá mais antiga das
águas. Nanã é a grande mãe ancestral, senhora das águas paradas, da terra fecunda (o barro).
Nanã é o princípio, o meio e o fim; o nascimento, a vida e a morte. Para o povo jeje, povo do
antigo Daomé, Nanã significa mãe, sendo muito respeitada por ser considerada a grande mãe
ancestral de todos. A avó de Kehinde era devota de Nanã, passando à neta este vínculo religioso.
Interessante notarmos que após a cerimônia improvisada da filha e do neto uma das poucas
coisas que a avó seleciona para levar são as estátuas de orixás, incluindo a de Nanã “[...] afinal se
levantou na manhã seguinte e começou a recolher roupas, panos, um pouco de comida e as
estátuas de Xangô, de Nanã e dos Ibêjis, colocando tudo em uma trouxa” (Gonçalves, 2006, p.
25). A importante representação do orixá Nanã para a narradora está para além da fé, tem grande
ligação com a memória familiar. Kehinde sem dúvidas herda a fé em relação a esse orixá,
todavia entendemos que Nanã também representa o “colo familiar” do qual Kehinde vai
perdendo desde o Daomé. E é no colo das yabás que ela consegue muitas vezes se reconfortar e
mesmo preencher, de certa maneira, a falta de sua mãe e de sua avó. Na passagem em que elas
foram capturas e estão de partida de Uidá, ainda sem a avó, a narradora descreve:

Quando os homens saíram, a Tanisha nos abraçou e disse que logo partiríamos. [...].
A Tanisha chorava e, encostada no peito dela, que era magro igual ao da minha avó,
eu pensei em Xângo, em Nanã, em Iemanjá e nos Ibêjis, pedindo que estivessem
sempre conosco, e mesmo quando fôssemos embora dali, que fossem juntos. Acho
que foi a primeira vez que os senti. Abracei a Taiwo e coloquei a cabeça dela sobre
os peitos de Nanã, e fiquei com os de Iemanjá. Xângo sentou-se ao nosso lado e
passou a mão sobre nós, abençoando, e os Ibêjis cantaram até que conseguíssemos
dormir. Foi como cachaça, não como felicidade, mas sentimos uma quentura por
dentro do corpo abrandando a tristeza (Gonçalves, 2006, p. 41-42).

Ao conseguir sentir os orixás e permitir que esses as acompanhem, e mais, que as yabás sejam
seus colos maternais, seu e de sua irmã, nos leva a crer que a fé nos orixás e nos voduns são
também maneiras de preservação da memória familiar; além da construção cartográfica e
preservação do axé afro-feminino. O orixá masculino, Xangô, fica ao lado das irmãs, mas são as
yabás quem oferece o acalento dos seios maternais. A respeito do romance estruturado em
memória familiar. Dessa maneira, afirmamos que uma parte do legado ancestral/religioso de
Kehinde vem de sua avó, que cultuava os voduns e os orixás, e transmite à neta, durante sua
“passagem de morte” e recomeço de sua neta. É possível observamos a necessidade de avó
repassar à neta os ensinamentos durante a passagem na travessia do Atlântico. Oliveira (2003)
salienta, acerca dessa cosmovisão, que ela vai muito além do sentido de ver e perceber as coisas
pelos ocidentais:

Essa cosmovisão de mundo se reflete na concepção de universo, de tempo, a noção


africana de pessoa, na fundamental importância da palavra e na oralidade como
modo de transmissão de conhecimento na categoria primordial da força vital, na
concepção de poder e de produção na estruturação da família, nos ritos de iniciação
e socialização dos africanos é claro, tudo isso assentado na principal categoria da
cosmovisão africana que é ancestralidade (Oliveira, 2003, p. 71).

Trazemos uma das passagens do romance que mais carrega importância para a narradora, uma
vez que a voz e os ensinamentos pela sua avó irão ecoar trajetória da narradora, como uma
espécie de herança ancestral e familiar:

Algumas horas depois de terem levado a Taiwo, como se estivesse apenas


esperando que ela partisse primeiro, a minha avó disse que estava se sentindo fraca
e cansada, que perdia a força e a coragem longe dos seus voduns, pois tinha
abandonado a terra deles, o lugar em que eles tinham escolhido viver e onde eram
poderosos, e eles não tinham como segui-la. Durante dois dias ela me falou sobre os
voduns, os nomes que podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e respeitar
os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não quisessem, se não tivessem
quem os convidasse e colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá.
Então, mesmo que não fosse através dos voduns, disse para eu nunca me esquecer
da nossa África, da nossa mãe, de Nana, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder
dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e
agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o
que podia ser dito, virando comida de peixe junto com a Taiwo. Não sei dizer o que
senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas a pior de todas as
sensações, mesmo não sabendo direito o que significava, era a de ser um navio
perdido no mar, e não a de estar dentro de um (Gonçalves, 2006, p. 60- 61).

Ao mencionar “ser um navio perdido no mar”, Kehinde mostra sua fragilidade perante a situação
de estar longe de sua terra natal, de sua família, dos voduns, de suas referências de religiosidade.
Nas águas rubro-negras, a narradora navega, sentindo-se perdida na multidão, indo para um lugar
desconhecido. O mar, nesta passagem, representa para narradora a imensidão desconhecida,
lugar de perda e tristeza, mas, sobretudo, lugar de memória famíliar. Sob as águas de Iemanjá,
sua avó repassa ensinamentos importantes para os africanos, e mesmo que a princípio Kehinde se
sinta “um navio perdido no mar”, são esses ensinamentos que irão nortear a personagem durante
sua trajetória. Retomando Prandi (2001) acerca da escravidão: “A escravidão destruiu as
estruturas familiares dos africanos trazidos como escravos para a América, submeteu-os a um
ritmo de trabalho compulsório e alienado, impôs novas crenças e um novo mundo de vida
cotidiana que pressupunha uma outra maneira de contar o tempo e de o conceber” (2001, p. 50).
A diáspora africana deixou fraturas abruptas nas relações familiares, no caso de Kehinde sua avó,
símbolo maior de ancestralidade familiar para a narradora, morreu quando Kehinde ainda era
criança. Devido a isso, muitos ensinamentos que deveriam ocorrer em tempo “natural” durante a
vida da personagem precisou ser passado de maneira incompleta e muito rápida. No intuito de
que a neta não se esquece de sua ancestralidade, a avó se esforça para repassar o máximo que
pode. Desse modo, acreditamos que o legado espiritual e maternal, da avó, continua a ser
transmitido ao longo da vida da narradora através de outras mulheres de axé.

Como continuidade de memória avó e representando o que essa não teve tempo de repassar à
neta, temos Nega Florinda que exerce o continuum ancestral – oroboro mnemônico, vejamos a
fala sobre Nega Florinda - amiga de sua avó e dos voduns de sua avó

Ela também era jeje, capturada em Ardra mais de sessenta anos antes, vivendo
como liberta havia mais de trinta. No Daomé, tinha chegado a ser vodu-no, como
minha avó antes de ser expulsa da corte de Abomé. Disse que também devia
conhecer quase todos os voduns que a minha avó conhecia e que poderia até me
falar deles [...]. Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar
alguns voduns, porque na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho,
Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xângo, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis,
Xaponã e Olokun (Gonçalves, 2006, p. 83).

O mesmo ocorre entre Agontimé//Maria Mineira Náe. Possível observarno relato da narradora ao
reencontrá-la na Casa das Minas, no Maranhão:

O lugar não tinha nada de Salavu ou mesmo de Uidá, mas ali estava uma pessoa que
tinha convivido com minha avó, com seus voduns e suas crenças, e que
possivelmente também tinha conhecido a minha mãe. Percebi como tinha me
afastado disso tudo, como parecia distante o dia em que tivera uma família ou
mesmo um lugar que pudesse dizer que era meu, a minha gente na minha terra
(Gonçalves, 2006, p. 595).

A sensação de proteção e da referência de casa/lar, a qual Kehinde havia deixado para trás ao ser
capturada é retomada quando chega à Casa das Minas: “Eu me sentia feliz e protegida na Casa
das Minas, e tal sensação contribuía para que gostasse de tudo o que via lá dentro” (Gonçalves,
2006, p. 599). Ao se tornar uma espécie de secretária da noche Naê/Agontimé Kehinde se sente
mais próxima aos seus ancestrais, e consegue ter mais certeza dos desígnios religiosos que
precisa seguir para manter e resgatas os rastros de sua raiz familiar, bem como formação e/ou
reafirmação identitária, mesmo não se iniciando na Casa das Minas, mas essa passagem por lá
foi sem dúvidas um gatilho para se iniciar em Cachoeira/Ba, na Roça da sinhá Romana. Sodré
(1988) nos afirma que: “A herança cultural repassada, a tradição é uma forma de comunicação
no terreiro e faz dela um pressuposto da consciência do grupo e a fonte de obrigações originárias,
que se reveste historicamente e de formas semelhantes a regras de solidariedade” (1988, p. 95).

Exercem também papéis ancestrais as personagens Mãe Assunta e Mãezinha. No capítulo oito, a
narradora inicia com o seguinte provérbio africano: “Quando não souber para onde ir, olha para
trás e saiba pelo menos de onde vens”. Após a revolta chamada Cemiterada, na Bahia, e Kehinde
ser presa injustamente uma fuga é improvisada para ela e a mesma é levada novamente para a
ilha onde desembarcou pela primeira vez. Na ilha, Kehinde parece reiniciar seu processo de
busca às raízes, indicada pela Esméria a procurar a Mãe Assunta, Kehinde inicia na ilha uma
espécie de recomeço, é no tempo de espera, pois Bahia naquela época ainda estava muito
agitada, que a narradora consegue, novamente, ter grande contato com sua ancestralidade.
Siqueira (2008) diz que

o terreiro apresenta-se como um espaço ritual porque é o lugar da religiosidade, da


celebração e da mitologia através dos rituais que vivificam a história e cultura dos
antepassados da comunidade. Além disso, corresponde a um espaço social porque é
aí que se realizam os momentos de convivência, de reunião da família de santo,
celebração que corresponde à legitimação de pertencimentos criados pelos rituais
(Siqueira, 2008, p. 102).

Dando continuidade ao fato de a religiosidade ser um grande mantenedor dos valores africanos e
possibilitar a resistência dos mesmos, tendo como figuras centrais muitas mulheres que, como a
Agontimé, foram lideres dentro do axé no período escravocrata trazemos a figura de Mãezinha e
Assunta:

Quando percebi que as outras chamavam a mãe dela de mãe também, mesmo muito
novos para serem filhos de uma mulher bastante velha, imaginei que as duas eram
mães de santo, o que foi confirmado pelo tipo de saudação que dirigiam à Mãezinha
ao se aproximarem ou se afastarem dela, pedindo a benção. Quando nos deixaram
sozinhas novamente, fiquei sabendo a história do terreiro. Na África, a avó da
Mãezinha era muito respeitada nos cultos e tinha ensinado os segredos à filha, a
Mãe Assunta, antes de ela ser capturada e levada ao Brasil. Depois de velha e de
receber a liberdade como prêmio, a Mãe Assunta encontrou aquela clareira onde
havia um casebre que funcionava como esconderijo de fuga e resolveu fundar um
terreiro. Sozinha, reformou o casebre e começou a receber os pretos para consultas
e curas com ervas, [...]. Logo a ialorixá se tornou bastante famosa, inclusive no
Recôncavo, e foi com o dinheiro cobrado de uma sinhá de Candeias, por conta de
um ebó, que conseguiu comprar a liberdade da Mãezinha (Gonçalves, 2006, p. 573).

As mulheres de axé, como comumente são chamadas, foram peças fundamentais para garantir a
preservação da memória ancestral africana, em solo brasileiro. De fato, muitos ritos ao serem
trazidos para o Brasil foram fraturados, evidentemente não por displicência dos líderes
religiosos, mas por circunstâncias: como o fato de não poderem trazer nada (ou quase nada) ao
serem capturados. A representação de mulheres negras fortes e corajosas cartografadas em
pontos estratégicos [pela narradora] fortalece e reafirma e reorganiza a identidade ancorada
tentando formar um grande mapa ancestral. João José Reis (1983), sobre a resistência dos
escravizados, no Brasil, afirma que

o conhecimento que já temos sobre a história da escravidão nas Américas torna de


certa forma muito fácil que os escravos não fora pessoas passivas e acomodadas.
[...]. As evidências são claras: o escravo africano soube dançar, cantar, criar novas
instituições e relações religiosas e seculares, enganar seu senhor, as vezes
envenená-lo, defender sua família, sabotar a produção, fingir-se doente, fugir do
engenho, lutar quando possível e acomodar-se quando conveniente. Esse
malabarismo histórico resultou na construção de uma cultura da diáspora negra que
se caracterizou pelo otimismo, coragem, musicalidade e ousadia estética e política
incomparáveis no contexto da chamada Civilização Ocidental. Claro, não foi fácil
(Reis, 1983, p. 118).

Com isso, consideramos o candomblé e as religiões de matriz africana fortes meios de


manutenção da cultura africana no Brasil, por possibilitar que os povos da diáspora continuassem
repassando seus valores ancestrais. Muniz Sodré (1988), ao mencionar sobre a perspectiva
africana no terreiro, salienta: “A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgiu para
excluir os parceiros do jogo (brancos, mestiço, etc.) nem para rejeitar a paisagem local, mas para
permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se fazia aí como efeito de
demonstração, mas uma reconstrução vitalista para ensejar uma continuidade geradora de
identidade” (Sodré, 1988, p. 54). Compreendemos que os templos religiosos de matriz africana,
erguidos desde a reorganização dos povos da diáspora quando foram trazidos ao Brasil,
possibilitaram que a cosmovisão/cosmopercepção, neste caso, religiosa, de grande parte dos
africanos fosse “assegurada” pelos espaços de axé, e perpetuados pelos ensinamentos de
babalorixás e ialorixás. A cosmovisão passada dentro desses espaços possibilitou [possibilita]
formação identitária da mesma. Para Célio Garcia (2014), a identidade é

[...] construída ideologicamente e elaborada constantemente, de modo a dar ou a


atualizar o sentido das atividades culturais e sociais do grupo, em membros
específicos de sua existência, de acordo com as condições de vida dos indivíduos. A
etnicidade de um grupo é definida pelas condições e interesses concretos do meio
maternal do ser humano, sendo que o único critério para defini-la é a própria
identificação do grupo enquanto tal, pois as origens e as tradições são elaborações
ideológicas, passíveis de novas construções teóricas, sem, contudo, alterar a
essência da identidade. [...] e o Candomblé pode ser fator de resgate da identidade
(Garcia, 2014, p. 108).

Como o próprio oroboro Agontimé, Nega Florinda, Mãezinha e Mãe Assunta são aquilo que
continua, donas do devir e continum religioso e familiar que Kehinde encontra no tempo em que
viveu no Brasil. Após a permanência na ilha ao lado de Mãezinha, aprendizados com Agontimé
na Casa das Minas e Nega Florinda ao longo do romance Kehinde volta para Bahia, mais
especificamente para Cachoeira/BA e se inicia como vodunsí, em um processo que dura três
anos na Roça da Sinhá Romana: “Na nossa Roça trabalhávamos mais com os ensinamentos sobre
os voduns, com a feitura de vodunsí e com as ervas que curam, preparando banhos chamados
amansís, [...]” (Gonçalves, 2006, p. 626). Zilá Bernd a respeito do tempo em que esteve na roça
nos atenta para o fato de que a iniciação da personagem:

Ao iniciar-se como vodunsí, Kehinde reintegra o patrimônio imaterial do qual foi


privada pela falta de convívio com qualquer pessoa de sua comunidade. Privada dos
lugares de memória familiar e não conseguindo lembrar-se das lições da mãe e da
avó materna, cujas mortes traumáticas presenciou, quase nada foi preservado em
sua memória a não ser fragmentos das histórias narradas pela avó. Retomar contato
com essa tradição interrompida pelo trauma da deportação seguida da escravização
tem um poder de apaziguamento (Bernd, 2014, p. 22).

Sem dúvidas tanto Agontimé, Nega Florinda, Mãezinha, Mãe Assunta, Sinhá Romana e a
iniciação de Kehinde possuem caráter reparador em relação ao legado ancestral da narradora.
Compreendemos que o caráter reparador nada tem a ver comsubstituição da avó, todavia a
memória familiar pode ser repassadas por essas mulheres e pela iniciação ao culto dos vodusn,
entidades extremante significativas para sua avó. As evidências que parte do legado ancestral é
recuperado pela narradora pode ser visto na passagem em que ela sonha com sua avó e sua mãe,
após sua iniciação:

O meu ritual de iniciação foi um dos momentos mais felizes que já vivi, quando
finalmente pude receber meu vodum, que me disse coisas lindas por intermédio de
uma das hunjaís da Roça. À noite, sonhei com minha avó e a minha mãe, quando
ainda tive notícias que notícias de que as Esméria e o Sebastião estavam felizes
(Gonçalves, 2006, p. 629).

A respeito das religiões de matriz africana, no período colonial, essas foram umas das maneiras
que os povos da diáspora negra se organizaram e conseguiram manter características de suas
identidades culturais, sociais e religiosas. A imposição da fé católica por parte dos senhores de
engenho foi um grande empecilho para realizações de cultos de origem africana. Para Prandi
(2001),

muitos dos conceitos básicos que dão sustentação à organização da religiosidade


dos orixás em termos de autoridade religiosa e hierarquia sacerdotal dependem do
conceito de experiência de vida, aprendizado e saber, intimamente decorrentes da
noção de tempo ou a ela associados. Assim, muitos aspectos das religiões afro-
brasileiras podem ser melhor compreendidas quando se consideram as noções
básicas de origem africana que os fundamentam (Prandi, 2001, p. 43).

Após a procura incessante pelo filho perdido, Kehinde decide retornar à sua terra natal, como
uma espécie de retorno às raízes mais profundas. Apesar de a maioria dos seus estarem mortos, o
filho perdido simboliza uma incerteza muito grande. As múltiplas buscas pelo filho fazem com
que a narradora tome a iniciativa de partir, pois o único elo que amantinha no Brasil estava
desaparecido. E em uma “decisão tomada de repente, sem pensar muito” (Gonçalves, 2006, p.
728), ela decide voltar ao seu país de origem. Neste capítulo, o penúltimo, ela inicia a epígrafe
com seguinte provérbio africano: “Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome”
(idem, 2006, p. 731). Após algum tempo de sua chegada em África, Kehinde começa a passar
mal e uma conhecida da família onde estava hospeda foi oferecer seus serviços de rezadeira: “A
mulher, chamada Ìyá Kumani, nem precisou chegar perto de mim para dizer o que eu tinha [...]”
(Gonçalves, 2006, p. 748). Kehinde foi avisada que estava grávida de ibêjis, e deveria fazer
bastante repouso durante a gravidez dos gêmeos. Neste período, ela foi cuidada pela Ìyá
Kumani,quem realizou também o parto: “[...] porque a segunda [criança] foi muito difícil, com a
Ìyá Kumani tendo que enfiar a mão lá dentro de mim e colocar a cabeça no lugar certo [...]”
(idem, 2006, pp. 765-766). É com a rezadeira e importante sacerdotisa de cultos gelédés, em
África, que Kehinde retoma suas práticas espirituais, e pelas mãos de Ìyá Kumani, seus filhos
ibêjis fazem a cerimônia donome: “Encomendei também o sacrifício de dois carneiros para
Xângo, um para cada, e mandei fazer um ebó para Nanã, a mãe de todos, agradecendo por ter
corrido tudo bem no período em que eles estiveram dentro da minha barriga e no nascimento, e
pedi que continuassem olhando por eles” (Gonçalves, 2006, p. 792).

A presença e o axé da Ìyá são indispensáveis para a manutenção da religiosidade da narradora,


podemos perceber na passagem em que ela solicita a Ìyá algumas cerimônias e pede indicação de
algum sacerdote de egungum para realizar culto aos seus mortos. Apesar de um bokonon ter
grande importância para manutenção religiosa da narradora, uma vez que é ele quem constrói o
quarto dos voduns familiares de Kehinde; um quarto para os orixás também é construído e
abençoado tanto pelo bokonon Prudêncio, quanto pela Ìyá Kumani, no intuito de perpetuar sua
ancestralidade, a maior abordagem é dada a uma mulher. Nesse sentido, Ana Maria Gonçalves
cumpre um dos papéis da literatura escrita por mulheres, principalmente a escrita por mulheres
negras, a de trazer para o centro da escrita contemporâneas mulheres e histórias que
desmistifiquem os estereótipos negativos, para Schmidt (1995):

Falar sobre a instituição “literatura” e a presença da mulher no espaço dos discursos


e saberes é, pois, um ato político, pois remete às relações de poder inscritos nas
práticas sociais e discursivas de uma cultura que se imaginou e se construiu a partir
do ponto de vista normativo masculino, projetando seu outro na imagem negativa
do feminino (Schmidt, 1995, p. 135).

É com a sacerdotisa do culto gelédés que Kehinde retoma ensinamentos sobre as Ìyámis, com
isso reafirmamos nossa idéia de oroboro mennônico que se constrói na narrativa em sua maioria
pelas mulheres. Kehinde novamente na narrativa seleciona e cartografa histórias nas quais as
mulheres são as detentoras de força e sabedoria, como a Ìyá Kumani que dentro do culto gelédés
possui o segundo maior cargo – Ìyáegbé: “No culto aos eguns e egunguns, a Ìyá Kumani era uma
Ìyáegbé, o segundo cargo mais importante que se pode ser ocupado pelas mulheres, a que
comandava todas as outras. Acima dela só havia uma Ìyálode, que era quem recebia as ordens
dos homens e passava às mulheres” (Gonçalves, 2006, p. 821).

Ao ir costurando narrativas, Kehinde tece um mapa ancestral, recobrindo lacunas de sua vida –
instauradas pelo processo escravista. Ao retornar para sua terra natal e permanecer ao lado de Ìyá
Kumani, Kehinde confirma o que propomos anteriormente: oroboro mnemônico, tudo vai e
volta, sem, contudo, perder o continum ancestral. O que nos ocorre a respeito da abordagem
religiosa em Um defeito de cor é que, de certa maneira, ela funciona como uma mística
unificadora de um povo tão diverso em seus valores culturais, religiosos, etc. Isso nos leva a crer
que muitos espaços destinados à celebração litúrgica funcionavam não apenas como espaço de
resistência cujas mulheres no período escravocrata foram as grandes mulheres de levantes, mas
sobretudo funcionavam também como referências de casas/lares, deixados, por muitos, em
África. Assim como as grandes mães ancestrais ìyámis e as yabás, as mulheres do/de axé
cumprem um legado de resistência, (re)afirmação identitária e (re)afirmação ancestral, dentro de
um grande oroboro mnemônico.
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O amor cura: mulheres negras, ancestralidade e afetividade em Um
defeito de cor
[27]
Júlia Dias da Silva

Antes – agora – o que há de vir.


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

(Conceição Evaristo)
Considerações iniciais

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de
onde vens.

(Provérbio africano)

Um defeito de cor, enquanto documento literário, reconstrói uma representação de passado


calcado no corpo e na diáspora de Kehinde, que ajuda a construir uma imagem de presente para
mulheres negras. E o jogo de imagens de mulheres negras, distanciadas num tempo-espaço, faz
sentido, pois, como afirmou Beatriz Nascimento “É preciso imagem para recuperar a identidade,
tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo
do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos”[28]. A partir da leitura deste romance, é
possível visualizar os embates travados por mulheres afrodiaspóricas que se articularam contra a
agregação de forças do sistema escravocrata que incidiu sobre os corpos negros; compreender
como as marcas da escravização ainda estão presentes em nós, mulheres negras, e atestar a
assertiva de que “nossos passos vêm de longe”.

Ana Maria Gonçalves nos conduz ao (re) encontro com uma mulher negra que, inserida no
contexto de escravização, subverte expectativas e imposições sociais. Kehinde representa corpos
negros que sofreram/sofrem com a opressão, a subjugação e a subalternidade. Um defeito de cor
retrata a ideia de transmigração, segundo Beatriz Nascimento: “Foi transportado para a América
um tipo de vida que é africana. É a transmigração de uma cultura e de uma atitude no mundo de
um continente pra outro. De África para América”. O espaço desta narrativa compreende África,
Brasil e o oceano que separa esses dois territórios.

A obra Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, escrita em 2006, tece a trajetória da menina
negra de oito anos capturada no Daomé e escravizada no Brasil. Em uma narrativa que abrange
mais de 80 anos de história, é possível compreender – pelo olhar de Kehinde – o contexto
histórico do Brasil escravagista do século XIX, bem como analisar de que forma deu-se a
construção social acerca dos corpos negros sob a ótica de quem mais sofreu/sofre com as feridas
da escravidão: a mulher negra. Entre os efeitos da diáspora africana[29] estão a subtração do
território de origem, a negação da história ancestral e dos laços familiares: “Não estava mais na
minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não conhecia”
(Gonçalves, 2017, p. 61). Os afastamentos geográficos, culturais e familiares perpassaram pelo
corpo que, pertencendo a, deixa de pertencer; que se desencontra; e, que sendo alvo, dentro das
não possibilidades para pessoas escravizadas, subverterá movimentos de sobrevivência e
existência.

Desgarrada da África, útero-mítico, Kehinde negociou a sua sobrevivência, a sobrevivência


ancestral e a sobrevivência coletiva. Distante da (i)lógica eurocêntrica, em que a ideia de
sobrevivência está atrelada à individualidade, sobreviver, para Kehinde, foi um agenciamento
por vias coletivas, religiosas, culturais, linguísticas, e nenhuma foi possível sem a outra. Todavia,
também estão presentes na narrativa a aglutinação de tradições ancestrais, as formas de
aquilombamento, a recriação e as redescobertas de si e de seus pares. Consoante Eurídice
Figueiredo (2010, p. 176):

A protagonista de Um defeito de cor resiste a todos os obstáculos e a todo


sofrimento, sempre com uma posição de combate e desejo de superação. A
resiliência de Kehinde é possível graças a alguns fatores. Em primeiro lugar, é bom
lembrar que fora uma criança feliz, orgulhosa da beleza de sua mãe, ou seja, durante
os primeiros anos de sua vida – que segundo Freud têm influência decisiva em toda
nossa vida – ela foi muito amada e desenvolveu uma autoimagem positiva. Em
segundo lugar, outras mulheres a amaram, colocando-se como mães substitutas
(Figueiredo, 2010, p. 176).

A (re)constituição identitária de Kehinde é definida pela sucessão de vivências que perpassa pela
criança desmembrada de sua terra, de sua família, de seu nome, que precisa forjar espaços para o
culto aos Orixás e aos Voduns, que se adapta à língua e à cultura, que lê, que é mãe, que se
articula a outras mulheres negras, que decide lutar por sua liberdade e resistir pelo povo negro.

Quando você segue as pegadas dos mais velhos,


aprende a caminhar como eles.

(Provérbio africano)

Os movimentos de Kehinde são ancorados na ancestralidade, nos saberes e nos afetos


compartilhados com outras mulheres negras. Parte de uma família matrifocal, as presenças e as
referências das mais velhas, no primeiro momento, da mãe e da avó, são constituintes e
constantes no ser Kehinde. Apesar de a morte da mãe integrar as primeiras memórias de Kehinde
em África – também atravessadas pela violência que mudará o rumo das personagens –, a figura
materna é um dos alicerces de sua identidade e do vínculo à ancestralidade.
Eu nunca tinha visto a minha mãe tão bonita. Ela tinha peitos pequenos, dentes
brancos e a pele escura que brilhava ainda mais por causa do ori. A minha mãe
cuidava dos meus cabelos e dos cabelos da Taiwo como cuidava dos dela, dividindo
em muitas partes e prendendo rolinhos enfeitados com fitas coloridas, que
comprava no mercado. (Gonçalves, 2017, p. 22).

As recordações de uma mulher bonita, alegre e independente mesclam-se à dor, ao amor, à


consciência de si; e estes são processos intrínsecos no corpo-memória que se constitui acionado
pela imagem de si, que é o reflexo da outra. Kehinde, tempos depois, ao deparar-se com a sua
imagem em um espelho, valoriza a sua beleza e se enxerga semelhante à mãe: “E assim foi até o
dia em que comecei a me achar bonita também, pensando de um modo diferente e percebendo o
quanto era parecida com a minha mãe” (Gonçalves, 2017, p. 84).

Presas no trânsito para um estrangeiro sem perspectivas e sem o entendimento do que as


esperava, Kehinde, Taiwo e Dúrójaiyé sofrem a objetificação de suas existências ao serem
colocadas como mercadorias, transladadas de um continente a outro, sob condições desumanas.
No cruzamento do Atlântico, ao mesmo tempo que a terra-mãe se distanciava, as referências
concretas de família e cultura dissipavam-se. Os prenúncios de que Kehinde chegará sozinha ao
Novo Mundo faz com que a avó Dúrójaiyé[30], já enfraquecida no porão do navio negreiro,
transmita a ela saberes-fundamento para a sobrevida no estranho estrangeiro.

Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as
histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que
eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para
eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos
voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de
Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da
obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. (Gonçalves,
2017, p. 61).

Há nesta representação imagética, que mistura despedida e conhecimento, uma recusa aos
padrões colonialistas e a estratégia de manter vivos referenciais africanos. Os ensinamentos de
Dúrójaiyé e a forma como Kehinde articulará estes movimentos representam as características
dos povos afrodiaspóricos que, segundo Barr (2017, p. 21), fundamentaram “sua identidade a
partir do território original, convertendo-o em ponto de referência sobre o qual se constroem
diferentes expressões de sua etnicidade e identidade”.

O sistema colonial e escravocrata, de maneira perversa, desumanizou a existência de pessoas


negras. A sobrevida de negras e negros diante do sequestro em distintas regiões do continente
africano, do aprisionamento nos navios negreiros, da chegada a um país estranho e das não-
condições para aqui existir, com o mínimo de dignidade, deu-se às custas de inúmeras formas de
resistência. Além disso, conforme bell hooks (2000), inseridos neste sistema, negros e negras
tiveram a capacidade de amar distorcida, uma vez que as condições para nutrir o crescimento
espiritual eram muito difíceis. Porém não impossíveis. A resiliência[31] foi a força-motriz para
ressignificar a fragmentação da subjetividade histórica de negras e negros.

Na experiência da afrodiáspora e na transmigração, muitas foram as formas como os corpos


negros se constituíram e se ressignificaram; e as relações estabelecidas a partir do afeto, do amor
e do cuidado configuraram-se também como movimentos de sobrevida. A perda de parentesco,
conforme Mbembe (2013, p. 68), foi consequência do confronto de negro com a realidade da
escravização, sendo, sobretudo, de ordem genealógica, pois “no Novo Mundo, o escravo[32]
negro é juridicamente destituído de qualquer parentesco, Ele é, de facto, um sem parentes. A
condição de sem parentes é lhe imposta pela lei e pela força”. É registro no corpo-documento[33]
de Kehinde muitos dos efeitos da migração forçada, que não são lineares. Contudo a capacidade
de fortalecer laços parentais, sejam consanguíneos ou comunitários, entre escravizados
constituiu-se como mecanismo para suportar as agruras da escravização, que também, enquanto
quilombos, foram “sistemas sociais alternativos, brechas no sistema escravista” (Nascimento,
1985, p. 121).

Kehinde, no primeiro ambiente enquanto escravizada na Ilha de Itaparica, esteve inserida em um


núcleo familiar voluntário em que a proximidade com as personagens Esméria, Nega Florinda,
Antônia, Rosa Mina estabeleceu relações de sobrevivência e acionou memórias da vida em
África, assim como de costumes e cultos à religiosidade e à ancestralidade. Na chegada à casa do
sinhô José Carlos, Kehinde depara-se com três escravizadas, duas delas a ignoraram; a terceira,
Esméria, foi a primeira mulher negra, no Brasil, com quem Kehinde formou vínculo afetivo.

Surgiu então uma terceira, mais velha e gorda, vestindo saia e blusa sujas de carvão,
que me ofereceu um bom pedaço de bolo e um copo de leite. Ela começou a
conversar comigo em português e eu respondia em iorubá [...]. Enquanto comia,
com gosto e fome, ela me olhava com pena e carinho, e quando devolvi o copo
vazio, falou em iorubá que eu tinha que aprender logo o português, pois o sinhô
José Carlos não permitia que se falassem línguas de pretos em suas terras, e que
qualquer coisa de que eu precisasse era para falar com ela, que se chamava Esméria.
E que também era para eu ficar com ela na cozinha até o anoitecer, quando me
levaria para a senzala pequena, onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa.
(Gonçalves, 2017, p. 74)

Desde o primeiro contato, quando Esméria acolheu Kehinde, estabeleceu-se uma relação de
amizade e cumplicidade que as acompanhou e foi marcante nas trajetórias das personagens. A
preocupação e o cuidado de Esméria com Kehinde demonstram o afeto de/entre mulheres negras
como fortalecedor, corroborando a premissa de bell hooks (2000): “o amor cura”. E o amor é
expresso através da união do sentimento e da ação. As demonstrações de cuidado de Esméria vão
além do acolhimento, que poderia ser típico para uma nova escravizada, e se evidenciam com
sentimentos reais de carinho. Há ternura nas palavras proferidas por Esméria; palavras que
exaltam a imagem de Kehinde como uma criança bonita e digna de amor e que intencionam
variadas formas de proteção possíveis.

Antes de o sol nascer, a Esméria me acordou e fomos até a praia, para que eu me
lavasse. [...] Depois do banho, a Esméria me deu roupas melhores do que o pano
que eu usava amarrado ao pescoço desde o desembarque [...] Eram roupas simples,
uma bata e uma saia comprida até o tornozelo, brancas. [...] A Esméria disse que as
minhas não eram roupas novas e nem para crianças do meu tamanho, mas estavam
bem conservadas e que depois perguntaria à sinhá se precisava providenciar outras,
já que eu ia ficar dentro da casa, onde os pretos não deviam fazer má figura. Ela
também disse que eu estava bonita e que não falaria mais comigo em iorubá, pois
eu precisava aprender logo o português. Alertou novamente que nunca, nunca
mesmo, eu poderia falar iorubá ou eve-fon perto do sinhô, da sinhá, da sinhazinha
ou do Eufrásio, pois seria castigada. (Gonçalves, 2017, p. 77).

O constante cuidado é materializado inclusive nos afastamentos de Esméria e Kehinde.


Quando esta é expulsa da Casa Grande pela Sinhá Ana Felipa e se esconde no mato, Esméria é
quem a alerta a ir para a Senzala Grande, uma vez que se fosse pega, seria considerada “preta
fujona”. Além dos aconselhamentos, Esméria dava-lhe comida. Vivendo na Senzala Grande,
Kehinde era força de trabalho na fundição.
Alguns dias depois, quando eu estava chegando da fundição, a Esméria apareceu
para me ver e dar um longo abraço com os olhos cheios de lágrimas, e comentou
que eu estava emagrecendo. Desde então, era comum encontrar me esperando na
baia alguns pães, bolo, ou mesmo leite, que a Esméria sabia ser do meu gosto, e que
eu sempre dividia com as minhas companheiras. (Gonçalves, 2017, p. 118).

Anos mais tarde, ainda que sejam sempre evidentes os laços afetivos, foi a partir da notícia da
morte de Esméria que a dor acionou em Kehinde a reconhecença da afeição e do apego àquela
que materializou, a partir do amor e do zelo, a possibilidade de pertencimento a uma família.
Kehinde narra, com pesar, estar distante fisicamente quando Esméria parte para o Orum[34]:

A pior sensação era de não ter dito o quanto gostava dela, quanto ela tinha sido
importante para mim, como mãe, avó e grande amiga [...]. A Esméria representava
tudo isso para mim, tudo que eu havia perdido antes de chegar ao Brasil. Eu tinha
viva na memória a imagem dela sentada ao meu lado, enquanto eu comia na porta
da cozinha, olhando para mim como se dissesse que, a partir daquele momento eu
estaria sob a responsabilidade dela, que ela tudo faria para que eu sofresse o mínimo
possível. (Gonçalves, 2017, p. 624).

Kehinde só se sentiu tranquila após sonhar que a sua avó falava da Esméria: “Não vi a Esméria,
mas pude saber que estava bem, que as duas estavam juntas” (Gonçalves, 2017, p. 624).

A proximidade de Kehinde com outras mulheres negras, durante toda a sua vida, e a maneira
como elas traçaram suas existências desvela a forma como o protagonismo feminino travou
embates contra as opressões que, de forma interseccional, arranjaram, notavelmente, os corpos
de mulheres negras em categorias de subserviência. O racismo foi a justificativa para o povo
negro ser escravizado, mas foi o sexismo fator determinante para que o destino das mulheres
negras fosse mais brutal do que o dos homens negros escravizados (hooks, 1981, p. 82). Assim,
de acordo com a historiadora Cecília Soares:

À mulher negra, contudo, devido a sua forma de inserção na sociedade escravista,


foi negada a sua condição precípua de mulher, tornando-a, dessa maneira, apenas
mais uma mercadoria senhorial. O cotidiano da mulher negra no mundo dos
homens, entretanto, impunha procedimentos que visavam a autoproteção e luta pela
sobrevivência. (Soares, 2001, p. 35).

Sob as condições de escravizadas, integralmente restritas de liberdade e frente às complexas


relações de trabalho e interpessoais, mulheres negras forjaram espaços e possibilidades de
(re)existência, na maioria das vezes, ancorados na religiosidade. Esses espaços,
concomitantemente, reconfiguraram as suas práticas culturas africanas, reavivando-as pela
memória e pela prática. Desta forma, os novos arranjos engendrados em diáspora constituíram-se
em práticas que atendiam a algumas das necessidades de negras e negros no contexto
escravagista. Acerca, especificamente, da mulher negra Soares (2001, p. 36) afirma que: “As
investigações acerca do seu cotidiano, embora mostrem que ela não era totalmente dona de sua
vida, apontam para papéis sociais conquistados com astúcia nas brechas pela escravidão, fazendo
emergir, a partir daí, vidas autônomas, conflitos, revoltas e algumas conquistas”. O contato com
Nega Florinda[35], que aparecia de vez em quando na fazenda e com quem Esméria conversava
bastante, consolidou uma nova possibilidade de Kehinde manter-se ligada à ancestralidade.

A Nega Florinda era das pessoas mais antigas da ilha, morava lá desde que tinha
chegado da África, ainda mocinha, e já era forra havia tanto tempo que ninguém
vivo se lembrava dela como escrava. Era muito velha e parecia saber todas as
histórias do mundo, desde que o mundo era mundo, como ela mesma dizia. Como
recontadeira, andava de casa em casa e recebia algum dinheiro ou mesmo sobras de
comida, que aceitava de bom grado antes de se agachar em qualquer canto e contar
histórias. (Gonçalves, 2017, p. 83).

Nega Florinda estabeleceu as pontes de articulação dos conhecimentos transmitidos pela avó no
navio negreiro e que foram ressignificados no Brasil. Assim como Dúrójaiyé, Nega Florinda
cumpre o papel de griot, os guardiões da tradição, que contavam histórias e disseminavam
aprendizados a partir da oralidade. Por ela, Kehinde entendeu que os voduns cultuados pela sua
avó eram de África e não tinha sido assentados no Brasil, no entanto, ela “poderia se valer dos
orixás para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Any i-ewo, Loko,
Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, tlegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã
e Olokum” (Gonçalves, 2017, p. 83). Nega Florinda – que prometera ajudar Kehinde, primeira e
principalmente, com o pingente de Taiwo[36] e a estátua de Ibejis – e Esméria viabilizam a ligação
de Kehinde com sagrado.

Logo na manhã seguinte, enquanto eu ajudava a Esméria a torrar e moer o café, a


Nega Florinda apareceu e, sem dizer nada além de um breve cumprimento, foi
embora depois de me entregar um embrulho com o pingente que todo ibêji que
sobrevive à morte do outro deve usar para conservar a sua alma, e mais uma
pequena escultura, também em madeira, representando os dois Ibêjis juntos.
Mostrei à Esméria e ela me levou de volta à senzala pequena [...] Ela me ajudou a
cavar um buraco no local onde estava a minha esteira, suficientemente fundo para
atingir a base da parede que entrava para dentro da terra, e deixando um oco, como
se fosse uma caverna. Foi assim que descobri como os pretos guardavam os seus
santos, escondidos dos olhos dos brancos (Gonçalves, 2017, p. 90).

Nas imagens em que são transmitidos os conhecimentos ancestrais para Kehinde estão traduzidas
as ações fundamentais como africanas/os escravizadas/os mantiveram a união entre si, entre
passado e presente, entre África e Brasil e forjaram, em diáspora, o culto às crenças e à
ancestralidade:
Eu era muito nova mas já pensava nisto tudo, e pensava no que tinham me falado a
minha avó, a Nega Florinda e depois a Agontimé sobre cada um de nós ter uma
missão. Elas também tinham dito que a minha seria importante, e pedi a Oxum, a
Xangô, a Nana e aos Ibêjis que me ajudassem a saber qual era, pois, fosse o que
fosse, não seria mais difícil de cumprir do que viver como escrava pelo resto da
vida. (Gonçalves, 2017, p. 148).

A presença e força de Oxum é, nos caminhos de Kehinde, uma imagem-potência e definirá a


relação da personagem com o orixá e com outras mulheres negras: “fiquei sabendo que tinha
uma Oxum muito visível e poderosa na cabeça, a quem deveria honrar, agradecer e pedir
proteção” (Gonçalves, 2017, p. 119). A personagem, que carrega em seu Orí[37], Oxum – sendo
que “Osum representa aquela que tem autoridade no espaço público-privado para reivindicar em
nome da comunidade” (Akotirene, 2018, p. 27) – agenciou, em terras da diáspora, pontos de
resistência ao sistema escravocrata, seja na subsistência do culto aos voduns e orixás e do culto à
memória da família, seja na luta pela liberdade e na disputa pelo estar e permanecer em espaços
orientados por valores colonialistas.

No encontro de Kehinde com Agontimé, que fora rainha em Abomé e desembarcada como
escravizada na Bahia, há a valorização do corpo que perde sua posição. A rainha Agontimé
conhecera a avó de Kehinde e é mais umas das mulheres que lhe mostrará a importância da fé, da
força e da ancestralidade para a sobrevivência, assim como da permanência dos vínculos com o
seu povo.

A mulher se apresentou a nós como Maria Mineira Naê e disse que em África tinha
outro nome, Agontimé. Foi então que eu percebi que estava frente a frente com a
rainha de Abomé, sobre quem muitas vezes tinha ouvido a minha avó falar,
realçando a sua bondade com o povo e a dedicação aos voduns. Da história que
ouvi em seguida, sou capaz de me lembrar de cada entonação da voz dela, de cada
detalhe. Assim como a minha avó, a Agontimé tinha saído de Abomé quando o rei
Adandozan subiu ao trono do reino do Daomé. (Gonçalves, 2017, p. 131).

Agontimé, era mina-jeje, ou só Jeje, e seu povo fora levado para o Maranhão. A rainha, que
cultuava os voduns, foi escravizada nas fazendas de cacau e algodão; posteriormente vendida
para fazendeiros em Minas Gerais, onde aprendeu com outros escravizados a esconder pó de
ouro. Esta foi a estratégia para conseguir comprar a sua alforria, viajar para o Maranhão e, lá,
assentar os seus voduns. Agontimé, ao reconhecer Kehinde como descendente de alguém que
conhecera, figura mais um cenário de estima à mulher forte que fora Dúrójaiyé e profere palavras
da certeza de que Kehinde encontrará o seu caminho. Ademais presenteia Kehinde com uma
estátua de Oxum, mais adiante Kehinde encontrará, dentro da estátua, ouro suficiente para
comprar a sua alforria e a do filho Banjokô.

Depois, me deu de presente uma linda Oxum de madeira, quase igual à que a minha avó tinha em
Savalu. Disse que era a deusa da fertilidade, da prosperidade, para que as minhas ideias e os
meus atos encontrassem terrenos férteis para crescer vitoriosos. E que em algum momento,
apesar de todos serem importantes, mas que em algum momento muito mais importante do que
outros, Oxum muito me valeria. (Gonçalves, 2017, p. 135).

O fortalecimento a partir das relações de/entre mulheres negras concretiza-se também pelo
reconhecimento na outra. Anos mais tarde, a ansiedade de Kehinde para rever Agontimé marcam
os traços do reconhecimento de uma majestade retirada de seu trono: “Eu me lembrava da
sensação de estar perto da Agontimé, uma mulher mais forte e mais sábia do que todas as que eu
já tinha conhecido, uma rainha em África e no Brasil, e queria muito agradecer o presente que ela
tinha me dado” (Gonçalves, 2017, p. 593). O reencontro com Agontimé, no Maranhão, é narrado
com admiração e agradecimento:

Quem apareceu foi a própria Agontimé, e apesar de todos os anos passados desde o
nosso encontro, não tive dúvida de que era ela. Estava ainda mais bonita, vestindo
uma blusa branca e uma saia estampada que ia até os pés descalços, e os cabelos
estavam cobertos por um lenço, também branco. A Agontimé era alta, magra, e
mesmo de longe podia-se ver que era uma rainha, onde quer que estivesse. Fiquei
olhando para ela, achando que não ia me reconhecer, mas antes de falar qualquer
coisa, ela se ajoelhou e saudou o vodum da minha avó. (Gonçalves, 2017, p. 595-
596).

No agradecimento de Kehinde pelo presente: “agradeci muito pela Oxum, contando o quanto
tinha sido importante”, a escuta atenta de Agontimé é seguida por uma revelação: “e ela disse
que, na verdade, não tinha planejado me dar toda aquela fortuna, que conseguira com muito
trabalho e que seria usada na construção da Casa das Minas[38]“ (Gonçalves, 2017, p. 596). A
história contada por Agontimé não teve a intenção de fazer com que Kehinde se sentisse culpada
e, sim, lhe mostrar que o destino é capaz de reservar boas surpresas. Há na conversa “colocada
em dia”, o ensinamento, o cuidado e o afeto entre mulheres negras.

II
Cabe destacar ainda a constituição identitária de Kehinde a partir do protagonismo coletivo de
mulheres negras que se articularam em torno de confrarias e irmandades religiosas. Quanto às
irmandades femininas negras, Jurema Werneck pontua:

Estas eram associações religiosas abrigadas no interior dos rituais cristãos,


especialmente na religião católica hegemônica no período escravocrata. E tiveram
grande importância no estabelecimento de condições materiais de subsistência para
as mulheres de diferentes etnias africanas e para as afro-brasileiras. Bem como
propiciaram as articulações necessárias para o confronto ao regime da época,
inclusive para as ações e estratégias políticas de massa, como as revoltas urbanas
que antecederam a derrubada do regime. (Werneck, 2009, p. 156)

Kehinde conhece Esmeralda, liberta, e Jeje, era responsável por uma confraria – “que também
podia ser chamada de cooperativa, junta, irmandade ou sociedade” (Gonçalves, 2017, p. 297).
Kehinde então se associa, a fim de conseguir comprar a sua liberdade e a do filho Banjokô.

Eu me surpreendia com arranjos que se podia fazer para conseguir a liberdade, e


nem imaginava que naquela época ainda não sabia de quase nada, ainda não tinha
tomado conhecimento de um mundo às escondidas vivido pelos pretos e crioulos,
forros ou não. O que eu tinha que fazer, era pagar cinco mil réis para mim e cinco
mil para o Banjokô e continuar com o pagamento mensal de pelo menos quinhentos
réis, mais o que eu pudesse conseguir. Quanto mais pagasse, mais pressa poderia
acumular a quantia de que precisava para comprar as cartas. (Gonçalves, 2017, p.
297).

Esta confraria, situada na Barroquinha, em São Salvador, era, preferencialmente, composta por
mulheres, “já que as outras confrarias eram formadas por muitos homens, e as mulheres tinham
algumas ideias diferentes, preocupações bastante próprias, como o cuidado com o futuro dos
filhos”. (Gonçalves, 2017, p. 297).

O funcionamento da confraria era responsabilidade de um chefe, que no nosso caso


era uma chefe, a Esmeralda, com conhecimento e controle de tudo que acontecia,
sendo ela também quem decidia sobre os problemas que não estavam previstos,
fazendo com que essa decisão passasse a ser parte do estatuto. Ela era ajudada por
uma responsável pela guarda da caixa dos empréstimos, uma nagô chamada
Aparecida, de inteira confiança da Esmeralda e sua antiga conhecida. (Gonçalves,
2017, p. 299).
Fazer parte da confraria possibilitou a Kehinde, além do fortalecimento identitário e coletivo, o
fortalecimento político. Surgem, naquele momento, os indícios da transfiguração nas redes de
apoio; os movimentos que beneficiam Kehinde possibilitarão, no decorrer de sua história, que ela
seja agente na rede de apoio a seus pares: “Fui também à Barroquinha, conversar com a
Esmeralda e levar mais algum dinheiro, pequeno, mas qualquer quantia que eu conseguisse
guardar poderia ser de grande ajuda, como de fato ficou provado alguns anos mais tarde”
(Gonçalves, 2017, p. 413). Ademais as redes com outras mulheres ampliam-se à medida que
Kehinde toma conhecimento das articulações que se subsidiavam com o protagonismo feminino.

Fiquei sabendo de uma série de novidades, como uma casa de culto aos orixás,
chamada de Casa Branca, que estava sendo aberta por uma ialorixá liberta chamada
de ly álusò Danadana. As mulheres também estavam se organizando para fundar
outra irmandade, a de Nossa Senhora da Boa Morte. (Gonçalves, 2017, p. 413).

Tempos depois, em sua chegada à cidade de Cachoeira, Kehinde conhecerá a Irmandade da Boa
Morte. Ainda que não tenha feito parte, fica evidente o seu interesse e o reconhecimento do valor
da irmandade.

Embora a Irmandade da Boa Morte fosse fundada em torno de um culto católico, o


de Nossa Senhora, havia muito das crenças africanas, segredos que só eram
revelados para as irmãs. De conhecimento de todos, sabia-se apenas que a
Irmandade organizava a festa no mês de agosto, levantava fundos para a compra de
cartas de alforria e organizava os enterros de suas irmãs, mas, às escondidas, ela
protegia e encaminhava pretos fugidos. Devia haver outras funções, mas não fiquei
sabendo. [...] As irmãs de São Salvador disseram que, para ser aceita na Irmandade,
a candidata tinha que ser preta, frequentar alguma casa de culto de orixás e ter mais
de cinquenta anos, além de já ter demonstrado grande zelo por Nossa Senhora. [...]
Observei que assim elas acabavam formando uma grande família, já que as
iniciadas tinham que conhecer a apresentante. Isso explicava por que entre aquelas
mulheres só havia eves, nagôs e ketus, que, além de irmãs no santo e parentes,
também se tornaram irmãs na devoção, e foi só algum tempo depois, em África, que
entendi como estas relações eram importantes, não só no Brasil, mas também lá,
entre os que retornaram. (Gonçalves, 2017, p. 610).

As irmandades, enquanto territórios negros, para Albuquerque (2006, p. 111), “eram espaço de
reforço dos laços de solidariedade, ao mesmo tempo em que propiciavam a recriação de tradições
da África”. Estes também estavam interligados aos espaços religiosos como relata Kehinde:
“comecei a me interessar mais pela religião dos pretos da Bahia, que se reuniam em diversos
locais, principalmente em torno das confrarias” (Gonçalves, 2017, p. 497). A formação de
espaços materiais e simbólicos, como confrarias, cultos religiosos[39] de origem africana,
insurreições, foram estratégias utilizadas por negras e negros para enfrentar a repressão e se
defender diante das condições desfavoráveis de negação da cidadania. Afirma Maria Salete
Joaquim (2001, p. 26) que:

Peças importantes desta estratégia de defesa parecem estar na ordem do segredo e


do sagrado, isto é, a preservação, a guarda zelosa de áreas proibidas ou interditadas
estranhos, a criação de códigos específicos ao grupo, a manipulação do mistério e
do misterioso, criando uma zona geradora de medo, fonte de perigo potencial para o
outro.

Desta maneira, a trajetória de negros e negras inseridos no contexto escravocrata foi marcada
pelo “binômio repressão/resistência cultural” (Joaquim, 2001, p. 25). No que concerne às
práticas religiosas, o Candomblé foi uma das formas de resistência e preservação das identidades
negras. De acordo com Sodré (2002, p. 58) “da solidariedade nascida entre os cativos durante a
travessia do Atlântico, assim como os ‘antigos’ dos cultos baianos falam de um intercâmbio
profundo entre os terreiros, capaz de passar por cima de velhas divisões étnicas”. Segundo a
personagem Kehinde:

Os nagôs e iorubás eram numerosos e estavam espalhados por toda a cidade, e


tinham levado para o Brasil quase todos os orixás que cultuavam em África. Havia
casas de pretos da mesma nação que cultuavam apenas um orixá, o da própria tribo,
mas também havia casas frequentadas por muitas nações, onde vários orixás eram
cultuados, e por isso recebiam o nome de candomblés. (Gonçalves, 2017, p. 502).

Seja no culto aos orixás ou aos voduns, foram marcantes as presenças de mulheres que, enquanto
protagonistas em espaços ligados à religiosidade, conduziram e apoiaram Kehinde.
Considerações (quase) finais – Ubuntu: “eu sou porque nós somos”

Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande
qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar
do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado
com tanto êxito.

(Gonçalves, 2017, p. 893).

Um defeito de cor nos permite o entendimento acerca do corpo da mulher negra construído e
distribuído sob discursos hegemônicos em um contexto social escravocrata e patriarcal.
Historicamente, nossos corpos negros estiveram sujeitos à desumanidade e à objetificação,
produtos da escravidão. A objetificação e a negação da mulher negra foi instrumento de
dominação e opressão que anula o poder sobre si e a condena à hipersexualização e à violência.
As cenas construídas por Gonçalves (2017) acionam passado e presente e, assim, processam e
provocam em nós, mulheres negras, a identificação e a dor da violência em nossos corpos que,
do passado escravagista ao século XXI, não se modificou, apenas se remodelou. Assim, em Um
defeito de cor, Ana Maria Gonçalves ecoa e traça rotas que conduzem a experiências subjetivas e
que remontam às memórias – individuais e coletivas – de mulheres negras que se ressignificaram
na atroz afrodiáspora forçada.

As análises possíveis neste artigo – tendo em vista que a riqueza da obra é matriz para muitas
perspectivas – foram discorridas sob o olhar de uma mulher negra que, diante desta magnitude
literária, encontra e reencontra outras mulheres negras. Embora distantes em um espaço-tempo,
estas mulheres seguem unidas por histórias entrecruzadas. Na afrografia Um defeito de cor, há a
inscrição de vivências e de saberes que compõem as vias de confluência de forças que
possibilitaram a sobrevivência de mulheres negras. Por isso é uma leitura tão cara a nós, negras
mulheres.

Sobreviver ao sistema escravagista custou a negras/os escravizadas/os a ruptura e a restruturação


de costumes, vínculos parentais, tradições. As interrelações de mulheres negras explanadas em
Um defeito de cor configuraram redes de apoio, individuais e/ou coletivas (como, por exemplo,
nas irmandades) fundamentais para a sobrevivência física e identitária de Kehinde. Esméria, por
exemplo, operou no fortalecimento de Kehinde em diversas instâncias, desde os cuidados para
que Kehinde não morresse de fome até os alicerces culturais, espirituais, afetivos; Nega Florinda
e Agontimé estabeleceram com Kehinde conexões com o secreto e o sagrado; o encontro de
mulheres nas irmandades inspiraram e alargaram as redes também amparadas na proteção e no
amor.

É importante salientar que o amor foi aqui entendido como uma chave de sobrevivência e lido
em Um defeito de cor como ações de cuidado, de auxílio, reconhecimento de si e fortalecimento
da existência coletiva. Deste modo, cabe considerar que Um defeito de cor transmite a filosofia
Ubuntu, “eu sou, porque nós somos”, uma vez que explana as articulações empreendidas por
mulheres negras e que ecoam no presente, bem como as possibilidades de luta contra uma
sociedade que ainda carrega vestígios coloniais.
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http://books.openedition.org/iheid/6316. Acesso em: 10 set.2019.
Ancestralidade feminina negra e laços entre mulheres em Um defeito
de cor
[40]
Dulcilei da Conceição Lima

Este texto é parte da dissertação de mestrado que defendi em 2011 na Universidade Presbiteriana
Mackenzie. A pesquisa não estava centrada no romance de Ana Maria Gonçalves, mas na figura
enigmática que a autora elegeu para protagonizar seu livro: Luíza Mahin. Estudei o modo como a
mãe de Luiz Gama foi construída por meio de múltiplas vozes e linguagens, mas especialmente
na literatura desenvolvida por mulheres negras feministas através de décadas. Dessa forma, o
romance de Ana Maria Gonçalves, narrativa mais completa já feita sobre Luíza Mahin, era
essencial para minha análise.

Surgido a partir da organização de coletivos de mulheres negras entre o final da década de 1970
e o início dos anos 1980, o Feminismo Negro buscou agregar duas das discussões fundamentais
que emergiram no final dos anos sessenta na reivindicação de uma identidade coletiva: as
categorias de raça e gênero. Os processos históricos comumente fornecem os subsídios para a
constituição da identidade e quando há falta de elementos suficientes nessa esfera, recorre-se
frequentemente ao imaginário. História e imaginário fornecem assim, o arcabouço simbólico
necessário à proposição de novos referenciais identitários.

A partir do que denomina como “comunidade imaginada”, Hall (2006) argumenta que as
culturais nacionais (como coletividades menores ou países inteiros) inventam tradições que
possam corrigir as “confusões e os desastres da história”. De modo a ilustrar seu raciocínio, o
sociólogo apresenta os “mitos fundacionais”, que:

[...] ajudam povos desprivilegiados a “conceberem e expressarem seu ressentimento


e sua satisfação em termos inteligíveis” […]. Eles fornecem uma narrativa através
da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da
colonização, pode ser construída (Hall, 2006, p. 55).

O retorno ao passado mítico ou histórico fornece elementos para composição de uma identidade
situada entre um tempo de glórias e a perspectiva de um futuro igualmente vitorioso. Segundo
Stuart Hall (2006, p. 85), a formulação de “identidades mais defensivas, em resposta à
experiência de racismo cultural e de exclusão” utiliza como estratégias, dentre outras, a “re-
identificação com as culturas de origem”. Explica-se dessa forma a razão pelas quais as
organizações negras brasileiras, nas últimas décadas do século XX, o Feminismo Negro entre
elas, empreenderam um projeto de “construção de uma memória negra” que lhes permitisse
“formar uma identidade comum” fundamentada na resistência à escravidão e nas tradições
culturais africanas, tendo como objetivo a promoção da auto-estima coletiva (Souza, 2007). Esse
projeto político-ideológico se pautou na recuperação e “exaltação” de histórias de indivíduos
negros considerados “relevantes”. Sendo assim, foram privilegiadas histórias que pudessem ser
confrontadas com a imagem tradicional do negro “vitimado, passivo, submisso e refém da
história” (Souza, 2007, p. 16; 30).

Histórias de resistência foram surgindo e rapidamente foram elevadas à categoria de “tradição”


do povo negro. Entretanto, apenas a reformulação do passado histórico não era suficiente para
realizar as mudanças almejadas pelo movimento negro, havia a necessidade de garantir que tais
informações chegassem à maior parte da população brasileira e, principalmente, que elas fossem
compreendidas e assimiladas. Os mecanismos simbólicos foram considerados ferramentas
primordiais para o alcance desses objetivos. Conforme Mônica Souza:

O símbolo é matéria de fácil assimilação e compreensão, capaz de traduzir histórias


e valores e penetrar com rapidez no imaginário social, especialmente naqueles que
estão engajados na disseminação de novos sentidos. Pensando a partir de uma
concepção de identidades plurais, houve uma ampliação do significado de “ser
negro”, mas, de modo geral, as possibilidades apresentadas quase sempre
referendavam o ethos guerreiro, que oferecia novas formas de se enxergar e de se
inserir no mundo (Souza, 2007, p. 31).

As “tradições africanas” recuperadas pelo movimento negro estão basicamente centradas no


universo nagô através da valorização da língua yòrúba e de sua religiosidade, como pode ser
constatado nos inúmeros discursos sobre Luíza Mahin. Mesmo aqueles que a apontam como jeje
– casos da cartilha Mulher Negra tem história, do poema de Alzira Rufino e do romance Um
defeito de cor[41] – a associam de alguma forma aos nagôs por meio de elementos religiosos, de
aglutinações étnicas e outros aspectos[42].

A centralidade da cultura nagô se deve a pesquisadores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos
que dispuseram hierarquicamente alguns povos africanos classificando uns como mais
“desenvolvidos” que outros. Os yòrúbas foram alçados à posição de destaque nesse cenário,
situação que “James Matory denominou como nagocentrismo” (Oliveira Junior, 2010, p. 125).
Desde a década de 1930, os estudos acadêmicos sobre a cultura africana e afro-brasileira têm
sido determinados por esse viés. Essa constatação obriga a reflexão sobre a relação entre
militância negra e academia, que segundo João Borges Pereira (1999) é um fenômeno das
últimas décadas do século XX:

A terceira fase, que é a atual, ganha corpo com o surgimento de uma


intelectualidade negra ligada à academia e recrutada de uma classe média, já bem
visível, que, independentemente ou não de movimentos organizados, procura
manter forte esse diálogo, tomando às vezes a iniciativa, ao defender teses e colocar
questões sobre o grupo negro nas agendas dos estudiosos. Nesse tipo de relação
militância-academia, o negro deixa de ser apenas o informante de experiências
históricas e cotidianas do seu grupo para ser até mesmo o condutor, direto ou
indireto, da própria reflexão acadêmica (Pereira, 1999, p. 256).

Como mito Luíza Mahin pode, a qualquer tempo, ser atualizada conforme as necessidades do
grupo e do contexto. O romance Um defeito de cor é um bom exemplo desse argumento, uma
vez que nele a africana assume diversas características distintas próprias do século XXI. O fato
de ter se tornado empresária enriquecida, adquirido conhecimentos da língua inglesa e ter
enviado os filhos para estudar na França, fornece novas configurações ao mito bem como novos
referenciais identitários para as mulheres negras. Dessa forma, Ana Maria Gonçalves executa de
modo mais complexo um movimento que já vinha sendo feito, em certa medida, pelas feministas
negras desde o início da década de 1980: a atualização do mito. Essa modernização atende aos
apelos para uma identidade alocada no recente cenário brasileiro, como a ampliação do acesso da
população negra no ensino superior, entre outros.

A Luíza Mahin de Ana Maria Gonçalves pode ser entendida na perspectiva de Stuart Hall
(2006), como um produto das “novas diásporas”. Os indivíduos resultantes desse processo
devem “aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a
traduzir e a renegociar entre elas” (Hall, 2006, p. 89). A personagem construída por Ana Maria
corresponde perfeitamente a esse perfil. Um exemplo disso, é o fato de que ao longo da trama ela
apresenta três nomes diferentes e cada um deles corresponde ao modo como interpretava a si
mesma inserida naqueles espaços. Assim, Luíza Mahin se situa estrategicamente entre o passado
e o futuro, entre a tradição e a modernidade. Segundo Heloísa Gomes (2004):

A escrita (da mulher) negra é construtora de pontes. Entre o passado e o presente,


pois tem traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural o saber e a
experiência de mulheres através das gerações. […] Assim, a palavra é por elas
utilizada como ferramenta estética e de fruição, de auto-conhecimento e de alavanca
do mundo. Quando literatura propriamente dita, e dada a densidade metafórica da
construção ficcional e poética, a escrita de que falamos produz mundos alternativos
solidamente fincados na realidade social. Essa escrita de mulheres constrói pontes,
também, entre domínios tradicionalmente apartados, como a cultura erudita e a
popular - em grande parte porque a textualidade africana tem como referência
matricial a oralidade, cujo manancial alimenta e marca a sua descendência (Gomes,
2004, p. 14).

Aline Gonçalves (2010) argumenta ainda que a autora de Um defeito de cor buscou:

[…] resgatar histórias singulares, reproduzindo sentimentos, fantasias e aspirações


sem, contudo, se desvencilhar da utilização de fontes documentais, o que é
evidenciado pela apresentação de referências bibliográficas e fontes primárias ao
final do texto, artifício que se faz presente em romances históricos para convencer o
leitor da autenticidade do escrito. Certamente, esta foi uma estratégia da autora para
dar credibilidade ao seu produto, cuja leitura vincula o indivíduo ao contexto
narrado (Gonçalves, 2010, p. 76).
Luíza Mahin: O papel do mito na identidade coletiva

O romance, segundo de Ana Maria Gonçalves, é narrado por Kehinde[43] (nome africano que a
escritora atribuiu à Luíza Mahin), onde a protagonista já idosa, conta em primeira pessoa sua
própria vida enquanto faz uma viagem a bordo de um navio a caminho do Brasil, onde pretendia
reencontrar seu filho.

Luíza Mahin/Kehinde recorre à memória para narrar ao filho os eventos de sua vida. Consciente
do estágio avançado de sua doença (a mesma que vitimaria Luiz Gama em 1882), Kehinde sente
que não conseguirá desembarcar em solo brasileiro, mas espera que sua companheira de viagem
consiga entregar ao filho a carta escrita no trajeto. Ana Maria Gonçalves faz, dessa forma, uma
clara referência à carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça[44], documento que deu vida à
própria Luíza Mahin.

Ana Maria Gonçalves recorre à historiografia aliada à ficção na construção de sua narrativa[45]
(como fez Pedro Calmon décadas antes, conforme abordo mais adiante). No prefácio a autora
cria um artifício de veracidade à sua história ao afirmar ter possivelmente encontrado
documentos comprobatórios da existência de Luíza Mahin, bem como de sua atuação no Levante
dos Malês. Justifica o romance como sendo o resultado da transcrição desse documento, mas que
teria preenchido algumas lacunas deixadas pela precariedade do documento puído pelo tempo:

Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda
inventada – embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis ou nas
folhas perdidas […]. Se eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria
nunca seria contestada, pois ninguém até então sabia da existência dos manuscritos,
nem em Itaparica nem alguns dos historiadores de Salvador para quem os mostrei
(Gonçalves, 2009, p. 16).

Aos seis anos de idade, Kehinde vivia com sua mãe, avó, irmão e irmã-gêmea em Savalu (cidade
da região Mahi). Após a morte da mãe e do irmão, assassinados por guerreiros do reino de
Adandozan[46], segue com o que restou da família para Uidá (Benin). Nessa cidade, Kehinde, a
avó e sua irmã Taiwo[47] são capturadas por traficantes de escravos e embarcadas num navio
negreiro. No navio, silêncio, choro, lamento, fome, sede e doenças compõem o cenário de horror
que se completa com a morte de muitos dos indivíduos que ali estavam, entre eles a avó e a irmã
de Kehinde. Ainda no navio a menina estabelece os primeiros contatos com os Malês, chamados
também de Muçurumins. Antes de desembarcar em solo brasileiro, Kehinde cria um artifício
para escapar ao batismo cristão. Ela temia que recebendo um outro nome, seus ancestrais,
voduns[48] e orixás, não mais a reconhecessem e deixassem de zelar por ela. No momento da
venda, ao ser questionada sobre seu nome cristão, a menina usa o nome dado a uma mulher que
cuidou dela no navio após a morte de sua avó:

A Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para os
brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O
nome que minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns,
por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo
(Gonçalves, 2009, p. 72).

Após a venda vai viver na ilha de Itaparica como escrava de companhia da filha de seu senhor.
Na fazenda entra novamente em contato com os africanos islamizados e aprende a ler com um
deles, Fatumbi, o professor da sinhazinha.

Tanto a sinhazinha Maria Clara quanto Fatumbi se tornaram grandes amigos de Kehinde na vida
adulta. Por meio de Fatumbi é que Kehinde se envolve na rebelião malê. Seu primeiro filho,
Banjokô, é fruto da violência sexual a que foi submetida pelo sinhô quando ainda era
adolescente. Após a morte do patriarca a família se muda para Salvador. Nessa cidade, Kehinde é
alugada para uma família de ingleses, onde aprende a língua, um pouco da culinária do país e
estabelece novos contatos com os muçurumins. Os conhecimentos adquiridos nessa ocasião se
mostraram essenciais quando se tornou ganhadeira. “Os cookies eram gostosos, fáceis de fazer, e
eu não estaria tirando a freguesia de ninguém, já que ninguém vendia cookies pelas ruas, e nem
eram muitas as pessoas que sabiam fazê-los, o que aumentava a possibilidade de ter mais
fregueses” (Gonçalves, 2009, p. 247).

Sua atividade como ganhadeira permite criar vínculos com escravos, libertos, africanos de
múltiplas etnias, portugueses donos de estabelecimentos e até um padre alemão. Nessa condição
conhece aquele que seria o pai de seu segundo filho, mas não revela seu nome:

Vou chamá-lo de Alberto porque não sei a quantas pessoas ele disse o nome
verdadeiro, pois nem a mim disse, preferindo ser chamado pela alcunha, que
também não vou revelar. Sei o nome certo de ouvir falar, nas poucas vezes em que
estive com ele perto de quem o conhecia. Mas fiquemos com Alberto, porque a essa
altura um nome já não tem importância alguma (Gonçalves, 2009, p. 322).

Consegue sua liberdade a partir de um plano audacioso e astuto. Assim que fica livre descobre a
gravidez e vai viver com Alberto num sítio onde passa a dar abrigo a escravos fugidos. Com o
companheiro abre uma padaria, onde Fatumbi também viria a ser sócio. Com o fim do negócio,
aluga o imóvel para os muçurumins que usam o local para as reuniões de preparação do levante.
Após o fracasso da rebelião malê e da Sabinada, Kehinde foge para Itaparica receando ser presa
mais uma vez por suspeita de envolver-se nas revoltas de escravos. De Itaparica segue para o
Maranhão, para um tipo de retiro espiritual na Casa das Minas. Ao retornar à Bahia Kehinde
toma conhecimento do desaparecimento do filho Omotunde/Luiz Gama (Banjokô já havia
falecido há algum tempo). Na esperança de localizar o menino segue até os estados de São Paulo
e Rio de Janeiro. Sem esperanças de encontrá-lo decide retornar à África.

De volta ao continente africano casa-se, tem outros filhos, conhece o Chachá[49] e funda uma
construtora, a Casas da Bahia[50]. Enriquecida envia os filhos para estudar na França. Já viúva e
bastante doente, embarca contra a vontade dos filhos num navio rumo ao Brasil, após descobrir
cartas antigas que davam como certa a localização de Luiz Gama em São Paulo. Cega devido ao
diabetes incumbe sua companheira de viagem, Geninha (que considerava como filha) de fazer o
registro de suas memórias e fazê-lo chegar até seu filho.

O romance percorre oitenta e quatro anos da vida de Luíza Mahin e perpassa uma série de
eventos históricos como a Independência do Brasil, a proibição do tráfico negreiro entre outros,
faz inúmeras referências a elementos da cultura africana e afrobrasileira como o Candomblé, a
Casa das Minas, os Eguns, e mesmo a nomes de origem africana e seus significados como o de
Luiz Gama, batizado como Omotunde que significa “a criança voltou” (Gonçalves, 2010, p. 69).

Tal como mencionado por Luiz Gama na carta autobiográfica, Kehinde nega o batismo cristão e
se mantém pagã, “resistindo à aculturação e exaltando a identidade africana” (Gonçalves, 2010,
p. 64). Os diversos mecanismos de resistência utilizados pelos escravizados são constantemente
mencionados pela personagem. Aline Gonçalves (2010) afirma que a autora utiliza esse recurso
para demonstrar que a condição de cativo nunca foi aceita pelos africanos, que desde o início
buscaram formas de escapar à escravidão.

A inteligência e a perspicácia teriam sido para Luíza Mahin, assim como para seu filho, a
alternativa encontrada para superar os obstáculos impostos pela escravidão, bem como para obter
a liberdade, conseguida em ambos os casos por meio da sagacidade[51]. Dessa forma, como
observa Aline Gonçalves (2010) a Luíza Mahin de Ana Maria é em muitos aspectos distinta da
personagem construída por Pedro Calmon: “desde o princípio desta obra, é fácil perceber que, no
plano psicológico, a narradora-personagem é dotada de características ausentes ou contraditórias
em relação àquelas atribuídas por Calmon à Luiza Princesa” (Gonçalves, 2010, p. 64).
Pedro Calmon publicou em 1933 o romance histórico Malês: a insurreição das senzalas,
romance que mistura história e ficção. Calmon fez de Luíza Mahin sua protagonista e a intitulou
princesa, no romance ela é tratada como Luiza Princesa e seria nomeada rainha após a vitória dos
insurretos. O autor situa Luiza numa posição central, como uma das lideranças da revolta, seria
ela a responsável pela articulação entre africanos islamizados, nagôs, minas e outros, tendo,
portanto, acesso a vários espaços e grupos. Em sua casa estocava armas, fazia os batuques do
candomblé e organizava reuniões para a preparação da grande rebelião (Calmon, 2002). Sobre o
romance de Calmon, afirma Reis: “este historiador pintou o retrato mais completo, embora
fictício e insuportavelmente preconceituoso, de Luiza Mahin (Reis, 2003, p. 302). Pedro Calmon
constrói sua Luiza Mahin a partir do que Reis (2003) chama de “imaginário senhorial”, seria,
portanto, uma negra ardilosa, promíscua, que usava de seus atributos físicos e da sensualidade
para atingir seus objetivos.

A opção de Ana Maria Gonçalves em respeitar o desejo expresso por Luiz Gama na carta, não
atribuindo um nome ao pai, mas mantendo a incógnita a esse respeito, é um dos muitos
mecanismos criados pela escritora na tentativa de estabelecer um diálogo direto entre Um defeito
de cor e a Carta a Lúcio de Mendonça, colocando mãe e filho frente a frente, como se as
informações estivessem sendo confrontadas. As memórias de Luíza Mahin preenchem, assim, as
lacunas na carta de Luiz Gama. Tais artifícios utilizados pela autora contribuem para o
fortalecimento, poderíamos mesmo dizer renovação, do mito sobre a africana insurreta.

Acerca da relação entre mito e literatura, Mircea Eliade (2007) faz a seguinte consideração:

Sabe-se que, assim como outros gêneros literários, a narrativa épica e o romance
prolongam, em outro plano e com outros fins, a narrativa mitológica. Em ambos os
casos, trata-se de contar uma história significativa, de relatar uma série de eventos
dramáticos ocorridos num passado mais ou menos fabuloso (Eliade, 2007, p. 163).

O filósofo afirma ainda que nas “sociedades modernas” o romance ocupou o lugar antes
destinado a narrativa mítica (Eliade, 2007). Entretanto, o mito não teria deixado de ser
importante no imaginário coletivo, apenas teria assumido formatos condizentes com a
modernidade:

É difícil conceber um ser humano que não se sinta fascinado pela “recitação”, isto é,
pela narração dos eventos significativos, pelo que aconteceu a homens dotados da
“dupla realidade” dos personagens literários (que refletem a realidade histórica e
psicológica dos membros de uma sociedade moderna, dispondo, ao mesmo tempo,
do poder mágico de uma criação imaginária) (Eliade, 2007, p. 164).
Eliade (2007) considera ainda, que o tempo ou o afastamento da realidade objetiva
proporcionado por ele, é o elemento que mais aproxima a função da literatura da função do mito:

O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo que o


membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os
casos, porém, há a “saída” do tempo histórico e pessoal, e o mergulho num tempo
fabuloso, trans-histórico. O leitor é confrontado com um tempo estranho,
imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu
próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo
primordial dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o
romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante condensado ou
dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos
imaginários (Eliade, 2007, p. 164).

Ana Maria Gonçalves recorre a uma ampla variedade de elementos míticos para compor sua
narrativa[52]. A maior parte desses elementos são evidentes, como as referências aos orixás,
aspectos diversos da cultura tradicional africana e de modo ainda mais explícito a narração de
mitos de fundação, mitos cosmogônicos e de estruturação sócio-política. Mas, há ainda um
universo mítico menos evidente, como a situação em que se dá a narrativa. A protagonista
encontra-se dentro de um navio, portanto em alto mar; e sua condição é a de uma mulher idosa e
cega. Gilbert Durand (2002) trata a cegueira e a velhice como aspectos que podem ser traduzidos
a partir do mesmo princípio, estariam ambos associados a inteligência. O autor associa o mar e a
água ao tempo e a morte: “A água é epifania da desgraça e do tempo, é clepsidra definitiva” […]
é a “substância simbólica da morte”. A água torna-se mesmo um convite direto a morrer [...]”
(Durand, 2002, p. 96). Nesse ponto, é importante relembrarmos que a protagonista dá inúmeras
demonstrações de sua inteligência singular ao longo do romance e que faz questão de escrever a
carta contando sua história, porque sabia que não chegaria viva em solo brasileiro.
Ancestrais, mães, irmãs e amigas: o relacionamento entre mulheres
em Um defeito de cor

Após uma breve contextualização sobre elementos gerais do romance, foco minha discussão nos
estreitos laços entre mulheres sejam elas divindades, familiares ou amigas que se expressam
através dos relatos autobiográficos de Kehinde.

Ana Maria Gonçalves parece ter criado uma personagem estreitamente inserida num universo
marcadamente feminino. Embora, transite e estabeleça pontos de contato com o mundo
masculino, essas relações parecem marcadas por um certo estranhamento. Kehinde não conheceu
o pai, seu único irmão morreu ainda muito jovem, perdeu dois filhos e tinha problemas de
relacionamento com um terceiro. Com o marido, a relação é distante e a personagem confessa
sentir alívio ao se tornar viúva. Por outro lado, as referências femininas são fundamentais e
abundantes do início ao fim da trama, há uma constância dessas figuras que mesmo já falecidas
ou distantes se conservam na personagem como é o caso da mãe, da avó, da irmã Taiwo, da sua
“segunda mãe” Esméria e da sinhazinha.

Ana Maria Gonçalves expõe Luíza Mahin/Kehinde a elementos que na cultura africana e afro-
brasileira são comumente associados a referências femininas, como a divindade Oxum, o culto às
Geledés, a Casa das Minas e a Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte. Todos os elementos
citados são referenciais religiosos vinculados a três diferentes tradições, respectivamente: culto
aos orixás e ancestrais femininas (nagô), culto aos voduns (Jeje) e cristianismo católico. O
envolvimento da personagem com essas matrizes religiosas acontece de modo mais efetivo como
na iniciação e no culto doméstico ou através da admiração como mera espectadora. De modo a
exemplificar a marca do feminino na obra abordaremos brevemente os quatro elementos citados.

Kehinde é filha de Oxum, orixá feminino, divindade que habita os rios, portanto a água doce
“sem a qual a vida na terra seria impossível”. Essa divindade controla a fecundidade, razão pela
qual as mulheres com dificuldades em engravidar recorrem a ela. Seus devotos a saúdam com a
expressão “Ore Yèyé o” traduzida como “Chamemos a benevolência da mãe”. De acordo com
Verger, na África “Oxum é chamada de Ìyálóòde (Ialodê), título conferido à pessoa que ocupa o
lugar mais importante entre todas as mulheres da cidade”. Sua cor é o amarelo-ouro, devido a sua
associação com a riqueza. Suas filhas são definidas como “mulheres graciosas e elegantes”,
“símbolos do charme e da beleza” (Verger, 2002, p. 174-176). São mulheres determinadas que
empregam as qualidades provenientes da divindade ao perseguir seus objetivos obstinadamente.
Cristiane Côrtes (2010) percebe em Kehinde os atributos de Oxum, defende que Ana Maria
Gonçalves teria desenvolvido a personagem a partir das qualidades da divindade. Justifica a
partir da personalidade e das situações vividas por Luíza Mahin/Kehinde que:

[…] de tão elegante, despertava ciúmes na sinhá. Quando vendia cookies na rua,
andava muito bem vestida […]. Todo o seu comércio era próspero: a começar pelos
cookies, depois a abertura da padaria que, rapidamente cresceu e distribuía doces e
pães para a alta sociedade baiana; a fábrica de charutos que também foi um sucesso,
a exportação de óleo de palma, na África e, finalmente, a construtora Casas da
Bahia. Todos muito bem-sucedidos e sempre evidenciando a inteligência e charme
da personagem. Sua facilidade de se comunicar, conviver e fazer amizades é outra
característica importante (Côrtes, 2010, p. 106).

Nos diferentes lugares em que morou, Kehinde se esforçou para manter o culto às suas
divindades, sempre dando um jeito de providenciar um “quartinho” onde pudesse manter um
altar com as imagens e elementos simbólicos dos seus orixás e voduns. Uma das imagens que
mantinha consigo era uma estatueta de Oxum que havia ganhado de Agontimé, a rainha perdida
do reino de Abomey. Essa estatueta desempenhou um papel fundamental num dos momentos
mais dramáticos de Kehinde, quando foi comunicada pela sinhá de que seria vendida. A
protagonista procurou a sinhá para comprar sua carta de alforria e a de seu filho Banjokô, porém
não tinha como pagar o valor pedido, pois sua avaliação tinha determinado um preço bastante
alto baseado em suas qualidades, como demonstra o trecho abaixo:

Olhei o papel e nem tentei fingir que não sabia ler, pois lá estava escrito com todas
as letras o valor de uma escrava de dezoito anos, criada de dentro, com excelente
saúde, falando português e inglês, sabendo ler, escrever e comerciar muito bem,
capaz de ter ganho próprio de mais de dez mil rés por mês, e do seu filho de seis
anos, criado como se fosse da casa, de excelentes maneiras e muito inteligente,
bem-educado e que sabia tocar piano (Gonçalves, 2009, p. 337).

A solução veio por meio da estatueta de Oxum, que continha o ouro que estava sendo guardado
por Agontimé para usar na fundação de uma casa de culto aos voduns. Ao atirar a estatueta
contra uma cobra que invadiu a casa e desapareceu inexplicavelmente logo em seguida, a peça
rachou e revelou o pó de ouro em seu interior. Como não bastava ter o valor pedido para
conseguir que a sinhá assinasse a carta, Luíza Mahin/Kehinde cria um estratagema (sugere-se
que a ideia teria sido revelada por meio de Oxum no momento em que a estatueta vai ao chão)
para persuadi-la. Assim, a conquista da liberdade é atribuída não só a inteligência de Kehinde,
mas também às forças ocultas. Duas divindades surgem para dar auxílio a personagem, Oxum e
Dan.

A avó de Kehinde tinha sido uma vodúnsi (sacerdotisa) de Dan, a Serpente Sagrada. Segundo
Saulnier (2005, p. 13) Dan é o “vodun do sucesso pessoal, concretizado por uma progenitura
numerosa, pela saúde, fortuna etc., realização do destino […] pessoal do indivíduo”. No Brasil
Dan é cultuado na nação jeje-mahi, conhecido como “dono da nação mahi” (Parés, 2006, p. 298).
Com a proteção de Oxum e Dan, Kehinde obtém sucesso. A presença de Dan sugere também que
a avó de Kehinde continuava zelando por ela. Em outros momentos da narrativa a avó se faz
presente também através de sonhos, em um deles a avó pede que Kehinde dê atenção aos voduns,
o que a leva à Casa das Minas.

A associação das duas divindades sugere outra forma de compreender a expressão jejenagô
(além dos aspectos históricos e geográficos partilhados por ambos grupos étnicos[53]), no Brasil
designa uma tradição religiosa que aglutina elementos de ambos os povos. Entretanto, Parés
afirma que essa “justaposição de ritos” já ocorria em território africano “desde tempos
imemoriais” e que é possível que alguns “voduns tenham origem iorubá” (Parés, 2006, p. 37;
258).

Kehinde transita confortavelmente entre orixás e voduns, mas faz sua iniciação no culto aos
voduns na Ilha de Itaparica, após seis meses vivendo na Casa das Minas com Agontimé. A Casa
das Minas está localizada em São Luís no Maranhão, sua data de fundação é imprecisa, mas é
provável que tenha surgido no início do século XIX. Os voduns cultuados são originários da
família real de Abomey, razão pela qual se difundiu a lenda de que a casa teria sido fundada por
Agontimé ou Nã Agotimé, rainha vendida como escrava por Adandozan após a morte de seu
marido. Mas, não há qualquer confirmação dessa informação. O que se considera como certo é
que as fundadoras eram africanas. A casa é governada por mulheres, apenas as filhas de santo (as
vodúnsis) “recebem” voduns[54]. A tradição é matrilinear e os homens que participam da casa
estão vinculados às vodúnsis, são seus maridos, filhos e netos (Ferretti, 1996).

Diferente dos cultos acima mencionados, as referências ao culto gèlèdé e a Irmandade da Boa
Morte ocorrem no romance a partir da perspectiva de Kehinde enquanto expectadora. Ela não
participa diretamente, mas demonstra respeito e admiração. Tanto que esclarece ao filho (para
quem a narrativa é direcionada) que considera importante que ele saiba sobre esses cultos e
prossegue narrando dois dos mitos que fundamentam o culto gèlèdé, sobre Oxum e as Iá Mi
Oxorongá.

Na cultura Yorùbá, “o maior valor dado a mulher é de mãe porque os Yorùbá reverenciam as
mães que eles também chamam de Ìya nlá (grandes mães) ou de Ìyààmi (nossas mães)”
(Akínrúli, 2011, s.p.). O sentido de “mãe” aqui não se limita ao fato de a mulher ter filhos, mas
está associado de forma mais ampla à mulher em geral e ao papel que lhes cabe nessa sociedade.
As mulheres desempenham funções essenciais na sociedade yorùbá como a de comerciantes e
administradoras. De acordo com Irinéia Santos (2008),

a concepção africana da maternidade, ou da força espiritual feminina, torna-as


símbolos da adaptação e luta entre as forças masculinas e femininas, fundamentais
para a manutenção da continuidade da vida. A importância disto reside tanto nas
relações de gêneros e no papel comunitário da mulher na África, quanto na maneira
como esses elementos mitológicos e ideológicos irão se ordenar nas religiões afro-
brasileiras através da preponderância do papel feminino nos cultos (Santos, 2008, p.
65).

Em quase todo o continente africano as “mães ancestrais” são reverenciadas como parte do
“culto aos antepassados” (Santos, 2008). Iá Mi Oxorongá ou “minha mãe, a feiticeira” faz
referência a um poder feminino primordial, presente desde o surgimento do mundo (Verger,
1992). Segundo Pierre Verger (1992, p. 10) o “poder de ìyàmi é atribuído às mulheres velhas,
mas acredita-se que, em alguns casos, pode pertencer igualmente às jovens, que o teriam
recebido como herança da mãe ou de uma de suas avós”. O culto está baseado em mitos que
além de demonstrar o poder feminino alertam sobre os riscos que todos correm ao desrespeitar
tal força:

Crueldade, vingança, ira, controle e perseguição, aparecem como sinais do poder


das Iá Mi numa visão aterradora, ao mesmo tempo em que doação, fecundação,
proteção, dão a imagem da maternidade uma visão carinhosa e vital. As aparentes
contradições acima não são inconciliáveis. Os orixás femininos mais cultuados nos
Candomblés brasileiros representam aspectos socializados deste terrível poder das
Iá Mi Oxorongá. Oxum por exemplo, possui domínio sobre a fertilidade humana, no
mito deixa as mulheres estéreis em represália aos homens, por não permitirem a
participação das mulheres no início da criação das reuniões de organização do
mundo. Os orixás são obrigados a reconhecer que sem as mulheres a vida na terra
não prospera. Oxum é muito celebrada no festival Geledé com o aspecto da “Mãe
Encantadora”, muito doce, mas que sabe ser muito cruel quando se faz necessário,
exigindo justiça às mulheres, parte essencial da vida (Santos, 2008, p. 71).

Assim, o culto gèlèdé tem como função reconhecer o “poder feminino sobre a fertilidade da
terra, a procriação e o bem-estar da comunidade”, homenagear e “agradar” as mulheres de modo
a garantir o “equilíbrio do mundo” (Santos, 2008). Nas festividades gèlèdés os homens se vestem
com roupas e máscaras que simbolizam diferentes aspectos dos mitos acerca das “grandes mães”,
bem como partes do corpo feminino como os seios. É também uma forma de harmonizar as
relações sociais, já que se trata de uma sociedade patriarcal (Akínrúli, 2011, s.p.). Acerca desse
último aspecto, Verger faz a seguinte observação:

A dança dos gèlèdè é a expressão da má consciência dos homens, vinda da época


em que a sociedade matriarcal tornou-se patriarcal. O grande poder místico da
mulher, utilizado na origem de maneira criativa para o trabalho da terra etc., pode
ser transformado em uma arma destrutiva. Tudo, pois, deve ser feito para acalmar a
mulher, apaziguá-la e dar-lhe compensações pela perda de sua posição política
(Verger, 1992, p. 24).

Kehinde narra que ao retornar do Maranhão, de passagem pelo Recôncavo conhece algumas
irmãs da Boa Morte e a convite delas participa da festa a Nossa Senhora. As irmãs que fazem o
convite eram africanas da mesma região da protagonista e explicam que teriam aderido ao culto
por associar Nossa Senhora com Nanã[55]. Segundo Irinéia Santos (2008),

Nanã é um dos orixás femininos associados às Iá Mi Oxorongá. A avó de Kehinde,


além de cultuar os voduns era também filha de Nanã. No “quartinho” onde ficavam
os altares para suas divindades, Kehinde mantinha uma figura dessa orixá em
respeito a sua avó. A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte é formada
exclusivamente por mulheres negras que nas celebrações se vestem à maneira das
quintadeiras que percorriam as ruas de Salvador no século XIX. Suas vestimentas e
adornos também podem ser associados ao Candomblé, se considerarmos que as
irmãs são também adeptas do culto aos orixás, algumas delas inclusive mães de
santo. Tais informações remontam ao próprio surgimento da Irmandade que teria
sido fundada por quitandeiras bem-sucedidas, ex-escravas que se uniram para
levantar fundos e comprar a alforria de importantes sacerdotisas do candomblé
(Revista de História da Biblioteca Nacional, 2009, p. 12).

Não há registros precisos sobre a data de fundação da Irmandade da Nossa Senhora da Boa
Morte, mas é provável que tenha surgido por volta de 1820. Conforme Verger (1992) em sua
fundação essa confraria era formada por mulheres nagôs que se reuniam na Igreja da
Barroquinha. A Irmandade da Boa Morte é composta por mulheres acima dos 50 anos e obedece
a uma rígida hierarquia. As irmãs passam por etapas iniciáticas longas antes de ocupar um cargo
de diretoria. O mais alto posto na irmandade, o de Juíza Perpétua, só pode ser ocupado pela irmã
mais idosa (Revista de História da Biblioteca Nacional, 2009, p. 12).

Em todos esses exemplos, vimos uma presença marcadamente feminina na narrativa de Ana
Maria Gonçalves. Tais elementos, ainda que aparentemente distintos estão em íntima relação
com Luíza/Kehinde que se sente à vontade nesses ambientes. Por outro lado, ao descrever as
duas ocasiões em que tentou contato com o culto Egungun (baseado nos ancestrais masculinos)
revela ter experimentado um profundo desconforto que a teria levado a se arrepender da
tentativa. De qualquer forma, tanto Oxum, quanto gèlèdés, Casa das Minas ou Irmandade da Boa
Morte tratam de um poder feminino, de situações em que a mulher assume o comando e é
respeitada (ou faz-se respeitar) por meio desse poder. Os mitos escolhidos pela escritora são
demonstrativos disso, a exemplo do mito de Oxum que revela sua determinação em se fazer ser
ouvida e respeitada. Sobre esse aspecto temos ainda um diálogo entre Kehinde e a ialorixá
Mãezinha: “Com palavras muito bem escolhidas e voz tranquila, a Mãezinha parecia receber
inspiração especial ao falar de uma força que nós, mulheres, temos à disposição e devemos
aprender a usar” (Gonçalves, 2009, p. 578).

A figura feminina de maior representatividade na vida de Kehinde é a avó, que está


especialmente presente nas situações em que o sagrado se manifesta em sua vida. No navio a
caminho do Brasil, a avó morreu “depois de dizer o que podia ser dito” e pediu a neta que
mantivesse as tradições (Gonçalves, 2009, p. 61). A protagonista faz o mesmo movimento que a
avó ao tentar deixar esse legado para o filho. Por meio da narrativa dos eventos e das explicações
sobre as tradições culturais africana e afrobrasileira, nota-se que Luíza/Kehinde se comporta
como um Griot.

Definidos por Hampate Ba (1977) como os “grandes depositários da herança oral”, “memória
viva da África” os griots, “conhecedores” ou “tradicionalistas” são respeitados por resguardarem
a memória das sociedades tradicionais. Em geral, são pessoas mais idosas, dotadas de memória
excepcional e conhecedoras de amplos aspectos das tradições, como as técnicas de cultivo,
tecelagem, caça, propriedades medicinais das plantas, história de fundação das sociedades e
conhecimentos do sagrado. Características que correspondem à personagem criada por Ana
Maria Gonçalves.

Dessa forma, a Luíza Mahin/Kehinde do livro deixa na forma da carta uma herança para seu
filho Luiz Gama e Ana Maria Gonçalves oferece o romance como legado para as mulheres
negras.
Considerações finais

Ana Maria Gonçalves explora o elemento mítico que permeia as múltiplas referências à Luíza
Mahin nos poucos registros escritos sobre ela, e sobretudo em elementos do imaginário social e
memória coletiva de base oral. Fornece, dessa forma, intencionalmente ou não, subsídios para o
fortalecimento de uma identidade feminina negra ao explorar características como a
insubordinação, a independência, a capacidade de liderança, a sagacidade e tantas outras, de
modo que mulheres negras, suas leitoras, pudessem estabelecer uma relação espelhada e repensar
seu lugar no mundo com um olho no passado, amparadas por suas ancestrais, e de mãos dadas
com suas contemporâneas na luta diária pela construção de um futuro mais promissor para si
próprias e suas iguais.
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Memória das águas performando o passado: sal de cura e
cicatrização
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro[56]

Da partida forçada à necessária (re)elaboração: apresentando a


proposta de narrar e performar para não sucumbir – para (re)fazer-se
[...] A performance do eu na ficção é um dos termos do balanço histórico
que essa geração de escritores tenta, não recuperar o passado e fundar
uma história, e sim, para ancorar a necessidades de instaurar novos
valores que outorguem sentidos ao presente.

(Ravetti, 2002, p. 55)

Traslado forçado, sequestro, travessias inúmeras e atravessamentos diversos, alargando-se por


outros mares na denominada contemporaneidade, estendendo o matiz de cores dos povos
obrigados a vivenciarem, de maneira tão indigna, processos de (des) e (re) territorialização.

Na maioria dos casos precisamos ser gratos por tais impedimentos de retorno e tentar
(re)construir a existência no plano material, mas, procurando dar conta, sobretudo, da nossa
psique, constantemente vilipendiada. Resta, então, o perlaborar[57], a construção de narrativas que
se não curam, pelo menos tentam apaziguar dores atrozes, de difícil e demorada cicatrização e,
quem sabe, até sonhar com possíveis suturas.

É Carrascosa (2014) quem explicita as condições que estamos a vivenciar há tanto tempo. Diz
ela:

Como mulheres que experimentaram processos de imigração entre fronteiras intra


ou internacionais – inter-raciais e sociais, fomos produzidas, até certo ponto, na
fatura da fratura. Nossos ossos só não andaram expostos porque somos das
mulheres que sabem curar. Nossos processos de existência dependem de um
cuidado de si que economiza forças de desvio e localização, multiplicidade e
identidade estratégica, em uma palavra, (des)territorialização (Carrascosa, 2014, p.
115, grifo da autora).

O fundo dos oceanos, onde mora Olokun[58] ainda abriga memórias diversas, de distintos povos
que, sem escolha, de lá fizeram casa e abrigo, para não sucumbirem com processos absurdos de
animalização via escravização. De lá, ainda, é possível ouvir choros e lamentos, sobretudo
trazidos pelas tormentas, tempestades em alto mar no mais das vezes bravio e indócil. Esses
lundus chegam até nós pela condição que Walker (1983) chama de médium[59].

Augusto (2016) denomina de “narrativas de afetos comuns” e Giraudo (1997, p. 68) chama de
“Comunidade de experiência narrativizada” a esses processos de produção de narrativas, quase
sempre da ordem do traumático. Outros nomes e designações são ofertados dos mais diferentes
pontos da encruzilhada que é a diáspora, sendo essas duas coordenadas pontos fundamentais para
a construção do texto ora iniciado. O que importa é que essas “afeto-grafias[60]“ (Miranda, 2017)
se configuram como òpó, viga, pilar de sustentação, para nossos processos de nos (re)vermos,
(re)elaborarmo-nos e (re)fazermo-nos. É Carrascosa (2017), novamente, quem declara que são
indispensáveis para a “organização do levante”.

Acessar, mesmo com muita dificuldade, o que as diferentes paragens e geografias têm produzido
literariamente, e aqui intitulada de Literatura Negro-diaspórica (Riso, 2014), revela-se como
imprescindível e urgente. E, ainda que saibamos que “A língua não deve nos separar” (Augusto,
2017) não podemos deixar de mencionar e concordar com Souza (2017) sobre o quanto as
traduções das obras de autoria de mulher negra pela diáspora tem deixado a desejar, visto que
são feitas, no mais das vezes, por mãos masculinas, brancas e heteronormativas. O que não pode
deixar de ser dito é o fato de que essa produção literária tem se configurado e nos servido de
passaporte para pensar outros portos, enseadas, clareiras, capoeiras e porque não, derivas e
corredeiras, que mesmo com o mistério do ponto exato para onde elas nos levarão, estas têm se
revelado como férteis e promissoras, uma vez que, nos apresentam outras margens, muito mais
largas e úmidas para que possamos (re)construir nossas vidas e psique, tão ultrajadas ao longo da
história. Abẹ̀bẹ̀[61], espelho ancestral onde podemos nos mirar para nos (re)elaborarmos sempre
que necessário.

Conhecer a escrita de mulheres negras diaspóricas acaba por provocar, em nós, leitoras, a
obrigatória reflexão sobre os caminhos trilhados até então e para onde levam nossos desejos, na
busca, ainda, por respeito e qualidade de vida. O compartilhamento de tais vivências e
experiências, performatizadas por via da arte literária, tem revelado estradas férteis, repletas de
ensinamentos diversos e profícuos na direção de nos tornarmos o que viemos para sermos, no
caminho que nos conduz rumo à libertação e emancipação.

Coadunamos com Souza (2007) quando esta declara que:

A história das culturas afrodescendentes é tradicionalmente marcada por embates e


discussões que envolvem reflexões sobre a temática da memória, da história, da
identidade e das performances. Este debate tem seus marcos originais na história do
tráfico e na existência de um ritual que envolvia circular em torno da “árvore do
esquecimento” para garantir imunidade ao “banzo” e, principalmente, o apagamento
dos nomes e das tradições culturais daqueles que seriam embarcados à força para
diáspora. Assim, as várias tradições culturais africanas da diáspora sempre lidaram
com esforços individuais e coletivos de guarda e preservação, reconstituição e
reorganização de pedaços, narrativas, cânticos e performances, tecidos e traços,
plantas e costumes entre outras bagagens que, junto com os corpos e almas,
atravessaram o Atlântico (Souza, 2007, p. 30-31 – grifo da autora).

Enfim, trata-se do que Ravetti (2002, p. 60) denominou de “narratividade literária performática”.
Para ela: “A performance ajuda a imaginar formas possíveis de intervenção social, intervenções
simbólicas, de restauração, mas também de construção, sobre os retalhos que a memória
consegue reerguer e que a vontade projeta (Ravetti, 2002, p. 62).

Para muito além da denúncia de silêncios que tanto nos ferem e nos vulnerabilizam, insurreições,
superações e vitórias são, também, contempladas nessa literatura de mulher preta diaspórica, nos
impulsionando, sempre com a benção dos ventos, para além da tormenta e do tormento que tem
permeado as nossas vidas-lidas, nossas trajetórias labutas. A literatura de mulheres negras tem
apontado caminhos de combate, sinalizado rotas de fuga, gingas infindáveis e volta ao mundo[62]
contra o racismo e seus derivados.

Não podemos esquecer, também, a sinalização feita por Souza (1983) sobre a necessidade de
construir um discurso sobre si e o fato de que:

A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio [...] Saber-se negra é
viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas
perspectivas, submetidas a exigências, compelida a expectativas alienadas. “Mas é
também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e
recriar-se em suas potencialidades” (Souza, 1983, p. 17).

À epistemologia negro-perspectivada, ainda em construção[63], criada para acessar e ler a


produção literária de Toni Morrison foi dado o nome de Literatura Abẹ̀bẹ̀. O uso dessa
ferramenta, nesse contexto, remete à necessidade desse instrumento nos processos de construção
identitária tanto das personagens quanto das leitoras que acessam as narrativas produzidas por
essa autora negra e aqui adaptado o uso para, responsavelmente, testar o alcance da mesma a
partir de outros corpora. Entende-se que o mirar-se em referências positivas e no mais das vezes
ancestrais, auxilia sobremaneira em nossos processos de nos tornarmos o que somos e o que
viemos para sermos.
É de bom tom salientar ainda que a elaboração da epistemologia mencionada, Literatura Abẹ̀bẹ̀,
se encontra respaldada a jusante por Lorde (1977) quando nos incita a “Transformar o silêncio
em linguagem e ação” e a montante por Nascimento[64] (2017) quando concebe a poesia (e de
forma mais ampla a literatura) como episteme, como lugar de produção de sentidos e
significados.

O que se pode notar é o fato de que diante de tamanhas atrocidades experienciadas pelo povo
negro surge a necessidade de narrar o que a princípio se apresentava como “narrativas
impossíveis” (Maldonado; Rezende, 2009), ainda que necessárias, posto que os fatos
experienciados parecem se configurarem como da ordem do indizível. Sendo trauma[65]
(“vivência da dor” como denominava inicialmente Freud), a economia psíquica, após o evento
traumático, precisa de algum tempo para se (re)organizar, e para isso procura sentido e
significado ao duramente vivido, na tentativa de fazer cessar a repetição, esforço esse que exige
entendimento sobre o arduamente experienciado. O narrar se apresenta, dessa forma, como
inevitável e inadiável, sob pena de paralisarmos e/ou sucumbirmos diante de tanto peso e pesar e
ficarmos a (re)viver o evento vezes sem conta. Passado o tempo inicial necessário do silêncio e
reclusão para depuração do dolorosamente vivido, revela-se como imprescindível o externar o
ocorrido e a partir de diferentes razões e desejos. E a narrativa, nesse contexto, apresenta-se
como exercício inadiável, mesmo que muitas vezes precisemos fazer uso do recurso da
ficcionalização das nossas memórias e histórias, pelos motivos mais diversos.

O que se pode perceber é que o gesto de voltar para (re)lembrar e, quiçá, (re)fazer, apresenta-se
como fundamental para que se busque um relativo apaziguamento[66] e se vislumbre a
possibilidade de seguir adiante. O gesto de narrar, de performar esse passado, cruelmente
experienciado, essa intervenção social, simbólica, artística como denomina Ravetti (2002, p. 62)
nesses capítulos da história, agora realizados numa perspectiva “desde dentro” (Garcia, 2012),
com as mulheres negras assumindo o difícil, mas necessário e urgente labor de documentar, de
registrar o que a história oficial fez questão de apagar, apresenta-se como indispensável para que
avancemos e para que possamos destrancar os nossos caminhos. Quem sabe após esse árduo
exercício de lembrar para não esquecer, de recordar para que não se repita, de contar para que
nossas perspectivas sejam contempladas e ouvidas, possamos vislumbrar, quiçá, outros portos,
enseadas e mares onde possamos navegar e atracar, vez por outra em busca de uma existência
mais plena, segura e digna. Oxalá consigamos tal intento nos tempos que estão por chegar,
porque semelhante à Carolina Maria de Jesus, nós mulheres negras, ainda estamos procurando
um lugar para nos sentar[67].

A Literatura Abẹ̀bẹ̀ apresenta-se aqui como caminho para a insubordinação e insurreição contra
tais processos. Uma literatura que se funda, sobretudo, em referências ancestrais e configura-se
como da ordem do iniciático, uma vez que se entende que conhecer essa produção literária
auxilia, sobremaneira, em processos de/para (auto)conhecimento, no mais das vezes, permeados
por etapas que vão desde a (auto)rejeição, repugnância, sabotagem, mas, podendo desaguar,
também em (auto)aceitação, revelação, cuidado, amor, cura e porque não, (auto)realização. Uma
ferramenta que elege a psique das personagens como grande mapa. Assim sendo, a partir dessa
cartografia fundamental desdobram-se possíveis caminhos e clareiras, em direção à
emancipação, sobretudo para as diferentes leitoras desse rico e diversificado legado.

Assim sendo, o desejo com o desenvolvimento da epistemologia é o de se pensar a ferramenta


litúrgica (abẹ̀bẹ̀) como possibilidade de auxílio na escolha dos caminhos, a fim de anunciar e
apontar as armadilhas sempre presentes em nossas jornadas existenciais e em nossos processos
de construção identitária, “destrancar os caminhos de Si” (Ferreira Santos, 2011, p. 14),
desaguando, sobretudo, nas encruzilhadas que formam e constituem essa corporalidade de
mulher negra que é, fundamentalmente, memória armazenada e difundida.

A crença que alinhava e sustenta esse texto é a de que o organizar a vivência e/ou experiência
numa narrativa, seja ela factual e/ou ficcional, acaba por auxiliar no processo de significar,
(re)significar e de simbolizar a vivência da dor (trauma) e, assim, o psíquico possa atribuir
sentidos e significados ao quase sempre brutalmente vivido, bem como na (re)elaboração de Si.
Enfim, processos de (re)construção identitária, que costumam durar toda uma existência,
englobando etapas obrigatórias como as do (re)pensar-se, (re)elaborar-se e (re)fazer-se.

Tratando-se de demandas experienciadas por mulheres negras que historicamente tiveram suas
existências desenhadas e narradas, no mais das vezes por homens brancos, conceber o potencial
de insubmissão, insurreição e superação existentes na obra escolhida para análise, Um defeito de
cor, e vislumbrar essa literatura como abẹ̀bẹ̀ (espelho e leque) o qual reflete, refrata e expande
nossas pretas grafias e memórias, é apresentar mais uma importante e eficaz ferramenta de
combate no processo perverso e histórico de tentativa de subtração da nossa dignidade, beleza e
humanidade.

Pensar de que forma o romance, escrito por Ana Maria Gonçalves, selecionado como corpus
para essa escrita e outras tantas obras produzidas por mulheres negras espalhadas e (re)unidas
pelas águas do Atlântico (e demais oceanos), podem ser considerados como ferramentas e
dispositivos de e para a insubmissão e insurreição, como abẹ̀bẹ̀, espelho, fonte de inspiração,
referência positiva na busca de possibilidades de superações e saídas para tantas das nossas lutas
e dilemas, acaba por revelar a importância de tal proposta epistêmica.
Conhecer outras narrativas possíveis sobre corpos e existências negras, produzidas a partir da
perspectiva “desde dentro” (Garcia, 2012), pelos próprios sujeitos da história que (re)significam
e passam a dignificar suas corporalidades marcadas pela cor (pertencimento etnicorracial) e pelo
gênero, escrita de mulheres negras, eis o dignificante da proposta ora apresentada. Pensar tais
narrativas como um conjunto que denominamos de Literatura Abẹ̀bẹ̀, é o desafiador de tal
proposta, possibilidades para o rebelar-se, o insurgir-se da mulher negra em águas, a princípio
atlânticas, em processos de cicatrização e cura, tendo a água do mar e suas memórias como
veneno que pode afogar e matar, mas, também, como remédio que acolhe, acalenta e com o sal
pode cicatrizar e quiçá curar.

Partindo do princípio de que: “Todo relato é uma defesa, uma legítima defesa” e um “projeto de
libertação” (Cyrulnik, 2009, p. 11), quer seja auto, bio (Carrascosa, 2014) ou cyberficção, quer
sejam memórias ficcionalizadas ou não (autoetnografia), a crença é a de que narrar pode
apaziguar parte da agonia sentida por todas nós ao longo do tempo, tanto pelas autoras quanto
por parte das leitoras que acessem e leiam tais obras.

O exercício da escrita literária por parte das mulheres negras espalhadas e (re)unidas pelas águas
diaspóricas tem se mostrado como fundamento para que diferentes, diversas e múltiplas
experiências sejam acessadas e para que assim se possa aprender com o passado e seguir, na
projeção, desenho e construção de um futuro no qual se possa “habitar a Terra” com mais
plenitude e o acervo produzido e compartilhado por Morrison é fundamental nesse contexto. A
autora que conseguiu radiografar, com precisão a psique das mulheres negras estadunidenses e
que, em muitos momentos, podemos pensar em alargar, também, para a multiplicidade do que é
ser mulher negra pela diáspora.

Por todo conteúdo compartilhado até aqui podemos pensar a urgência e necessidade da escrita
pelas mulheres negras da diáspora como episteme, uma vez que tal exercício acaba por criar,
solidificar e difundir um acervo de conhecimentos, teorias e possibilidades de interpretação do
mundo a partir da ficcionalização ou não das drásticas experiências vividas pelo povo negro, nos
mais diferentes e ininterruptos momentos da história.
Corredeiras e quedas d’água: apresentando a seleta de trechos para
análise

Para cada de nós como mulheres, há um lugar escuro por dentro, onde
escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, “lindo/e firme
como uma castanha/opondo-se colunar ao (v)nosso pesadelo de fraqueza”
e impotência.

Esses lugares de possibilidade dentro de nós são escuros porque são


ancestrais e escondidos; eles sobreviveram e cresceram fortes através
daquela escuridão. Dentro desses lugares profundos, cada uma de nós
mantém uma reserva incrível de criatividade e poder, de emoção e
sentimento não examinado e não registrado. O lugar de poder de mulher
dentro de cada uma de nós não é branco nem superfície; é escuro, é
ancestral, e é profundo.

(Lorde, 1977, p. 1).

A epígrafe acima já sinaliza para a riqueza e profundidade que o acervo escolhido para estudo
possui e o quanto podemos nos inspirar no mesmo para e na condução de nossas jornadas
existenciais. Assim sendo, o romance de Ana Maria Gonçalves (2006[68]) Um defeito de cor, foi a
obra escolhida, nesse artigo, para exercitar a aplicabilidade da epistemologia negro-perspectivada
Literatura Abẹ̀bẹ̀ para além dos corpora inicial e proposto na tese. Para tanto, elegemos os
recortes da (auto)imagem e o (auto)amor para pensar a construção identitária da protagonista,
Kehinde, procurando seguir as pistas fornecidas pela autora sobre a psique da protagonista ser o
grande mapa fornecido pela obra.

Um defeito de cor, escrito há treze anos e publicado pela editora Record, conta, até então, com
mais de doze edições e é considerado o romance de maior fôlego da produção literária negro-
brasileira (Cuti, 2010). Há quem defenda que se trata de uma longa carta de uma mulher negra,
Luiza Mahin, endereçada ao seu filho Luiz Gama. Convencionou-se classificar a referida obra de
metaficção historiográfica. Diz a narradora-personagem em uma das passagens, procurando dar
satisfação ao destinatário dos escritos: “[…] esta é uma história que eu teria te contado aos
poucos, noite após noite, até que você dormisse. E só faço assim, por escrito, porque sei que já
não tenho mais esse tempo. Já não tenho mais quase tempo algum, a não ser o que já passou e
que eu gostaria de deixar como herança” (Gonçalves, 2013, p. 617).

O romance procura apresentar para os leitores os caminhos trilhados e percorridos pela


protagonista desde o continente africano, Daomé – Savalu, solo de origem desta, até os idos de
1878[69] quando Kehinde já se encontrava com a idade de sessenta e oito anos, perfazendo, a
narrativa, um tempo de sessenta e um anos, levando em consideração a passagem, ainda nas
primeiras páginas do longo romance, quando a narradora compartilha os seguintes dados e se
apresenta: “Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez.
Portanto, tinha quase sete anos quando esta história começou. O que aconteceu antes disso não
tem importância, pois a vida corria paralela ao destino” (Gonçalves, 2013, p. 19).

No meio do caminho e do processo, com a potência e latência que o exercício da produção


literária apresenta tanto para as autoras quanto para as possíveis e prováveis leitoras, torna-se,
também para ela, abẹ̀bẹ̀, espelho no qual podemos nos mirar e nos inspirarmos em referências
quase sempre ancestrais, postos que nos antecederam, positivizando, dessa forma, o
historicamente negativizado. É a própria autora que partilha conosco os ganhos com tal percurso,
(des)organizando para (re)organizar e prosseguir na busca de ser o que se é. Vejamos o que nos
diz a própria autora:

Eu não tinha a menor ideia do que significava embarcar nessa viagem, e uma das
grandes surpresas – é preciso dar-lhes importância máxima aqui – foi perceber que
lidava com ruínas internas. Já havia experimentado o processo como leitora de
alguns livros que me leram mais do que eu a eles, embarcando em viagens alheias,
lidando com o deslocamento interno de grandes blocos de certezas e incertezas.
Mas nada se compara ao processo de ter que remexer nas próprias ruínas, que
escolher caminhos que me levavam a lugares bastante assustadores, nos quais não
havia saída, escape, mapa, trilha, boia, facho de luz, companhia. Eu era um ser da
diáspora, só depois entendi, que insistia, que precisava, que não tinha escolha senão
olhar pra trás para saber de onde vinha. (Gonçalves, 2017, p. 3).

Ikú, a morte, parece cobrir com uma longa mortalha toda a narrativa aqui analisada. Ela não só
abre os trabalhos e apresenta-se já nas páginas iniciais, quanto volta a revelar, ainda que
sorrateiramente, no momento no qual a narradora, já bastante idosa, parece se despedir (voltando
ao Brasil) tanto do filho tão procurado, quanto dos leitores e da vida. O penúltimo subtítulo (p.
943): “Tristes Mortes” já aponta para tal “presença”, assim como as próprias palavras da
narradora sinalizam para isso. Diz ela: “[...] Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido
chegar até onde queria. E talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses deuses
dos homens me permita subir ao convés para respirar os ares do Brasil e te abençoar pela última
vez” (Gonçalves, 2013, p. 947). Essas são as palavras derradeiras desse extenso romance.

Outros trechos dão conta, também, do luto intermitente experienciado pela narradora e a contínua
sensação de vazio que, quase sempre culminava e desaguava no banzo, na tristeza profunda, na
melancolia e nostalgia (saudade da terra natal), experiência atroz vivida pelos escravizados.
Conheçamos, então, alguns desses trechos:

[...] havia um silêncio muito grande dentro de mim e ao meu redor, onde nem os
passarinhos cantavam, nem o vento piava, nem as ondas batiam. Nada, nada, nada.
O pequeno cortejo pegou a praia, na direção da igreja do povoado, e sumiu por trás
dos coqueiros. Eu fiquei olhando o nada, com vontade de também fazer nada, mas
me levantei e saí caminhando em direção à água, o que ninguém percebeu. Sentada
na areia, fiquei olhando o mar e chorando todas aquelas mortes que pareciam estar
dentro de mim, ocupando tanto espaço que não me deixavam sentir mais nada. Os
olhos ardiam com as lágrimas salgadas, como se fossem mar também, e senti uma
solidão do tamanho dele, do tamanho da viagem da África até o Brasil, do tamanho
do sorriso da minha mãe quando estava dançando, do tamanho da força com que a
Taiwo segurava a minha mão enquanto observávamos o nózinho de sangue do
Kokumo. Eu ainda não tinha chorado por eles, e só fui parar quando, tarde da noite,
a Esméria voltou do povoado e sentiu minha falta, indo procurar em todos os
lugares onde sabia que eu gostava de ficar. Ela se sentou ao meu lado e me chamou
de sua menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do peito dela e me
embalou com cantigas da África. Então cantou até que eu dormisse, como naquele
dia em que a minha mãe dormiu para sempre no quente do colo da minha avó, em
Savalu. Ou como no dia em que eu e a Taiwo dormimos no barracão, embaladas
nos braços de Nanã e de Iemanjá (Gonçalves, 2013, p. 101).

A escrita do romance ora em análise, não se apresenta com toda sua potencialidade como abẹ̀bẹ̀
somente para nós leitoras. Serviu, principalmente, para aquela que o idealizou e produziu, Ana
Maria Gonçalves, quando, dentre outros ganhos e achados, essa se (des)cobre negra e numa das
muitas entrevistas que concedeu para explicar sobre a construção do romance declara: “Kehinde
sou eu”.

E procurando seguir os rastros deixados pelo caminhar de Gonçalves (2014) indagamos como
essa obra, especificamente, pode nos ajudar a pensar a epistemologia negro-perspectivada em
construção Literatura Abẹ̀bẹ̀? Para que lugares nos levam as memórias pertencentes a essas
águas? No que nos auxiliam em nossos processos de construção identitária como mulheres
negras? No que o acesso e leitura de tal acervo pode ajudar em nossos processos de nos
tornarmos o que somos e o que viemos para sermos?

A crença é a de que a arte literária é de fundamental importância para os nossos processos de


construção identitária e de fortalecimento e/ou enfraquecimento/ fragilização das nossas
subjetividades. Assim sendo, interroga-se um pouco mais com o intuito não de ter a pretensão de
responder a todos os questionamentos levantados aqui, mas na tentativa, provocação e desejo de
que a Literatura Abẹ̀bẹ̀, possa proporcionar a busca por respostas para grande parte delas e para
as outras tantas que, certamente, surgirão, ao longo do caminho da escrita da tese. Conheçamos,
então, mais algumas dessas perguntas, momentaneamente, sem respostas, mas que nos provoca e
incita, sobremaneira a pensar nos saberes ainda em construção. São elas: O que seleciona e
decide por lembrar e narrar cada uma das protagonistas das narrativas que compõem o acervo
literário produzido pelas mulheres negras diaspóricas? O que optam por esquecer? No que a
busca por essas respostas nos ajuda a compreender os processos aqui estudados? Que
dispositivos de esquecimento e rememoração são elaborados, acionados e usados pelas
personagens, sobretudo no que diz respeito às memórias da ordem do traumático experienciadas
por cada uma delas? O compartilhar de tais histórias e memórias delineia possibilidades de
superação para as demandas reais enfrentadas por nós, mulheres negras? E, ainda, como é
constituída a voz autoral em cada uma das tramas pertencentes a tal acervo? E o enredo? Há uma
nítida construção da identidade negra textual nas obras? As trajetórias das protagonistas revelam-
se alinhadas a experiência negra de cada uma delas? De que forma ocorre o agenciamento e
gerenciamento da voz daquela que decide por contar a história? (lugar de fala e lugar autoral) e
qual a importância de tal ponto para e em nossa recepção como leitoras e, sobretudo, para os
nossos processos de construção identitária?

Que caminhos e jornadas são criados pelas autoras negras diaspóricas para as protagonistas? O
que justifica a existência de enredos tão densos e tensos para alguns seres muitas vezes ainda na
infância? O que desejam as autoras quando elegem determinadas tramas e não outras para serem
contadas? O que se pode perceber é o que não parece, em definitivo, uma literatura destinada ao
entretenimento, mas que leva, obrigatoriamente, à reflexão que impulsiona, quase sempre, à
mudança de mentalidade que por sua vez, poderá levar, e se deseja que leve, à mudanças de
atitude. Mas, após essa necessária provocativa digressão voltemos, pois, à análise da obra Um
defeito de cor, obra escolhida para pensar a epistemologia que vem sendo gestada.

E, para tanto, nada melhor do que conhecer a personagem a partir dela mesma:

[...] O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji e nasci por último. Minha irmã
nasceu primeiro e por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão
Kokumo, e o nome dele significava “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O
Kokumo era um abiku, como a minha mãe. O nome dela, Dúróoríìke, era o mesmo
que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque
também era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida, nós
imploramos” (Gonçalves, 2013, p. 19).

O romance se inicia com a apresentação da narradora-protagonista. Kehinde partilha o lugar do


seu nascimento, sua condição de gêmea e a longa linhagem da sua família como àbíkú[70], aqueles
nascidos para morrer (momento quase imediato ao parto), os que não demoram muito no àiyé,
Terra, por já terem combinado antes, em outra dimensão, quando voltariam a (re)encontrar com
os que deixaram em outro plano. Para tanto fez uso da língua yorùbá. Oriunda da terra dos
Voduns, pertencente ao povo jeje, nesse pequeno trecho que abre o romance, a protagonista
revela a importância e a força que o nome tem para tais comunidades. O quanto eles explicitam
sobre a nossa existência e destino. É de bom tom salientar, ainda aqui, que a tradição e condição
de àbíkú seguiu o curso e não se encerrou com a morte da irmã de Kehinde[71], Taiwo[72]. As
últimas gerações, apresentadas ao final da trama, sucumbirão, também, a essa sina.

Como já sinalizado, trata-se de uma longa, demorada e primorosa narrativa alinhavada por Iku, a
Morte. Uma extensa mortalha cobre de luto a história, ficcionalizada por Gonçalves (2014), de
Luiza Mahin em busca do filho desaparecido Omontunde[73] Adeleke Danbiran, Luiz Gama:

[...] Então, como já deve ter percebido de quem estamos falando, a você foi dado o
nome de Omotunde Adeleke Danbiran, sendo que Omotunde significa “a criança
voltou”, Adeleke quer dizer que a criança será “mais poderosa que os inimigos”, e
Danbiran, assim como o apelido do Banjokô, é uma homenagem à minha avó e aos
seus voduns, principalmente Dan. O Babalaô Gumfiditimi disse que os nomes
tinham sido muito bem escolhidos e me contou que as crianças nascidas depois da
morte de um irmão são o tipo mais perigoso de abiku, o mais temido, porque são
crianças substitutas, aquelas que vêm para tomar o lugar dos que tinham morrido.
Isso faz com que tenham uma forte ligação com o morto, precisando ser muito mais
vigiadas para que não voltem rapidamente ao Orum (Gonçalves, 2013, p. 403-4).

E mais uma vez a importância do nome para os povos africanos é salientada na obra. Atentemos,
pois, para o trecho abaixo destacado:

O que sabia iorubá disse para eu falar o meu nome direito porque não havia
nenhuma Kehinde, e eu não poderia ter sido batizada com este nome africano, devia
ter um outro, um nome cristão. Foi só então que me lembrei da fuga do navio antes
da chegada do padre, quando eu deveria ter sido batizada, mas não quis que
soubessem dessa história. A Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luísa, e
foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre
me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que
era reconhecido pelos voduns, por Nana, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e
principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser
conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.
(Gonçalves, 2013, p. 72-73).

Ainda que tenham sofrido a violência do “batismo” antes do embarque forçado nos tumbeiros,
momento no qual outra fé, tão distinta da original era imposta, era subtraído, também, o
significativo nome dado outrora[74], ainda que negociações internas e sobretudo, psíquicas
tenham sido criadas para não ultrajar, ainda mais, a massacrada psique das vítimas de tais
eventos históricos.

E na escrita circular de Gonçalves (2013) que equivalente a Èṣu, o Mensageiro, nos conduz a um
tempo espiralar (Martins, 2002), semelhante ao okoto[75], elemento pertencente, também, a tal
entidade, a protagonista nos faz acompanhá-la por itinerários diversos a procura do seu bem
maior, seu filho. Diferentes portos e lugares, dentre eles: Itaparica, Salvador, São Luís,
Recôncavo baiano, Santos, São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro e Uida – Lagos até o seu
retorno ao Brasil, na esperança última de lograr êxito em tão exaustiva e demorada procura pelo
seu filho. A memória que nunca foi linear é o motor da embarcação que nos conduz por essas
memórias.

A dupla consciência prevista e enunciada por Du Bois (1999) se faz presente na narrativa em
análise e os trechos selecionados e abaixo reproduzidos, explicitam parte de tais processos de
construção identitária, sempre tão complexos e demorados.

A princípio é a narradora-protagonista dando conta da duplicidade e similitude com a irmã, a


partir da condição de gêmea e o abẹ̀bẹ̀ que primeiro nos é apresentado, na obra, são os olhos. A
personagem só parece dar conta de que cada uma delas era um ser “diferente” e independente,
ainda que muito parecida uma com a outra, a nitidez, a consciência da unidade na duplicidade
parece ocorrer a partir do falecimento da irmã, Taiwo, que mesmo partindo para outra dimensão,
sempre esteve com Kehinde, habitando, principalmente, os sonhos desta última, dentre outras
circunstâncias, compartilhando avisos e alertas. Conheçamos alguns desses momentos:

[...] Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as famílias em que nascem, e era por isso
que a minha mãe podia dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro. Ela
dançava e as pessoas colavam cauris (Cauri: um tipo de concha usado como
dinheiro) em sua testa, e quando eu e a Taiwo éramos pequenas, colavam ainda
mais, pois a minha mãe dançava com nós duas amarradas ao corpo. Usava panos
lindos para segurar eu e a Taiwo bem presas junto a ela, uma na frente e a outra
atrás. Ficávamos nos olhando nos olhos e sorrindo por cima do ombro dela, e é por
isso que a primeira lembrança que tenho é dos olhos da Taiwo. Éramos pequenas e
apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro da
minha mãe, dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar
que eram apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que
só tive certeza disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber,
porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou somente para mim.
Eu senti quando isso começou a acontecer, e foi naquela tarde. (Gonçalves, 2013, p.
21).

[...] Eu queria saber o que a Taiwo pensava sobre a vida que levaríamos no
estrangeiro, se seríamos presentes ou carneiros, mas não tive resposta. Senti que a
Taiwo já não estava mais dentro de mim, como se ela tivesse fechado os olhos
naquelas horas em que, olhando por sobre os ombros da nossa mãe, que dançava, eu
conseguia me ver dentro dos olhos dela. Eu tentava sair de mim e não encontrava
mais para onde ir, tentava encontrar a Taiwo e não conseguia. A Taiwo já estava
fora do meu alcance, estava morrendo. (Gonçalves, 2013, p. 56).

No que diz respeito à “presença” da irmã, que já não se encontrava no mesmo plano espiritual
que Kehinde, nos sonhos, tem-se as seguintes passagens:

Uma noite, sonhei com a Taiwo, quero dizer, acho que era a Taiwo, vestida com a
roupa que a sinhazinha Maria Clara tinha me emprestado, pois tive a mesma
sensação de quando nos olhávamos nos olhos por sobre os ombros da minha mãe,
em Savalu. Parecia eu, mas era a Taiwo, e estava feliz, olhando nos meus olhos e
sorrindo, enrolando a barra do vestido em volta das pernas, de um lado para outro.
(Gonçalves, 2013, p. 90).

Foi através de um sonho com Taiwo, também, que Kehinde ficou sabendo que estava “pejada”
(grávida):

Voltando da reunião, quando entrei em casa não me senti muito bem, e imaginando
que poderia ser cansaço, fui para a cama antes mesmo de o Alberto chegar. Sonhei
com a Taiwo segurando uma criança no colo e acordei quase com a certeza de estar
pejada. Na manhã seguinte, quando o Alberto acordou, eu me levantei somente para
tomar o pequeno almoço com ele, e voltei para a cama sem comentar nada sobre o
sonho. Primeiro, eu queria ter certeza, e depois não sabia como dar a notícia, não
sabia se devia me alegrar ou apenas aceitar, pois continuava achando que aquela
não era a hora de ter mais um filho. Chamei a Esméria e pedi que me examinasse.

Ela disse que nem precisava, que tinha ficado muito claro o motivo pelo qual vinha
me achando estranha nos últimos dias e, colocando a mão sobre a minha barriga,
disse que já ia para três meses, quase o mesmo período da sinhazinha, e eu nem
tinha percebido (Gonçalves, 2013, p. 380-381).

Vale mencionar que os processos de interação entre identidade e alteridade,


principalmente em contextos de colonização/escravização, são quase sempre carregados de
tensão. Momentos, no mais das vezes, quando se (des)cobre de maneira mais contundente, o que
somos a partir de quem nunca seremos. Em tais momentos, somos (re)lembrados, a todo o tempo
pelo colonizador[76], sobretudo a partir do destaque aos seculares privilégios, que ele tem,
inclusive, poder sobre os corpos e existências considerados, em tais contextos históricos como
coisa, mercadoria. E são, novamente, os olhos, os marcadores que apontam as diferenças que não
deveriam implicar, necessariamente, em inferioridade, mas que acabam sendo o sustentáculo e
autorização para violências atrozes e o subjugo duradouro. É o fenótipo que acaba marcando a
identidade e a alteridade, confirmado nos trechos a seguir:
A sinhá estava sentada em uma cadeira de balanço e nem levantou os olhos do
bordado que tinha no colo. A sinhazinha Maria Clara, em meio a almofadas e
bonecas, brincava sobre uma esteira feita de panos coloridos. As bonecas dela
tinham rostos com olhos, boca e nariz, e cabelos e roupas de verdade, parecendo
gente, muito diferentes das que a minha avó fazia para mim e para a Taiwo. Quando
chegamos perto e a Antônia disse o meu nome, ela levantou o rosto e era a pessoa
mais bonita que eu já tinha visto, e ao mesmo tempo não parecia ser real. Era como
uma de suas bonecas, uma boneca viva. Na verdade, eu não só a achei bonita, mas
também senti medo ou um certo estranhamento quando percebi os olhos, que me
pareceram de vidro ou de água do mar, pois nunca tinha visto gente com olhos
daquela cor. Os do sinhô também eram azuis, como notei mais tarde, mas de um
azul mais escuro, que não chamava atenção. Além dos olhos azuis, ela tinha o rosto
muito branco, a boca pequena e cor-de-rosa e os cabelos da cor de cabelo de milho.

Estava usando um vestido também azul, do mesmo tom dos olhos ou do mar, e que
se espalhava feito água ao redor dela. A sinhazinha me olhou com certo interesse,
mas não retribuiu meu sorriso, provavelmente tinha me achado menos interessante e
muito mais feia que os outros brinquedos, porque foi isso que a Esméria disse que
eu seria para ela, um brinquedo, e era como tal que eu deveria agir, ficar quieta e
esperar que ela quisesse brincar comigo, do que ela quisesse (Gonçalves, 2013, p.
78).

Na mesma tarde, ela estava sentada no degrau mais baixo da escada que levava da
varanda ao jardim, com a Antônia no degrau de cima, às suas costas, penteando os
cabelos cor de milho. Eu apenas olhava quando ela me chamou, tirou o pente das
mãos da Antônia e colocou nas minhas, pedindo que eu continuasse o trabalho da
outra. Primeiro, tive medo de tocar os cabelos dela, de machucá-la com o pente,
mas logo gostei da suavidade que tinha entre as mãos. Primeiro passei os dedos,
sentindo os fios deslizarem entre eles como as franjas de um lenço que a Sanja, a
filha da Titilayo, tinha ganhado de um marinheiro com quem se deitara.

Acho que ficamos ali durante horas, eu mexendo no cabelo dela e nós duas olhando
o mar do jardim, além da areia branca. A partir daquele dia, só eu escovava os
cabelos da sinhazinha, sempre inventando um jeito diferente de prendê-los, com
fitas, grampos ou em tranças, que ela tentava repetir nas bonecas. Foi por isso que
tive permissão para pegar nelas, porque a sinhazinha Maria Clara não conseguiu
copiar um penteado com tranças e pediu que eu o fizesse.

Os cabelos das bonecas eram quase tão macios quanto os dela, e ficávamos o dia
inteiro naquilo, fazendo penteados e trocando as roupas para combinar, a sinhazinha
sempre pedindo a minha opinião. Opinião que ela não aceitava, logo percebi, e
passei a dizer o contrário do que realmente achava para que, ao me contrariar, ela
fizesse o meu verdadeiro gosto (Gonçalves, 2013, p. 79-80).

Vários pontos da citação acima precisam ser destacados e devidamente comentados aqui. A
invisibilidade do corpo e da presença negra que tanto fala Collins (2016) quando fingem ignorar
a nossa presença/existência, o deslumbramento e a fascinação pelo algoz e seus representantes,
em especial pelo fenótipo oposto e imposto como uma possibilidade de humanidade e beleza e,
portanto, perseguido sem trégua por aqueles que dele se distanciam, criando, no mais das vezes,
“feridas narcísicas” (Souza, 1983) de difícil e demorada cicatrização, a partir do
desenvolvimento do que Nogueira (1998) denominou de “identidades fantasmáticas”, posto que
se persegue, sem trégua, um ideal de ego branco que para nós negros, é irrealizável, como afirma
Costa (1984).
No contexto, até então apresentado, o cabelo e a cor da pele tendem a se configurar como “uma
dupla inseparável” (Gomes, 2004), pois se apresentam, quase sempre, como os principais
marcadores que acabam transformando diferença física em inferioridade, autorizando, até
mesmo, a escravização/desumanização de outros seres que deveriam ser concebidos, também,
como humanos, uma vez que realmente o são.

O azul dos olhos deles mete medo, assombra, também, por lembrar as águas que trouxeram, de
maneira compulsória e desumana, nosso povo para aqui. Águas que tragaram tantos dos nossos
antepassados nas inúmeras travessias. Águas que até hoje nos atravessam e nos engole, posto que
os deslocamentos forçados ainda não se encerraram, por questões as mais diversas.
Continuemos, pois, a acompanhar as atrocidades documentadas por Gonçalves (2013) nesse
registro que mesmo performado, ficcionalizado, remete a lembranças primeiras do sequestro via
tumbeiros. Não poderíamos deixar de mencionar, ainda aqui, as distintas formas de experienciar
a infância[77] que são compartilhadas pela trama, bem como diferentes construções identitárias
como se pode notar na reprodução dos trechos acima reproduzidos.

Outros momentos de tensão e de extremo racismo e violência são apresentados no decorrer da


trama, tornam nítido o desprezo e o ódio sentidos pelos não negros, ainda que destinados a seres
em desenvolvimento. A incapacidade da Sinhá em segurar os bebês, a sua frustração com tal
vulnerabilidade, acaba por eleger como alvo preferencial a protagonista da trama e nela é
despejada toda negatividade sentida por aquela senhora. Mas todo o pensado, dito e feito ocorre
a partir do sentimento de superioridade e de proprietária de outros seres humanos que não eram
concebidos nessa condição. É o que revelam os trechos a seguir:

Para minha grande surpresa, e justo naquele dia, a sinhá tinha resolvido caminhar
um pouco e apareceu no quintal, dando a volta por fora da varanda. Assim que viu o
que eu estava fazendo, tomou a boneca das minhas mãos e gritou para a Esméria
atear fogo naquilo, dizendo que, daquele dia em diante, não queria mais ver minha
cara preta e feia de feiticeira na frente dela, porque não lhe custava nada mandar
arrancar os meus olhos, como tinha feito com a vadia da Verenciana. A Esméria
tentou interceder por mim, dizendo que era só uma boneca e que eu era só uma
criança, mas a sinhá deu um tapa no rosto dela e disse que, se abrisse a boca para
dizer mais uma só palavra, iria para o tronco como os bichos da senzala grande,
onde, aliás, era o lugar do bicho que eu era, igualzinha a eles. E que eu deveria
agradecer por ela não mandar acender uma fogueira usando meu corpo como
carvão, para atiçar o fogo. Disse ainda que a bruxa branca ela já tinha mandado
embora, que faria de tudo para que a sinhazinha Maria Clara nunca mais voltasse à
fazenda, porque quando a menina botava os olhos em cima dela, sentia o ventre
secar. Restava então se livrar de mim, que tinha ficado incumbida de terminar o
trabalho da outra, que era não deixar que ela tivesse filhos. Continuou dizendo que
sabia muito bem o que eu estava fazendo, que já tinha ouvido falar naquilo, que
aquela boneca era ela, a sinhá Ana Felipa, e que eu só ia esperar ela pegar filho de
novo para enfeitiçar a boneca e arrancar coisas de dentro dela, como se estivesse
enfiando a minha mão dentro do ventre da própria sinhá e puxando o filho para fora
(Gonçalves, 2013, p. 104).

Como crescer e se desenvolver de forma plena e saudável presenciando tantas violências e


escutando tantas sandices que mesmo partindo de um ser que explicitamente não gozava de
sanidade, ecoa na psique da vítima, ainda em formação, transtornando seres que deveriam ser
tutelados e cuidados, posto que ainda não pudessem responder por si?

É possível notar que tais escritos literários registram, documentam e denunciam as barbaridades
ocorridas e perpetradas contra esses corpos, initerruptamente, violentados ao longo da história.

Mas, sabendo que processos de construção identitária não são simples, nem muito menos
lineares, avanços são, também, esperados, bem como recuos são possíveis, sem deixar de
mencionar, ainda, temporárias estagnações. A seleta de trechos escolhida e abaixo apresentada
aponta para momentos de (re)conhecimento (d’Adesky, 2006), (auto)rejeição, não aceitação do
que se é e um longo e muitas vezes demorado processo de se gostar, de “fazer as pazes com a
imagem refletida no espelho” em conformidade com a expressão cunhada por hooks (2000). São
esses ensinamentos que Kehinde compartilha conosco com as descobertas de Si diante de tal
objeto e que podem servir como efeito abẹ̀bẹ̀ para as leitoras, fonte primeva de inspiração para a
escolha dos caminhos a serem seguidos. Atentemos, pois:

Logo à entrada, ao lado da porta, um outro móvel com guarda-chuvas e capas de


chuva, chapéus de todos os tipos, cores e tamanhos, luvas, e o que eu mais gostei,
um espelho. Desde que me olhei nele pela primeira vez, não consegui passar um
único dia sem voltar a fazê-lo sempre que surgia uma oportunidade. A Esméria
parou na frente dele e me chamou, disse para eu fechar os olhos e imaginar como eu
era, com o que me parecia, e depois podia abrir os olhos e o espelho me diria se o
que eu tinha imaginado era verdade ou mentira. Eu sabia que tinha a pele escura e o
cabelo duro e escuro, mas me imaginava parecida com a sinhazinha. Quando abri os
olhos, não percebi de imediato que eram a minha imagem e a da Esméria paradas na
nossa frente. Eu já tinha me visto nas águas de rios e de lagos, mas nunca com tanta
nitidez. Só depois que deixei de prestar atenção na menina de olhos arregalados que
me encarava e vi a Esméria ao lado dela, tal qual a via de verdade, foi que percebi
para que servia o espelho. Era como a água muito limpa, coisa que, aliás, ele bem
parecia. Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei
feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram, e evitei chegar perto da
sinhazinha. Quando era inevitável, fazia o possível para deixá-la feia também,
principalmente em relação aos penteados. Pegava em seus cabelos com as mãos
sujas de banha ou de terra e inventava maneiras estranhas de prendê-los (Gonçalves,
2013, p. 85).

Os trechos reproduzidos acima confirmam a ideia de que as elaborações e padrões de beleza têm
sido construídos e fortemente influenciados a partir de ideais helênicos, considerados,
historicamente como princípios universais de classificação e julgamento de beleza, tão distantes
dos belos e diversos fenótipos negro-africanos. Nesse contexto e nessa tentativa, quase sempre
bem sucedida, de imposição, ininterrupta, do modelo nórdico como única possibilidade de beleza
e humanidade, sempre atualizada, muitos são brutalmente atraídos, chegando mesmo ao ponto de
realizarem mutilações que não começam, nem se esgotam no plano físico, pois, é, certamente, no
plano psíquico que se encontram as maiores mazelas e, talvez, as mais difíceis de serem
“trabalhadas” (re)feitas e (re)elaboradas.

Torna-se imprescindível, dessa forma, pensar a beleza como uma construção social, e, assim
sendo, análises que passem por tais questões precisam, necessariamente, serem sempre
historicamente contextualizadas. O que pode ser notado e não pode deixar de ser mencionado é o
fato de que ao longo do tempo, sendo a noção de beleza um constructo sócio-cultural, esta,
inevitavelmente, vem sofrendo adaptações, e dentre as características que sempre estiveram
presentes tem-se a harmonia nas proporções, daí os modelos que parecem eternos serem a Vênus
de Milo e o Homem Vitruviano (Da Vinci).

O que há, incontestavelmente, é uma busca por padronizações e mesmo que esse processo sofra
alguns inevitáveis reajustes e alterações, ao longo do tempo, o que parece não mudar nesse
desejo de encontrar um ideal de beleza que “trancafie” toda a diversidade existente é justamente
a harmonia nas formas e o cuidado com o equilíbrio geral das proporções para alcançar a tão
sonhada perfeição, sendo o modelo eleito como mais próximo da perfeição e o ideal a ser
perseguido, o grego.

O que se precisa é avançar na direção da descolonização das mentes e corpos, enfim, para que se
possa realizar a construção do que cada um é, a partir de referências muito mais próximas do real
fenótipo de cada ser, não mais buscando, muitas vezes, insanamente, perseguir, o já mencionado,
ideal de ego branco que conforme sinaliza Costa (1984) é irrealizável para o povo negro. A
crença e o desejo, aqui, são os de que a produção literária de mulheres negras diaspóricas possa
servir como abẹ̀bẹ̀ para tantas de nós que ainda zanzam perdidas nas encruzilhadas identitárias,
sem saber que rumo tomar em direção a se tornar o que se é e o que se veio para ser.

Sabendo que a construção identitária é processo, Kehinde consegue superar as agruras acima
destacadas e a gostar-se da forma como veio ao mundo, negra. É o que revelam as passagens a
seguir:

O espelho passou a ser diversão, e eu ficava longo tempo na frente dele, fazendo caretas e vendo
a minha imagem repeti-las, até o dia em que a sinhazinha viu e me chamou para ir ao quarto dela.
A Esméria tinha dito para eu nunca entrar lá, porque, se sumisse alguma coisa, poderiam dizer
que eu tinha roubado (Gonçalves, 2013, p. 86).

Olhando no espelho, eu me achei linda, a menina mais linda do mundo, prometi que
um dia ainda seria forra e teria, além das roupas iguais às das pretas do mercado,
muitas outras iguais às da sinhazinha. Ela também deve ter me achado bonita e
ficado com ciúme, pois logo deu a brincadeira por terminada e pediu que eu tirasse
tudo antes que estragasse, ou antes que a sinhá Ana Felipa aparecesse e brigasse
com nós duas (Gonçalves, 2013, p. 87).

hooks (2000), no texto anteriormente mencionado, “Vivendo de amor,” traz a proposta de amar
aquilo que se vê, um convite para ir além da aceitação da imagem refletida no espelho e buscar a
autoestima, em direção a autovalorização e a autorrealização. Aponta, ainda, para a possibilidade
de notar a beleza para além da estética “narcísica” pautada no eurocentrismo e branquidade e
assim declara:

A arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e


afirmar. É por isso que tantos livros de auto-ajuda dizem que devemos mirar-nos
num espelho e conversar com nossas próprias imagens. Tenho percebido que às
vezes não amo a imagem ali refletida. Eu a inspeciono. Desde que acordo e me vejo
no espelho, começo a me analisar, não com a intenção de me afirmar, mas de me
criticar. Isso era comum lá em casa. [...] Tudo era observado e tudo estava errado
conosco. Raramente uma de nós era elogiada. Quando substituo a crítica negativa
pelo reconhecimento positivo, sinto-me mais forte para começar o dia. A afirmação
é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interior (hooks, 2000, p. 6).
E é consciente da potencialidade existente na produção literária de mulheres negras diaspóricas
que nos dispusemos, nesse artigo, a exercitar a pertinência e aplicabilidade da epistemologia
proposta – Literatura Abẹ̀bẹ̀ na obra escolhida para análise – Um defeito de cor.

Pensar e propor as obras literárias das autoras negras diaspóricas como abẹ̀bẹ̀ nos proporciona
relativa e confortável segurança para nadar contra a corrente e mesmo respeitosamente enfrentar
o mar de tormenta imposto pela branquidade de que belo só é o seu fenótipo. A crença aqui
apresentada e defendida é que tais obras possam nos revelar caminhos outros de ser e estar no
mundo, repletos de dignidade e respeito. A ideia é a de que o mirar-se em referências, quase
sempre ancestrais, possam nos servir de salvo conduto para desbravar outros mares, portos e
enseadas rumo a liberdade e emancipação, sempre pela via da insurgência, exercício esse sem
trégua para o nosso povo negro.
Buscando a foz e desembocaduras: que imagens são compartilhadas
no abẹ̀bẹ̀ e o que podemos aprender com elas?

Uma linha em que eu possa chegar no meu cérebro quando eu me sentir


fora de ordem. Algo para me puxar de volta. Eu quero uma vila e uma
praia e uma rocha no oceano e a certeza de que quando a lua estiver
cheia o mar subirá e por todo esse tempo eu estarei observando o que
meus ancestrais observaram, por todos os tempos.

(Brand, 1999, p. 247, traduzido por Silva, 2017, p. 106).

Se outrora as mulheres negras eram personagens apresentadas sem nenhuma humanidade e


sempre pela ótica extremamente negativa do homem colonizador e seus descendentes, conforme
já salientado, nos tempos atuais, essas mulheres entram para a cena literária para falarem de si e,
sobretudo, para si, a partir das suas vivências, experiências e valores ancestrais. Dito de outro
modo, estas recuperam a voz que não pôde ecoar de tantas outras que nos antecederam. Não que
estas estivessem caladas, posto que nunca estiveram. O que se sabe é que muitas delas foram
invisibilizadas, colocadas no ostracismo para que fossem desacreditadas das “palavras-
lâminas[78]“ que certamente lançariam no ar para rebater a forte negatividade perpetrada sobre
nós.

Para tal tarefa, a de redesenhar-se e dizer-se, para que efetivem a pretensão de autogestão não só
desse corpo, mas da própria vida, necessário se faz que essas autoras negras “assenhorem-se da
pena” (Evaristo, 2005, p. 51) e assumam a escrita literária, quase sempre na primeira pessoa,
quer seja na prosa, que poderá ser autobiográfica (recuperando a memória sua e dos seus) ou
autoficcional[79], quer seja na poética. A autogestão do corpo e da sexualidade encabeçam a lista
de prioridades dessa escrita que pretende devolver a dignidade exaustivamente borrada destas
mulheres ao longo do tempo. As narrativas performáticas (Ravetti, 2002) tem sido ferramenta
por demais utilizada, uma vez que possibilita que “voltemos” para (re)contar, perlaborando,
dessa forma, as chagas até então abertas e expostas. Indispensável em tais processos são,
também, as noções de Martins (2002) sobre tempo espiralar, uma temporalidade toda específica
nossa, bem como, também da autora, a ideia de complementaridade. São essas especificidades,
oriundas dos valores civilizatórios afro-brasileiros (Trindade, 2006), que nos sustentam e
edificam e, como não poderia deixar de ser, revelam-se como marcas na produção literária
negro-diaspórica.

A necessidade da construção de um discurso afirmativo que valorize os padrões estéticos negros,


bem como nossos princípios e valores e que possa postular o direito à beleza e humanidade para
o povo negro revela-se como urgente e essas são algumas das pretensões e conquistas da escrita
literária de mulher negra diaspórica.

Escrever para desestabilizar, para subverter a pretensa ordem estabelecida, para tornar possível e
“autorizada” a diversidade humana existente/real, eis umas das dignificantes ações a que se
propõe tal escrita, a de mulher negra diaspória, que ecoa de resistências e insurgências e aqui
estudada e concebida a partir da epistemologia negroperspectivada Literatura Abẹ̀bẹ̀.

O sal e a água do mar, a mesma que afoga, traga e mata com sua fome sem fim de corpos e
existências serão os mesmos que auxiliarão no cicatrizar. É a memória que vem delas, das
travessias e atravessamentos que se converte em um imenso abẹ̀bẹ̀ e nos conduz, cuidadosa e
carinhosamente a portos seguros e confortáveis para o nosso constante (re)fazimento. Um útero
quente, úmido e profundamente acolhedor.

Não poderíamos encerrar essa escrita sem mencionar, também, a importante noção construída
por Sales (2018) denominada de abebelidade, indispensável, para pensar os processos e a escrita
aqui apresentados, ainda que inicialmente tal ferramenta tenha surgido para ler a poética de Lívia
Natália e aquelas banhadas pelas águas dourada de Ọ̀ṣun. Diz a teórica sobre a noção: “[...] A
abebelidade é um modo de agir-pensar, de viver e reverenciar a senhora das águas doces, uma
potência criativa cuja presença se espalha na escrita de mulheres negras” (p. 406). E mais:

[...] A abebelidade é uma linguagem estética e política com cores, texturas,


gestualidades, sonoridades, movimentos corporais e cheiros inspirados em Osun. É
um modo de escrever, pensar-agir e reverenciar a nossa ancestralidade ao promover
a circulação do axé, da força que dinamiza a vida para que esse mundo não se acabe
através da tradição litúrgica negro-africana. [...] (Sales, 2018, p. 412).

Vê-se, assim, que mais uma vez a ferramenta litúrgica de nossas mães ancestrais nos serve de
inspiração e nos conduzem a outras águas, sempre férteis e repletas de àṣẹ. Sales (2018), em
consonância com a epistemologia aqui apresentada, destaca a importância desse espelho primevo
em nossa construção identitária de mulheres negras diaspóricas, bem como revela o quanto a
nossa produção literária apresenta-se alinhavada por tais mistérios e potencialidades. Mostra,
ainda, como estamos intimamente sintonizadas, propondo possibilidades de acesso e leitura
desse acervo de forma mais coerente e próxima aos nossos princípios e valores negro-africanos
e/ou diaspóricos.

Enfim, se autorrealizar, chegar inteira, despertar, são possíveis resultados, também, para quem
decide realizar tais leituras, visto que a inspiração pode ser a da emancipação e a do
empoderamento. Conhecer as reais possibilidades e assumir-se como se é de fato é o que mais se
deseja com tal proposta. Acreditamos que a escrita negra da autora apresentada nesse artigo, Ana
Maria Gonçalves, com a protagonista Kehinde, acaba por fornecer “pistas” importantes para
quem deseja romper/quebrar com o “patrulhamento” e, consequentemente, “aprisionamento” dos
lugares destinados às mulheres negras. A protagonista da obra nos ensina e nos convida, como
reflexo no espelho ancestral – o abẹ̀bẹ̀, a nos livrarmos, nos libertarmos da idealização e da
perseguição da brancura patriarcal, ou como intitula Costa (1984) da “perseguição do ideal de
ego branco” imposta há tanto tempo como modelo de identificação normativa de humanidade e
como o auxílio dessa e de tantas outras personagens ofertadas pela literatura produzida por
nossas irmãs negras, buscar nas referências negras femininas, em todas as mulheres que nos
antecederam inspiração, respeito e dignidade, a possibilidade de sair do estigma e do estereótipo
impostos incansavelmente a nós negros.

A obra escolhida para esse artigo nos convida, ainda, a caminhar em direção à estima, ao aceitar-
se e, mais do que isso, ao gostar-se, descobrir a boniteza de ser como se é! Eis o dignificante das
aprendizagens aqui compartilhadas. Se permitir a autogestar o corpo que é de cada uma dessas
mulheres e que precisa ser descoberto, conhecido e valorizado primeiro e, sobretudo, por nós,
mulheres negras.

Que as águas, tantas vezes oriundas de tormenta e que outras tantas vezes nos atormenta possam
servir de reflexo, sinalizações através do abẹ̀bẹ̀ e através das personagens desenhadas pelas
mulheres negras espalhadas e (re)unidas pela diáspora nos auxiliem no encontrar dos caminhos e
possibilidades de sermos o que viemos para sermos. Que permitam, sempre, margens cada vez
mais férteis e largas para as nossas vivências e experiências com essa corporalidade negra. Que
sejam abundantes e permitam transbordamentos e desemboquem sempre em terrenos pantanosos,
espaços esses tão caros à nossa religiosidade, nos quais possamos ser o que desejarmos. Essa é a
potência visualizada e concebida no acervo produzido por essas mulheres.

Por fim, desejamos que a epistemologia apresentada possa proporcionar um universo de trabalho
e possibilidades para acessar e ler o acervo literário produzido pelas mulheres negras diaspóricas.
É desejo, ainda, que esta proposta se desdobre em muitas outras para que possamos mergulhar
cada vez mais fundo nas águas ora bravias, ora tranquilas, águas sempre primordiais em nossa
constituição. Àṣẹ!
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SEÇÃO 2. INSUBMISSÕES, LUTAS E OUTRAS GUERRAS
Para enegrecer os modos de saber: histórias de negras lutas nas letras
de Um defeito de cor
[80]
Simone de Jesus Santos

Não sei de história de luta mais bela do que esta do povo malê, nem de
revolta reprimida com tamanha violência.

(Gonçalves, 2010, p. 10).

As palavras transcritas acima, proferidas pela narradora-personagem negra, Kehinde/Luiza,


enfatizam o protagonismo do povo negro, sua atuação e sua luta direcionadas para a causa de sua
própria liberdade. O tema em foco é a Revolta dos negros Malês, ocorrida na Bahia do século
XIX. O fato é relevante para alguns estudiosos de feitos de diferentes sujeitos negros no Brasil,
mas nem sempre se trata de assunto privilegiado. Vale dizer: histórias de agenciamento de
negros e negras em localidades brasileiras não são retomadas predominantemente em espaços
educacionais, práticas pedagógicas, expressões artísticas e outras produções como textos
literários que dialogam mais diretamente com os discursos convenientes para quem deseja forjar
uma suposta homogeneidade nacional e intentar solapar discursos expressivos de diversidades
étnicas e raciais.

Considerando-se que algumas constantes nos estudos literários vigentes são a transgressão de
convenções sociais e artísticas, de certezas absolutas, de supostas grandes narrativas e de
discursos hegemônicos da literatura e da história, torna-se relevante investigar modos de
afrodescendentes narrarem acontecimentos das suas trajetórias. Portanto, neste artigo o propósito
é discutir aspectos da representação da história de afro-latinos no romance já mencionado. A
presente leitura é parte da Tese de Doutorado intitulada “Literaturas de histórias: contar outra
vez narrativas da NegrAmérica com Manuel Zapata Olivella e Ana Maria Gonçalves” (2015).
Para tanto, a metodologia adotada de base qualitativa e bibliográfica consistiu em leitura e
análise do romance em foco, com a fundamentação teórica em concepções de literatura e de
história como formas de representação.

A autora da narrativa em foco, Ana Maria Gonçalves, nasceu no ano de 1970, na cidade de Ibiá,
no estado de Minas Gerais. Ela deixou a carreira de publicitária para se dedicar à literatura. O
lançamento de seu primeiro livro ocorreu em 1998 cujo título é Ao lado e à margem do que
sentes por mim (1998). Na antologia portuguesa Segunda Palavra das tribos (2001) consta seu
conto “Um dia após o outro”. Por fim, de sua lavra, há ainda, Um defeito de cor (2006), com o
qual ganhou o prêmio Casa de Las Américas ano seguinte ao de sua publicação. Nota-se que o
romance é publicado em momento de debate sobre a diversidade literária da América Latina,
“narrativas-testemunho” sobre as ditaduras, “interstícios de biografia e autobiografia, literatura
de indígenas, de afro-latinos(as), uma literatura que mostra “seu caráter de história alternativa”
que “torna possível que os excluídos pela história oficial possam inscrever-se no espaço letrado,
escrevendo assim uma outra versão da história” (Teixeira, 2009, p. 182-183).

A apresentação formal de Um defeito de cor (2006) assemelha-se a um estudo historiográfico


quando atentamos para a existência de uma lista bibliográfica. Seu jogo com a “verdade”
anuncia-se quando, no prefácio do livro, assinado pela autora, noticia-se o achado de um
manuscrito: suposto diário de Luiza Mahin. Ela afirma que a construção de sua narrativa advém
do documento, encontrado em Itaparica, que seria o diário da mãe de Luiz Gama, “mas também
pode não ser” (Gonçalves, 2010, p. 17). Vale ressaltar que este recurso também fora empregado
no considerado primeiro romance moderno – Dom Quixote – e é “como se” o documento
encontrado apresentasse a vida da personagem e consequentemente, a intertextualidade de textos
historiográficos e literários ganha fôlego literário com a subjetividade de Kehinde/Luiza Gama
em meio ao trágico da escravidão.

Após ser capturada em Uidá, a narradora-personagem assiste ao assassinato de seu irmão e ao


estupro de sua mãe seguido de sua morte. Posteriormente, é capturada e segue em um navio junto
com sua irmã Ibeji. A avó consegue localizá-las na embarcação e com muito esforço para que os
traficantes de escravos a aceitem como peça – já que tinha muita idade – não suporta a travessia
para a América e morre após o falecimento de Taiwo, durante a viagem.

Ao ler tais trajetórias, infiro que as redes intertextuais de literatura e história tecidas pela
escritora negra Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor (2006), ao questionarem parte da
representação hegemônica do passado de negros e negras no Brasil e transformarem-na em
outras versões, consistem numa releitura da história realizada por indivíduos “ex-cêntricos”
marginalizados por uma “ideologia dominante” – e eu diria, por uma história dominante – e que
estabelecem “uma relação, de maneira crítica e criativa, em relação à cultura predominantemente
branca, heterossexual e masculina na qual se encontram” (Hutcheon, 1991, p. 58).

Considerando esses e outros aspectos presentes no romance por mim lido como lugar de
representações da diáspora negra no contexto latino-americano, a proposta da pesquisa já
mencionada me impulsionou a acreditar na possibilidade de entender, a partir da ficção em
questão, uma outra história que comumente não nos é contada. A presente leitura é motivada
pela seguinte interrogação principal: quando escritores(as) afro-latinos(as) escrevem a palavra
literária, que história é possível contar?
Cabe salientar que, segundo estudiosos como Sandra Jatahy Pesavento (1998) e Lívia Reis
Teixeira (2009) é preciso dar visibilidade à experiência literária do Brasil e de demais países da
América Latina. Nas palavras da primeira estudiosa mencionada, “[...] na correspondência entre
‘nós’ e os ‘outros,’ a América Latina chega a se configurar como o ‘outro’ não-explícito, não
verbalizado e muito pouco pensado” (Pesavento, 1998, p. 18). Quando, mais especificamente,
procuramos em dados bibliográficos estudos sobre negros(as) de diferentes lugares da América
Latina e suas respectivas produções literárias os exames não são tão frequentes. Ao folhear
volumes generosos de antologias sobre literatura latino-americana, a exemplo daquela
organizada por Ana Pizarro (1994), lida como uma antologia relevante para conhecermos a
literatura do continente, verifiquei que a textualidade artística de autoria de negros(as) na
América Latina não é tema tão presente e o fato evidencia que, se negros e negras foram
subjugados(as) no sistema colonial escravista no passado, nos dias de hoje, há outros
mecanismos que os(as) afastam de maior projeção também no cenário dos estudos das letras.

A diversidade em escritos literários confirma que é possível intercambiar dados que compõem
histórias de negros(as), considerar que a diáspora africana na América Latina imprimiu suas
fortes, vivas e negras marcas também na literatura. Para quem pensa que o diálogo entre
literatura e história enfraquece a arte feita com palavras, cumpre ressaltar a vitalidade da
linguagem artística examinada e que transita entre diferentes campos de saber e plagia, cita,
antropofagiza, deforma e fornece outros sentidos àqueles já conhecidos no campo disciplinar.

Ademais, em tempos de políticas governamentais que desfazem laços entre países latino-
americanos, mesmo diante de fluxos recentes de negros(as) que se deslocam de seu país em
busca de auxílio, pode-se repensar a interação de negros(as) de países latino-americanos e na
literatura como caminho para fortalecer as aproximações.

Nesse sentido, interessa-me a teoria de Wolfgang Iser (1996) acerca da escrita literária. Ele
discute a relação dessa produção com a realidade, diz que a literatura é uma forma de
interpretação dessa última e sendo assim, o romance abordado é uma das maneiras de interpretar
a história da diáspora de negros (as) pelo continente americano (Iser, 2002, p. 948).

Bem assim, fundamenta essa leitura o chamado pensamento liminar, proposto por Walter
Mignolo (2003), conforme o qual a literatura, uma forma de apresentação do conhecimento, põe-
se em diálogo com outros modos de saber. Leio então que, existem saberes acerca da história, da
literatura e da cultura de afro-latinos(as) em Um defeito de cor (2006), visto que há nessa
textualidade uma apropriação de acontecimentos do passado e tentativas exitosas de subverter
significados atribuídos aos mesmos.
Em Um defeito de cor (2006), sob a sombra da árvore e, em especial, do Iroco[81], brinca-se,
contam-se histórias e presenciam-se acontecimentos, pois afinal, a “sombra da árvore” é um
lugar de conversas (Gonçalves, 2010, p. 35):

Sentada sob o iroco, a minha avó fazia um tapete enquanto eu e a Taiwo


brincávamos ao lado dela. Ouvimos o barulho das galinhas e logo depois o pio triste
de um pássaro escondido entre a folhagem da Grande Árvore, e a minha avó disse
que aquilo não era bom sinal. Vimos então cinco homens contornando a Grande
Sombra e a minha avó disse que eram guerreiros do rei Andadozan por causa das
marcas que tinham no rosto (Gonçalves, 2010, p. 21).

Além das sombras projetadas pelas copas das árvores presentes no romance, há a presença
significativa de outra sombra: a de uma ancestralidade africana. Essas sombras percorrem o
escrito de início ao fim. Em Um defeito de cor (2006), as sombras dos orixás Xangô, Nanã e
Ibejis acompanham a protagonista Kehinde, em vários espaços brasileiros: Ilha dos Frades,
Salvador, São Paulo, Maranhão, Minas Gerais, Rio de Janeiro, em seu retorno à África e na sua
tentativa de regresso ao Brasil, em diferentes momentos do século XIX. São enfim, muitas
histórias, muitas memórias que se afiliam àquelas contadas por ancestrais em torno dos irocos.
Tal loquacidade assinala que as folhas das árvores que abrigam histórias podem ser
transformadas em folhas de registros, ou melhor, de livros dedicados a contar outra vez os passos
das trajetórias de negros (as) nas Américas.

Árvores e sombras na arte verbal em estudo significam que irocos com suas densas e sólidas e
dispersas raízes sinalizam para a inscrição de negros(as) no cenário literário de distintos lugares
da América. As sombras das ancestralidades negras apontam para a insistência de uma constante
refacção de diversas histórias e memórias da diáspora africana nos dias de hoje, em folhas
repletas de marcas do passado.

Figura 1 - Iroco
Fonte: http://-www.candomblés.blogspot.com

Irocos são espaços propícios para abrigar uma variedade de histórias. Essa pluralidade fornece a
possibilidade de ver tais árvores como geradoras de rizomas que, conforme a proposta de Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1995), apresentam, dentre alguns de seus princípios, a conexão, a
heterogeneidade, a não compartimentalização de saberes, a não divisão de sujeito e objeto e a
produção de agenciamentos múltiplos. Portanto, encontro em Um defeito de cor (2006) histórias
heterogêneas que se conectam pela experiência da diáspora negra no continente americano. Essa
interação aponta para a “não compartimentalização de saberes” pontuada pelos autores
supramencionados e também por outros estudiosos como Sandra Jatahy Pesavento (1998),
Jacques Leenhardt (1998), Walter Mignolo (2003). Saber literário e saber historiográfico, em
intercâmbio, sem a chamada divisão dos saberes disciplinares podem oferecer-nos a
possibilidade de versar sobre elementos diferenciados daqueles hegemônicos, acerca das
literaturas e das histórias de afro-latinos(as), ou seja, o que chamo de enegrecer os modos de
saber (Santos, 2010).

Neste texto, o tecido literário é uma fonte de diferentes saberes que se tornam ainda mais
expostos em sua pluralidade quando negros (as) contam em folhas literárias suas várias
narrativas à sombra de muitos irocos que se ramificam em formas rizomáticas nas páginas de Um
defeito de cor (2006).

O ato de contar é característico da tradição oral africana:


A Tradição Oral é a grande escola da maioria dos povos africanos. As culturas
africanas não são isoladas da vida. Aprende-se observando a natureza, aprende-se
ouvindo e contando histórias. Nas culturas africanas, tudo é “História”. A grande
história da vida compreende a História da terra e das águas, a História dos vegetais
e farmacopéia, a História dos astros, a História das águas e assim por diante
(Machado, 2006, p. 79).

Na narrativa em debate, o ato de contar também é elemento básico na construção do enredo.


Trata-se da carta que é escrita no romance e que faz com que eu me refira à narrativa com a
expressão romance-carta. Ana Maria Gonçalves escreveu um romance que pode ser considerado
epistolar, isto é, “[...]aquele em que a história é contada por meio da correspondência trocada
entre alguns personagens ou da correspondência dirigida a um personagem” (Centurión; Cleto,
2007, p. 2). Trata-se de uma carta escrita no formato de romance ou de um romance que entra em
diálogo com uma carta. Esta relação de diferentes gêneros textuais Luiz Antonio Marcuschi
(2010) denomina de intergênero “uma mescla de funções e formas de gêneros diversos num dado
gênero” (2010, p. 33). A carta inventada no romance configura o tom de intimidade, de
confessionalidade. Além disso, exibe a correspondência como um recurso que a narradora -
personagem adota para se dirigir a Omotunde Adeleke Danbiran/Luiz. A carta da protagonista se
constrói no romance e é usada por Ana Maria Gonçalves como estratégia narrativa para tentar
conferir maior verossimilhança ao que escreve. Na textualidade, redesenham-se os caminhos de
Kehinde/Luiza Gama desde sua infância até a velhice, quando, acometida pela cegueira, tenta
fazer uma segunda viagem da África para o Brasil em busca de seu filho. Pode-se ler assim –
com base no diálogo com a história – que o romance-carta é uma resposta à carta deixada pelo
abolicionista Luiz Gama, um recurso que entrelaça o encadeamento de fatos e do qual o(a)
leitor(a) só tem conhecimento nas últimas páginas do texto. Na medida em que se intensifica a
reflexão da narradora sobre o que está contando, ela conta que a carta (o romance-carta) está
sendo escrita pelas mãos de uma outra personagem – Geninha – enquanto faz seu relato:

Preciso ser breve, pois o tempo está acabando, mas interrompo um pouco nossa
história para te contar o que aconteceu em África até o presente momento, este em
que relato tudo à Geninha. [...] Tive a ideia de fazer este relato três dias antes da
partida, quando pedi a ajuda da Geninha e mandei comprar papel. O que eu
imaginava ser uma carta de dez, doze páginas, porque sabia que não viveria até te
encontrar, já se transformou em tantas que nem temos coragem ou tempo para
contar, colocadas em uma pilha enorme aqui ao lado da minha cama. Sorte que
percebemos isso ainda antes de embarcar, quando então mandei comprar mais
papel, muito mais, a Geninha acaba de me avisar que nem foi tão exagerado quanto
imaginamos a princípio. Passando os dias dentro desta cabine, ditando o que ela vai
escrevendo, somente agora, no final da viagem, é que começo a pensar no que
significa voltar ao Brasil, embora eu nada vá ver dos lugares dos quais ainda me
lembro. A Geninha verá por mim, e também fica encarregada de fazer com que tudo
isto chegue às suas mãos (Gonçalves, 2010, p. 905-912. Grifo meu).

Ao atribuir a outra personagem – Geninha – a responsabilidade pelo ato de escrever, a


protagonista de Um defeito de cor (2006) pode acentuar a reflexão sobre a história que está sendo
contada, no momento em que está sendo contada. Essa exposição de como o texto foi composto
caracteriza parte da chamada metaficção historiográfica (Hutcheon, 1991), isto é, uma visão
consciente e crítica da história na textualidade ficcional. Ademais, a reunião de histórias plurais
afiliadas às de ancestrais e contadas às sombras do iroco, mas que foram reunidas em folhas
escritas por Ana Maria Gonçalves, possibilitam seu exame com base na chamada História
Cultural.

A relação de literatura e história é abordada desde a Antiguidade. Contudo, a modernidade


trouxe consigo a chamada especialização dos saberes no século XIX. Cumpre dizer que, mesmo
o apogeu científico da história não impede que lhe surjam críticas contundentes e
“intempestivas”. Em Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história
para a vida (1874) – intempestiva porque segundo o autor, a razão, naquele cenário, constitui-se
um mal e a “febre histórica” é um excesso – Wilhelm Friedrich Nietzsche (2003) argumenta que
o excesso de história é um dos prejuízos para a vida. O não esquecer torna o passado cada vez
mais pesado, mas:

É possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como o mostra o
animal, mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento e ainda
viver felizmente, quase sem recordar, como vemos no animal; mas é de todo
impossível poder viver sem esquecer (Nietzsche, 2003, p. 10).

Na leitura do filósofo, o passado não pode ser encarado como algo fixo e, para tanto, é preciso
entender sua “força plástica”, isto é, “ […] transformar e incorporar o que é estranho e passado
curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesmo as formas partidas”.
(Nietzsche, 2003, p. 10) A partir da visão de Nietzsche (1874) sobre a história e a partir de
aspectos de representação da história em Um defeito de cor (2006) considero que o passado de
negros(as) comparece com sua força plástica e transformado em texto artístico.

Para contar as histórias da escravidão de negros(as), a narradora-personagem recorre a sua


própria memória, em romance que é, ao mesmo tempo, uma carta e reúne fragmentos de
lembranças de memórias alheias:

Algumas das coisas que eu vou contar a partir de agora fiquei sabendo mais tarde,
juntando pedaços que as pessoas me contavam sobre o que tinham ficado sabendo,
ou de que tinham participado. Mas acho melhor contar como se tivesse visto tudo
acontecer, como se estivesse presente em todos os lugares onde havia alguém
lutando, pela liberdade ou simplesmente para não morrer. (Gonçalves, 2006, p.
523).

A reunião das memórias de si e de outros(as) propicia à protagonista criar sua versão sobre
algumas rebeliões promovidas por negros(as) no Brasil. A criatividade reside no resultado de seu
relato, isto é, no texto literário que representa o agenciamento de negros (as). Pode-se então,
afirmar, mais uma vez, que fatos passados podem ter sua força plástica e dinâmica evidenciadas.
Como se vê, as “feridas” do tempo decorrido da escravidão e da exploração colonial são, sim,
passíveis de transformação. Em Um defeito de cor (2006), o passado de negros na América
Latina é revisitado pela arte e personagens, fatos, experiências, vivências, percursos, de algum
modo documentados pela historiografia, são selecionados, combinados e transformados no como
se da escrita literária.

O debate elaborado por Sandra Jatahy Pesavento (2012) sobre a História Cultural e as diferentes
versões historiográficas que surgem com esse campo de estudo podem corroborar o que Beatriz
Sarlo (2007) denomina de guinada subjetiva, isto é, a narrativa do passado por sujeitos que
reivindicam a impressão de suas subjetividades nos discursos que elaboram, assim como Ana
Maria Gonçalves faz no romance aqui em análise. A estudiosa argumenta a possibilidade de
existirem diferentes pontos de vista para acontecimentos já decorridos (Sarlo, 2007). Em
especial, discute que a História Cultural “deslocou seu estudo para as margens da sociedade
moderna”. Lançados às franjas periféricas do dito projeto moderno e colonial, em contrapartida,
verificamos que afro-latinos, na contemporaneidade, selecionam, combinam e apresentam em
forma de escrita artística suas versões sobre assuntos que, para alguns, só vinculam-se a um
tempo antigo ou já foram bastante discutidos por muitos de nossos(as) historiadores(as), como a
escravidão ou racismo. Quem defende tal argumento não está atento(a) ao caráter de
incompletude da história e que o mesmo não significa “uma falha na representação dos detalhes
nem dos ‘casos’, mas uma admissão da qualidade múltipla dos processos” (Sarlo, 2007, p. 27).
Convém então, não estar “disposto a aceitar a verdade de uma história” e sim, fortalecer a crença
“nas verdades de histórias” (Sarlo, 2007, p. 40). Faz- se ainda necessário ressaltar que o:
[...] passado se faz presente. E a lembrança precisa do presente porque, como
assinalou Deleuze a respeito de Bergson, o tempo próprio da lembrança é o
presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual
a lembrança se apodera, tornando-o próprio. (Sarlo, 2007, p. 10).

Sendo assim, porque se apropria ou se apodera de fatos passados na diáspora de negros(as) na


América Latina, ao mesmo tempo, Um defeito de cor (2006) os presentifica em suas
interpretações, em formas de romance tão extenso sobre histórias e culturas negras que exibe
“princípios de rebeldia e princípios de conservação da identidade” (Sarlo, 2007, p. 17), seleciona
elementos culturais pertinentes para a construção identitária de sujeitos negros(as), de suas
experiências e de transmissão das mesmas em linguagem literária.

Quando observo a apropriação do texto histórico por parte do texto literário, em Um defeito de
cor (2006), imediatamente verifico a elaboração de uma história prenhe de presentificação,
memória, sentimentos e emotividade ou como descreve o poeta afro-brasileiro Luiz Silva – Cuti
(2010, p. 93):

A literatura nos traz a história emocionada [...] a possibilidade de experimentarmos


sensações e emoções de que as personagens ou os “eus” líricos são dotados na obra.
Assim, os escritores negros vão se posicionar também no tempo para instaurar no
seu trabalho o ponto de enfoque literário.

Ana Maria Gonçalves nos apresenta histórias emocionadas de negros(as) na América Latina. O
posicionamento de personagens negros(as), seu fluxo de consciência, suas reflexões tornam-se
mais evidentes quando estabelecemos um cotejo entre o que diz o historiador acerca de um
acontecimento e aquilo que diz o personagem que vivencia o fato em questão. Transcrevo um
fragmento do estudo historiográfico elaborado por João José Reis – Rebelião escrava no Brasil:
a história do levante dos malês em 1835 (2010) – em que descreve a revolta dos malês, a fim de
colocá-lo em diálogo com o escrito literário que também apresenta a mesma rebelião como uma
de suas principais temáticas:

Os africanos que subiram à praça do Palácio assaltaram inicialmente a cadeia da


cidade, localizada no subsolo da Câmara Municipal. Tentavam libertar Pacífico
Licutan, um mestre muçulmano muito estimado que estava preso. Eles também
pensavam em tomar as armas dos guardas e dar fuga aos prisioneiros africanos –
boa parte da população carcerária. [...] Mas o assalto à prisão falhou. Os africanos
foram de repente apanhados entre dois fogos, o dos soldados, que atiravam de
dentro do cárcere, e o da guarda do palácio, que atirava do outro lado da
praça.Voltaram-se para os guardas palacianos, matando um deles e ferindo outros
num combate corpo a corpo. Parece que nenhum insurgente saiu morto desse
choque, mas houve muitos feridos, os quais, disse uma testemunha, saíram
carregados pelos companheiros. O escravo Joaquim foi um dos colocados fora de
combate na praça do Palácio com um tiro na perna. Depois confessou que ‘foi
ferido de noite pelos soldados da Guarda na Praça, e que ele foi-se arrastando por
não poder correr e que foi se esconder nos estaleiros da Preguiça (Reis, 2010, p.
137).

O historiador conta a história de negros (as) e sua atuação na revolta dos malês na Bahia de
1835. O excerto em questão versa sobre o que os negros planejavam durante o levante, a reação
das autoridades governamentais e a reorganização dos grupos em meio ao ataque. Por seguinte,
no fragmento apresentado a seguir, extraído de Um defeito de cor (2006), é possível encontrar a
narração da personagem feminina que auxilia na organização e realização do movimento:

Muitos dos nossos caíram feridos pelas balas e foram levados até os estaleiros da
Preguiça. Como não podíamos enfrentar os guardas armados e acoitados, o Mussé
disse que depois cuidaríamos da libertação do alufá Licutan, e mandou que alguns
de nós fossem para o Terreiro de Jesus e outros para o Largo do Teatro, entre os
quais me incluí. Nestes dois lugares estavam programados encontros com grupos
que partiriam de diversos pontos da cidade, e de fato alguns pretos já estavam por
lá, escondidos nos becos e nas ruas vizinhas. Em frente ao teatro encontramos uma
pequena patrulha, que rapidamente foi desarmada e posta para correr, sendo que
àquela altura eu já estava querendo entrar em combate também, e não apenas fazer
parte do grupo. Era uma sensação estranha, uma vontade de me vingar, de atacar
alguém com a Parnaíba que tinha nas mãos, principalmente quando via um dos
nossos sendo atingido, o abadá branco manchado de sangue no lugar perfurado pela
bala (Gonçalves, 2010, p. 526).

A transcrição do que diz a protagonista do romance oportuniza observar suas considerações


sobre a luta da qual participava: a ansiedade, o desejo de vingança, a frustração diante das perdas
de homens de seu grupo são elementos de uma história que só os(as) negros(as) sabem contar
porque estiveram na batalha e principalmente, denotam seu comprometimento para com a
mesma. A narrativa distingue-se, de modo significativo, daquela baseada na reunião e
organização de documentos, por parte do historiador, para contar uma determinada trajetória.

Meu intento, ao situar de modo paralelo discursos da literatura e da historiografia é apontar a


apropriação que o primeiro pode fazer deste último e dos discursos sobre acontecimentos da
história, ou seja, a escritora afro-latina os reatualiza e assim os reescreve e conta outra vez o
passado em linguagem literária, já que “não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não
reatualize outros enunciados” (Foucault, 2012, p. 119).

Em Um defeito de cor (2006), a narradora-personagem mostra em linguagem artística seu


sentimento diante do conflito armado e ainda, as pretensões do grupo em torno da batalha e sua
experiência de mulher que participa da revolta.

A subjetividade dos personagens exposta em textualidade ficcional possibilita a recuperação de


um tempo passado e dos sujeitos que o vivenciam e refletem acerca daquele momento,
expressam suas sensações e suas impressões. O que os (as) negros(as) pensavam acerca dos
sistema de exploração aos quais estavam submetidos(as), como eles(as) viam a si próprios(as) e
como viam seus exploradores comparecem quando buscamos a história de negros(as) por
eles(as) mesmos(as) contadas em sua pluralidade e na exposição de seus agenciamentos no
romance em exame.

Os textos literários de autoria de negros(as) que dialogam com sua história podem contribuir para
o fortalecimento da identidade negra e para conhecimento de nossas ancestralidades nas
Américas. Afinal, os discursos hegemônicos da história não versam sobre os (as) negros (as)
como sujeitos e os tratam enquanto categoria social, não entram na sua individualidade. (Araújo,
2011). Já no processo criativo de autores (as) afro-latinos (as) há visibilidade de suas culturas a
“serviço da vida” e de identidades várias.
O desenho de uma NegrAmérica em Um defeito de cor (2006)

De modo semelhante às histórias contadas à sombra dos Irocos, ramificados e


desterritorializados na conexão África-América, as vivências de negros(as) diante do violento
sistema colonial nos são apresentadas a partir de aspectos diferenciados daqueles da América do
projeto colonial moderno europeu. Ouvimos as várias vozes de negros(as) e a voz da personagem
Kehinde, em Um defeito de cor (2006):

A minha avó não respondeu à pergunta de Taiwo, talvez porque, como eu, tinha
medo de que nos transformassem em carneiros ali mesmo, antes da viagem. Talvez
já nos matassem e pendurassem de cabeça pra baixo, como ela fazia quando matava
uma caça e pendurava no tronco de uma árvore. (Gonçalves, 2006, p. 44).

As impressões de negros e negras acerca do lugar ainda não conhecido contrariam pressupostos
de civilização e missão divina do projeto colonial. No excerto acima, a leitura do continente
americano é de um lugar de morte, um lugar de padecimento de indivíduos capturados e
escravizados, isto é, uma forma de interpretar as viagens pelo Atlântico.

Walter Mignolo (2003) pontua que podem emergir saberes diversos do que ele denomina
diferença colonial, isto é:

[...] o espaço onde emerge a colonialidade do poder. A diferença colonial é o espaço


onde as histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais
encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos
globais são forçados a adaptar-se, integrar-se, ou onde são adotados, rejeitados ou
ignorados[...] e finalmente, o local ao mesmo tempo físico e imaginário onde atua a
colonialidade do poder, no confronto de duas histórias locais visíveis em diferentes
espaços e tempos do planeta. (Mignolo, 2003, p. 10).

A diferença colonial é relevante porque considero que, aspectos de histórias como os que são
apresentados em Um defeito de cor (2006), elaborados por escritores(as) afro-latinos(as), podem
sim contribuir para “reinventar”, em linguagem artística, histórias locais que se tornem
confrontos das histórias e do imaginário de colonização (pre)dominantes que conhecemos. A
narrativa propicia-nos verificar os sofrimentos da viagem diaspórica da personagem
Kehinde/Luiza e de tantos outros(as) negros(as):
[...]Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e do calor, mas o que realmente
incomodava era o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu que se nos
deitássemos de bruços e empurrássemos o corpo um pouco para a frente,
poderíamos respirar o cheiro da madeira do casco do tumbeiro [...]As pessoas
enjoaram, inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois não
comíamos desde o dia da partida[...] O corpo também doía jogado contra o chão
duro, molhado e frio, pois não tínhamos espaço para uma posição
confortável[...]Tudo o que queríamos saber era se ainda estávamos longe do
estrangeiro, e alguns diziam que já tinham ouvido falar que a viagem poderia durar
meses, o que provocou grande desespero.(Gonçalves, 2010, p. 48-49).

A narrativa da protagonista de Um defeito de cor (2006), no fragmento acima, concebe a


América como lugar de desaparecimento de famílias de negros e negras (Gonçalves, 2010) e o
que vejo, é outra (des)organização daquela velha história de civilização moderna já contada e
conhecida, ou seja, nas folhas escritas de histórias por afro-latinos(as) inexiste espaço para o
“tempo identitário”, “homogêneo” e “neutro” de “coexistência sucessiva” (Benjamin, 1987;
Castoriadis, 2010).

Os excertos do escrito literário em foco ilustram que, conforme salienta Wolfgang Iser (1996), na
mediação do imaginário com o real, no texto ficcional, há as operações da seleção, da
combinação e do desnudamento do como se. Seguindo sua definição, o procedimento da seleção
propicia o conhecimento dos “elementos contextuais” escolhidos pelo autor na elaboração do
texto literário. Em Um defeito de cor (2006), alguns desses elementos contextuais são a dispersão
de negros(as) na América, sua escravização, sua exploração e a contraposição desses indivíduos
subalternizados a esse sistema e sua mobilização para reinventar suas culturas e suas identidades.
As folhas de suas histórias reescrevem aquelas hegemônicas que vangloriam os feitos dos
colonizadores – embora não possam se desvincular das mesmas completamente – e propiciam
entender que os percursos de negros(as) na América Latina ficcionalizados “são atualizados pelo
texto, enquanto outros ficam inativos, [...] são reforçados pelos que se ausentaram” e
consequentemente, confirmam que “[...] o mundo presente no texto é apontado pelo que se
ausenta e o que se ausenta pode ser assinalado por esta presença”. Além de tudo, “os elementos
escolhidos terão outro peso do que tinham no campo de referência existente” (Iser, 2002, p. 961).
Diferentemente de historiografias hegemônicas, Ana Maria Gonçalves selecionou para sua
respectiva textualidade histórias de negros(as) que deseja contar.

Ao procedimento da seleção no ato de fingir do texto ficcional, acresce-se o da combinação que


por sua vez, denota um “aumento significativo do potencial semântico”. Criam-se
relacionamentos intratextuais, articulam-se “normas, valores, alusões, citações”. Embora não
desconheça aqui as construções de inferiorização predominantes ainda hoje em meio aos
descendentes de africanos e as problemáticas identitárias, psicológicas e existenciais diante das
mesmas, cumpre sublinhar o agenciamento desempenhado por negros e negras em diferentes
contextos da América. Em Um defeito de cor (2006), os suicídios, a comunicação pelo olhar,
sem mesmo saber a língua do outro, a rejeição à religiosidade do colonizador ou mesmo a
simulação de praticá-la, a organização para as fugas, as estratégias construídas no cotidiano para
descumprir a rigidez do sistema escravocrata, as organizações culturais, a ancestralidade
empregada como instrumento de luta pela liberdade e a manifestação do desejo de contar a
própria história e realizar o feito são elementos combinados que “transgredem as fronteiras” de
histórias hegemônicas.

No romance, as transgressões de normas coloniais e racistas predominam nas histórias contadas


na voz feminina de Kehinde/ Luiza Gama. Em sua busca por Omotunde Adeleke Danbiran/Luiz,
quando chega a São Paulo, já não encontra mais o filho. Do mercador de escravos, soube que ele
não era muito dócil – visto que era baiano – e por essa razão, não conseguiu vendê-lo:

Os comerciantes do interior ficavam com as peças durante um tempo, e se não


conseguissem vendê-las, devolviam para a capital, onde sempre se arrumava uma
solução. Mas como você era baiano e tinha um jeito não muito dócil, como ele
disse, não conseguiu vendê-lo e o tomou como criado da hospedaria, encarregado
de serviços de limpeza. Ele gostava de você, deu para perceber pelo jeito como
falava, bravo, mas por causa de uma possível ingratidão. Elogiou seu trabalho,
dizendo que você era muito inteligente, que aprendia com rapidez, tudo o que
ensinavam e até o que não devia aprender. Não quis me dizer o quê, mas depois
fiquei sabendo. (Gonçalves, 2010, p. 722).

Apesar de não o encontrar, recebe notícias do filho, de que falava sempre da Bahia, de que
desejava ser advogado, de que gostava muito de estudar, de que era muito inteligente e de que
também foi valente e havia acabado de fugir:

Eu e aquele homem não conseguíamos nos entender muito bem, porque eu estava
completamente desorientada, sem saber que rumo tomar, e ele de tempos em
tempos me acusava de ter participação na sua fuga. A pensão estava cheia, com
vários hóspedes fixos, mas consegui alugar um quartinho minúsculo que havia no
fundo da construção. Um lugar que ele normalmente não alugava, pois servia de
depósito, mas deve ter achado que era melhor me manter por perto para tentar
descobrir se eu sabia mais alguma coisa. Para mim foi bom porque, à noite, fui
procurada por um hóspede, um estudante chamado Afonso, com quem pude
conversar com calma. O Afonso contou que todos na hospedaria gostavam muito de
você, inclusive o dono, e que você tinha fugido depois de descobrir uns documentos
que disse serem as provas de ter nascido livre. Tais documentos estavam escondidos
no escritório da hospedaria, e também por isso o dono estava tão bravo, pois te
acusava de roubo. Não sei que documentos poderiam ser, mas desconfio de sua
certidão, embora nela não constasse o nome do pai nem da mãe. Quando vi isso
fiquei horrorizada, porque você tinha os dois. Quanto ao seu pai, não sei, mas será
que ele não tinha colocado meu nome porque achava que eu tinha abandonado
vocês? Que nunca mais voltaria? O Afonso disse que você comentou com ele sem
entrar em detalhes, e que ia fugir porque merecia a liberdade, de nascença, mas
antes foi agradecer por ele ter te ensinado a ler e a escrever, pois só por causa disso
você tinha descoberto sua real situação (Gonçalves, 2010, p. 722).

Mesmo sabendo da sua fuga, Kehinde/Luiza Gama fica contente e prossegue na procura. A
próxima providência é solicitar a José Manoel, o marido da sinhazinha, que viaja para São
Sebastião que, quando chegasse ao destino, continuasse as buscas, publicando anúncio em jornal
e recomendando ao amigo que fizesse o mesmo em São Paulo. Contudo, seguia suas orientações
de não ter esperança e ao mesmo tempo, insistia em pagar por esta busca e confirma, com a
descrição que faz de Omotunde Adeleke Danbiran/Luiz, a história transgressora construída em
Um defeito de cor (2006) de que negros(as) na América Latina refutavam seu status de escravo,
sua situação de subalternização e desejavam alterá-la.

Nas folhas do romance, temos a oportunidade de ouvir Kehinde/Luiza Gama contar sobre
histórias de quilombos que nem sempre fazem parte da historiografia hegemônica brasileira e do
que aprendemos na escola:

O Jacinto então falou da última rebelião da qual tinha participado, depois de ter se
juntado a uns pretos no Quilombo do Urubu. Lembrei-me de que era o quilombo
onde estavam a Verenciana, o filho dela, a Liberata e pelo menos um dos pretos
fugidos durante a rebelião na Fazenda Nossa Senhora das Dores, em Itaparica.
Contei isso ao Jacinto e ele comentou que naquele momento eles estavam em um
outro lugar, porque o Quilombo do Urubu tinha sido dizimado. [...] A rebelião do
Urubu estava marcada para o dia vinte e cinco de dezembro de um mil oitocentos e
vinte e seis, no Natal, quando as pessoas estariam mais preocupadas com as
celebrações, relaxando a vigilância. A maioria dos rebelados era nagô, como o
Jacinto, comandados por um preto de quem ele não sabia o nome por ser mais
seguro assim, e pela sua mulher, a Zeferina, que seriam declarados rei e rainha de
um novo império nagô, se tudo tivesse dado certo. [...] O Jacinto se lembrava do
nome da Zeferina porque ela se tornou um exemplo para todos eles, enfrentando os
soldados armados apenas usando arco e flecha, depois de ter gritado o tempo
inteiro durante a luta, animando os guerreiros e não deixando que se dispersassem.
(Gonçalves, 2010, p. 281-282. Grifos meus)

A rebelião do quilombo do Urubu é apenas uma dentre tantas outras impulsionadas por
escravizados(as) no Brasil e que não ganham difusão amplamente devida para que o imaginário
de suposta passividade e depreciação do negro, ainda vigente, venha a ser superado. O nome da
mulher negra Zeferina auxilia na transgressão de normas do sistema colonial e racista como os
demais personagens já mencionados que representam “normas diferentes, cujo relacionamento
revela a vigência de certas normas, para que sua transgressão se compreenda como limitação
inevitável” (Iser, 2002, p. 967). Tais diferenciações podem ser consideradas, no texto literário
como o surgimento de:

[...]campos de referência intertextuais, resultantes dos elementos que o texto se


apropriou. Estes campos são em geral motivo para que um herói transgrida as
fronteiras, em princípio insuperáveis, existentes entre os campos. (Iser, 2002, p.
967).

A superação do insuperável imposto na América Latina faz parte da transgressão de imaginários


depreciativos acerca de negros e negras em Um defeito de cor (2006). O produto dos
procedimentos de seleção e combinação no ato de fingir do texto literário distingue e resulta em
outro: o desnudamento de sua ficcionalidade. No entendimento de Wolfgang Iser (2002), “é
característico da literatura se dá a conhecer como ficção” (2002, p. 970). Ele acrescenta que:

[...] as ficções não só existem como textos ficcionais; elas desempenham um papel
importante tanto nas atividades do conhecimento, da ação e do comportamento,
quanto no estabelecimento de instituições, de sociedades e de visões de mundo. [...]
A ficção preocupada com a explicação, na dissimulação de seu estatuto próprio [...]
pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário se
transforma em um como se. [...] o como se significa que o mundo representado não
é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser
representado como se o fosse [...] embora ele não seja um mundo real, deve ser
considerado como tal[...] este mundo do texto não teria nada idêntico ao mundo
dado, pois a intencionalidade e o relacionamento, que constituem a base de sua
forma de organização, não são qualidades do mundo dado (Iser, 2002, p. 978).

Um defeito de cor (2006) é aqui considerado como narrativa que desempenha relevante papel na
constituição de outras histórias de negros(as). Através destas, transformam-se os imaginários
hegemonicamente criados para sua dispersão nas Américas e de que eles(as) seriam, porventura,
incapazes de construir um outro passado para o projeto colonial moderno. O “mundo” resultante
de seus procedimentos de seleção e combinação podem ser encarados como significativa
contribuição para o processo de incompletude da história e para visibilidade de suas outras
versões, versões que só negros e negras na América Latina, em suas literaturas de histórias,
podem contar.

A particularidade do texto literário para contar histórias pode ser compreendida se atentamos
para as especificidades presentes nessa produção cultural apontadas, por exemplo, por estudiosos
como Antoine Compagnon (2009). Para ele, seguindo sua conferência intitulada Literatura para
quê? os poderes da literatura podem ser destacados ao longo de diferentes momentos do tempo.
Em suas palavras: “[...] o texto literário me fala de mim e dos outros; provoca minha compaixão;
quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seu destino; suas felicidades e seus
sofrimentos são momentaneamente os meus” (Compagnon, 2009, p. 48).

Portanto, posso considerar que os momentos, as histórias, desventuras, lutas, êxitos, culturas,
vivenciados por negros e negras na dispersão diaspórica, nos mundos representados pelo
romance em análise, fazem parte também do que nós vivenciamos enquanto descendentes de
africanos e desejosos(as) de preservar tais identidades passando adiante memórias que
subscrevem marcas e discursos depreciativos contra(as) os(as) negros(as). Preciso ressaltar ainda
que as versões de história aqui contadas são sim, outros mundos e jamais foram contadas desse
modo porque seguindo o crítico:

A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia, mais que os discursos


filosófico ou sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à
empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os outros discursos
negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes. [...] A literatura nos
liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida – a nossa e a dos outros
[...] A literatura exprimindo a exceção, oferece um conhecimento diferente do
conhecimento erudito, porém mais capaz de esclarecer os comportamentos e as
motivações humanas. Ela pensa, mas não como a ciência ou a filosofia. Seu
pensamento é heurístico (ela jamais cessa de procurar). [...] A literatura nos ensina a
melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica
aberta [...]. Há, portanto, um pensamento da literatura. A literatura é um exercício
de pensamento; [...]

A literatura não é a única, mas é mais atenta que a imagem e mais eficaz que o
documento, e isso é suficiente para garantir seu valor perene: ela é A vida
(Compagnon, 2009, p. 50-56).

A literatura aqui em estudo apresenta-nos detalhes e experiências da história que foram


negligenciados: negros(as) contando seu passado, seu conhecimento, sua perspectiva crítica
acerca de suas próprias trajetórias e no “exercício de pensamento” que a escrita artística propicia,
constroem outras imagens e outros imaginários para a América Latina e para o papel de
negros(as) nesse contexto.

Ao tratar do imaginário, Cornelius Castoriadis (2010) oferece-nos uma lúcida


compreensão acerca do tema e sua relação com o mundo em que vivemos. Consoante sua visão,
a história é lugar de manifestação do imaginário e reúne “significações imaginárias sociais”:
“fonemas, palavras, cédulas, djinns, estátuas, igrejas, instrumentos, uniformes, pinturas
corporais, cifras, postos aduaneiros, centauros, batinas, partituras musicais” (2010, 277). A esse
conjunto, acrescento a literatura, considerando que “as significações de uma sociedade são
também instituídas, diretamente ou indiretamente, em e por sua linguagem,” pois “a linguagem
existe em e por duas dimensões ou componentes indissociáveis. A linguagem é língua enquanto
significa, ou seja, enquanto se refere a um magma de significações” (Castoriadis, 2010, p. 277).
Contar negras histórias ad infinitum...

O texto em estudo pode contribuir para ampliar e fortalecer um fato que observamos na
contemporaneidade: a instauração de projetos que articulam identidade e etnia com base na
experiência da diáspora africana. As contestações atuais resultam da luta dos movimentos negros
e denotam empenho na construção de mudança no cenário de desprestígio para com os
afrodescendentes. No Brasil, ainda como consequência de tais reivindicações, chega a ser preciso
implementar a Lei 10.639/03 para dar visibilidade à história e à cultura africana e afro-brasileiras
no âmbito escolar.

Pode-se ainda notar significativos estudos que refutam a ideia de uma América Latina
supostamente homogênea. Para Antônio Cornejo Polar (2000, p. 7), a América é um continente
de “imensa diversidade” e essa concepção pode ser considerada junto com a noção de que
“nenhuma narrativa pode ser uma narrativa ‘mestra.

Na leitura de Cornelius Castoriadis, o imaginário pode ser compreendido como:

[...] invenção “absoluta” (“uma história imaginada em todas as suas partes”), ou de


um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são
investidos de outras significações que não suas significações “normais” ou
“canônicas” (Castoriadis, 2010, p. 154).

Ainda na esteira da explicitação fornecida pelo autor, o imaginário deve utilizar o simbólico para
tornar viável sua existência e o simbólico por sua vez, ativa a capacidade imaginária. O
imaginário do qual o autor se utiliza para sua abordagem é entendido como:
Criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e
psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível
falar-se de “alguma coisa.” Aquilo que denominamos “realidade” e
“racionalidade” são seus produtos (Castoriadis, 2010, p. 13).

A definição do autor auxilia no entendimento de que a criação é elemento básico naquilo que
acreditamos vivenciar enquanto”real” numa dada sociedade. Ao enfatizar esse aspecto, é preciso
destacar ainda que “cada sociedade elabora uma imagem de si” (Castoriadis, 2010, p. 179) e
dessa maneira, torna-se válido observar quais são as imagens “criadas” para a sustentação do
imaginário de uma dada sociedade na literatura e na história e como as mesmas se diferenciam
quando afro-latinos (as) estão à frente da criação.

Já segundo Sandra Jatahy Pesavento (2012), o imaginário pode ser compreendido como
capacidade criadora e atividade socialmente construída e ainda como “imagens-guias” dotadas de
coerência e sentido. Especificamente, no que concerne à História Cultural, o imaginário é
considerado “um conceito central para a análise da realidade, a traduzir a experiência do vivido e
do não vivido, ou seja, do suposto, do desconhecido, do desejado, do temido, do intuído”
(Pesavento, 2012, p. 44-47) Ainda na visão da autora, a construção imaginária apresenta como
referente ao “real,” “remete às coisas” e ao mesmo tempo, à “elaborações mentais que figuram
ou pensam sobre coisas que, concretamente, não existem” (Pesavento, 2012, p. 47) e com base
em sua leitura, afirmo que Um defeito de cor (2006) constrói diferentes imaginários para a
América Latina por meio das histórias de afrodescendentes que representa.

Vê-se a África conectada à América e o enegrecimento desse último espaço aparece na narrativa
analisada e na reflexão de estudiosos a exemplo de George Andrews. Segundo seu estudo
intitulado Afro-Latin America: 1800-2000 (2004) estima-se que um quarto da população da
América Latina é de ascendência africana e aponta o crescimento da mesma no século XX
também na América do Norte. O autor salienta que o povo negro, proveniente de diferentes
lugares da África, trabalhou nos mais diversos setores para a construção da sociedade latino-
americana. Com base na sua leitura, a presença negra no continente comparece em estudos dos
cientistas políticos Anani Dzidzienyo e Pierre-Michel Fonatine que caracterizam o espaço latino-
americano de modo singular, isto é, o denominam de América Afro-latina, na década de 1970,
com referência àqueles de ascendência africana. Tais indivíduos compartilhariam a herança de
uma experiência histórica em comum e que, como cidadãos nos dias de hoje, “lutam para escapar
da herança econômica da pobreza” e ainda se encontram sob “a sombra da herança social da
desigualdade de classe e raça deixada pela escravidão” (Andrews, 2004, p. 3-4).

Faz-se necessário dizer que após, a década de 70 – marco para pensarmos no termo Afro-latin
América – outros estudiosos buscam enfatizar a experiência da diáspora no continente. Lélia
González (1988) é uma das que destaca a diversidade cultural da América Latina através do
termo Améfrica. Ela explica:

Portanto, a Améfrica, enquanto sistema etnogeográfico de referência, é uma criação


nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em
modelos africanos. (...) Ontem, como hoje, amefricanos oriundos dos mais
diferentes países tem desempenhado um papel crucial na elaboração dessa
Amefricanidade que identifica, na Diáspora, uma experiência histórica comum que
exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada. Embora
pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de
dominação é o mesmo em todas elas, ou seja, o racismo, essa elaboração fria e
extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos
os níveis de pensamento. (Gonzaléz, 1988, p. 77).

Vejo então Ana Maria Gonçalves e tantos outros autores negros como amefricanos que
contribuem para conhecermos mais a experiência comum da diáspora escrita pela enunciação
negra em linguagem literária. A Professora Titular do Instituto de Letras da Universidade Federal
da Bahia, Florentina da Silva Souza, Doutora em Literatura Brasileira e Coordenadora do Grupo
de Pesquisa intitulado Etnicidades: escritores(as) afro-latinos(as), discute a importância do
conceito de amefricanidade. Ela considera, com base nessa noção, a importância:

[...] de outras categorias que aliem conexões transnacionais para pensar não
somente a cultura brasileira, mas também os trânsitos e as trocas que se efetivam e
se efetivaram entre as demais culturas negras do Atlântico Negro Sul. Categorias
que ultrapassam os limites das convenções tidas por ocidentais nas quais nem
sempre as diferenças são estudadas em quadros não monolíticos. (Souza, 2012, p.
192).

Acredito que Ana Maria Gonçalves, a partir de sua textualidade literária em estudo, desenha uma
América que não cabe nas “convenções tidas por Ocidentais” porque desenha uma outra
América permeada de histórias, vivências, experiências e de identidades negras em sua
pluralidade. Bem assim, a narrativa Um defeito de cor (2006) cria uma contraposição ao racismo
por meio da escrita artística.Essa perspectiva pode fortalecer o que Anani Dzidzienyo e Pierre-
Michel Fonatine chamam de América Afro-Latina, o que Lélia González (1988) chama de
Améfrica e o que eu chamo de NegrAmérica: uma diversidade de lugares, um espaço múltiplo
em que africanos(as) e afro-latinos(as) reconstruíram/reconstroem suas vidas e deixaram/deixam
suas marcas impressas em formas de culturas, trajetórias, memórias, reconfiguradas nas
literaturas de histórias contadas por Ana Maria Gonçalves e muitos(as) outros(as) autores(as) da
diáspora negra que vieram e virão.
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Enaltecimento das ancestralidades afro-brasileiras como resposta
massiva à hegemonia literária
[82]
Gabriel Estides Delgado

Um defeito de cor, romance de 2006 escrito por Ana Maria Gonçalves, tornou-se uma referência
da literatura negra brasileira neste começo de século. A visada interna e feminina conjugada ao
fôlego narrativo épico, que conformam a representação da experiência afro-brasileira antes e
após a Abolição da escravatura, parecem reservar a posição de livro incontornável na produção
literária brasileira contemporânea. Não obstante a consagração, que se ampara na relativa
novidade da empresa quando contraposta à ficção nacional corrente, resta um necessário retorno
ao texto da autora de origem mineira para que possamos destrinchar as características de tal
originalidade.

Gonçalves depositará sobre a construção da narradora de Um defeito de cor – uma personagem


histórica do século XIX – anseios característicos do ponto de vista autoral feminino e negro que
representa. A reação poética profusa da obra é tanto à realidade brasileira como um todo – e não
por acaso o gênero assumido na empresa é o romance histórico, gênero de recuperação histórica
– quanto a um campo literário com carência de referências negras[83]. O fôlego épico demora-se
sobre experiências suprimidas pela narrativa hegemônica eurocêntrica; o protagonismo narrativo
africano, o resgate de sua ancestralidade diversa – imune parcialmente às investidas do sequestro,
tráfico e espoliação –, revelam grande força literária, abrindo caminhos mais largos do que
poéticas pautadas sobre o fragmento escritural.

Veremos que tal ficcionalização da história é capaz de sedimentar determinado repertório


simbólico e material ausente tanto das narrativas historiográficas hegemônicas quanto até mesmo
da sociologia crítica brasileira. Nesse sentido, sem negar a diferença entre o registro sociológico
e o literário, cotejaremos o romance de Gonçalves com a tese A integração do negro na
sociedade de classes, de Florestan Fernandes. Na pesquisa do sociólogo paulistano, ainda que se
ressalte a capacidade de agência das populações negras – em recorte temporal em parte
coincidente com Um defeito de cor –, o foco recai, de modo majoritário, sobre a inadequação de
seu aparato de técnicas sociais em relação à incipiente sociedade competitiva (do final do século
XIX em diante). A anomia é herdada do cativeiro e não há “laços de interdependência,
responsabilidade e de solidariedade” que integrem “fortemente os homens, nos pequenos ou nos
grandes agrupamentos sociais” (Fernandes, 2008a [1964], p. 76). O fatalismo daí desprendido,
embora tratando-se de um dos primeiro grandes estudos a denunciar o “mito da democracia
racial”, recebe, como tentaremos demonstrar, complemento fundamental na ficção de Gonçalves.
A contradita representada por Um defeito de cor, entretanto, não alcança maior potência porque,
malgrado a história de excepcionalidade que ergue derivar dos firmes laços culturais cultivados
pelas populações afro-brasileiras, seu esforço de figuração e formalização – uma reescrita
literária da história – permanece tímido, como que refém do ímpeto reparatório e de sua
responsabilidade política.
A narrativa de Kehinde

Kehinde narra sua saga desde um navio, em 1899, quando tentará sua última chegada ao Brasil,
já cega e com cerca de 89 anos (Gonçalves, 2015 [2006], p. 911, 931-933). Da viagem, que
talvez não se complete para a protagonista (há uma indeterminação do enredo nesse sentido),
restarão manuscritos redigidos por Geninha, companheira de travessia daquela que à época
transformara-se em grande senhora daomeana. A emancipação excepcional da outrora escrava
brasileira – que volta a sua nação africana, o reino de Daomé, o Benim contemporâneo, e acaba
por enriquecer, também sobre território nigeriano, como empreiteira de casas e bairros em estilo
ocidental –, nutre-se das inflexões da épica. O ponto de chegada absolutamente insuspeito é
construído pormenorizadamente, em transcurso narrativo contíguo à construção do Brasil
moderno. É que na vida de titã que acompanharemos, Kehinde alude historicamente a Luíza
Mahin, “mito libertário do feminismo negro” (Lima, 2011), tida por articuladora e participe da
Revolta dos Malês (1835) em Salvador, e mãe de Luiz Gama (1830-1882).

Apesar de ser reverenciada muitas vezes como personagem histórica (real) pelo movimento
negro brasileiro[84], o primeiro documento que descreve a heroína é uma carta autobiográfica de
Luiz Gama. Vendido pelo pai branco como escravo ainda muito menino – tinha então 10 anos –,
Gama confere à figura materna, na epístola, uma conformação lendária, de impossível
comprovação, como já indicado por diversos estudos.[85] De 1880 – data da carta – em diante, o
imaginário sobre a mãe de Gama vem sendo alimentado na trilha do ímpeto insurrecional
atribuído a ela pelo filho, com importante rendimento simbólico para a afirmação da luta negra
no Brasil. De tal forma que comprovações sobre a existência ou não da personagem serão sempre
redutoras em face aos efeitos políticos mobilizadores desta última.

Reproduzimos a seguir o pequeno trecho que Gama dedica à mãe na carta autobiográfica, origem
das suplementações posteriores, que desembocam com grande vigor e sugestão em Um defeito de
cor:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de
nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem
lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e
vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma
vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de
escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da
Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou.
Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em
1862, soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-me sinais certos
que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”,
em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros
desapareceram. Em opinião dos meus informantes que esses “amotinados” fossem
mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os
africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela.
(Gama, 2011 [1880], p. 199-204 apud Lima, 2011, p. 142-143).

É imperioso notar como, além da duplicação nominal, as características sediciosas do retrato


materno são como espelho do... filho (Ferreira, 2008, p. 304; Azevedo, 1999, p. 69 apud Lima,
2011, p. 40).

No romance de Gonçalves, o célebre abolicionista vem à luz chamado Omotunde Adeleke


Danbiran (Gonçalves, 2015 [2006], p. 404), fruto de relacionamento com um comerciante
português. Este acaba por vender o filho a mercadores de escravos, traindo ignominiosamente a
relação que haviam construído (Gonçalves, 2015 [2006], p. 630-634). Trauma que motiva o
longo relato de Kehinde, o reencontro impossível com Omotunde/Luiz é duplicação dos óbices e
desvios fundadores do povoamento negro no Brasil. Móvel que Gonçalves se dispõe a
formalizar, trata-se de atitude artística grandiosa e interventiva ela mesma figurada em Um
defeito de cor, em seu prólogo: é a autora quem “acha” a longa missiva de Kehinde/Luísa,
“assumindo” – já no começo do século XXI – a tarefa compiladora e transcritora (Gonçalves,
2015 [2006], p. 9-17).[86]

Kehinde perderá mãe e irmão mais velho no começo arrebatadoramente brutal do relato. A avó
de Kehinde expressara culto divergente do permitido no reinado de Daomé, mudando-se com a
família de sua então capital – Abomé (ou Abomey) – para Savalu. Mas é “descoberta” por
guerreiros que temem seu culto ao vodun Dan.

Os guerreiros conversavam depressa e aos gritos, decerto resolvendo o que fazer,


enquanto eu e a Taiwo[87] nos demos as mãos, sem entendermos direito o que estava
acontecendo. A minha avó se atirou ao chão diante deles, implorando que fossem
embora, que levassem tudo o que quisessem levar, que Olorum os acompanhasse.
Eles não a ouviam e falavam de feitiços, de pragas e de Agontimé. Como se já não
houvesse sombra sob o iroco, uma outra [...] ainda mais escura e no formato de asas
de um grande pássaro voou sobre a cabeça da minha avó. Eu já tinha ouvido falar
daquele tipo de pássaro, era uma das ìyámis, uma das sete mulheres-pássaro que
quase sempre carregam más notícias. (Gonçalves, 2015 [2006], p. 22; grifo no
original).

Agontimé, conforme indicado em nota explicativa por Gonçalves, é “uma das rainhas do Daomé,
acusada de feitiçaria pelo rei Adandozan[88] e vendida como escrava. Uma das principais
sacerdotisas do culto a Dan, a serpente sagrada, e a Elegbatá, o orixá da varíola e das pestes”
(Gonçalves, 2015 [2006], p. 22). Resultado da disputa pelo trono de Daomé, a maldição atribuída
a Agontimé acaba por atingir a família de Kehinde por meio de sua avó (Gonçalves, 2015
[2006], p. 131, 596, 782-785). Com a mãe e o irmão mais velho assassinados, Kehinde parte para
o litoral, em Uidá, com a avó e a irmã gêmea. Sofrerá, por fim, revés definitivo. Em cenas que
reconstroem o vultoso mercado de escravos do golfo do Benim já no século XIX, a narradora é
capturada por traficantes. Sobrevive ao “tumbeiro”, mas chega ao continente americano sem os
familiares, vítimas da travessia e seu horror.

Em uma reconstrução à altura de suas exigências, reconstrução que contamos rara em toda
literatura brasileira – há, com efeito, os versos de Castro Alves (1997 [1869]) e, antes deles, o
romance pioneiro de Maria Firmina dos Reis (2004 [1859])[89] –, é com sentidos colapsados que
o leitor aproxima-se da experiência (apenas, contudo, literária).

A comida começou a apodrecer por todo o chão do navio, porque muitos, e eu


também, já não tínhamos mais apetite, e ao cheiro dela se juntava o cheiro de xixi,
de merda, de sangue, de vômito e de pus. Acho que todos nós já queríamos morrer
no dia em que abriram a portinhola e mandaram que nos preparássemos para sair.
Foi preciso repetir a ordem novamente, e novamente, porque faltava ânimo, faltava
força [...]. Disseram que iam nos levar para tomar banho, beber água e ficar um
pouco ao sol. Foi o sol que me animou a sair, e também fez com que nossos olhos
ardessem ao deixarmos o porão, a ponto de não conseguirmos abri-los, andando e
caindo uns por cima dos outros [...] não só por causa da fraqueza, mas porque as
pernas pareciam ter se desacostumado do peso do corpo, sempre deitado.
(Gonçalves, 2015 [2006], p. 56-57).

Chegando ao Brasil, batiza-se com o nome de Luísa, na impossibilidade de seguir expressando o


original “pagão” (Gonçalves, 2015 [2006], p. 72-73). Será doravante Luísa Gama, em adoção do
sobrenome de seu primeiro senhor, um fazendeiro de Itaparica (BA), senhor de engenho em
decadência, cujas terras seriam logo vendidas (Gonçalves, 2015 [2006], p. 185). Pela idade, é
designada como companhia para a filha do senhor, o que permite à protagonista aprender a ler e
a escrever, durante as aulas de sua sinhazinha com um “muçurumim” (escravo mulçumano)
chamado Fatumbi. Na fazenda, contudo, à medida que cresce, de pouco lhe adianta a indicação
para serviços domésticos e, por consequência, para a “senzala pequena”, dos negros da casa-
grande: é exposta à barbárie da posse escrava, do estupro à castração de um companheiro negro
que pretendia livrá-la da gana de seu algoz (Gonçalves, 2015 [2006], p. 166-172).

Mas se Gonçalves, em seu ímpeto de figuração histórica, não se exime de recolher as mais
violentas realizações dos regimes colonial e imperial no Brasil, individualizadas na trajetória da
protagonista, também a sobrevivência terá marcante papel na narrativa. A formalização de
núcleos saudáveis, ademais, transplantados para o cativeiro, e mesmo neste cultivados, por meio
tanto da socialização étnica quanto da religiosidade de origem, perfaz a mais impressionante
contribuição da escritora. Com efeito, Kehinde logo encontra conterrânea da nação jeje, povo a
que pertence. Mesmo impedida de falar livremente o iorubá e o eve-fon, suas línguas natais
(Gonçalves, 2015 [2006], p. 77), descobre em Nega Florinda um guia espiritual e sucedâneo de
sua avó.

Ela também era jeje, capturada em Ardra mais de sessenta anos antes, vivendo
como liberta havia mais de trinta. No Daomé, tinha chegado a ser vodu-no
[sacerdotisa no culto a Dan], como a minha avó antes de ser expulsa da corte de
Abomé. [...] No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o grande poder
que os voduns possuíam. Ela [...] disse que eu poderia me valer dos orixás para
cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Anyi-ewo,
Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum,
Iroco, Ibêjis, Xaponã e Olokum. [...] [O]s orixás já tinham tomado conta das
cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito tempo, praticado por quase todos
os africanos que [...] iam parar naquelas terras. Nossos voduns nunca teriam força
para ganhar um pouco de espaço ou atenção, e para eles estava destinado um lugar
não muito longe dali, do qual, por enquanto, ela nada podia falar. A Nega Florinda
foi embora prometendo me ajudar, primeiro com o pingente da Taiwo, depois com a
estátua dos Ibêjis, as maiores urgências. (Gonçalves, 2015 [2006], p. 83-84; grifo no
original).

Apesar do culto aos orixás ser majoritário pela preponderância de nagôs e iorubás na região
(Gonçalves, 2015 [2006], p. 502), e sem prejuízo do sincretismo que se formara a partir da
diversidade étnica africana em solo brasileiro, Kehinde se reaproximará de sua nação: os “jeje-
maís” ou “minas-jejes”.[90] Guardará seu culto como os demais companheiros de cativeiro,
escondendo em buracos na senzala as esculturas e imagens: “descobri como os pretos guardavam
os seus santos, escondidos dos olhos dos brancos, e que todas aquelas paredes já deviam estar
apoiadas em quase nada” (Gonçalves, 2015 [2006], p. 90).

E por vicissitudes que viriam a confirmar o que a personagem sente como predestinação, e que,
na prática, derivam de sua capacidade e formação intelectuais, permitindo a Kehinde um futuro
mais lato e ágil – desde a oportunidade das aulas junto à sinhazinha, ao aprendizado do inglês
quando trabalhara “alugada” na casa de britânicos, já na capital baiana (Gonçalves, 2015 [2006],
p. 213, 227) –, a narradora conseguirá aportar em São Luís (MA), para viver seis meses na Casa
das Minas, templo histórico e tombado do povo jeje no Brasil (cuja fundação remete à primeira
metade do século XIX (Ferretti, 2009 [1985], p. 54).

No relato a Omotunde, a chance de reafirmar a comum ancestralidade, retomando sentidos que


vira perder com o sequestro do filho ainda criança: “[t]enho a impressão de que você não sabe
muitas coisas sobre voduns, o que não é bom, porque poderia ter se valido da proteção deles. Os
da nossa família são muito fortes. Portanto, espero que ainda não seja tarde, e peço um pouco de
paciência para contar o que sei e posso” (Gonçalves, 2015 [2006], p. 599).

Kehinde passará então a reconstituir o culto na Casa das Minas, em que fora iniciada por Maria
Mineira Naê, a rainha Agontimé do Daomé, “redescoberta” no Brasil, para onde viera vendida.[91]
Apesar de longo, vale a pena transcrever o seguinte trecho do livro, por ser representativo da
formalização geral de sua fatura:

A noche Naê era a gaiacu, a mãe e dona da Casa, e abaixo dela havia os ogãs, e
entre eles, os tocadores de tambor, que são muito importantes para o culto. [...]
[A]inda havia uma gantó, ou ferreira, que tocava um instrumento de ferro chamado
gan e era acompanhada por mais quatro ou cinco mulheres que tocavam
instrumentos feitos de pequenas cabaças vestidas com contas coloridas. Ekedi é o
feminino de ogã, e são elas as que mais trabalham na arrumação do barracão, das
roupas e das cerimônias, e na Casa das Minas as ekedis eram as próprias vodúnsis.
Eu ajudava no que me pediam e aprendi um pouco de tudo [...]. Durante a estada,
também reaprendi a falar eve-fon, a língua utilizada em todos os cultos e também
no dia-a-dia. [...] O barracão onde são realizados os cultos tem o nome de kwe, e
dentro dele ficam os sabajis, os quartos sagrados que guardam os kpos [potes] com
assentamento dos voduns [...]. Zomadonu, o vodum da noche Naê e chefe da Casa,
tinha proibido o culto a Legba, depois de tê-lo acusado de ser o responsável pela
expulsão das vodúnsis do Daomé. A noche Naê [...] obedecia ao seu vodum, sendo,
porém, autorizada a oferecer um cântico a Legba no início de cada culto, para que
ele não atrapalhasse. (Gonçalves, 2015 [2006], p. 600-601; grifos no original).

Gonçalves versa frontalmente sobre a firmeza e profundidade dos laços sociais trazidos pelas
nações africanas transplantadas. Em registro artístico e literário, tal abordagem – que constitui o
valor original do romance – complementa, por exemplo, as manifestas limitações de uma das,
ainda hoje, mais abrangentes radiografias sociológicas sobre a composição negra no Brasil, a
tese A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes. Neste que é um dos
primeiros grandes estudos brasileiros a combater de forma sistemática o mito da “democracia
racial” no país (Fernandes, 2008a [1964], p. 304-327), o sociólogo trata com detalhes do
movimento social negro na primeira metade do século XX, dissertando, inclusive, sobre a
importância contemporânea de Luiz Gama[92], mas falha fragorosamente em ver além de tais
movimentos e da sempre baixa adesão que lograram junto às massas negras urbanas. Aferindo a
importância dessas associações civis – entre as quais a Frente Negra Brasileira e o grupo do
Clarim da Alvorada (pujante órgão da imprensa negra paulistana, publicado entre 1924 e 1932) –
e também o fracasso relativo de sua influência, deixa de versar sobre fenômenos de sociabilidade
cotidianos, verdadeiros núcleos salutares à sobrevivência e integração negras, como as crenças e
a espiritualidade transplantadas e mantidas. Pela desimportância com que figuram no quadro
sociológico definido – a despeito das proporções monumentais do estudo, que abrange desde a
década de 1880 até os anos 1960 –, tais fenômenos acabam tragados seja pelas consequências da
“exposição prolongada e inelutável a condições crônicas de anomia” (Fernandes, 2008a [1964],
p. 277), seja pelas tendências centrífugas e seculares de urbanização com veto à “preservação de
‘mores’ afro-brasileiros, que poderiam garantir a transformação da ‘população negra’ numa
minoria racial integrada e autônoma” (Fernandes, 2008a [1964], p. 120; grifo no original).

A heroica integração de comunidades em centros como a Casa das Minas – referências que
ecoam para além de suas sedes geográficas – e a persistência dos laços apesar das condições
precaríssimas de subsistência não têm vez no retrato sociológico sombrio que reputava a
desorganização societária crônica e seus efeitos deletérios. O mais saliente destes sendo a
impossibilidade das populações negras se “equiparem” com conhecimentos e comportamentos
indispensáveis à incipiente sociabilidade competitiva (cuja demanda por secularização dos estilos
de vida era também emulada pelos movimentos negros organizados, os quais divisavam aí, de
modo realista, o caminho para a Segunda Abolição (Fernandes, 2008b [1964], p. 64, passim).

Se Kehinde ascende na escala social e escapa à média de seus consortes – média esta aferida por
Florestan Fernandes a partir de 1880, mas remetida, outrossim, às condições contextuais das
décadas anteriores –, certamente é pelo talento na assimilação da cultura letrada e do tipo de
comportamento a ela vinculado.[93] Tal encaminhamento figurativo está em linha, portanto, com a
incorporação de técnicas sociais competitivas, cuja importância o sociólogo paulistano divisara
sem eximir-se de avaliar o fenômeno, quando existente, como ainda circunscrito à “ascensão
social parcelada”, apenas individual, e, por isso mesmo, “consagrada tradicionalmente” (no que
devia à manutenção do status quo em tal fase de desagregação do regime servil (Fernandes,
2008a [1964], p. 320-321). Mas a sobrevivência de Kehinde não depende menos de seu
“paganismo”, embora tenha que disfarçá-lo, de modo compulsório, a todo tempo. A força mais
elementar que move a narradora almeja a reunião definitiva com a família massacrada e, depois,
dispersa (com a cruel venda de Omotunde). Por isso, de modo paralelo ao sucesso das
empreitadas comerciais que banca[94], há sempre a busca: pela manutenção do elo de origem, o
que integra sua personalidade apesar dos muitos exílios.

No navio negreiro, a separação é oportunidade extremada de afirmação do vínculo:


potencialmente perdido, encontrará na sobrevivência de Kehinde razão de continuidade.

Algumas horas depois de terem levado a Taiwo [a irmã, morta, havia sido jogada ao
mar], como se estivesse apenas esperando que ela partisse [...], a minha avó disse
que estava [...] fraca e cansada, que perdia a força e a coragem longe dos seus
voduns [...]. Durante dois dias ela me falou sobre [...] a importância de cultuar e
respeitar os nossos antepassados. [...] [M]esmo que não fosse através dos voduns,
ela disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de
Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e
respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. (Gonçalves, 2015 [2006], p.
60-61).

Nesse sentido, a ficcionalização histórica erigida por Ana Maria Gonçalves vai além dos quadros
documentais disponibilizados em profusão por Fernandes e outros estudiosos da sociologia
crítica brasileira[95], para apropriar-se da “memória e experiência coletiva” que, segundo indica
com percuciência Fabiana Carneiro da Silva (2017, p. 70), “sobreviveram aos mais violentos
mecanismos de ocultamento e permaneceram vivas”.[96]

O longo descrever das tradições silenciadas – sempre ativas, não obstante –, a incorporação
textual de léxico iorubá, eve-fon, hauçá (Gonçalves, 2015 [2006], p. 308, 515) e quicongo
(Gonçalves, 2015 [2006], p. 501, 690-693), procedimentos associados à formação da narradora e
protagonista de Um defeito de cor, desvelam aos leitores a opção narrativa pela permanência da
superação. Tentativa de mímesis da luta negra no Brasil, impõem outra agenda poética à
literatura brasileira, sustentada por pesquisa exaustiva de culturas originárias.
Limites formais

Todavia, se com Ana Maria Gonçalves escapamos, assim, de limitar a experiência afro-brasileira
à marginalidade e desagregação socioeconômicas – e há indícios desse viés de redução fatalista
até mesmo, como vimos, na acurada tese de Florestan Fernandes[97] –, seria insuficiente não ler
Um defeito de cor também segundo as escolhas formais que impedem sua plena realização.

Embora quebre a rígida homogeneidade branca e masculina do perfil autoral cara ao campo
literário brasileiro, Gonçalves opta por conformar tradicionalmente sua obra. É que não obstante
o ponto de vista narrativo e sua sólida matéria – originada em boa parte na pesquisa exaustiva –
serem absolutamente extemporâneos ao grosso de nossa produção, e sustentarem a relevante
originalidade do romance, estão dispostos de modo conservador. A linearidade absoluta da
narrativa aponta para o conteúdo tornado imóvel, refém da própria magnitude, e a mão condutora
acanha-se seguindo lógica que proíbe qualquer distorção, mesmo as meramente figurativas. No
trecho destacado mais acima, quando se trata de narrar a estrutura litúrgica da Casa das Minas, a
limitação formal é saliente: Gonçalves, nutrindo completo respeito pelo assunto abordado, não é
capaz de avançar seu trabalho de ficcionalização e elaboração artística um passo além da
descrição reverencial. Se isso é particularmente sensível sobre o conteúdo religioso estrito, não é
menos determinante nos demais momentos. A ausência de alternativas formais à narração linear,
em livro tão volumoso, acaba por gerar repetições maçantes, cujo trabalho de reiteração de
componentes da trama constrange o romance a sua invariância.

A matéria, forte, basta a si mesma, até o ponto em que, nos piores lances, descamba para o
didatismo exacerbado, algo escolar, que é construído como componente do tom paternal de um
relato de mãe para filho. A premência da empresa e o compromisso político de Gonçalves em
levá-la a cabo engessam dessa forma as soluções. Sem “desconfiança” crítica sobre o que se
narra, tentando mesmo ser o mais fiel possível à importância da história, desprende-se efeito
embaraçoso: o “enxerto” por vezes artificial de acontecimentos, personagens e costumes
históricos – fatos e o próprio movimento da cultura têm seu sentido humano esterilizado e
transformam-se em curiosidades bem-intencionadas. Nesse sentido, o tratamento dissolutivo,
cômico ou até mesmo cínico da matéria histórica pode ser – em contradição apenas aparente –
mais “sério” do que o tratamento descritivo e linear. No primeiro, não há reverência à realidade
ou a compromissos pétreos que suplante a liberdade relativa da criação literária, seus voos mais
ou menos desimpedidos.
Como notou Fabiana Carneiro da Silva (2017, p. 117), no nível mais estrito da linguagem, a
longa epístola figurada em Um defeito de cor apresenta uma inverossímil ausência de
“perturbação (hiatos, elipses, hipérboles) [...] mesmo quando descritos os episódios mais
violentos” da vida da narradora. Entre a vivência subjetiva de Kehinde e o “empenho de
reescrever os significativos episódios históricos, sobretudo do Brasil, que ocorreram no período
compreendido nessa trajetória individual” há, segundo Silva (2017, p. 116), marcante falha de
articulação, que fragiliza a potência particular da obra, tal qual viemos descrevendo, qual seja:
sua liberdade (possível apenas ao registro da ficção) de reelaborar a “história pretensamente
nacional, tendo como filtro o âmbito dos interesses, percepções [...] e subjetividades daquelas
que ou foram excluídas ou mantiveram-se oprimidas, às margens das historiografias oficiais”. Os
“momentos de força da obra”, também segundo a percepção crítica de Silva (2017, p. 117),
seriam aqueles em que “a subjetividade de Luísa opera como lente para seleção e narração dos
fatos históricos a que temos acesso”. Sofrendo a concorrência quase permanente de uma aridez
estilística, são tais momentos[98] que se aproximam com maior alcance da memorialística afro-
brasileira, sobretudo oral, cujos traços culturais ainda pouco sistematizados pelas ciências
humanas o romance tem o mérito de disseminar.

As consequências dessa limitação de alternativas formais estão, portanto, paradoxalmente ligadas


a um distanciamento descritivo próximo à dicção historiográfica ou “científica”, que procura dar
conta de maneira objetiva da cultura (e conhecemos o regramento textual desse campo do
conhecimento: “doctrina primus, stilus ultimus”[99]). Logo o âmbito logocêntrico a que o
romance quer contrastar, com a mobilização de repertório simbólico ainda pouco “registrado”.
Vejamos trecho em que, dirigindo-se ao filho, a narradora reflete sobre a questão, de maneira
metaficcional (e também meta-histórica[100]):

[O]s africanos não gostam de pôr histórias no papel, o branco é que gosta. Você
pode dizer que estou fazendo isso agora, deixando tudo escrito para você, mas esta
é uma história que eu teria te contado aos poucos, noite após noite, até que você
dormisse. E só faço assim, por escrito, porque sei que já não tenho mais esse tempo.
Já não tenho mais quase tempo algum, a não ser o que já passou e que eu gostaria
de te deixar como herança. (Gonçalves, 2015 [2006], p. 617).

A autoconsciência sobre a empresa poética que a autora banca, visível, como indicamos, desde o
“prólogo” ao romance, em que Ana Maria Gonçalves apresenta-se como personagem
compiladora dos manuscritos ditados por Kehinde, não é, entretanto, recurso suficiente de
relativização e complexificação da narrativa. Isso porque o expediente permanece como mero
artifício temático e não influencia o nível mais elementar da linguagem, mantida em sucessão
estanque e com poucos ruídos – isto é, diversa do dinamismo, vivacidade, bem como das
inflexões lacunares e falhas reminiscentes característicos da tradição de transmissões orais[101]
que o livro identifica a si. Há apenas, no início da obra, o mencionado deslocamento temporal –
um “avanço” até o século XXI –, em que a autora-personagem chega mesmo a indicar edições e
invenções sobre trechos perdidos e ilegíveis do que tem à mão (Gonçalves, 2015 [2006], p. 16-
17). Mas a audácia reflexiva não chega a intervir no retilíneo texto subsequente, que se desenrola
sem atropelos temporais ou emersões de perspectivas conflitantes, que se concretizem a ponto de
fissurar ou desestabilizar a univocidade incômoda da obra. O tom é mantido até as páginas finais,
em que a situação de narração – o navio e a tentativa de último regresso ao Brasil – é revelada.
Último e central apontamento

A despeito de tais indicações, a crítica é menor se bem vista a importância incontornável de Um


defeito de cor para os campos de produção simbólica desse início de século no Brasil. “Acerto de
contas” com a história da participação negra no país, o que assume como memória ficcional é
tudo aquilo que as mãos brancas e masculinas – não mais “versadas”, como quer a sabotagem
racista: simplesmente privilegiadas – registraram a seu modo implicado. Sendo possível
identificar numa das cenas em que a narradora relata a busca por seu filho perdido, no Rio de
Janeiro dos anos 1840, a inscrição do motivo central ao romance, figurado no ímpeto narrativo
de Kehinde: resposta massiva que se constrói em alerta às redutoras hegemonias da história.

Será que você gosta de ler? O que será que você gosta de comer? Será que
encontrou uma boa esposa? Teve filhos? Quantos? São muitas as minhas perguntas
e sei que ficarão sem resposta. E como sei que isto é ruim, tento me lembrar de cada
detalhe importante da minha vida, para responder a todas as dúvidas que você pode
nem saber que tem. Sabe que tenho realizado um grande sonho? Não exatamente
como o sonhei, mas já é alguma coisa, porque naqueles dias em São Sebastião eu
pensava muito em quantas coisas teria para te contar quando nos encontrássemos,
em todos os lugares a que eu queria te levar, nas pessoas a quem queria te
apresentar. De certo modo é o que faço, embora quase nada do que estou falando
faça parte da nossa memória em comum, como eu gostaria que fosse. (Gonçalves,
2015 [2006], p. 662).

O que por forças históricas ainda se nega à memória brasileira e a sua identidade plural é
retomado por Um defeito de cor, que descomprime a experiência negra dos patamares rebaixados
a que sempre esteve submetida.
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WAIZBORT, Leopoldo (2006 [2000]). As aventuras de Georg Simmel. 2. ed. São Paulo: Editora
34, 2006.
Ancestralidade africana e estratégias de insubmissão em Um defeito
de cor
[102]
Karina de Almeida Calado

Este estudo parte de uma reflexão sobre o tom testemunhal que permeia a narrativa de Um
defeito de cor. Compreendemos que a voz da narradora-personagem, Kehinde, ergue-se contra o
silenciamento de mulheres negras que cruzaram o Atlântico. Essa voz é concebida como uma
voz de insubmissão porque, como destacou Glissant (2011), o espaço do navio negreiro era
também de silenciamento, de murmúrios abafados. A estratégia narrativa impressa no
testemunho é um dos aspectos fundamentais empregados no propósito de releitura da diáspora e
evocação do repertório cultural africano presente no texto.

O próprio provérbio africano que abre o primeiro capítulo da história já evidencia a imagem da
catástrofe original e a dor daqueles que esbarram com a captura e, a partir desse momento, têm a
liberdade ceifada, as próprias asas cortadas: “A borboleta que esbarra em espinhos rasga as
próprias asas”. Essa dor, metaforizada nas asas rasgadas da borboleta, trazida pela narrativa de
Um defeito de cor, jamais figuraria na épica tradicional, a épica dos vencedores. Nesse sentido,
como propõe Seligmann-Silva (2009), pensar a perspectiva do testemunho na voz de Kehinde é
buscar entender a emergência da história dos vencidos. Outro aspecto a ser observado na
introdução de provérbios, que abrem todos os capítulos da narrativa, é que eles mesmos são
estratégias das narrativas orais. Conforme podemos perceber já no provérbio mencionado, eles
funcionam como uma “espécie de ideograma de uma narrativa” (Benjamin, 1994, p. 221).

O testemunho[103] de uma mulher na diáspora africana é uma estratégia narrativa que merece a
nossa atenção, na obra de Ana Maria Gonçalves. Trata-se de um aspecto que, aliado à itinerância
da protagonista, é fundamental para o propósito de releitura da diáspora e evocação do repertório
cultural africano presente no texto.

No contexto escravocrata do século XIX, o testemunho de uma mulher africana pode ser
considerado como caráter transgressor. Além disso, a perspectiva da voz feminina negra na
diáspora rasura uma ideia de nação, forjada pela masculinidade. Consideramos, aqui, que em
uma nação construída sobre os pilares da diferença racial, o espaço reservado à mulher negra
seria, meramente, o de reprodutora “da diferença étnica absoluta” (Gilroy, 2001, p. 19). Essa
relação entre raça, nação e masculinidade é evidenciada por Gilroy, ao destacar que “a
integridade da raça, ou da nação, portanto, emerge como integridade da masculinidade. Na
verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão correta de hierarquia de gênero foi
instituída e reproduzida” (Gilroy, 2001, p. 19). Nesse aspecto, também podemos entender que o
testemunho e a história de Kehinde transgridam o lugar reservado à mulher negra, na nação
oficial. A transgressão pode ser ainda mais acentuada, se considerarmos que se trata de um
testemunho de uma mulher, negra e mãe, cuja figura é construída diversamente do estereótipo da
“mãe preta”, amplamente representado no cânone literário nacional, conforme Fabiana Silva
(2017).

A esse respeito, considerando o aspecto transgressor do testemunho de uma mulher, Márcio


Seligmann-Silva (2005) pontua a relação entre o masculino e o testemunho, impressa na própria
origem latina da palavra “testes”. Buscando o exemplo na Antiguidade Clássica, Seligmann-
Silva analisa a Eumênides, de Ésquilo, e nela considera que a prova do matricídio de Orestes é
contraposta ao argumento patrilinear e falocêntrico. Orestes é absolvido, numa demonstração de
que o argumento masculino sai vitorioso.

Esta relação entre falo como órgão genital masculino e o ato de fala apenas explicita
o aspecto falocêntrico do testemunho e da confissão. O testemunho, sobretudo em
seu sentido de testemunho de um terceiro, do testemunho jurídico, é falocêntrico.
Nas sociedades tradicionais as mulheres são excluídas das cortes enquanto
testemunhas. Josephus afirma que nos tempos bíblicos isto ocorria, o mesmo
valendo para a “mulher romana” (Seligmann-Silva, 2009, p. 142).

De acordo com Seligmann-Silva, a “prova” da masculinidade estaria na origem da concepção do


testemunho: “prova-se um crime como se prova a masculinidade” (Seligmann-Silva, 2009, p.
142). Esse crítico evidencia ainda uma nota de Freud, associando a palavra testemunha, na língua
germânica “Zeuge”, à representação dela nos hieróglifos “com a imagem das genitálias
masculinas”:

Ainda na nossa língua significa o Zeuge [testemunha] diante do tribunal, aquele que
atesta [beglaubigen] algo, a partir do modo de participação masculino no trabalho
de procriação, e já nos hieróglifos a testemunha [Zeuge] é escrita com a imagem das
genitálias masculinas (Freud apud Seligmann-Silva, 2005, p. 78).

Como evidencia Seligmann-Silva, as palavras testemunho e testículo, no latim, têm o mesmo


radical “testis”; ou seja, a mesma palavra, para ambos significados: “tanto pela via do germânico
encontramos a ‘poética’ do testemunho desaguando no tema da fertilidade masculina, como pela
do latim” (Seligmann-Silva, 2005, p. 79).
O tom testemunhal é impresso já no primeiro parágrafo da narrativa de Um defeito de cor,
assumido por uma voz em primeira pessoa. A personagem Kehinde abre a sua história
localizando espacial e temporalmente a sua origem: “Savalu, reino de Daomé, África, no ano de
mil oitocentos e dez” (Gonçalves, 2015, p. 19). Nota-se a importância que essa personagem dá,
já nesse momento, à memória africana, trazendo um rico acervo linguístico iorubá. Munida desse
acervo, Kehinde explica o seu nome e o de seus irmãos, bem como o seu significado cultural:

O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji, (Ibêji: Assim são chamados os
gêmeos entre os povos iorubás), e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e
por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome
dele significava “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O Kokumo era um
abiku, (Abiku: “criança nascida para morrer”), como a minha mãe. O nome dela,
Dúróorílke, era o mesmo que “fica, tu serás mimada” (Gonçalves, 2015, p. 19,
grifos da autora).

Percebemos que a narrativa de Kehinde amplia um acervo de imagens sobre a história da África
e evidencia um repertório da tradição oral sobre a história de seu povo. A narradora inicia a
narrativa de sua trajetória retomando, exatamente, a tradição oral de seu povo, tomando parte do
tempo épico de seus ancestrais e reencenando o passado heroico iorubá. É nessa tradição que a
narradora insere a sua história, entrelaçando-a à história de sua avó, nascida na capital do reino
de Daomé, conforme a própria Kehinde nos conta:

A minha avó nasceu em Abomé, a capital do reino de Daomé, ou Dan-home, onde o


rei governava da casa assentada sobre as entranhas de Dan. Ela dizia que esta é uma
história muito antiga, do tempo em que os homens ainda respeitavam as árvores,
quando o rei Abaka foi pedir ao vizinho Dan um pedaço de terra para aumentar o
seu reino. Daquela vez, Dan já deu a terra de má vontade, e quando Abaka pediu
outro pedaço para construir um castelo, Dan ficou bravo e respondeu que Abaka
podia construir o castelo sobre a sua barriga, pois não daria mais terra alguma. Com
raiva da resposta mal-educada, o rei Abaka matou Dan e, sobre as entranhas
espalhadas no chão, ergueu um palácio suntuoso, a partir do qual teve início o
grande império do povo iorubá (Gonçalves, 2015, p. 20).

No tom das histórias orais que permeiam o relato de Kehinde, temos acesso não somente à
África mítica, mas, também, à reconstrução da genealogia e da trajetória de sua família. Toda a
narrativa é marcada pela intenção didática e conselheira, característica dos grandes narradores
orais. A oralidade é mais um traço que ressoa a ancestralidade dessa narradora, pois, como
apontou Glissant (2011, p. 17), no navio negreiro embarca, também, a tradição oral do continente
africano: nele, “o único escrito é o livro de contabilidade que diz respeito ao valor de troca dos
escravos”.

O interlocutor é constantemente imergido no universo linguístico e cultural da narradora. Além


de todas as explicações dadas aos nomes africanos, cabe destacar, como exemplo desse início da
narrativa, a evocação da imagem do iroco, que é apresentado pela autora, em nota rodapé, como
a “árvore sagrada de algumas religiões africanas. No Brasil também é chamada de gameleira-
branca ou de ‘A Grande Árvore’ ou ‘A Árvore Sagrada’” (Gonçalves, 2015, p. 20).

A presença do iroco é muito significativa, porque é sob essa árvore, sagrada e simbólica na
cultura africana, que Kehinde tem mudado o destino da sua vida e o da sua família. Acontece a
catástrofe, que altera todo o curso de sua vida. Ali, a mãe de Kehinde é estuprada e morta pelos
guerreiros do rei Adandozan, e o seu irmão, Kokumo, é morto na mesma ocasião. Também
Kehinde e sua irmã gêmea são molestadas. Tudo isso acontece na frente da avó, como correção
exemplar pela acusação de feitiçaria. Toda a violência praticada contra a família tem início
quando os guerreiros reconhecem símbolos de Dan no tapete, tecido por Dúrójaiyé.

Após cumprir o ritual fúnebre dos dois familiares, a avó junta “roupas, panos, um pouco de
comida e as estátuas de Xangô, de Nana e dos Ibêjis, colocando tudo em uma trouxa”
(Gonçalves, 2015, p. 25) e pega a estrada, levando consigo as gêmeas Taiwo e Kehinde. Esse
gesto é muito significativo, pois evidencia a preocupação de carregar consigo os elementos que
marcam a sua ancestralidade. Observamos que, na trouxa da avó, o sagrado figura com o mesmo
valor de elementos que garantem a sobrevivência física, como a comida, por exemplo. A
primeira viagem da narradora tem como destino Uidá, cidade que funcionou como importante
entreposto comercial de escravos para a Bahia.

A marca da personagem, que se constitui na itinerância, já se imprime no início da narrativa,


afirmando-se como aspecto de relevo na leitura da obra. A itinerância de Kehinde se configura
como estratégia, que viabiliza todo o repertório de histórias e de imagens veiculadas na narrativa.
O exílio é a primeira grande imagem dessa longa história, podendo figurar como uma metonímia
da história da diáspora africana nas Américas.

Em sua obra Poética da Relação (2011), Édouard Glissant inicia as suas reflexões a partir da
ideia de exílio. Aponta a deportação como símbolo inicial da experiência do abismo a que foram
submetidos milhões de escravos africanos. Arrancado de sua terra, de seus deuses protetores, de
sua comunidade, o escravizado é lançado ao horror do tumbeiro, ao desconhecido:

O exílio suporta-se, mesmo quando sidera. A segunda noite foi de torturas, de


degenerescência do ser provocada por tantos incríveis sofrimentos. Imaginem
duzentas pessoas amontoadas num espaço que mal poderia conter um terço delas.
Imaginem o vômito, a carne viva, os piolhos pululantes, os mortos jacentes, os
agonizantes apodrecendo. Imaginem, se forem capazes, a embriaguez vermelha das
subidas ao convés, a rampa que é necessário subir, o sol negro no horizonte, a
vertigem, esse deslumbramento do céu colado às ondas (Glissant, 2011, p. 17).

O horror descrito por Glissant figura na memória, ainda de criança, de Kehinde. Essa
personagem relata o encontro com o horror, em um momento anterior ao navio negreiro,
evidenciando os conflitos internos em terras africanas e a experiência com a violência, que
obrigou as sobreviventes de sua família a sair de sua aldeia, quando se deslocando exatamente
para o litoral, de onde partiam os navios de cativos.

Kehinde se torna a única sobrevivente da catástrofe que acomete seus familiares. Deles, ela é a
única que sobrevive ao navio dos deportados. Nessa perspectiva, entendemos que é possível ler o
relato dessa personagem como o testemunho de uma sobrevivente. Ela é a testemunha da
barbárie. Ao longo da narrativa, acompanhamos o seu esforço para apresentar essa experiência e
simbolizar o que resiste a ser apresentado. Como destaca Seligmann-Silva, observamos que o
testemunho[104], nesse sentido: “sofre um deslocamento da elocução da verdade para a própria
pessoa que testemunha. Passa-se do testemunho pretensamente objetivo, para a subjetividade da
testemunha. Ela é, como notou Benveniste, superstes, testemunha sobrevivente” (Seligmann-
Silva, 2009, p. 131). Vale destacar que Kehinde não é apenas a narradora do que viveu, mas
também do que viu. Ou seja, ela apresenta “o testemunho em suas duas faces: de testemunho
ocular, testis, e a de testemunho como tentativa de apresentação do inapresentável, superstes”
(Seligmann-Silva, 2009, p. 134).

Todo o romance é o relato das memórias de Kehinde a Geninha, sua paciente escrivã e
interlocutora imediata. A narrativa se constitui como o teatro das memórias dessa narradora-
personagem. Sua interlocutora representa “uma construção complexa e essencial na situação
testemunhal” (Seligmann-Silva, 2009, p. 134); ela é o “outro” que ouve. O volume e a riqueza
dos detalhes das memórias narradas são impressionantes. A personagem revela uma capacidade
imensa de lembrança. Uma explicação possível para esse aspecto é o que sugere Seligmann-Silva
(2009, 136), ao pontuar que “os traumatizados como que sofrem de excesso de memória”. Esse
crítico faz uma observação sobre a lembrança, em sua análise sobre a personagem Riobaldo, de
Grande Sertão: Veredas, que define de maneira exemplar o relato da velha cega Kehinde: “um
folhear a vida de trás pra frente, como os idosos costumam fazer” (Seligmann-Silva, 2009, 136).
Na encenação do testemunho, Kehinde se revela como uma grande colecionadora de histórias, e
o fio de sua longa narrativa vai se desenrolando no percurso de sua trajetória itinerante. É uma
narradora que se constitui na travessia, nos deslocamentos. Sua experiência de vida inclui desde
o deslocamento interno, do interior ao litoral do continente africano, até três travessias
transatlânticas, além do deslocamento por vários espaços, no Brasil, e a experiência de
quitandeira, comerciante e revolucionária. Ou seja, Kehinde recorre à experiência, que é a fonte à
qual todos os grandes narradores recorrem, conforme aponta Benjamin (1994). Esse pensador
considera, ainda, que as melhores narrativas escritas são as que menos se distinguem das
histórias orais contadas pelos narradores anônimos. Assim, ele considera que o narrador pleno
figura a partir de dois grupos, o viajante e o conhecedor das histórias e tradições de seu país:
“Quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que
vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida
sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições” (Benjamin, 1994, p. 198).

A narradora de Um defeito de cor reúne aspectos desses dois grupos apontados por Benjamin.
Ela tanto é uma grande viajante, cuja vida se constitui no trânsito, quanto é uma narradora que
conhece muito bem as histórias e tradições de seu povo. Ou seja, ela acaba por ser, também, uma
grande narradora da diáspora.

Kehinde se revela uma exímia contadora porque também é uma grande ouvinte, e uma grande
observadora. Benjamin considera que esse perfil de narrador

pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria
experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua
substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua
vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a
luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida (Benjamin,
1994, p. 221).

Ainda no início da narrativa, percebemos a força desse olhar atento de Kehinde, e a forma como
vai registrando tudo, em sua memória. Seu relato da chegada a Uidá, e do seu encantamento pelo
mercado, é um exemplo da vista privilegiada da narradora:

Uidá era muito mais interessante que Savalu, e a minha avó segurava as nossas
mãos para que não nos perdêssemos. Eu tinha vontade de parar e ficar olhando tudo
o que acontecia ao meu redor, as mulheres que andavam com vários colares de
contas, as casas que eram maiores do que eu jamais teria imaginado, com cobertura
de palha e paredes de barro vazadas por portas muito baixas, e ainda tomavam os
dois lados da rua, quase sem nenhum espaço entre elas. Gostei quando chegamos à
praça, ao lado do mercado, e ficamos admirando as roupas, as pessoas, muita gente
com marcas que nem a minha avó sabia de onde eram. Quase todas as mulheres
andavam cobertas, pelo menos da cintura para baixo, e os panos que usavam eram
ricos em cores e em bordados com búzios e sementes, que também enfeitavam os
diversos colares e pulseiras, e, às vezes, os penteados. Ficamos por lá até a noite
chegar, e percebi que a minha avó não sabia muito bem o que fazer ou por onde
começar a nossa nova vida em Uidá. O mercado era grande e muito bem dividido,
com lugares certos para se comprar cerâmicas, tecidos, frutas, artigos de religião,
animais e, principalmente, comida (Gonçalves, 2015, p. 29).

Parece-nos interessante esse registro, porque ele nos dá uma pista para entendermos a vocação de
Kehinde para o comércio. Esse trecho é exemplar de como a narrativa se desenvolve,
evidenciando os intercâmbios, as trocas, que, ao mesmo tempo que vão constituindo a identidade
de Kehinde, permeiam o romance com a força da oralidade e da contação de histórias. Assim,
Kehinde é construída sob a perspectiva de uma personagem, sempre em travessia. Essa
característica traz para a história uma visão dos vários espaços nos quais ela transita, ao longo da
obra.

Kehinde conduz a narrativa, evidenciando as perdas acumuladas ao longo de sua história: da


mãe, do irmão, da avó, da irmã gêmea, da terra natal e dos filhos brasileiros (o primeiro, morto
ainda criança; o segundo, vendido pelo próprio pai como escravo). Entretanto, as estratégias para
a superação dessas perdas denotam uma força ativa da mulher negra escravizada, atributo
ausente na narrativa oficial.

Para Gilroy (2001, p. 370): “esse contato com a morte emerge continuamente na literatura e nas
culturas expressivas do Atlântico Negro”. Assim, ele aponta uma predominância de narrativas de
amor, perdas, exílios e viagens na cultura negra, e considera que elas desempenhem “um papel
especial, organizando socialmente a consciência do grupo ‘racial’ e afetando o importante
equilíbrio entre atividade interna e externa” (Gilroy, 2001, p. 370). Isso significa que essas
narrativas são fundamentais para se “inventar, manter e renovar” identidades: “Essas práticas
constituíram o Atlântico Negro como uma tradição não tradicional, um conjunto cultural
irredutivelmente moderno, excêntrico, instável e assimétrico, que não pode ser apreendido
mediante a lógica maniqueísta da codificação binária” (Gilroy, 2001, p. 370).

No pensamento de Gilroy, a tradição que constitui o Atlântico Negro não é oposta à da


modernidade, mas se configura como uma outra lógica, uma outra razão, igualmente “moderna”.
É uma tradição fundadora de uma cultura negra distinta e autoconsciente: “compreensivelmente
invocada para sublinhar as continuidades históricas, conversações subculturais, fertilizações
cruzadas intertextuais e interculturais” (Gilroy, 2001, p. 353).

Nesse aspecto, podemos vislumbrar a acuidade com que a narradora de Um defeito de cor é
construída, pois ela se mostra capaz de agenciar essas feições culturais do Atlântico Negro. Ao
recuperar a contadora de histórias, a autora evidencia a possibilidade de que a tradição possa
modificar o romance, e não o contrário. Isso rasura o que Gilroy postula nas seguintes
considerações:

O status dessa atividade social de contar histórias tem se modificado à medida que
o romance passa a ser um gênero mais importante, reduzindo o poder da
autobiografia e alterando a ideia de tradição, do mesmo modo que a relação entre
oralidade e cultura letrada também tem se transformado (Gilroy, 2001, p. 374).

Gilroy (2001) dedica uma parte de seu trabalho a reflexões acerca do gênero romance, na
produção de escritores africano-americanos. Ele afirma que há intensa negociação “da forma
romance que está associada com suas várias críticas da modernidade e do Iluminismo” (Gilroy,
2001, p. 406), quando esses escritores desenvolvem temáticas relacionadas à história,
historiografia, escravidão e recordação.

As considerações de Gilroy são embasadas em afirmações da escritora norte-americana Toni


Morrison, para quem o romance é necessário ao intuito de desenvolverem-se essas temáticas,
abafadas durante séculos. O romance, na opinião de Morrison, vem ocupar um lugar na cultura
negra, que antes era da música: “a mim me parece que o romance é necessário… agora de um
modo que não era necessário antes” (Morrison apud Gilroy, 2001, p. 407).

Entendemos que Ana Maria Gonçalves ocupa um lugar em uma tradição romanesca nas escritas
negras, que vêm se consolidando desde o século XIX. Essa tradição é citada por Gilroy, trazendo
o exemplo de Morrison, nos Estados Unidos. No Brasil, observando-se também os casos de
Maria Firmina dos Reis e de Conceição Evaristo, é possível considerar que a escravidão seja uma
temática permanentemente revisitada, componente de um espólio narrativo:

O desejo de regressar à escravidão e explorá-la na literatura imaginativa ofereceu a


Morrison e a muitos outros escritores negros contemporâneos um meio de reencenar
confrontos entre o pensamento racional, científico e iluminista euro-americano e a
perspectiva supostamente primitiva dos escravos africanos pré-históricos, incultos e
bárbaros (Gilroy, 2001, p. 409).
Notamos que Gilroy, assim como observamos no pensamento de Mbembe (2014), enxerga na
escrita negra um contraponto, ou confrontação, da razão negra ocidental. Essa escrita passa a
instituir, ao contrário da razão ocidental, uma razão negra do negro, que desconstrói uma
imagem atribuída ao negro, de selvagem e de submisso.

Esse desejo de regressar à escravidão nos parece necessário, como afirmou Morrison. Trata-se de
uma ferida, ou mesmo de uma cicatriz, cuja potencialidade geradora de narrativas pode vir a
preencher as lacunas do (des)conhecimento acerca da nossa própria história, como, também,
pode se constituir como uma forma de encarar o terror e o trauma da colônia. Mbembe (2014)
considera que a força da presença da colônia nas escritas negras ainda é algo latente:

Na natureza das escritas negras, a colônia aparece como cena originária que não
ocupa apenas o espaço da recordação, à maneira de um espelho. É também
representada como uma das matrizes significantes da linguagem do passado e do
presente, da identidade e da morte. É o corpo que dá carne e peso à subjetividade,
algo que não só recordamos como continuamos a experimentar, visceralmente,
muito tempo depois do seu formal desaparecimento (Mbembe, 2014, p. 181).

Esse filósofo sugere que a memória da escravidão ainda figure como trauma, e a vislumbra como
uma das “matrizes significantes da linguagem do passado e do presente, da identidade e da
morte”. Ou seja, a escravidão ainda se configura como peso do qual o negro não conseguiu se
libertar. Parece evidente que a experiência negra no mundo permaneça levando consigo o “peso
de uma maldição” (Mbembe, 2014, p. 192).

Acreditamos que seja pertinente considerar-se que a permanência dessa evocação da experiência
escrava possa ser encarada como instrumento suplementar e constituinte de um outro lugar, ou
de uma outra razão, do negro na modernidade.

No período posterior à escravidão, a memória da experiência escrava é evocada em


si mesma e utilizada como um instrumento adicional, suplementar, com o qual
construir uma interpretação distinta da modernidade. Quer essas memórias
invoquem ou não a lembrança de um terror que ultrapassa a apreensão do discurso
ideal, gramatical, elas apontam no presente para uma transformação utópica da
subordinação racial (Gilroy, 2001, p. 154).

É nesse aspecto que Gilroy destaca a relevância de uma escrita negra no “trabalho decisivo de
investigar os terrores que esgotam os recursos da linguagem em meio aos entulhos de uma
catástrofe que proíbe a existência de sua arte, ao mesmo tempo que exige sua continuação”
(Gilroy, 2001, p. 405). As considerações de Gilroy buscam explicar essa guinada para a história,
promovida pelos escritores africano-americanos e afro-brasileiros. Vale destacar que essa
guinada para a história é feita explorando-se as possibilidades criativas, dentro da forma e do
trabalho, enquanto texto literário.

A guinada para a história é necessária num contexto em que muito do passado precisa ser
recuperado, para sejam possíveis outras interpretações da História. Na construção de uma outra
razão negra, vamos perceber, nas reflexões de Gilroy, que a experiência escrava marca o negro
como primeiro povo realmente moderno, pois já no século XIX lida com “dilemas e dificuldades
que apenas se tornariam a substância da vida cotidiana na Europa um século mais tarde” (Gilroy,
2001, p. 412). Essa afirmação se esclarece no texto de Morrison, quando ela declara:

[…] a vida moderna começa com a escravidão… Do ponto de vista das mulheres,
em termos de enfrentar os problemas que o mundo enfrenta agora, as mulheres
negras tiveram de lidar com problemas pós-modernos no século XIX e antes. Essas
coisas tiveram de ser abordadas pelo povo negro muito tempo antes: certos tipos de
dissolução, a perda e a necessidade de construir certos tipos de estabilidade. Certos
tipos de loucura, enlouquecer deliberadamente, como diz um dos personagens no
livro, “para não perder a cabeça”. Essas estratégias de sobrevivência constituíam a
pessoa verdadeiramente moderna. São uma resposta a fenômenos ocidentais
predatórios. Você pode chamar isto de ideologia e de economia, mas trata-se de
uma patologia. A escravidão dividiu o mundo ao meio, ela o dividiu em todos os
sentidos. Ela dividiu a Europa. Ela fez deles alguma outra coisa, ela fez deles
senhores de escravos, ela os enlouqueceu. Não se pode fazer isso durante centenas
de anos sem que isto cobre algum tributo. Eles tiveram de desumanizar, não só os
escravos, mas a si mesmos. Eles tiveram de reconstruir tudo a fim de fazer este
sistema parecer verdadeiro. Isto tornou tudo possível na Segunda Guerra Mundial.
Tornou necessária a Primeira Guerra Mundial. Racismo é a palavra que
empregamos para abarcar tudo isto (Morrison apud Gilroy, 2001, p. 412-413).

Essa perspectiva traz para a história novos paradigmas, e configura uma nova razão que, como
pontua Mbembe (2014), é diversa da razão ocidental. Trata-se de um discurso construído no
contraponto do eurocentrismo, reivindicando para o negro a sua parte na história moral do
Ocidente.

Perceber o negro como protagonista, na modernidade, configura-se como um passo importante


para restituir-lhe a sua humanidade, roubada pela razão ocidental. Do mesmo modo, perceber o
negro como pioneiro, no enfrentamento do terror e de problemas que só viriam a ser conhecidos
pela Europa no século XX, e, ainda, como desenvolvedor de estratégias de sobrevivência que
constituíam a pessoa verdadeiramente moderna, poderia significar uma construção de vias de
combate ao racismo. Gilroy aponta que tanto Douglass como Du Bois (o que podemos
vislumbrar em tantos outros escritores negros) empenham-se em:

estabelecer que a história dos negros no Novo Mundo, particularmente as


experiências do tráfico escravo e da plantation, era uma parte legítima da história
moral do Ocidente como um todo. Não eram eventos únicos – episódios discretos
na história de uma minoria – que poderiam ser apreendidos por seu impacto
exclusivo sobre os negros em si mesmos, nem eram aberrações em relação ao
espírito da cultura moderna que provavelmente teriam de ser superados pelo
progresso inexorável rumo a uma utopia secular, racional. A existência permanente
do racismo desmentiu estes dois vereditos e exige que consideremos mais
profundamente a relação de terror e subordinação racial com a própria natureza
interna da modernidade (Gilroy, 2001, p. 154).

A análise de Gilroy (2001, p. 153) aponta que há, na escrita negra, a construção de uma
perspectiva filosófica que tem “se repetido e reformulado desde então na cultura política do
Atlântico Negro”. Entendemos que seria, de maneira aproximada, o que Mbembe vai chamar de
construção da “razão negra do negro”. Essa escrita reformula e transforma a tradição iluminista,
a razão ocidental, que tem em Hegel um dos seus principais expoentes. Isso converge para o que
vimos buscando demonstrar em Um defeito de cor, mas igualmente impresso em muitos outros
textos das escritas negras, dos quais emergem a construção de outras concepções da
modernidade, a partir do ponto de vista do escravizado.

É conhecida a afirmação de Hegel de que o escravo “escolhe” ser cativo, pois, ao contrário,
poderia optar pela morte. Esse argumento fundamenta a sua tese de que o escravo aceita a
submissão. A ideia de submissão passiva, tese no pensamento ocidental, é rasurada em uma cena
do romance de Ana Maria Gonçalves, que ilustra bem o contraponto da escrita negra em relação
à razão eurocêntrica:

Pedi ao Jacinto que me contasse exatamente o que tinha acontecido no Urubu, e


muitos anos depois percebi que a grande falha estava mesmo na precipitação. A
rebelião do Urubu estava marcada para o dia vinte e cinco de dezembro de um mil
oitocentos e vinte e seis, no Natal, quando as pessoas estariam mais preocupadas
com as celebrações, relaxando a vigilância. A maioria dos rebelados era nagô, como
o Jacinto, comandados por um preto de quem ele não sabia o nome por ser mais
seguro assim, e pela sua mulher, a Zeferina, que seriam declarados rei e rainha de
um novo império nagô, se tudo tivesse dado certo. O Jacinto se lembrava do nome
da Zeferina porque ela se tornou um exemplo para todos eles, enfrentando os
soldados armados apenas usando arco e flecha, depois de ter gritado o tempo inteiro
durante a luta, animando os guerreiros e não deixando que se dispersassem
(Gonçalves, 2015, p. 282).

Kehinde revela, em sua narrativa, diversos momentos de insubmissão que culminaram em


revoltas. Nesse trecho, ela destaca a figura da mulher, a escrava Zeferina, como protagonista da
rebelião do Urubu. Observamos, aqui, que a figura do sujeito escravizado emerge não mais como
mero objeto, mas como um agente da história, mostrando-se, também, como agente da narrativa.

Notamos que o trecho exemplifica a recusa ao pacifismo. Nesse relato, podemos evidenciar um
aspecto da tomada de consciência: o escravizado transgride a sua condição de mercadoria e se
engaja na luta pela emancipação, pela autonomia. Kehinde revela, por exemplo, que toma
consciência da necessidade de insurgir-se ainda criança, quando presencia um levante de
escravos no engenho. Esses escravos insurgentes gritavam por liberdade, morte aos brancos e
justiça. Um deles tomba perto dela, debatendo-se, impulsionando o nascimento de sua revolta:

meu peito foi ficando apertado com a visão do riozinho de sangue, ao mesmo tempo
que nascia uma revolta muito grande pela nossa condição. Apesar da pouca idade,
acho que foi naquele momento que tomei consciência de que tinha que fazer alguma
coisa, pelos meus mortos, por todos os mortos dos que estavam ali, por todos nós,
que estávamos vivos como se não estivéssemos, porque as nossas vidas valiam o
que o sinhô tinha pagado por elas, nada mais (Gonçalves, 2015, p. 144).

As observações de Kehinde vão ao encontro do que afirma Mbembe (2014, p. 132), ao refletir
que “a vida de um escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte em vida”. A imagem do
riozinho de sangue, uma metáfora recorrente em sua trajetória, aparece nesse momento, em que
expressa a sua oposição à razão que havia transformado tanto ela quanto os seus semelhantes em
mercadoria. Essa tomada de consciência levará Kehinde a participar de revoltas, como a dos
Malês, que preenchem a narrativa com imagens que não se encontram na história oficial. A
narradora traz um amplo acervo de imagens, a partir do seu papel de observadora dos
acontecimentos, desde o tráfico proibido de escravos até a sua participação ativa no combate,
como no trecho que segue:
Já estávamos cansados, correndo de um lado para outro havia mais de três horas,
ainda longe do destino e sem saber se teríamos forças para chegar até lá. E mesmo
se tivéssemos, era bem possível que não houvesse tempo para um descanso antes de
seguirmos para o Recôncavo. Muitos fugiram antes mesmo de a luta começar para
valer, e não os condeno, porque eu também tive vontade de aproveitar que não
estava machucada e ir para casa. Mas depois pensava nas vidas que já se tinham
perdido e olhava para meus companheiros, a grande maioria mais velhos e mais
cansados do que eu, mas ainda acreditando que era possível. O Fatumbi era um
desses, com o rosto demonstrando cansaço a cada movimento e a voz rouca de tanto
gritar, mas não havia em seus gestos e olhos a menor dúvida quanto a ir até o fim.
Mesmo quando as patas dos cavalos avançavam sobre nós, mesmo quando as
poucas armas de fogo que tínhamos já estavam sem munição, mesmo quando um
ataque contínuo de mais de quinze minutos de balas vindo de dentro do quartel
deixava muitos dos nossos fora de combate ou a correr pelos matos e montes da
vizinhança. As patas dos cavalos também terminavam o serviço das balas, pois
bastava que um de nós caísse para receber a pisada ou o coice de misericórdia
(Gonçalves, 2015, p. 528-529).

Ao contrário do que afirma a razão negra ocidental, o escravizado faz a opção por rebelar-se,
tanto através, mesmo, da morte, quanto pelo suicídio, pela fuga, pelo luto silencioso ou, até, pelo
banzo. Gilroy (2001, p. 129) comenta, a esse respeito, que “não pode haver nenhuma
reciprocidade na plantation fora das possibilidades de rebelião e suicídio, fuga e luto silencioso,
e certamente não há nenhuma unidade de discurso para mediar a razão comunicativa”.

Uma passagem bem ilustrativa desse aspecto é a cena em que Kehinde narra o seu encontro com
uma escrava que havia matado os próprios filhos, para livrá-los de castigos e de maus-tratos:

ainda a vejo como se fosse naquele dia, vestida com uma roupa tão rasgada que não
conseguia esconder os ossos, que chamavam tanta atenção quanto os poucos dentes,
os magros pés deformados saindo por baixo de uma saia amarrada na cintura com
trapos sujos, e maçãs do rosto que mais pareciam cotovelos. No fundo de duas
covas, os olhos de alguém que parecia ter morrido sem saber. […] Os filhos da
mulher tinham sete e cinco anos, mais um bebê de oito meses, e os quatro tinham
passado mais de quinze dias trancados em um cubículo sem luz, sendo alimentados
apenas com uma caneca de água de arroz por dia. E isso tudo porque a mulher tinha
deixado uma vasilha de leite ferver e se espalhar pelo fogão, fazendo o dono acusá-
la de não trabalhar direito para dar atenção aos filhos, que por isso também foram
castigados. […] Ela, que, depois de ter matado as crianças apertando o pescoço
delas enquanto dormiam, falhou ao tentar se matar também, cortando o pescoço
com a caneca de lata na qual recebia a água de arroz. Sangrou mas não morreu, e
quando acordou estava abobada, talvez arrependida do que tinha feito aos filhos,
talvez maldizendo o deus que não quis levá-la para junto deles (Gonçalves, 2015, p.
395).

A mulher, que aparece tão nítida na memória de Kehinde, lembra a história da escrava norte-
americana Margaret Garner, que mata a própria filha para impedir que fosse devolvida à
escravidão. Margaret Garner também serviu de inspiração para a construção do romance Amada,
em que Toni Morrison adapta a história, na composição da narrativa de vida da personagem
Sethe. Essas narrativas nos permitem evidenciar o papel da literatura na construção da memória
das insubordinações escravas que foram ocultadas pela razão ocidental e, consequentemente,
pela história oficial.

Observamos, no trecho citado, aquilo que Gilroy (2001) chama de “preferência positiva pela
morte”. O escravizado recusa a vida, porque ela significa a continuidade da servidão. A opção
pela morte se configura como um gesto de escolha pela liberdade e contraria a lógica ocidental,
expressa em Hegel, de que o escravo prefere a escravidão em lugar da morte. Conforme
considera Gilroy (2001, p. 140), a morte é vista pelo escravo como forma de “libertação do terror
e da escravidão”, constituindo-se como “oportunidade para encontrar liberdade substantiva”.
Nesse sentido, a obra Um defeito de cor figura como contraponto da razão fundadora da
modernidade ocidental e revela sua importância fundamental na reconstrução da história da
modernidade, sob a perspectiva do sujeito escravizado.

Kehinde evidencia, portanto, feições de resistência no Novo Mundo, focalizando em


experiências suplementares da narrativa da diáspora africana. A face de insubmissão também se
revela na criação de estratégias de sobrevivência cultural das matrizes africanas na América.
Podemos pensar, assim, que a insubmissão é uma característica constituinte da identidade, no
Atlântico Negro.

A diáspora se apresenta como uma possibilidade de se pensar e problematizar a nação, de


maneira mais alargada e mais ampla. Ela, nesse sentido, funciona como uma contranarrativa da
nação oficial, fechada pelas fronteiras do espaço e da história nacionais, que é imaginada pela
cultura dominante. Como discorre Hall, “é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura
como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação” (Hall, 2003, p.
36). Desse modo, a diáspora nos permite a abertura, ou o alargamento, de visões, para que
possamos vislumbrar a emergência, a escrita e a inscrição de histórias sobre uma “trans-cultura
negra” do Atlântico.

A obra de Ana Maria Gonçalves nos revela um Atlântico Negro formado pela dinâmica das
misturas, dos contatos, de movimentos e de cruzamentos. A narrativa de Kehinde nos leva à
compreensão de que a diáspora expande cartografias. A multiplicidade de trajetórias, a
coexistência de espaços e as relações, além das trocas culturais, evidenciam a impossibilidade de
que uma nação seja imaginada e narrada apenas pelo centro e pelos limites das fronteiras
nacionais. Nesse sentido, Um defeito de cor tece a narrativa da nação do ponto de vista dos
escravizados, incluindo a perspectiva de um Brasil africano, recuperando subjetividades negras e
iluminando histórias de resistência, no geral, ocultadas em nossa história oficial.

Podemos dizer, assim, que as imagens de uma nação são muito mais verdadeiras em suas bordas
e avessos. Inclusive, a narrativa em questão nos revela que nas imagens da nação brasileira
podem figurar partes que estão do outro lado do oceano. Nesse aspecto, a diáspora alarga a ideia
de nação, porque valoriza “os parentescos sub e supranacionais” (Gilroy, 2001, p. 19).

Na perspectiva que propõe Gilroy (2001), concebemos que Um defeito de cor se revela como
uma escrita do Atlântico Negro. Assim, não podemos deixar de mencionar o caráter emblemático
da escrita da carta (romance), feita a bordo do navio Aliança, no qual a narradora faz a sua
terceira, e última, viagem de travessia do Atlântico. Toda a escrita é feita a partir da memória
narrada sobre as águas desse oceano.

Kehinde reúne a multiplicidade e se constrói numa identidade múltipla, característica da


diáspora. Seu relato sugere que a narradora de Um defeito de cor consegue se reconstituir fora de
sua terra natal a partir de estratégias de resistência e de superação, como é possível percebermos
desde o título do romance.

Convém destacar que esse título faz uma alusão à lei segregacionista do período colonial, que
impedia negros e mulatos de ocuparem cargos civis, militares e eclesiásticos. Para exercerem
esses cargos, os negros, ou mulatos, deveriam pedir a “dispensa do defeito de cor”. Cabe
considerar o que o poeta Luiz Gama escreve, nesse sentido: “Em nós, até a cor é um defeito”.
Como se respondesse a essa condição, Kehinde se pronuncia em sua narrativa, afirmando: “Não
tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse
branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto
esforço e recompensado com tanto êxito” (Gonçalves, 2015, p. 893). Nesse trecho, nota-se
evidentemente que a trajetória de vida de Kehinde se constitui na superação da condição imposta
pela razão eurocêntrica à sua cor.
Retomando o aspecto emblemático da rememoração da história de Kehinde, feita a bordo de um
navio, é importante pensarmos nessa imagem do navio como “imagem útil”, como propõe Gilroy
(2001). Essa imagem é simbólica. Ela mobiliza a invocação do terror racial, do tráfico de
escravos, mas também evoca o canal de comunicação, de contatos, de intercâmbios. Todos esses
aspectos constituem a memória e a identidade de Kehinde, pois é na recuperação dessa memória
que ela evidencia toda a complexidade de sua identidade. Ao encontro disso, convém elencar
uma cena em que ela explora o caráter simbólico da imagem do navio. Trata-se do momento em
que Kehinde vê sua irmã gêmea morrer na travessia, e sua avó está à beira da morte:

a minha avó disse que estava se sentindo fraca e cansada, que perdia a força e a
coragem longe dos seus voduns, pois tinha abandonado a terra deles, o lugar em que
eles tinham escolhido viver e onde eram poderosos, e eles não tinham como segui-
la. Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as
histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que
eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para
eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos
voduns, disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nana,
de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência
e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos (Gonçalves, 2015, p. 60-
61).

Essa passagem ilustra que o navio não é apenas um lugar de perdas, mas também é um espaço de
aprendizado, pela via da oralidade. Com a autoridade da mais velha, a voz da avó transmite sua
sabedoria da tradição oral para Kehinde, que passa a ter a missão de dar continuidade àquela
tradição para as gerações futuras, de ser guardiã de saberes e da ancestralidade de seu povo. No
trecho, podemos evidenciar que é no momento da morte que o saber e a sabedoria: “sobretudo
sua existência vivida […] – assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (Benjamin,
1994, p. 207).

Observamos que a maneira de se comunicar da avó, ao se dar conta de que a morte se aproxima,
é repetida por Kehinde quando, também percebendo que o seu fim está próximo, decide legar a
sua memória para o filho: “não tenho nenhum motivo especial para falar disso, a não ser a
vontade de relembrar toda a minha vida, de pôr a memória à prova, de saber sobre quem e sobre
o que ainda me lembro” (Gonçalves, 2015, p. 872). A memória dessa narradora é enriquecida por
um acervo de imagens de sua itinerância, tendo em vista que todos os seus deslocamentos
possibilitam ampliar a sua leitura da tradição africana. Essa leitura preenche a narrativa com um
caráter didático, distintivo das grandes epopeias, e norteia as nossas reflexões seguintes.
No Brasil, Kehinde se reencontra com suas tradições, ao conhecer a velha Nega Florinda, que é
descrita pela narradora como uma das pessoas mais velhas da ilha: “parecia saber todas as
histórias do mundo, desde que o mundo era mundo, como ela mesma dizia. Como recontadeira,
andava de casa em casa e recebia algum dinheiro ou mesmo sobras de comida” (Gonçalves,
2015, p. 81). A narrativa, então, passa a nos dar uma amostra de estratégias de sobrevivência da
tradição africana na diáspora, pois é essa personagem que introduzirá Kehinde no culto de seus
ancestrais e voduns, na Bahia. Também é por intermédio da Nega Florinda que a narradora
conhece Agontimé, rainha de Abomé, vendida como escrava para o Brasil. Com Agontimé, que
era “conhecida em Abomé pelas histórias que contava sobre o seu povo e sobre a fé, a força e a
importância dos ancestrais” (Gonçalves, 2015, p. 131), Kehinde encontra mais uma conselheira e
guardiã de saberes de sua terra, passando a conhecer mais sobre a tradição de seu povo.

Nessa perspectiva, a narradora se mostra notável em sua forma didática de passar para o filho,
interlocutor da carta, e, por conseguinte, para os demais leitores, a sabedoria ancestral de uma
África que se ressignifica no Brasil. Assim, a narrativa se faz rica em explicações acerca da
religiosidade africana, apresentando cultos, voduns e orações, como o oriki. É valiosa, nesse
aspecto, a cena em que Kehinde fala de uma Oxum que ganhou de Agontimé, e que era quase
igual à que sua avó tinha em Savalu:

[Agontimé] disse que era a deusa da fertilidade, da prosperidade, para que as


minhas ideias e os meus atos encontrassem terrenos férteis para crescer vitoriosos.
E que em algum momento, apesar de todos serem importantes, mas que em algum
momento muito mais importante do que outros, Oxum muito me valeria
(Gonçalves, 2015, p. 135).

A “verdadeira narrativa” apresenta dimensão didática, como já destacou Benjamin (1994). Desse
modo, podemos evidenciar, no relato que Kehinde deixa para o filho, a marca visível da
dimensão utilitária, figurando como ensinamento e transmissão de sabedoria ancestral para
outras gerações. Cabe destacar que a narradora prima, ao longo de sua história, pela exposição
dos significados de nomes africanos, que são sempre atribuídos com base em um contexto da
tradição. É exemplar, nesse sentido, a justificativa apresentada ao filho acerca do nome africano
dado a ele, Omotunde Adeleke Danbiran: “Omotunde significa ‘a criança voltou’, Adeleke quer
dizer que a criança será ‘mais poderosa que os inimigos’, e Danbiran, assim como o apelido do
Banjokô, é uma homenagem à minha avó e aos seus voduns, principalmente Dan” (Gonçalves,
2015, p. 404).

Observamos, em vários momentos da narrativa, que Kehinde se dirige a seu interlocutor


para lhe dizer coisas que gostaria que ele soubesse, que as contaria se estivessem juntos. Em
outra passagem, digna de nota, a narradora fala a seu filho como os iorubás veem a morte,
legando uma história que havia sido transmitida a ela:

O corpo, esse que a gente toca e vê, é chamado de ara, e quando morremos ele volta
a se fundir com a natureza. Mas há também o corpo que não vemos, dividido em
quatro partes. A primeira é o emi, o sopro vital que é criado por Oxalá e que depois
de abandonar nosso corpo volta para as forças controladas por ele, para depois ser
usado em outro corpo. A segunda parte é o orí, a cabeça, onde está nosso destino e
que morre junto com o ara, porque cada pessoa tem um destino, ninguém herda o
destino do outro. A terceira parte é o orixá, a nossa identidade, que define os nossos
defeitos e as nossas origens, qualidades, forças e fraquezas, e que é uma parte muito
pequenina do orixá geral, para quem retorna depois da morte do nosso corpo. E por
último existe o egum, que é como se fosse a nossa memória de passagem pelo ayê,
pela terra, o nosso espírito que volta para o Orum e que depois pode retornar,
nascendo geralmente dentro da mesma família, por muitas e muitas gerações. São
esses espíritos que, de certa maneira, podemos comparar ao que a minha avó
chamava de vodum, e que, por serem espíritos importantes para uma família ou um
povo, devem ser sempre lembrados e cultuados (Gonçalves, 2015, p. 577-578).

Esse trecho ilustra também a profunda conexão entre corpo e natureza, identidade e orixá, morte
e nascimento, indivíduo e ancestralidade. Tanto no ensinamento da avó como no ensinamento de
Kehinde ao seu filho, podemos perceber que há uma intensa prática de violência contra cada
cativo, configurada na retirada de sua aldeia, do seio de sua família e de seus ancestrais. Essa
violência é acentuada no momento do batismo no Novo Mundo, uma forma de tentar desvesti-lo
de sua identidade africana, tornando cristão aquele que é considerado “selvagem”. Kehinde relata
esse processo na cena em que foge do batismo para preservar sua identidade africana e seus laços
ancestrais:

[…] desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe
tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns. […] Para
os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O
nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos
voduns, por Nana, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo.
Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que
eu me apresentava ao sagrado e ao secreto (Gonçalves, 2015, p. 63-73).
Ao elencar o aspecto da violência contra a ancestralidade africana, chegamos a um ponto
crucial, em que é possível constatar que a manutenção do sistema colonial se dá pelo amplo uso
da violência. Todo o processo colonial se desenvolve sob esse signo. A violência contra a
ancestralidade é uma forma de “violência a respeito do passado”, conforme define Mbembe
(2014, p. 183). Essa prática busca esvaziar o passado do escravizado de qualquer substância. A
violência colonial possui uma tripla dimensão, da qual também faz parte “a violência no
comportamento cotidiano” e a “violência e a injúria a respeito do futuro” (Mbembe, 2014, p.
183). Trata-se de uma rede de violências. Assim, concebemos que é impossível tratar da diáspora
negra sem trazer para a discussão essas diversas feições da violência colonial, que é o “ponto de
encontro de violências múltiplas, diversas, reiteradas, cumulativas, vividas tanto no plano mental
como no dos músculos e sangue” (Mbembe, 2014, p. 183).
A memória de Kehinde traz gravada a inscrição da violência física no corpo do
escravizado. Entre diversas cenas ilustrativas, evidenciamos a violência colonial manifesta na
violência sexual, na passagem em que Kehinde é estuprada pelo sinhô José Carlos, na frente de
Lourenço, seu noivo, o qual, em seguida, também sofre a violência da sodomização e da
castração, como castigo corretivo do ato de rebeldia. A narradora, que já havia presenciado o
estupro de sua mãe, recupera em sua lembrança aquele acontecimento e compara os movimentos
do membro do sinhô com as emblemáticas chibatadas que castigavam os cativos. Vale destacar,
aqui, alguns termos com os quais Kehinde descreve aquela violação:

O monstro se acabou novamente dentro do Lourenço, uivando e dizendo que aquilo


era para terminar com a macheza dele, e que o remédio para a rebeldia ainda seria
dado, que ele não pensasse que tudo terminava ali. O sinhô José Carlos então se
vestiu e gritou para o Cipriano, perguntando se o castrador de porcos já tinha
chegado. O Cipriano respondeu que sim, que já estava tudo preparado (Gonçalves,
2015, p. 172).

Não sem propósito, a cena do estupro figura na parte intitulada “A posse”, constante do
capítulo três. Esse título evidencia as consequências mais perversas da dominação colonial: a
posse absoluta e cruel do corpo do escravizado. Conforme considera Mbembe (2014), a razão
que concebe o “Negro” estrutura a lógica da posse. Consequentemente, “o colonialismo não se
compreende sem a possibilidade de torturar, de violar ou de matar” (Mbembe, 2014, p. 187).
Os termos usados pela narradora convergem para acentuar o horror que é impresso à
cena, mobilizando um léxico condizente com o ato de selvageria praticado pelo sinhô. Assim, a
expressão “monstro uivando” é bastante ilustrativa dessa ideia, e faz com que o leitor
contraponha o sinhô ao sentido animalizante que é dado ao escravo, ao ser castrado por um
“castrador de porcos”. O juízo de valor acerca de quem seria o selvagem na cena fica impresso
nas entrelinhas da descrição.
Mbembe (2014) pontua que os gestos de matar, pilhar, brutalizar, inspiravam-se numa
razão sacrificial. Na cena, observamos claramente o que esse filósofo ressalta: na obstinação de
“ver no outro o animal, começa a tratá-lo como animal, transformando, afinal, o próprio colono
em animal” (Mbembe, 2014, p. 184). A violência figura como instrumento, no processo que visa
a transformar o outro em coisa, em animal. É a forma de ferir constantemente a humanidade do
cativo; um modo de negar o outro, inferiorizá-lo, desvesti-lo de sua honra.
Sabendo que o estupro era uma constante na colônia, é possível que o mais interessante
seja a sequência dessa cena, na parte intitulada “Vingança”[105]. Essa violência acaba por
mobilizar a revolta, o desejo de vingança, e, por sua vez, as ações pela liberdade. Nesse sentido,
podemos considerar acertada a observação de Fanon, ao dizer que “para o colonizado, a vida só
pode surgir do cadáver em decomposição do colono” (Fanon, 2005, p. 111).
Converge para essa afirmação de Fanon, de forma emblemática, o que acontece ao corpo do
sinhô José Carlos pouco tempo depois do estupro. O colono entra em decomposição ainda vivo.
Decomposição que começa pelo falo, picado por uma cobra, e, em seguida, estende-se ao corpo
inteiro, com o espalhamento do veneno. O acontecimento faz com que os escravos do engenho se
sintam vingados.

Se o falo é simbólico no processo de colonização, o seu apodrecimento acaba por ser a imagem
que simboliza a decomposição do próprio sistema. Nesse sentido, essa imagem da decomposição
desponta, a nosso ver, como metáfora da estratégia narrativa, empregada na construção do
romance. A imagem do falo e do homem branco, senhor de escravos, em putrefação, figura como
possibilidade de abertura de espaço, para que uma outra narrativa se construa em seu lugar,
contada na voz da mulher negra escravizada.

A encenação da morte daquele que escravizou, matou, estuprou, mutilou, causou a dor e fez
sufocar a voz do negro no Novo Mundo pode representar a configuração de espaço para que o
processo de colonização seja contado pelo testemunho de suas vítimas. Trata-se, portanto, de um
novo cenário de releitura, aberto à reinterpretação e ao surgimento de novas narrativas da
História.
Referências

BENJAMIN, Walter. (1994). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. p. 197-221.

FANON, Franz. (2005). Os condenados da terra. Trad. por Enilce Albergaria Rocha e Lucy
Magalhães. Juiz de Fora: Editora da UFJF.

GILROY, Paul. (2001). O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro:
Editora 34; Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.

GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da relação. Trad. por Manuela Mendonça. Porto: Porto
Editora.

GONÇALVES, Ana Maria. (2015). Um defeito de cor. 11. ed. Rio de Janeiro: Record.

HALL, Stuart. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização de Liv


Sovik. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil.

MBEMBE, Achille. (2014). Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2005). Testemunho e a política da memória: o tempo depois


das catástrofes. Projeto História, São Paulo, n. 30, p. 71-98.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2009). Grande Sertão: Veredas como gesto testemunhal e


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http://www.scielo.br/pdf/alea/v11n1/v11n1a11.pdf. Acesso em: 11 jun. 2018.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2010). O local do testemunho. Tempo e argumento,


Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20. Disponível em:
http://www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/viewFile/1894/1532. Acesso em: 25 mar.
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SILVA, Fabiana Carneiro da. (2017). Maternidade negra em Um defeito de cor: história, corpo e
nacionalismo como questões literárias. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São
Paulo, São Paulo.
História e ficção em Um defeito de cor: o envolvimento de Luísa
Mahin/Kehinde/Luísa Gama na Revolta dos Malês e na Sabinada
[106]
Ana Maria Vieira Silva

As ficções não existem só como textos ficcionais; elas desempenham um


papel importante tanto nas atividades do conhecimento, da ação e do
comportamento quanto no estabelecimento de instituições, de sociedades
e de visões de mundo.

Wolfgang Iser
História e Ficção

No romance Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves lança mão da pesquisa histórica para,
aliada à ficção, reconstituir com verossimilhança a realidade dos negros cativos africanos
chegados ao Brasil no início do século XIX, especificamente dos que foram levados para a
Bahia. Nesse romance, a autora enfatiza as relações cotidianas dos africanos com seus senhores,
bem como suas participações políticas nos acontecimentos relevantes daquela época,
principalmente nas revoltas negras ocorridas na Bahia nas primeiras décadas do século XIX,
culminando nas que tiveram maior repercussão histórica – A Revolta dos Malês e a Sabinada,
das quais a protagonista participou ao lado de personagens históricos que lideraram essas
manifestações. A autora dá voz a discursos marginalizados, de categorias que por muito tempo
foram relegadas e silenciadas pelo sistema colonialista. Essa relação de proximidade entre a
ficção e a história, em que a reconstrução do passado é problematizada, caracteriza o novo
modelo de narrativa de ficção da pós-modernidade que levou Linda Hutcheon a afirmar em seus
estudos teóricos sobre a Pós-modernidade, que se trata de metaficção historiográfica, em que a
história e a ficção se tornam atividades que se complementam ao dividirem “o mesmo ato de
refiguração ou remodelamento de nossa experiência de tempo por meio de configurações da
trama” (Hutcheon, 1991, p. 135). É com base nesse princípio e em outros que corroboram ou
complementam os postulados de Hutcheon que este estudo se fundamenta, principalmente na
teoria que define como metaficção o subtipo de romance que instaura uma crise na historicidade,
uma vez que seus personagens fictícios convivem ao lado de personagens históricos, num
contexto também historicamente situado, mas manipulado pelo autor intencionalmente.
Entendemos que esse é o caráter do romance analisado, inspirado nas lacunas da biografia do
poeta Luís Gama, importante líder abolicionista brasileiro, mestiço, supostamente filho de um
rico comerciante português e da escrava iorubá alforriada Luísa Mahin. Essa escrava, após
comprar sua liberdade, participou de lutas pré-abolicionistas na Bahia, como a revolta dos Malês
(1835) e a Sabinada (1837).

Nesse sentido, antes de se discutir o romance e sua relação com a história, é necessário saber o
que pensam os estudiosos sobre história e ficção.

Le Goff, ao tentar conceituar história, admite que hoje isso se tornou uma tarefa difícil, “visto
que a história não é uma ciência como as outras – sem contar aqueles que não a consideram
como ciência” (Le Goff, 2008, p. 17). Em sua opinião, é essa dificuldade de conceituar história
que leva “ao próprio âmago das ambiguidades da história” (p. 17). Para tentar elucidar o conceito
de história, Le Goff vai buscar a sua raiz etimológica:

A palavra história [...] vem do grego antigo historie [...]. Esta forma deriva da raiz
indo-europeia wid-, weid-, “ver”. Daí o sânscrito vettas, “testemunha”, e o grego
histor, testemunha no sentido de “aquele que vê”. Esta concepção de visão como
fonte essencial de conhecimento leva-nos à ideia de que histor, aquele que vê, é
também “aquele que sabe”; historien, em grego antigo, é “procurar saber”,
“informar-se”. Historie significa, pois, “procurar” (Le Goff, 2008, p. 18).

Le Goff amplia esse conceito de história ao considerar que nas línguas românicas a palavra
“história” exprime, no mínimo, dois ou três conceitos diferentes, a saber: “1) esta ‘procura das
ações realizadas pelos homens’ (Heródoto) que se esforça por se constituir em ciência, a ciência
histórica; 2) o objeto de procura é o que os homens realizam [...]”. O terceiro sentido de história
nas línguas românicas, de acordo com Le Goff, é o de narração (grifos do autor). “Uma história
é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade histórica’ ou puramente imaginária
[...]. (Le Goff, 2008, p. 18).

Benjamin (1994), em seu célebre capítulo “Sobre o conceito da história”, apresenta várias teses
suficientemente sábias quanto à determinação do que pode ser relevante para a conceituação da
história, que incluem sempre o confronto entre presente e passado, verdade e mito, vencedores e
vencidos:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os


pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida
poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Cada momento vivido transforma-se
numa citation à l’ordre Du jour – e esse dia é justamente o do juízo final
(Benjamin, 1994, p. 223, grifos do autor).

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos


da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato
histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador
consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, com as contas
de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em
contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda
um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do
messiânico (Benjamin, 1994, p. 232).
Em um estudo sobre as relações entre história e ficção, André Trouche (2006) busca
embasamento nas culturas ocidentais desde a Antiguidade para mostrar que o interesse da
inserção do histórico na arte, seja nas obras literárias, seja na teoria, é muito antigo, visto que
desde os textos fundadores da literatura ocidental, a epopeia homérica, “mito e história
entrecruzam-se na organização da narrativa. [...] desde aqueles momentos iniciais, as malhas do
tecido narrativo se tecem a partir de uma combinação especial desses dois fios fundamentais”
(Trouche, 2006, p. 32). Também nas primeiras reflexões sobre os estudos de poética, ainda que
indiretamente, já é perceptível esta questão, visto que, com base fundamentalmente no conceito
de verossimilhança, “Aristóteles cuidou de demarcar limites entre o poeta e o historiador”
(Bastos, 1994, apud Trouche, 2006, p. 32).

Segundo Trouche (2006), o diálogo entre ficção e história, embora remonte à Grécia clássica e
tenha despertado o interesse de pesquisadores em variadas épocas, ainda não se esgotou até hoje,
quando as reflexões e especulações que envolvem as relações entre o discurso da história e da
ficção novamente são reacendidos, exigindo um grande esforço de filósofos, teóricos e
historiadores. É uma discussão que tem como principal foco mostrar a expansão dos conceitos de
história e de ficção nos dias atuais, bem como a interpenetração desses conceitos em outras áreas
do conhecimento. A esse respeito, Trouche fala das tendências e evidências constantes dos
estudos, onde uma tendência se destaca – a da relativização dos limites rígidos entre história e
ficção. Esse pesquisador assim explica a emergência dessa tendência:

Como fatores determinantes na construção desta tendência de relativização, pode-se


apontar a forte influência recíproca e a grande permuta de procedimentos e
processos discursivos entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional, aliadas
ambas às alterações conceituais que se vieram processando no interior de cada uma
delas (Trouche, 2006, p. 33).

As alterações conceituais apontadas por Trouche podem ser observadas tanto no âmbito da
história, resultantes da “incorporação das reflexões e propostas geradas pela grande revisão
conceitual promovida pela nova história, pelos grandes questionamentos contrapostos à história
positivista e pela influência decisiva exercida pelos estudos do cotidiano, desenvolvidos pela
história cultural” (Trouche, 2006, p. 33), quanto no âmbito da literatura, onde se podem observar
três tendências que contribuem para a relativização dos limites entre a história e a ficção: o
permanente interesse pelo passado histórico; as relações entre texto e contexto, que são sempre o
alvo das discussões e especulações teóricas que envolvem críticos e criadores; e o
autoquestionamento sempre presente no processo literário, contribuindo para “uma grande
abertura na concepção de discurso e de narrativa ficcional, além de relativizar e ultrapassar
quaisquer fronteiras mais rígidas que pretendessem impor limites ao literário” (Trouche, 2006, p.
34).

Esses conceitos de Le Goff, Benjamin e Trouche servem para corroborar a análise de Um defeito
de cor, que, independentemente de qualquer outra classificação teórica, é antes de tudo uma
narrativa que possui tanto elementos históricos quanto literários, considerando que se a história
reproduz o real, a literatura trabalha com o imaginário. A narrativa de Um defeito de cor é, sem
dúvida, ficção, pois que foi tecida como trama romanesca, revelando aspectos próprios das
narrativas de ficção, cuja função principal é manter a atenção do leitor, apresentando-lhe
situações que despertem o seu interesse. Entretanto, essa narrativa não se reduz a apenas isso,
mas traz em seu interior muitos fatos históricos, razão pela qual se considera que se trata de uma
narrativa de gênero híbrido, aliás, como a maioria das narrativas de ficção pós-modernas.

A relação história e ficção tem sido sempre discutida quando as narrativas ficcionais trazem um
fato do passado para ser o tema principal ou coadjuvante dessas narrativas. Um exemplo disso é
a violência praticada contra os negros no Brasil colonial que, por ser considerada uma catástrofe
na história nacional, tem motivado estudos históricos pós-coloniais revisionistas, objetivando
trazer à tona o que ficou submerso por muitos anos na História do Brasil ou o que foi
propositalmente destruído.

A necessidade de se reescrever a história, evocando a memória coletiva e, efetivamente,


histórica, de uma determinada comunidade, resgatando os acontecimentos catastróficos que a
atingiram, tem motivado muitos estudos acadêmicos no pós-colonialismo americano, asiático e
africano. Para Eurídice Figueiredo (2010, p. 162), os arquivos do mal, de que fala Derrida, em
diálogo com Freud, são aqueles que foram rasurados, destruídos ou interditados para impedir a
revelação do horror a que foram submetidos os que sofreram os desastres do século XX. Embora
os estudos de Derrida se reportem à Shoá, importa-nos aqui considerar como catastrófico o
transplante de milhões de africanos para trabalhar como escravos no Brasil, muitos deles
morrendo na travessia antes de chegar ao seu destino; outros, torturados, mortos, tratados como
animais, vendidos ou trocados como objetos.

Esse resgate do passado catastrófico é considerado por Derrida como “arquivos do mal:
dissimulados ou destruídos, interditados, desviados, recalcados”. (Derrida, 2001, p. 7, grifos do
autor). Segundo esse filósofo, para falar do arquivo é necessário, antes de tudo, distingui-lo
daquilo a que frequentemente o reduzimos: a experiência da memória e o retorno à origem, além
de também o reduzirmos ao arcaico e ao arqueológico, à lembrança ou à escavação, enfim, a
“uma busca do tempo perdido”.
A condição do arquivo, segundo Derrida, envolve vários processos: “exterioridade de um lugar,
operação topográfica de uma técnica de consignação, constituição de uma instância e de um
lugar de autoridade” (Derrida, 2001, p. 8). Para que exista um arquivo há necessidade de um
espaço, que será instituído como o lugar de impressão. Enfim, para Derrida, a expressão mal de
arquivo é sintomática de que há um sofrimento, uma paixão, a que ele denomina arquivo do mal;
pode também ser “aquilo que arruína, desvia ou destrói o próprio princípio do arquivo, a saber, o
mais radical” (Derrida, 2001, p. 9).

Vista por esse viés, a reescrita da história da diáspora negra no Brasil se circunscreve nas duas
definições de mal de arquivo, por tratar-se tanto do sofrimento e humilhações a que foram
submetidos os negros africanos em terras brasileiras, quanto do apagamento ou destruição de sua
verdadeira história por aqueles que os subjugaram e contra eles praticaram as mais cruéis ações,
como a tortura e o genocídio.

Essa é uma das questões que evoca a discussão polêmica sobre a escrita da história, como
observa Gagnebin, “em particular seu caráter literário, até mesmo ficcional, e da memória do
historiador (de seu grupo de origem, de seus pares, de sua nação), em particular dos liames que a
construção da memória histórica mantém com o esquecimento e a denegação” (Gagnebin, 2006,
p. 41). Gagnebin trata aqui da narrativa histórica, sem descartar o caráter ficcional que pode
permear a escrita.

Para reescrever a História do Brasil, contada pela ótica de uma negra, Gonçalves (2009)
entremeia a narrativa com os fatos históricos do século XIX, lançando mão de uma extensa lista
de obras de autores brasileiros e de alguns estrangeiros sobre História, Antropologia, Sociologia,
Literatura, Religião e até Fotografia do Brasil colonial e contemporâneo, conforme bibliografia
anexa ao romance.

Essa teoria revisionista ganhou maior relevo a partir dos estudos sobre a obra de Walter
Benjamin, principalmente a partir das teses apresentadas em Sobre o conceito da história. Em
uma dessas teses Benjamin afirma: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo. [...] O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem” (Benjamin, 1994, p. 224, grifos do autor).

Jeanne Marie Gagnebin (2006), seguindo na esteira de Benjamin, também tem discutido
bastante essa questão, reforçando o importante papel do testemunho e da memória para que a
história seja revelada. Em seus questionamentos sobre o porquê de se falar tanto hoje em
memória, conservação e resgate, e porque se afirma que os historiadores precisam estabelecer a
verdade do passado, ela admite que há uma intrínseca relação histórica do presente com o
passado. Segundo Gagnebin, “o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição,
oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na
transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo – principalmente –
quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido” (Gagnebin, 2006, p. 54).

Ana Maria Gonçalves, ao ser indagada sobre o porquê de ter escrito Um defeito de cor,
respondeu que o romance tinha nascido da sua vontade de entender melhor o que foi a Revolução
dos Malês, uma rebelião que tomou grandes proporções e ganhou importância nacional, mas que
era pouco conhecida no Brasil, ficando circunscrita à Bahia e estudada apenas por pesquisadores
da história colonial e africanistas. Como afirma a escritora, foi uma revolta “tão importante
quanto curiosa, pois se trata de uma rebelião coordenada por escravos muçulmanos em plena
Bahia, em 1835, e da qual passei todo o meu período escolar sem ter tomado conhecimento”
(Gonçalves, 2012). A autora confessa, ainda, que esse interesse só diminuiu quando ouviu falar
de Luísa Mahin[107], que ganhou sua atenção e levou o romance a tomar outro rumo, deixando a
Revolução Malê restrita a apenas um dos dez capítulos. Enfim, a história da negra alforriada e
revolucionária ganhou espaço e se tornou o tema da extensa narrativa da escritora mineira,
tornando-se um ícone da escrita feminina sobre a mulher negra.

Assim como a protagonista de Um defeito de cor, Luísa Mahin também é considerada uma
heroína por ter participado dessas mesmas revoltas. Luísa Mahin é apresentada em uma carta
autobiográfica de Luís Gama, importante líder negro e poeta brasileiro, a Lúcio de Mendonça,
escritor e jornalista carioca, na qual ele assim descreve a mãe: “africana livre [...], muito altiva,
geniosa, insofrida e vingativa, [...] foi presa como suspeita de envolver-se em planos de
insurreições de escravos” (Mennucci, 1938, p. 20). Com isso, percebe-se o quanto a personagem
Luísa Gama apresenta semelhanças com Luísa Mahin, sendo possivelmente uma figura histórica,
que adquiriu existência real ao ser mencionada como mãe pelo próprio Luís Gama, que em suas
poesias fez questão de dedicar algumas trovas àquela que ele considera a sua genitora. Com isso,
a negra cativa, tornada livre e partícipe de revoluções negras na Bahia, passou a ser a musa
inspiradora do poema “Minha mãe”, composto pelo ilustre poeta:

Era mui bela e formosa,


Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.
[...]
Os alvos dentes, nevados.
Da liberdade eram mito,
No rosto a dor do aflito,
Negra a cor da escravidão.
Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
[...]
Se junto à cruz penitente,
A Deus orava contrita,
Tinha uma prece infinita
Como o dobrar do sineiro,
As lágrimas que brotavam,
Eram pérolas sentidas,
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do cativeiro.
(Gama, Luís. Quilombhoje)

No romance Um defeito de cor, a ascensão social e econômica da personagem escrava


Kehinde/Luísa Gama deu-se desde que teve oportunidade de ser uma escrava de ganho e usou
isso não apenas para conseguir sua alforria, como também para adquirir independência
financeira. E tudo isso graças à sua astúcia e ao seu “faro” empreendedor. Mesmo sendo negra
liberta, num país que tratava os negros como marginais, sempre se manteve altiva e decidida em
seus propósitos, nunca desistindo de lutar para conseguir tudo o que desejasse. É assim que
percebemos o quanto essa persistência foi usada em favor da libertação de alguns escravos
promovida por Kehinde/Luísa Gama, ao pagar suas cartas de alforria ou ajudá-los a fugir do
Brasil. Com isso, aos poucos, vai-se configurando o perfil da líder revolucionária que,
posteriormente, se tornaria. O que vai transformá-la nessa heroína será a participação ativa na
libertação dos escravos, seja contribuindo num primeiro momento para a compra da carta de
alforria de muitos deles, seja participando ativamente de levantes protagonizados por negros e
crioulos cativos e libertos, como a revolta dos Malês e a Sabinada, ambas ocorridas na Bahia.
As revoltas na Bahia: a reescrita da história pela ficção

As revoltas negras ocorridas na Bahia no século XIX, narradas pela protagonista de Um defeito
de cor, destacam as duas manifestações que tiveram maior relevância no cenário nacional
brasileiro, a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). Ambas ocorridas na Bahia,
tendo a personagem Kehinde/Luísa Gama participado ativamente da Revolta dos Malês. Embora
tivesse sido acusada de ter participado da Sabinada, Kehinde/Luísa Gama, em seus relatos, nega
seu envolvimento nessa revolta, mas isso não foi suficiente para evitar que fosse presa por
suposta participação. Nesse sentido, será feito um resumo das narrativas de Kehinde/Luísa Gama
sobre as referidas revoluções, bem como de alguns comentários de historiadores e antropólogos
que se ocuparam dessa temática, expondo seus pontos de vista sobre esse assunto.

De acordo com João José Reis (2012), a Revolta dos Malês se deu a partir do desejo de liberdade
e de poder dos negros africanos de crença muçulmana, que se reuniam às escondidas com outros
negros para traçarem os planos que futuramente se transformariam em luta armada. Muitos
desses negros eram letrados e alforriados. Dentre as causas apontadas por Reis estava a
insatisfação dos africanos muçulmanos em relação à permanência da escravidão africana no
Brasil, a imposição dos valores culturais e religiosos àqueles que já possuíam sua própria crença,
além do preconceito explícito aos negros, mesmo aos que já eram libertos, os quais continuavam
sendo tratados como sub-raça. Essa insatisfação cresceu a ponto de os revoltosos acreditarem que
seria possível libertar todos os escravos, acabar com o catolicismo opressor e ainda confiscar
todos os bens dos brancos e mulatos, implantando uma república islâmica nos moldes das que
existiam na África daquela época.

Pierre Verger (1992), em estudo sobre os escravos libertos no Brasil, fala sobre a submissão dos
negros cativos ou libertos às influências da sociedade dominante, principalmente em relação à
religião. Muitos desses, ao se tornarem cativos, ainda em solo africano, já haviam se dobrado à
crença de seu opressor, como nos revela esse pesquisador ao falar do líder muçulmano Usman
Dan Fodio, que com a Jihad havia submetido muitos africanos de crença animista a adotarem os
preceitos do islamismo. Verger afirma que “a Jihad de Dan Fodio conquistou a ferro e a fogo o
país Haussa, aniquilando aqueles que se recusavam a renunciar aos cultos ancestrais” (Verger,
1992, p. 28). Dessa forma, aqueles que se tornaram fiéis ao islamismo, como os haussás e os
fulani, entraram em guerra com os iorubás, que se recusavam a deixar de praticar o culto de seus
orixás tradicionais. Ao serem trazidos cativos para o Bahia, os africanos inimigos acabavam se
encontrando, trabalhando juntos nas fazendas, ou como escravos de ganho. O governo favorecia
essas divisões e contradições entre os africanos, pois assim se resguardava de rebeliões dos
escravos contra os senhores.

Verdadeiros pedaços de ‘nações’ reorganizavam-se assim na Bahia. Constituíam


sociedades distintas que guardavam seus costumes, praticavam com discrição seus
cultos tradicionais e falavam línguas particulares que permaneciam ignoradas dos
outros. Guardavam assim suas presunções, paixões, simpatias e seus ódios
recíprocos, conservando sua identidade e a fé de seus ancestrais (Verger, 1992, p.
29).

Acostumados a fazer a Jihad, que na África era “a guerra santa dos fulani”, os muçulmanos não
se conformavam com a situação em que viviam na Bahia. Verger afirma que as revoltas que
ocorreram na Bahia foram originadas pelos muçulmanos. Eram, portanto, guerras religiosas,
semelhantes às que eram praticadas na África e provocaram a captura e a deportação de muitos
nativos. As chegadas amiúde de prisioneiros nos portos da Bahia, resultantes dessas guerras
intertribais, foram importantes para reforçar os sentimentos de revolta dos escravos,
principalmente dos adeptos do islamismo, que, embora se achassem superiores aos demais
cativos por serem letrados, encontravam-se na mesma condição escrava, impotentes diante de
tanta opressão. Nesse sentido, Nina Rodrigues (1945), considera que o islamismo, com sua
propensão para o fanatismo e para a guerra santa, foi a principal motivação das revoltas dos
africanos na Bahia, entre 1807 e 1835:

A força da organização religiosa, da propaganda e do ensino do Islão, sua extensão


e sua influência, compreendem-se através do estudo destas insurreições, Ali, como
em tantas outras situações históricas, o ardor e o zelo religioso preservaram aqueles
negros da desagregação moral que é fatal consequência da aniquilação da vontade
nos seres reduzidos à escravidão. A grandeza moral de que alguns insurrectos
fizeram prova, face ao perigo e à morte, fornece a verdadeira chave das
insurreições, que não devem ser atribuídas nem ao desespero da escravidão, pois as
pessoas livres e ricas nelas participaram, nem a um nobre sentimento de
solidariedade social, uma vez que os compatriotas infiéis ou não convertidos eram
excluídos do grupo revolucionário, nem laços do sangue de uma mesma raça, uma
vez que os negros fetichistas e crioulos estavam incluídos nos planos de massacre.
Mas era o islamismo e seu fanatismo que eram a mola e a origem de todas aquelas
explosões (Rodrigues apud Verger, 1992, p. 30).

Edison Carneiro (2005) também atribui às revoltas negras da Bahia do primeiro meado do século
XIX (entre 1807 e 1835) um caráter religioso. Em sua opinião, foram os negros malês que
encabeçaram esses grandes levantes, visando a tomada do poder. Foram oito insurreições
sucessivas, envolvendo as nações nagô, tapa e hauçá:

As revoltas malês – dos negros hauçás em 1807, 1809, 1813 e 1816, dos negros
nagôs em 1826, 1827, 1830 e 1835 – tiveram caráter principalmente religioso e
foram desfechadas com o fim de matar os brancos, tomar o poder e banir a religião
cristã, em nome de Alá. A última dessas revoltas, a grande jehad de 1835,
precipitada pela delação, revelou como estavam bem organizados os malês, que os
dois extremos da cidade convergiram sobre os quartéis de polícia e os dominaram,
para serem mais tarde – quando a vitória já os coroava – desbaratados pela cavalaria
(Carneiro, 2005, p. 245).

As revoltas e levantes de escravos africanos no Brasil são muito enfatizados em Um defeito de


cor, pois Kehinde/Luísa Gama narra muitos desses acontecimentos ocorridos em Salvador.
Primeiro, apenas como espectadora, e algum tempo mais tarde, como integrante. A primeira
dessas narrativas é datada do ano de 1830, época em que Kehinde/Luísa Gama já participava de
reuniões secretas dos muçulmanos, estes por ela denominados muçurumins. Numa dessas
reuniões, ela ficou sabendo que um certo visconde de Camamu havia sido assassinado e que,
mesmo sem ter provas, o novo presidente da província atribuiu a culpa do crime aos negros, fato
que gerou neles o desejo imediato de rebelião, ao que muitos discordavam, por considerar que
ainda era cedo, que era preciso organizar melhor e conseguir mais armamento. Mas o desejo de
revolta não pôde ser contido e dias depois estourou a primeira rebelião negra urbana, pois até
aquele momento os motins só tinham ocorrido nos engenhos. Eis o relato:

[...] uma rebelião tinha estourado e havia grande confusão na cidade. O plano tinha
sido elaborado depois daquela última reunião, pelos que achavam que estava na
hora de começar a luta. [...] a desordem era na cidade baixa, onde mais ou menos
vinte pretos roubaram espadas e parnaíbas, ferindo o proprietário e um caixeiro.
[...]. Os rebeldes então seguiram para Rua Julião e atacaram um armazém de pretos
recém-chegados de África e libertaram todos, ferindo de morte dezoito escravos
novos que se reusaram a acompanhar o grupo. Os revoltosos já eram mais de cem, e
a eles se juntam muitos pretos de rua, escravos de ganho ou libertos, e atacaram um
posto policial nas redondezas da Soledade, tentando conseguir mais armas e
munição. Os soldados abriram fogo e resistiram até serem acudidos por um novo
destacamento, que cercou os pretos. Muitos conseguiram fugir para os matos de São
Gonçalo e do Outeiro, mas pelo menos quarenta foram presos e, [...], mais de
cinquenta foram mortos (Gonçalves, 2009, p. 391).

O espírito revolucionário e ativista de Kehinde/Luísa Gama permeia todo o romance e sempre


ressalta os grandes feitos daqueles que ousaram se rebelar contra os poderes instituídos,
revelando assim sua adesão aos que lutavam por uma vida sem opressão. Em sua narrativa,
Kehinde/Luísa Gama fala de uma segunda rebelião urbana ocorrida em Salvador em 1831. Trata-
se do confronto contra os portugueses, encabeçado por negros e mulatos e apoiados por
comerciantes brasileiros, que acusavam os portugueses de prejudicá-los em suas transações
comerciais. Por considerarem que os portugueses ainda tinham muita influência no governo da
província e do Império e isso os deixava em desvantagem, os comerciantes brasileiros
declararam guerra aos portugueses, exigindo que eles fossem expulsos do Brasil. Motivados por
esse propósito, mais os seus próprios desejos de mudança, negros e mulatos, africanos ou
brasileiros, passaram a protestar nas ruas de Salvador, principalmente na cidade baixa, como
Kehinde relata: “gritavam que queriam o Brasil para os brasileiros e cometiam muitos atos de
violência contra os portugueses, suas famílias, seus negócios” (Gonçalves, 2009, p. 419). O
interessante dessa rebelião é que negros e mulatos, que em outro contexto estariam em oposição,
aqui lutam por uma única causa: a expulsão dos portugueses, estes considerados por eles como
inimigo comum.

A rebelião dos negros e mulatos contra os portugueses ganhou grandes proporções, chegando a
atingir o Império, quando D. Pedro I foi acusado de se preocupar mais com a sucessão do trono
de Portugal do que com os problemas do Brasil. Essa revolta culminou na famosa “Noite das
garrafadas”[108], registrada nos anais da História do Brasil, num momento em que o imperador
havia feito uma viagem à província de Minas Gerais e, ao retornar ao Rio de Janeiro, foi
recepcionado pelos portugueses, que o esperavam com uma passeata de boas-vindas. O povo
brasileiro, já insatisfeito com a atuação do imperador, toma conta da passeata e passa a desferir
golpes de garrafas contra os portugueses. Kehinde/Luísa Gama continua narrando e informa que
esse feito chegou ao conhecimento do povo da Bahia, que também quis demonstrar seu
descontentamento, “e quase todas as tropas baianas se reuniram no Forte do Barbalho e exigiram
a deposição do comandante de armas da província, um português, e a demissão de todos os
oficiais nascidos em Portugal” (Gonçalves, 2009, p. 420). De acordo com a narradora, com a
intenção de tentar acabar com a rebelião, o comandante de armas convocou as tropas que ainda
permaneciam fiéis, mas não encontrou nenhuma, sendo, assim, obrigado a passar o cargo que
ocupava a um brasileiro, o visconde de Pirajá. Em seguida, fugiu para uma das fragatas
portuguesas que ainda estavam ancoradas no porto, juntando-se a outros que estavam escondidos
em naus e navios também ali ancorados. Todos os portugueses de Salvador tiveram que se
esconder, pois passaram a ser caçados pelos rebeldes. Muitos foram mutilados, mortos e foram
expostos em praça pública. Essa rebelião só teve fim com a assinatura do acordo de extradição
dos portugueses que não tivessem esposa ou filhos brasileiros. Quando se achava que estava tudo
em paz, surge a notícia de que um comerciante brasileiro havia sido morto por um português e
isso desencadeou novamente a caça aos portugueses, apelidados de marotos pelos brasileiros.
Assim Kehinde/Luísa Gama reporta o fato:

Os brasileiros rodaram a cidade baixa com o morto ensanguentado estendido sobre


um sofá, dando início a mais um mata-maroto, aos gritos de ‘os marotos mataram
um brasileiro, morram marotos!”. Milhares de pessoas seguiram o cortejo e
mataram todos os marotos que encontraram pelo caminho, arrombando suas casas,
invadindo suas vendas e seus armazéns, não poupando nem mesmo os empregados
brasileiros, deixando móveis e mercadorias destruídos e jogados no meio das ruas,
inclusive alguns corpos sem vida. Os revoltosos estavam muito bem armados e mal-
intencionados, e não apenas os portugueses corriam perigo, mas todos os brancos.
(Gonçalves, 2009, p. 421).

Também foram narradas por Kehinde/Luísa Gama as rebeliões federalistas, que ocorreram
quando já se tinha instalado um momento de trégua contra os portugueses, nas quais tomaram
frente os militares descontentes com o soldo, atiçados pelo Partido Federalista, que tinha a
intenção de tomar o poder, aproveitando a fragilidade do momento que se seguiu à forçada
abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho brasileiro, D. Pedro II, sendo este apenas um
menino. Três homens importantes comandavam o Partido Federalista: o barão de Itaparica,
Cipriano Barata e João Primo. Na narrativa de Kehinde/Luísa Gama, esses três homens tinham
manifestado a intenção de, assim que conseguissem o poder, libertar todos os escravos nascidos
no Brasil, assim como, também alforriar os escravos africanos nos anos seguintes à tomada de
poder. Com esse propósito, conforme nos informa Kehinde/Luísa Gama, distribuíram armas para
a população e buscaram o apoio dos soldados insatisfeitos com o seu soldo. A esses prometeram,
além da melhoria dos soldos, três dias de pilhagem (esta, com certeza, direcionada aos
portugueses, que novamente tiveram de se refugiar nos navios). Os três líderes foram presos pelo
presidente da província e mandados a julgamento na corte, mas a rebelião continuou e ganhou
força, fazendo muitas reivindicações, as quais foram apoiadas pela população. Novamente
exigia-se a expulsão dos portugueses que não estivessem casados com brasileiras. Essa exigência
não foi atendida, mas a rebelião foi considerada vitoriosa por ter conseguido a renúncia do
presidente da província e o perdão dos presos políticos.
Kehinde/Luísa Gama acredita que a interferência do Partido Monarquista Constitucional, ao sair
em defesa dos portugueses e negociar o final da rebelião, conseguindo protelar mais uma vez a
expulsão dos portugueses, foi providencial, pois agiu em defesa dos próprios interesses, visto que
muitos deles dependiam do dinheiro dos comerciantes portugueses. Assim, os monarquistas
também lucraram com a negociação, pois apenas foram obrigados a afastar dois de seus homens
do comando da província – o presidente e o comandante.

Kehinde/Luísa Gama também narra uma nova rebelião federalista, originada a partir dos
militares de carreira, descontentes com os favorecimentos recebidos por militares fidalgos que
obtinham cargos por meio de favores políticos: “Os dois grupos não se misturavam, e desde as
guerras da independência, nos anos de um mil oitocentos e vinte e dois e vinte e três, brigavam
entre si pelo controle das tropas. Davam ordens diferentes aos soldados, que não sabiam a quem
obedecer, acabando com a disciplina e a organização” (Gonçalves, 2009, p. 428).

A rebelião ganhou força quando esses soldados pertencentes a classes menos favorecidas se
cansaram de não ter a quem obedecer ou com quem reclamar, posto que seus superiores viviam
em conflito e não se entendiam. A insatisfação desses soldados, principalmente daqueles que
tinham vindo de outras províncias e se encontravam distantes de seus familiares, era devido ao
baixo valor dos soldos e o atraso do pagamento desses soldos, o que os obrigava a viver na
miséria.

Talvez por considerar exaustivas as narrativas sobre as rebeliões, Kehinde/Luísa Gama pede
desculpas e justifica a razão de tanto se prender àquelas extensas narrações: “Desculpe eu me
alongar tanto nestas rebeliões, mas não podia deixar de falar sobre um assunto que ocupou
nossas conversas no sítio durante quase um ano e meio, e que também foram fundamentais para
uma decisão de seu pai que afetou nossas vidas para sempre” (Gonçalves, 2009, p. 429).
Kehinde/Luísa Gama dirige-se ao filho perdido [Luís Gama], preparando-o para futuros
acontecimentos que mudariam suas vidas para sempre, apontando uma determinada decisão do
pai como a causadora dessa mudança, eximindo-se, dessa forma, de culpa pelo que viesse a
acontecer.

A Revolta dos Malês, o levante negro mais importante da Bahia, foi narrada por Kehinde/Luísa
Gama numa época em que ela se encontrava completamente envolvida com a causa negra,
colaborando para que muitos pudessem comprar sua carta de alforria ou para que fugissem do
Brasil. Paralelo a isso, Kehinde/Luísa Gama havia se tornado empreendedora tanto no ramo
comercial, como sócia proprietária de uma padaria, quanto como produtora de charutos de
qualidade, atividade na qual era auxiliada por seus amigos e que aos poucos foi se tornando
importante, gerando considerável lucro. Um pouco antes dessa época, havia se separado do
companheiro português com quem vivia há vários anos, vendo-se obrigada a vender a
propriedade no campo que os dois tinham em comum, precisando, assim, mudar-se para sua casa
da cidade, edificada junto à padaria, bem menos confortável do que a bela casa que antes possuía
nos arredores de Salvador.

Como o momento era de grande dificuldade para todos, pois se viviam tempos instáveis, de
muita revolução, Kehinde/Luísa Gama alugara parte do prédio da padaria, que era administrada
por Fatumbi, o amigo que havia se tornando seu sócio nesse empreendimento. Os inquilinos
eram muçurumins, os mesmos que mais tarde iriam fazer parte do grande levante histórico de
Salvador – a Revolta Malê, ocorrida entre os dias 25 e 27 de janeiro de 1835.

Kehinde/Luísa Gama era sabedora de que Fatumbi frequentava as reuniões dos muçurumins, mas
a princípio ele não lhe revelara o motivo dessas reuniões e, mesmo tendo participado de vários
desses encontros que se davam em residências de muçurumins, ela só ficou sabendo do que se
tratava a partir do momento em que efetivamente passou a colaborar com os preparativos para o
grande dia. Na versão por ela narrada, sua participação foi fundamental para agregar mais
participantes a fim de fortalecer a luta armada dos africanos muçulmanos contra os poderes
instituídos em Salvador, pois além de oferecer moradia para alguns dos líderes do movimento,
também colaborou transmitindo as mensagens aos participantes, as quais eram gravadas em
língua árabe nos papéis dos charutos produzidos em sua fábrica, e somente quem era versado
nessa língua tinha acesso às informações que geralmente tratavam de reuniões para o
planejamento da revolta.

A Revolta dos Malês teve curta duração. Iniciou na noite do dia 24 de janeiro de 1835 e terminou
dois dias depois. Kehinde/Luísa Gama, em sua narrativa, fala desse importante dia: “Na manhã
do dia 24 de janeiro, saí de casa com o sol ainda por nascer e deixei você dormindo na minha
cama[...]. eu estava certa de que nada me aconteceria. [...] Eu sabia que voltaria, mas não sabia
quando” (Gonçalves, 2009, p. 516). A efetiva participação da protagonista nessa revolta, junto
aos amigos muçulmanos, é narrada desde o início do motim até o desfecho trágico. Ela e uma
escrava de nome Edum eram as únicas mulheres que faziam parte do grupo de revoltosos:

Quando saímos para o corredor, tendo o Manoel Calafate à frente, o Mussé atirou e
matou um dos policiais. Do lado de fora da loja, na rua, já estavam os homens que
tinham pulado o muro do quintal, e logo dominaram o restante da patrulha, formada
por quatro oficiais e alguns paisanos. Nós também perdemos dois homens, um que
não cheguei a conhecer, morto a cacetadas por dois crioulos pertencentes ao juiz de
paz, e, para azar ou punição da Sabina, o Vitório Sule, que morreu ao ser atingido
com um tiro na cabeça [...]. Paramos em frente à Câmara Municipal, perto da cadeia
onde o alufá Licutan estava preso, e o Mussé disse que ali tínhamos a importante
missão de soltar o mestre e todos os outros pretos, além de tomar as armas dos
guardas. Mas eles já estavam de prontidão e, das janelas abertas para a praça,
começaram a atirar assim que tentamos arrombar a pesada porta. Foi quando os
guardas do Palácio do Governo, do outro lado da praça, também começaram a
atirar, e tivemos que voltar nossa atenção para eles que eram em maior número
(Gonçalves, 2009, p. 525-526).

Esse é apenas um pequeno trecho da extensa narrativa de Kehinde/Luísa Gama sobre a


malograda Revolta dos Malês. Embora tudo tenha sido planejado com muita antecedência, não
contavam com a denúncia de duas mulheres, que apesar de o terem feito com objetivos
diferentes, conseguiram êxito em sua delação. Uma, Guilhermina, que incentivou o esposo
Domingos a fazer a denúncia para ganhar prestígio junto ao seu ex-dono, a quem eram leais; e
outra, Sabina, porque estava enciumada por ter sido preterida por Vitório Sule, homem que ela
amava e um dos líderes da revolta. Por terem sido denunciados, foram perseguidos e derrotados.
Alguns foram condenados à morte, outros à prisão perpétua ou degredo na África.
A Sabinada é outra revolução ocorrida na Bahia, nos anos de 1837 e 1838, tendo à frente o
médico e jornalista Francisco Sabino Vieira. Vivia-se uma época em que muito se comentava
sobre federalismo e separatismo. A esse respeito, Kehinde/Luísa Gama declara:

Eu gostava de ouvi-los discutindo as principais notícias que saíam nos jornais, não
só sobre o que se passava na Bahia, mas também em outras províncias, como a do
Rio Grande e a do Pará. No Pará havia os cabanos, que já tinham sido vencidos,
mas ainda ofereciam alguma resistência. No Rio Grande havia os farroupilhas, que,
se não me engano, já tinham fundado a República do Rio Grande, tendo como
presidente o general Bento Gonçalves. O doutor Sabino, quando participou de
alguma rebelião ou quando foi condenado por um assassinato político, já não tenho
certeza, no ano de mil oitocentos e trinta e quatro, tinha ficado preso em uma cadeia
do Rio Grande, e lá ficou amigo do general Bento Gonçalves. (Gonçalves, 2009, p.
564)

O doutor Sabino, segundo Kehinde/Luísa Gama, “além de ser mulato e pobre, ajudava muito a
população, atendendo sem cobrar nada. [...] Foi ele quem, junto com três companheiros, no dia
sete de novembro, se dirigiu ao Forte São Pedro e pediu ao corneteiro que executasse um
determinado toque, a senha para começar a rebelião” (Gonçalves, 2009, p. 565). A partir daí,
Kehinde/Luísa Gama narra o desenrolar desse episódio, que teve a adesão dos militares do forte,
tanto dos que já estavam de sobreaviso, quanto de outras companhias militares, “inclusive a que
havia sido convocada para atacá-los e que desertou assim que foi dada ordem de abrir fogo”.
(Gonçalves, 2009, p. 565). Por alguns meses os revoltosos conseguiram dominar a capital da
Bahia, declarando o governo da Bahia desligado do governo geral. Mas não se sustentou porque
não teve a adesão da elite formada pelos senhores do Recôncavo nem da população escrava. De
acordo com os registros históricos, cerca de quatro meses após a tomada do Forte São Pedro, a
repressão por parte do governo imperial tornou-se fácil. Este cercou a capital em uma operação
de bloqueio terrestre e marítimo pondo fim à revolução e deixando mais de cem pessoas mortas
em combate. Foram executados alguns líderes, vários foram deportados para a África e outros
ficaram presos no Brasil.

Diferente de Luísa Mahin, que a História diz ter participado desse levante, a personagem
Kehinde/Luísa Gama revela que não teve nenhum envolvimento e se foi presa nesse período foi
injustamente, pois embora tivesse recebido recomendações para não sair de casa nesses dias
tumultuados pela revolução, ela precisou porque já não possuía alimentos em sua casa e, ao sair,
deparou-se no Terreiro de Jesus com uma situação em que não pôde ficar indiferente ao ver três
policiais espancarem um preto velho. Quando viu que os policiais tinham se afastado, foi
socorrê-lo, pedindo ajuda aos que passavam para levá-lo até a Santa Casa. “Ninguém se
aproximou, e quando percebi que até se afastavam com certa pressa já era tarde para fazer o
mesmo, pois os policiais tinham voltado e me agarravam por trás, pelos braços, acusando-me de
ser contra nosso governo”. (Gonçalves, 2009, p. 566). Embora Kehinde/Luísa Gama argumente
que apenas estava ajudando o velho a receber atendimento, os policiais não lhe deram ouvidos. E
por isso ela foi presa. “Senti muita raiva e chorei por horas seguidas, principalmente depois que
percebi que não seria ouvida, que tinha sido atirada dentro da cela como presa política, e que
provavelmente não haveria alternativa para a sentença de deportação”. (Gonçalves, 2009, p.
566). Depois de ficar presa cinco dias, foi encontrada pelo amigo doutor Jorge, que resolveu
procurá-la na prisão, onde a encontrou. Após ter falado com ela, informou-lhe que sua liberdade
não seria conseguida por meios legais, mas que ele e o doutor José Manoel, outro amigo de
Kehinde/Luísa Gama, esposo de sua amiga, a sinhazinha Maria Clara, já estavam providenciando
para que ela fosse solta de alguma forma. A forma encontrada é assim narrada por Kehinde/Luísa
Gama:

E assim aconteceu, sem que eu soubesse de antemão sobre esse arranjo, sendo
necessário que o guarda encarregado de recolher as vasilhas em que eram servidas
as refeições avisasse que a porta da cela estava aberta. Provavelmente o descuido
proposital tinha sido do encarregado de levar as refeições, sem que percebêssemos,
pois nunca poderíamos imaginar uma fuga assim tão fácil. Saímos uma a uma para
não chamar a atenção [...]. (Gonçalves, 2009, p. 567).
Ana Maria Gonçalves em sua narrativa mistura história e ficção, prática comum nos romances
pós-modernos, nos quais, segundo Hutcheon (1991), “reescrever ou reapresentar o passado na
ficção e na história é – em ambos casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e
teleológico” (Hutcheon, 1991, p. 147).

Hutcheon afirma que em romances em que a história e a ficção se interpenetram, “a


problematização da natureza do conhecimento histórico se volta para a necessidade e para o risco
de distinguir entre a ficção e a história como gêneros narrativos” (Hutcheon, 1991, p. 147), e
embora os dois gêneros possuam elementos em comum: a seleção, a organização, a diegese, a
anedota, o ritmo temporal e a elaboração da trama, não quer dizer que façam parte do mesmo
tipo de discurso:

Elas [história e ficção] são diferentes, embora tenham os mesmos contextos sociais,
culturais e ideológicos, e também as mesmas técnicas formais. Os romances
incorporam o histórico social e a política até certo ponto, embora essa proporção
seja variável; a historiografia, por sua vez, é tão estruturada, coerente e teleológica
quanto qualquer ficção narrativa” (Hutcheon, 1991, p. 148-149).

Para Hutcheon, embora o romance histórico também conjugue ficção e história em suas
narrativas, a diferença entre esse tipo de romance e a metaficção, embora não seja fácil distingui-
la, está no fato de que enquanto no romance histórico, “o protagonista deveria ser um tipo, uma
síntese do geral e do particular, de todas as determinantes essenciais em termos sociais e
humanos” (Hutcheon, 1991, p. 151), na metaficção essa definição do protagonista do romance
histórico não contempla o perfil de seus protagonistas, caracterizados por personagens ex-
cêntricos, marginalizados, figuras periféricas da história ficcional. Além disso, o romance
histórico não dá importância ao detalhe, considerado como sendo “um simples meio de obter a
veracidade histórica, para deixar concretamente clara a necessidade histórica de uma situação
concreta” (Lukács apud Hutcheon, 1991, p. 152). Portanto, conclui Hutcheon, ao romance
histórico é irrelevante a precisão ou mesmo a verdade no detalhe. Hutcheon afirma que a ficção
pós-moderna contesta essa definição de duas maneiras: a primeira, porque “a metaficção
historiográfica se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico”. Nesse tipo de
romance, “certos detalhes históricos são deliberadamente falsificados para ressaltar as possíveis
falhas mnemônicas da história registrada e o constante potencial para o erro proposital ou
inadvertido” (Hutcheon, 1991, p. 152). A segunda contestação refere-se à forma como a ficção
pós-moderna realmente utiliza os detalhes ou os dados históricos. A ficção “costuma incorporar e
assimilar esses dados a fim de proporcionar uma sensação de verificabilidade ao mundo
ficcional. A metaficção historiográfica incorpora esses dados, mas raramente os assimila”
(Hutcheon, 1991, p.152).

Hutcheon ainda cita uma terceira grande característica do romance histórico estabelecida por
Lukács, “a relegação dos personagens históricos a papéis secundários” (p. 152), o que não ocorre
nos romances pós-modernos. Assim, para concluir essa comparação entre romance histórico e
metaficção, Hutcheon afirma:

Em muitos romances históricos, as figuras reais do passado são desenvolvidas com


o objetivo de legitimar ou autenticar o mundo ficcional com sua presença, como se
para ocultar as ligações entre ficção e história como um passe de mágica ontológico
e formal. A auto-reflexividade metaficcional dos romances pós-modernos impele
todo subterfúgio desse tipo, e coloca essa ligação ontológica como um problema:
como é que conhecemos o passado? O que é que conhecemos? (o que podemos
conhecer sobre ele no momento?). (Hutcheon, 1991, p. 152).

Portanto, embora Um defeito de cor faça uma reconstrução do passado histórico, ao fazer
referência a eventos e manifestações culturais ocorridos no espaço da Bahia e do Rio de Janeiro
do século XIX, seu discurso não é o mesmo que caracteriza o romance histórico, pois não se
configura como a representação da memória coletiva oficial, que exalta personagens e ideologias
de classes hegemônicas, mas dá vazão às manifestações políticas e culturais de personagens
marginais, dando voz a outras versões da história, agora reveladas pelos que foram oprimidos
pelo sistema escravista do período colonial brasileiro. Ao atribuir voz a uma mulher negra,
escrava, violentada sexualmente, a autora Ana Maria Gonçalves dá voz a discursos que por
muito tempo foram silenciados, aproximando-se de uma literatura de resistência, onde se diluem
as fronteiras entre ficção e história.
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Infância e resistência: projetando mulheres negras intelectuais
[109]
Maria Aparecida Cruz de Oliveira

As infâncias das personagens Kehinde (Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves) e Maria-
Nova (Becos da memória, de Conceição Evaristo) podem ser lidas em uma perspectiva de
potencial do futuro. São representações de meninas negras que projetam mulheres negras
intelectuais. Essas personagens infantis observam o mundo, a si mesmas, suas condições,
sonham em mudar os discursos equivocados sobre sua gente e pensam em um mundo que
reconheça a humanidade dos negros. A resistência não é especialmente planejada ou articulada,
mas é sobretudo um resistir pela existência. Uma das estratégias sutis é o aproveitamento das
mínimas oportunidades, por exemplo, ouvir, na condição de acompanhante, as aulas dadas à
Sinhazinha. Por essas e outras situações, entendo que elas estavam projetando um futuro e
resistindo no presente. Essas meninas negras não escrevem sobre a resistência, como faria a
intelectual tradicional. Em contrapartida, elas vivem a resistência: “podemos praticar a teorização
sem jamais conhecer/possuir o termo, assim como podemos viver e atuar na resistência feminista
sem jamais usar a palavra ‘feminismo’” (Hooks, 2013 [1994], p. 86).

Para expandir essas afirmações, considero que as personagens Kehinde e Maria-Nova são
potenciais intelectuais porque elas ensaiam o seu perfil, como bem caracterizou Bell Hooks
(1995, p. 468): “intelectual é alguém que lida com ideias transgredindo fronteiras discursivas,
porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo”. A autora também entende que “intelectual é
alguém que lida com ideias em vital relação com a cultura política mais ampla” (Hooks, 1995, p.
468). Dessa forma, utilizando-se de meios possíveis, como ouvir uma história, Kehinde estava
em um processo de formação exemplar, já aprendia a pensar o gênero em uma perspectiva negra,
sua condição de menina no mundo e a importância da participação política das mulheres para o
bem-estar coletivo. É o que se percebe no trecho a seguir:

A Policarpa me contou muitas histórias sobre Oxum, Oxum Docô, cultuada em sua
terra e que é amiga da Iyàmí-Ajé, a “minha Mãe Feiticeira” e senhora dos pássaros,
sobre quem eu já tinha ouvido a minha avó falar. A Policarpa disse que quando os
orixás chegaram à terra, eles se reuniam para resolver todos os problemas, mas
nunca convidavam as mulheres para as assembleias. Oxum se aborreceu quando
ficou sabendo disso e começou a tramar vingança contra os homens. Como ela é o
orixá da fertilidade e da prosperidade, fez com que todas as mulheres ficassem
estéreis e todos os projetos dos homens dessem errado. Quando perceberam o que
estava acontecendo, eles se desesperaram e foram consultar Olodumaré, que logo
perguntou se Oxum estava sendo convidada para as assembleias. Eles responderam
que não, e então Olodumaré disse que, enquanto ela não frequentasse as reuniões,
as coisas continuariam dando errado. Convidada, Oxum só aceitou depois de muito
insistirem. Implorarem talvez seja a palavra certa, e então todas as mulheres
voltaram a ser fecundas e todos os planos frutificaram. É por isso que Oxum é
muito importante, porque ela, rainha das águas doces, fertiliza a terra e o ventre das
mulheres, fazendo com que brotem todas as riquezas (Gonçalves, 2013, p. 119-
120).

Esse fragmento do romance é muito importante para entendermos o projeto decolonial presente
na narrativa, pois sintetiza o gesto ético e político da descolonização do feminismo ao trazer uma
história diferente, pouco ou quase nunca contada das lutas das mulheres negras. Aqui, não vemos
um feminismo tradicional, mas um que parte de outras histórias locais. Para Ochi Curril, a
descolonização “é uma posição intelectual política que atravessa o pensamento e a ação
individual e coletiva, a nossa imaginação, nossos corpos, nossas sexualidades, nossos modos de
agir e de estar no mundo” (2009, p. 3). Considerando as implicações do processo de
descolonização, é necessário dar visibilidade para outras formas de oposição ao patriarcado e
pensar a genealogia do feminismo a partir de experiências anteriores ao feminismo europeu,
pensar o feminismo plural.

Além disso, nesse trecho de Um defeito de cor estamos diante de um modelo educacional que se
posiciona contra a colonialidade do saber ao trazer a ancestralidade como perspectiva (método)
de ensino e formação para a criança negra. O mundo é apresentado para Kehinde por meio de
uma perspectiva negra e um modo de transmissão de conhecimento próprio (método: oralidade;
mediador(a): os mais velhos). A formação educativa ocorre por meio da memória, da
ancestralidade e das histórias dos negros, uma formação que faz um movimento de afastamento
das epistemologias hegemônicas:

A memória, espelho da ancestralidade, em uma movimentação vinculante com a


palavra falada, apresenta-se como uma manifestação da história que não cessa de
mover-se tanto em direção ao passado quanto ao futuro, com os pés orientados pelo
presente. O mundo, a vida, e a existência são lidos pela ótica dessa ancestralidade
(Nascimento, 2012, p. 46).

É perceptível também, nesse momento do romance (Gonçalves, 2013 [2006], p. 119-120), assim
como em outros, a problematização de um locus de enunciação privilegiado que abre espaço para
a descolonização, o pensar de outro modo, a partir dos saberes locais. Uma percepção que
permite pensar outras maneiras de formação educacional. Essa formação a partir dos valores de
um grupo étnico lembra algumas ideias de Catherine Walsh[110] em Interculturalidad, Estado,
sociedade: luchas (de) coloniales de nuestra época (2009, p. 124). A autora desenvolve o
conceito de “etno-educação” no contexto da Bolívia, do Equador e da Colômbia como uma
proposta e aposta política para transgredir as imposições da colonialidade do conhecimento. A
etno-educação é um modelo educacional que permite pensar a partir do pensamento negro. É
“uma força de vontade entendida como uma prática que ajuda a enfrentar os legados coloniais, a
exclusão e subalternização que continuam a orientar o sistema educacional nacional” (Walsh,
2009, p. 131)[111].

A formação educacional recebida por Kehinde não faz parte de um sistema formal, mas ela se
apresenta como uma estratégia eficiente dos povos negros para marcar suas diferenças e exercer
uma re-existência em um Estado escravocrata, no qual a “educação” é patrimônio do branco ou é
apenas reconhecida quando parte de uma perspectiva branca. O fundamento dessa formação
educacional é o reconhecimento do pensamento negro, de outras formas de produzir o
conhecimento e do negro como um produtor do saber: “sujeitos capazes de buscar conhecimento
não apenas em textos escritos, mas também na memória coletiva das comunidades e nos
ensinamentos dos idosos” (Walsh, 2009, p. 131)[112].

Ainda sobre a compreensão do processo de formação intelectual de Kehinde, alguns conceitos de


Patrícia Collins são relevantes. Essa personagem se encontra em uma posição que a autora chama
de “outsider within[113]“, aquela que tem uma visão de dentro e fora. Kehinde está inserida no
contexto de opressão, mas também circula entre os opressores. Ela tem aulas, embora não lhe
seja oficialmente permitido frequentá-las, circula na casa grande, na “senzala grande” e na
“senzala pequena”, experimenta os vestidos da menina branca, brinca escondido da sinhá com as
bonecas da menina branca e até desenvolveu amizade com a sinhazinha. Essa posição para
Collins qualifica a mulher negra para falar da experiência de opressão. Isso significa que
Kehinde como potencial intelectual poderia, no futuro, fazer o uso criativo da sua marginalidade,
seu status de outsider within, para produzir o pensamento feminista negro, pensar a colonialidade
de gênero, raça e classe. O seu ponto de vista enriquecerá esse discurso. O que Collins quer dizer
é que “mulheres negras defendem um ponto de vista ou uma perspectiva singular sobre suas
experiências” (Collins, 2016, p. 102).

Em relação à experiência singular das mulheres negras que são colocadas às margens, Bell
Hooks concorda com Collins, pois “vivendo como vivíamos, na margem, acabamos
desenvolvendo uma forma particular de ver a realidade. Olhávamos tanto de fora para dentro
quanto de dentro para fora[114]“ (Hooks, 1984, p. vii). Hooks também pensa que a mulher negra
pode fazer uso dessa experiência de vida única para criticar a hegemonia racista, classista e
sexista e criar suas próprias perspectivas sobre o que é ser mulher negra:

Nós, mulheres negras sem qualquer “outro” institucionalizado que possamos


discriminar, explorar ou oprimir, muitas vezes temos uma experiência de vida que
desafia diretamente a estrutura social sexista, classista e racista vigente, e a
ideologia concomitante a ela. Essa experiência pode moldar nossa consciência de tal
maneira que nossa visão de mundo seja diferente da de quem tem um grau de
privilégio (mesmo que relativo, dentro do sistema existente). É essencial para a
continuação da luta feminista que as mulheres negras reconheçam o ponto de vista
especial que a nossa marginalidade nos dá e façam uso dessa perspectiva para
criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar e criar uma
contra hegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na
construção da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa
(Hooks, 2015, p. 208, meus grifos).

Kehinde vive nessa relação insider com a Sinhazinha, no entanto sabe que jamais pertencerá à
família branca. O que não a impede de usar essa condição a seu favor. A convivência com a
sinhazinha contribuiu para Kehinde compreender o seu lugar social e se reconhecer diferente das
imposições dadas por essa mesma sociedade colonial. Ela percebe que podia aprender mais
rápido que a menina branca:

As aulas eram dadas na biblioteca, que ficava atrás de uma das portas do imenso
corredor, uma que eu nunca tinha visto aberta antes. Fiquei feliz por poder assistir
às aulas na qualidade de acompanhante da sinhazinha, e tratei de aproveitar muito
bem a oportunidade. Ela nunca estava muito interessada, e o Fatumbi tinha que
chamar a atenção dela diversas vezes, como se ele fosse branco e ela fosse preta,
motivo que me fez brigar com ele, pois eu achava que ninguém podia falar daquele
jeito com a nossa sinhazinha. Mas depois entendi que ele tinha razão, que se ela não
quisesse aprender por bem, que fosse por mal. Acho que foi por isso que comecei a
admirá-lo, o primeiro preto que vi tratando branco como um igual.

Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi


desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão
como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a
sinhazinha, sentindo os sons delas se unirem para formar as palavras. Ele logo
percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e
passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma importância
que a sinhazinha. Comecei a aprender mais rapidamente que ela, que muitas vezes
errava coisas que eu já sabia. As três horas de aula todas as tardes passaram a ser
para mim as mais felizes do dia, as mais esperadas, e fiquei triste quando chegou o
primeiro fim de semana, dias de folga que o professor aproveitou para ir até a
capital (Gonçalves, 2013 [2006], p. 92).

A cultura negra apreendida por Kehinde através de mulheres como a Policarpa (Gonçalves, 2013
[2006], p. 119-120), forneceu um quadro de referências ideológicas, símbolos e valores da
“autodefinição e da “autoavaliação” (Collins, 2016, p. 111), que a ajudou a ver as circunstâncias
que modelam a opressão de raça vivenciada por ela. Kehinde tem um ganho de autoestima ao
entender que era boa em coisas que ela considerava importantes, como ler e escrever,
competências nas quais a Sinhazinha apresentava dificuldades. No momento em que ela entende
que pode aprender, percebemos sua “autoafirmação” e em consequência desse processo vemos a
desmistificação do poder do branco, da menina branca, pois ela adquire a consciência de que não
é o intelecto, o talento ou a humanidade da sinhazinha que justificava seu status superior, mas o
racismo:

Por um lado, essa relação de insider tem sido satisfatória para todos os envolvidos.
Nas biografias dos brancos ricos, é frequente o relato de seu amor por suas “mães”
negras, enquanto os relatos das trabalhadoras domésticas negras ressaltam a
percepção de autoafirmação vivenciada pelas trabalhadoras ao verem o poder
branco sendo desmistificado – saberem que não era o intelecto, o talento ou a
humanidade de seus empregadores que justificava o seu status superior, mas o
racismo (Collins, 2016, p. 99).

Nilma Lino Gomes (2007) entende o Movimento Negro como “um importante ator político e
como um educador de pessoas, coletivos e instituições sociais ao longo da história” (2017, p.
23). No prefácio do livro da autora, Boaventura de Sousa Santos (2017, p. 10) afirma que o
Movimento Negro “é educador porque gera conhecimento novo, que não só alimenta as lutas e
constitui novos atores políticos, como contribui para que a sociedade em geral se dote de outros
conhecimentos que a enriqueçam no seu conjunto”. Então, na perspectiva de Nilma Lino Gomes,
como um educador, o Movimento Negro produz saberes emancipatórios e sistematizados sobre a
questão racial no Brasil. E esses conhecimentos são transformados em reinvindicações, das quais
muitas se tornaram políticas de Estado, por exemplo, as cotas raciais. Considerando esse papel
educador, é possível considerarmos que a personagem Policarpa sugere uma referência ao início
do Movimento Negro, figura as ações, os saberes construídos pelas mulheres negras antes da
sistematização do movimento. Sendo assim, a personagem Kehinde representa o fruto do
trabalho de resistência das mulheres negras e a esperança de uma continuidade.

Já em Becos da memória, a apresentação da infância de Maria-Nova a partir da figuração do seu


processo de formação, sempre carregada de imagens que nos lembram as ações do Movimento
Negro, quando pensamos seu papel educador coletivo, sinaliza para um processo que envolve
uma postura política, pois a formação da menina não é pensada de modo individualista, o futuro
não é projetado para fins de um ganho pessoal, essa intenção é superada ao incluir o outro no
benefício pessoal. É uma formação que pensa sobretudo nas possibilidades de beneficiar uma
coletividade. Nesse processo árduo, a dor e o ganho são sempre coletivos, pois a colonização do
saber é de uma e de muitas mulheres e meninas negras:

A menina crescia. Crescia violentamente por dentro. Era magra e esguia. Seus
ossinhos do ombro ameaçavam furar o vestidinho tão gasto. Maria-Nova estava
sendo forjada a ferro e a fogo. A vida não brincava com ela e nem ela brincava com
a vida. Ela tão nova e já vivia mesmo. Muita coisa, nada ainda, talvez ela já tivesse
definido. Sabia, porém, que aquela dor toda não era só sua. Era impossível carregar
anos e anos tudo aquilo sobre os ombros. Sabia que era preciso pôr tudo para fora,
porém como, como? Maria-Nova estava sendo forjada a ferro e fogo (Evaristo,
2013 [2006], p. 108).

Maria-Nova projeta-se nitidamente como uma intelectual negra na narrativa, quando, em uma
aula de História, ao ler o livro didático, percebe as contradições do conteúdo do livro em relação
às experiências dos negros da favela onde morava, então questiona: “isto era o que a professora
chamava de homem livre?” (Gonçalves, 2013, [2006], p. 210). A menina afirma à professora e
aos colegas de classe que o livro didático não havia contado uma história fidedigna, pois não
poderíamos falar em liberdade dos negros se eles ainda estão presos nas senzalas
contemporâneas (favelas e periferias) e sem as mínimas condições de viver dignamente. Ao
levantar essa questão, Maria-Nova produz imagens desestabilizadoras que poderiam indignar e
causar inconformismo na professora e nos colegas em relação aos modelos dominantes de
conhecimento. A narrativa não esclarece se isso ocorreu, mas poderia ser uma oportunidade de
“aprender um novo tipo de relacionamento entre saberes e, portanto, entre pessoas e entre grupos
sociais” (Gomes, 2017, p. 63). Nesse sentido, a menina apresenta-se com esse papel de sujeito
politizado e por que não dizer de intelectual, uma vez que ela está influenciando a perspectiva
pedagógica da professora e a visão de mundo dos colegas de classe:
Na semana anterior, a matéria estudada em História, fora a “Libertação dos
“Escravos”. Maria-Nova escutou as palavras da professora e leu o texto do livro. A
professora já estava acostumada com as perguntas e com as constatações da menina.
Esperou. Ela permaneceu quieta e arredia. A mestra perguntou-lhe qual era o
motivo de tamanho alheamento naquele dia. Maria-Nova levantou-se dizendo que,
sobre escravos e libertação, ela teria para contar muitas vidas. Que tomaria a aula
toda e não sabia se era bem isso que a professora queria. Tinha para contar sobre
uma senzala que, hoje, seus moradores não estavam libertos, pois não tinham
nenhuma condição de vida. A professora pediu que ela explicasse melhor, que
contasse mais detalhes. Maria-Nova fitou a professora, fitou seus colegas, havia
tantos, aliás, alguns eram até amigos. Fitou a única colega negra da sala e lá estava
a Maria Esmeralda entregue à apatia. Tentou falar. Eram muitas as histórias,
nascidas de uma outra História que trazia vários fatos encadeados, consequentes,
apesar de muitas vezes distantes no tempo e no espaço (Gonçalves, 2013 [2006], p.
209-210).

Como resposta subversiva à educação que silencia a história do negro no Brasil, em Um defeito
de cor e em Becos da Memória a “ancestralidade converte-se no princípio máximo de educação”
(Oliveira, 2017, p. 259) das crianças negras. Em cada romance ela se manifesta em formas
diferentes. Na infância iorubá de Kehinde, a ancestralidade tem foco em figuras ancestrais dos
antepassados, já na infância de Maria-Nova, a relação principal com a ancestralidade passa pela
lógica da continuidade. Portanto, todas essas infâncias estabelecem relações com o passado; na
primeira, o encontro com o passado estabelece o presente e na segunda infância a referência ao
passado fundamenta um projeto para o futuro. Assim se entende que a ancestralidade não é
“apenas uma relação que se estabelece com os ancestrais: é também, e sobretudo, uma lógica de
continuidade que confere sentido – desde o presente – ao passado, que dá forma à memória,
permitindo projetar futuros” (Nascimento, 2012, p. 46). Nesses textos, a infância não é
reprodutora de um passado, mas ela estabelece um presente e um futuro a partir dele. É a
possibilidade ou esperança de outras experiências. Isso novamente é convergente com o que
pensa Wanderson Flor Nascimento sobre as infâncias iorubá e Banto:

A criança é recebida como uma espécie de mensageira da ancestralidade, de modo


que a infância é um signo de continuidade dinâmica, que traz em si toda a potência
da memória ancestral, que deverá ser atualizada na formação (Nascimento, 2012, p.
47).

Em Um defeito de cor temos a representação da educação informal de base epistêmica africana


concedida a Kehinde. E em Becos da memória também ocorre a representação de uma educação
informal, transmitida pelos moradores mais velhos da favela, como o Bondade (2013, p. 56).
Além disso, há a educação formal e branca, mas que se apresenta problemática. Ao perceber os
problemas da referência da sua educação formal, entre eles, o livro didático com perspectiva
colonial, Maria-Nova levanta o debate da urgência de uma educação que respeite outras formas
de pensar e de existir. Assim, resgato novamente a ideia de Walsh sobre a etno-educação como
um aporte para refletirmos a educação no Brasil:

Etnoeducar é ter muita coragem, coragem para ensinar sobre o que por muitos anos
fomos ensinados que não tinha valor... O conhecimento que nos foi dito que não era
conhecimento... A luta é devolver essa forma de conhecimento, desta forma
entender a vida, entender nosso próprio conhecimento e inserir em nossos processos
educacionais nossa visão de história e nossa visão de conhecimento (Walsh, 2004,
p. 342, tradução minha)[115].

O romance de Conceição Evaristo traz a ideia de que a liberdade e a visibilidade dos negros
passam pela consciência das opressões vivenciadas por eles. E essa consciência ocorre sobretudo
quando garantimos que a narrativa dessas opressões, violências e escravidão seja contada por
quem realmente as conhece. Maria-Nova sonha com a possibilidade de colocar no papel essa
história, que já está escrita no seu corpo negro, uma história grande e bem diferente da que ela
leu na escola. Uma narrativa que começa com o que é contado em Um defeito de cor e continua
em Becos da Memória, passado e presente não muito diferentes:

Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito


grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente
de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento:
quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que
estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (Evaristo,
2013 [2006], p. 210-211).

Sim, ela iria adiante. Um dia, agora ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a
escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os
murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos.
Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo (Evaristo, 2013 [2006], p. 245).

Maria-Nova, como ser decolonial, cuja “subjetividade está enraizada na coletividade de opressão
e resistência (...) conhece e se sente consciente de sua realidade colonial para gerar um presente e
um futuro decolonial” (Gómez; Mignolo, 2012, p. 50). Embora sonhe com a escrita dessa
narrativa, Maria-Nova tem a consciência das dificuldades que ela e qualquer criança negra terá se
querem ser uma intelectual na sociedade brasileira, pois as políticas “públicas” estão organizadas
para impedir que elas tenham uma formação educacional suficiente para alcançar um espaço
social que lhes permita executar o desejo de serem intelectuais no futuro. Maria-Nova pensou

nas crianças da favela, poucas, pouquíssimas, podia-se contar nos dedos as que
chegavam à quarta série primária. E entre todos, só ela estava ali numa segunda
série ginasial, mesmo assim fora da faixa etária, era mais velha dois anos que seus
colegas. E ainda estava em vias de parar de estudar, a partir do momento que tivesse
de mudar da favela (Gonçalves, 2013 [2006], p. 210).

O romance de Conceição Evaristo aponta para a educação escolar como uma formação
importante para a resistência negra. No entanto, apresenta a pedra no meio do caminho: a escola
não é um lugar acolhedor para as meninas e os meninos negros. Sugere que as políticas públicas
de educação de caráter universal não atendem à grande massa da população negra. Conectada
com a agenda temática da narrativa, Nilma Lino Gomes sinaliza a alheidade da escola em relação
ao negro:

A escola pública, mesmo sendo um direito social, se esquece de que ela é a


instituição que mais recebe corpos marcados pela desigualdade sociorracial acirrada
no contexto da globalização capitalista. Corpos diferentes, porém, discriminados
por causa da sua diferença. Corpos sábios, mas que têm o seu saber desprezado
enquanto forma de conhecimento. Corpos marcados por imagens quebradas”
(Gomes, 2017, p. 134).

No caso da personagem Kehinde, havia um sentimento de desconforto e de não pertencimento ao


espaço. Embora ela tivesse destaque em seu processo de aprendizagem, era uma estudante
clandestina. A escola é apresentada como inibidora da criança, instituição que não conhece o
perfil, a realidade dos seus estudantes e por isso não oferece a educação significativa para eles.
As crianças negras não se sentem contempladas pela educação oferecida pela escola, que, por sua
vez, não considera que as crianças brancas têm realidades diferentes das negras, o que pode gerar
até brincadeiras diferentes, como aponta a narrativa:

Afinal ela estava estudando. Maria-Nova apertou os livros e os cadernos contra o


peito, ali estava a sua salvação. Ela gostava de aprender, de ir à escola, não. Tinha
medo e vergonha de tudo, dos colegas, dos professores. Despistava, transformava o
medo e a vergonha em coragem. Tinha uma vantagem sobre os colegas: lia muito.
Lia e comparava as coisas. Comparava tudo e sempre chegava a um ponto. Uma
vez, uma professora de História falou alto, no meio de todos, que ela era a única
aluna que chegava às conclusões. E sempre a professora de português elogiava suas
composições” (Evaristo, 2013 [2006], p. 154-155, grifos meus).

Algumas crianças levantavam e tomavam o rumo da escola. Poucos, muitos poucos,


iam todos os dias. A escola os inibia. Bom, na escola, era a merenda que a gente
comia” (Evaristo, 2013 [2006], p. 235).

Beto “era um ano mais novo do que ela. Havia saído da escola há muito tempo, na
primeira série ainda, depois de uns três anos de precária frequência. Um dia ele
comentou com Maria-Nova que não sabia como ela aguentava a escola. Tudo tão
diferente, o prédio, a professora, os colegas, as lições. Bom da escola era só a
merenda! Nem o recreio era tão bom assim! Às vezes, tinha brincadeiras que ele
não conhecia e os colegas não tinham paciência de ensinar” (Evaristo, 2013 [2006],
p. 236).

A experiência de infância de Bell Hooks quando frequentou escolas de brancos, no contexto do


Apartheid nos Estados Unidos, converge com as experiências dessas crianças de Becos da
memória, as quais gostam de estudar, mas não gostam da escola. Perderam o gosto pela escola
porque ela não estava atenta às necessidades das crianças negras e oferecia apenas uma cultura
branca como perspectiva de educação:

Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegredadas, deixamos para trás


um mundo onde os professores acreditavam que precisávamos de um compromisso
político para educar corretamente as crianças negras. De repente, passamos a ter
aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas. Para
as crianças negras, a educação já não tinha a ver com prática de liberdade. Quando
percebi isso, perdi o gosto pela escola. A sala de aula já não era um lugar de prazer
e êxtase (Hooks, 2013 [1994], p. 12).

Há uma questão importante nas experiências educacionais de Bell Hooks e Maria-Nova.


Enquanto Bell Hooks experimentou uma pedagogia revolucionária quando esteve na escola com
professores negros, Maria-Nova questionava a pedagogia colonial da escola que frequentava.
Esse ato de questionar e não obedecer, comportamento que não se esperava dos negros, em um
contexto racista, ocorre porque a formação educacional que Maria-Nova obteve na comunidade
em que vivia era revolucionária. O mesmo não aconteceu com Bell Hooks, pois a visão de
educação no seu seio familiar era o de obediência às normas, e a escola era o lugar que permitia
pensar na desobediência:

Naquela época, ir à escola era pura alegria. Eu adorava ser aluna. Adorava aprender.
A escola era o lugar do êxtase – do prazer e do perigo. Ser transformada por novas
ideias era puro prazer. Mas aprender ideias que contrariavam os valores e crenças
aprendidos em casa era correr um risco, entrar na zona de perigo. Minha casa era o
lugar onde eu podia esquecer essa noção e me reinventar através das ideias (Hooks,
2013 [1994], p. 11).

No Brasil, o Ministério da Educação, por meio da publicação Orientações e ações para a


educação das relações étnico raciais (2006), apresenta diretrizes educacionais situadas no
campo das políticas de reparação, do reconhecimento e da valorização dos negros para incluir a
população negra na escola, bem como sua permanência e sucesso escolar. Entre as atitudes
políticas elencadas como necessárias, o texto incluiu as ações afirmativas que valorizem a
história afro-brasileira:

O racismo em nossa sociedade constitui também ingrediente para o fracasso escolar


dos (as) alunos (as) negros(as). A sanção da Lei nº 10.639/2003 e da Resolução
CNE/CP1/2004 é um passo inicial rumo à reparação humanitária do povo negro
brasileiro, pois abre caminho para a nação brasileira adotar medidas para corrigir os
danos materiais, físicos e psicológicos resultantes do racismo e de formas conexas
de discriminação (BRASIL, 2006, p. 21).

Apesar do reconhecimento do legado da memória africana e do entendimento de que o racismo


contribui para o fracasso escolar (baixo rendimento, repetência, abandono e evasão) da
população negra, é perceptível que isso não tem refletido na prática escolar e, consequentemente,
na realidade educacional das crianças negras. Segundo o relatório da UNICEF (2012, p. 45),
Iniciativa global pelas crianças fora da escola, há muito a avançar para garantir o acesso de
todas as crianças à Educação Básica no Brasil, pois os “indicadores mostram que os grupos mais
vulneráveis são aqueles historicamente excluídos da sociedade brasileira: as populações negra e
indígena, as pessoas com deficiência, as que vivem nas zonas rurais e as de famílias com baixa
renda” (UNICEF, 2012, p. 45). O relatório traz a dimensão dessa exclusão por idade e raça:
“19,8% das crianças negras de 4 a 6 anos (921.677) não frequentam a escola, ante 17,3% das
brancas (682.778)” (UNICEF, 2012, p. 28). O texto da Unesco ainda afirma que 375.177
crianças na faixa de 6 a 10 anos estão fora da escola. Dessas, 3.453 trabalham e a maioria que
exerce alguma atividade é negra (93%) (UNICEF, 2012, p. 29). Em relação ao risco de
abandono, “enquanto 30,67% das crianças brancas (1.596.750) têm idade superior à
recomendada nos anos iniciais do Ensino Fundamental, entre as negras a taxa é de 50,43%
(3.513.117)” (UNICEF, 2012, p. 34). Assim, entendemos que o fracasso escolar é uma questão
de raça e classe no Brasil, e esse cenário ainda não é muito diferente do que é representado em
Becos da memória.

A exclusão da criança nas atividades do pensar também está no horizonte de Amadeu de Oliveira
Weinmann (2018), em seu artigo “A infância e os impasses da Modernidade”. O autor menciona
que “no pensamento cartesiano, enquanto a loucura é condição de impossibilidade do pensar, a
infância é o que resiste à disciplina metódica da razão” (2018, p. 14) e apresenta a concepção de
Rousseau acerca da relação infância e conhecimento: “em Emílio ou da educação (...), Rousseau
sugere que a infância é não razão espontaneamente orientada para a razão” (2018, p. 14). E
Walter Omar Kohan também levanta essa ideia de Rousseau ao nomear a infância como potência
do saber:

Por isso, na infância do pensamento, a ignorância tem vários significados possíveis:


ela é ausência de saber, mas também é o saber afirmativo que não aceita o que
“todo mundo” considera saber; é não querer saber o que, nem como, todo mundo
sabe. Então, no mundo filosófico da infância, o mais sábio não sabe. Não sabe o
saber que não se sabe a si mesmo e não sabe outro saber que o saber de querer
sempre saber. A ignorância deixou de ser ausência, carência e insuficiência para
tornar-se potência e motor dos possíveis (Kohan, 2015, p. 219).

No entanto, a leitura dos romances de Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo caminham
para afirmar que para as crianças negras essa orientação para a razão é negada. Não há interesse
político delas saírem dessa condição, nem mesmo quando se tornam adultos. Ser criança é uma
modalidade da não razão e, em um contexto racista, ser negro é também estar nesse lugar da não
razão. Resistir a essa imputação ou “ficção” é o que Kehinde e Maria-Nova fizeram:

Uma vez que sua inferioridade é uma ficção criada para dominá-lo, e se não quer
ser assimilado nem aceitar com a resignação “a má sorte” de ter nascido onde
nasceu, então desprenda-se. Desprender-se significa não aceitar as opções que lhe
brindam. Não pode evitá-las, mas ao mesmo tempo não quer obedecer. Habita a
fronteira, sente-se na fronteira e pensa na fronteira no processo de desprender-se e
resubjetivar-se (Mignolo, 2017, p. 19).

A narrativa de Um defeito de cor traz essa marcação do lugar da não razão para os negros na fala
da Sinhá Ana Felipa, que, em uma percepção binária, coloca os adjetivos de preta e xucra como
sinônimos, ou seja, em sua visão racista, ser xucra é uma condição de ser negro, é o que
diferencia o branco do negro: “deveria providenciar um horário, todos os dias, para que a
sinhazinha Maria Clara tivesse aulas de ler e escrever, pois a menina estava sendo criada xucra
como preta, e alguém tinha que tomar providências” (Gonçalves, 2013 [2006], p. 91-92). Essa é
a velha estratégia dos racistas para perpetuar a opressão, negam o direito de aprender para depois
acusá-los de que não são capazes, de que o lugar do negro é a não razão:

A sinhá perguntou se algum dos escravos da casa sabia ler, porque ela tinha um
caderno com receitas que queria que a Esméria e a Maria das Graças aprendessem a
preparar e servissem durante a estada do padre Notório. A Esméria disse que não,
que ninguém sabia ler ou escrever, e a sinhá respondeu que era o que esperava
mesmo, que cabeça de preto mal dava para aprender a falar direito, quanto mais
para ler e escrever” (Gonçalves, 2013 [2006], p. 91).

Bell Hooks fala sobre a internalização desse lugar para as meninas negras, como elas são
reprimidas e até mesmo desestimuladas, pela sua própria comunidade, a ler e escrever, em favor
de trabalhos relacionados ao corpo. Relata também o sentimento de culpa das crianças que
gostam de ler, estudar e escrever, porque sentem que não estão ajudando a família:

Muitas negras entre elas eu, descrevem experiências de infância em que o anseio
por ler, contemplar e falar sobre uma mais ampla gama de ideias era desestimulado
considerado uma atividade frívola ou que nos absorvendo com tanta intensidade nos
tornaria egoístas, frias, destituídas de sentimentos e alienadas da comunidade. Na
infância se eu não pusesse os trabalhos domésticos acima dos prazeres de ler e
pensar, os adultos ameaçavam me punir queimando meus livros, proibindo-me de
ler. Embora isso jamais tenha ocorrido incutiu em minha consciência o senso de que
era de algum modo não apenas errado preferir ficar sozinha lendo, pensando e
escrevendo, mas também, meio perigoso para meu bem-estar e um gesto de
insensibilidade para com o bem-estar dos outros (Hooks, 1995, p. 470-471).

No livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (2013 [1994]), Bell
Hooks volta a falar da diferença entre a formação transgressora que recebia na escola a partir das
aulas das professoras negras e o seu não pertencimento às ideias e aos discursos veiculados nos
espaços familiares; o não pertencimento à visão e a um espaço social que só reforçava a opressão
ao negro e a produção teórica como modo de entender esses conflitos e silenciamento:

Imagine também, por favor, minha dor na infância. Eu não me sentia realmente
ligada a essa gente estranha, a esses familiares que só não conseguiam entender
minha visão de mundo como também sequer queriam ouvir falar dela. Na minha
infância, eu não sabia de onde tinha vindo. E, quando eu não estava tentando
desesperadamente fazer parte dessa comunidade familiar que dava a impressão de
nunca aceitar nem me querer, estava buscando desesperadamente descobrir onde eu
me encaixava. Estava buscando desesperadamente encontrar o caminho para casa...
vivendo na infância sem ter a sensação de um lar, encontrei um refúgio na
“teorização”, em entender o que estava acontecendo. Encontrei um lugar onde eu
podia ser diferente. Essa experiência “vivida” de pensamento crítico, de reflexão e
analise se tornou um lugar onde eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir
embora (Hooks, 2013 [1994], p. 84-85).

Para a autora, há um projeto de anti-intelectualismo para que as mulheres negras não sejam
consideradas uma intelectual em potencial. Faz parte dele desestimular as atividades do pensar
através da internalização da não relação entre a atividade intelectual e a política. Entender o
trabalho intelectual sem afastamento da política do cotidiano é um dos desafios para incluir as
mulheres na produção intelectual. A quebra desse empecilho é importante para que as mulheres
negras percebam a existência da recompensa do trabalho intelectual, que é o impacto positivo
dele no cotidiano delas:

Fico pasma com a profundeza do anti-intelectualismo que as assalta e que elas


internalizam. Muitas manifestam desprezo pelo trabalho intelectual porque não
veem como tendo uma ligação significativa com a vida real ou o domínio da
experiência concreta. Outras interessadas em seguir trabalho intelectual são
assaltadas por dúvidas porque sentem que há modelos e mentoras do papel da
mulher negra ou que os intelectuais negros individuais que encontram não obtêm
recompensas nem reconhecimento por seu trabalho (Hooks, 1995, p. 467- 468).

Na percepção de Angela Davis (2013 [1981]), a compreensão da vida das mulheres negras
começa com a apreciação do seu papel de trabalhadora. Essa observação indica que a dificuldade
delas se verem como intelectuais ou potenciais intelectuais está relacionada com “o enorme
espaço que o trabalho ocupava na vida das mulheres negras” (Davis, 2013 [1981], p. 10). Como
escravizadas, o trabalho compulsoriamente ofuscou qualquer outro aspecto da existência
feminina (Davis, 2013 [1981], p. 10). A projeção de uma menina negra escravizada e de uma
menina negra na contemporaneidade como potencial intelectual é a proposta de resistência que
pretende quebrar esse modelo reducionista da existência negra. Portanto, é uma posição de
afronta à colonialidade de gênero.
O letramento da menina negra em Um defeito de cor ocorre por via de estratégias sutis. Kehinde
aproveitava o desinteresse da menina branca para estudar: “eu e a sinhazinha passávamos a
maior parte do tempo no quarto, ela fingindo estudar e eu estudando de fato, com os livros que
não estavam em uso”. A Sinhazinha poderia se dar ao luxo de não estudar porque, como menina
branca, ela tinha seus privilégios garantidos; e para a menina negra, é negada qualquer
possibilidade de ascensão social. Mesmo assim, ela usa da desobediência para obter um
letramento:

Fatumbi... passou a me deixar que eu estudasse em alguns livros da sinhazinha que


ele levava para corrigir, arrumando também papel e pena para que eu pudesse
copiar e fazer os exercícios. A Esméria ficava brava, dizia que era perda de tempo e
que nem valia a pena eu aprender as letras e os números, porque não teria chance de
usar. Mas ela sempre ia ver o que eu estava fazendo antes que o pouco óleo do
lampião acabasse e nós ficássemos no escuro, e perguntava alguma coisa, que
número era aquele ou que letra era aquela, repetindo por um bom tempo depois. Eu
também repetia; mesmo no escuro, eu ficava desenhando as letras na minha cabeça
e tentando juntar umas com as outras, formando as palavras. Palavras que depois eu
passava para o papel, usando a pena e uma tinta que o Fatumbi ensinou a Esméria a
preparar com arroz queimado (Gonçalves, 2013 [2006], p. 93).

Kehinde e Maria-Nova rompem com a fronteira discursiva de que é desnecessário meninas


negras estudarem. “A partir do momento em que ser um sujeito racional – tanto do ponto de vista
epistêmico quanto moral – torna-se um imperativo nas culturas ocidentais, a infância surge como
um dos nomes da não razão”(Weinmann, 2018, p. 13), mas percebe-se nessas personagens uma
qualidade de abertura crítica que permite a transgressão, e é a desobediência desse discurso que
caracteriza a intelectual na perspectiva de Bell Hooks (1995).

Assim, o conhecimento e o projetar-se em uma vida intelectual é para essas meninas o que
também significou para Bell Hooks: “no meu caso voltei-me para o trabalho intelectual na busca
desesperada de uma posição oposicional que me ajudasse a sobreviver a uma infância dolorosa”
(Hooks, 1995, p. 465). Tornar-se intelectual para essas meninas negras é uma forma de entender
o mundo e sua própria realidade, sem se desassociar da política do cotidiano.

A partir desses apontamentos, é perceptível que os romances aqui estudados apresentam


infâncias desiguais. Em Um defeito de cor, a criança negra tem acesso à educação de maneira
informal, por via da desobediência (estuda escondido, esconde os livros, entre outros), é o caso
de Kehinde e das crianças que estudavam na casa do padre Heinz. Já em Becos da memória, é
possível ver meninas e meninos negros frequentando a escola, mas ela é um lugar que ainda não
compreende bem os direitos dessas crianças, que ora desistem da escola, ora não têm um bom
rendimento por causa do racismo. Assim, a escola é apresentada como um espaço que perpetua a
colonialidade do saber e do gênero. Kehinde é uma criança localizada em um contexto de
escravidão e colonização territorial, que mesmo com postura de resistência, não conseguiu um
espaço digno na sociedade. Maria-Nova é a criança representativa do futuro das mulheres negras,
a que já conseguiu algum espaço na sociedade embora parco, mas que projeta um lugar maior, a
ampliação de identidades positivas para a mulher negra, ela pensa na identidade intelectual. No
entanto, Maria-Nova tem o seu processo de letramento ameaçado pelo despejo da favela
(desfavelamento), a concretização do projeto de ser uma intelectual formal/ escritora fica incerta.
E, por fim, temos a infância oposta à de Kehinde e Maria-Nova, a infância da menina branca,
sinhazinha Maria Clara, que pode estudar e até ter um professor particular.

As representações de meninas negras nessas obras ampliam as possibilidades de pensar as


mulheres negras para além das atribuições escravocratas de serva de casa, mãe-preta das crianças
da casa grande, brinquedo das crianças da casa-grande, um corpo a serviço do homem branco,
um corpo para a lavoura, um corpo passivo e obediente, um corpo objeto. A figuração dessas
meninas negras e até mesmo dos meninos (pensando no filho da Kehinde como figuração do
escritor Luís Gama) traz a imagem da infância como esperança, projeto de futuro, imagens que
afrontam a colonialidade. Seja em seus romances, contos ou poemas, Conceição Evaristo
apresenta uma infância como força, a criança como capacidade, como agente da descolonização;
infância é sempre resistência: “Maria-Nova à medida que aprendia se tornava mestra dos irmãos
menores e das crianças vizinhas. Maria-nova crescia, lia, crescia” (Evaristo, 2013[2006], p. 92).
É a infância que ecoa esperança:

Menina, o mundo, a vida, tudo está aí! Nossa gente não tem conseguido quase nada.
Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de
ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que
consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se
realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os
ouvidos, os olhos e o coração aberto (Evaristo, 2013 [2006], p. 156).

Como é perceptível nesse trecho, ao fazermos uma leitura a partir da poética da infância, a
menina negra é apresentada como esperança e resistência à colonialidade. Ela passa por uma
formação que oferece elementos para desnaturalizar a diferença colonial. E, enquanto aposta de
um futuro, carrega a responsabilidade social de realizar um sonho coletivo, pois o sonho de uma
é o de todas, e assim entendemos que o enfrentamento à colonialidade é sobretudo feminista e
negra, um projeto que começa na infância de muitas meninas negras.

Em ambos os romances as autoras constroem para a infância das meninas negras identidades de
resistência. Em Becos da Memória a narradora olha para o espaço da infância para configurar a
colonialidade e sugere uma postura decolonial a partir de uma educação e pedagogia
anticolonial. A escola é apresentada como um lugar político, de resistência na luta antirracista. A
devoção ao estudo de Maria-Nova e até mesmo Kehinde de Um defeito de cor é um ato contra-
hegemônico para resistir às estratégias da colonialidade. Por meio da postura contestadora de
Maria-Nova ao ensino controverso oferecido pelo livro didático, podemos dizer que o romance
celebra um ensino que permite a transgressão e uma educação como prática da liberdade, sugere
uma educação decolonial.

Maria-Nova não é apenas a representação do futuro, mas é também a figuração do agora, pois,
como foi dito anteriormente, ela problematiza o discurso sobre a história oficial dos negros.
Assim, a infância em Becos da memória não aparece apenas como potência do futuro, mas
também como força do presente e símbolo de um passado, como bem disse Evaristo no poema
“Vozes-mulheres” (2017 [2008], p. 27): “A voz de minha filha/ recolhe em si/ a fala e o ato/ O
ontem – o hoje – o agora/ Na voz da minha filha/ se fará ouvir a ressonância/ O eco da vida-
liberdade”. No presente, Maria-Nova se desloca da perspectiva colonial para pensar sua própria
história por outros horizontes. Ela não reproduz os discursos prontos e internalizados, pois a
educação que recebeu da sua comunidade a preparou para ler o mundo e construir os discursos
ao invés de ser objeto dele. Ela escolhe pensar e ler o mundo a partir de sua própria experiência,
do olhar de sua comunidade, familiares e fundamentada nas histórias locais dos seus ancestrais.

Nas obras de Conceição Evaristo e no romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, os
deslocamentos espaciais são consequências da colonização ou da colonialidade, enquanto os
deslocamentos epistêmicos são atos de posicionamento decolonial. Esses movimentos
epistêmicos sinalizados pelas personagens infantis provocam reflexões em relação à poética da
literatura afro-brasileira contemporânea. Por exemplo, as atitudes epistêmicas de Maria-Nova ao
questionar a história do negro no Brasil, e de Kehinde, ao tentar conservar a herança africana,
podem ser lidas como representativas dos deslocamentos realizados pela literatura afro-brasileira
em relação às escolhas realizadas em seu processo criativo: formas, conteúdos e visão política,
pois se trata de uma literatura com uma perspectiva decolonial.

Nesse projeto decolonial da literatura afro-brasileira aparece a perspectiva negra sobre o mundo;
os temas que interessam para o povo negro ou a problematização de questões envolvendo os
negros que foram silenciadas na literatura brasileira tradicional; as personagens negras são
humanizadas e têm voz na narrativa e cada luta delas carrega um valor epistêmico para a
comunidade negra, especialmente para as crianças negras. Trata-se de uma opção decolonial do
fazer literário porque essa literatura não quer impor suas formas e não pretende ser o modelo
estético ou a regra para outras literaturas, mas quer compartilhar outras possibilidades de olhar o
mundo. Um olhar que se mostra localizado e nunca universal, um lugar que não desmerece
outras literaturas e, assim, fortalece a arte literária. Nessas narrativas não há brechas para pensar
na literatura afro-brasileira como uma criança muda e silenciosa, em processo de formação,
apenas como uma potência de futuro ou uma literatura que promete crescer e se tornar uma
literatura importante, uma vez que ela já é agora.

Além de representarem o movimento epistêmico da literatura afro-brasileira, as meninas negras


simbolizam outro ato de desobediência epistêmica: a saga das escritoras negras brasileiras para
escrever literatura, publicá-las e ainda serem vendidas e lidas, a batalha na criação e no campo
literário. A representação de meninas negras se projetando como intelectuais/escritoras (a
exemplo de Maria-Nova) é o modo poético de representar a resistência da mulher negra na luta
para produzir literatura. A protagonista entendendo que pode aprender (Kehinde) é uma
referência à mulher negra que se vê como uma escritora em um contexto que diz que ela não
pode ser. A escrita das mulheres negras é entendida nas narrativas como um ato político, uma
atitude estética de “identidade em política”.
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SEÇÃO 3: DIÁSPORA ATLÂNTICA, MEMÓRIAS E OUTROS
TERRITÓRIOS
Na rota do Atlântico: Kehinde e o movimento pendular das
identidades diaspóricas
[116]
Cristiane Côrtes

O artigo que segue se propõe a discutir sobre a condição do sujeito diaspórico a partir de um
movimento denominado pendular. O texto parte das reflexões de Paul Gilroy e Edouard Glissant
a respeito da diáspora africana para discutir a metáfora do pêndulo e refletir sobre a possibilidade
desses sujeitos em questão interferirem numa comunidade hegemônica como uma contra
narrativa e promover uma desarticulação dos discursos etnocêntricos no caminho de uma
sociedade mais justa.
Sim, é preciso,
É preciso que a palavra necessária
tome atitudes firmes
no espírito dos homens.
[...]

é preciso no corpo de todos os homens


a discreta agitação das suas soluções,
e a certeza inquebrantável
de alguma infinita margem de vida.

João Vário, Convicção, 1997.

Publicado em 2006 pela editora Record, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, inspirado
na biografia de Luísa Mahin, suposta mãe do poeta Luiz Gama, é narrado por Kehinde, uma ibêji
(gêmea), nascida em Daomé que, aos oito anos, é capturada por traficantes de escravos com a
avó e a irmã, Taiwo. O texto conta a saga da menina que chega ao Brasil, sozinha, sendo a única
da família que resistiu ao navio negreiro. Aqui é comprada por um fazendeiro e escravizada
durante a infância até a juventude, quando consegue sua alforria. Livre, Kehinde começa a
participar das discussões sobre a libertação dos escravizados no país e da emancipação do estado
da Bahia. Envolvida com a revolução dos Malês, a narradora precisa se esconder para não ser
deportada à África. Nesse tempo, perde seu filho, vendido pelo português Alberto, pai da
criança. Assim, inicia uma série de viagens à procura do rebento até que volta à costa africana na
esperança de reencontrá-lo e lá se consolida como grande empresária, construtora de casas no
estilo colonial brasileiro, torna-se uma referência de personalidade na costa ocidental africana.

O premiado romance dialoga com o modelo pós-moderno de metaficção historiográfica e é fruto


de longa pesquisa acerca da sociedade brasileira escravista do século XIX. Quanto a isso, a
pesquisadora Silvania Chaves afirma que

Embora não se trate de um romance histórico, Um defeito de cor (2011), de Ana


Maria Gonçalves, nos remete a esse retorno por meio de sua narradora personagem,
Kehinde, que no Brasil se chamou Luísa Gama e, ao retornar, adotou o sobrenome
Andrade da Silva. Entretanto, devemos ressaltar que, como a personagem Luísa
Gama tem origem em uma personagem histórica ou mítica – Luísa Mahin – suposta
mãe do poeta Luiz Gama, pode-se afirmar, na esteira de Linda Hutcheon, que se
trata de uma metaficção historiográfica, pois, segundo a autora, “são romances
intensamente reflexivos que se apropriam de personagens históricas para questionar
a própria história” (1991, p. 21)

Esse questionamento da historiografia a qual Hutcheon se refere é perceptível, em grande parte


da obra pela aproximação entre a trama e as questões relacionadas ao conceito de diáspora. Isso
por construir uma personagem de origem africana que vive a grande dispersão de seu continente
em função do comércio de mulheres e homens escravizados, principalmente no século XIX. O
termo, do grego, significa dispersar, ou semear, está associado a ideias de migração e
colonização na Ásia Menor e no Mediterrâneo, na Antiguidade – de 800 a 600 a.C. As questões
relacionadas à diáspora – fuga e sofrimento, tradição, temporalidade e organização social da
memória – possuem um significado especial nos escritos de várias gerações de historiadores,
religiosos e críticos. Paul Gilroy (2001, p. 382), por exemplo, associa esse contexto à “ideia de
exílio, dispersão e escravidão”. Suas reflexões foram um importante recurso para a crítica
contemporânea pensar os problemas identitários na diáspora do Atlântico Negro. Para ele, este
fenômeno promove experiências ambivalentes das identidades negras dentro e fora da
modernidade.

Outros teóricos também estudam a manifestação e o silenciamento das culturas africanas no


mundo de hoje a partir dos movimentos diaspóricos. Nei Lopes, por exemplo, na Enciclopédia
Brasileira da Diáspora Africana, acrescenta que o termo “serve também para designar, por
extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio
cultural que construíram” (2004, p. 236). Inspirado na desterritorialização deleuziana e na não
linearidade da física contemporânea, Paul Gilroy define o Black Atlantic como uma formação
rizomática e fractal, posicionando-se contra as ideias sobre a integridade, a pureza das culturas e
o absolutismo étnico. Assim, o que se constata com a presença do sujeito diaspórico em uma
comunidade seria uma quebra do discurso determinante de uma cultura que se considera
homogênea, porque questiona a relação entre identidades e pertencimento dentro de uma
comunidade.
Ana Maria Gonçalves mostra uma história diferente da historiografia oficial, em que a voz do
africano diaspórico não finda no porão dos navios, nem se restringe unicamente à rota do tráfico
negreiro. Ela é coletiva, ecoa nas vozes e nas ações daqueles que viviam nas nações colonizadas,
retornaram para seu continente de origem e contribuíram, efetivamente, para a mudança de um
quadro cultural hegemônico, seja na colônia, seja na sua pátria originária. Nesse sentido, o
romance evoca também a concepção atual de diáspora em que há um intento de seus
remanescentes em contar uma história que faça mais sentido para seus enunciadores. Quanto a
isso, Arruda (2008, p. 38) elucida que

Muitos autores afro-brasileiros confirmam esse novo pensamento sobre a diáspora


negra e trazem para sua literatura marcas dessa memória coletiva que é, para eles,
uma espécie de motor da narrativa ou da poesia. Através de metáforas como a do
navio negreiro, insígnia da mediação do sofrimento do povo africano, ou da viagem
como motivo e objeto de reflexão sobre a diáspora, esses autores tecem sua
literatura suplementando, no sentido derridiano do termo, a literatura canônica e
parodiando-a também.

Gilroy, ainda sobre a cultura e os interesses dos negros no mundo, afirma que “vale a pena
reconstruir essa história negligenciada, quer ela forneça ou não indicadores para outros processos
culturais gerais” (2001, p. 166). Essa reconstrução resulta em diversas manifestações que
partiram da experiência negra diaspórica e são compartilhadas com todas as pessoas,
independente da etnia ou cultura. Stuart Hall (2008, p. 36), afirma que é “importante ver a
perspectiva da cultura diaspórica como uma subversão dos moldes culturais tradicionais
orientados para a nação”. A narrativa mostra como o sujeito que vive em trânsito adquire uma
consciência mais profunda sobre sua existência, seus deslocamentos e sua origem. Essa
consciência evidencia, além de uma concepção inovadora de fronteira, uma realidade intelectual
capaz de rearticular os espaços ocupados, seja na terra deixada, seja na terra ocupada.

O olhar diaspórico parte sempre da fronteira, este é um lugar privilegiado, se levarmos em


consideração as palavras de Homi Bhabha (2003, p. 24) em que “A fronteira é um lugar do qual
algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimular ao da articulação ambulante,
ambivalente”. Isso significa que quem vê a partir da fronteira pode reconhecer e aceitar melhor o
novo. Bhabha associa a imagem da fronteira à da ponte, entendida como a possibilidade de união
daquilo que está em oposição, do outro lado da margem. Essa consideração está exemplificada
pelo constante movimento na vida de Kehinde. A personagem vê na mudança a possibilidade do
novo e isso a faz crescer vertiginosamente dentro da narrativa. É possível dizer que tal situação a
coloca em uma constante condição de aprendiz que lhe proporcionará o conhecimento de novas
línguas, novas formas de trabalhar, enriquecer, empregar. A trama nos mostra que a consciência
desse olhar fronteiriço se dá ao longo de experiências que vão modificando a vida do sujeito e
fazendo com que ele reconheça esse lugar da fronteira como ponto de enunciação do seu
discurso.

No caso de Kehinde, que vivenciou a diáspora aos oito anos, isso é bem claro. Ao chegar ao
Brasil, a personagem se recusa a ser batizada, nega o nome ocidental, resiste em falar o
português, cultua os orixás da sua família. Entretanto, ao voltar a seu país de origem, ela usa o
nome brasileiro, frequenta a igreja católica e fala português. Porém, em nenhum momento, a
personagem nega ou negligencia sua origem ou sua afinidade com o Brasil, pelo contrário, pois
está sempre disposta a criar vínculos, cultivar amizades onde resolve se estabelecer. A sua vida
está sempre indo e vindo, desde que foi retirada de sua terra, como se o movimento natural dela
fosse essa inconstância, tanto que, na velhice, percebe que sua vida transcorre dessa forma e que
isso é uma faculdade inerente e positiva dos viajantes oriundos da diáspora.

A protagonista constrói sua vida no trânsito, como um pêndulo que se encontra em constante
movimento, oscilando, ora mais, ora menos, mas sempre de um extremo a outro. O movimento
oscilatório é constituído, assim, como uma dança em que o sujeito se vê livre para transitar entre
esses extremos, mas há sempre algo que o impede de se fixar. Kehinde reconhece a necessidade
de viver em movimento, embora essa perspectiva não fosse bem vinda no início, quando ela,
ainda no navio, reflete que a “pior de todas as sensações era a de ser um navio perdido no mar, e
não a de estar dentro de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família
[...]” (Gonçalves, 2006, p. 61). A reflexão nos permite afirmar que esse seria o momento em que
se instaura o primeiro impulso que promoverá a condição do sujeito pendular. A narradora
confirma essa proposição ao dizer que se sente um navio, mesmo sendo ainda um movimento
doloroso em função das perdas sofridas. Em vários outros momentos, ela se refere à sua
personalidade oscilante e ao desejo de mudar, pois sabia que sempre teria que lidar com o fato de
“não pertencer a lugar algum” e com o medo de “se unir a alguém que depois partiria por um
motivo qualquer” (Gonçalves, 2006, p. 164).

A sensação de não pertencimento é retratada, no início da narrativa, como algo incômodo,


indesejado. O apagamento das tradições e da memória cultural, no ritual de passagem pelo navio
negreiro, promovia um constante estranhamento nesses sujeitos que, de repente, se viam sem
nome, sem família, sem religião e sem pátria. A protagonista descreve o navio e as condições da
viagem até o Brasil. Nele,

[...] não tinha qualquer entrada de luz ou de ar a não ser pela portinhola por onde
descemos e que foi fechada logo em seguida. [...] A minha avó estava agarrada à
minha mão e à da Taiwo, e, mesmo tendo companhia, parecia que estávamos
sozinhas, porque ao redor de cada uma de nós era só silêncio. Silêncio que mais se
parecia um pano escuro, grosso e sujo, que tomava todos os espaços e prendia
debaixo dele o ar úmido e malcheiroso sabendo a mar e a excrementos, a suor e a
comida podre, a bicho morto. [...] Era como se todos esses cheiros virassem gente e
ocupassem espaço, fazendo o lugar parecer ainda mais sufocante. Segurando a mão
de minha avó, eu pedia que o estrangeiro fosse perto. (Gonçalves, 2006, p. 45)[117].

O mau cheiro que Kehinde sentia era a profecia do que a aguardava, ele a acompanha por toda a
viagem. O início da narrativa também profetiza uma história de mortes e excrescências, quando,
logo no segundo subcapítulo, intitulado “Destino”, a narradora anuncia a violenta morte da mãe e
do irmão, seguida do abandono do lar por ela, pela avó e pela irmã gêmea. Dando início à sua
história de errância, o estupro da mãe e, mais tarde, o próprio, denunciam o abuso e a invasão do
poder masculino, simbolizado pelo sêmen, “líquido pegajoso e esbranquiçado que jorrou longe”
(p. 24).

No interior do navio havia, entre os indivíduos, tanto o vazio interno provocado pelas perdas
quanto a ausência de diálogos, ou por não falarem a mesma língua, ou pela prostração da
viagem. O silêncio era o prenúncio de uma vida triste, do véu que cobriria esses povos ao
chegarem até a costa brasileira. Embarcar era despir-se de tradições e ensinamentos, por isso
todos tinham que deixar seus bens, inclusive as imagens, colares, roupas ou qualquer objeto que
lhes lembrassem da terra deixada para trás. O silêncio era uma constante durante a viagem, no
fim de três dias, “até a altura das vozes que diziam as rezas foram diminuindo, pois estávamos
muito cansados. Pela viagem, pelos enjôos, pela dificuldade de dormir, pela falta de comida, pelo
ar que descia a garganta, pela sede” (p. 49).

A tentativa de um silenciamento etnocultural, está presente na realidade de uma identidade


diaspórica, ela é evidenciada na obra também pela troca de nomes que todos sofriam, os homens
antes de entrarem no navio e as mulheres quando chegavam:

Foi então que ficamos sabendo o motivo da demora do embarque dos homens, pois
os brancos tinham batizados todos com nomes que chamavam de nomes cristãos,
nomes de brancos. [...] Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um,
tiveram que dizer o nome africano e o lugar onde tinham nascido, que eram
anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco. Era esse
nome que tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças
e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia. [...] Alguém lembrou que o
padre também tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar
apenas na religião dos brancos, deixando em África toda a fé nos deuses de lá,
porque era lá que deviam ficar. [...] Quando alguém comentou isso, todos fizeram
saudações aos seus orixás, eguns ou voduns, demonstrando que não tinham
concordado” (Gonçalves, 2006, p. 50).

A não aceitação de uma cultura imposta foi o primeiro momento da narrativa no qual se faz
presente a consciência diaspórica. Assim, vemos a permanência da cultura africana nos porões
do navio, apesar das tentativas de apagamento provocadas pelos colonizadores. Gilroy constata a
importância dessa permanência ao dizer que “o conhecimento popular, a cultura trazida no
Atlântico Negro, é uma aquisição histórica elementar produzida num corpo alternativo da
expressão cultural e política que vê o mundo criticamente a partir da transformação
emancipadora do negro” (Gilroy, 2001, p. 99). Na mesma perspectiva da fronteira que Bhabha
estabelece, o historiador britânico vê na cultura que resistiu às agruras da rota do Atlântico uma
alternativa para se pensar no povo negro pós modernidade além do sofrimento imposto pela
indústria escravagista.

Ao ser jogada no navio negreiro, Kehinde não fazia ideia do que lhe aconteceria; todos sabiam
que estavam indo para outro país, mas alguns cogitavam a hipótese de serem servidos como
carneiros para brancos, outros acreditavam estar viajando para a Terra prometida por Alá, ou que
seriam vendidos como escravos. É a partir dessa incerteza que começa o desejo de reconhecer a
si mesma, de conhecer ou resgatar sua identidade. Ao ver a irmã morta e a avó morrendo,
Kehinde demonstra a tristeza por ter sido retirada de sua terra e reflete sobre sua condição
naquele momento, afirmando que

[...] a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que significava, era
a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro de um. Não estava mais
na minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não
conhecia, sem saber se ainda era para presente ou, [...] para virar carneiro de branco.
(p. 61).

Ao se perceber estrangeira, a narradora faz questão de manter suas tradições e reafirmar sua
cultura. Mesmo estando em uma terra com aspectos culturais tão distintos, Kehinde vai, pouco a
pouco, calcando seus espaços e se conscientizando de sua força. Ela se descobre negra e mulher
em um lugar onde se privilegiava o branco e homem. Quanto a isso, Glissant afirma que esses
sujeitos chegam em terras alheias

despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade [...] porque o ventre do navio


negreiro é o momento em que as línguas africanas desaparecem, porque nunca se
colocavam juntas no navio negreiro, nem nas plantações, pessoas que falavam a
mesma língua. O ser se encontrava dessa maneira despojado de toda espécie de
elementos de sua vida cotidiana, mas também, e, sobretudo, de sua língua (Glissant,
2005, p. 19).

Isso significa que desde o navio negreiro precisavam de um esforço de tradução por terem que
lidar com outras culturas impostas para se comunicarem e até sobreviverem. Homi Bhabha alega
que a perda ocasionada pelo distanciamento cultural é transformada em metáfora (Bhabha, 1995,
p. 7), pois esses sujeitos precisam atribuir significados a seu imaginário, associando os elementos
familiares da terra ocupada aos da terra deixada. Isso sinaliza a necessidade dos diaspóricos em
remontar ou recriar suas memórias para preencher suas lacunas identitárias, mesmo que
metaforicamente, e, dessa forma, afastar a eminência da amnésia. Myriam Ávila, ao discorrer
sobre o relato de viagem, parafraseando Ilka Boaventura Leite, afirma que o relato do viajante é
um “esforço de tradução do vivido em terras alheias em uma forma apreensível pelo imaginário
pátrio” (Ávila, 2008, 82). Assim, no caso dos sujeitos diaspóricos, percebe-se que há uma
potencialização desse esforço, pois tais indivíduos precisarão restaurar suas origens e
re(significá)-las na pátria estrangeira, pois passaram por um violento processo de silenciamento
quando tiveram seus nomes trocados ou foram batizados pela igreja católica, impedidos de
praticarem suas religiões. Dessa maneira, para retomar a fala de Glissant, percebemos que esses
indivíduos experienciaram níveis de diferenças culturais muito profundos, desde a linguagem até
cultos e costumes. A dispersão sugerida, então, pela diáspora ocorre não somente do ponto de
vista geográfico, mas cultural e social também.

Pode-se perceber que a inconstância é um aspecto frequente na vida da protagonista de Um


defeito de cor. Esse é o aspecto que possibilita a definição do conceito de condição pendular
tratado neste artigo. No romance, pode-se perceber que a viagem é sempre um quesito
fundamental para a promoção da mudança, não apenas física, mas também de consciência da
personagem. A narrativa imputa o leitor a perceber que, uma vez arrancada de sua terra, a
condição de estrangeira lhe será uma característica intrínseca. É como se a sua vida ou relações
estivessem, metaforicamente, associadas ao balanço do navio.

O distanciamento da terra-pátria e a imposição de que ela seja esquecida causava um efeito


contrário, pois mais forte era a necessidade de se criarem estratégias de sobrevivência das
culturas subjugadas aos valores colonialistas. Kehinde, ao chegar ao Brasil, não sabia o que ia
acontecer com ela, não vislumbrava qual cultura ou língua existiam naquele lugar, entretanto, ela
tinha certeza de que não permitiria que lhe tomassem suas memórias, seu vínculo com a
ancestralidade. Isso foi o bastante para que, ao chegar à Ilha dos Frades, na costa brasileira, ela
pulasse na água num gesto de recusa ao batismo e a essa nova cultura imposta. Esse foi o
primeiro dos diversos mecanismos de resistência criados pela protagonista e quanto mais resistia
aqui no Brasil, mais em África passava a ser o melhor lugar para se viver. Interessante perceber
como o romance retrata essa estratégia que fortalece o vínculo com África de tal forma que até as
personagens nascidas no Brasil, tinham saudades da pátria-mãe. É o caso de Tico, amigo da
protagonista que confessa a ela sempre ter a vontade de conhecer as cidades e os amigos que
Kehinde deixou em África e se via em nas embarcações voltando à terra sonhada, junto dos
amigos africanos.

O amadurecimento identitário da personagem é percebido à medida que a sensação incômoda


por não pertencer a lugar nenhum é, no decorrer da trama, substituída pela necessidade de viajar
para lidar com o novo, para renovar esperanças. Consta-se que a narradora não vê a viagem
como um simples deslocamento, nem como fuga. Todos os seus movimentos foram motivados
por algo maior – seja o rapto pelos comerciantes de escravos, as mudanças de “sua” sinhá, a
Revolta dos Malês, ou a busca do filho –, nesse sentido, a viagem é inevitável, é a possibilidade
de encontrar ou construir o novo. A cada novo lugar, novas críticas, pensamentos e abordagens
são feitos. A protagonista, no último capítulo do romance, estabelece um novo conceito para o
estrangeiro diaspórico. Isso ocorre quando ela retorna para a África e percebe que também não
pertence àquele lugar e afirma:

[...] quero mudar de fase, mudar de lugar, como se isso representasse um novo
começo, em que as esperanças se renovam. Sempre fui assim, e talvez você já tenha
percebido antes mesmo desse comentário, mas poder começar de novo, em outro
lugar, com outras pessoas com novos planos, é algo que não recuso nunca (p. 718).

A passagem indica uma tomada de consciência da condição pendular de Kehinde, da necessidade


de voltar para recomeçar, como quando começa a viajar em busca do filho perdido e afirma que
“tinha a sensação de ser sempre uma viajante”, por causa de tantos lugares por onde já havia
passado “sem adotar nenhum definitivo” (Gonçalves, 2006, 170). Já no final do romance a
narradora faz outra consideração importante no que diz respeito à sua vida em trânsito: “era lá,
em África, que eu deveria morrer. Mas aqui estou, indo morrer no Brasil, na sua terra” (Idem).

As viagens são uma constante na vida de muitas dessas pessoas e a condição de estranho, neste
caso, possibilitará uma consciência mais profunda das tramas culturais de cada lugar ocupado.
Ter olhos de recém-chegado significa poder ver aquilo a que os nativos já se habituaram ou
mesmo nem podem notar, significa pertencer ao local, porém não estar envolvido a ponto de
poder reconhecer as mazelas daquela sociedade. O estrangeiro diaspórico é, então, a consciência
da condição pendular, aquele que transita de um lugar ao outro sem necessariamente se fixar. Ele
é estranho aos lugares, mesmo inserido nas atmosferas afetivas ou culturais existentes. A
narradora percebe que tanto em África quanto no Brasil ela pode modificar os espaços e ser
modificada, na medida em que isso lhe convém, pois seu ponto de vista fronteiriço lhe permite
perceber as tramas de lá ou de cá; permite-lhe transitar pelos espaços culturais e entendê-los sob
aspectos que os nativos desconhecem.

É possível, ainda, afirmar que essa condição de estrangeiro se assemelha a de um intelectual. Isso
porque há nesses sujeitos um estranhamento em relação ao novo que promoverá as críticas e
considerações importantes sobre conceitos ou ações habituais que, normalmente, não são focados
pelos nativos. Nas palavras de Günther Augustin,

a influência do estrangeiro que ganha força com os movimentos migratórios, inclui


um potencial de inovação tanto na vida do dia-a-dia quanto na ordem econômica. O
estrangeiro torna-se um fermento na mudança econômica e cultural porque não está
sujeito às restrições tradicionais de uma determinada cultura. (Augustin, 2006, p.
203).

Essa perspectiva apontada por Augustin, apesar de relacionado aos movimentos de migração que
também são motivados pela busca, pode se aplicar aos diaspóricos. É a partir das próprias
reflexões que Kehinde evidencia uma vida construída no balanço do navio. É nas lacunas
identitárias ou espaciais, focando os sujeitos que estão na fronteira dos discursos e dos locais de
maior visibilidade na historiografia oficial, que ela pode afirmar quem é e de onde vem. A cada
movimento novo, a narradora nota situações em que sua integridade e potencialidade se
sobrepõem ao discurso do outro. Seja na fazenda, em Salvador, em São Paulo, Campinas ou
Uidá ela evidencia a postura contraditória dos padres, sinhás, e senhores – por exemplo,
caracterizados como adúlteros, lascivos e oportunistas – e, ao mesmo tempo, se colocando como
avesso, como um outro íntegro e capaz.

Uma das passagens mais significativas da obra, no que tange a essa circunstância, é a reflexão
feita pela narradora sobre a questão do defeito de cor – atestado assinado pelos negros do século
XIX os quais deveriam negar sua condição étnica a fim de ocupar cargos oficiais ou religiosos –.
Ela se espanta ao ouvir de um padre que “em uma época não muito distante da nossa, os
religiosos europeus se perguntavam se os selvagens da África ou os indígenas do Brasil podiam
ser considerados gente. Ou seja, eles tinham dúvida se nós éramos humanos [...]” (p. 893).
Kehinde demonstra a indignação que sente em relação ao defeito de cor, pois diz que se
[...] achava que só no Brasil que os pretos tinham que pedir dispensa do defeito de
cor para serem padres, mas vi que não, que em África também era assim. Aliás, em
África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era a nossa terra e éramos
em maior número. (p. 896).

A reflexão com tom de desabafo é crucial para que se entenda a tomada de consciência da
protagonista, que conclui suas considerações alegando que

[...] sentia muito mais gente, mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho
defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se
fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não
teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito. Eu me sinto muito mais
orgulhosa de ter nascido Kehinde do que se tivesse nascido padre Clement, um bom
homem, com certeza, mas que se submetia à necessidade de agradar aos brasileiros
ricos em Lagos e em Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas
cidades. No início, ele só se aproximou de mim porque ficou sabendo que eu tinha
influência e dinheiro [...] depois de algum tempo passou a gostar de mim. [...] Acho
que sou melhor do que ele [...] por tê-lo aceitado interesseiro e ter dado chance para
um outro tipo de sentimento, quase amizade. (ibidem).

Essa concepção retoma a primeira reflexão feita pela narradora acerca da lucidez com que se
apropriou da sua consciência diaspórica. Na passagem acima, há o clímax que se inicia quando
Kehinde passa a pensar diferente sobre seu corpo, lembra-se da mãe, das origens e se acha linda.
Agora, ela tem certeza de que não é só bela, mas também íntegra e sábia. Mesmo assim, não usa
tal percepção para subjugar o outro. O que ela mostra aqui é uma consciência atestada pela
experiência de vida como resposta às alegações que querem colocá-la como um “outro”
subjugado na sociedade, ignorando sua trajetória, memória e história. Ao narrar impressões
pessoais, a protagonista ascende a uma classe e evidencia uma contra-narrativa[118] que vai recriar
uma consciência alternativa para quem se encontra à margem dos valores hegemônicos. A
narrativa comprova a condição de intelectual do estrangeiro diaspórico, pois esta figura, híbrida
por excelência, como defende Paul Gilroy, obriga o sistema a repensar na hegemonia e a aceitar
o diferente. Ela intervém na soberania da nação e comprova a presença das identidades em
contraposição à unilateralidade.

Ricardo Piglia faz um estudo interessante sobre a conveniência de se viver na condição de


deslocado. Ao pensar nas cinco propostas de Ítalo Calvino para a Literatura do novo milênio
(leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade), o crítico acrescenta o deslocamento no
lugar da sexta. Ao discutir o deslocamento como base da literatura, alegando que este
fundamento faz mais sentido que a consistência proposta por Calvino, o autor subverte a lógica
da tradição que insiste em traduzir o diferente como bárbaro. Para o autor, é o deslocamento que
nos proporcionará vislumbrar a literatura do futuro, principalmente a produzida no eixo
periférico, a latino-americana, por exemplo. Dessa forma, o crítico inverte a lógica que distingue
o quem pertence ou não a determinadas comundades privilegiando os espaços fronteiriços, numa
tentativa de reconhecê-los como espaços privilegiados e trazer à cena a concepção de
deslocamento, seja temporal, espacial ou identitário, presente nas culturas não hegemônicas.

O desenvolvimento da concepção do que seria a condição pendular dos sujeitos diaspóricos e


quais as implicações e repercussões disso a partir do texto literário deve, então, partir dessas
considerações acerca de mobilidades, deslocamento e identidades culturais. Ao pesquisar sobre o
pêndulo, vê-se que é possível encontrá-lo em várias instâncias. Seu nome, originado do Latim,
pendulum indica o que está pendurado, de pendere. Desde Galileu ou Copérnico, o mastro em
movimento é um importante instrumento de medição, graças a ele, pode-se medir o tempo exato
que de sua oscilação, uma vez que ela ocorre exatamente na mesma proporção de um extremo a
outro, essa constatação foi fundamental para a construção do relógio, por exemplo, além de
outros instrumentos importantes para a astronomia, pois permitiam a medição dos movimentos
de rotação e distância entre os planetas e astros.

Ele está presente desde as teorias mais místicas, que o consideram um importante instrumento de
medição de energia, ou as simbólicas em que as badaladas do sino na igreja lembram a oscilação
da consciência humana entre o bem e o mal, entre a morte e a imortalidade; até as mais
científicas, como na Física, em que o pêndulo é um elemento imprescindível para o
desenvolvimento das teorias no campo da mecânica, da quântica e da robótica. No âmbito das
ciências humanas, o símbolo também surge atrelado aos fenômenos sociais e históricos que veem
na oscilação a repercussão dos fatos, como o caos causado pelas guerras, por exemplo. Na
Geografia, o movimento pendular explica a migração nos grandes centros urbanos em que a
população, diariamente, desloca-se de casa para o trabalho, causando um inchaço populacional
em regiões e em horários específicos.

De acordo com a Física, um pêndulo é um sistema composto por uma massa acoplada a um pivô
que permite sua movimentação livremente. A massa fica sujeita à força restauradora causada
pela gravidade. O pêndulo simples é um objeto preso a um fio flexível e inextensível por uma de
suas extremidades e livre por outra. Quando afastado da posição de repouso e depois solto,
realiza oscilações que tende sempre para o equilíbrio. Quanto maior o ângulo total de oscilação
do pêndulo, maior e mais vigoroso é o movimento de retorno do pêndulo à posição oposta,
sempre procurando, assim, o equilíbrio. Isso significa que, ao ser afastado da sua posição de
repouso, a mesma força imposta sobre este objeto de um lado o impulsionará para o outro
provocando a oscilação até que haja uma força zero e deixe de impulsioná-lo para que chegue a
seu ponto de equilíbrio e atinja a estaticidade.

É sabido que os sujeitos diaspóricos são imputados a entender as tradições locais e a criar as suas
próprias tradições e traduções da vida a partir da fronteira. Quanto a isso, Gilroy afirma que a
“multiplicidade da diáspora é uma formação caótica, viva e inorgânica. Se for considerada
tradição, é uma tradição em movimento incessante” (2001, p. 240), uma tradição que parte da
fronteira e não tem fim. Em função disso, pode-se colocar o espaço da fronteira como o ponto de
equilíbrio da condição pendular. Para a protagonista de Um defeito de cor, viver na fronteira
acaba por se tornar um privilégio, como Piglia já defendia. O indivíduo que ocupa esse lugar
pode, nitidamente, ver em todas as direções, porquanto a sua existência possibilita o contato com
o novo. Pode-se entender o conceito de fronteira ligado ao equilíbrio, pois o fato de a história de
Kehinde se construir no trânsito eleva a necessidade das trocas culturais e legitima a resultante
delas. Quem vive na fronteira está além das discussões de poder e de prestígio cultural, pois a
condição de entre-culturas permite um olhar mais crítico das diversidades como inerentes e não
como divergentes à comunidade. A noção de fronteira, a partir do olhar diaspórico, deixa de ter o
caráter de barreira cultural, de muro e assume a essência do encontro.

A fronteira é a grande metáfora vivida pelo sujeito diaspórico que articula esses lados para criar
o seu próprio local de identificação, embora esse movimento não seja tão confortável, pois a
fronteira é um local privilegiado para quem está nela, mas a constatação dela em uma sociedade
hegemônica é a evidência do choque entre um “nós” e um “eles”. Se se pensar na necessidade de
se estabelecer fronteiras para demarcar os espaços diante da ameaça do outro, já que ela “se
funda no reconhecimento por esse de um dado território” e quando o “reconhecimento é
recíproco, o pânico diante da autoridade pode ser mantido sob controle através de pacto de não
invasão” (Ávila, 2008, p. 76). Esse pacto pode ser lido como uma das forças que atua sobre o
sujeito fazendo-o retornar, pois ele pode até criar elementos que o vinculam àquele local, mas há
sempre uma força contrária que o leva ao caminho oposto.

O gráfico do movimento pendular representa bem essa força, pois, cada vez que o pêndulo está
mais longe do seu ponto de equilíbrio, maior é a força que atuará sobre ele para que ele volte.
Pensar nesse gráfico em relação ao romance em questão facilita o entendimento do desejo de
Kehinde regressar sempre que estava muito envolvida em algum lugar. Quanto maior seu desejo
de permanecer naquele lugar, maior era a resistência apresentada pelo pacto de invasão e maior
era a vontade de restabelecer o vínculo com o outro lado.
Com relação ao vínculo, a Física define que é ele que permite a oscilação do pêndulo. Há aqui
duas questões imbricadas que devem ser demarcadas. O vínculo estabelecerá o grau de liberdade
do objeto, mas o tempo de oscilação é definido pela relação da força exercida sobre a massa.
Então, a distância da oscilação dependerá do vínculo e a quantidade das oscilações dependerá da
massa e da força. Como foi definido, o vínculo corresponde às referências identitárias do sujeito,
como a memória, a relação com a ancestralidade, a família. O romance demarca esse vínculo em
várias passagens, logo no início, ainda na travessia do navio, a narradora comenta que a durante
a viagem, ela teve longos diálogos com a avó, que se preocupava em lhe passar todos os
ensinamentos sobre os cultos de sua religião e se encarregou de transmitir, por meio da
oralidade, a tradição de uma etnia a ser preservada e ensinar o cultivo da memória cultural,
mesmo sabendo dos poucos recursos para a preservação dela:

Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as
histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados [...] mesmo
que não fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da nossa
África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos
pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e
agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o
que podia ser dito. (p. 61).

A atitude da avó e da própria Kehinde que, durante sua estadia no Brasil, recusa-se a assimilar
muitos dos valores coloniais impostos representa esse vínculo que a remete ao outro lado do
movimento oscilatório e não permite que ela permaneça só em um lugar. Ao ser apresentada à
sinhazinha, Kehinde a acha linda, como uma boneca; poucos dias depois de conhecê-la, a
protagonista se olha no espelho pela primeira vez e se assusta com sua imagem, pois queria ver
refletido ali o padrão europeu representado pela sinhazinha. Note-se que há uma força que coloca
a personagem na fronteira da diferença e a imputa a reconhecer o padrão colonialista como fixo,
certo; entretanto, a personagem se lembra da beleza da mãe, da força dos orixás e muda sua
concepção de beleza a ponto de seduzir a sinhazinha que passa a querer trançar os cabelos, a ser
como Kehinde. Nesta cena, a condição pendular do diaspórico é clara. Há uma força sobre o
sujeito que o imputa a ficar naquele lugar, mas ao perceber um vínculo, outra contrária atua
sobre ele, permitindo-o sair dali.

Todo esse movmento acaba por resultar em uma memória articulada advinda do estrangeiro que
precisa criar estratégias de pertencimento para além de seu vínculo, esse movimento promove
uma maior relativização dos conceitos hegemônicos e uma convivência comunitária mais justa,
como Gilroy e Bhabha sugerem. As atitudes de Kehinde demonstram isso quando se percebe
como ela desliza pelos corredores culturais dos lugares onde habita. Isso é devido a uma
capacidade de articulação que a coloca em vantagem sobre os nativos, lendo suas histórias nota-
se que não há limites para suas ações, não há censura em relação a esse ou aquele espaço que
quer ocupar não apresenta um discurso maniqueísta, nem vitimado. A personagem não se
importava de mentir ao dizer que era escrava de uma rica inglesa para que confiassem nos seus
cookies, também não se contrapôs ao usar um nome de brasileira em África, como também fez
questão de usar o nome de africana no Brasil. Por conveniência também, preferiu colocar nomes
brasileiros nos filhos africanos. Aproximou-se de pessoas influentes nos dois lugares, passou
meses estudando sobre os voduns no interior do maranhão por respeito e amor à sua etnia, mas
também aprendeu a frequentar a missa e recebia padres em suas recepções, em Benin. Aqui, a
oscilação entre um ou outro comportamento se dá em decorrência dessa capacidade de
articulação própria do estrangeiro diaspórico. Contudo, em relação ao sistema escravocrata a
personagem sempre foi coerente e nunca aceitou ter homens ou mulheres escravizados em suas
empresas, somente funcionários, entretanto, era sócia e esposa de John no tráfico de armas e
frequentava, inclusive, a casa do Chachá Francisco Félix, o maior traficante de escravos do
século XIX. Em suma, Kehinde transita por espaços diversos quando é preciso e isso não a
intimida ou envergonha. Se necessário, faz suas críticas, não esconde sua opinião, mas não
escapa das amarras ideológicas da sociedade o que a torna uma personagem múltipla e diversa e
a imputa a deslizar pelas extremidades permanecendo no movimento oscilatório.

Essa multiplicidade peculiar à Kehinde dialoga bastante com a articulação rizomática presente
nos dispóricos, como Gilroy (2001) propõe, que se desdobra na condição pendular desses
sujeitos em questão. A ideia de rizoma a que este artigo se debruça dialoga com o conceito
proposto por Deleuze e Guattari (1995), mas, para seu desdobramento em uma condição inerente
ao sujeito pendular, o aporte de Glissant com a concepção de rastros/ resíduos faz-se necessário.
Sendo assim, é fundamental compreender como esse sujeito diaspórico lida com seus
rastros/reminiscências que foram, por sua vez, utilizados para a construção da memória
articulada que sobrevive a partir do esforço da tradução pelo que esses sujeitos precisaram
passar. O ensaísta francês do século XXI assinala que uma raiz única mata, concorre com o que
está sua volta, em oposição ao rizoma que seria uma raiz que oscila em busca de outras. Essa
busca parte do que ele denomina rastro/resíduo, que seria

uma inclinação completamente orgânica para uma outra maneira de ser e de


conhecer; é a forma que é a passagem do conhecimento; [...] ele devota-se a sua
verdade que é a de explodir, desagregar em tudo a sedutora norma. Os africanos,
vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo, para além da Imensidão
das Águas o rastro/resíduo de seus deuses, de seus costumes, suas linguagens.
Confrontados à implacável desordem do colono, eles conheceram essa genialidade
atada aos sofrimentos que suportaram, de fertilizar esses rastros/resíduos [...]. É
uma maneira opaca de aprender o galho e o vento, ser um si que deriva para o outro,
a areia na verdadeira desordem da utopia, aquilo que não foi sondado, o obscuro da
corrente no rio liberado. As paisagens [...] singulares de afluentes a rios,
estabelecendo correlação; correm, frágeis, e obstinam-se essas ramificações de
linguagens interpelando-se. Morros e profundidades resvalam em narrativa, trituram
o inexplicado do mundo (Glissant, 2005, p. 83-85).

Esse movimento que aciona os rastros/resíduos desarticula e desnuda um sistema hegemônico o


qual não abriga aquele que foge de uma concepção do “nós”[119], isso porque é múltiplo,
descontínuo e não se fixa nem se aprofunda, espalha, desliza. Nesse ínterim, é possível constatar
que a trama de Um defeito de cor pode demonstrar a capacidade do sujeito diaspórico de
ressignificar os espaços e desconstruir valores coloniais aparentemente rígidos e excludentes,
isso se torna ainda mais valioso quando se percebe que tal moimento ocorre tanto no Brasil,
quanto em África. A memória articulada de Kehinde, que oscila entre os ensinamentos da avó
durante a viagem pelo Atlântico enquanto está no Brasil e os costumes brasileiros praticados
quando da sua estadia na costa africana, é, então, uma forma de concebermos as culturas como
movimentos de diversidade libertadores.

Kehinde precisava viajar para renovar suas forças porque, a cada viagem, uma nova
oportunidade surgia, não apenas do reencontro com o filho vendido pelo pai, mas também
consigo mesma. O fato de retornar para a terra natal não tira do estrangeiro a inconstância;
mesmo voltando, a sensação de não pertencimento o acompanha. No romance, isso é
evidenciado quando a narradora volta à África e, mesmo assim, se sente uma estrangeira. E o
que, por um momento, a retira dessa condição é a memória, pois, por meio desta, resgata
elementos de identificação proporcionando um bem-estar, uma ideia de encontro que é quebrada
assim que ela vai substituindo as doces lembranças da infância por uma realidade amarga do
presente:

[...] por um momento, aqueles dias de infância voltaram todos à minha memória. Eu era capaz de
descrever cada rua por onde tínhamos andado e muitas pessoas com as quais tínhamos
conversado, e isso fez com que eu me sentisse um pouco melhor, sabendo que não estava em
terra tão estranha assim (p. 742)
Essa consideração ilustra a condição pendular do diaspórico. A força que atua sobre ela no Brasil
é potencializada pela perda do filho, o que a remete ao vínculo e a faz regressar para sua pátria
de origem. Kehinde retorna para o lugar de onde veio, e, mesmo assim, se sentia uma
estrangeira. A força, agora contrária, continua atuando sobre seu corpo. Foi assim também
quando chegou ao Brasil, mais de trinta anos antes. A cidade de Uidá parecia bem diferente
daquela que foi deixada para trás e que carregava na memória. Estava cheia de brasileiros e os
costumes e culturas se embaralhavam aos olhos dela. A personagem, quando decidiu voltar, não
pensou que pudesse encontrar tantas diferenças, nem que ela não era mais uma africana, mas
também não era brasileira. Esse retorno frustrado está nas reflexões de Silvania Núbia Chagas ao
dizer que

Ao retornarem, a alegria é meio agridoce: se há felicidade por se estar voltando, há


tristeza pelo que se perdeu, ou seja, há todo um histórico [...] da dificuldade sentida
por muitos dos que retornam em se religar a suas sociedades de origem. [...] Muitos
sentem que a “terra” tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são vistos como se
os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem sido interrompidos por
suas experiências diaspóricas. A assimilação aos costumes brasileiros e, também, a
reconstrução de uma cultura que entrou no país apenas na lembrança desses povos,
bem como todo o processo de readaptação em meio à diversidade, uma vez que
várias etnias foram obrigadas a comungar dos mesmos usos, tendo em vista a
separação desde a entrada no navio negreiro; tudo isso, por imposição ou como
meio de sobrevivência, propiciou a relevância da cultura ocidental: Todos os
retornados se achavam melhores e mais inteligentes que os africanos. (Chagas,
2018).

O trecho é elucidativo no que se refere às condições dos retornados. Dessa forma, é possível
perceber que outro esforço de tradução é necessário para que a vida se adapte novamente naquela
“saudosa” nova terra e um novo vínculo é restabelecido. Uma oposição, então, é evidenciada
nesse movimento pendular: aqui x lá passa a ser uma constante na vida desses sujeitos. Essa
situação é inerente à condição pendular de modo que sua vida passa a ser um constante esforço
de tradução ou uma necessidade contínua de se acessar os rastros/resíduos como aquilo que
vincula o objeto pendular a algo fixo, desenhando uma comunidade rizomática por onde passa.

O estranhamento vivido ao chegar em Uidá desperta na bem sucedida Kehinde uma necessidade
de criar naquele espaço tudo o que pudesse remetê-la ao Brasil. A construção da sua própria casa
ilustra o que se afirma:
A casa toda tinha amplas janelas e o teto de gesso trabalhado era bem alto, a quase
treze pés do chão de tábuas largas compradas no Brasil. Alguns móveis também
tinham sido comprados no Brasil, mas outros foram feitos pelo Abimbola e pelo
Aliara, como as mesinhas para decoração e a grande mesa de refeição com pés
esculpidos. Eu também tinha toalhas de linho, tapetes da China e da Índia, duas
poltronas inglesas, cadeiras estofadas, amas com baldaquino e muitas outras coisas
[...] No andar de cima, onde ficavam os quartos, chamavam muita atenção as
varandas com grades de ferro, muito bem trabalhadas com a supervisão do
Abimbola. (p. 860).

As culturas perpassam por sua construção, bem como por sua personalidade sem se confundirem,
mas também criando uma nova concepção de arquitetura e de cultura. Os autores de Mil Platôs
conceituam a teoria do rizoma como o que se conecta de um ponto

qualquer a outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete a mesma natureza, ele não
é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não

tem começo nem fim, mas sempre um meio com o qual transborda [...] O rizoma procede por
variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia.
(Deleuze e Guattari, 1995, p. 32). Não se pode confundir a ação rizomática com a aculturação.
Há um encontro de múltiplas raízes que formarão outra multiplicidade de raízes num movimento
oscilatório. É esse o caminho do estrangeiro que carrega e larga bagagens, conhecimentos e
culturas. A sensação do estrangeiro diaspórico de estar à deriva, a que Kehinde se refere, tão
logo começa a narrar suas perdas, é o que lhe dará coragem para efetivar esse exercício pendular.
Outros trechos evidenciam essa personalidade, como no dia em que a personagem sai às ruas
triste por ter se separado de Alberto, pensando no tanto que perdeu com essa relação e, ao
comprar um acará, lembra-se de como admirava as vendedoras quando chegou ao Brasil:

Achei que já tinha conseguido ser mais do que elas, mas não me bastava. Deixei
que a minha raiva se transformasse em uma grande vontade de seguir adiante,
apesar de tudo, de dar o futuro que eu tanto queria para você e o Banjokô. Às vezes,
parece-me que nada é suficiente na vida, nem as coisas boas, nem as coisas as
coisas más, pelo menos não a ponto de me deter (p. 453).

Nesse trecho, o que chama a atenção é perceber a consciência da protagonista ao perceber que
não é o fato de não estar feliz que a imputa a seguir em frente, mas sim o ato de seguir de um
ponto qualquer e ter a capacidade de transbordar. É a memória articulada pelos rastros/ resíduos
que é acionada para dar início ao próximo movimento de superação. Nada basta a Kehinde, não é
possível detê-la, pois sua percepção da vida é rizomática e ela caminha de um ponto a outro a
outro a outro.

A memória é ativada pela falta ou pela força que irá ajudá-la a seguir em frente, desde o primeiro
momento em que faz essa reflexão, já mencionado neste artigo, ainda aos oito anos. O primeiro
encontro da narradora com a sinhazinha cria na protagonista um ideal de belo do que fora
construído até então. Ela se deslumbra diante de Maria Clara e como não vê reciprocidade nessa
atitude entende que não era bonita como a menina. Mais adiante na narrativa, Kehinde se vê no
espelho, o que desencadeia outras impressões:

A Esméria parou na frente dele [o espelho] e me chamou, disse para eu fechar os


olhos e imaginar como eu era, com o que me parecia [...] Eu sabia que tinha a pele
escura e o cabelo duro e escuro, mas me imaginava parecida com a sinhazinha. [...]
Era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a
sinhá sempre dizia que todos os pretos eram e evitei chegar perto da sinhazinha. (p.
84).

Nesse segundo momento, a ambivalência fica mais clara, pois a narradora esperava uma imagem
como a da sinhazinha, que era sua companhia diária, então nada mais natural ser parecida com
ela. A falta de identificação promove uma falha no reconhecimento da alteridade; o padrão ideal,
ou o referencial do ocidente permeia o imaginário de Kehinde provocando a rejeição de si
mesma. Ela afirma que evitava o espelho até “o dia em que comecei a me achar bonita também,
pensando de um modo diferente e percebendo o quanto parecia com a minha mãe. O espelho
passou a ser diversão e eu ficava longo tempo na frente dele, fazendo caretas e vendo a minha
imagem repeti-las” (p. 86). Finalmente, nesse terceiro momento da narrativa, há a evidência do
processo de reconhecimento identitário capaz de redirecionar as atitudes da personagem para
uma nova perspectiva. A acessar seus rastros/resíduos, ela inverte o foco dos valores ocidentais –
representados pelo deslumbramento diante da sinhazinha – para os valores africanos –
representados pela lembrança da mãe –, uma nova concepção de beleza surge, permitindo que a
protagonista possa se valorizar e, ao mesmo tempo, saber que é vista como “feia”, inferior
perante os outros. Por isso, promete que jamais deixará de se admirar e fará o que for preciso
para ser reconhecida e valorizada como a mulher bela e inteligente que iria se tornar. Quando
entra no quarto da sinhazinha pela primeira vez, fica deslumbrada diante dos brinquedos e, ao se
ver no espelho novamente, afirma: “eu me achei a menina mais linda do mundo, e prometi que
um dia ainda seria forra e teria, além das roupas iguais às das pretas do mercado muitas outras
iguais às da sinhazinha” (p. 87). Viver o duplo, para Kehide, é uma forma de ser articulada.
Interessante notar que a personagem não hesita em afirmar que quer viver como os brancos,
porque ela quer ter a pele branca, mas quer a vida mais confortável, como a dos senhores. A
narradora nunca abandonou esse lema e, a cada episódio, o leitor a vê mais forte e capaz de
superar os obstáculos, passando a ser admirada por muitos africanos e brasileiros, inclusive pela
própria sinhazinha que se torna grande amiga e confidente de Kehinde até a morte. Faz-se
necessário ressaltar a importância da autoria na escolha de uma mulher protagonista que constrói
seu empoderamento ao longo da trama.

Toda essa articulação proveniente dessa condição pendular da protagonista coloca o leitor
também diante das reflexões de Eurídice Figueiredo a respeito da resiliência. A professora e
pesquisadora utiliza o conceito a partir das reflexões utilizadas por psicólogos desde os anos de
1970 para definir o “processo pelo qual certas pessoas exibem uma grande adaptabilidade
mesmo nas condições mais adversas ou após sofrer um trauma” (Figueiredo, 2010, p. 174-175).
Isso significa que pessoas resilientes geralmente apresentam uma personalidade inteligente,
inventiva e criativa, o que imputa estas pessoas a utilizarem situações completamente adversas
como trampolim para uma vida melhor. A pesquisadora afirma que, no contexto da escravidão, o
conceito de resiliência aparece em oposição ao de banzo, uma espécie de melancolia profunda
por conta da saudade, aculturação ou desejo de retorno à pátria-mãe. Nessa perspectiva, a astúcia
de Kehinde torna-se um exemplo claro de resiliência.

Sua atitude resiliente dialoga com o aspecto rizomático de seu percurso pelo Atlântico Negro. O
caráter múltiplo da protagonista é um recurso para que ela busque novas formas de se constituir
no meio em que vive. O rizoma deve ser compreendido como mapa e não decalque, pois deve ser
construído, “conectável”, que oscila entre as múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.
O mapa não reproduz estruturas, ele as edifica, assim, este pode interconectar as diversas partes
que se tem acesso diferente daquele que apenas as sobrepõem. (Deleuze e Guattari, 1995, p. 33).
Já na velhice, Kehinde se lembra dos lugares por onde passou: Savalu, Uidá, Ilha dos Frades, São
Salvador, Itaparica, São Luís, Cachoeira, São Sebastião, Santos, São Paulo, Campinas, Uidá,
Lagos e já estava a regressar para o Brasil em uma nova viagem (p. 917). Na maioria das
cidades, a narradora se deteve e pode aprender e ensinar - o que deixa a narrativa, às vezes, até
com um tom pedagógico - como em São Sebastião, por exemplo, primeiro lugar onde para
depois que o filho desaparece. Sua narrativa aponta as muitas diferenças com a Bahia:

os pretos de São Sebastião eram diferentes dos de São Salvador, por causa da
procedência. Para São Salvador iam principalmente os da região de onde eu tinha
saído, os fons, os eves, os iorubas e mais outros que, por lá, eram todos chamados
de mina, porque embarcavam na Costa da Mina. Para São Sebastião iam os angolas,
os moçambiques, os monjolos, os benguelas e mais alguns (p. 648).
E ainda descreve cada uma das etnias, com os detalhes dos traços físicos e variação de

tom da pele, crenças e costumes, como a capoeira, que a fascinava. Ao levar essas lembranças
para África e compartilhá-las, seja contando histórias, seja com um objeto decorativo de sua casa
que a remeta à cidade ou a algum outro lugar, ela está se dissolvendo no mapa e não fixa no
decalque. O mapa está voltado para uma experimentação real, longe das reproduções ilusórias,
construídas artificialmente. Ele pode ser rasgado, picado reelaborado transformado em uma
manifestação, em um quadro de arte, em uma lembrança ou em uma casa. Assim, a ação da
personagem não é decalque porque ela é construída na medida em que ela revive e transforma
suas experiências antigas em novas. A cada relembrança uma nova forma lhe é atribuída, uma
nova ideia aparece sobre o que já passou. É o mesmo exercício que Benjamin propõe sobre o
passado, que deve ser móvel e visto sempre do presente, do meio. Assim, temos a narrativa
decalque, de reprodução e a narrativa mapa, de edificação.

A condição pendular é um conceito essencialmente das margens, pois o pêndulo vislumbra os


lados sem o conflito de precisar escolher um, uma vez que seu ponto de equilíbrio é o entre-
lugar. Reconhecer a importância do sujeito pendularizado, como Piglia reconhece a necessidade
do deslocamento, é fundamental para se pensar as identidades na pós-modernidade, pois o
próprio conceito já nos leva a deslocarmos uma tendência homegeinizante de escolha, um
pensamento cartesiano que define o que é e o que não é lícito, original ou qualificado. Pensando
nisso, a proposta de se pensar na dimensão da condição pendular como uma estética do
deslocamento nas literaturas que trabalham com os sujeitos diaspóricos na contemporaneidade
literatura faz-se fundamental para a composição das discussões sobre lugares, deslocamentos e
viagens no campo da alteridade.
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Liminariedade e gramática da diáspora amefricana em Um defeito de
cor
[120]
Danielle de Luna e Silva

As nações como homens devem muito prezar a sua reputação”; mas, a


respeito do tráfico, a verdade é que não salvamos um fio sequer da
nossa. O crime nacional não podia ter sido mais escandaloso, e a
reparação não começou ainda. No processo do Brasil um milhão de
testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do
fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas, e
esse depoimento mudo há de ser mil vezes mais valioso para a história do
que todos os protestos de generosidade e nobreza calma da nação
inteira.

(Nabuco, 2000, p. 77, grifo meu).

A citação de Joaquim Nabuco, transcrita na epígrafe acima, extraída de um capítulo sobre a


ilegalidade da escravidão de seu livro O Abolicionismo (1883), parece ecoar nas páginas de Um
defeito de cor (2009), de Ana Maria Gonçalves. As vozes destas milhões de testemunhas fazem-
se ouvir e apresentam diferentes relatos e perspectivas da Passagem do Meio, dando visibilidade
àqueles que sobreviveram a este trajeto, bem como aos que pereceram. Estes testemunhos
lançam luz sobre as relações entre vivos e mortos, entre passado e presente sob o olhar de uma
cosmologia de matriz africana, que hoje se apresenta de forma intercontinental.

Estas fraturas e separações que, por mais de dois séculos, moldaram a experiência negra em
África e no “Novo Mundo”, todavia, continuam ocorrendo no tempo presente. O camburão e o
necrotério fazem o papel de navios negreiros, rasgando e fissurando as famílias da afro-diáspora.
Destarte, mulheres e homens negros são forçados a permanecerem engajados em uma luta diária
para garantir a sobrevivência de seus filhos e, apesar de todo este cuidado e esforço, o corpo
negro continua vulnerável a diversos tipos de violência.

O espectro da morte e da desconexão das relações afetivas e familiares norteia o conceito de


Gramática da Diáspora Amefricana, o qual será utilizado em nossa análise das figuras liminares
neste romance. Defendo, aqui, que a reiteração de histórias de separação no texto de Ana Maria
Gonçalves não encontra justificativa apenas na necessidade de se revisitar o passado escravista
brasileiro, mas também na de apontar o processo de apropriação e descaso com o corpo negro no
presente, que continua a deixar marcas, fissuras e cicatrizes sociais e individuais, exigindo que as
famílias e a comunidade negra criem estratégias de resistência, conexão e sobrevivência.
Gramática da Diáspora Amefricana, Entre Passado e Presente

A ruptura em massa da estrutura familiar em África, a interrupção de milhões de vidas, assim


como a terrível Passagem do Meio e a experiência de escravidão no Novo Mundo são
considerados por Hortense Spillers (2000) como os elementos centrais do que cunhou como
Gramática Americana. Em seu artigo “Mama's Baby, Papa's Maybe”, a pesquisadora detém-se
sobre as reverberações dessa gramática para a configuração familiar negra estadunidense, bem
como sobre o efeito duradouro das muitas representações a respeito de mulheres negras que
advêm do período da escravidão e encontram-se ainda pulsantes e presentes na
contemporaneidade. Todavia, no trabalho em tela, acrescento à descrição de Spillers (2000) dois
aspectos da Gramática Americana: nos Estados Unidos, o movimento da Grande Migração, que
levou milhares de negros estadunidenses do Sul para o Norte dos Estados Unidos; no caso do
Brasil, a exploração das amas-de-leite (que eram muitas vezes separadas de seus filhos para que
seu leite fosse destinado, exclusivamente, à prole de seus senhores), o tráfico interno de
escravizados, a lei do Ventre Livre, entre outros aspectos que contribuíram para essa gramática
da separação e fratura Amefricana. Ou seja, defendo que o movimento de ruptura no Brasil e nos
Estados Unidos não foi concluído com a chegada ao “Novo Mundo”, mas estendeu-se, de forma
contínua, ao longo desses últimos séculos, afetando as formas de organização das comunidades
negras.

Outrossim, dois outros dados precisam ser considerados: o número desproporcional de negros
que ocupam o sistema prisional dos dois países, além do número de assassinatos de negros, ou
seja, pela prisão e assassinato, vidas continuam sendo interrompidas, com o aval das políticas de
segurança pública brasileiras e estadunidenses. No Brasil, em documento divulgado em junho de
2015, pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, percebe-se que os
jovens negros são aqueles que têm mais chances de serem assassinados. A desigualdade social,
assim como a exclusão e discriminação raciais os expõem a uma situação de grande
vulnerabilidade social. Esta afirmação pode ser corroborada pelos dados que reproduzo abaixo,
relativos ao ano de 2012, que constam do “Mapa do Encarceramento – Os jovens do Brasil”.

Sabe-se que os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29


anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino,
moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Dados do
Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM)/Datasus, do Ministério da Saúde,
mostram que mais da metade dos 56.337 mortos por homicídios em 2012 no Brasil
eram jovens (27.471, equivalente a 52,63%), dos quais 77% negros (pretos e
pardos) e 93,30% do sexo masculino (BRASIL, 2015, p. 9)[121].

Similarmente, o mesmo documento destaca que, em 2012, cerca de sessenta por cento da
população prisional do país era negra, predominantemente jovem e do sexo masculino. Dados
semelhantes podem ser encontrados em relação aos Estados Unidos. De acordo com a
pesquisadora Ashley Nellis, em artigo publicado em 2016[122] pela organização não
governamental estadunidense The Sentencing Project, nas prisões estaduais norte-americanas, o
número de negros presos é, em média, cinco vezes maior do que o número de brancos. Além
disso, em doze estados, mais da metade da população carcerária é afro-americana. Ainda, de
acordo com dados do governo estadunidense[123], cerca de metade das vítimas de homicídio
daquele país em 2005 eram afrodescendentes. Estes números ganham um peso ainda maior se
considerarmos que o censo de 2015 aponta que 13,3 por cento da população norte-americana é
negra[124].

O corpo negro continua a ser tratado como um corpo cativo, a ser controlado, explorado e
aprisionado. A gramática Americana, como defende Spillers (2000), foi construída a partir do
furto e apropriação do corpo negro, objetificado, desejado e transformado em “outro”. Para a
pesquisadora estadunidense, este processo ocorreu com mulheres e homens negros que, ao serem
embarcados em navios negreiros, deixaram de ser considerados sujeitos, não diferenciados por
gênero[125] e tidos apenas como números ou peças.

Percebe-se, pelo trecho acima, que não somente a integridade e sobrevivência dos corpos negros,
mas também da própria unidade familiar afrodescendente estiveram e estão ainda sob forte
ameaça do racismo e da discriminação. Vale a pena destacar que o ataque à família negra
estadunidense, por exemplo, ganhou fôlego com a divulgação, nos anos 60, do relatório
Moyhinan. Este documento responsabilizava as mulheres negras, com sua “força excessiva”,
pela ausência de pais nas famílias negras. É importante deixar claro que quando me refiro à
família, acredito que devem ser considerados todos os arranjos possíveis e que não é minha
intenção aqui fazer uma defesa do modelo heteronormativo de configuração familiar. O relatório
a que Spillers (2000), Christian (1985), entre outros pesquisadores fazem referência, contudo,
leva em consideração um modelo fixo, patriarcal e heteronormativo.

A estrutura matriarcal[126] destas famílias foi apresentada como algo nocivo a ser combatido e
como uma patologia da sociedade afro-americana, cuja presença feminina forte acabava por
emascular os homens negros. Ao discutir as consequências desta representação da mulher negra
estadunidense, Spillers (2000) chama atenção para duas questões importantes. A primeira é que o
princípio escravagista vigente de partus sequitur ventrem, ou seja, de que o filho seguiria a
condição da mãe, inaugurou a marca da mãe como sendo algo maligno, que tornaria os negros
inferiores, uma vez que sua condição era determinada pela parte materna, e não paterna. A Lei da
mãe, portanto, de acordo com a pesquisadora, removeria a figura paterna negra que passava a ser
desconsiderada para fins legais ou familiares. O que Spillers (2000) ressalta também é que, mais
do que a ausência real da figura paterna, uma das grandes ambiguidades dos arranjos familiares
da escravidão foi aquela relacionada à figura paterna que é substituída pelo senhor dono dos
escravos (nos casos em que o pai biológico era essa figura isso torna-se ainda mais evidente),
uma vez que cabia ao senhor o poder e controle sobre todos os escravizados de suas posses.
Apenas a mãe estava presente e era conhecida.

Proponho, aqui, ampliar o conceito da pesquisadora estadunidense Hortense Spillers (2000),


levando em consideração a ideia de Amefricanidade defendida por Lélia Gonzalez (1988), bem
como o caráter diaspórico da experiência africana nos últimos quatro séculos. Sugiro que o termo
Gramática da Diáspora Amefricana seria o mais adequado para discutir as contiguidades e
diferenciações entre as experiências de separação, adaptação, resistência e sobrevivência dos
descendentes de africanos nos Estados Unidos e no Brasil.

É preciso destacar que, ao apresentar o termo diáspora, não me refiro a um conceito que implica
unidade, coerência e integridade. Conforme salienta Stuart Hall (2003b, p. 29), “[p]ossuir uma
identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e
atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta”. A diáspora, pelo
contrário, configura-se locus de criação, ressignificação e mudança. A identidade diaspórica é
construída a partir da heterogeneidade e diversidade (Hall, 2003a), “levada à contingência, a
indeterminação e ao conflito” (Gilroy, 2001).

A categoria Amefricanidade, proposta por Lélia Gonzalez (1988), refere-se às Américas Central,
Norte e Insular, o que ampliaria o uso do termo América empregado por Spillers (2000),
frequentemente utilizado em língua inglesa como sinônimo de Estados Unidos. Em seu artigo “A
categoria político-cultural de amefricanidade”, Gonzalez (1988) aponta a necessidade de revisão
da expressão afro-americano, comumente usada por negros estadunidenses para se auto
definirem, por acreditar que o termo igualaria, de forma equivocada, os Estados Unidos à
América, ignorando a existência dos outros países do continente americano e causando, também,
a impressão de que a presença negra nas Américas estaria restrita àquele país. Ela também
ressalta que a experiência cultural dos afrodescendentes é distinta daqueles que permaneceram
em África e que o termo afro-americano apresentar-se-ia como uma negação das particularidades
da experiência afrodescendente no Novo Mundo. Surge, então, a proposta da categoria
“amefricanos”, para denominar os descendentes de africanos nas Américas[127].

As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de


fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de
caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento
mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul,
Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de
Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação,
resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em
modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, bato
e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma
identidade étnica (Gonzalez, 1988, p. 76, grifo da autora).

Um exemplo de como a Gramática da Diáspora Amefricana operaria no romance de Gonçalves


pode ser observado a partir da reiteração da ausência da figura paterna. Kehinde, protagonista de
Um defeito de cor, por exemplo, não conheceu nem o pai, nem o avô. Seu primeiro filho, foi
fruto de um estupro; o segundo, de um relacionamento com Alberto, um jovem português, que
acaba vendendo o menino para saldar dívidas. Por outro lado, quando do retorno da protagonista
à África, o seu relacionamento com John, mulato de Freetown, gera um casal de gêmeos que
parecem desenvolver laços mais estreitos com a figura paterna do que com a materna.

Ainda em sua juventude, no Brasil, em conversa com Baba Ogumfiditimi sobre as revelações a
respeito da vida afetiva futura, Kehinde fica sabendo que, provavelmente, não teria relações
amorosas duradouras. A esse respeito, ela afirma que “[n]ão foi uma revelação que me
surpreendeu, porque nem a minha avó nem a minha mãe tinham conseguido um homem só para
elas. Em relação à minha avó, eu nunca a ouvi falar qualquer coisa sobre o pai de minha mãe; era
como se ele não tivesse existido” (Gonçalves, 2009, p. 271).

A passagem acima retrata que, mesmo antes do que denomino como Gramática da Diáspora
Amefricana, a mulher e a mãe africana não se enquadravam no modelo patriarcal, segundo o qual
a sobrevivência da família seria de responsabilidade exclusivamente masculina. Sem adentrar na
discussão sobre a condição feminina na África colonial, uma vez que outras estudiosas têm se
debruçado sobre a questão, o que parece repetir-se em algumas destas pesquisas é o fato da
mulher africana, de maneira geral, desempenhar outros papéis na estrutura familiar, como o
comércio e agricultura, o que lhe teriam dado um grau de autonomia impensado para as mulheres
europeias no mesmo período (Christian, 1985; Mohanty, 2006).

Essa autonomia certamente foi importante para que pudessem enfrentar os muitos desafios
trazidos pelo furto e apropriação de seus corpos durante a escravidão. Tudo isso leva, nas seções
a seguir, à discussão de alguns aspectos da cosmologia de matriz africana que possibilitaram a
essas mulheres e suas famílias reconectarem-se tanto entre si quanto a uma origem Africana, que
não foi abandonada, mas ressignificada em solo Americano.
“Crianças nascidas para morrer” em Um defeito de cor

Ana Maria Gonçalves incorpora em sua escrita uma presença africana, característica
compartilhada entre várias escritoras negras da diáspora. A esse respeito, a pesquisadora Vanessa
Valdés afirma que muitas autoras afrodescendentes nas Américas têm se debruçado sobre as
“práticas religiosas da diáspora africana” como uma estratégia de contestação de práticas
normativas a respeito da feminilidade. Assim, defende que

[o] envolvimento com essas religiões diaspóricas, dessa forma, disponibilizaria


modelos alternativos de feminilidade que diferem de forma substancial daqueles
encontrados na cultura patriarcal que prevalece no Ocidente, a saber, o da virgem,
da esposa/mãe assexuada e o da prostituta. Dentro da religião tradicional Iorubá e
de suas variantes encontradas no Ocidente decorrentes do sincretismo, encontramos
a imagem de uma mulher sexual, que aprecia o seu corpo sem qualquer vergonha;
da mãe que nutre e zela pelos filhos sem sacrificar-se; da guerreira que resiste
ativamente às cobranças para adequar-se a estereótipos unidimensionais acerca da
feminilidade (Valdés, 2014, p. 2, minha tradução)[128].

Embora Valdés (2014) não tenha analisado em sua pesquisa o romance de Gonçalves, pode-se
aplicar suas conclusões para compreender algumas das estratégias empregadas pela escritora do
romance em tela. Entendo, como propõe Valdés (2014), que, ao recorrer a práticas religiosas
africanas, Um defeito de cor contesta discursos normativos sobre a feminilidade que seguiam, em
certa medida, mesmo no território colonial, os padrões ocidentais europeus. No entanto, parece-
me que, ao dar visibilidade a um modo de sentir e ver o mundo fortemente enraizado em práticas
religiosas de matriz africana, que foram adaptadas e modificadas a partir da experiência da
Passagem do Meio, da escravidão e da diáspora africana, a romancista também põe em causa não
apenas questões identitárias, mas também a própria história da escravidão, assim como as
relações entre passado e presente; entre vivos e mortos e, principalmente, entre mães e filhos.

A presença de uma metafísica de matriz africana neste romance torna-se perceptível a partir da
reiteração de alguns elementos de práticas religiosas de matriz africana. Primeiramente, percebe-
se uma profusão de sacerdotisas e /ou curandeira(o)s ou guias espirituais que permeia o texto
literário em questão[129]. Ademais, os Orixás desempenham papel fundamental na narrativa,
acompanhando a protagonista ao longo de toda a sua jornada[130].
Por fim, uma outra característica que a narrativa de Gonçalves compartilha com outras escritoras
da diáspora africana[131] é a proposição de conexões fluidas entre os vivos e os mortos; entre
passado e presente que são representadas, de forma recorrente, em seu romance. Há inúmeros
exemplos de conexão entre vivos e mortos, como podem ser observados a partir do forte vínculo
entre Kehinde, sua avó e Taiwo, sua irmã gêmea, conexão que se mantém, mesmo após a morte
das últimas, a partir de uma série de sonhos e visões da protagonista.

Além disso, no final do romance, prestes a chegar ao Brasil, Kehinde já ao fim de sua vida,
reflete sobre os vários desencontros que a impediram de reencontrar seu filho, Luiz Gama.

Você deu alguma importância quando contei que o Maboke, aquele tata kisaba que
alugava um cômodo na casa de dona Balbina, disse que os espíritos dos mortos
perseguem seus assassinos, atrapalhando a vida deles por todo o sempre ou até que
seja feito um trabalho de limpeza? Se você disser que sim, reconheço que minha
culpa é maior do que imaginava, pois não me importei. Não pensei que aquele
homem que tinha tentado me assaltar na estrada para o sítio onde morávamos em
São Salvador estivesse incluído nesse tipo de espírito. Isto é, nunca me vi como
uma assassina, apenas como uma pessoa se defendendo de outra. […] Por algum
motivo qualquer, o Maboke tinha visto a bolsa entre os guardados de Piripiri e teve
uma visão comigo, quando ficou sabendo de tudo que tinha acontecido e do quanto
aquele espírito já tinha me prejudicado. Ainda continua prejudicando, mas sei que
logo vamos acertar nossas contas. Vou procurar por ele no Orum, pois acho que a
minha culpa por ter tirado a vida dele já foi expiada há muito tempo. E ele ainda
prejudicou você, te afastando de mim, dificultando a sua vida por causa das
decisões erradas que eu tomava, às vezes até sem saber por quê. Será que isso
explica nossos desencontros? (Gonçalves, 2009, p. 947, meus grifos).

Ainda no início da narrativa, a narradora antecipa, através do recurso da prolepse, o evento


mencionado acima, isto é, a noite na qual a personagem Kehinde mata, em legítima defesa, um
homem que tentou roubá-la.

[…] porque cada um é o causador do que lhe acontece de bom e de ruim, e que
deveria aprender a separá-los para poder possuir tudo e conquistar o universo
inteiro. Até hoje, em muitas das decisões que tomei, essa história foi um guia, algo
que sempre me fez lembrar que eu deveria assumir as consequências de todos os
atos cometidos pelo meu lado bom ou pelo lado mau. Aliás, me saber assim, como
todo mundo, foi muito importante para me perdoar depois do que aconteceu certa
noite, sobre a qual ainda preciso ver como vou conseguir contar (Gonçalves, 2009,
p. 270, meus grifos).

Essa relação entre fatos passados e o tempo presente torna notório um outro tratamento de tempo
que guarda similaridades com o que discute Mbiti (1990). A interpenetração de passado e
presente, com suas fronteiras fluidas ou quase inexistentes, também se manifesta em outros
textos literários afro-brasileiros. Percebe-se, no fragmento a seguir, retirado do romance Ponçiá
Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, a conexão entre passado, presente e futuro. “A vida era
um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era uma mistura de todos
e tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (2003, p. 127).

Passo agora a uma discussão acerca do abiku/ogbanje, ou criança nascida para a morte, figura
fundamental para nossa análise da presença da Gramática da Diáspora Amefricana e
liminaridade em Um defeito de cor. Abiku, termo Iorubá, e a expressão ogbanje, que seria o seu
correspondente Igbo, são muitas vezes usados como sinônimos para designar

as experiências associadas a uma categoria especial de crianças. Essas crianças


seriam parte humanas e parte seres espirituais. Acredita-se que elas enfrentem uma
série de nascimentos, mortes e renascimentos de forma repetida, através da mesma
mãe. Um aspecto da existência material, da metafísica e da consciência mítica Igbo
e Iorubá, o ogbanje e o abiku costumam engajar-se a um esquema que envolveria
retornos de forma transitória e transitiva, cujas motivações incluiram razões
sinistras, incluindo a tortura a mães que [por desconhecerem tratar-se de abikus e/ou
ogbanjes] acreditam terem concebidos crianças “normais”, que vieram ao mundo
humano com intenção de aqui permanecer (Okonkwo, 2008, p. xiv, minha tradução)
[132]
.

Contudo, Okonkwo (2008) faz uma distinção entre as duas expressões. Enquanto o vocábulo
Igbo, ogbanje, parece estar voltado para a repetição da jornada de morte e de renascimento, com
sucessivas e constantes chegadas e partidas do plano terreno para o espiritual; a expressão
Iorubá, abiku, enfatizaria a mortalidade e o caráter transitório da convivência entre pais e filhos,
crianças que poderiam, a qualquer momento, voltar para o plano espiritual.

Para melhor compreender o mundo dos ogbanje, faz-se necessário apresentar duas questões da
maior importância para as religiões e filosofias africanas: o conceito do tempo e de mortos-vivos.
Em African Religions and Philosophy, de John Mbiti (1990, p. 2, tradução nossa), o autor
evidencia que “uma vez que as religiões tradicionais permeiam todos os aspectos da vida, não há
distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o religioso e o profano, entre as questões
espirituais e materiais da vida. Onde quer que o Africano esteja, lá estará a sua religião[133]“.

A afirmação de Mbiti, originalmente publicada em 1969, talvez incorra em uma generalização e


essencialização do continente africano. Apesar das críticas a algumas de suas afirmações[134],
recorro a Mbiti (1990) não com a intenção de problematizar a sua discussão acerca do caráter
religioso do africano e, sim, apresentá-la como ponto de partida para uma melhor compreensão
do que seriam os ogbanjes e abikus.

Além de salientar que não haveria separação entre as práticas religiosas e a vida cotidiana, Mbiti
(1990) também afirma que uma outra constante em todas as religiões do continente africano seria
a crença na vida após a morte. No entanto, ao contrário do que prega o cristianismo, por
exemplo, este credo não implicaria acreditar que a vida após a morte seja melhor do que a deste
plano. A vida após a morte não é nem temida, nem ansiada, uma vez que o tempo presente é tido
como o mais importante, não havendo linha que separe o mundo material do mundo espiritual
em qualquer desses tempos.

Quanto ao conceito de tempo, o pesquisador evidencia que “o tempo é simplesmente uma


composição de eventos que ocorreram, aqueles que estão ocorrendo agora e aqueles que
ocorrerão inevitavelmente ou imediatamente. […] o tempo é um fenômeno bidimensional, com
um extenso passado, um presente e virtualmente sem futuro[135]“ (Mbiti, 1990, p. 16, grifo do
autor, tradução nossa). Portanto, ao contrário do tempo ocidental que segue de forma linear em
direção ao futuro, o tempo, de acordo com a tradição africana, mover-se-ia do presente em
direção ao passado. Os conceitos de Sasa e Zamani, expressões suaíli empregadas por Mbiti
(1990), indicam este movimento “reverso” do tempo. O Sasa, o tempo presente, configura-se
pelo caráter de proximidade, podendo indicar tanto algo que já ocorreu e cujas recordações
permanecem, quanto o presente e o futuro próximo, no caso de eventos que certamente se
desenrolarão. Uma vez que algo é experienciado, essa vivência é englobada pelo “cemitério do
tempo” ou Zamani, que engloba tudo o que se passou, da criação do mundo aos eventos que
recentemente ocorreram. Dessa forma, o Zamani estende-se desde tempos imemoriais e abraçaria
não só a história de um indivíduo, mas de toda a sua comunidade. É impossível separar Sasa e
Zamani. O tempo presente e o das recordações de um indivíduo (Sasa) alimentam o Zamani,
portanto, Mbiti (1990) defende que o presente alimenta o passado, e não o futuro, como crê o
Ocidente.

Nesse contexto, a morte seria o mover-se, gradual, do tempo presente em direção ao passado, do
Sasa para o Zamani. Após a morte do corpo físico, enquanto o indivíduo for lembrado por
alguém que conviveu com ele, ele ainda permanece no tempo presente, Sasa. Quando a última
pessoa que conviveu com este indivíduo morre, completa-se a transição para o Zamani, e só
então pode-se considerar que a morte completou seu termo. Em outras palavras, enquanto
alguém que já faleceu continua a ser lembrado pelos que conviveram com ele, ele integra a grupo
dos mortos-vivos (living-dead). Esse período, entre a morte do corpo físico e o esquecimento da
entrada no tempo imemorial, é considerado por Mbiti (1990) como um estado de imortalidade
pessoal. Enquanto estão no Sasa, esses mortos-vivos interessam-se pelos assuntos que dizem
respeito a suas famílias e mantêm contato com elas, principalmente com aqueles que conviveram
com eles por mais tempo. Daí o costume da libação, ou destinar parte de bebidas e comidas para
os parentes falecidos. Segundo Mbiti (1990), esse ato não poderia ser configurado como um
culto aos ancestrais, indicaria, contudo, que os laços familiares permanecem mesmo quando o
corpo físico não está mais presente. Manter os laços familiares garantiria, assim, essa
imortalidade pessoal. Quando se considera a perda desta imortalidade daqueles indivíduos que
foram brutalmente assassinados e usurpados de suas famílias, percebe-se como o tráfico de
africanos teve consequências profundas não apenas no plano terreno, mas no espiritual também,
uma vez que milhões de africanos, como discutido anteriormente, tiveram suas vidas
abruptamente interrompidas.

Ainda de acordo com Mbiti (1990), em muitas sociedades africanas, não se considera alguém
como um indivíduo completo enquanto ele não tiver cumprido as várias etapas do que seria
considerado um ciclo “normal” de existência. Esse ciclo incluiria, para muitos povos, o
nascimento, as cerimônias de iniciação e que marcariam a entrada na puberdade, assim como o
casamento e a procriação. Contudo, muitos indivíduos subvertem essa ordem natural e morrem
prematuramente. Esses seres anômalos, os ogbanje encontram-se divididos entre a sua
experiência terrena e o contato com o mundo dos espíritos. Chinwe Achebe (1986) explica que,
de acordo com os Igbo, o universo se dividiria entre três partes, a saber Ele Igwe, ou céu, onde
habita a divindade suprema, Chi Ukwu; Ala Mmuo, mundo dos espíritos cuja existência é
contigua a Ala Mmadua, mundo dos vivos. Após a criação, Chi Ukwo retirou-se, mas manteve
contato com a humanidade a partir do chi, chama que é dada a cada ser humano. A interação
entre a divindade suprema e os homens também ocorre a partir da mediação de divindades, entre
elas Achebe evidencia Nne Mmiri, uma divindade feminina que rege os espíritos da água,
também conhecida por Mami Wota; e Onabuluwa, também feminina, que controla a terra e as
florestas. Antes de nascer, um pacto é feito entre cada ser e seu chi. Neste acordo, discutem-se as
características desejadas por cada indivíduo, bem como os feitos que cada um deseja alcançar em
vida. Firmado o trato, cada ser dirige-se à entrada para o mundo dos vivos, onde escolhe se será
entrevistado por Nne Mmiri ou Onabuluwa.

A entrevista é feita para reafirmar o pacto feito anteriormente com o chi, contudo, as divindades
procuram convencer os seres humanos a alterar os acordos com o chi, utilizando-se de diversos
recursos que variam de suborno à intimidação. Aqueles que se comprometem com essas
divindades estariam obrigados a cumprir este novo acordo firmado e passariam a ser
considerados ogbanjes. Aqueles que mantêm o trato realizado com o chi vêm ao mundo para
seguir seu ciclo de vida normal, enquanto os ogbanjes ficam à mercê dos pactos que realizaram
com uma das duas divindades e, geralmente, terão uma morte prematura de modo a retornar ao
encontro dos outros indivíduos que também se aliaram a Nne Mmiri ou Onabuluwa. Como
descreve Achebe:

“Ogbanjes” são, portanto, parte humanos e parte seres espirituais, cujas vidas são
perturbadas pela lealdade que juraram às divindades espirituais. Um indivíduo
‘normal’ nasce comprometido com seu “chi”. Porém, a vida de um “ogbanje” é
complicada pelas exigências de divindades paranormais. A exigência mais notável é
a de que não será possível ao “ogbanje” usufruir de um ciclo de vida completo[136]“
(Achebe, 1986, p. 27, minha tradução).

A questão é que, na maioria das vezes, os ogbanjes não têm consciência de sua condição. Alguns
sintomas que possibilitam a sua identificação incluem, além da morte prematura, a comunicação
constante com a sua irmandade espiritual - os outros indivíduos que também juraram lealdade a
mesma divindade espiritual e sonhos frequentes que costumam ser lembrados em detalhes e
muitas vezes deixam marcar visíveis em seus corpos. Além disso, os ogbanjes podem escutar
vozes e costumam derramar comida durante as refeições, que seria compartilhada com seus
amigos espirituais. De maneira geral, o ogbanje configura-se como um ser liminar e
extraordinário que subverte a ordem natural do ciclo de vida (Achebe, 1986).

O tratamento espiritual para cortar ou enfraquecer os laços entre os ogbanje e as divindades


espirituais e, dessa maneira, prolongar a permanência destes indivíduos no mundo dos vivos,
incluiria, entre outras estratégias, incisões realizadas pelo dibia ou sacerdote, além da realização
de diversos rituais e oferendas (Achebe, 1986; Okonkwo, 2008).

Em Um defeito de cor, a criança nascida para a morte insere-se na categoria Iorubá de abiku. A
família da protagonista Kehinde é repleta de abikus; sua mãe, sua avó, seu irmão mais velho,
dois de seus filhos e um de seus netos. Ao dar à luz a seu primeiro filho, Banjokô, Kehinde teme
que ele seja um abiku Inã ou abiku do fogo, tipo conhecido por sua intenção de assassinar a
própria mãe, como pode ser constatado no fragmento abaixo:

Antes de ele nascer, cheguei a pensar que teria gostado se fosse um abiku do fogo,
do tipo que mata a mãe quando vem ao mundo, mas quando o senti fazendo força
para sair de dentro de mim no meio daquela travessia, pedi a todos os orixás que
não deixassem Orumilá ouvir aquele meu pensamento. O que seria do meu filho se
eu morresse e ele ficasse sozinho no mundo? Ou pior ainda, o que seria de mim se
sobrevivesse à morte dele? (Gonçalves, 2009, p. 187, grifo da autora).

Diferente do que se encontra nos relatos sobre os ogbanjes (que consideram apenas duas
categorias), os abikus subdividem-se em três ou quatro subgrupos. De acordo com Oladele
Taiwo (1970), os abikus podem ser habitantes do fogo (fire dwellers), do mar (sea dwellers) e da
terra (land dwellers). Taiwo, contudo, não faz referência alguma à intenção do abiku de fogo de
matar a sua mãe. Já o pesquisador brasileiro Eduardo Fonseca Jr., em seu Dicionário antológico
da cultura afro-brasileira (1995) distingue quatro grupos: Abiku Inã ou Izô (de fogo), aqueles
que durante o seu nascimento representam risco de vida para a mãe; Abiku Omí ou Azín (da
água), que costumam nascer antes do tempo; Abiku Alé (da terra) e Abiku Fefé (do vento).

De acordo com Monique Augras, estas crianças não têm qualquer intenção de habitar o mundo
dos vivos. Ela acrescenta que “[e]ntre os iorubá, quando muitas crianças de uma mesma família
nascem e morrem sucessivamente, considera-se que, na realidade, trata-se da mesma criança,
que morre e renasce continuamente” (1994, p. 76, grifo da autora).

Similarmente ao que ocorre com os ogbanjes, um sacerdote em iorubá, o Babalawo, deve ser
procurado para que rituais, que também podem incluir incisões, sejam realizados para convencer
o espírito a permanecer neste mundo. Além disso, certos nomes podem ser escolhidos pelos pais
para essas crianças de modo que sirvam de apelo para sua permanência (Augras, 1994; Verger,
2017; Fonseca, 1995).

Apesar de temer que Banjokô fosse um abiku de fogo, que supostamente poria a vida da mãe em
risco, é revelado a Kehinde que ele, na verdade, é um abiku omi, ou seja, da água. É notório que
em Um defeito de Cor, os abikus não se configuram como uma ameaça para suas famílias, mas
parecem representar a sempre presente possibilidade de separação entre mães e filhos. Eles
também evidenciam a maternagem e othermothering[137] como ato de proteção física e espiritual,
assim como ressaltam a importância da transmissão cultural e da conexão com os ancestrais.
“Somente as coisas vivas podem produzir barulho”[138]: Gramática
Amefricana e liminaridade

Como mencionado anteriormente, vários elementos da cultura Ioruba estão presentes em Um


defeito de cor, tais como Voduns, Orixás, Abikus e Ibejis. A jornada de Kehinde, que foi
capturada e trazida de Daomé para Salvador em 1817, e retornou liberta a Uidá trinta anos
depois, encena as muitas interinfluências religiosas, culturais e comerciais entre o Brasil e o
Golfo de Benim. Sobre a influência deste intenso intercâmbio cultural na Bahia, a pesquisadora
Ana Lúcia Araújo afirma que “até hoje, a presença de grupos falantes da língua ioruba na Bahia
explica muitas de suas tradições culturais e religiosas. Durante as primeiras três décadas do
século XIX, a maior parte dos 7.000 africanos que chegaram a cada ano na Bahia eram
indivíduos originários da Costa de Benim que falavam ioruba”[139] (2010, p. 4, tradução minha).

As “crianças nascidas para morrer” fazem sua aparição, logo no primeiro parágrafo de Um
defeito de cor, fato que demarca a importância, tanto temática quanto estrutural dos ogbanjes e
abikus para o romance. A presença destes seres liminares no texto de Gonçalves, é explícita e
nominal, além de ser explicada detalhadamente. O mesmo percebe-se em relação a outras
práticas religiosas e culturais de matriz africana, como demonstra o trecho a seguir:

Antes tinha nasscido o Kokumo, e o nome significava “Não morrerás mais, os


deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku, como minha mãe. O nome dela
Dúróoríìke, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha
esse nome porque também era uma abiku, o nome dela pedia “fica para gozar a
vida, nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do
que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si que
logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos espíritos.
Alguns abikus tentam nascer na mesma família para permanecerem juntos, embora
não se lembrem disso quando estão aqui no ayê, na terra, a não ser quando sabem
que são abikus. Eles têm nomes especiais que tentam segurá-los vivos por mais
tempo, o que às vezes funciona. Mas ninguém foge ao destino, a não ser que Ele
queira, porque, quando Ele quer, até água fria é remédio. (Gonçalves, 2009, p. 19-
20, grifo da autora).

Dois elementos evidenciam-se neste excerto. Primeiramente, a ameaça sempre presente da


separação entre membros da mesma família. Quando se sabe ou se intui que a criança pode ser
uma abiku, todos os esforços são empreendidos para que ela permaneça junto à família. Como
Mbiti (1990) aponta, é de fundamental importância para muitas sociedades africanas que o
indivíduo possa ter um ciclo de vida completo, não interrompido prematuramente. As gerações
mais novas são aquelas que manterão viva a memória dos ancestrais. Dessa maneira, se as
crianças morrem de forma prematura, quem se responsabilizará pela memória dos que já
partiram? Portanto, em uma primeira instância, o abiku pode ser compreendido como uma
ameaça à ordem natural do ciclo de vida, por isso a preocupação da família para que estas
crianças não partam antes do que deveriam, o que evitaria também o sofrimento causado pela
ruptura de laços familiares. Ao analisar a ameaça da morte prematura em Um defeito de cor,
também se percebe que a preocupação de Kehinde para com o filho extrapola a da preservação
de sua vida terrena. Se a criança cumprir o seu destino de partir, prematuramente, para o plano
espiritual, em muitos casos, precauções eram tomadas para evitar que o ciclo voltasse a repetir-se
dentro da mesma família. Assim, a preocupação espiritual com os abikus estaria associada tanto
aos esforços para evitar sua partida quanto para impedir o seu retorno.

Por outro lado, como compreende esse ciclo como algo, até certo ponto natural, e parte de seu
destino, a protagonista de Um defeito de cor consegue perceber que há limites para o que pode
ser feito para proteger e manter os filhos em segurança. E, embora a tarefa de preservar a vida
espiritual dos filhos seja de extrema relevância, Kehinde aceita que cabe a uma força maior a
palavra final sobre o futuro. Essas questões estão em destaque na passagem abaixo, na qual
Kehinde recebe orientações sobre como proceder para que Banjokô, seu primogênito, um abiku
que acabara de falecer, interrompesse o ciclo que fazia dele “uma criança nascida para morrer”.

O Baba também disse para eu não me sentir culpada, pois às vezes o trato [com os
espíritos] se cumpre de qualquer maneira, mesmo que tudo tenha sido feito para
segurar o abiku no ayê. […]. Perguntei ao Baba Ogumfifitimi se poderíamos fazer
alguma coisa para que a alma do Banjokô deixasse de ser tão errante, já que isso o
prejudicava, e ele respondeu que sim, que uma precaução deve ser tomada na hora
da morte, mas que nem sempre a família da terra permitia. Geralmente, os abikus
que retornam ao Orum mesmo tendo fortes ligações no ayê são os preferidos de
Ìyájansá [mãe dos abikus no plano espiritual], e o que se deve fazer é deixá-los
menos atraentes aos olhos dela e dos outros companheiros, mutilando seus corpos.
Mutilados, eles causam medo nos outros abikus […] sentindo-se sozinhos e
rejeitados, eles se desligam dos companheiros e retornam ao Orum como um
espírito normal. Estava em minhas mãos dar essa oportunidade ao Banjokô, mas
teria de ser em segredo (Gonçalves, 2009, p. 469).
A protagonista aceita prosseguir com o ritual, e o corpo de Banjokô é mutilado de forma a cessar
seu ciclo de idas e vindas entre o mundo dos vivos e dos mortos. De toda forma, vale lembrar
que abikus são seres liminares, divididos entre dois mundos. No trecho que foi apresentado
acima, Kehinde decide pelo filho, possibilitando que, em sua próxima existência terrena, tenha
laços mais permanentes e duradouros com sua família e comunidade no ayê, mundo dos vivos.

É meu entendimento que a compreensão do caráter liminar dos abikus na cultura Iorubá abriria
uma outra chave de interpretação do romance de Ana Maria Gonçalves. Primeiramente, a
ausência de fronteiras definidas entre vivos e mortos; passado e presente, se contrapõe à uma
visão de mundo eurocêntrica, cartesiana e cristã. Dessa maneira, a história de Kehinde é contada
a partir de um referencial declaradamente Amefricano e diaspórico, o que tem implicações na
linguagem, temas, e estrutura da obra, bem como na fluidez de trânsitos, identidades e diálogos
entre Orixás, mortos e vivos presentes na narrativa.

Em segundo lugar, a liminaridade, a indecisão entre dois mundos representada pelos abikus pode
ser ampliada e interpretada como algo representativo da diáspora Amefricana. Ana Maria
Gonçalves, em entrevista a John Maddox comenta acerca dessa ausência de uma identidade fixa,
que encena em Um defeito de cor a partir da mobilidade de sua protagonista.

E é uma identidade sempre em movimento, sempre em mudança, sempre não se


estabelecendo em um lugar fixo, que é uma coisa que trato no livro. Há sempre o
retorno ou a vontade do retorno: o livro começa na África, vai para o Brasil, volta
para África e termina no Brasil. Tem sempre esse vai e vem externo, que na verdade
representa um conflito interno dos personagens, isso de “estou ficando aqui
pensando em là, ou que estou ficando lá pensando naqui”, essa dualidade onde o lá
e o aqui que nunca se definem direito (Gonçalves; Maddox, 2011, p. 168).

Kehinde personificaria, dessa maneira, a mobilidade e as trocas intensas entre dois continentes,
assim como a vontade de retorno associada à necessidade e ao desejo de partir. Similarmente,
percebe-se que a batalha da comunidade e dos guias espirituais em Um defeito de cor é pela
permanência no plano terreno da criança nascida para morrer. Ressaltando a ameaça da
separação, os abikus encenam a luta pela sobrevivência e pelo fortalecimento de laços familiares
e comunitários, já que quanto mais fortes as conexões entre o abikus e o plano terreno, maiores
são as chances de que sejam capazes de cumprir suas missões ou destinos.

Da mesma maneira que podem ser associados à circularidade da vida, repleta de conexões e
reconexões, os abikus também constituem um constante lembrete à protagonista (e, igualmente,
ao leitor) das relações indissociáveis entre Brasil e África; entre a escravidão do passado e o
projeto contemporâneo de extermínio do povo negro. A “criança nascida para morrer”, tem,
portanto, múltiplas faces: ao olhar para o mundo dos mortos e dos espíritos, ela tanto invoca uma
conexão ancestral quanto a vulnerabilidade da família negra, permanentemente sujeita a fraturas
e à dissolução. Por sua vez, ao voltarem, de maneira cíclica, ao mundo dos vivos, os abikus
remetem ao trânsito, à jornada e a indecisão de seres cujos laços temporais e espaciais são
frouxos e maleáveis.

Para concluir, pode-se afirmar que, de maneira análoga, o romance transita – ao mesmo tempo
que honra um passado de resistência, luta e cultura afro-diaspórica, também aponta para os
muitos rios de sangue que, por séculos, conectaram Brasil e África. Assim, a ameaça da morte
prematura dos abikus pode ser compreendida como representação do perigo constante prescrito
no que chamei aqui de Gramática Amefricana, que insiste em ameaçar a integridade das famílias
negras nos dias de hoje.
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Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: historiografias sobre a
escravidão
[140]
Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo

Depois que a Geninha leu as cartas que davam notícia do seu paradeiro,
e depois que nos recuperamos do susto, da alegria, da tristeza e da
incredulidade, nem sei, pois era tudo junto, ela achou mais uma carta.
Também estava fechada, remetida por alguém chamado Esteban e
datada de três meses antes da primeira carta do advogado de São Paulo.
Sabe quem é Esteban? Lembra-se dele? O filho do Buremo e da Rosário,
aquele que tinha aprendido comigo as primeiras letras. Já pensei demais
nisso, e não tenho a mínima ideia de como esta carta chegou até Uidá.

[...] Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido chegar até onde
queria. E talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses
deuses dos homens me permita subir ao convés para respirar os ares do
Brasil e te abençoar pela última vez.

(Gonçalves, 2014, p. 946-947).

Quando ainda criança, sentada na sala de aula rodeada por outras crianças, dois eventos
marcaram minha história enquanto mulher negra: a história das pessoas negras vindas de África
como escravizadas para o Brasil (e a aparente homogeneidade de um discurso que afirmava a
passividade e domesticidade desses sujeitos) e em seguida a ação benigna (e também
aparentemente harmônica e sem enormes consequências) da assinatura da Lei Áurea. Quando
criança me ensinaram (e continuam a ensinar outras crianças negras como eu) que meu passado
está inextrincavelmente conectado à história da escravização. E para além disso, que o processo
histórico de mais de trezentos de anos de exploração resultou em uma ideia de nação brasileira
alicerçada na relação harmônica entre as raças responsáveis pela constituição do país. Nada mais
sutil e cruel do que nos fazer acreditar que a escravatura foi um processo que, embora longo,
possibilitou progresso e modernidade como pensados a partir de epistemologias europeias
alicerçadas no racismo estrutural e no projeto político de embranquecimento e genocídio da
população negra.

Apesar desta superficial compreensão de que a História da construção nacional brasileira tenha
sido fruto de contínuos processos harmônicos e cordiais, acredito que a tessitura da Diáspora
negra no Brasil está genética e intrinsecamente conectada com o genocídio da população negra
vinda de África durante o período de mais de trezentos anos de tráfico negreiro. Genocídio, pois
se trata de uma organização política e econômica guiada por um necropoder e uma necropolítica,
onde o poder se exerce delimitando quais corpos e sujeitos são passíveis de morte, não mais de
vida. Nessa necropolítica milhares e milhares de sujeitos viram-se despidos de sua humanidade e
transformados em sujeitos-coisas, sujeitos-metal, sujeitos-objeto, sujeitos-mercadoria. (Mbembe,
2013).

A noção de necropolítica, como proposta por Achille Mbembe, avança as reflexões e


apontamentos feitos anteriormente por Michael Foucault. É caro a Mbembe perceber que a noção
de biopolítica não se adequava aos processos metódicos, periódicos, arbitrários e burocráticos do
sistema colonial e a outra face da mesma moeda: a empreitada escravagista. Ao analisar as
formas de subjugação e opressão de vida e morte, Mbembe percebe que a noção de biopoder,
como proposta por Foucault, é insuficiente. Desde a empresa escravista e colonial, sistemas de
destruição são implantados como formas de poder, não mais somente sobre a vida, mas na
criação de corpos quase mortos – sujeitos à morte. Sob o necropoder, “as fronteiras entre
resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem” (Mbembe, 2016,
p. 146). A expressão máxima da soberania, para o autor, reside na capacidade de ditar “quem
pode viver e quem deve morrer” (2016, p. 123), quem “importa e quem não importa” (2016, p.
132).

Postulados sob a égide da necropolítica, o sistema escravocrata alicerçou-se na desumanização


das pessoas negras vindas de África e a constante reivindicação da humanização das pessoas
brancas europeias. Interessante pensar que a construção da condição negra se faz tendo como
pressuposto a garantia e manutenção da branquidade e supremacia branca – em suma, da
condição branca –: a infrahumanização das pessoas negras tem como alicerce básico a
humanização das pessoas brancas.

Antes de partirmos para a reflexão sobre Um defeito de cor (2014), gostaria de postular duas
questões que irão, de certo modo, costurar o percurso reflexivo proposto: por que ainda falamos
(tanto) sobre a escravatura e qual sua relação com a literatura.

Nas últimas páginas do romance Um defeito de cor (os trechos selecionados no início do texto),
Kehinde, depois de retornar a Uidá, narra os momentos finais de sua vida, agora fazendo a
viagem de volta ao Brasil para reencontrar seu filho perdido há muitos anos. Tendo recebido
confirmação de sua existência e localidade (“a carta do advogado de São Paulo”) a personagem-
narradora precisa, de algum modo, e mesmo que simbolicamente, “fechar o ciclo” de perdas e
abandonos, mas principalmente das lutas e resistências. Como que retomando a imagem no
início da narrativa de Oxumaré – o orixá representado por uma cobra que “morde o próprio rabo”
e pelo arco-íris –, a viagem derradeira parece conectar as duas pontas da história, como o próprio
tempo, um tempo circular: do passado e do presente, sempre com vistas a um futuro.
Diferentemente da primeira travessia, a viagem é empreendida pela própria vontade de Kehinde
que jamais se esqueceu de seu filho que lhe fora retirado à força pelo próprio pai: ao se ver com
uma dívida que não conseguiria pagar decide fazer uso das ferramentas cruéis e arbitrárias do
sistema escravocrata e vende o próprio filho. Essa segunda perda, uma vez que um primeiro filho
de Kehinde havia morrido, é uma das grandes razões do empreendimento literário: a narrativa se
configura como uma longa missiva de uma mãe a seu filho.

É por meio da escrita – do relato das memórias de Kehinde – que a narrativa ganha vida e que
uma mãe consegue reestabelecer os laços de afeto com o filho perdido. A aquisição da escrita
configura uma das mais importantes ferramentas para que a protagonista reivindique humanidade
e recrie uma outra experiência enquanto mulher negra africana da diáspora. Embora não esteja
explícito que a narradora tenha conseguido ou não encontrar o filho, os relatos materializados
nas páginas posteriormente encontradas por Gonçalves (não a autora empírica, mas a
prefaciadora) tornam-se documentos e registros de uma memória que, de outro modo, teria
permanecido oculta.

As cartas recebidas por Kehinde demonstram a importância da escrita para as sociedades


ocidentais (também, como uma dupla consequência a deslegitimação de culturas e saberes orais)
e como ela foi subvertida e utilizada por seu filho, o advogado de São Paulo. Ao conseguir
transformar suas experiências de vida em palavras, em relato e posteriormente, manuscritos,
Kehinde subverte uma lógica amplamente difundida que afirmava a incapacidade dos povos
africanos de adquirir a escrita e de escrever e produzir literatura, arte.

No fim, sem forças para continuar a travessia, a narradora pede misericórdia a qualquer um dos
deuses dos homens para que a permita “subir ao convés para respirar os ares do Brasil” e
abençoar o filho pela última vez. O mesmo percurso realizado nesse momento pela protagonista
se transforma em uma ponte de ligação entre ela e o menino, agora advogado, que mora em São
Paulo.

Como é sabido, Luísa Mahin que se especula “ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade
que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou no caso, em heroínas, que apareciam para
salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que
tinha lembranças de mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis
para seus filhos” (Gonçalves, 2014, p. 16), teria exercido um importante papel na Revolta dos
Malês ocorrida na Bahia em 1835 e seria mãe de um dos maiores defensores abolicionistas
negros do Brasil do século XIX, Luís Gama.

Na narrativa, Gonçalves (a autora do prólogo), por uma feliz surpresa do destino, depara-se com
manuscritos amarelados pelo tempo e descobre a história de Kehinde, menina sequestrada em
África e trazida ao Brasil como escravizada. A partir de uma tradição historiográfica marcada
pela ausência e por silêncios/silenciamentos sobre a experiência de mulheres negras
escravizadas, o romance funciona como um “acerto de contas”, um lugar de memória que
suplementa os discursos existentes sobre o período colonial escravocrata. Interessante pensar que
a narrativa não objetiva consolidar-se como discurso da verdade – ou como documento
inquestionável sobre a existência ou não de Luísa Mahin ou Kehinde – porém apenas, de algum
modo, apontar para as falhas, as lacunas, os silêncios e as ausências das memórias e histórias de
mulheres negras escravizadas no tecido historiográfico nacional. Mais importante do que a
existência ou não de documentos e manuscritos que comprovem a existência de Mahin, Um
defeito de cor (como metaficção historiográfica) enfatiza a seletividade e não neutralidade ou
objetividade de qualquer e toda constituição e consolidação dos discursos historiográficos.
Também problematiza o perigo de se acreditar em uma história única, como bem aponta
Chimamanda Ngozi Adichie em famoso discurso proferido em 2009[141].

Dialogando com (auto)biografias, narrativas, ficções e oralituras, Ana Maria Gonçalves


estabelece novos olhares para o passado, sem determinismos nem teologias, contrapondo
estereótipos, preconceitos e visões homogeneizantes, num movimento de passado-presente-
futuro. O romance é compreendido como parte de uma tradição da escrita negra no Brasil e
possibilita um panorama das experiências afrodiaspóricas durante o período da escravatura. Ao
elencar experiências de mulheres negras escravizadas, a narrativa permite uma visão do cativeiro
estruturada não somente por questões de raça, mas, interseccionalmente, de gênero.

O passado revisitado por meio da narrativa possibilita tanto a emergência de uma narrativa
dissonante e que desequilibra a aparente homogeneidade dos discursos oficiais quanto de um
discurso que problematiza a autoridade da própria História. Tomando como ponto de partida para
as narrativas as experiências e as memórias das personagens negras, a obra mostra que a
revisitação do passado por meio da literatura demonstra o enorme esforço de memórias
dissonantes para evitar cair no esquecimento.

A revisitação do passado funciona, como sublinha Eduardo de Assis Duarte, como senha para a
compreensão das dinâmicas históricas até o presente, em sua concretude material, social e,
também, subjetiva; olhar indagador sobre aquele continente emudecido pelo tempo em busca de
seus porquês, na pista dos porquês de agora. Encarada desta forma, a mirada rumo ao ontem da
história pretende entendê-lo como antevéspera do hoje e não como monumento petrificado”
(2015, p. 167). O passado visto não como página virada, mas como força motriz para a
construção de um futuro possível.
A senha para a compreensão do presente das personagens se dá por meio da rememoração das
narrativas dos que aqui chegaram primeiro: os desterritorializados de África. Por outro lado,
instaura um espaço de luta e de resiliência das personagens pela liberdade, que somente é
conquistada após vários anos de embate e sofrimento – uma literatura quilombola.

Assim, acreditamos que Um defeito de cor cria discursos sobre as experiências afrodiaspóricas
que vão na contramão dos comumente presentes na literatura brasileira, onde a personagem
negra ou se encontrava ausente ou era envolta de estereótipos ou representações negativas e
inferiorizantes. Retomando algumas reflexões da escritora Conceição Evaristo, pensamos que
uma vez que a história e memória de povos negros estiveram sempre relegadas aos porões da
História oficial, primeiro, durante o período escravagista do passado e contemporaneamente por
novas formas de racismo institucionalizado, pela segregação racial e pelos discursos da
“democracia racial”, a produção literária de sujeitos que reclamam para si uma identidade
afrodescendente possibilita a emergência de outras memórias, rememorações[142], que
desestabilizam e questionam a aparente homogeneidade e estabilidade das sociedades pós-
coloniais e pós-Escravidão.

Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física,
interditado em seu espaço individual e social pelo sistema escravocrata do passado e
hoje ainda por políticas segregacionistas existentes em todos, se não em quase todos
os países em que a diáspora africana se acha presente, coube aos descendentes de
africanos, espalhados pelo mundo, inventar formas de resistência. [...] A identidade
vai ser afirmada em cantos de louvor e orgulho étnicos, chocando-se contra o olhar
negativo e com a estereotipia lançados ao mundo e às coisas negras. (Evaristo,
2009, p. 12).

Textos literários produzidos por autores e autoras que afirmam identidades marcadas por noções
étnicas e de raça, proclamam, conforme enfatizado por Evaristo, a independência dos corpos
negros subjugados por concepções negativas e estereotipadas, criando um espaço de resistência
quilombola ocasionando a emergência de outras memórias, histórias e narrativas sobre a
experiência múltipla e heterogênea de personagens recalcadas pelos discursos históricos.

Nos interessa pensar como o romance ocasiona uma quebra de paradigma a partir da literatura
sobre a representação das experiências de mulheres negras escravizadas elencando como
protagonista uma mulher negra da diáspora. As personagens de Gonçalves apresentam uma
multiplicidade de experiências e memórias afrodiaspóricas, complexificando narrativas e
discursos em multicamadas sobre a História da construção da nação brasileira bem como de
nossas identidades nacionais.
Da escravização para a liberdade: slave narratives e neo-slave
narratives

Em uma das cenas mais conhecidas do romance Úrsula, da escritora Maria Firmina dos Reis,
publicado em 1859, a personagem Susana relata a Túlio, ambos escravizados, sua vida em
liberdade em África, antes de ser posta em cativeiro. Semelhante a Kehinde, Susana, que possuía
familiares e vivia feliz em África, é sequestrada e vendida como escravizada no Brasil. A
personagem ao afirmar que não houve ninguém que mais gozou de liberdade do que ela, e ao
saber que Túlio obtivera, finalmente, sua alforria exclama em descrédito: “Tu, livres? Não me
iludas!” (Reis, 2017, p. 101).

No romance, Reis, uma das mais importantes romancistas brasileiras e primeira romancista
negra, reproduz a passagem pelo Atlântico Negro desde África até o Brasil por meio do relato de
Susana e de seu sequestro, tendo severamente cortados laços familiares e sociais. A
incredulidade da personagem é reflexo de sua compreensão profunda da impossibilidade de ser
livre em um sistema de opressão como a escravização. A liberdade de Túlio não implicaria o fim
das estruturas e ideologias que garantiam e sustentavam a manutenção do sistema escravocrata.

Dialogando com as slave narratives (narrativas escritas por pessoas libertas ou ditadas a
amanuenses) publicadas nos Estados Unidos e na Europa, o romance por meio da ficção antecipa
uma razão negra feita pelo negro em contraposição a uma razão negra criada pelo Ocidente
branco (Achille Mbembe, 2014), subvertendo e questionando uma imagem negativa e
estereotipada, reivindicando humanidade e dignidade. As personagens negras do romance de
Reis são humanas, dignas, inteligentes e moralmente superiores a alguns personagens brancos,
como o vilão, o personagem Fernando.

As narrativas de escravizados, as slave narratives, surgidas no século XVIII, nos Estados Unidos
e na Europa, são relatos da experiência negra da diáspora e do cativeiro a partir de um ponto de
vista interno, exercendo um papel crucial na luta contra o sistema. Escritas por mulheres e
homens negros ex-escravizados eram patrocinadas e publicadas tendo como objetivos convencer
um público leitor branco relativamente duvidoso sobre as atrocidades e barbaridades cometidas
contra pessoas negras e da necessidade de se extinguir um sistema tão bárbaro. Os textos a partir
do final do século XVIII são publicados por grupos religiosos abolicionistas nos Estados Unidos.
No Reino Unido são financiados por alguns órgãos governamentais, em particular, durante os
anos que sucederam à discussão do fim do tráfico e da escravidão britânica.
As primeiras narrativas surgem durante os anos de 1760 e 1770 dentro de um contexto cultural
que moldou a história de publicação do gênero. Grupos religiosos frequentemente financiavam e
supervisionam as publicações o que configurou e moldou a linguagem e os temas nelas
presentes. (Gould, 2007, p. 11). Dentre as autobiografias mais famosas e aclamadas está de
Olaudah Equiano/ Gustavus Vassa, publicada em 1789 na Inglaterra. O gênero terminaria, para
alguns estudiosos, no ano de 1865, momento final da Guerra Civil estadunidense e, para outros,
com a coleção Slave Narrative organizada pelo Federal Writer’s Project, uma série de
testemunhos copilados nos anos de 1936 e 1938.

Embora com temas, linguagem, convenções literárias e formas relativamente similares entre si,
as narrativas de escravizados foram os primeiros registros tanto oral quanto por escrito da
experiência negra nas Américas, da experiência da escravização a partir de um ponto de vista
interno. “Tanto de fato escrevendo ou oralmente relatando suas vidas, narradores escravizados
fazem uso de múltiplos discursos como uma maneira de cultivar tais identidades complexas que
se encontram ambiguamente dentro e fora de normas contemporâneas”[143] (Gould, 2007, p. 12,
minha tradução).

Para além de terem sido utilizadas como documentos sobre a experiência em cativeiro, é
importante sublinhar que a escrita, para essas pessoas, tem, nesse sentido, uma dimensão
performativa. “A estrutura de tal performance é de ordem teológica. O objetivo passa por
escrever uma história que reabre, para os descendentes de escravos, a possibilidade de voltarem a
ser agentes da própria história” (Mbembe, 2014, p. 60, grifo do autor). Performance por
assegurar a humanidade do sujeito negro contradizendo preceitos positivistas e pseudocientíficos
que caracterizaram a escravidão: por meio da escrita, ou do relato, o sujeito negro escravizado
performa sua humanidade e liberdade.

A tradição memorialista da escrita negra, que dialoga com as narrativas de escravizados, slave
narratives, perdura até a contemporaneidade com as denominadas neo-slave narratives, termo
cunhado por Bernard W. Bell, no livro The Afro-American Novel and Its Tradition que as define
como “narrativas modernas, residualmente orais sobre a fuga do cativeiro para a liberdade”[144]
(Bell, 1987, p. 289, tradução minha).

As narrativas contemporâneas da escravidão (tradução proposta por Danielle Luna da Silva) ―


neo-slave narratives, gênero que se inicia para Bell com o romance Jubilee, de Margareth
Walker, de 1966 ―, incluem uma enorme diversidade de ficções publicadas, em particular nos
Estados Unidos, a partir dos anos de 1960. De maneira geral, as narrativas enfocam a instituição
da escravização por meio de uma miríade de perspectivas e adotando uma variedade de estilos de
escrita. Embora tendo diferenças, os textos “ilustram a centralidade da história e da memória da
escravidão para as identidades individuais, raciais, de gênero e nacionais”[145] (Smith, 2007, p.
168, tradução minha).

Na tese de Danielle de Luna e Silva Maternagens na diáspora amefricana: resistência e


liminaridade em Amada, Compaixão e Um defeito de cor, defendida em 2017, a autora analisa os
romances a partir do conceito de neo-slave narrative, ou como traduzido por ela, narrativas
contemporâneas da escravidão. Silva analisou os três romances a partir de uma “perspectiva
transnacional e histórica as práticas de maternagem” e como os romances recriam a experiência
da escravização a partir da encenação de novos paradigmas tendo como foco a maternagem
negra na diáspora amefricana. Silva aponta que as autoras não estão preocupadas com a
“reprodução de fatos históricos”, mas em dar voz à “vida interior” das personagens (Silva, 2017,
s. p.).

O conceito de neo-slave narratives como definido por Bell foi expandido para compreender uma
gama de publicações, não mais centradas somente nos Estados Unidos, porém em outros lugares
do mundo afrodiaspórico. Como defendido por Silva, a preocupação de Gonçalves não está
necessariamente no estabelecimento de referencialidades históricas, mas em possibilitar a
emergência das vozes interiores das personagens – em particular, nos interessa pensar nas
personagens mulheres negras – enfatizando o risco de se acreditar em uma história única e,
também desestabiliza a “univocidade” dos discursos históricos oficiais.

O surgimento das narrativas contemporâneas escritas por escritoras negras, de maneira mais
recente no campo literário brasileiro, aponta para novas perspectivas na historiografia
amplamente difundida sobre o período de cativeiro nas Américas e as dinâmicas tensões dos
movimentos abolicionistas. Amparadas em uma visão contemporânea, influenciadas pelos
movimentos negros e movimentos por direitos civis e por justiça social – tanto a partir da
academia, mas em particular fora dela – escritoras negras se debruçam sobre a experiência e a
memória escravagista como respostas a teses historiográficas já consolidadas e que, durante
muito tempo, permaneceram inquestionáveis.

Falar sobre si – da experiência afrodiaspórica como sujeitos negros no mundo – o uso de relatos
de mulheres negras passa a ser compreendido como um ato de resistência e resiliência. A escrita
para as mulheres negras é uma forma de sobrevivência, e de celebração das memórias individuais
e coletivas.

Em um primeiro ponto, acreditamos que as narrativas ficcionais sobre a escravização são uma
tendência, pois estamos em um estado de crise da História, de pós-verdades, onde os discursos
sempre tão homogêneos e excludentes da historiografia começam a ser desestabilizados pelas
vozes dos que sempre estiveram à margem. Outro ponto sobre essa escrita que se dá a partir de
um olhar feminino, onde a história narrada focaliza, em especial, a experiência de mulheres
negras em cativeiro se refere às implicações que categorias identitárias de gênero performam ao
participar do jogo das identidades. A perspectiva gendrada possibilita novas compreensões sobre
a estrutura da escravização e temas como sororidade, maternagem, patriarcalismo, machismo,
cultura do estupro e a resiliência da mulher negra passam a ser temáticas recorrentes nas
produções literárias. Outro ponto é que estamos em um momento de disputa de narrativas e
memórias sobre a escravização e a onisciência do discurso histórico. Nos questionamos sobre a
possibilidade de se narrar o inarrável, a experiência limite dos horrores do cativeiro e sobre qual
memória queremos (res)guardar. De qualquer modo, o retorno ao passado, a sua rememoração a
partir da contemporaneidade nos faz pensar que o escravismo, enquanto sistema institucional e
social não pode ser esquecido, para que seus horrores não se perpetuem, todavia, temos que ter
cuidado sobre quais memórias e histórias estamos “celebrando” com a rememoração.

Uma das maneiras encontradas por Gonçalves é deixar explícito no texto a multiplicidade de
vozes e discursos, apontando para o caráter polifônico das memórias. A emergência destas
memórias subterrâneas reflete a crise da própria história (pensar os debates raciais dos final do
século XX e agora, século XIX que ao revisitar discursos historiográficos sobre o Brasil colônia
e o Brasil oitocentista desestabilizam os alicerces de uma tradição da escravatura benigna ou da
democracia racial), e questiona quais atores e autores sociais têm acesso e podem legitimar
discursos históricos, quais vozes e sujeitos se beneficiam de quais narrativas, quais memórias
merecem ser valorizadas e aquelas que precisam ser resguardadas, questionadas e validadas.

Se os textos dos séculos XVIII e XIX são reflexos dos dilemas e impasses da agenda
abolicionista (regras de respeitabilidade e discrição), as versões contemporâneas demonstram o
processo de silenciamento, enquadramento e seleção das memórias e biografias de escravizados.
No romance, Gonçalves elenca histórias que focam nas vidas interiores das personagens, nas
percepções, sensações e sentimentos. Para além de enfatizar a obsessão pela historicidade, pela
referencialidade à verdade, como acontecia com as narrativas escritas nos séculos XVII, XVIII e
XIX, Um defeito de cor prima pela humanização das personagens e das memórias, como que
invertendo os olhares que não são mais da casa-grande, mas a partir das janelas dos olhos dos
moradores da senzala.

As memórias presentes na narrativa vão em contramão a algumas representações literárias que


focalizam as personagens negras a partir de binômios: civilizada x bárbara; hiperssexual x
assexual; anjo x demônio; mau x bom em que, na maioria das vezes, os caracteres negativos são
aplicados às personagens negras e os positivos às brancas. As imagens comumente relacionadas
às personagens negras (a mulher negra brava, hiperssexual; a mammy – mulher negra maternal e
geralmente assexuada – a mulher negra forte e/ou masculinizada; a mulher negra louca) dão
espaço para múltiplas representações que enfatizam a multiplicidade de experiências.

Como dito anteriormente, existe uma focalização nas reflexões e sentimentos interiores das
personagens, naquilo que as caracteriza enquanto seres humanos, com suas contradições,
concessões, tensões, negociações, falhas e qualidades.

Quando da morte do filho da Sinhá Felipa, Kehinde nos diz:

O pequeno cortejo pegou a praia, na direção da igreja do povoado, e sumiu por trás
dos coqueiros. Eu fiquei olhando o nada, com vontade de também fazer nada, mas
me levantei e saí caminhando em direção à água, o que ninguém percebeu. Sentada
na areia, fiquei olhando o mar e chorando todas aquelas mortes que pareciam estar
dentro de mim, ocupando tanto espaço que não me deixavam sentir mais nada. Os
olhos ardiam com as lágrimas salgadas, como se fossem mar também, e senti uma
solidão do tamanho dele, do tamanho da viagem da África até o Brasil, do tamanho
do sorriso da minha mãe quando estava dançando, do tamanho da força com que a
Taiwo segurava a minha mão enquanto observávamos o nózinho de sangue do
Kokumo. Eu ainda não tinha chorado por eles, e só fui parar quando, tarde da noite,
a Esméria voltou do povoado e sentiu minha falta, indo procurar em todos os
lugares onde sabia que eu gostava de ficar. Ela se sentou ao meu lado e me chamou
de sua menina, puxou minha cabeça de encontro ao quente do peito dela e me
embalou com cantigas da África. Então cantou até que eu dormisse, como naquele
dia em que a minha mãe dormiu para sempre no quente do colo da minha avó, em
Savalu. Ou como no dia em que eu e a Taiwo dormimos no barracão, embaladas
nos braços de Nana e de Iemanjá. (Gonçalves, 2014, p. 101).

A morte do filho da Sinhá faz ressurgir todas as mortes experienciadas pela menina até o
momento: as da mãe e do irmão em Uidá, a da irmã Taiwo e da avó na vinda para o Brasil no
navio negreiro, e serve como pressentimento para outras mortes que seriam vivenciadas pela
narradora. No trecho selecionado acima a ênfase dada pela narrativa é nos sentimentos
percebidos pela personagem ainda criança no enfrentamento de situações adversas. A solidão
sentida – uma solidão tão grande do tamanho do mar – “do tamanho da viagem da África até o
Brasil, do tamanho do sorriso da minha mãe quando estava dançando, do tamanho da força com
que a Taiwo segurava a minha mão enquanto observávamos o nózinho de sangue do Kokumo”
(Gonçalves, 2014, p. 101) parece dar uma ideia da incomensurabilidade do sentimento da perda e
da desterritorialização, contudo, também enfatiza os fortes sentimentos de amor e afeto sentidos
pela mãe e com relação a sua família consanguínea deixada em Uidá e na travessia. A saudade
era tão grande quanto o sorriso de sua mãe quando dançava ou da força que a irmã segurava sua
mão quando os guerreiros estupravam e posteriormente matavam sua mãe.

O relato da menina, e os sentimentos de dor e perda, são apaziguados, de algum modo e até certa
medida, pelo estabelecimento de novas relações de amor e afeto no Brasil. Esméria, uma das
escravizadas que trabalhava dentro da casa-grande, torna-se uma espécie de protetora da menina.
Uma ideia falsamente difundida sobre as relações de afeto (e também familiares) entre a
população escravizada era que seriam incapazes de estabelecer qualquer tipo de relacionamento,
pois, primeiro, acreditava-se na total infrahumanidade destas pessoas, vistas como animais,
segundo, que a situação de instabilidade, ou seja, a constante ameaça de serem vendidos a
qualquer momento, dificultava o estabelecimento de laços ou até mesmo de qualquer apego
sentimental.

Quando Esméria se senta ao lado de Kehinde, a chama de sua menina e então ela a “puxou
minha cabeça de encontro ao quente do peito dela e me embalou com cantigas da África”
(Gonçalves, 2014, p. 101) é nítida a percepção de que, mesmo tendo origens diferentes, falando
muitas vezes línguas diferentes, e apresentando diferentes filosofias, epistemologias e percepções
de vida, a sobrevivência das personagens se dá, em grande medida, a partir do estabelecimento
de fortes laços de afeto, de comunidade e solidariedade. Que se estendem também, quando
possível, entre as personagens brancas, como é caso da Sinhazinha, que se torna uma amiga para
Kehinde ao longo da narrativa.

Porém deve-se tomar cuidado para não cairmos no discurso da escravização benigna e senhores e
senhoras brancos amigáveis, benevolentes e solidários, como é possível perceber em uma gama
de narrativas e textos literários. O que a narrativa aponta é para a necessidade de se
complexificar relações que são complexas, para que não tendamos a reproduzir binômios
simplistas e superficiais, entre personagens bons x maus, opressores x oprimidos.

Para além de demonstrar a profundidade de sentimentos experienciados pela personagem,


Kehinde a todo momento demonstra que, diferentemente de uma visão de que as pessoas negras
vieram de África deixando tudo para trás, a narradora trouxe consigo seus orixás, seus eguns,
egunguns e voduns, suas epistemologias e filosofias, mesmo e apesar do massivo processo de
epistemicídio, apropriação e apagamento a partir das filosofias, religião e epistemologias
eurocêntricas e eurocentradas. Silenciamento não significa apagamento nem esquecimento.
Analisar Um defeito de cor a partir do conceito de neo-slave narratives nos ajuda a (re)pensar
essa e outras narrativas cujo enfoque seja a experiência afrodiaspórica a partir de um diálogo
com romances escritos na contemporaneidade e os do século XVIII e XIX. Nosso objetivo não é
criar delimitações teóricas e críticas, mas enfatizar algumas características semelhantes em
alguns textos.

O gênero traz a cena questões como: quem tem posse da memória? Que sujeitos têm mais
legitimidade histórica? A quem serve a memória da escravização? Quais memórias merecem ser
valorizadas e conservadas? Questões que demonstram disputas pelo enquadramento da memória
da escravização na contemporaneidade a partir de um questionamento sobre a construção
nacional e o estabelecimento de identidades nacionais.

A narrativa torna-se, nesse sentido, uma estratégia de subjetivação e identificação: para sujeitos
que foram negados até a sua própria humanidade, o (auto)reconhecimento é uma maneira de
reconstituir uma história, de exorcizar experiências traumáticas e reclamar o direito à liberdade.
A escravização e o processo de outrização: tensionando o campo
literário

Como alguém se torna um racista, um machista? Uma vez que ninguém


nasce um racista e não existe nenhuma predisposição fetal ao machismo,
se aprende a Outrizar (Othering) não por exposição ou instrução, mas
por exemplo.

(Morrison, 2017, p. 6, minha tradução[146])

Eu não quero me confundir com essa sociedade. Eu quero ajudar a criar


um novo modelo de sociedade, que parta da fissura, do quebrado. É
interessante notar que, na arte japonesa, a fissura valoriza o objeto que
se quebrou. Depois de ser restaurado com pó de ouro, o objeto é mais
valioso. Nossas vozes e nossas ideias são pó de ouro”.

(Gonçalves, 2017)[147]

As narrativas de ex-escravizados, como discutimos na seção anterior, surgem em meio a tentativa


de negar e contrapor a completa e total outrização dos sujeitos negros. Como um árbitro
constante e fixo, a raça é utilizada como fator de justificativa e manutenção do sistema,
utilizando aparatos legais, religiosos, burocráticos e científicos para acomodar e justificar a
degradação da escravização. As narrativas de escravizados, surgidas como reflexo do
Iluminismo, demonstram que as pessoas negras em cativeiro, apesar de todos os obstáculos,
conseguem relatar uma experiência que lhes objetivava assegurar liberdade e humanidade.

Passados a promulgação das leis emancipacionistas, o século XX observa o surgimento de


movimentos negros artísticos organizados, como a Renascença do Harlem, nos Estados Unidos e
o Movimento da Négritude nas Antilhas e França. A preocupação dos grupos era, dentre outras,
resgatar a identidade e a força da presença negra nas Américas, inaugurando um pensamento
étnico positivo e em contraponto a estereótipos e preconceitos. As décadas de 1930 e 1940
marcam uma enorme proliferação de artistas que clamam que black is beautiful e merece ser
apreciado. Se o sujeito negro é o Outro, o oposto do branco, os movimentos de negritude
reivindicam os termos a partir dos quais se falar sobre e da experiência negra, de maneira
positiva e crítica, reafirmando e ressignificando uma herança africana que merece ser valorizada
e apreciada.

Outra preocupação desses movimentos está em demonstrar as implicações nefastas do racismo


tanto a partir do campo artístico e literário quanto da perspectiva social e de classe. Preocupados
também em exercer justiça social, movimentos negros possibilitam o questionamento da aparente
homogeneidade histórica e das identidades nacionais, que primam pela história como contada
pelos vencedores, a legitimar um discurso universal construído a partir da negação e apagamento
dos sujeitos subalternizados.

A construção de um Outro – outrizar – utilizada por praticamente todos os grupos humanos,


parte de uma necessidade primeira de definir-se a si mesmo, mantendo uma diferença nítida e
perceptível (Morrison, 2017, p. 5). As identidades nacionais se solidificam alicerçadas em uma
forte noção de diferença frente aqueles considerados não pertencentes. Assim, criam-se barreiras
e fronteiras, subjuga-se e mata-se para que seja mantida uma noção de pertencimento e
similaridade à custa da exploração e opressão dos definidos como Outros.

A literatura funciona, assim, como um mecanismo de outrização: uma das maneiras pelas quais
as nações sustentaram e acomodaram os horrores da degradação e destruição ocasionados pela
escravização, que se institui não somente pela “força bruta”, mas inegavelmente pelo processo de
romanceá-la e/ou romantizá-la (Morrison, 2017). A partir da narrativa outrizamos de modo a
garantir nossa diferença, desumanizamos para demonstrar nossa humanidade.

Os movimentos de negritude ecoam no Brasil e, nos de 1980, surge o grupo Quilombhoje em


São Paulo e logo a publicação de Cadernos Negros. Assim, alguns autores que começam a
publicar a partir dos anos 1980 encontram nessa antologia um espaço sem precedentes no
mercado editorial brasileiro. Os Cadernos Negros têm sido publicados ininterruptamente desde
seu início. Nos anos pares é publicado um volume de poemas e nos anos ímpares um volume de
contos de escritos que primam pela autoria e temática afrodescendente. Uma das grandes
escritoras afro-brasileiras da contemporaneidade, Conceição Evaristo, inicia sua produção
literária nos Cadernos Negros e tem hoje reconhecimento nacional e internacional, sendo objeto
de artigos, dissertações e teses, não somente no Brasil, porém por diversos pesquisadores de
outros países.

Para além das possibilidades de publicação trazidas pelos Cadernos Negros, e


contemporaneamente por uma expansão de editoras idealizadas a partir da reivindicação de uma
negritude em uma multiplicidade de tons, cores e texturas, a escrita empreendida por autoras
como Ana Maria Gonçalves demonstra o papel estruturante e estrutural de raça para se pensar a
consolidação e construção do campo literário brasileiro e a percepção da literatura como um
campo contestado, fruto e reflexo de tensões e negociações.

Desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação da


identidade nacional até agora, quando diferentes grupos sociais procuram se
apropriar de seus recursos, a literatura brasileira é um território contestado. Muito
além de estilos ou escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de
dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele (Dalcastagnè, 2012,
p. 13).

Desde os tempos em que a literatura ― e esses tempos aparentemente perduram até os dias
atuais ― era vista como um instrumento de afirmação de uma identidade brasileira, a
possibilidade que se tem na contemporaneidade é o de “dizer sobre si e sobre o mundo”, de
tornar-se visível, audível, perceptível a partir de uma miríade de lugares de fala. Assim, a
literatura brasileira é um território contestado, disputado, negociado, um lugar de embates: entre
o que sempre foi considerado universal e canônico e todas as expressões literárias dos
denominados grupos minoritários, periféricos, marginalizados, e consequentemente considerados
“literatura menor”.

Faz-se necessário apontar, ironicamente, que o marginalizado, o periférico e o minoritário


incrivelmente é, enquanto sujeito produtor de escrita, enquanto agente literário, dotado de cores,
raças, gêneros, sexualidades, histórias, classes e culturas sempre em oposição ao dito universal e
canônico, que para começo de conversa são sempre – e basta ver os dados levantados pela
exaustiva pesquisa coordenada pela pesquisadora Regina Dalcastagnè[148] – para se perceber que
o que tem sido tomado como universal e canônico na literatura são produções de autores
majoritariamente brancos, do eixo sul-sudeste, heterossexual e de classe média. Assim, o que
temos como cânone literário brasileiro são textos e obras produzidas, em sua grande maioria, por
sujeitos que representam uma parcela muito pequena da sociedade, e que por assim dizer, são
eles sim minoria! Premissa válida para grande parte, senão toda a denominada literatura
universal para além das fronteiras: o que se tem assumido dentro do campo de crítica e estudos
literários como canônico e universal é majoritariamente a produção de autores homens, brancos,
heterossexuais de classe média.

Como território contestado, seguindo Dalcastagnè, o que está em disputa é a possibilidade de


dizer sobre si, de se posicionar enquanto sujeito produtor de um discurso, como agente produtor
de um texto literário a partir de lugares de falas marginalizados e constantemente excluídos dos
ditos universais. O que está em jogo na contemporaneidade é a disputa por poder falar, por poder
escrever, independente da multiplicidade e diversidade estético-literárias.

Para isso, sempre tenho em mente dois pontos: o primeiro, é sobre a noção de outrizar como
proposto por Morrison e o papel da literatura como ferramenta de construção e consolidação de
identidades nacionais e também como fator desumanizador e outrizador (a literatura funciona,
assim, como um mecanismo de exclusão e perpetuação de estereótipos e imagens inferiorizantes,
superficiais e simplistas). Segundo, retomando Gonçalves, que a história (as vozes das pessoas
negras) desestabiliza o aparentemente coeso e homogêneo discurso (história e memórias)
nacionais. Pensar como as narrativas tensionam a hegemonia da história, e para além disso, como
tensionam importantes parâmetros da literatura: universalidade e cânone.

Enfatizamos a importância de compreender a escrita para as pessoas negras como um movimento


de subversão, uma razão negra escrita por nós mesmas e mesmos, sendo de suma importância
compreender o papel crucial da racialização das identidades nacionais marcadas pelo passado da
escravização e que se consolida a partir de uma supremacia branca. Sendo assim, raça continua
um termo necessário para falarmos sobre campo literário, memória e história nacionais. A escrita
para escritoras negras é percebida, assim, como performance de liberdade e resistência.

Do mesmo modo que o período foi racializado, foi também gendrado: a noção de feminilidade e
mulheridade outorgadas, a partir de preceitos machistas e patriarcais, às mulheres brancas. Desse
modo, o romance aponta para os efeitos interseccionais do racismo e do machismo, tanto na
construção de uma, muitas vezes, não-feminilidade negra e a ultrafeminilidade brancas, marcada
por fragilidade, impotência, subserviência e obediência.

É significativa perceber que a “história” de Um defeito de cor – enquanto relato do processo de


escravização – se inicia a partir do momento em que, ao presenciar a morte da mãe e do irmão
por guerreiros do rei Abandozan, Kehinde, sua avó e sua irmã precisam se mudar para outra
cidade, um lugar mais seguro, sendo logo sequestradas e traficadas ao Brasil como escravizadas.
Nesse sentido, chamam atenção o fato de, por um lado, haver a ficcionalização de uma história,
ou a narrativização da vida ― vida como narrativa ―, e mais do que isso: a sua predestinação e
constante uso de foreshadow[149]. Se a narrativa parece seguir um rumo já anteriormente
estabelecido, como um destino, a narradora estabelece constante ligação com acontecimentos
futuros, como se estivesse nos dando, nós leitores, avisos ou advertências sobre o que irá
acontecer. Como na passagem onde Kehinde, ao chegar a nova cidade para morar com sua irmã e
avó situa a comparação entre o barro avermelhado e a imagem da morte de sua mãe e seu irmão:
“Aconteceu que, ao sair da canoa, molhei os pés no rio e logo em seguida pisei na terra vermelha
da estrada, e o barro que se formou tinha a mesma cor dos riozinhos de sangue. Não foi um bom
sinal, mas eu não estava preparada para levar a sério recados como aquele” (Gonçalves, 2014, p.
28). O que esse sinal significa o leitor irá ter consciência um pouco mais adiante no romance,
pois Kehinde e sua irmã Taiwo são capturadas para serem vendidas como escravizadas a
comerciantes brasileiros e a consequente morte, ainda na viagem, de Taiwo e sua avó. Ou
quando avista o Brasil pela primeira vez: “Eu me senti quase feliz ao avistar a ilha dos Frades.
Uma felicidade que talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria vária outras
vezes em minha vida” (Gonçalves, 2014, p. 62).

A história de Kehinde, primeiro como sujeito livre, para posteriormente ser escravizada inicia
com liberdade. É significativo para a narrativa, e para diversas outras narrativas cujos
personagens sejam escravizados, que não se perca de vista o fator “liberdade” como
preponderante para a escrita e relato destes sujeitos. A experiência em cativeiro é uma condição
outorgada pelo sistema escravagista e endossada pelos privilégios da branquidade colonial, mas
que de nenhum modo configura e constitui em essência a experiência de sujeitos afro-
diaspóricos.
Algumas considerações

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de
onde vens.

(Gonçalves, 2014, p. 569 – Provérbio africano.)

Ao longo do percurso tentamos demonstrar que “falamos tanto, ainda, sobre a escravização”,
pois é de essencial importância para a compreensão do presente e consequentemente para a
construção de um futuro mais justo e igualitário brasileiro, que embora tenha acabado, suas
ideologias e premissas ainda permanecem. Também queríamos demonstrar o papel
preponderante da literatura como ferramenta de reprodução de estereótipos e pré-conceitos, bem
como desafiar noções caras à crítica como tradição, cânone e universalidade.

Acredito que a resiliência da memória e da história afrodiaspórica, para as personagens


mulheres-negras presentes no romance, é um mecanismo de sobrevivência perante a dominação,
com o propósito de não se cair em desespero ou loucura. Deve-se entender também que diversos
estereótipos sobre a mulher negra servem a propósitos de dominação, como a imagem da mulher
negra menos feminina, que sente menos dor, que está mais inclinada a trabalhos forçados,
imagens que remontam ao passado, não tão passado assim, da própria escravização. Defendemos
que “proibida legalmente a escravização, permanecem vivos seus fundamentos ideológicos, que
fundamentam a discriminação e perpetuam a invisibilidade social e cultural dos que a ela
sobreviveram. É, pois, nesse contexto de enfrentamento que a escrita dos afrodescendentes surge
e se mantém até a contemporaneidade” (Duarte, 2011, p. 212).

Resignificando a experiência da escravização a partir de uma perspectiva feminina/feminista, Um


defeito de cor proclama a necessidade de se repensar o passado, fazendo emergir memórias
silenciadas e apagadas da história oficial dos vencedores, marcando que embora a estrutura da
escravização como ocorrida no século XIX tenha acabado, a cultura escravista ainda se faz
presente.

Gostaríamos de enfatizar que uma vez que assumamos que os textos são materialidades atreladas
a realidades empíricas, fruto de negociações e tensões, resultado de projetos literários
específicos, de autoras que ocupam lugares sociais e que possuem lugares de fala próprios (como
todos e todas os sujeitos) partimos do pressuposto de o que se tem denominado como crítica
literária parte de visões e perspectivas majoritariamente brancas, masculinas e
cisheteropatriarcais e que ditas universais excluem e subalternizam as experiências dos
denominados “outros”.

A crítica e a teoria literária canônica tenderam, durante muito tempo, a compreender produções
literárias, como o romance de Gonçalves, como literaturas menores, de menor qualidade, sem
valor estético e nem literário e desnecessariamente engajadas política e criticamente.
Enfatizamos que parte dos críticos literários ainda acredita que os textos não têm cor, nem
gênero e nem classe (bem como seus produtores, críticos, acadêmicos). Nesse sentindo, nos
interessa problematizar questões como cânone literário, universalidade, tradição literária,
quebrando paradigmas da crítica tradicional ao trazer para a cena questões constantemente
esquecidas e negadas: os textos começam a ser compreendidos por outros pontos de vistas que se
preocupam em, primeiro, resgatar a longa tradição da escrita da e sobre a mulher negra,
contrapondo estereótipos e inferiorizações; segundo, que o conceito de universalidade e cânone
são ferramentas que perpetuam opressões e exclusões mascarados por discursos de neutralidade e
objetividade.

A figura histórica de Luísa Mahin, personagem na qual se molda Kehinde, talvez possa ser
pensada enquanto um lugar de memória da escravização. Os “lugares de memória”, como
proposto por Pierre Nora em conhecido ensaio, nascem da necessidade de se ter memória, ou
seja, de que não existe memória espontânea, sendo necessária a “construção” de aparatos que
impeçam que a mesma caia no esquecimento. São, antes de tudo “restos”, vestígios, lugares de
ritualização de uma memória-história envoltos por uma aura simbólica.

Para além de demonstrar uma obsessão pela existência ou não da personagem histórica, o
romance possibilita a emergência de uma variedade de experiências heterogêneas de personagens
negras, que muitas vezes contradizem e problematizam as imagens presentes na literatura dita
canônica brasileira e nos discursos historiográficos.
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Narrativas e cartografias da cidade de Salvador a partir de Um defeito
de cor, de Ana Maria Gonçalves
[150]
Gabriela Leandro Pereira

[151]
Sofia de Carvalho Costa e Lima

No Prólogo do livro Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves aponta que a obra foi “fruto da
serendipidade” (Gonçalves, 2006, p. 9), palavra traduzida da língua inglesa, que “passou a ser
usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa
enquanto estávamos procurando outra, mas para qual já tínhamos que estar, digamos,
preparados” (Gonçalves, 2006, p. 9). O mesmo argumento será mobilizado aqui para conectar a
obra da autora com os estudos sobre as cidades e a proposição de entendê-la enquanto conteúdo
cartográfico, ideia central desse artigo.

Apesar de não ser novidade a relação entre literatura e estudos urbanos, a especificidade de um
texto que tem como protagonista uma mulher negra, cuja vida transita entre diferentes países do
continente africano e distintas cidades brasileiras no século XIX, permite que emerjam questões
não dadas em outros contextos. Nesse sentido, também reivindicamos a serendipidade como
“responsável” por essa abordagem, uma vez que já estávamos mobilizadas reflexivamente para
construir leituras sobre tais relações[152], quando em 2015, foi reeditada pela décima primeira vez
o livro Um defeito de cor. Um encontro casual com a nova edição exibida entre os destaques e
lançamentos em uma livraria de Salvador – cidade que é foco e objeto da pesquisa das autoras,
para além de cenário de parte significativa do romance –, disparou uma série de projeções e
desejos de re-ocupar a narrativa sobre a constituição das cidades brasileiras, entendendo-a como
resultado e condição da presença de negros e negras africanos e afro-brasileiros, conferindo-lhes
o protagonismo que, de fato, tiveram nesse processo.

Seguindo as descobertas, o percurso de Ana Maria Gonçalves foi de mergulho em muitas


pesquisas, que subsidiaram a construção do romance sobre a vida de Luísa Mahin-Kehinde,
tendo como referência documentos variados – como a carta de Luís Gama à sua mãe perdida, e
outros que referiam-se à diferentes mulheres negras que viveram o mesmo período que a
personagem[153]. Essa narrativa, elaborada a partir de fragmentos, reinseriu Luisa Mahin nos
espaços da história, acionando um imaginário sobre o lugar da mulher negra no século XIX, em
especial na Bahia e na Revolta dos Malês. Ao fazê-lo, o texto de Ana Maria ativa também a
existência de uma cidade que foi amplamente dominada por mulheres como Kehinde. Ao
repovoar o imaginário do século XIX com protagonistas negras, repovoam-se também as cidades
enquanto lócus da socialização de negros e negras para além de sua condição de subserviência.
Em Um defeito de cor, negros e negras organizam-se, planejam futuros, economizam dinheiro,
festejam, realizam rituais religiosos, empreendem, se educam, se amam, dominam diferentes
línguas e, inclusive, enfrentam o sistema escravocrata, como se viu na Revolta dos Malês em
1835.

O deslocamento de Kehinde, narrado no livro, abarca desde sua saída de Savalú, Benin,
chegando ao Brasil como peça[154], sua vida e seus trânsitos no país, assim como seu retorno à
África, já liberta. Acompanhando o cotidiano da personagem, foram sendo concebidas respostas
imaginárias referentes a situações coerentes com o universo das pessoas que foram escravizadas.
Os modos de vida antes da captura, a viagem e as especulações formuladas para entender o que
estava acontecendo com elas, os locais de moradia, labor e religiosidade, já na Bahia, foram
temas e situações imaginadas graficamente. Walidah Imarisha (2016), em texto intitulado
Reescrevendo o Futuro, chama a atenção para a potência existente no ato de imaginar mundos.
Os malês re-imaginados por Ana Maria Gonçalves, chamam a atenção pela sua capacidade de,
em meio às adversidades, imaginar outros futuros. Para Imarisha (2016), apenas através da
imaginação do impossível, pode-se começar a concretamente construí-lo e, por isso, a
descolonização da imaginação é o mais perigoso e subversivo de todos os processos de
descolonização.

Das estruturas urbanas, a rua, sem dúvida, foi quase tão protagonista quanto a personagem
principal. Ela viabilizou formas de sobreviver e resistir ao sistema imposto aos negros e negras.
Em uma passagem do livro, aparece a descrição da dinâmica do centro da cidade, no qual a rua
apresenta-se como um lugar de relativa liberdade, uma alternativa à vigilância estreita do
trabalho das plantações e ricamente povoada por negros e negras oriundas de distintas Áfricas,
tornando a vivência do labor algo particular:

Durante a semana a cidade parecia uma grande feira, muito maior que as maiores
que eu já tinha visto, com pessoas correndo de um lado para o outro, apressadas,
gritando quem queria comprar isso ou aquilo, se oferecendo para carregar qualquer
coisa, perguntando quem precisava de cadeirinhas ou de algum outro serviço.
Andamos pela cidade baixa, pelos trapiches e armazéns, pelas áreas onde se
concentravam pessoas que realizavam o mesmo tipo de trabalho, como na Baixa de
Sapateiros (...) percebi que havia muito mais alternativas para os homens do que
para as mulheres. (Gonçalves, 2006, p. 241-242).

Esse trecho demonstra como a narrativa de Ana Maria Gonçalves é um potente gatilho na direção
de re-imaginar esse centro. Reposicionar a presença negra no mapa da cidade, com o intuito de
disputar os imaginários sobre seu passado, extrapola a dimensão cartesiana dos
georreferenciamentos e categorias físico-territoriais que instrumentalizam ações e intervenções
urbanísticas ou geotécnicas tradicionais. Pois, longe de ser um instrumento neutro, todo mapa
apresenta discursos específicos, que são mobilizados a partir de interesses ou objetivos definidos,
que revelam ou escondem determinadas lógicas, dinâmicas, objetos e relações existentes nos
territórios.

Para produzir cartografias que fizessem jus às questões caras a essa relação entre a obra de Ana
Maria Gonçalves e as cidades nela contida, foram construídas diferentes miradas metodológicas
que envolveram tanto o mapeamento georreferenciado dos lugares nomeados do livro; à criação
– através de colagens, desenhos, animações, desse – de imagens possíveis para esse passado
evocado pela autora. A criação de imagens a partir das pistas deixadas pelo livro, assim como as
cartografias, dialoga com a ideia de “direito ao olhar”, de Nicholas Mirzoeff (2016). Para o
autor: “O direito a olhar é uma recusa a permitir que a autoridade suture sua interpretação do
sensível para fins de dominação, primeiro como lei e, em seguida, como estética” (p. 749).

O mapeamento foi criado registrando geograficamente situações narradas no texto, utilizando


uma plataforma online, alimentada a partir do preenchimento de tabela, na qual foram
especificadas: a personagem principal e personagem secundário vinculadas à situação
identificada; ano do acontecimento; resumo da situação ou fragmento da narrativa que a trouxe;
localização (nome e coordenadas geográficas); e atribuição de palavras chaves para as situações
específicas. Deste modo foi possível realizar várias relações, como por exemplo, a vinculação
das fases de vida da personagem principal, com seus diferentes nomes – o de nascimento e o
nome do suposto batismo[155] –, e lugares vividos. Em Salvador, por exemplo, sua vida pode ser
dividida em quatro fases, vinculadas aos dois nomes utilizados, Kehinde e Luísa, que vão
variando a utilização de acordo com acontecimentos e os lugares nos quais está inserida.

É a partir dos nomes utilizados em diferentes fases da vida que a narrativa é decomposta
inicialmente, articulando as categorias citadas acima. A primeira compreende ainda a vida em
África, como Kehinde, ainda criança, vivendo com sua família completada. Ao chegar no Brasil
já capturada pelos colonizadores, manterá seu nome, mas percebendo a necessidade de se ter um
nome “de batismo”, adotará Luísa.

Entre nomes, lugares e relações, a história se desenrola, então: (1) com a compra da personagem
principal, que passa a morar e trabalhar com uma família em Itaparica, como escrava doméstica;
(2) sua mudança, posteriormente, para Salvador, quando inicia uma nova fase com o trabalhar a
ganho – e volta a usar Kehinde enquanto estava nas ruas, mantendo Luísa para dentro do Solar–;
(3) quando alcança a liberdade, assumindo o nome de Kehinde mais amplamente; (4) a volta à
África, quando seu nome de escrava ganha outro significado e ironicamente passa a ser chamada
de Sinhá Luísa (sendo a última fase de sua vida, fechando o ciclo com a volta).

(...) eu podia ter um nome brasileira e um outro africano, que um não atrapalhava o
outro(...) Mantive o Luísa, com o qual já estava acostumada, e acrescentei dois
apelidos: Andrade, que a sinhazinha tinha herdado da mãe dela, e Silva, muito
usado no Brasil. Então fiquei sendo Luísa Andrade da Silva, a dona Luísa, como
todos passaram a me chamar em África, os que já me conheciam e não estranharam
a mudança, e os que me conheceram a partir daquele momento. Alguns também me
chamavam de sinhá Luísa, a maioria dos retornados, e eu achava muita graça nisso,
principalmente quando, ao tomar conhecimento, a sinhazinha passou me chamar
assim nas cartas, de brincadeira. Ela era a sinhazinha e eu era a sinhá, e acredito que
nós duas pensamos em uma coisa que nem precisou ser dita, pois não era de bom
tom, mas eu, a sinhá, tinha sido mãe de um filho do pai dela, o próprio sinhô”
(Gonçalves, 2006. p. 789).

A sistematização e articulação de informações como essas, apontou quatro dimensões que


permeiam a narrativa: o labor, a moradia, religiosidade e a revolta.
Construção dos mapas

Cartografar as narrativas negras para acessar a cidade de Salvador, cidade de maioria negra,
significa trazer para o visível uma cidade que afronta a história narrada pelos colonizadores,
brancos e opressores. Tomar de assalto os mapas, instrumento poderoso de dominação e
controle, e recriá-los partindo da narrativa de Kehinde e de mulheres negras que partilhavam com
a personagem principal a partir do cotidiano da cidade no século XIX, significa repovoá-la e
reconquistá-la.

É precisa levar em conta que mapas e imagens auxiliam na construção da percepção


do espaço na aquisição do conhecimento e na síntese de informação geográfica (...)
mapas precisam ser compreendidos como mapeamentos conceituais, isto é, menos
como um modelo linear e sequencial de como organizamos os nossos conhecimento
no nosso cérebro e mais como um processo espacial multidimensional e uma
ferramenta instrutiva (...) (Seeman, 2013, p. 89-90).

A partir dessas chaves, a religiosidade, o labor, a moradia e a revolta de 1835, e das situações
correspondentes a elas, foram identificados lugares – referências que resultaram em três mapas
da trajetória de Kehinde em Salvador, a partir dos quais a cidade vai se revelando. Foram
mobilizadas para isso imagens de mapas, plantas, pinturas e fotografias que serviram de base
para suas criações: cinco mapas e plantas da cidade de Salvador e Recôncavo do século XIX,
localizadas no Arquivo Público do Estado da Bahia; um mapa do Benin, da plataforma digital da
Biblioteca Nacional da França; fotografias diversas da cidade disponíveis em sítios virtuais;
fotografias referentes à revolta de 1835, contidas em pesquisas e livros já realizados sobre o
tema, como “Rebelião Escrava no Brasil” de João José Reis; e imagens do catálogo da exposição
“Histórias Afro-Atlânticas” (2018, Instituto Tomie Ohtake e no Masp-SP).

Portanto, as cartografias sobre as quais falaremos a seguir, são o resultado dessa articulação de
fragmentos de documentos de cunhos historiográficos e literários, colagem e montagem de
mapas, plantas, fotografias e desenhos. Esses objetos de diferentes naturezas colocados em
relação, para criar imagens possíveis para essa cidade, reposicionam os imaginários sobre a
presença negra na cidade de Salvador ao expressar gráfica e cartograficamente as cidades
encontradas no livro.
Figura 1- Mapa Luísa Gama: Fase Ilha.

Fonte: Autoria de Sofia Costa.


Figura 2 - Mapa Luísa/Kehinde: Fase Solar
e Loja.
Fonte: Autoria de Sofia Costa.
De Kehinde para Luísa

A primeira cartografia, nomeada “Onde fica o estrangeiro? de Kehinde para Luísa”, é um


mapa/vídeo apresentando todo o trajeto de Kehinde desde Uidá (Benin) até a sua primeira parada
em Salvador, depois Ilha dos Frades e por fim, na Ilha de Itaparica. Esse mapa mostra a relação
que havia entre Kehinde e sua família, principalmente entre ela, a irmã Taiwo e a avó. O mapa
em movimento mostra as etapas, intensidade e rapidez do rumo tomado após sua captura. Vale
destacar os sentimentos e suposições de todos que estavam embarcando já escravizados para o
Brasil.

O fato de serem ibêjis[156] fomentou a captura de Kehinde e Taiwo para “o estrangeiro” devido à
crença de que ibejis davam boa sorte a quem os tinham. Capturadas para serem um presente, o
deslocamento até o estrangeiro revelou significados diferentes para os distintos grupos que
faziam a travessia: acreditavam que tornariam carne de carneiro para os estrangeiros e outros, os
muçurumins[157]; ou que estavam alí e passariam por dificuldade para enfim encontrar Alá. Ao
culto aos vodouns, cultura herdada por Kehinde da avó, Dúrójaiyé, cultuava, se juntam alguns
orixás. Para a elaboração das imagens e cartografias que dialogam com esses movimentos, as
representações das entidades que se relacionavam com a situação – os Ibêjis, que eram protetores
de Kehinde e Taiwo e Nanã – foram acionados através de suas cores. Nanã, entidade que é
“referência para pessoas idosas e respeitáveis, é a mais antiga. Representada pelas águas paradas
dos lagos e pela lama dos pântanos, de onde tudo se originou, é o princípio da fertilidade”
(Lopes, 2004, p. 466). Em pesquisas referentes a esses símbolos, percebe-se a predominância em
suas vestimentas de cores como rosa, verde, vermelho, amarelo e azul para os ibêjis e roxo e lilás
para Nanã. Tais referências compuseram a paleta de cores mobilizada para a criação gráfica.
Algumas situações específicas registradas em passagens do livro foram especialmente
importantes para a elaboração dessa proposta, por exemplo, a narrativa da morte da mãe e do
irmão de Kehinde, restando-a Taiwo e a avó: “Eu e a Taiwo já estávamos com medo de que ela
tivesse morrido também, quando afinal se levantou na manhã seguinte e começou a recolher as
roupas, panos, um pouco de comida e as estátuas de Xangô, de Nanã e dos Ibêjis” (Gonçalves,
2006, p. 25).

As ibêjis, espelho uma da outra, aparecem ligadas pelos olhos (Figura 3) e pelo pano que a mãe
vestia para carregá-las quando iam dançar no mercado da cidade. Na narrativa há um trecho que
explica a relação das duas irmãs e como eram vistas pela sociedade:
Figura 3 - Ibêjis Kehinde eTaiwo

Fonte: Autoria de Sofia Costa.


Ibejis dão boa sorte e riqueza para as famílias que nascem, e era por isso que minha
mãe podia dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro. Usava panos lindos para
segurar eu e Taiwo bem presas junto a ela, uma na frente e outra atrás. Ficávamos
olhando nos olhos e sorrindo por cima do ombro dela. Éramos pequenas e apenas os
olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro de minha mãe,
dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram
apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas (Gonçalves, 2006, p.
21).

As Ibejis foram inseridas, então no mapa dinâmico. Nele, o caminho feito pelo navio é
circundado por uma linha vermelha em espiral, demonstrando que as pessoas não sabiam para
onde estavam indo e quanto tempo ficariam em viagem. Era só mar e especulações sobre o
futuro. Por isso, como citado anteriormente, as pessoas acreditavam que virariam carneiro ou
veriam Alá. No mapa/vídeo essas questões ficam aparentes com o navio direcionado para elas,
até a viagem começar mantendo essas imagens mais apagadas, mas não totalmente esquecidas
por quem estava dentro do navio (Figuras 4.1, 4.2 e 5).

Figura 4.1 - Trecho do mapa/vídeo.

Fonte: Autoria de Sofia Costa


Figura 4.2 - Trecho do mapa/vídeo.

Fonte: Autoria de Sofia Costa


Figura 5 - Trechos do mapa/vídeo.

Fonte: Autoria de Sofia Costa.

Quando o dia amanheceu, os guardas formaram um grupo com todos os doentes que
tinham manchas na pele e disseram que seriam mais bem cuidados fora do porão.
Acho que todos já sabiam o que ia acontecer; que logo que nós descêssemos, eles
seriam atirados ao mar, mas ninguém protestou (Gonçalves, 2006, p. 59).

Na chegada em Salvador, surgem as primeiras impressões da cidade e do que estaria por vir.
Levada à Ilha dos Frades, Luisa/Kehinde foge do batismo e adota o nome Luísa, quando é
comprada por um senhor de engenho, José Gama, passando assim a se chamar Luísa Gama[158].
De Luísa para Kehinde e a Revolta de 1835

Os mapas 02 e 03 lidam cronologicamente com os acontecimentos narrados sobre a vida de


Kehinde após a sua chegada ao Brasil. Seus conteúdos se relacionam e se articulam na trajetória
da personagem. Os mapas se referem à vida de Kehinde e sua relação com o trabalho durante a
Revolta dos Malês, que ocorreu em 25 de Janeiro de 1835 em Salvador. Para elaborar esses
mapas foram mobilizadas referências dos orixás que acompanham a personagem durante toda a
sua vida, por isso, foram utilizadas as cores que representam Xangô e Oxum.

As entidades foram representadas nesses mapas sobretudo pelas cores utilizadas em seus
símbolos nas religiões afro-brasileiras. Em pesquisa foram encontradas as imagens de Oxum
sempre em dourado e amarelo e de Xangô com vestimentas em branco, vermelho e marrom. A
Oxum, orixá mãe de Kehinde, é quem a guia na relação trabalho-riqueza. A imagem de Oxum,
repleta de ouro, provê recurso para que ela atinja a liberdade, comprando sua carta de alforria. Já
Xangô, é aquele a quem Kehinde vai pedir sempre proteção e força, durante toda a narrativa, mas
principalmente quando a revolta está para começar.

O mapa 2, nomeado “Mapa do trabalho: de Luísa para Kehinde”, traz para o centro a relação
com os trabalhos exercidos. Em Itaparica se situa como escrava doméstica, servindo como
companhia da sinhazinha Maria Clara, com quem vai criar um vínculo de amizade. É a partir
desse trabalho que tem a possibilidade de aprender a ler escrever, com Fatumbi, um escravo
muçulmano que vai ficar por um tempo na casa ensinando a sinhazinha essas habilidades. Ana de
Lourdes da Costa, na dissertação intitulada Ekabó, explica que os escravos domésticos eram os
que “exerciam atividades no âmbito da casa do seu senhor, executando tarefas economicamente
não produtivas, compreendendo todas as ocupações que dizem respeito ao serviço de
manutenção da casa (...) são caracterizados sobretudo por não gerarem uma renda ao seu senhor,
diferenciando-os assim das outras categorias” (Costa, 1989, p. 62).

Como escrava doméstica, Luísa vive com os outros escravos que trabalhavam na casa grande, na
senzala pequena, no porão da casa grande, exclusivo aos escravos domésticos. Quando a
sinhazinha se muda para Salvador, para estudar em um colégio de freira, Luísa perde a sua
função dentro da casa grande e é transferida para trabalhar na lavoura, indo morar na senzala
grande. As condições precárias de trabalho e o senso de coletividade do grupo são marcas fortes
desse período, assim como castigos e a privação de liberdade. A cidade distante aparece apenas
como plano de fundo e projeto de futuro (Figura 6).
Figura 6 - Mapa do Trabalho, fase Luísa em Itaparica.

Fonte: Autoria de Sofia Costa .

Esméria disse que eu seria para ela, um brinquedo, e era como tal que eu deveria
agir, ficar quieta e esperar que ela quisesse brincar comigo, do que ela quisesse.
(Gonçalves, 2006, p. 78).

A linha do tempo em degradê em tons de vermelho/vinho – presença de Xangô – segue até o


momento da Revolta. O degradê do amarelo/marrom mais escuro até o amarelo mais aberto é a
representação da presença de Oxum.

A violência sexual marca em Luísa a transição da infância para a maternidade. Grávida do seu
primeiro filho, após falecimento de seu dono, muda-se com a viúva e poucos escravos
domésticos para um solar na Vitória, em Salvador. É em Salvador que nasce seu filho, e
ampliam-se os desentendimentos entre Luísa e a sua dona. Ainda como escrava doméstica, a
protagonista consegue burlar a vigilância para realizar a cerimônia de nome de seu filho em um
terreiro de um Baba indicado por Nega Florinda[159]. Banjokô, seguirá a tradição de colocar um
nome para proteção de um abiku[160].

Luísa é alugada pela família inglesa Clegg, moradores de um solar na Vitória, e passa a ter
contato novamente com muçurumins que ali trabalhavam e podiam fazer suas orações e reuniões.
Em retorno ao trabalho no solar da sinhá Ana Filipa, passa a ser escrava de ganho. Escravo de
ganho era o escravo “que trabalhava para fora da casa do seu senhor, exercendo principalmente
atividades relacionadas com o transporte de pessoas e mercadorias, (...) no comércio ambulante
vendendo os mais variados produtos (...)” (Costa, 1989, p. 44). O escravo precisava pagar uma
taxa do que recebeu para os seus senhores. Havia no entanto, alguma “liberdade” ao andar pela
cidade para vender seus cookies, desde que portadora de licença expedida pela Câmara
Municipal, a qual deveria ser solicitada pelo proprietário do escravo, contendo seu endereço, o
número de escravos que queria colocar no ganho, seus nomes, origem e ocupação (Costa, 1989,
p. 44).

Nesta fase de vida, a cidade cresce para Kehinde, que passa a conhecer o centro, as formas de
ocupação de cada rua, o cotidiano da cidade passa a ser o cotidiano de Kehinde. Aproxima-se
também dos planejamentos da revolução, encarregada de entregar um bilhete na loja[161] de
Manuel Calafete, local onde deu início à Revolta em janeiro de 1835. Morando na loja dos
muçurumins, deixando aos poucos de ser a escrava Luísa, consegue comprar a sua carta e a carta
de seu filho Banjokô devido a um ouro escondido na imagem de Oxum, que recebeu de presente
quando encontrou Maria Mineira Naê, a Agontimé, ainda na fazenda de Itaparica. Liberta, volta
a usar seu nome africano, Kehinde, e vai morar na Barra com seu novo parceiro, o Alberto, pai
do seu segundo filho. A partir daí, abre uma padaria na Graça, vende seus cookies fora da cidade
e passa a ter segurança financeira (Figura 7).
Figura 7 - Mapa do Trabalho, fase
Luísa/Kehinde em Salvador.
Fonte: Autoria de Sofia Costa

Na fase liberta, Kehinde passa a se envolver mais nas atividades relacionadas à Revolta dos
Malês, inclusive, abrigando em sua casa na Barra pessoas que estavam fugindo da escravidão, e
posteriormente, na sua loja, na Graça, os organizadores da Revolta de 1835. É por conta do seu
envolvimento maior com essas questões, que vai precisar visitar algumas festas que aconteciam
na cidade e conhecer alguns lugares onde aconteciam as aulas que os muçulmanos davam para os
novos adeptos da religião, pois Kehinde ficou responsável de distribuir as aulas preparadas por
Fatumbi, e assim, era possível que mais pessoas conseguissem entender as cartas que corriam
entre os negros com o planejamento da Revolta, em árabe: “Em vários pontos da cidade foram
montadas mais classes para os novos muçurumins aprenderem a palavra do profeta e, se possível,
a ler e a escrever em caracteres árabes” (Gonçalves, 2006, p. 507).
Figura 8 - Mapa do Trabalho, fase
Kehinde em Salvador.
Fonte: Autoria de Sofia Costa.

Chegando ao último mapa, intitulado de “Revolta e cidade em 1835”, que aconteceu em 25 de


janeiro de 1835, foram pontuados os locais que os escravos e libertos passaram enquanto
acontecia a revolta e também os locais onde ocorreu todo o planejamento para que ela fosse
possibilitada de acontecer. A cartografia é o resultado/resposta, como a Revolta de 1835, de toda
a exploração que as pessoas negras africanas passaram. A ideia deles era criar um mundo novo
no Brasil em que os africanos fossem as figuras dominantes e tivessem o respeito à vida e às
organizações sociais que existiam em África. Os caminhos tracejados foram utilizados para
complementar as informações dadas na narrativa, foram retirados do livro “Rebelião Escrava no
Brasil”, de João José Reis.

(...) e a rebelião começaria às quatro horas da madrugada do dia vinte e cinco de


janeiro daquele ano de um mil oitocentos e trinta e cinco. (...) Saí com o Fatumbi, o
Suleimane, o Buraima e o Mussé, pois os outros iriam depois em pequenos grupos,
para não chamar atenção, e nos reuniríamos na loja no Manoel Calafate. (...) O
Suleimane estava muito confiante, e apontava os carregadores de cadeirinhas
dizendo que seria a última vez que veríamos aquela cena, que olhássemos bem à
nossa volta e prestássemos atenção a todos os trabalhos e humilhações a que os
pretos eram submetidos, porque os dias de escravidão estavam acabando. (...)”
(Gonçalves, 2006, p. 516-517).

Figura 9 - Mapa da Revolta de 1935 - Representação das pessoas correndo dando destaque a Kehinde, no centro.
Fonte: Autoria de Sofia Costa[162]

(...) Todos já estavam vestidos com as roupas muçurumins (...). O Fatumbi disse
que as roupas também serviam para que ficássemos parecidos, o que dificultava o
reconhecimento por parte das autoridades ou o possível acerto de desafetos.
(Gonçalves, 206, p. 516-517).
Considerações finais

A Salvador revelada na narrativa sobre Kehinde, ou Luísa Mahin, nos faz refletir, povoa ruas,
praças, chalés e terreiros de um cotidiano negro no século XIX. Os detalhes do romance são
gatilhos para infinitas possibilidades de proposições imaginárias dessa cidade. Reconstruir o
passado da formação de Salvador passa por restituir o papel dos africanos nesse processo:

Ler Um defeito de cor é um levantar de véus de muitos ângulos que ficaram


encobertos pelas literaturas do século XIX e parte do XX e que vão sendo
desvelados por meio das descrições detalhadas. Por tudo isso, é um “documento”
importante dentro da literatura brasileira. Vale a pena lê-lo (França, 2012, p. 74).
Referências

COSTA, Ana Lourdes R. (1989). Ekabó!: Trabalho escravo, condições de moradia e


reordenamento urbano em Salvador no século XIX. Dissertação (Mestrado em Conservação e
Restauro) – Universidade Federal da Bahia, Salvador.

COSTA, Ana Lourdes R. (1991). Espaços negros: “cantos” e “lojas” em Salvador no século
XIX. Caderno CRH. Suplemento, p. 18-34.

FRANÇA, Anderson Silveira. (2012). Kehinde, símbolo da raça negra. Dissertação (Mestrado
em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.

GONÇALVES, Ana Maria. (2017). Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record.

REIS, João José. (2003). Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835.
São Paulo: Companhia das Letras.

SEEMAN, Jörn. (2013). Carto-crônicas: uma viagem pelo mundo da cartografia. Fortaleza:
Expressão Gráfica.
Nomes de ruas em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves
[163]
Lucie Josephe de Lannoy

Este artigo analisa a obra Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, lançada em 2006 e
publicada em sua 15ª. edição no ano de 2017. Ela foi uma das leituras realizadas pelo Grupo
Mnemosyne, Grupo de Estudos sobre Memória, História, Literatura, registrado na base de
Grupos de pesquisa, do CNPq, cuja líder é a professora doutora Sara Almarza.

O Mnemosyne tem como foco estudar a memória como processo que atualiza o nosso
pensamento com informações nem sempre presentes na consciência. Essas práticas mnemônicas
são construções ligadas à situação individual e social e em diálogo entre o passado e a realidade
atual, analisadas através de textos de ficção. O romance Um defeito de cor ilustra, por exemplo, a
história individual da personagem principal Kehinde e a história coletiva, do processo de
emancipação da escravatura ou da própria história do Brasil no século passado. O livro A
memória, a história e o esquecimento, de Paul Ricoeur (2007) tem orientado as análises de quase
todas as obras que o grupo vem estudando. Trata-se de um livro fundamental para entender os
sujeitos e objetos a partir das indagações sobre quais são os assuntos lembrados e quem são os
detentores das lembranças. Com isso, também é possível trazer à tona aspectos de significância
para a tradução.

E, ao refletir sobre o texto traduzido, outra obra, também de Paul Ricoeur (2011), Sobre a
Tradução, sustenta esse diálogo essencial entre literatura e tradução. Aliás, Ricoeur concebe o
próprio ato de traduzir como diálogo, dentro da pulsão de traduzir, ou melhor, de retraduzir. Pois
é na retradução que se observa melhor a pulsão de tradução, sustentada pela insatisfação no que
tange às traduções existentes (Ricoeur, 2011, p. 26-27). Ricoeur nos acompanha ainda na
renúncia à tradução perfeita. Ele se apoia em Freud para compreender como traduzir se relaciona
com a lembrança e com o luto.

Podemos relacionar a lembrança a tudo o que evoca um romance histórico, o compromisso com
um projeto de tradução que resgate, por exemplo, os nomes das ruas referidas na obra, pois até
onde não seriam elas (e os seus nomes), nos termos de Ricoeur (2011, p. 25), “condensações de
textualidade longa, nas quais contextos inteiros se refletem”? Já o luto nos remeteria às perdas
que ocorrem ao traduzir, uma vez que as visões de mundo próprias de cada língua sofrem
transformações no sentido da temporalidade e da espacialidade. Pois mesmo as unidades de
tradução, sendo em si carregadas de um dado sentido, esse será percebido conforme a carga
cultural do leitor.
Ao contemplar a literatura como a linguagem de um corpo e descrevermos cidades como corpos
estendidos ao longo da obra, cujas veias são compostas pelas vias, vielas, ruas, ladeiras, becos,
avenidas citadas no texto, consideramos que elas comunicam tanto quanto os personagens
apresentados no romance. E podemos dar forma a um corpus para a tradução cuja consistência se
compõe de reflexões das teorias literárias e da tradução. Desse modo, a própria cidade se vê
transformada pela significância dos nomes das ruas inserida nesse pensamento.

Grande parte do romance Um defeito de cor (Gonçalves, 2006), se passa na cidade de Salvador,
Bahia, em finais do século XIX e inícios do século XX. Interessante constatar que, apesar da
cidade ter muitos nomes de ruas em línguas africanas e ou indígenas, nesse romance, se
destacam os nomes em português e os mesmos trazem uma carga histórica e cultural, conforme
apresenta-se a seguir.

Como o próprio título da obra, por remeter, ao fato de que na época colonial, o negro pretendente
a cargo público tinha que assinar documento abdicando oficialmente da cor da pele, uma vez que
os mesmos só podiam ser ocupados por brancos, é um indício de que nada é nomeado à toa ou
arbitrariamente no livro, assim também o nome das ruas foi selecionado, de certo modo, para
corroborar com um entrelaçamento entre a pesquisa intensa dos arquivos históricos e o que veio
a se constituir como imaginário social e cultural representado na ficção.

Um defeito de cor narra a história de Kehinde, o leitor acompanha as dores e dissabores da sua
memória. Ela foi capturada no Daomé (Benin), aos oito anos de idade; lembra da travessia no
navio negreiro para o Brasil, chegada à ilha de Itaparica, a mudança para Salvador, as andanças
por cidades do recôncavo baiano, por Santos, São Paulo, a ida para São Sebastião e o regresso
para África. A saga de Kehinde atravessa oito décadas, remete a uns trezentos personagens e
fatos históricos. Rebeliões, como a famosa revolta dos Malês, escravos muçulmanos cultos que
pensaram em instalar o Califado de Bahia, lutas pela liberdade como a da própria Kehinde, que a
conquista aprendendo a ler, escrever e falar inglês. E lhe permite ir à procura, desesperada, de
um filho vendido. Madura e liberta, Kehinde volta à África, vira “industrial”, casa com negro
“inglês” e, já velha, tenta voltar ao Brasil, aonde nunca chega.

A tradução pode se expandir em explanações dos provérbios, das tradições orais, da música, de
aspectos culturais não apenas para recriar uma época, seus hábitos, costumes, acontecimentos
com respectiva influência política e social. Pois, se estes compõem o romance histórico, aqueles,
ao predominarem na ficção, possibilitam uma versão dos fatos, com que criam um passado
possível, mas não necessariamente real.

Contudo, os nomes das ruas e as descrições das mesmas, compõem a transição que, de fato,
ocorreu em Salvador, durante o processo de modernização no início do século XX. Sabemos que
o mesmo ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, retratada, entre outros, no romance de Silviano
Santiago, Machado, uma elaboração dos últimos cinco anos de vida de Machado de Assis. As
descrições desses lugares narrados nos romances e relatos de rua representam um primeiro e
imenso corpus identitário. Em outras palavras, conforme Certeau (1998, p. 202), a descrição
oscila entre os termos de uma alternativa: ou ver (é um conhecimento da ordem dos lugares), ou
ir (são ações espacializantes). Ou então apresentará um quadro (“existe”), ou organizará
movimentos (“você entra”, “você atravessa”, “você retorna”...). Entre essas duas hipóteses, as
escolhas feitas pelos narradores privilegiam a primeira.

Figura 1 - Vista do Porto de Salvador no século XIX. Schleier.

Fonte: http://www.cidade-
salvador.com/seculo19/schleier.htm

Para exemplificar, vemos, como indica o subtítulo “A primeira casa”, que a primeira moradia da
Kehinde, fica na ilha de Itaparica (p. 73). A seguir, os trechos do percurso que aparece no
romance, citados na versão ao espanhol realizada pela tradutora Lourdes Arencibia Rodríguez
(2008), remetem à saída de Itaparica.

Observa-se que o subtítulo “San Salvador” relata como ela sai da ilha para chegar à cidade:
“Salimos caminando por la playa en dirección opuesta al espigón del ballenero y al cabo de
quince minutos de caminata, al paso corto y rápido de la negra Florinda, divisamos un bote”[164]
(p. 159). A descrição do percurso não situa, apenas, o leitor no espaço físico, estabelece também
a relação com valores simbólicos. Pois, como diz Certeau (op. cit., p. 88): “O jogo dos passos
molda espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam
‘um desses sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade’, mas ‘não tem nenhum
receptáculo físico”. E de fato, o tempo de quinze minutos e o ritmo do passo curto e rápido,
acima descritos, traduzem também um sentimento de apreensão, de alerta, tão presentes para o
leitor quanto a descrição do espaço físico.

O relato que se segue sobre os pontos da cidade pelos quais os personagens passam remetem ao
que Certeau (op. cit., p. 92) indica como sendo “um indício da relação que as práticas do espaço
mantém com essa ausência que é precisamente fornecido por seus jogos sobre e com os nomes
“próprios”.

Na página 159: “En mi memoria quedaría para siempre grabada la imagen de San Salvador aquel
día”[165]. E a narradora faz uma observação sobre o impacto dessa imagem na memória:

Años más tarde, en África, a tantísimos kilómetros y pasado tanto tiempo, cuando
recordaba a Bahía e incluso a Brasil, eran aquellas impresiones y sensaciones las
que me venían a la mente. Todavía hoy recuerdo los nombres de las plazas y calles
que recorrí por años y años, por donde muchas veces volví a pasar (p. 159)[166].

A imagem se apresenta como reminiscente na memória, e, dessa forma Aristóteles apud


Paul Ricoeur (2007, p. 38) explica que: “a noção de distância temporal é inerente à essência da
memória e assegura a distinção de princípio entre memória e imaginação”. Já o nível de
percepção de uma cena vivida, estaria à mercê de uma cadeia de operações, que geram suspeita
ou confiança a partir “da retenção da lembrança, para se concentrar na fase declarativa e
narrativa da reconstituição dos traços do acontecimento” (op. cit., p. 171). Explorar essa
profundidade do tempo no presente conduz à necessidade de não saber apenas os nomes das ruas,
mas o que eles evocam ao permanecer inalterados através dos anos e rememorados por
personagens do romance.
Ao retomar a passagem da chegada a Salvador, a narradora prossegue com a
descrição da cidade: “Cuando el barco bordeó el Fuerte de San Marcelo” (p. 159)
[167]
; “Algunas edificaciones, las más altas, tenían três, cuatro y hasta más pisos, y
muchos templos y palacetes parecían flotar por casualidad en el cielo” (p. 160)[168].
E oferece ao leitor uma imagem fotográfica, uma vez que convoca um espaço
urbano quase isento de movimento, ruídos ou cheiros (Al desembarcar): “un camino
desde el muelle a la calle principal de la parte baja de la ciudad” (...) “y hasta en el
propio Arsenal, (...), aquella mañana estaba desierto”. (...) “Tampoco la fetidez de
los objetos abandonados en la calle era fuerte” (p. 160)[169].

Figura 2 - Forte de São Marcelo


Fonte: http://www.funceb.org.br/images/revista/6_9h7l.pdf

O fato de se descrever a cidade no seu lento despertar parecendo um corpo que se despreguiça ao
amanhecer entre becos nos quais ao abrir os braços forma-se um obstáculo à passagem, e outros
pontos estreitos e sufocantes cujas construções podem desabar pela força de obras na parte alta
da cidade, configura, em parte, um pensamento que se retarda, ainda adormecido, pois: “Los
nombres de los lugares los vine a saber después” (p. 161)[170]. Entretanto, esse panorama que
parece pender ora para o sono, ora para a vigília, adquire a função de contextualizar uma
reflexão, justamente, sobre a Ladeira da Preguiça (Figura 3).

Figura 3 - Ladeira da Preguiça.


Fonte: http://charlesfonseca.blogspot.com/2018/08/ladeira-da-preguica-salvador-bahia.html

“Aquel día íbamos a una edificación donde funcionaba un hospicio. Doblamos hasta llegar a un
costado de la Ladera da Preguiça, desde donde había que subir por un camino escarpado” (p.
161)[171]. A Ladeira da Preguiça foi uma das três primeiras ladeiras construídas em Salvador, data
do século XVII, após a Ladeira da Misericórdia e a Ladeira da Conceição. A Ladeira da Preguiça
ligava o porto à Cidade Alta.

Há uma imagem folclórica de que os baianos em geral, são preguiçosos e que esse nome vem de
reclamar do trabalho pesado. No entanto, a história do nome da Ladeira da Preguiça remete às
mercadorias que eram transportadas do porto à cidade Alta nas costas dos escravos e em carretas
puxadas por bois e empurradas por escravos. A elite da época que residia nos casarões ao lado da
via se divertia gritando: “sobe, preguiça!”, ao presenciar escravos subindo penosamente sob o
peso de sacos de mais de 60 kg ou empurrando as carretas abarrotadas[172].

Como sinaliza o exemplo acima “os nomes próprios cavam reservas de significações escondidas
e familiares” (Certeau, op. cit., p. 92). Por um lado, o nome da ladeira parece remeter antes ao
estereótipo do baiano preguiçoso do que ao fato que deu origem ao nome da mesma. Certeau
explica também como esses nomes criam um não-lugar nos lugares:

Certamente, os processos de caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de


modo a transcrever-lhe os traços (aqui densos, ali mais leves) e as trajetórias
(passando por aqui e não por ali). Mas essas curvas remetem (...) como palavras, à
ausência daquilo que passou. Os destaques de percursos perdem o que foi (...). Só se
deixa, então, captar um resíduo colocado no não-tempo de uma superfície de
projeção. Visível, tem como efeito tornar invisível a operação que a tornou possível.
Essas fixações constituem procedimentos de esquecimento (Certeau, op. cit., p.
176).

De fato, o sentido original da Ladeira da Preguiça parece ter sido esquecido. O que de fato
aconteceu, torna-se no o nome inscrito “invisível à operação que o tornou possível”. Por isso,
então, o tradutor precisaria dar um trato simbólico ao nome, inscrevendo o lugar num código de
relações por onde se resgate o caminhar do escravo como um enunciado que permita lembrar
uma maneira “outra” de se estar no mundo, e, também, no texto, por meio de algum recurso
complementar à tradução existente, acrescentando, talvez, uma nota do tradutor.

Ao continuar a leitura do romance: “En silencio, para tomar aliento, inclinábamos el cuerpo
hacia delante, marchábamos siguiendo las construcciones y las paredes de la sinuosa Rua
Direita da Preguiça” (p. 161)[173]. Os personagens transitam pela “torta Rua Direita da Preguiça”,
outra ladeira que vai dar no Largo das Portas de São Bento. O fato da rua Direita ser uma rua
torta também chama a atenção pois, insinua não apenas uma questão do “duplo” na literatura, na
sociedade e, até mesmo, na tradução, pois “se o valor gravado (histórica e cronologicamente)
perde, como moeda gasta, o seu valor, a sua capacidade de significar sobrevive” [por razões
sabidas e não sabidas] (Certeau, op.cit., p. 92), da polissemia que lhe oferecem passantes,
leitores, tradutores.

O romance comporta uma longa enumeração de direções percorridas a pé pela Kehinde junto a
outras personagens ao longo da cidade de Salvador. Elas chegam, desde a Rua Direita da
Preguiça, à parte mais alta da cidade, ao lado do Palácio do Governo. Depois cita-se a Praça do
Palácio e descreve-se uma série de prédios como a Cadeia Pública, a Casa da Moeda, a Câmara
Municipal. Ainda vão caminhando em direção ao Terreiro de Jesus e à Catedral da Sé; no Paço
da Catedral, fica um templo que tinha sido dos jesuítas, depois foi colégio, hospital e cedeu lugar
à Faculdade de Medicina. Os percursos por ruas de pedras e de terra passam por muitas
freguesias, constata-se a diferença de espaços entre as partes mais altas e mais nobres e os
amontoados de baixo: “aparecian algunas construcciones que pese a ser pequeñas casi siempre
se apoyaban unas en otras, pero cuando eran grandes, las separaban inmensos jardines” (p.
162)[174].

A composição da cidade reflete determinada situação social, determinados costumes que com o
passar do tempo se constituem em traço cultural e configuram a tradição do lugar. Berman
(2013, p. 164), nos lembra que “a tradução não é somente interpenetração, mas também tradição”
e pesquisa na retradução um horizonte de abertura à tradição: “Eu me refiro não somente a
princípios de tradução, mas a uma certa ancoragem na língua e na literatura da cultura na qual se
traduz” (Berman, op. cit., p. 165). Podemos, de certa forma, apontar para um diálogo entre as
línguas, na Trad. porsta obra ao espanhol, aberto pelo viés cultural da época colonial. E também,
pela prática da tradutora deste livro (o qual ganhou o prêmio Casa de las Américas em 2007),
Lourdes A. Rodríguez, que realizou o trabalho em conjunto com a Delegação de Cultura de
Córdoba, com o Centro Cultural Generación del 27, com o CEDMA de Málaga e em
colaboração com a Casa do Tradutor de Tarazona, Espanha.

O Largo do Pelourinho (hoje no centro histórico da cidade de Salvador) figura junto a tantas
outras partes inseridas no relato que se imbrica com informações históricas, como por exemplo:
“Cruzamos frente a la iglesia de Nuestra Señora del Rosario de los Hombres Negros (...), aquel
templo lo había construído una hermandad de negros bantúes” (p. 163)[175]. E a essa narrativa
segue um percurso de Kehinde pela Praça da Sé que limita com o Terreiro de Jesus e pelo templo
da Irmandade dos Clérigos de São Pedro de onde saem ruas em direção as outras freguesias da
cidade. Já perto da Igreja da Ordem terceira de São Francisco, as personagens descem em direção
ao Largo do Pelourinho. Pois, o solar para onde foram trabalhar fica no Corredor da Vitória, rua
estreita ao lado esquerdo de quem ia da Freguesia da Fé à Freguesia da Graça. De descrições
como essas podemos fazer uma leitura poética, a Vitória sendo uma rua estreita, e as dificuldades
que viriam desafiariam a Fé para só se contar com a Graça. Alguns lugares se prestam a
momentos felizes, como o local onde Kehinde batiza o filho, na Freguesia do rio Vermelho e há
um encontro com o Babalaô onde poder dar nome africano ao Banjokô.

As profissões e a possibilidade de comprar a emancipação acontecem, também, nas ruas. O


tabuleiro da quitandeira ficava em frente à Santa Casa de Misericórdia. Na Cidade baixa, os
nomes das ruas representam profissões: Baixa dos sapateiros, rua dos tapeceiros, rua dos
barbeiros, rua dos alfaiates, rua dos trançadores de palha, rua dos marceneiros, rua dos
trapicheiros, revelando o lugar dos trabalhadores, confirmando a divisão social do espaço,
enquanto a Cidade Alta aparece, em contraste, como sendo um lugar seguro, policiado, mais
organizado.

Há uma cena no livro na qual Kehinde e Adeola caminham em direção ao Pilar. Aldeola, negra
liberta, morava perto de Santo Antônio Além do Carmo, hoje é um lugar de boemia e de artistas,
o bairro Totem, de Salvador. No romance, ao irem em direção à Freguesia da Barra, vão:

Por aquellas calles de tierra que subían y bajaban pendientes, atravesaban zonas
despobladas y charcos inmundos y malolientes, para desembocar de nuevo a calles
con casas a ambos lados, luego de pasar por fuertes, iglesias, conventos e
imponentes edificios junto a casuchas más sencillas. (...) La ciudad parecía que
desaparecía, pero, si continuábamos caminando (...), la ciudad reaparecía con otras
formas (p. 306)[176].

O perfil da cidade, como vemos, não é composto apenas pelas ruas, citam-se lugares como o
Engenho Armação de Bom Jesus do Barão de Pirajuama, as pedras irregulares que compõem os
caminhos, as praias, os morros, os campos e estamos apenas no capítulo quinto. Mas, todas estas
referências às ruas, aos seus nomes e características fazem refletir e levam o tradutor a perceber,
na pesquisa, uma prática de tradução menos etnocêntrica, uma vez que segundo adverte
Meschonnic (2010, p. 31): “A tradução transforma o outro no mesmo. A tradução é, então,
aquilo que ela é muitas vezes, o etnocentrismo e a lógica da identidade – o apagamento da
alteridade. Nisso ela só faz realizar um programa que a deixa para trás”.

Até a metade do século XX, muitas práticas culturais dos povos que se achegaram à Bahia foram
reprimidas, ficaram proibidas, era caso de policiamento, não apenas práticas religiosas, o livro
percorre um leque de saberes, costumes, resistências ao embranquecimento da cidade. Se narra a
revolta dos malés, africanos muçulmanos eruditos e muito organizados que serão aniquilados, há
uma série de levantes, revoltas, rebeliões, a rebelião em Itaparica, a dos quilombos, uma saga
fantástica.

Esse silenciamento forçado no corpo da cidade, é por meio de marcas nas ruas, que se pode dar
atenção ao ritmo dos acontecimentos. Esse pulsar da cidade vai ao encontro da pulsão de
traduzir. E hoje, por exemplo, apesar da modernização, há em Salvador, o que se chama de
“quebrada”, lugares perigosos em meio à construção moderna, figuram como látegos marcando
cicatrizes no corpo da cidade, como outrora no corpo de Kehinde.

As ruas, com os seus nomes, sinalizam percursos da história e da tradução por meio da
hospitalidade linguística. Para Paul Ricoeur, a memória não é confiável, mas os nomes carregam
traços dela; para assim recompormos versões do romance histórico. Ladeira do Desterro, Beco
da Agonia, Largo dos Aflitos, Beco das Chagas, são nomes que sobreviveram à modernização de
Salvador, e parecem confirmar que já haveria, então, como afirmou Dussel[177], uma primeira
Modernidade precoce: a da reação da Cristandade diante da alteridade composta nas colônias de
Espanha e Portugal, pois, esses nomes estão impregnados tanto do Cristianismo quanto da dor da
escravidão.

Nesse sobe-desce de ladeiras entre Cidade Alta e Cidade Baixa, um “não-lugar”, conceito caro a
Certeau (1990), espaço da tradução entre a história e a ficção, espaço de manifestação pública,
das ruas que representam uma realidade silenciada e que resiste, a cultura e a pesquisa intensa,
necessária ao romance histórico, instigam o tradutor a ir por caminhos multidisciplinares, que
são teóricos, mas também de experiência poética da tradução.

Esse diálogo entre processos invisíveis que se tornam visíveis, entre a desconstrução e a
reconstrução, entre a descontextualização e a recontextualização, o desafio da escuta e do ritmo
do texto, mostra que a “potência do ínfimo”, nas palavras de Meschonnic (2010), nos impele a
estar perante o outro e seu outro mundo, a desinstalar o adquirido e a desafiar novos conceitos
para a tradução e para a retradução.

Para quem navega no convés do navio negreiro e àquele a quem só resta o naufrágio, mas
contempla a paisagem submarina, sua beleza oculta, seus tesouros de resiliência, fragmentos de
memória, há vida submersa no dado em branco e preto, de papel e tinta. Em vez de refratarem
cores como defeito, as múltiplas disciplinas, em um leque de tons e nuances abordados,
configuram um imaginário cuja significância estaria em poder contribuir para uma leitura
aprimorada sobre a cidade-corpo da tradução.
Referências

BERMAN, Antoine. (2013). A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. 2. ed. Trad. por:
Marie Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andreia Guerini. Tubarão: Copiart; Florianópolis:
PGET/UFSC. Trad. de: La traduction et la lettre, ou l’auberge du lointain.

CERTEAU, Michel de. (1998). A invenção do cotidiano. 3. ed. Traduzido por Ephraim F. Alves.
Petrópolis: Vozes. Trad.de: L’invention du quotidien.

GONÇALVES, Ana Maria. (2010). Um defeito de cor. 6. ed. Rio de Janeiro: Record.

GONÇALVES, Ana Maria. (2008). Un defecto de color. Tomo 1. Trad. por Lourdes Arencibia
Rodríguez. Habana: Fondo Editorial Casa de las Américas. Trad. de: Um defeito de cor.

MESCHONNIC, Henri. (2010). Poética do traduzir. Trad. por: Jerusa Pires Ferreira e Sueli
Fenerich. São Paulo: Perspectiva. Trad. de: Poétique du traduire.

RICOEUR, Paul. (2011). Sobre a tradução. Trad. por: Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Ed.
UFMG. Trad. de: Sur la traduction.
Circulação de Mundos no Romance e colonialidade nacional
prescrita na narrativa da experiência histórica negra
[178]
Fernanda Rodrigues Miranda

Oh paz infinita poder fazer elos de ligação numa história fragmentada.


Eu sou Atlântica.
O que é a civilização africana e americana?
É um grande transatlântico.
Ela não é uma civilização atlântica, ela é transatlântica.

(Beatriz Nascimento, “Ori”, 1989)

Um defeito de cor (2006)[179] é um romance escrito como uma busca, uma “tentativa de encontrar
caminhos” (Gonçalves, 2017), revirando ruínas históricas e ruínas internas. Segundo Ana Maria
Gonçalves, “é sobre como, a partir do momento em que nossos ancestrais atravessaram esta porta
em África, a Porta do não Retorno, sob a qual deveriam abandonar todas as memórias, passamos
todos a habitar um não lugar” (Gonçalves, 2017). Deste “não-lugar” configurando sua condição
de ser da diáspora, a única escolha que lhe cabia, diz a autora, era “olhar pra trás para saber de
onde vinha” (Gonçalves, 2017): gesto que gera o romance.

Um romance confeccionado com a tecnologia de abrir pontes entre temporalidades, entre


experiências históricas, entre potências do feminino negro. Narrativa que reconta o passado
forjado no Atlântico, desde a perspectiva de quem foi retido e sentiu a “pior de todas as
sensações, mesmo não sabendo direito o que significava, a de ser um navio perdido no mar, e
não a de estar dentro de um” (Gonçalves, 2014, p. 61).

Ainda segundo a autora, trata-se de um romance de construção da sua própria identidade, pois foi
no processo de escrita que ela se descobriu e entendeu negra. Um romance de formação da
autora – em sentido estrito[180].

Vencedor do Prêmio cubano Casa de Las Américas de 2007 na categoria “literatura brasileira”, o
livro costuma ser comparado ao clássico romance Negras Raízes (1976), de Alex Haley, que
narra a genealogia de uma família afro-americana por meio da experiência do africano Kunta
Kinte na escravidão e resistência negra secular nos Estados Unidos.

Composto por dez capítulos e quase mil páginas de texto, Um defeito de cor é resultado de uma
pesquisa profunda acerca da sociedade brasileira escravista do século XIX, indo, sobretudo, em
direção às pessoas negras que foram forçadas a vir para o Brasil e aqui construíram novos
enredos. Como resultado, o próprio romance se substancializa como suporte de pesquisa, no
sentido de abrigar uma infinidade de conteúdos que dão vida, pela ficção, a um repertório imenso
de referências culturais, religiosas, históricas, geográficas, políticas, afetivas etc., envolvendo a
experiência negra na diáspora brasileira.

Ao final do livro a autora avisa que a obra mistura ficção e realidade e “para informações mais
exatas e completas sobre os temas abordados”, sugere uma bibliografia de obras literárias e da
história e sociologia, além de referir fontes primárias consultadas em arquivos históricos –
materiais a partir dos quais o leitor poderá fazer sua própria pesquisa. Dessa forma, o romance
insere o leitor em um universo de conhecimento no qual ele pode tornar-se também um leitor-
pesquisador em busca pelo entendimento da matéria histórica da qual se parte para construir a
ficção. A mesma busca, em essência, que guia a autora na construção do romance.

Narrando a trajetória da busca do enredo para sua ficção, Ana Maria Gonçalves nos conta, no
prólogo, do projeto de escrever sobre o levante dos Malês, ocorrido em Salvador, em 1835, por
agência de negros mulçumanos que objetivavam libertar os escravizados e tomar o poder local.
Esse projeto a fez mudar para a capital baiana e, segundo ela conta, resultou em um encontro
casual com um manuscrito em português arcaico esquecido a muitos anos.

A autora apresenta o romance como uma tradução livre desse manuscrito autobiográfico, escrito
por uma africana que foi escravizada, tornou-se livre e morreu na velhice. Afirma que “apenas
alguns trechos” do romance são ficção e foram escritos para cobrir partes perdidas do “original”.
Diz ela: “Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda inventada
– embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis ou nas folhas perdidas (...). Se
eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria nunca seria contestada” (Gonçalves,
2014, p. 16).

O prólogo do romance, assinado pela própria Ana Maria Gonçalves, atribui o conteúdo da
narrativa a um manuscrito “originário” imaginário. Por conseguinte, a autora formaliza, nesse
engenho, um ato de ficcionalização do próprio processo de composição do texto. Posto que “a
ficção pode reivindicar um valor de verdade” (Goody, 2009, p. 38), se constrói, no prefácio, uma
categoria de verdade testemunhal, que através de memórias ficcionais, deslinda aspectos da
História.

Isso significa que a autora constrói um pré-texto que já inscreve na matriz da história a mulher
negra como sujeito da ação e da fala – como se, num gesto performático, pudéssemos voltar no
tempo e arrancar a máscara da princesa Anastácia para que suas palavras ecoassem sem
obstáculos: Ana Maria Gonçalves constrói um recurso ficcional que dá palavra contra o silêncio
a que a História relegou as mulheres negras.

Durante algum tempo, a autora precisou insistir em declarações que confirmavam a


ficcionalidade da história, pois muitos creditaram ao prólogo o valor de uma descoberta
documental de proporções monumentais, afinal, fontes históricas que registraram a vida dos
negros no passado são raras e escassas, principalmente escritas pelos próprios sujeitos negros.

O artifício do manuscrito imaginário é uma metáfora da própria construção de uma narrativa (da
experiência história negra) que jaz(ia) submersa no esquecimento, apagada pela História. A
ficção assume a potência de criar um mundo, um tempo e uma comunidade, indo de encontro às
lacunas e silenciamentos que modulam aquilo que a nação sustenta como passado. É também
metáfora das continuidades, que liga a ancestralidade às buscas, perguntas e demandas da mulher
negra no tempo contemporâneo: antes da primeira palavra da primeira pessoa que narra,
incorpora-se um texto anterior, como pegadas na areia de “passos que vem de longe”,
enunciando os vestígios de outro sujeito e outro tempo. No prólogo-performance, a autora sugere
que o manuscrito teria sido produzido por Luiza Mahin – referência fundamental reivindicada
pelo pensamento feminista negro brasileiro.

Nesse ato, a narrativa compõe uma história para Luiza Mahin, a quem João José Reis definiu
como “um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário” (Reis, 2003, p. 303).
Aqui, Um defeito de cor estabelece seu intertexto fundamental, qual seja, Luiz Gama,
responsável pela primeira menção documentada de Luiza Mahin: a carta que escreveu para o
jornalista e amigo Lúcio de Mendonça, na qual reivindica a africana como sua mãe e fornece as
primeiras referências sobre ela (como nome, descrição física, temperamento, etc.). Segundo a
leitura de Ligia Ferreira (2001), nessa carta Luiz Gama desenha uma figura lendária.

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de
nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha
mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro,
tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e
vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma
vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de
escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da
Revolução do Dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais
voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse
encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-
me sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma “casa
de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus
companheiros desapareceram. Em opinião dos meus informantes que esses
“amotinados” fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava
rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude
alcançar a respeito dela. (Gama, 1880. Apud: Ferreira, 2011, p. 199-204).

Luiz Gama escreveu essa carta quando estava no auge do seu prestígio na sociedade paulistana,
um pouco antes de sua morte, motivada pelos agravamentos do seu estado diabético. A carta,
portanto, foi composta à beira de seus últimos dias. Disso, como chama atenção Dulcilei da
Conceição Lima (2011), o romance Um defeito de cor fará citação direta, pois também ali,
Kehinde, à beira da morte e cega, acometida pela mesma doença do poeta, dita a carta remetida
ao seu filho à sua companheira de viagem na travessia derradeira que faz de volta ao Brasil, em
busca do primogênito perdido. Assim, se a carta escrita por Luiz Gama representa o primeiro
índice de existência da africana insurreta através do tratamento dado pelo poeta à figura materna,
a carta de Kehinde vai na direção da resposta: uma carta de mãe para filho.

Essa narrativa, que aponta para um diálogo imaginário, é carta-testamento destinada a ser
herança de seu filho perdido, e posiciona Luiz Gama como narratário do texto. Antes, a presença
do autor é invocada já no título do romance, que toma sua origem a um poema de Gama[181].

Tais componentes pré-textuais (o título, o prólogo) são a porta de acesso ao universo pulsante de
Ana Maria Gonçalves, já apresentando o procedimento do romance de forma compactada: tomar
a ficção como meio de tornar o passado contingente. Desde o processo de composição, a obra
busca uma enunciação coletiva, visto que diversos documentos como cartas de alforria, anúncios
de compra e venda e anúncios de fugas de escravos publicados nos jornais do período de
escravidão serviram de fonte e de matéria prima para a construção das personagens. Estes
anúncios traziam poucos detalhes sobre a vida dos escravizados, em geral informavam a região
de onde provinham, algumas características físicas, habilidades que tinham. Ana Maria
Gonçalves adentrou a pesquisa por estes vestígios para que sua protagonista possuísse voz capaz
de aproximar-se de uma tradução da experiência negra feminina colonial. Assim, a montagem
com diversos fragmentos de histórias de mulheres que viveram em tempos aproximados ao
período de vida de Luiza Mahin foi fonte de construção de Kehinde.

Esse procedimento tem duas funções na economia do texto: primeiro, alinha a matéria histórica à
tessitura narrativa, alimentando o “real” da obra com índices documentais; segundo, retira os
homens e mulheres dos anúncios da condição de objeto e lhes dá uma história, tornando-os
sujeitos – com nome próprio, laços familiares, pertencimentos afetivos, projetos, biografia.
Amplia-se, nesse gesto, o ato primeiro de Maria Firmina dos Reis, que em seu romance, no
século XIX, inscrevera o negro como sujeito pela primeira vez na ficção brasileira.

Visto ainda por outras camadas de significação, ao inventar um manuscrito para sustentar a
veracidade de sua história, a autora nos leva a pensar nos frágeis limites documentais (isto é, de
arquivo) nos quais repousa a experiência histórica negra no Brasil. E, por outro lado, responde
com engenho e arrojo à lógica colonial de tomar construções racistas como postulados científicos
e documentais que, por mais ideológicos que pudessem ser, eram insuspeitos, devido à
autoridade dos seus enunciadores.

Uma reflexão sobre isso já se encontra na tensão primordial da obra de Lima Barreto frente às
teorias raciais vindas da Europa e adaptadas ao contexto local como verdades absolutas:

Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e
umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e
intrínseca à própria estrutura da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas
raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais. (...) Os séculos
que passaram não tiveram opinião diversa a nosso respeito – é verdade; mas,
desprovida de qualquer base séria, as suas sentenças não ofereciam o mínimo
perigo. Era o preconceito; hoje é o conceito. Esmagadoras provas experimentais
endossam-no (Barreto, 1956, p. 110-1).

Observando a partir deste ponto de vista, o manuscrito imaginário de Gonçalves não é mais
ficcional que diversos documentos que contam a história do pensamento no Brasil. O que está
em causa, nessa ótica, é a autoridade (mesma raiz da palavra autor) de quem enuncia, e o mundo
que representa.

Isto posto, desde o prólogo o romance já revela que ficção e História serão tomadas como pontes
para construir acessos à existência do negro, solicitando para tal as mesmas formas narrativas (o
romance, a escrita da História) nas quais o Brasil o manteve como ausência.

Por intermédio do recurso à carta, a história da protagonista é enunciada através da memória. Um


defeito de cor narra a trajetória de Kehinde desde o nascimento, em 1810, até a sua morte, aos
oitenta e oito anos de idade. A longevidade da vida da personagem, portanto, abrange quase a
totalidade do século XIX. A história começa na África, narrando a infância de Kehinde no reino
de Daomé junto à sua família e comunidade.

Para contar a sua história, Kehinde conta, sempre, a história de quem veio antes e de quem está
ao seu redor. Nesse gesto, vários tempos e experiências vão se somando e misturando no
narrado, do qual emergem referências de múltiplas coletividades. Ao apresentar sua avó, por
exemplo, ela menciona mitos de origem que deram início ao “grande império do povo iorubá”
(Gonçalves, 2014, p. 20). Assim, na narrativa da história de seus familiares conectam-se outras
histórias, temporalidades, reinos, mitos, guerras, estruturas sociais, etc., que vão compondo uma
cartografia complexa da África.

Nesse aspecto reside um ato a ser destacado na ficção, que o conecta às memórias de Susana,
personagem de Maria Firmina dos Reis, no século XIX. Em Úrsula (Reis, 1859), a narrativa de
memórias de Susana inscreve pela primeira vez na ficção brasileira o sujeito negro inserido em
seu sistema de mundo antes da invasão europeia às terras da África. Ainda que seja uma África
idealizada, as lembranças da velha negra a constitui como pessoa parte de um universo que
envolvia uma cultura local, códigos sociais, família, comunidade, trabalho. Em Um defeito de
cor, o leitor já é introduzido na história – que também é uma narrativa de memórias – no sítio
local da protagonista, onde um mundo inteiro acontecia em suas próprias dinâmicas e conflitos
internos. Assim, no romance de Firmina, a África consta como parte do arquivo mental e afetivo
de Susana, e a sua rememoração clareia (para o leitor da época) o entendimento da barbaridade
da interrupção do seu sistema de vida com a captura e a escravização. Na narrativa de Ana Maria
Gonçalves, toda uma lógica em funcionamento na África é enunciada, inserindo a trajetória de
Kehinde no sistema moderno colonial, no qual a África é parte constituinte.

Desde a primeira à última página, somos inseridos em uma tessitura narrativa que promove e
conforma uma circulação de mundos no romance.

Assuntemos seu início.

A avó de Kehinde era membro da corte de Abomé e vodúnsi, nome dado às


sacerdotisas de Dan, dentre as quais a mais poderosa era a Rainha Agontimé.
Quando Adandozan[182] subiu ao trono proibiu o culto aos Voduns, “que eram os
espíritos dos antigos reis e de sua família – a família Danbirá, assim como o culto a
Xelegbatá, o Vodum mais temido pelos reis” (Gonçalves, 2014, p. 131).

A rainha Agontimé era conhecida em Abomé pelas histórias que contava sobre o
seu povo e sobre a fé, a força e a importância dos ancestrais. Adandozan ficou com
medo de que isto alimentasse as antigas crenças então proibidas e resolveu mantê-la
isolada. Mais tarde, vendo que isso não mais bastava, ele a acusou de feitiçaria e a
vendeu aos mercadores de escravos para que a levassem para longe do Daomé,
fazendo o mesmo com várias pessoas da família real (Gonçalves, 2014, p. 131-132)
A avó de Kehinde fugiu da perseguição religiosa e estabeleceu-se em Savalu com sua família. Lá
viveu até o dia em que “sentada sob o iroco, (...) fazia um tapete” quando cinco homens, que ela
reconheceu serem “guerreiros do rei Adandozan, por causa das marcas que tinham nos rostos”,
(Gonçalves, 2014, p. 21) apareceram. “Eu falava iorubá e eve, e eles conversavam em um iorubá
um pouco diferente do meu, mas entendi que iam levar as galinhas, em nome do rei”. Mas o
tributo não é o problema:

Os guerreiros já estavam de partida quando um deles se interessou pelo tapete da


minha avó e reconheceu alguns símbolos de Dan. Ele tirou o tapete das mãos dela e
começou a chamá-la de feiticeira, enquanto outro guerreiro apontava a lança para o
desenho da cobra que engole o próprio rabo que havia, mais sugerida do que
desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa (Gonçalves, 2014, p. 21).

A identificação do pertencimento ao culto proibido pelo rei resulta numa longa sequência de
grande violência e crueldade, que começa com os soldados assassinando seu irmão Kokumo, e
segue pelo estupro coletivo e morte de sua mãe. A avó e as duas meninas gêmeas sobreviventes
partem da região, dando início à sequência de deslocamentos forçados que Kehinde fará durante
toda a sua vida.

Uidá, onde passam a viver, é uma cidade litorânea e bastante movimentada, onde diversas
culturas, línguas e comunidades se cruzam, havendo também ali ricos “comerciantes que
vendiam gente e moravam do outro lado da cidade” (Gonçalves, 2014, p. 33). Por ser um grande
centro comercial, em Uidá havia muitos brancos, “que não eram apenas viajantes; a maioria
morava na cidade ou nas vizinhanças e tinha bastante dinheiro” (Gonçalves, 2014, p. 34). Havia
também um forte comandado pelo Chachá, que era “quase branco de tão majestoso, seguido por
muitos escravos, músicos, cantores, bufões e uma guarda formada por mulheres” (Gonçalves,
2014, p. 37). Um dia, “o mercado estava quase vazio, porque as pessoas tinham ido para perto do
forte português depois de ouvirem que um navio acabara de chegar do estrangeiro”. As irmãs
Kehinde e Taiwo também foram até lá, “mas ela queria voltar para casa, com medo de que nos
perdêssemos ou fôssemos capturadas, pois havia muita gente ao nosso redor, inclusive alguns
brancos”. Por serem ibejis, rapidamente chamam atenção de um branco, que se comunica com o
Chachá e “imediatamente um dos seus pretos já estava nos segurando pelos braços. (...) fomos
então levadas para o forte e colocadas dentro de um barracão muito grande, onde já havia várias
pessoas deitadas ou sentadas no chão” (Gonçalves, 2014, p. 38). A avó, ao perceber que as netas
haviam sido capturadas, implora para ser levada junto com elas, e então, a vida das três
mulheres, uma velha e duas meninas, muda para sempre. No barracão, Kehinde observa que
“todos os dias chegava mais gente capturada em muitos lugares da África, falando línguas
diferentes e dando várias versões sobre o nosso destino” (Gonçalves, 2014, p. 38).

Essa abertura do romance nos posiciona, enquanto leitores, em uma tessitura social, econômica e
política intrincada ocorrendo na África – que vivia suas próprias disputas e hierarquizações
internas. Pouco idealizada, e mais complexa, a narrativa apresenta africanos inclusive como
agentes do sistema, articulando seus próprios interesses diante dos colonizadores europeus com
os quais negociavam no comércio de pessoas para a escravidão.

Muitas páginas escritas são dedicadas a narrar a experiência da travessia no tumbeiro, que levou
meses, e a vida da família de Kehinde. No navio morre a sua irmã Taiwo, sua metade, e a ficção
gera nessa morte uma metáfora: parte da vida e da alma que saiu da África ficou no caminho, no
entre lugar entre a morte e a vivificação no símbolo – Kehinde “teria que mandar fazer um
pingente que representasse a Taiwo” e trazê-lo sempre consigo, pois “precisava dela sempre por
perto para continuar tendo a alma por inteiro. Depois da morte dela, o único jeito de isso
acontecer é por meio da imagem em um pingente benzido por quem sabe o que está fazendo”
(Gonçalves, 2014, p. 60). No navio também sucumbiu a avó, mas não sem antes “terminar de
dizer o que podia ser dito” a Kehinde, única pessoa que restava viva em sua família:

Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as
histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que
eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para
eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos
voduns, disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nana,
de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência
e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos (Gonçalves, 2014, p. 61).

Sem sua metade e sem sua mais velha, mas conhecendo a força da representação simbólica (o
pingente) e os ensinamentos ancestrais transmitidos por um arquivo de memória (da avó), a
menina sobrevive à travessia.

Ainda no mar, Kehinde avista – e torna visível ao leitor – o território nacional a partir do navio
negreiro, lugar donde primeiro ela o identifica: “(...) Da parte de cima do tumbeiro já era
possível enxergar a terra de um lugar chamado Brasil” (Gonçalves, 2014, p. 61). Esse ponto de
vista deflagra a perspectiva a partir da qual se fala – um local que articula um entendimento, que
forja uma inteligibilidade atlântica: constituída pelo que ficou para trás, no continente africano;
pelo que veio do continente africano nos corpos individuais; e pelo enredo escrito no território-
cais onde o navio atracou.
De dentro do navio – nem na África, nem ainda nas terras do Brasil – deflagra-se o prenúncio do
sujeito diaspórico: “Ao subir as escadas do porão e ver o primeiro céu azul, depois a luz do sol
quase me cegando (...) tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos de
Uidá. (...) Nascer de novo e deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha
mãe, os meus olhos nos cegos olhos da Taiwo, o sono da minha avó” (Gonçalves, 2014, p. 62).
Nascer de novo para outra experiência, trazendo em si sua ancestralidade, é um desejo que a
personagem enuncia desde o lugar da fronteira, representada aqui pelo navio no mar.

O navio atraca na Ilha dos Frades, mas, antes de pisar em terras brasileiras, a personagem pula no
mar, escapando ao ato que introduz o sujeito africano à condição de escravo no Brasil: o batismo
católico e a proibição do nome próprio.

Quando eu disse que me chamava Kehinde, o nosso dono pareceu ficar bravo, e um
dos empregados perguntou novamente, em iorubá, que nome tinham me dado no
batismo. Eu repeti que meu nome era Kehinde e não consegui entender o que
diziam entre eles, enquanto o empregado procurava algum registro na lista dos que
tinham chegado no dia anterior. O que sabia iorubá disse para eu falar o meu nome
direito porque não havia nenhuma Kehinde, e eu não poderia ter sido batizada com
este nome africano, devia ter um outro, um nome cristão. Foi só então que me
lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre, quando eu deveria ter sido
batizada, mas não quis que soubessem dessa história. A Tanisha tinha me contado o
nome dado a ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa,
Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a
minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por Xangô, por
Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de
Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e
ao secreto (Gonçalves, 2014, p. 72-3).

Apartada de sua terra, sua família, seu nome, suas crenças, sua língua e da própria condição de
pessoa – já que fora escravizada – assim que desembarca no cais-Brasil, a personagem
experimenta o violento processo de apartamento do corpo negro da condição de sujeito, para
transformá-lo em corpo-mercadoria, corpo-coisa, corpo-moeda (Mbembe, 2014). A narradora
retrata este primeiro rito de desterritorialização ao descrever os procedimentos iniciais aos quais
os africanos eram submetidos assim que desembarcavam do navio negreiro, como o batismo
cristão forçado e a substituição do nome próprio por outro português, assim como a ordem
compulsória de aprendizagem da língua portuguesa. Dentro desse regime forçado, o movimento
primeiro de Kehinde é de resistência: salta do navio e mergulha nas águas do mar para escapar ao
batismo católico. Luísa é o nome que ela escolhe, o mesmo dado a uma mulher “muçurumin”
que conhecera no navio e com a qual se afeiçoara. Nesse pequeno detalhe, já a sugestão de Luíza
Mahin, cuja atuação ter-se-ia feito junto aos escravizados islâmicos.

A enunciação de Kehinde dá vida a uma rede interminável de relações, pois o romance apresenta
uma população de centenas de personagens, da qual emerge uma rede de comunidades que se
cruzam, formando um tecido intrincado de culturas de várias partes da África encontradas no
Brasil. A colonização, dessa forma, é retratada qual fosse fenômeno de globalização, no sentido
de encruzilhar uma série de mundos diferentes em um mesmo território – reverso de um
perímetro nacional cuja racionalidade concebia apenas o uno.

Kehinde atravessa mundos e linguagens sem, para isso, apagar suas referências ancestrais. No
Brasil, ela dialoga com povos de culturas variadas da África, muçulmanos, malês, angolas, etc.,
ainda menina, aprende a ler em português com o Fatumbi, o mestre de letras islâmico professor
da sinhazinha, através do qual, anos mais tarde, ela irá se envolver na trama que organizou o
levante Malê. Tempos depois, na condição de “escrava de ganho”, ela aprende a fazer os cookies
ingleses, que viriam a se tornar uma fonte de acesso ao dinheiro independente da gerência do
senhor. Ao trabalhar na casa dos ingleses, rapidamente compreende e interage com seus códigos
e modos de vida, muito diferente dos portugueses que ela conhecia.

Eu estava ganhando um bom dinheiro com os cookies e o rice pudding, e já não me


interessava muito fazer as entregas nas casas, o que tomava muito tempo e não dava
tanto lucro, então contratei o Tico e o Hilário. Eles, que já adoravam andar pela
cidade, ficaram felizes com um motivo para isso, ainda mais porque viram nas
entregas uma oportunidade de travar conhecimento com os escravos dos
estrangeiros. Eram escravos mais reservados, como eu já disse, talvez por falarem
outra língua e se julgarem superiores aos escravos dos brasileiros, assim como seus
donos também se julgavam melhores que os brancos da terra (Gonçalves, 2014, p.
291).

Além de hábitos, culturas e línguas, Kehinde também experimenta uma diversidade de práticas
religiosas, sempre focando o protagonismo do feminino negro, articulado na ficção através de
diversos ângulos. Por exemplo, a protagonista se desvencilha da condição escrava através de um
signo forte, uma Oxum de madeira, recheada de pedras preciosas, presente de Agontimé, que
compra sua alforria e alguma segurança. Signo forte pelo ouro, a madeira e a Oxum, mas
também por ser esta a entidade do panteão africano que rege as águas do amor; uma matriz,
portanto, das técnicas africanas de autocuidado e cuidado com o outro. É justamente Oxum, o
símbolo do amor e da fertilidade que permite a libertação da sua filha.

Outras insígnias das religiosidades negras são reivindicadas por ela, sempre ligadas a lugares da
autoridade feminina. Assim, ela conhece – e nos permite conhecer – diversas maneiras de viver o
sagrado negro através das associações de mulheres negras, as chamadas confrarias, mas que
“também podia ser chamada de junta, cooperativa, irmandade ou sociedade” (Gonçalves, 2014,
p. 297). Nessa confraria, “qualquer pessoa podia se inscrever, mas estavam dando preferência às
mulheres, já que as outras confrarias eram formadas por muitos homens, e as mulheres tinham
algumas ideias diferentes, preocupações bastante próprias, como o cuidado com o futuro dos
filhos” (Gonçalves, 2014, p. 297).

Quando Kehinde se associa a uma irmandade, ela passa a ter outro conhecimento sobre a agência
dos sujeitos negros nos processos de construção da liberdade: “Eu me surpreendia com os
arranjos que se podia fazer para conseguir a liberdade, e nem imaginava que naquela época ainda
não sabia de quase nada, ainda não tinha tomado conhecimento de um mundo às escondidas
vivido pelos pretos e crioulos, forros ou não” (Gonçalves, 2014, p. 297). Aqui, nota-se a
marcação enfática enunciando a igualdade entre os lugares sociais nos quais as pessoas negras
eram alocadas no século XIX: pretos, crioulos, alforriados e escravizados: todos sujeitos negros
em luta contra a ordem colonial escravocrata.

Através de uma diversidade de experiências, a trajetória da protagonista vai-se constituindo


inteiramente no trânsito – desde a primeira infância no Daomé, até os roteiros vividos pela Bahia,
Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, África do Sul, voltando para outros lugares do continente
africano e retornando novamente pelo Atlântico para o Brasil – a personagem é constituída pelo
signo da itinerância. O romance projeta, a seu modo, um afropolitanismo[183] na escrita.

Visto a partir da África, o fenômeno da circulação dos mundos possui ao menos


duas faces: aquela da dispersão e aquela da imersão. Historicamente, a dispersão
das populações e das culturas não foi somente o fenômeno de vinda de estrangeiros
para se instalar em nossa casa. Na verdade, a história pré-colonial das sociedades
africanas foi, de ponta a ponta, uma história de povos incessantemente em
movimento através do conjunto do continente. Trata-se de uma história de culturas
em colisão, tomadas pelo turbilhão das guerras, das invasões, das migrações, dos
casamentos mistos, de religiões diversas que são apropriadas, de técnicas que são
trocadas e de mercadorias que são vendidas. A história cultural do continente
praticamente não pode ser compreendida fora do paradigma da itinerância, da
mobilidade e do deslocamento. (...) A consciência dessa imbricação do aqui e do
alhures, a presença do alhures no aqui e vice-versa, essa relativização das raízes e
dos pertencimentos primários e essa maneira de abraçar, com todo conhecimento de
causa, o estranho, o estrangeiro e o distante, essa capacidade de reconhecer sua face
no rosto do estrangeiro e de valorizar os traços do distante no próximo, de
domesticar o in-familiar, de trabalhar com aquilo que possui aspecto de ser
contrário por completo – é precisamente essa sensibilidade cultural, histórica e
estética que o termo “afropolitanismo” indica. (Mbembe, 2015, p. 69-70).

O princípio da circulação por cartografias múltiplas forma a personagem, tangenciando diversos


aspectos de sua experiência – como o religioso, o cultural, o linguístico, o afetivo e o político.

Na diáspora, os encontros e encruzilhadas constituem o plural, multiplicam os centros,


desconstruindo qualquer ideia de matriz una, conforme enseja a imagem eurocêntrica. Kehinde
partilha experiências com uma pluriversalidade (Ramose, 2011) de culturas negras em todo seu
percurso, assim como também adentra o universo branco por diversas vias, inclusive pela via
afetiva da amizade, através de sua duradoura relação com a personagem Maria Clara, filha do
Sinhô. O exemplo abaixo é um dentre vários a ilustrar a fertilidade dos encontros que permeiam
toda a trajetória da protagonista.

No dia em que me mudei para a loja, eu vivia uma situação que acabou me
acompanhando pelo resto da vida, mesmo depois de voltar à África: eu não sabia a
quem pedir ou agradecer acontecimentos. Se não tivesse saído de África,
provavelmente teria sido feita vodúnsi pela minha avó, pois respeitava muito os
voduns dela. Mas também confiava nos orixás, herança da minha mãe. Porém,
cozinhava na casa de um padre e estava morando em uma loja onde quase todos
eram muçurumins. A família do alufá Ali era responsável pela loja perante o
senhorio e ocupava todo o andar térreo, sendo que a Khadija ainda tinha uma irmã
chamada Euá, bem mais nova que ela, que dormia em um dos quartos do primeiro
andar, junto com uma cabinda liberta, já bem avançada em anos, chamada Vicência
(Gonçalves, 2014, p. 261).

Nessa ótica, subvertendo o princípio da fronteira, a personagem promove uma “circulação de


mundos” em sua narrativa. Essa circulação de mundos é tão intensa que, anos depois, de volta à
África, ela se define e é identificada pelos africanos como brasileira. Na África, ela se torna
empresária no ramo de edificações, construindo casas e sobrados como as que conhecera no
Brasil.
O romance constrói uma narrativa para o cotidiano de uma mulher negra em suas relações,
negociações, buscas, frustrações, alegrias, amores, enfim, enquanto sujeito que vive e resiste à
morte (do corpo, da memória e da agência). Escrava, alforriada, fugida e livre, Kehinde
experimentou todos os estados em que no passado se categorizou a vida da pessoa negra, e em
todo eles produziu saídas e vias de existência.
Colonialidade nacional prescrita na narrativa da experiência histórica
negra

Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso
ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar
decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para
trás.

Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio

Por meio do seu intenso e longo fluxo narrativo, o romance Um defeito de cor possibilita uma
experiência de pensamento e acesso a um arquivo, um mundo de conexões, representações e
imagens sobre a escravidão; sobre a modernidade vista da diáspora; sobre a colônia; as relações
sociais (entre homens e mulheres, negros e brancos, adultos e crianças, brasileiros e estrangeiros,
livres, libertos e escravizados), entre outros pontos. O romance é potencializado como cognição,
cuja cognoscibilidade produz, no ato da leitura, um conhecimento do passado que reverbera no
nosso presente.

O romance Um defeito de cor tem sido lido como gênero híbrido (devido ao entrelaçamento que
estabelece entre ficção e História) nos trabalhos que conformam sua fortuna crítica, posto que o
ato de se apropriar da história, enunciada na escrita da mulher negra, é a grande marca que o
diferencia na literatura brasileira. Em razão disso, não verterei aqui demasiadas linhas acerca
desse ponto basilar, e já sustentado. Não obstante, buscando alcançar uma formulação que
contemple o romance e ilumine ainda seu diálogo com as demais obras do corpus, remeto
rapidamente ao ensaio Mal de arquivo, uma impressão freudiana (2001), de Derrida.

A palavra “arquivo”, lembra Derrida (2001), remete a arkhé, e condensa um duplo significado: o
de começo e o de comando:

Este nome coordena aparentemente dois princípios em um: o princípio da natureza


ou da história, ali onde as coisas começam – principio físico, histórico ou
ontológico –, mas também o princípio da lei ali onde os homens e os deuses
comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do
qual a ordem é dada – princípio nomológico. Ali onde, foi o que dissemos, e nesse
lugar. Como pensar esse ali? E como pensar este ter lugar ou este tomar o lugar do
arkhé? (Derrida, 2001, p. 11, grifos do autor).
O arquivo pode ser entendido como um conjunto de documentos que remetem a diversos
acontecimentos ocorridos numa dada ordem social. Porém, tais documentos recobrem os
tratamentos prévios de decantação e de classificação, implicando no agenciamento realizado pelo
poder propriamente dito. Seria este, na sua autoridade e pela força que dispõe, que indicaria um
lugar e um domicílio (Derrida, 2001, p. 12-13, grifos do autor) para o arquivo, nos quais algo da
ordem do segredo seria cultuado e preservado. Por conseguinte, o conjunto de documentos seria
objeto de uma consignação (Derrida, 2001, p. 14, grifos do autor), que classifica e ordena os
signos e os enunciados ali presentes. Exigindo, portanto, a ação de um agente específico, que
seria, ao mesmo tempo, um guardião e um intérprete (Derrida, 2001, p. 12-13, grifos do autor)
do arquivo, isto é, um arconte, exercendo a sua autoridade no espaço da arkheîon (Derrida, 1995,
p. 39-41).

No discurso freudiano, interlocutor de Derrida no texto, a hipótese da pulsão de morte constatou


que existiria algo no psiquismo que apagaria marcas e traços (Derrida, 2001, p. 23-29), ou seja,
como potência de produção do silêncio, a pulsão de morte, enunciada por Freud como pulsão de
destruição, apagaria as marcas e os traços arquivados. Para Derrida, a pulsão de morte é
repensada como mal de arquivo, pois seria aquela que possibilitaria tanto o esquecimento quanto
a renovação do arquivo pelas novas consignações que seriam, portanto, a condição de
possibilidade de acrescentar novos arquivamentos (Derrida, 2001, p. 23-29). A pulsão de morte é
denominada por Derrida como arquiviolítica, apagando traços inscritos e possibilitando que
novas inscrições pudessem ser realizadas no arquivo. “Com isso, o arquivo seria necessariamente
marcado na sua materialidade discursiva pelo mal de arquivo, pelo apagamento e esquecimento
promovido pela pulsão de morte. Enfim, o mal de arquivo seria necessariamente o outro lado do
arquivo, frente e verso de uma mesma superfície de inscrições, onde se realizariam as trocas e as
circulações discursivas” (Birman, 2008, p. 118).

A problemática do arquivo é alçada à questão fundamental na medida em que a tradição se


constitui sobre e com o arquivo, pelos arquivamentos promovidos pelo poder e pelo arconte
(Derrida, 2001, p. 12-13, grifos do autor). Portanto, empreender a leitura crítica do arquivo e
propor a sua desconstrução, que já se realiza efetivamente no campo da história contemporânea
pela abertura dos múltiplos arquivos sobre o mal, implica não apenas uma interpretação do
passado da tradição ocidental, mas principalmente na sua possível abertura para o futuro
(Birman, 2008).

Em sua leitura deste texto de Derrida, Joel Birman destaca que, nada seria mais enganoso do que
acreditar que o arquivo se pudesse constituir por uma massa documental fixa e congelada, “tendo
no registro do passado a sua única referência temporal, sem que os registros do presente e do
futuro estejam efetivamente operantes no processo de arquivamento” (Birman, 2008, p. 109). Tal
engano, segundo ele, pretende que o arquivo seja constituído por documentos patentes, isto é,
tudo aquilo que de fato ocorreu de importante no passado estaria efetivamente arquivado sem
rasuras e sem lacunas, ou seja, sem que estivesse em pauta qualquer esquecimento (Derrida,
2001, p. 24-26 e p. 49-54, grifos do autor). Nessa suposição clássica, portanto, não existiriam
arquivos virtuais (Derrida, 2001, p. 102-107, grifos do autor). Assim, para Derrida, colocar em
questão a concepção clássica de arquivo significa interpelar a oposição teórica, estabelecida pela
metafísica aristotélica, entre potência e ato (Derrida, 2001, p. 102-107, grifos do autor),
entendendo, pelo oposto, que o arquivo tem uma potência efetiva na sua virtualidade e tal
potência é efetivamente ato (Derrida, 2001, p. 102-107).

Repensar o arquivo desdobra numa leitura sobre o tempo, operante no processo de arquivamento.
Esse tempo se realizaria sempre no presente, numa temporalidade que se ordena em três direções
concomitantes, quais sejam, “o presente passado, o presente atual e o presente futuro. A
temporalidade presente no arquivo, nessa tripla direção, configuraria a dimensão da finitude, que
lhe marcaria necessariamente. Em contrapartida, seria ainda essa mesma finitude que, como
condição de possibilidade, delinearia a infinitude do processo de repetição do ato arquivante”
(Birman, 2008, p. 110). O arquivo enquanto tal implicaria, fundamentalmente, a perspectiva do
futuro e a sua insistente abertura para o vir-a-ser (Derrida, 2001, p. 83-102).

Embora o texto de Derrida possua um pano de fundo específico, qual seja, os debates em torno
dos testemunhos da Shoá e do Holocausto, seus questionamentos, conforme o exposto, são de
grande valor para pensarmos o romance Um defeito de cor, e o sentido de esquecimento ainda
presente no horizonte do arquivo acerca do negro no Brasil.

Conforme acena o prólogo do livro, o ímpeto (declarado) do romance é justamente o de tomar


um arquivo virtual, imaginário (o manuscrito de Luíza Mahin) como ato enunciativo gerador de
um arquivo disponível (o romance), que elabora narrativamente a experiência do negro no Brasil
do século XIX. Ressaltando, no mesmo ato, que este arquivo se constitui de forma liminar, isto é,
atravessa os silenciamentos que foram selecionados para formar o arquivo que a literatura
brasileira (canônica) constantemente reitera.

O significado deste arquivo ficcional (o romance) só pode ser capturado em sua grandeza
objetiva quando partimos do presente para articular o passado e o futuro. Nesse sentido, Kehinde
é uma personagem que se realiza no trânsito entre tempos: por um lado, ela tangencia realidades
vividas/sentidas/imaginadas no século XIX que não chegaram até nós, porque foram apagadas do
texto nacional enquanto arquivo. Por outro, este ato de suspensão do apagamento através da
narrativa responde às urgências e agendas do presente no qual a mulher negra figura como
sujeito político protagonista de seus enredos e significações – dessemelhante, portanto, das
imagens que os arcontes do passado produziram. Por conseguinte, um presente-futuro se
anuncia, armado de palavra viva e possibilidades.

É nesse âmbito que a inscrição da experiência histórica negra na ficção de Gonçalves confronta a
colonialidade nacional, perpetuada, no campo das representações, nos diferentes níveis em que a
raiz “colonial” do termo alude à situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras
étnico-raciais, que, por sua vez, informam opressões de gênero e classe.

A colonialidade do poder é um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano (1989)


para basicamente exprimir que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não
findaram com a destruição do colonialismo. A proposição, por um lado, denuncia “a
continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais,
produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista
moderno/colonial” (Grosfoguel, 2008, p. 126). Por outro, o conceito é dotado de uma capacidade
explicativa que atualiza e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados,
assimilados ou superados pela modernidade (Ballestrin, 2013, p. 100).

O romance de Gonçalves organiza no universo discursivo a perspectiva do confronto à


manutenção desse sistema de dominação, porque retira os sujeitos negros escravizados da órbita
do silêncio, restituindo, na ficção, nomes, cotidiano, pertencimentos afetivos, planos insurretos,
organização coletiva, genealogia, etc.; retira-os, portanto, dos emparedamentos da representação
colonial e se aproxima mais do real histórico ao lhes conferir agência, determinação e devir,
fraturando a razão escravocrata, para a qual estes homens, mulheres e suas culturas e
pensamentos eram considerados coisas, sem racionalidade.

No século XIX, Maria Firmina dos Reis afirmava seu romance contra tal lógica, dizendo que a
mente ninguém pode escravizar. Essa afirmação insubmissa encontra, no século XXI, o romance
de Ana Maria Gonçalves, que constrói uma malha representacional complexa e multifacetada,
sob a qual somos interpelados a conhecer um novo mundo.

Por meio dos passos e caminhos de Kehinde reconhecemos uma estrada que nos acolhe,
composta de intermitente resistência, sabedoria, estratégia e laços comunitários. E também,
igualmente perfilada de toda a violência, negação e racismos que marcam a nação brasileira
desde o seu nascimento à sua continuidade.

Subjazendo a trajetória completa da vida de uma mulher negra, o fluxo narrativo, filtrado pela
primeira pessoa em sua localidade epistêmica, espelha a escrita da História como retomada de
posse, da qual emerge um arquivo que nos reorienta diante do passado e do presente. Um arquivo
cuja materialidade ressignifica tudo aquilo que na literatura brasileira representa os arquivos do
mal, abrindo-a por dentro de suas frestas as brenhas de um futuro possível.

Nesse aspecto, para finalizar, tomo de empréstimo as palavras que Jeanne Marie Gagnebin
empenhou para pensar as teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história” em uma teoria
da narração benjaminiana (Gagnebin,1994), objetivando ressaltar como no romance de
Gonçalves a narrativa da memória rearticula a História por meio de uma,

(...) preocupação de salvar o passado no presente graças à percepção de uma


semelhança que os transforma os dois: transforma o passado porque este assume
uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o
presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa
anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode perder-se se não a
descobrirmos, inscritas nas linhas do atual (Gagnebin, 1994, p. 16).

Kehinde realiza a promessa fundadora que Susana pela primeira vez articulou. As duas, mulheres
africanas que viveram a maternidade interrompida, se mantiveram vivas diante de toda opressão
colonial e transmitiram seus arquivos de memória no discurso (que é curto fragmento, em
Úrsula; e longa extensão, em Um defeito de cor) de uma vida. Susana, a mais velha, como Nanã
moldando o barro, cria a matéria-prima que depois será água corrente e abundante via Kehinde,
guardiã da palavra como Oxum, de quem é filha.
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SEÇÃO 4. MULHERES NEGRAS, RELIGIOSIDADE E OUTROS
PERTENCIMENTOS
“Era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto”:
o nome como aspecto de agência e cosmovisão em Um defeito de cor
[184]
Oluwa Seyi Salles Bento

Introdução

O romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, amalgama História e ficção, mas, ficção
à parte, veicula noções bastante caras à população afro-brasileira, que são herança da cosmovisão
iorubá e de muitas outras sociedades africanas. Exemplo desse legado é o nome escolhido por
seu significado, sua potência enquanto termo definidor, e não apenas pela beleza gráfica e
sonora, resultado do esvaziamento semântico[185]. A prática de nomear os bebês de acordo com
fatores específicos - dia da semana ou estação do ano em que nasceram, quantidade de irmãos já
nascidos, expressões de bons auspícios, substantivos ou adjetivos positivos, entre outros - ou de
recuperar o nome que a criança já tinha no Òrun - mundo etéreo - não é tão popular no Brasil
como foi e segue sendo em África. Isso é resultado da perda de lastro cultural e familiar,
expressa no desconhecimento generalizado de línguas nativas africanas e também na dificuldade
de traçar linhas genealógicas para além da quarta ou quinta geração de famílias negras, ou seja,
saber, de fato, de que grupo étnico os indivíduos descendem.

Todo nome deixa entrever uma história de vida. Obviamente evoca o nomeado, mas também diz
muito sobre quem nomeia. A escolha do nome de um novo integrante do grupo é manifestação
da agência de quem dá o nome e de reconhecimento e acolhida (ou não) a quem o recebe. Em
“Princípios teóricos de toponímia e antroponímia: a questão do nome próprio”, Patrícia
Carvalhinhos e Alessandra Antunes afirmam que o nome próprio, “o onoma grego, traduzido
para o latim como nomen proprium, não teria aqui apenas o significado de 'próprio' no sentido de
propriedade, mas também possuiria o sentido de peculiar, característico, em oposição a comum,
ordinário” (grifos das autoras, Carvalhinhos & Antunes, 2007, p. 114 apud Dick, 1990). Por
extensão, esses princípios onomásticos nos parecem excepcionalmente seguros na medida que se
referem aqui a nomes pensados para personagens, seres construídos (ainda que sejam
representações de sujeitos e experiências reais). Dessa forma, os nomes de alguns personagens
tornam-se mais uma força que atua na obra literária, quase que de maneira autônoma, sendo mais
um adjetivo que um substantivo.

Além disso, outros movimentos ligados à antroponímia e ao ato de nomear ganham relevo nesta
obra: a ocultação de nomes sagrados, a dupla nomeação e a autonomeação. Todos esses
processos revelam a complexidade e o poder do nome e do ato de nomear, pois mobilizam a
possibilidade de diferenciar ou integrar, subjugar ou devolver a autonomia e a humanidade. A
seguir, buscaremos iluminar estes aspectos e apontar o papel definidor que os nomes dos
personagens ocupam, sobretudo Kehinde, que é Luísa quando convém, e outros que são ligados a
ela pela consanguinidade.
Caiandê e Taió: o relato mítico-religioso que costura o tecido
ficcional

No prólogo da obra, Ana Maria Gonçalves narra como sua escritura foi resultado da consulta a
textos diversos, os quais são elencados numa lista de referências bibliográficas, ao fim do livro.
Dentre esses títulos, encontram-se algumas compilações de ìtàn (mitos) sobre os Orixás, de
Pierre Verger e Reginaldo Prandi. A obra A mitologia dos Orixás, de Prandi, traz 301 mitos,
número que, segundo a tradição iorubá, sugere uma quantidade incontável (Prandi, 2001, p. 17),
sendo sete destes dedicados a narrar experiências míticas de divindades infantis e irmãs, os Ibejis
- termo que em iorubá significa gêmeos (Napoleão, 2011, p. 101).

Desta forma, estas divindades são, segundo sua nomenclatura, ontologicamente uma dupla, ainda
que estejam apartados ou um vivo e outro morto, como a mitologia por vezes descreve. Assim
como os Ibejis, os personagens Kehinde e Taiwo são irmãos gêmeos separados pela morte[186],
mas a proximidade propiciada pela irmandade é constantemente evocada. Tanto os mitos
religiosos quanto o enredo do romance tratam de evidenciar que a relação afetiva e espiritual
entre irmãos que dividiram o útero materno é forte e quase inabalável.

Os nomes Taiwo e Kehinde, ou, segundo a grafia original, Táíwò e Kẹ́hìndé, são
tradicionalmente dados a gêmeos, sendo que referem-se, respectivamente, à criança que nasce
primeiro e à que nasce por último (Napoleão, 2011, p. 134), inexistindo uma diferenciação de
gênero, ainda que, nos relatos míticos a que tivemos acesso, os Ibejis sejam sempre meninos.
Nesses relatos compilados por Prandi, há uma adaptação desses nomes em iorubá, a qual elide
algumas letras, lança mão de acentos necessários à pronúncia correta em língua portuguesa e
acaba por gerar os nomes Taió e Caiandê.

A escolha desses nomes para as personagens, no contexto da narrativa, deixa nítida a que
cosmovisão as personagens aderem-se, qual lógica religiosa e filosófica lhes rege. O uso
racionalizado e motivado destes nomes nos fornece, enquanto leitores críticos da obra, pistas
para uma compreensão mais abrangente da obra, na medida que por uma ferramenta intertextual
- ou internominal, por que não? - somos guiados a camadas mais complexas e menos superficiais
do texto.

Isso é verificável caso nos proponhamos a enxergar a relação de Kehinde e Taiwo, sobretudo
após a morte desta, através de uma lente: algum dos ìtàn em que um dos deuses gêmeos morre.
Em um desses mitos, chamado “Os Ibejis brigam por causa do terceiro irmão”, quando um dos
Ibejis se sacrifica pelo outro, o que resta trata de manter seu irmão presente, dado que seria
impossível viver sem ele:

Mas o gêmeo que sobreviveu não suportava a ausência do irmão. Ele abriu a
sepultura e retirou o corpo do irmão. Porém o menino morto não se movia, por mais
que o irmão vivo o chamasse ele não respondia, não o acompanhava, não o queria.
O irmão vivo não desistiu do companheiro e amarrou o irmão morto no seu próprio
corpo. Desde então eles passeiam juntos, atados um no outro. Quando eles passam
alegres, discutindo, o povo diz: “Olha os Ibejis, olha os meninos gêmeos da Oxum”.
(Prandi, 2001, p. 370-371).

Se partimos da noção de que o sofrimento de Kehinde ao perder Taiwo é similar ao da divindade


que perde seu gêmeo, podemos encarar a referência constante à gêmea morta, assim como os
sonhos com ela e o uso do pingente que a presentifica, como o atamento simbólico de seu corpo
sem vida ao da irmã que sobreviveu ao sequestro em África.

Eu, assim que desse, também teria que mandar fazer um pingente que representasse
a Taiwo e trazê-lo sempre comigo, de preferência pendurado no pescoço. Eu e a
Taiwo tínhamos nascido com a mesma alma e eu precisava dela sempre por perto
para continuar tendo a alma por inteiro. Depois da morte dela, o único jeito de isso
acontecer é por meio da imagem em um pingente benzido por quem sabe o que está
fazendo. (Gonçalves, 2018, p. 60).

Esse pingente, inclusive, é um elemento mágico, “que todo o Ibêji que sobrevive à morte do
outro deve usar para conservar sua alma” (Gonçalves, 2018, p. 90) e emula, de fato, a existência
de Taiwo.

O pingente de ibêji, ao contrário do que eu pensava, não representava uma criança,


como ainda era a Taiwo quando morreu, mas uma adulta com peitos e racha, que
era como ela deveria ficar se tivesse crescido. Manter a Taiwo viva, esse era o papel
do pingente, ou amuleto, que eu trago sempre comigo, pendurado no pescoço.
(Gonçalves, 2018, p. 90-91).

Podemos, então, afirmar que, partindo da releitura de um mito, do aproveitamento de um


sentimento conhecido e descrito pela cultura factual do sujeito ficcional, Ana Maria Gonçalves
constrói uma experiência possível e verosímil. Em outras palavras, lançando mão do que um
indivíduo iorubá real, filiado a uma mundivivência que o construiria para agir de acordo com sua
religiosidade e filosofia de vida de fato sentiria caso perdesse seu gêmeo, a narrativa se
desenvolve de modo a sugerir que o nome é definidor, é adjetivo, pois, em alguma medida,
espelha ou explica as ações do personagem.
Os nomes que convidam os abiku à vida

Além de Kehinde e Taiwo, outros personagens têm nomes significativos que explicam um pouco
de sua ontologia. Boa parte da família nuclear das gêmeas é àbíkú, ou seja, criança destinada à
morte prematura: seu irmão, sua mãe, sua avó e seus dois primeiros filhos fazem parte do grupo
de indivíduos “que nasce para morrer” (Napoleão, 2011, p. 33), segundo seu próprio desejo.

Os abiku não veem na morte algo negativo, mas sim a possibilidade de se reintegrarem à
sociedade da qual fazem parte no Òrun e reencontrar seus companheiros, a quem prometem
regressar em período já definido (Verger, 1983). Essa sociedade é composta por indivíduos que
já nasceram e morreram e continuarão esse jogo cíclico de final e recomeço da vida, muito
provavelmente renascendo de tempos em tempos no seio de uma mesma família.

Quando o abiku finalmente se recorda do trato que firmou no Òrun ou cede aos chamados de
seus parceiros, ou seja, morre e volta a reintegrar sua sociedade no mundo etéreo, acontece uma
verdadeira celebração de muitíssimos abiku, satisfeitos por mais um regresso, a qual somente
algumas pessoas conseguem ver e ouvir. Kehinde faz parte desse grupo que pode testemunhar a
alegria das crianças etéreas em momentos de extrema tristeza: a morte da maioria de sua família,
a qual apresentaremos mais adiante.

Não há nada que se possa fazer, de garantido, para que a criança abiku já nascida decida não
morrer tão cedo, abandone em definitivo ou se esqueça do trato realizado com os outros abiku,
porém oferendas, processos mágicos e o próprio nome dado à criança buscam convencê-la a
viver o máximo possível. Na definição apresentada por José Beniste, em Dicionário Yorùbá-
Português, “os nomes próprios yorubás são formados por diversas palavras, vindo a compor um
nome relacionado com fatos ou divindades, entre outras coisas, tornando-os bastante
significativos. (...) Para um menino, usualmente, o nome é dado no 9º dia de nascido; para
menina, no 7º dia; e para gêmeos no oitavo” (Beniste, 2011, p. 594). Muitos nomes específicos
para abiku são elencados, traduzidos e explicados por Pierre Verger, alguns dos quais são, de
forma adequada, utilizados no romance de metaficção historiográfica de Ana Maria Gonçalves.

Um desses nomes foi dado ao irmão de Kehinde, Kokumo, cujo significado é “não morrerás
mais, os deuses te segurarão”[187]. Esse nome sugere que a mesma criança nasce e morre muitas
vezes, porém, através do nome que lhe é atribuído, afirma-se que este ciclo será interrompido por
intermédio divino. Outro desses nomes é o da mãe de Kehinde, Dúróoríìke, que é traduzido
como “fica, tu serás mimada”. A lógica desse nome consiste em persuadir a criança através de
uma promessa a ser cumprida caso ela opte pela vida. Já o nome Dúrójaiyé, dado à avó de
Kehinde, por sua vez, significa “fica para gozar a vida, nós imploramos”[188].

Mais dois nomes que funcionam da mesma maneira no tecido literário desta narrativa, dados por
Kehinde aos filhos que nascem, assim como seu irmão, sua mãe e sua avó, sob condição de
abiku, são Banjokô e Omotunde. O filho mais velho de Kehinde foi fruto do estupro realizado
por seu senhor, um bárbaro, mas recorrente crime, naturalizado pela máquina escravista. No
entanto, a criança significou um alento para Kehinde num momento de extrema fragilidade e
sofrimento. Segundo a obra, Kehinde pressentia, desde o quarto ou quinto mês de gestação, que
seu primogênito seria abiku e já o chamava, por prevenção, de Banjokô, ou seja, “sente-se e
fique comigo”[189]. Em sua cerimônia de apresentação, ganhou mais dois nomes: Ajamu e
Danbiran, sendo que o primeiro significa “aquele que brotou depois de uma luta” e o segundo é
uma homenagem à bisavó Dúrójaiyé e a seu vodun[190], alvo de grande devoção, Dan. Filho nunca
assumido ou sequer conhecido pelo pai, José Carlos, que falece antes do nascimento do menino,
e tendo como ìyá mi dindi (madrinha) sua madrasta e escravizadora, sinhá Ana Felipa, não
escapou do destino de abiku: faleceu ainda bastante jovem num acidente.

Omotunde Adeleke Danbiran, o segundo filho de Kehinde, resultou de uma relação de afeto e
desejo mútuos. Abiku pressentido pela mãe (como o irmão mais velho também o fora), recebeu
um nome que demonstrava sua condição, cujo significado é, respectivamente, “a criança voltou”,
“mais poderosa que os inimigos” e, por último, a mesma homenagem à bisavó que Banjokô
carregou no nome. Durante a cerimônia de apresentação da criança, revelou-se no jogo de
opelê[191] que ele “viveria o suficiente para ser um grande homem”, porém “sua vida nunca seria
das mais fáceis, apesar de muito produtiva” (Gonçalves, 2018, p. 404), o que demonstra que,
diferentemente do irmão, Banjokô, e do tio, Kokumo, Omotunde não teria uma morte tão
precoce, ou seja, não honraria seu trato com a sociedade abiku por um tempo considerável.

Segundo a obra, apenas Kehinde e Esméria chamavam o menino por Omotunde, pois
consideravam-no sagrado, enquanto outros personagens tratavam-no por um apelido em iorubá:
Madê.

Lembrando agora daquele dia [dia da cerimônia de apresentação de Omotunde], eu


me pergunto se você ainda usa seu nome africano, Omotunde, pois somente eu e a
Esméria te chamávamos por ele, e mesmo assim quando estávamos a sós. Para que
continuasse apenas entre nós, dissemos a você que aquele era seu nome sagrado,
que não deveria ser dito a ninguém. Você gostava de ser chamado de Ô-madê, e
depois só de Madê, como falava o seu irmão. Achamos muito engraçado quando o
Banjokô falou isso pela primeira vez, porque ô-madê quer dizer “menino” em
iorubá, e era assim que o papagaio da sinhá o chamava. Ele deve ter achado que
assim eram chamados todos os meninos, não sei. Seu pai também não reclamou,
mesmo porque nunca soube o que significava. Falamos que era um nome qualquer
que seu irmão tinha inventado e ficou por isso mesmo, e às vezes ele também te
chamava assim. (Gonçalves, 2018, p. 406).

Ainda que Alfredo, o pai de Omotunde, tivesse demonstrado o desejo de nomear a criança como
Luiz, nome de um de seus avôs, o batismo cristão do menino tardou, sendo que a mãe não tinha
sequer certeza do nome oficial dado ao garoto quando procurou por ele, anos mais tarde, além do
fato de Kehinde se referir ao filho sempre como Omotunde.

Ambos os filhos mais velhos de Kehinde passaram pela cerimônia de apresentação, a qual, em
iorubá, é chamada de ìkòmojáde, celebrada pelo babalaô Ogumfiditimi. Nessa ocasião, além do
nome, oferendas propiciatórias a fim de alargar a vida da criança abiku também são realizadas.
Os nomes dados às crianças podem ser, segundo a obra de Ana Maria Gonçalves, de duas
naturezas:

Todos ficaram quietos e em silêncio por um longo tempo, talvez esperando que ele
chorasse, a maioria de cabeça baixa, até que o Babalaô Ogumfiditimi continuou
com o ritual, sussurrando no ouvido do meu filho o seu primeiro nome, ou oruko,
que é um nome que ele poderia ter trazido do Orum, neste caso chamado nome
amutorunwa, ou então ser dado de acordo com as condições em que tinha nascido,
chamado de nome abiso, como era o caso do Banjokô, um abiku (Gonçalves, 2018,
p. 204).

Segundo Verger, os nomes de abiku podem ser classificados em quatro grupos: “quer nomes que
estabelecem sua condição de àbíkú [...]; quer em nomes que Ihes aconselham ou Ihes suplicam
que permaneçam no mundo [...]; quer em indicações de que as condições para que o àbíkú volte
não são favoráveis [...]; quer em promessas de bom tratamento, caso eles fiquem no mundo”
(Verger, 1983, p. 143). Sendo assim, o nome de Omotunde filia-se à primeira categoria, já que
aponta que se trata de uma criança que está nascendo novamente; o nome de Kokumo, o de
Dúrójaiyé e o de Banjokô pertencem ao segundo grupo de nomes, pois referem-se a pedidos de
permanência da vida da criança; por fim, o nome de Dúróoríìke inscreve-se ao último conjunto
de nomes, pois assegura um tratamento afetuoso à criança desde que ela opte por seguir viva.

Apesar de os nomes de branco não funcionarem como esses antropônimos específicos para
crianças abiku, já que estes imprescindem princípios ritualísticos que mobilizam magia, o uso de
hierônimos, ou seja, nomes próprios ligados à religião, também podem ser e são adotados com
fins de proteção e agrado ao divino.
Nome de branco: batismo e rasura

Ocorrendo paralelamente ao ìkómojáde, o batismo cristão exerce um papel que a cerimônia de


apresentação não pode tanger: inserir a criança à cristandade. Portanto, recusar-se ao batismo,
como Kehinde mesmo afirma, configura não aceitar a religião dos brancos, já que é através do
nome dado na ocasião do ìkómojáde que os deuses reconhecem e se referem a seus protegidos,
sem contar o fato de que o nome atribuído pela cerimônia cristã é, via de regra, ocidental, sendo,
muitas vezes, uma homenagem a santos e anjos, ou seja, representa a filiação à outra lógica
religiosa.

Banjokô e Omotunde, além de antropônimos propiciatórios à sobrevivência dos meninos, são


nomes escolhidos pela progenitora das crianças, porém, dado o predomínio da fé cristã no Brasil,
a perspectiva inerente à cultura iorubá não pôde alçar-se à oficialidade. Desta forma, Banjokô
não é o nome através do qual personagens brancas que não compartilham de uma cosmovisão
africana referem-se à criança. O menino é batizado, na Igreja Católica[192], como José, um nome
cristão. De forma similar, Omotunde não é registrado com este nome, mas sim como Luiz, o
nome que seu pai já manifestara dileção.

É comum que, no processo de nomear crianças do sexo masculino, busque-se reverenciar algum
familiar marcante, o que se dá, muitas vezes, graças a um padrão patriarcal de algumas
sociedades. Cabe recordar que o nome de branco de Banjokô, José, segundo a obra, funciona,
numa lógica ocidental, como uma homenagem a São José, mas também pode ser interpretada,
ainda que a narrativa não afirme, como uma demarcação de filiação do escravizador falecido, pai
do garoto. No caso da nomeação de Omotunde, a demarcação refere-se a um ponto mais anterior
de sua genealogia, porém o processo é análogo.

Mesmo recusando o sacramento do batismo para si por motivos religiosos, Kehinde não adotou
princípio idêntico para os filhos, consciente de que o nome de branco configuraria uma
possibilidade ainda maior de integrar a sociedade, já que ambos eram filhos de homens brancos
num contexto ainda escravista. No caso do primogênito de Kehinde, ser simultaneamente
Banjokô e José esteve intimamente ligado à aceitação da criança pela viúva de seu pai (já que o
nome cristão foi escolhido por ela), e, por consequência, ao tratamento pomposo que recebia.
Essa perspectiva é tributária do olhar de Ana Maria Machado, em Recado do nome: Leitura de
Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens, a qual afirma que:

Nome não é índice, mas signo e elemento classificatório. Não nos deixemos
enganar pela expressão nome próprio. Por que próprio? Propriedade de seu
portador? Por um lado, se o Nome é uma marca de individualização, de
identificação do indivíduo que é nomeado, ele marca também sua pertinência a uma
classe predeterminada (família, classe social, clã, meio cultural, nacionalidade etc.),
sua inclusão num grupo. O nome próprio é a marca linguística pela qual o grupo
toma posse do indivíduo, e esse fenômeno é geralmente assinalado por ritos,
cerimônias de aquisição ou mudança de Nome. A denominação é também a
dominação do indivíduo nomeado pelo grupo. (Machado, 2013, p. 28).

Desta forma, quando sinhá Ana Felipa dá ao filho bastardo de seu finado marido o mesmo nome
do morto, ela exerce o poder de nomear (como senhora, mas também como mãe ou madrinha) e
sugere que o menino, muito pelo sangue que carrega e pelos traços fenotípicos que podem ser
confundidos com carregados, no geral, por sujeitos brancos, é um novo integrante de seu grupo
familiar e social. Ainda assim, segundo Kehinde,

O meu filho não era católico, apesar de ser batizado e ter um nome cristão, pois
sempre estaria ligado aos orixás e ao Orum, por ser um abiku. Eu podia sentir isso
nele, que sempre pedia que eu ou a Esméria contássemos histórias sobre os orixás,
que ele chamava de “santinhos da África”, e o seu preferido era Ogum, mesmo sem
saber que era a ele que pertencia sua orí. (Gonçalves, 2018, p. 337).

Na contramão da experiência de Banjokô, outros escravizados não garantiram um tratamento


luxuoso ou minimamente humano através da renomeação. A adequação de nome significa, no
contexto da escravatura e da obra de Ana Maria Gonçalves, apenas a acomodação de novas
peças ao sistema escravista e a busca pela supressão de todo e qualquer fragmento cultural dos
escravizados, assim homogeneizando-os. Por esta razão nos parece bastante interessante dar
relevo aos nomes de origem africana resistentes e insurrectos, pois estes nos falam da
insubmissão e do não esquecimento cultural experienciados por sujeitos negros.

O episódio do batismo dos escravizados, antes mesmo da chegada ao Brasil, deixa entrever
justamente esse papel burocrático e de apagamento que a renomeação possui. Todavia, essa
passagem também nos revela que, apesar do caráter impositivo e tão distante à própria ideia de
conversão religiosa espontânea, a fé daqueles sujeitos sequestrados em suas divindades
permanecia vigorosa.

Foi então que ficamos sabendo o motivo da demora no embarque dos homens, pois
os brancos tinham batizado todos eles com nomes que chamavam de nomes
cristãos, nomes de brancos, e àquele homem da perna machucada, de acordo com
um outro que estava logo atrás dele na fila, tinham dado o nome de João. Soubemos
que o padre que fez os batizados tinha chegado atrasado, depois do embarque das
mulheres. Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer
o nome africano, o que podia ser revelado, é claro, e o lugar onde tinham nascido,
que eram anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco.
Era esse nome que eles tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre
suas cabeças e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia. Sabiam apenas
que era com tal nome que teriam que se apresentar no estrangeiro. Foi tudo muito
rápido, mas disseram que mesmo assim se formou uma grande fila diante do padre,
parecendo uma cobra que ia da beira da água até quase a saída do barracão onde
estivemos presos. Uma grande cobra de fogo, pois era ladeada por guardas que
formavam um corredor iluminado por tochas. Alguém lembrou que o padre também
tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião
dos brancos, deixando em África toda a fé nos deuses de lá, porque era lá que eles
deveriam ficar visto que os deuses nunca embarcam para o estrangeiro. Quando
alguém comentou isso, todos fizeram saudações aos seus orixás, eguns ou voduns,
demonstrando que não tinham concordado. Um homem disse que tinha perguntado
a um dos guardas onde era o estrangeiro e a resposta foi que estávamos sendo
enviados para o Brasil. (...) Ele desconfiava que nós éramos o que os brancos
chamavam de peças, pois pessoas da família dele tinham desaparecido depois da
passagem de lançados[193] perto de onde viviam, e que esses lançados também
falavam em Brasil. Esse homem se chamava Olaitan e tinham dado a ele o nome de
branco de Benevides, que não chegaria a ser usado. (Gonçalves, 2018, p. 49-50).

Como o próprio trecho acima apresenta, ainda que com significação diferente[194], muitos nomes
de branco dados a negros escravizados não chegam a ser utilizados, porque muitas personagens
são apresentadas apenas com seus nomes africanos. Adeola, Monifa, Ifasen e Fayola são
exemplos de nomes que não geram estranheza no tecido da narrativa, sobretudo por serem
apresentados num contexto religioso, e que não carregam essa dupla nomeação. Considerando
que o batismo e a renomeação eram um procedimento padrão em relação aos recém
sequestrados, o caso de Kehinde, de fuga à cristandade, é uma exceção que merece especial
destaque.
Kehinde e Luísa: Ibêji de si mesma

Kehinde, ainda bem pequena, logo ao fim da terrível viagem de África ao Brasil, saltou para o
mar, a fim de fugir do padre que realizaria seu batismo, por não desejar mudar seu nome ou
tornar-se cristã, já que seu nome era um liame entre a menina e seus deuses, seu passado, sua
humanidade.

Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos
que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do
Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido
batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham
feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos,
de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois
tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu
nome que meus voduns iam me proteger, e que também era através do meu nome
que eu estaria sempre ligada à Taiwo, podendo então ficar com a metade dela na
alma que nos pertencia. O escaler que carregava o padre já estava se aproximando
do navio, enquanto os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que não
descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens na praia. Amarrei
meu pano em volta do pescoço, como a minha avó fazia, e saí correndo pelo meio
dos guardas. Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar. A água
estava quente, mais quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me
lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a terra. Um
dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele, provavelmente para não
perderem uma peça, já que eu não tinha como fugir a não ser para a ilha, onde
outros já me esperavam. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu
queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe
tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns (Gonçalves,
2018, p. 63).

Nos interessa perceber como os conselhos da avó de Kehinde são tomados como verdade pela
menina, sendo, de alguma forma, boa parte daquilo que ela conhece das tradições de seu povo.
Seu nome, inabandonável, parece configurar a única herança possível de suas referências
familiares e religiosas: é o nome que sua mãe e avó lhe deram, garantindo sua pertença ao grupo;
é o nome que a ligava à gêmea e portanto cedia-lhe direito à totalidade da alma que dividiam; é o
nome através do qual suas divindades a conheciam.

Portanto, como consequência à fuga ao batismo, obteve-se a carência do nome cristão e a


impossibilidade de integração ao sistema escravocrata, já que o nome de Kehinde não constava
das listas de controle de compra de peças. Foi necessário apropriar-se do nome de branco de uma
amiga, Tanisha, para adquirir execrável pertencimento: ao grupo de pessoas rebaixadas a mão de
obra.

O homem que tinha acabado de me comprar sentou-se ao lado de uma mesa que
servia de escritório em um dos cantos do armazém, onde ele e um dos empregados
trataram da assinatura dos títulos de compra e venda. Os dois pretos que o
acompanhavam já sabiam o que fazer e logo nos amarraram, eu, a cozinheira e o
pescador, e nos levaram para perto da mesa, onde quiseram saber os nossos nomes,
os nomes de branco que tínhamos recebido em África ou na Ilha dos Frades. O do
pescador era Afrânio, e então passou a se chamar Afrânio Gama, e a cozinheira
ficou sendo Maria das Graças Gama. Quando eu disse que me chamava Kehinde, o
nosso dono pareceu ficar bravo, e um dos empregados perguntou novamente, em
iorubá, que nome tinham me dado no batismo. Eu repeti que meu nome era Kehinde
e não consegui entender o que diziam entre eles, enquanto o empregado procurava
algum registro na lista dos que tinham chegado no dia anterior. O que sabia iorubá
disse para eu falar o meu nome direito porque não havia nenhuma Kehinde, e eu
não poderia ter sido batizada com este nome africano, devia ter um outro, um nome
cristão. Foi só então que me lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre,
quando eu deveria ter sido batizada, mas não quis que soubessem dessa história. A
Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para os
brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O
nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos
voduns, por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo.
Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que
eu me apresentava ao sagrado e ao secreto. (Gonçalves, 2018, p. 72-73).

O trecho acima, do qual retiramos parte do título deste artigo, nos salta aos olhos, pois elenca a
declaração que revela um aspecto crucial defendido aqui: o uso dos nomes como demonstração
da agência negra, a qual evidencia mundivivências da personagem, além de flagrante
intencionalidade, discernimento e engenhosidade, isto é, qualidades fundamentalmente humanas.
A utilização conveniente do nome Luísa, seu nome de branca, paralelamente à delimitação das
situações de sua vida nas quais jamais esconderia seu nome africano, evocam uma noção de que
a personagem acaba se desdobrando em duas pessoas diferentes, que têm a mesma aparência, e
são, em alguma medida, indecomponíveis, tal qual gêmeos numa perspectiva iorubá. Desta
forma, Luísa torna-se ibêji de Kehinde e simula o duplo de si mesma, na medida em que uma
preenche o hiato social, religioso, revolucionário, laboral, afetivo ou familiar que a outra produz.
É possível afirmar que a experiência de ser duas novamente é o que garante certa mobilidade
social e espacial à Kehinde, naturalizado suas muitas facetas: africana retornada, mas com longa
vivência no Brasil; ex-escravizada, comerciante, gêmea e praticamente sem familiares vivos; órfã
muito cedo, mãe, avó e filha de santo; mulher violentada, mas que conhece o afeto e o desejo.
Kehinde e sua experiência são invulgares na medida que, em comparação a outras personagens
literárias similares, sobretudo as que surgem em obras canônicas, garantem um olhar amplificado
e humano dispensado às mulheres negras. Essa diferença pode ter como principal motivo o fator
histórico trazido no bojo da narrativa, o qual nos põe em contato com diversos aspectos, como
vivências e sujeitos, que, por tantas razões, não podem ser transpostos com perfeição ao tecido
ficcional.

Em África, depois de já estabelecida, vivendo com seu companheiro e seus filhos mais novos,
Kehinde decide por assumir socialmente seu nome de branca, visto que até mesmo o rei da
região tinha um nome ocidental e um africano, que era secreto. É interessante, no entanto,
perceber que a mudança de nome só ocorre mediante o aconselhamento com um sacerdote, o
qual aponta a normalidade em possuir dois nomes.

Todo o negócio da venda do terreno foi feito rapidamente por intermédio do José
Joaquim, e dois dias depois já estava tudo em meu nome. O John achou melhor
assim, para evitarmos problemas caso o reino do Daomé se tornasse inimigo da
Inglaterra, o que era bem improvável em relação ao Brasil. Foi naquela ocasião que
mudei meu nome, não sem antes perguntar ao Prudêncio se isso me traria algum
problema. Ele respondeu que não, que eu podia ter um nome brasileiro e outro
africano, que um não atrapalhava o outro, e até o próprio Chachá tinha um nome
africano secreto, que não revelava a ninguém. Mantive o Luísa, com o qual já
estava acostumada, e acrescentei dois apelidos: Andrade, que a sinhazinha tinha
herdado da mãe dela, e Silva, muito usado no Brasil. Então fiquei sendo Luísa
Andrade da Silva, a dona Luísa, como todos passaram a me chamar em África, os
que já me conheciam e não estranharam a mudança, e os que me conheceram a
partir daquele momento. Alguns também me chamavam de sinhá Luísa, a maioria
dos retornados, e eu achava muita graça nisso, principalmente quando, ao tomar
conhecimento, a sinhazinha [Maria Clara, filha do escravizador falecido de
Kehinde] passou a me chamar assim nas cartas, de brincadeira. Ela era a sinhazinha
e eu era a sinhá, e acredito que nós duas pensamos em uma coisa que nem precisou
ser dita, pois não era de bom tom, mas eu, a sinhá, tinha sido mãe de um filho do
pai dela, o próprio sinhô (Gonçalves, 2018, p. 789).

Este excerto trava diálogo com um aspecto religioso, que é referido algumas vezes ao longo da
obra: os nomes africanos envoltos em segredo. Na ocasião da saída de santo, cerimônia em que o
recém iniciado é apresentado à comunidade, durante o transe religioso, o orixá brada um nome
em iorubá, que revela aspectos do destino do iniciado. Segundo a antropóloga Mariana de Lima e
Silva, é perceptível “a importância simbólica dessa festa onde os negros africanos e descendentes
podiam ignorar seus nomes em português gritando publicamente seu nome sagrado, em yorubá”
(Silva, 2013, p. 172). O nome em questão, chamado orúko, ou seja, “nome”, em iorubá, é sabido
apenas por aqueles que o escutam, podendo ser dito pelos adeptos da religião apenas em
situações bastante específicas. Esse dado religioso parece similar à experiência de Kehinde, que
chega a afirmar que seu nome africano seria reservado “ao sagrado e ao secreto”.
Ibêji que Oxum deu à Kehinde

No percurso de volta à África, Kehinde envolve-se afetivamente com John, negro comerciante
nascido em Serra Leoa, e engravida. Já em África, descobre que terá gêmeos, ao cabo de uma
gestação que demanda certos cuidados e é marcada por problemas de saúde inéditos e um parto
difícil. Esse episódio da gravidez e do parto ocorre num momento relativamente avançado da
narrativa, bastante tempo depois do nascimento de Banjokô e Omotunde, ou seja, quando já
conhecemos algo do procedimento de Kehinde ao nomear seus filhos. Sendo assim, enquanto
leitores, experienciamos uma quebra de expectativa considerável quando somos informados
acerca dos nomes escolhidos para os filhos gêmeos de Kehinde.

Maria Clara e João, nascidos em África, diferentemente de seus irmãos mais velhos e de sua
mãe, carregam apenas um nome: nomes de branco.

A Conceição perguntou os nomes e eu não soube dizer, ainda não tinha pensado
neles, pois tinha deixado para decidir junto com o John. A Aina comentou que,
como eram ibêjis e tinham nascido no Daomé, onde nem se dizia ibêji, mas sim
hoho, deveriam se chamar Zinsu, a menina que tinha nascido primeiro, e Sagbo, o
menino que tinha nascido por último. A minha mãe tinha dado a mim e à Taiwo
nomes em iorubá, e não em eve, provavelmente em homenagem ao pai que nem
cheguei a conhecer. Mas eu não queria dar nomes africanos para meus filhos, pois
gostava mais dos nomes brasileiros, achava bonito o modo de dizer. Isso também
contradizia o que eu pensava antes, quando não quis ser batizada para conservar
meu nome africano, usando o nome brasileiro somente quando me convinha. Mas
naquele momento, vendo a situação em Uidá e, pelo jeito, em vários lugares da
África, um nome brasileiro seria muito mais valioso para meus filhos. Eu também
ainda pensava em talvez voltar para o Brasil, e os nomes facilitariam a vida deles,
não seriam tão diferentes, apesar de nascidos em África. O John concordou, depois
de discutirmos se não seria melhor pôr nomes ingleses, e acabamos nos decidindo
por Maria Clara, em homenagem à sinhazinha, como ela tinha feito comigo, e João,
em homenagem ao John e também ao padre Heinz. (Gonçalves, 2018, p. 766-767).

Batizados e também submetidos à cerimônia de nome enquanto John, que era protestante, viaja,
Maria Clara e João iniciam um padrão diferente na família de Kehinde. Apesar de estarem em
África, dão nomes ocidentais a todos os muitos filhos que nascem[195], inclusive um abiku que
nunca recebeu os necessários tratamentos para ser segurado à vida, nem mesmo um nome
propiciatório, e morreu ainda criança.

Sempre me pareceu que as mulheres do João disputavam para ver quem daria mais
filhos a ele, pois tiveram uma criança atrás da outra. Luísa, César, Francisco, Maria
Eulália e Maria Eugênia são os nascidos do casamento com a Isabel. Com a
Adenike, Cosme e Damião, os ibêjis, a Catarina e a Romana. Contando com o
Maurice, da Maria Clara, eu tinha dez netos. Depois nasceu o Joaquim, que teve
papel muito importante nas nossas vidas (...). (Gonçalves, 2018, p. 941).

Nos parece de fundamental importância recuperar a noção pontuada anteriormente: a de que o


nome, de alguma forma, funciona como um adjetivo para alguns personagens. Com nome de
branca e sendo criada como brasileira, Maria Clara não tem a religiosidade local como uma
referência positiva e não busca na sabedoria nativa estratégias de burlar as agruras da vida.

Apesar da dedicação da Geninha [jovem que retornou à África no mesmo navio que
Kehinde], eu me sentia cada vez mais só, e, à maneira dos abikus, querendo voltar
logo para o Orum. Desde o início eu tinha falado para a Maria Clara que o Maurice
era um abiku, que ela precisava tomar cuidados especiais com ele, mas ela nunca
acreditou, nunca levou a sério, e muito menos o Beaulieu, que dizia que certas
coisas só aconteciam a quem acreditava nelas. Quando me falavam isso, eu me
arrependia de ter criado a Maria Clara tão à brasileira, tão sem conhecer os segredos
da África. Afinal de contas, era em África que ela tinha nascido e estava morando, e
deveria saber que cada lugar tem as suas próprias crenças. Não estou falando sobre
as crenças das pessoas, que isso a Maria Clara respeitava bastante, por conviver
com pessoas tão diferentes. Mas a crença do lugar mesmo, a que vem da terra, das
árvores, do vento, das águas, do céu, da claridade e da escuridão. Como eu tinha
muito tempo disponível, ficava pensando em tudo isso, e era muito fácil perceber,
pelo menos para mim, como a África era diferente do Brasil, mesmo para quem não
podia “ver” essa diferença. Se de uma hora para outra eu pudesse estar em cada um
dos lugares por onde já tinha passado, sem ser avisada qual era, com certeza poderia
adivinhar. Sentir. Mas a Maria Clara não sabia disso e não fui capaz de fazê-la
entender, e por isso ela não tomou os cuidados de que o Maurice precisava. Quando
o menino ia me visitar só com a ama, uma africana, eu pedia a ela que fizesse as
pinturas, que colocasse a tira de búzios amarrada no tornozelo dele e desse os
banhos de ervas. Mas tudo tinha que ser desfeito antes de eles voltarem para casa,
pois a Maria Clara tinha avisado que ia despedi-la se ficasse sabendo que ela estava
dando corda às minhas crendices. E assim foi até que o Maurice morreu, pouco
tempo antes de completar sete anos, e nem mesmo então pude falar alguma coisa,
repreendê-la, porque a dor dela já era grande demais, a dor que eu conhecia tão bem
e que não tem igual no mundo. (Gonçalves, 2018, p. 940).

Ao dar nomes cristãos aos seus ibêjis buscando inseri-los à lógica brasileira que, na realidade,
eles nem sequer viveram, Kehinde criou filhos que, de certa maneira, não pertenciam à África e
nem ao Brasil: são do entrelugar tão específico do retornado, conhecido por Kehinde. Segundo
artigo veiculado ao Portal Geledés,

As diferenças culturais entre eles [retornados] e os nativos corroboraram para que


os retornados fossem vistos como “brasileiros” (...) e não como iorubá, fon, mahi ou
qualquer outra etnia. Ao mesmo tempo, eles tendiam a ver os africanos como
“selvagens”. Em Lagos, por exemplo, os ex-escravos brasileiros eram vistos como
estrangeiros. (Geledés Instituto da Mulher Negra, 2014).

De maneira paralela, a criação que João e Maria Clara receberam esteve muito mais de acordo
com a experiência brasileira, lugar onde Kehinde passou quase 30 anos de sua vida e, portanto,
absorveu muito das práticas, ainda que não abandonasse outras, tipicamente africanas, como a
própria religiosidade.
Conclusão

A obra prima de Ana Maria Gonçalves, devido a seu grande fôlego, abre-se a olhares múltiplos,
recorrentes e quase intermináveis. Ainda que seja extensa no tamanho, mais o é nas
possibilidades que evoca. Neste artigo, buscamos demonstrar que, através do exercício de
nomear sujeitos no interior da obra, o personagem negro é construído como sujeito de si e no
mundo, e imprime, em sua descendência, a cosmovisão à qual está filiado.

O nome, catalisador das reflexões aqui lançadas, encerra (ou inicia?) em si, um princípio de
identificação, mas, antes, de identidade. Pudemos perceber como quase nada nos processos
antroponímicos do romance é fruto do acaso, mas sim de uma perspectiva devota e sensível, mas
também racional e plausível. Trouxemos, ao longo do texto, proposições no sentido de
circunscrever o nome próprio aos campos da propriedade, do comunitário e do cultural, porém,
em Um defeito de cor, todas essas noções só puderam ser mobilizadas graças à perspectiva
individual, por vezes solitária, e fundamentalmente humana de Kehinde: ela é a lente que nos
permite entrever a História da escravidão, a História dos retornados ou simplesmente a história
de sua vida.

Ao nos apresentar Kehinde que, simbolicamente, foge à imposição cristã, e transita entre
Estados, continentes, relacionamentos, profissões e, especialmente, nomes, a autora deste
romance-vida nos presenteia com a personificação da autonomia feminina, demonizada por
alguns, mas ambicionável para todas: vivida apenas por Kehinde, nascida “em Savalu, Reino de
Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez”.
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Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: romance de formação
feminino e negro
[196]
Aline Alves Arruda

O clássico romance de formação

O termo Bildungsroman aparece pela primeira vez, em 1810, na Alemanha, criado pelo professor
de Filologia Clássica Karl Morgenstern. A denominação, entretanto, emerge para o discurso
acadêmico por meio da obra do filósofo idealista Wilhelm Dilthey. Morgenstern assim define o
gênero:

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido


ao seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e
trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar,
também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de
uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance (apud Maas, 2000,
p. 19).

Nascido na Alemanha, diante das necessidades burguesas, o gênero constitui então uma forma
literária muito estudada e na qual se encaixam romances canônicos como Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, e as clássicas histórias de Robinson Crusoé. Sua
característica pedagógica parecia preencher a função da literatura no século XIX, tida como
instrumento educacional, servindo de exemplo aos leitores das obras. Todavia, como afirma
Benjamim, “o romance de formação (Bildungsroman), por outro lado, não se afasta
absolutamente da estrutura fundamental do romance” (1994, 202). Permanecem as características
clássicas do gênero em relação à estrutura e, ainda segundo o crítico alemão, o romance de
formação também integra o processo social na vida do personagem. Entretanto, o herói dessa
forma de romance vive um ciclo no qual seu amadurecimento é o objetivo final. Ele sai da casa
paterna, passa por transformações que o mundo lhe proporciona até chegar ao autoconhecimento
e autodescobrimento. Em sua trajetória, passa por percalços, dificuldades, instabilidades e
normalmente tem sua formação através de instrutores, mentores, pessoas mais velhas e encontros
com a arte, com a política e com a vida pública.

Goethe, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, foi considerado um dos criadores do


gênero Bildungsroman.Colocando no centro do romance a formação do indivíduo, o autor
retratou a sociedade da época na figura de seu protagonista Wilhelm Meister e dos personagens
que rodearam sua história. Foi enquanto romance de formação que este livro do escritor alemão
conquistou seu lugar na literatura universal. Para Mazzari (2006), o Wilhelm Meister é dominado
inteiramente pelo termo Bildung, pela ideia de formação. Lukács (2006), em posfácio ao
romance de Goethe, também confirma as características do Bildungsroman inauguradas pelo
autor. Influenciado pelo Iluminismo, o romancista alemão, na opinião do teórico, atribui uma
grande importância ao desenvolvimento humano, à educação. Por isso, em seu romance,
encontramos várias marcas desta orientação pedagógica que contribuíram para a formação do
protagonista, tais como a sociedade da Torre, a figura do abade, as cartas de aprendizados, dentre
outros. Segundo Lukács:

Com traços muito sutis e discretos, com algumas breves cenas, Goethe dá a
entender que a evolução de Wilhelm Meister foi desde o princípio controlada e
conduzida de uma forma determinada. (...) Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister é um romance de educação: seu conteúdo é a educação dos homens para a
compreensão prática da realidade (2006, p. 589-590).

Essa intenção fica explícita, portanto, no romance de Goethe.

Segundo Frye[197], “em todas as idades, a classe social ou intelectual dominante tende a projetar
seus ideais em alguma forma de estória romanesca, na qual os virtuosos heróis e as belas
heroínas representam os ideais, e os vilões, as ameaças à supremacia daqueles” (1957, 185).
Dentro, portanto, de um contexto histórico alemão em que a formação do burguês se torna uma
ferramenta para a transição da cultura do mérito herdado para a cultura do crescimento pessoal
adquirido, o romance de formação tem um lugar importante. Para Wilma Patrícia Maa,

a palavra Bildungsroman conjuga, portanto, dois termos de alta historicidade no


contexto alemão e mesmo europeu. Por um lado, a incipiente classe média alemã
movimenta-se em direção à sua emancipação política, processo que se reflete na
busca pelo auto-aperfeiçoamento e pela educação universal. A par disso, cristaliza-
se o reconhecimento público de um gênero literário voltado para a representação do
próprio ideário burguês, gênero esse que o século XIX irá conhecer como a grande
forma do romance realista (Maas, 2000, p. 22-23).

Assim, a formação do burguês ascendente coincide com a popularização do romance. Durante


essa propagação do gênero, o Bildungsroman tinha apenas a intenção pedagógica; a ficção era o
pano de fundo para esse objetivo da educação. Lembrando que segundo Bakthin (2003), essa
modalidade específica do gênero romanesco surge antes. O teórico russo considera, por exemplo,
a Ciropédia, de Xenofonte um protótipo básico do gênero, assim como Gargântua e Pantagruel,
de Rabelais, ambos anteriores ao Neoclassicismo.

Sabe-se também que o conceito de romance de formação é maleável, tendo em vista os estudos
recentes sobre o gênero e sua transposição para a literatura contemporânea. Segundo Sandra
Valenzuela (2004), apesar dessa maleabilidade, é possível distinguir algumas características nas
obras analisadas e citadas pelos estudiosos como Bildungsroman: a crise do sujeito, o estado
caótico do mundo burguês, o questionamento sobre a validade da formação burguesa, entre
outras. Também segundo Patrícia Maas, algumas características do protagonista podem ajudar na
identificação deste gênero romanesco: a consciência explícita do protagonista sobre o caminho
que ele percorre, sendo sua escolha ligada à orientação no mundo e ao autodescobrimento; a
imagem que o protagonista tem do objetivo de sua trajetória de vida é equivocada, devendo ser
corrigida ao longo de sua formação; e ainda, as experiências típicas do protagonista como a
separação da casa paterna, os mentores e guias presentes na sua educação, as experiências
profissionais, o contato com a arte e com a vida pública.

Bakhtin (2003) em Estética da criação verbal teoriza sobre o gênero. Ele afirma que o romance
que produz a imagem do homem em formação é raro. O autor caracteriza o romance de formação
principalmente através do personagem. Para ele, no Bildungsroman, o herói se torna uma
“grandeza variável”, a mudança dele ganha significado de enredo, o tempo integra a imagem do
homem, interioriza-o. Bakthin afirma ainda que essa formação do homem nesse gênero de
romance pode ser muito diversificada. Para o autor, há cinco tipos de romance de formação: o
primeiro, ligado à tradição idílica do século XVIII, que utiliza ciclos para construir a
temporalidade; o segundo, que conduz sempre o protagonista à desilusão diante do mundo, sendo
caracterizado pela representação do mundo e da vida como experiência, como escola; o terceiro é
o do tipo biográfico, nele já não existe elemento cíclico, cria-se o destino do homem; o quarto
seria o romance de formação didático-pedagógico; e por último o realista, sendo este o mais
importante: “aquele em que a evolução do homem é indissolúvel da evolução histórica”
(Bakthin, 2003, p. 221). Nesse tipo, o homem, o herói, são formados ao mesmo tempo que o
mundo.

Nos primeiros quatro tipos de romance citados por Bakthin, o homem se forma num mundo
pronto, estável. As mudanças que ocorrem não o afetam. O mundo é, nesses romances, um
imóvel ponto de referência para o homem em desenvolvimento. No quinto tipo, o homem se
situa na fronteira de duas épocas, ele é obrigado a se tornar um novo indivíduo. Nesse
Bildungsroman surgem os problemas da realidade humana. Bakthin afirma ainda que o romance
de formação realista não está dissociado dos outros tipos, pelo contrário, está imediatamente
relacionado aos outros e suas características.

Quanto à estrutura, em geral, os romances de formação seguem a ordem aristotélica, de começo,


evolução e fim. Primeiro, o autor expõe os motivos da separação do protagonista de sua terra
natal e sua família, para em seguida viajar em busca de sua formação. O herói é sempre jovem, e
parte sozinho nessa viagem. A etapa da evolução seria a formação propriamente dita, quando o
protagonista vive suas aventuras, encontra seus mentores e mestres, que lhe guiam na formação.
No final, normalmente, o herói encontra-se de volta a sua família e a sua constituição burguesa,
sentindo-se preparado para vida adulta.

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, romance de Goethe publicado entre 1795 e 1796, é
um dos mais importantes exemplos de Bildungsroman. Ele se encaixa na classificação
bakthiniana do romance de formação realista que, segundo o crítico russo, “é a manifestação
mais característica do Iluminismo alemão” (2003, 223). Ainda segundo o autor, como Goethe foi
herdeiro direto da época do Iluminismo, seu romance tem uma visão artística desse tempo
histórico. Em seu romance de formação, o escritor alemão atrela os destinos humanos à história
do mundo. Para Valenzuela: “é preciso ter sempre em conta que a Bildung está diretamente
relacionada com o Iluminismo, do que decorre a ideia de formação aliada à educação como
funções do Estado para a manutenção do bem-estar da sociedade” (2004, p. 57).
Um defeito de cor como romance de formação

No gênero literário romance de formação, entretanto, há pouco espaço para a mulher. Cristina
Ferreira Pinto (1990) afirma que o Bildungsroman retrata o processo em que o personagem
aprende a ser “homem”. A autora confirma esse pensamento valendo-se de várias definições
sobre o gênero em que sempre as personagens são tratadas no masculino. A pesquisadora
verificou ainda que embora existissem romances de aprendizagem cujas protagonistas eram
mulheres, sua formação enfocava sempre a maternidade e o casamento.

Verifica-se, assim, que nesses romances, as protagonistas têm seu bildung interrompido pelas
“obrigações femininas”. Elas, diferentemente dos personagens masculinos, não chegam à
formação final, confirmando mais uma vez a alteridade da mulher na literatura mundial:

no contexto da sociedade brasileira – e de forma semelhante ao que se vê em outros


contextos sociais -, o “feminino” representa a expressão do que tem sido sempre
subjugado, silenciado, colocado em uma posição secundária em termos culturais
(histórico, político, econômico etc.) (Pinto, 1990, p. 26).

Sabemos, então, que o chamado “centro” não é mais totalmente válido. Assim, o “marginal”,
aqui representado em termos de classe, etnia e gênero, assume, como confirma Hutcheon, “uma
nova importância à luz do reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura não é o
monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que
podemos ter presumido” (1991, p. 20).

O livro em questão é um bom exemplo disso. A autora desconstrói o romance de formação


tradicional, dando a ele contornos paródicos. A protagonista do romance Um defeito de cor traça
o ciclo proposto pelos estudiosos no conceito do Bildungsroman: sai da casa da família, conhece
outra realidade, aprende com outras pessoas e volta ao lar completando sua formação; entretanto,
o ciclo dessa personagem é bem diferente dos protagonistas masculinos dos clássicos romances
de formação: Kehinde é um sujeito diaspórico, atravessa o Atlântico a bordo de uma navio
negreiro, arrancada de sua terra natal junto com Taiwo, sua irmã gêmea e a avó, que se oferece
como escrava para seguir as netas. Ela não sai voluntariamente, portanto, como Wilhelm Meister,
personagem do clássico de Goethe, que escolhe viajar pelo mundo para realizar sua formação,
seu bildung. E todo o percurso de Kehinde no Brasil e sua volta à África é o oposto dos
personagens masculinos como o de Goethe.
O pensamento recente sobre o conceito de diáspora discute a questão do pertencimento, do
conceito de raça e propõe uma reflexão mais ampla e ambivalente em relação ao nacionalismo e
às identidades. Gilroy (2001) afirma que as fronteiras culturais foram alargadas e “a ideia de
diáspora se tornou agora integral a este empreendimento político, histórico e filosófico
descentrado, ou, mais precisamente, multi-centrado” (2001, 17). O pensador também afirma que

A diáspora africana pelo hemisfério ocidental dá lugar aqui à história de futuras


dispersões, tanto econômicas quanto políticas, pela Europa e pela América do
Norte. Estas jornadas secundárias também estão associadas à violência e são um
novo nível da disjunção diaspórica, e não apenas reviravoltas ou impasses (2001, p.
21).

Já Hall considera que “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (2003, 27),
elas não são, portanto, fixas e, num contexto diaspórico, carregam consigo a disseminação, o
espalhamento que acaba multiplicando-as. Além disso, o conceito de identidade está relacionado
ao conceito de memória individual. Para Ricouer (2000), a memória é erigida como critério de
identidade e está a serviço da busca desta. É o que acontece com a protagonista Kehinde, que
vive sua busca a partir da memória afro-descendente herdada de seus ancestrais, em especial de
sua avó, sacerdotisa da etnia jeje, do antigo Daomé, do culto à Dan, a serpente sagrada.

A infância da protagonista é muito conturbada e não se assemelha ao passado dos heróis


masculinos dos clássicos romances de formação. A menina negra nasceu em Savalu, reino de
Daomé, África, e era gêmea da irmã Taiwo. Os gêmeos, na cultura iorubá são chamados de Ibêjis
e como Kehinde foi a segunda a nascer, recebeu esse nome que quer dizer “o que demorou a
sair”. Ainda nas primeiras páginas temos a trágica narração da morte do irmão de Kehinde,
Kokumo, e de sua mãe. Eles são mortos pelos guerreiros do rei que invadem a casa da família. A
mãe, antes de ser morta, é estuprada e a narradora nos conta em detalhes essa cruel cena. Após a
morte deles, a avó das gêmeas leva-as para outra cidade, Uidá, onde tentarão reconstruir a vida.
A menina Kehinde, apesar da dor da perda, consegue se alegrar ao ver o mar. É nessa cidade que
as ibêjis serão capturadas e levadas, junto com a avó, no navio negreiro a caminho do Brasil. A
travessia ganha importante espaço no capítulo um e nos subcapítulos “A partida”, “A viagem”,
quando Kehinde e sua irmã gêmea Taiwo foram capturadas para serem presenteadas a brancos
brasileiros e sua avó, para segui-las, entrega-se aos comandantes do navio. A partida é narrada de
forma minuciosa, todos os detalhes do navio negreiro são enfatizados através do ponto de vista
de uma menina africana, que, assustada, temia por sua vida, pela vida de sua avó e de sua irmã.
O porão é descrito como um espaço muito apertado, extremamente pequeno e, em seguida, ao
narrar sobre a viagem, temos um relato assombroso das crueldades sofridas pelos negros
escravos:

Durante dois ou três dias, não dava pra saber ao certo, a portinhola no teto não foi
aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas
pessoas se queixavam da falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era
o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu que se nos deitássemos de bruços
e empurrássemos o corpo um pouco para a frente, poderíamos respirar o cheiro da
madeira do casco do tumbeiro. (...) Quando não conseguíamos mais ficar naquela
posição, porque dava dor no pescoço, a minha avó dizia para nos concentrarmos na
lembrança do cheiro, como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o único cheiro a
entrar pelo nariz (...)”. (Gonçalves, 2006, p. 48).

A literatura afro-brasileira é repleta de imagens como essas, do navio negreiro como símbolo da
história diaspórica africana. É uma marca da memória coletiva, aqui resgatada através da
narração da própria Kehinde, um ponto de vista interno, diferente do clássico “Navio negreiro”
de Castro Alves, em que as agruras sofridas no porão das embarcações são narradas “de fora pra
dentro”, pelo poeta condoreiro. Outros escritores como Maria Firmina dos Reis, Solano Trindade
e Conceição Evaristo também utilizam a figura do navio como forma de retomar a memória
ancestral negra. A travessia pelo Atlântico aponta também para um aspecto importante do
Bildungsroman feminino e negro de Ana Maria Gonçalves: a viagem. A narradora se desloca
muitas vezes durante sua formação. Depois de Savalu e Uidá, na África; da Ilha de Itaparica e de
São Salvador, na Bahia, Kehinde percorre o Maranhão, Recôncavo (Cachoeira), Rio de Janeiro,
Santos, São Paulo, Campinas, volta a Salvador e, de volta à África, novamente Uidá e, por
último, Lagos, assemelhando-se, nesse aspecto a Wilhelm Meister, personagem de Goethe.

Neste livro considerado o modelo para o romance de formação, o protagonista, após a morte do
pai, escreve uma carta ao cunhado Werner (que administra os negócios da família), o que, na
opinião de Mazzari, revela as concepções e os ideais do herói e por isso chega a ser uma espécie
de “manifesto programático do romance de formação” (2006, 14). Isso porque, na carta, estão
expressos desejos do protagonista que se configuram como características fundamentais do
gênero: a ideia de formar-se a si mesmo (autonomia), a totalidade (formação plena), e harmonia,
principalmente em relação às potencialidades artísticas, intelectuais e físicas do herói. Um
aspecto interessante do início da formação de Kehinde, e que marca sua autonomia, é a recusa
dela pelo batismo cristão em terras brasileiras. Ao chegar à Ilha dos Frades, na Bahia, foi exigido
que os negros capturados fossem batizados por um padre, ganhando um nome novo cristão e
deixando para trás o nome africano, assim como também mostram registros históricos da época.
A narradora se recusa:
Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha
recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em
terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar
os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos
da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam
me proteger, e que também era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à
Taiwo, podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia
(Gonçalves, 2006, p. 63).

Em seguida, Kehinde salta ao mar e escapa do batismo, desembarca usando seu nome, “o nome
que a minha avó e a minha mãe tinha me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos
voduns” (idem, p. 63). Além da identidade que o nome traz a todo indivíduo, a protagonista
ressalta a importância da memória coletiva que seu nome carrega, era a ligação entre ela e suas
ancestrais, as mulheres que a geraram e a protegiam. Algumas páginas à frente, Kehinde é
vendida como escrava, e como o dono não encontra seu nome de batismo nos registros, ela é
questionada e escolhe Luísa para dizer, nome cristão de sua amiga Tanisha. Assim, “para os
brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. [...] Mesmo
quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao
sagrado e ao secreto” (p. 73).

A formação da menina africana começa, portanto, repleta de violência, perdas e de uma travessia
involuntária a caminho de um país estranho sem sua família e amigos. Depois de perder a irmã e
a avó, Kehinde chega à Ilha dos Frades e em seguida à Ilha de Itaparica, onde trabalha como
escrava durante anos, vivendo e presenciando inúmeras tragédias cometidas pelos senhores de
engenho escravocratas. Sua passagem da infância pela adolescência lhe custará ainda um
estupro, outra violência ao corpo feminino mostrada no romance, quando é obrigada a se deitar
com o patrão, mesmo este sabendo que seu casamento com outro escravo se aproximava. Dessa
tragédia virá uma gravidez e um filho, a quem a protagonista dá o nome de Banjokô, “sente-se e
fique comigo”, e quem também perderá, anos depois.

Segundo Cristina Pinto (1990),

Para a mulher, a única possibilidade de existência residia no espaço do casamento e


da maternidade. (...) Assim, enquanto o herói do “Bildungsroman” passa por um
processo durante o qual se educa, descobre uma vocação e uma filosofia de vida e
as realiza, a protagonista feminina que tentasse o mesmo caminho tornava-se uma
ameaça ao status quo, colocando-se em uma posição marginal (p. 13).
A formação de Kehinde contesta, por um lado, o pensamento da pesquisadora, pois na condição
de estrangeira, escrava, mulher e negra ela não teve “direito” sequer ao casamento, como a
sinhazinha, por exemplo, que encontrou um noivo português e encerrou assim sua formação
educacional no colégio de freiras onde estudava. Ao contrário dela, a africana teve seu
casamento interrompido pelo estupro e pelo castramento de Lourenço, o escravo com quem ia se
casar. O dono deles, senhor José Carlos, não admitiu que a bela negra se entregasse pela primeira
vez ao noivo e, repetindo um comportamento comum na história escravocrata brasileira, deita-se
com ela antes e assim a engravida. O pai do seu segundo filho, o português Alberto, embora
demonstre bastante admiração por ela, não a assume diante da sociedade branca e vai morar com
Kehinde em um sítio afastado de São Salvador. A protagonista carregará, mais uma vez, o preço
de ser mulher negra e escravizada nessa época. Kehinde se encaixa, por outro lado, na figura da
personagem feminina que tenta o mesmo caminho dos homens nos romances de formação:
criança, já falava eve, fon e iorubá e aprende inglês anos depois, quando é alugada por uma
família de ingleses. Ela será, mais tarde, uma empreendedora escrava de ganho, cujos cookies
serão vendidos em toda São Salvador e lhe ajudarão a comprar sua carta de alforria e a de seu
filho Banjokô, ou José, como lhe chamava a madrinha branca, a viúva sinhá Ana Felipa.

Depois de alforriada, Kehinde ainda empreenderá outro negócio: uma padaria, em sociedade com
o branco pai de seu segundo filho, Alberto. De volta à África vai também gerenciar uma empresa
de construção de casas. Embora muitas vezes numa posição marginal, interessante como a
protagonista consegue se impor na sociedade brasileira e depois na africana como uma mulher
independente, inteligente e corajosa, diferente de muitas personagens femininas dos romances de
formação. Esse aspecto reforça o que Cristina Pinto (1990) chama de “caráter feminino da
literatura”, que para a autora se dá por determinados temas e questões levantadas que denotam
uma reflexão sobre a condição da mulher. Ana Maria Gonçalves se mostra, como vemos, uma
escritora preocupada em mostrar a figura feminina como Sujeito e não como Outro e também de
denunciar o patriarcalismo que dificultava (e ainda dificulta) a formação e o trabalho das
mulheres. Por exemplo, quando Kehinde estava vivendo um bom momento ao lado de Alberto,
preparava-se para abrir a padaria e em sua narração, percebia que era considerada inteligente e
capaz pelos brancos, como o casal formado pela sinhazinha e pelo marido advogado português,
que sempre pedia pela opinião da amiga africana e a ouvia com interesse. Também quando a
sinhazinha ganha a segunda filha, Mariana, conta à amiga africana que o nome era uma
homenagem à “freira dos versos, para que a menina fosse inteligente e tivesse facilidade para
lidar com as palavras, mesmo isso não sendo o esperado para uma mulher” (p. 392, grifo nosso).
Outro tema marcante que denuncia no livro as perseguições ao feminino é a maternidade. Na
página 413 a protagonista reflete sobre os filhos das escravizadas que ficavam sem os cuidados
maternos por proibição dos senhores:

Eram muitos os casos em que senhores proibiam que as escravas cuidassem dos
filhos, achando que elas trabalhavam menos por causa dessa preocupação. As
crianças acabavam morrendo de fome por não terem quem cuidasse delas enquanto
as mães trabalhavam, quando não eram maltratadas pelos senhores ou feitores, que
se enervavam com o choro das que ainda tinham forças para tanto. As mães também
eram impedidas de dar o peito, porque os senhores achavam que isso as deixava
mais fracas para o trabalho pesado. Não havendo nenhum filho de branco para
alimentar, até misturavam ervas na comida delas para que o leite secasse mais
depressa (Gonçalves, 2006).

O tema da maternidade negra, aqui muito bem colocado pela autora, ultrapassa a linha histórica e
segue sendo uma questão discutida pelo feminismo negro e ainda presente na literatura de
escritoras negras. As mães da senzala e casa grande da história brasileira seguem sendo aquelas
que são obrigadas a deixar seus filhos para cuidar dos filhos das brancas, algo comum e ainda
denunciado na sociedade brasileira.

Quanto à formação educacional, Kehinde se difere dos heróis dos Bildungsromane conhecidos.
A menina aprende a ler e escrever com o negro Fatumbi, que vai à fazenda onde ela era escrava
ensinar a sinhazinha, e como dama de companhia, Kehinde acaba assistindo às aulas, que pouco
interessavam à menina branca:

Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi


desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão
como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a
sinhazinha, sentindo os sons dela se unirem para formar as palavras. Ele logo
percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e
passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma importância
que a sinhazinha. (Gonçalves, 2006, p. 92).

O professor, que segundo a narradora, foi “o primeiro preto que vi tratando branco como igual”,
ao perceber o grande interesse da aluna negra, empresta-lhe livros que, mesmo depois da partida
dele, lhe servirão como aliados na sua quase auto alfabetização. Mais tarde, já adulta e morando
em São Salvador, a protagonista continuará sua formação educacional de maneira independente,
primeiro quando é alugada por uma família de ingleses, com quem aprende a língua e depois,
quando vira escrava de ganho, explora a biblioteca do padre Heinz, cuja cozinha lhe é
emprestada para fazer seus cookies. Nesse subcapítulo, “Os livros”, a narradora nos conta como
foi importante aprender a ler e a escrever e ainda amiga de Fatumbi, lembra de agradecê-lo por
isso. O padre, surpreso ao descobrir que a moça era letrada, confessou-lhe o sonho de abrir uma
pequena escola para pretos e lhe apresentou sua biblioteca:

Naquele dia, enquanto os cookies estavam no forno, entrei pela primeira vez no
quarto dele, para ficar espantada pelo resto da vida. O cômodo era maior que a sala,
que eu já achava grande, mobiliado com uma cama de rede pendurada a um canto,
bastante modesta para o tamanho do padre, uma mesa e uma cadeira, e todo o
espaço restante nas paredes era coberto por prateleiras de livros, revistas e jornais,
que ainda estavam empilhados por todo o quarto, no chão. (...) Falava dos livros
com grande paixão, dizendo que ali, na nossa frente, estava um pouco de quase tudo
o que os homens sabiam, em todos os tempos e em qualquer parte do mundo, e que
bastava ler e gostar de ler para qualquer pessoa ter acesso àquela infinita sabedoria
(Gonçalves, 2006, p. 277).

A partir desse momento, padre Heinz oferece seus livros para Kehinde e ela passa a lê-los com
destreza.

Outro aspecto importante para a formação da personagem é a religiosidade, um traço marcante


de sua memória coletiva. Kehinde era neta de uma sacerdotisa jeje, uma vodúnsi. Sua avó, antes
de morrer no navio negreiro, contou a ela sobre os voduns, suas histórias e a importância de
manter vivo o culto aos antepassados. Disse à neta que não se esquecesse de África mesmo em
outra terra e essa memória viria através da religiosidade, do culto aos voduns e aos orixás. A
personagem sempre se lembra desse ensinamento e em toda a narrativa sentimos sua forte
preocupação religiosa. Segundo Cristiane Côrtes (2007), em seu artigo “O entre e o duplo: a
alegoria da figura diaspórica em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves”, a avó representa a
figura dos griots, “pois se encarrega de transmitir, por meio da oralidade, a tradição de uma etnia
a ser preservada e ensinar o cultivo da memória cultural, mesmo sabendo dos poucos recursos
para a preservação dela” (p. 505). Entre os mestres de sua formação estão, portanto, além da avó,
sacerdotes, especialmente sacerdotisas, que lhe orientaram nas escolhas mais difíceis.

A primeira sacerdotisa que se mostrará um mestre na formação de Kehinde é Negra Florinda,


uma das pessoas mais antigas da Ilha de Itaparica, onde ficava a fazenda para a qual a
protagonista fora vendida. É importante frisar como a formação mais significativa para a vida de
Kehinde é a religiosa, é o que a ligava às mulheres de sua família e essa formação virá,
principalmente, por outras mulheres. Negra Florinda a ajuda a conseguir o colar que a ligava à
irmã Taiwo e estátuas de orixás e, assim, preservar a identidade afro-religiosa da personagem.
Além disso, é Negra Florinda quem apresenta a Kehinde Agontimé, rainha de Abomé que fora
feita escrava no Brasil, também sacerdotisa dedicada aos voduns, com quem a menina aprende
sobre a religião de seus antepassados e em quem se espelha para um futuro livre. Mas é Baba
Ogumfiditimi, um babalaô que Kehinde conhece em São Salvador, quando se muda para lá, é
quem vai participar mais efetivamente de sua formação. Ele conduz a cerimônia do nome de
Banjokô, primeiro filho da protagonista, é quem prevê também alguns acontecimentos de sua
vida, de seu filho e também quem faz oferendas em seu nome para os orixás. A personagem
Esméria também é de extrema importância na formação de Kehinde. A narradora a conhece
ainda criança, na fazenda de Itaparica onde as duas eram escravas e se afeiçoa bastante a ela.
Esméria cuida de Kehinde até o fim da vida e é uma das poucas personagens que permanecem
muito próximas da protagonista no romance. É a velha escrava quem dá as beberagens para que a
narradora não engravidasse e quem cuida bastante do Banjokô no solar, quando ainda é escrava
da sinhá Ana Felipa e depois no sítio de Kehinde e Alberto, já forra.

A passagem de Kehinde por Cachoeira, no Recôncavo baiano, é crucial para sua formação
religiosa e identitária. Ela aprende sobre a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, passa a integrar
a Roça da sinhá Romana, e aprende a assentar seu vodum. Sua iniciação é assim narrada: “O
meu ritual de iniciação foi um dos momentos mais felizes que já vivi, quando finalmente pude
receber meu vodum, que me disse coisas lindas por intermédio de uma das hunjaís da Roça. À
noite, sonhei com minha avó e a minha mãe, quando ainda tive notícia de que a Esméria e o
Sebastião estavam felizes” (p. 630). A religião de sua origem africana conecta Kehinde com suas
raízes, seus ancestrais e com aqueles que foram importantes em sua vida e formação. A
desterritorialização é uma característica inevitável da diáspora que aqui associamos à memória.
E, para Hall, a “família ampliada – como rede e local da memória – constitui o canal crucial
entre os dois lugares” (Hall, 2003, p. 26). Daí toda ligação entre Kehinde e sua família,
especialmente sua avó. Era ela o canal crucial entre os dois lugares na vida da neta. É parte
fundamental de sua formação e de sua identidade. Ao contrário dos romances clássicos deste
gênero, em que a arte, no caso do livro de Goethe, representa algo fundamental para o herói
masculino, neste romance de formação feminino negro, é a religião afro que traz a totalidade
para Kehinde.

Interessante ressaltar também como o próprio romance serve como instrumento de


autoconhecimento para a personagem. A partir da página 404 a narradora/protagonista passa a
fazer uma interlocução com seu filho Omotumbe, ou Luís (um dos mistérios do livro consiste em
supor que Kehinde seja Luísa Mahin, mãe do poeta afro-brasileiro Luís Gama), seu nome cristão
dado pelo pai português, Alberto. Como o leitor descobre algumas páginas depois, Omotumbe
desaparecerá e a vida de Kehinde daí em diante será procurar pelo filho perdido. Com isso, o
livro se torna uma forma de resgatar a memória para um filho que ela nunca mais encontrou. E,
por isso, transforma-se também em uma forma de autoconhecimento da narradora, nessa
narrativa meta-literária.

O ciclo de Kehinde não se fecha totalmente ao final das 951 páginas do romance. Embora ela
tenha conquistado sua auto formação, tornando-se uma empresária de sucesso com filhos que lhe
deram muita felicidade, falta-lhe o filho brasileiro que ela volta para procurar, mas morre durante
travessia, com mais de oitenta anos, sem encontrá-lo.

Um defeito de cor se mostra então um romance de formação contemporâneo feminino e negro


ímpar em nossa história literária. Ele se distancia dos Bildungsromane tradicionais europeus do
século XIX ao romper a linha do gênero e da etnia. Também inova enquanto literatura de autoria
feminina por apresentar uma protagonista inteligente e bem sucedida, diferente das personagens
de dois dos romances de formação femininos analisadas por Cristina Pinto, por exemplo:
Amanhecer de Lúcia Miguel Pereira e As três Marias, de Rachel de Queiroz, que fracassam no
final de seu bildung, marginalizadas socialmente, mulheres anuladas pela sociedade patriarcal ou
desesperançadas diante dos sonhos não realizados.

Ao contrário delas e diferente dos heróis masculinos, personagens como Kehinde representam,
portanto, a voz que emerge de um silenciamento histórico referente às questões de gênero, etnia e
classe. Ela é parte de uma literatura que revela a condição de uma escritora como olhar aguçado,
que cria sua personagem sob um ponto de vista raro e caro à literatura brasileira.
Referências

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Representação e protagonismo da mulher negra no romance Um
defeito de cor
[198]
Daiana Nascimento dos Santos

[199]
Augusto Marcos Fagundes Oliveira

[200]
Paulo Roberto Alves dos Santos

Antecedentes

Este artigo tem como objetivo analisar a representação e o protagonismo histórico da mulher
negra no romance Um defeito de cor [2006] (2010), da escritora brasileira Ana Maria
Gonçalves[201]. A narrativa se fundamenta em elementos simbólicos que se sobrepõem ao
estritamente literário e dialogam com aspectos históricos e culturais representativos da
heterogeneidade brasileira[202]. Graças a esses aspectos, conjectura-se que a obra aponta as
mudanças socioculturais relacionadas às demandas sociais das primeiras décadas do século XXI
e à identidade brasileira em relação às minorias. Assim, propõe-se a articulação de uma
representação literária do Brasil, alicerçada no projeto de releitura histórica apresentada no
referido romance, visto que, como adverte Gennari (2011):

[...] é um passo indispensável para se entender profundamente a realidade atual.


Não é pela mera curiosidade que propomos e fazemos tal viagem, mas, sim, pela
necessidade do conhecimento e da compreensão de nosso passado para
entendermos o nosso presente, o porquê de sermos o Brasil que somos (Gennari,
2011, p. 140).

Aceitando-se a afirmação de Gennari, o trabalho objetiva responder aos seguintes


questionamentos: como é possível rastrear, no romance, uma mudança da representação da
mulher negra? Quais são os critérios de poder que o texto literário desarticula? Como se
construiria uma metáfora do Brasil a partir do romance? Para tanto, parte-se do pressuposto de
que o romance põe em discussão um período importante da história do Brasil, com o propósito
de meditar a respeito dele simbolicamente e entendê-lo a partir das perspectivas dos sujeitos
marginalizados pelos discursos de poder (Santos, 2015). A hipótese sustenta que este romance
oferece uma leitura peculiar de elementos representativos e identitários do coletivo negro
feminino, visto que esses aspectos transcendem os conhecimentos do passado e, ao mesmo
tempo, atribuem-lhe um papel principal.

Um defeito de cor reflete temáticas históricas pela confrontação de fatos concretos com a ficção,
pois propõe um deslocamento significativo das perspectivas relacionadas com as principais lutas
e conflitos emancipatórios do Brasil, a saber: Revolta dos Malês (1835), Sabinada (1837-1838),
abolição da escravidão (1888), etc., e elabora novos olhares através da ficcionalização do
passado. A esse respeito Vasconcelos (2015) afirma que:

[...] Ana Maria Gonçalves estabelece uma interpretação criativa dos acontecimentos
históricos, quando considera importante o farto material que a história oficial ignora
ou registra timidamente. Além disso, ao acrescentar ao material histórico
pesquisado, sua interpretação através do tratamento ficcional, preenche as lacunas
deixadas pelos dados oficiais com possibilidades que nos trazem uma visão mais
completa. (Vasconcelos, 2015, p. 232).

A partir daí, é possível diferenciar os aspectos da representação subjetiva nesse romance, o que
se traduz numa redefinição de noções do imaginário coletivo vinculado à identidade nacional
brasileira, ao mesmo tempo em que se visibilizam fatos históricos com novos protagonistas,
anteriormente relegados aos bastidores da história nacional. Como arcabouço teórico serão
utilizadas as discussões de Sueli Carneiro acerca do feminismo negro no Brasil e estudos
literários e historiográficos para a compreensão da literatura da diáspora.

O trabalho está dividido em quatro partes: a primeira apresenta os principais aspectos a serem
abordados nesse artigo. Na segunda, são analisadas questões relacionadas à representação e à
participação do coletivo feminino negro nos processos históricos do Brasil, silenciadas nos
discursos oficiais. Na terceira, são debatidas representações concernentes a arquétipos culturais
presentes na literatura brasileira e na quarta são retomadas as indagações iniciais e os resultados
granjeados pelas proposições levantadas nessa reflexão.
A voz se desvela e os mudos falam: releituras históricas em gestação

Confirmando a importância de se afrontar o “perigo de uma única história”, especialmente no


que diz respeito à representação e ao protagonismo do coletivo feminino negro, Gennari adverte
que:

Contada pelo vencedor, a história alimenta as feições enganadoras da preocupação


do bem comum. O cotidiano é apresentado como a viabilização do melhor dos
mundos possíveis e o amanhã vem recheado de promessas que têm, na sorte e na
aceitação das regras do sistema, a trilha de uma incerta afirmação individual
(Gennari, 2011, p. 8).

Partindo-se dessa premissa, entende-se que houve uma importante participação do coletivo
feminino negro em vários processos históricos, fato que não tem sido suficientemente
reconhecido pela historiografia tradicional[203] que tem silenciado a respeito, no entanto a
literatura contemporânea vem outorgando um lugar enunciativo a esse segmento mediante sua
representação (Santos, 2015).

Existem elementos que levam a acreditar na participação ativa das mulheres na resistência à
escravização/escravidão, como se pode depreender por indícios que aparecem de diferentes
maneiras. Figuras como Dandara, que Nei Lopes (2004) descreve como “Personagem lendária da
história de Palmares” (p. 227), e a escrava Anastácia que, segundo o autor, não teve existência
comprovada, se fixaram no imaginário popular, como se observa por referências a ambas em
manifestações culturais de origem africana, a exemplo das escolas de samba. O próprio samba
está intimamente ligado à atuação feminina, pois “muitas mulheres negras tratadas
reverencialmente como ‘tias’ pela comunidade” (Neto, 2017, p. 41) tiveram papel fundamental
na congregação de negros no período pós-abolição. Na casa das tias, aconteciam encontros que
misturavam cultos aos orixás e celebrações festivas com danças e cantos acompanhados por
instrumentos de percussão, violão e flauta, além de comida e bebida. Essas mulheres formaram
um Núcleo, no qual se destacava Tia Ciata[204], segundo Neto, dando origem a outros que se
espalharam, favorecendo o surgimento das escolas de samba e do carnaval do Rio de Janeiro nos
moldes que se conhece hoje[205].

Por outro lado, os romances Mandingas da mulata velha na cidade nova (2009), de Nei Lopes, e
Desde que o samba é samba (2012), de Paulo Lins, fazem referências à participação das
mulheres na preservação da religiosidade e de tradições culturais de seus ancestrais africanos, em
particular os cantos e as danças dos quais o samba derivou. Ambos têm a narrativa ambientada
no início do século XX e a representação de espaços que correspondem a lugares onde
circularam homens e mulheres que participaram diretamente de eventos e entidades vinculadas
ao surgimento do samba, permitindo a identificação das tias há pouco referidas. São obras que se
aproximam tanto no que tange à representação literária de fenômenos socioculturais ligados à
coletividade negra deixados de lado pela história oficial, quanto por darem expressão a grupos
silenciados e virem a público em um momento no qual essas vozes se ergueram e os segmentos
por elas ficcionalizados começavam a ocupar mais espaços na sociedade.

Graças à atuação de movimentos negros em favor da valorização da participação de antepassados


na historiografia brasileira, vem crescendo o reconhecimento de figuras femininas com atuação
na resistência à escravidão, em consequência desse esforço, negras que estiveram à frente de
insurreições começam a sair do esquecimento. É o caso de Zeferina, líder do Quilombo do
Urubu, situado em área hoje correspondente ao bairro Pirajá, em Salvador, onde os fugitivos
reagiram fortemente a várias tentativas de recaptura, exigindo das autoridades medidas extremas.
Pedro Tomas Pedreira transcreveu carta do comandante do ataque decisivo aos quilombolas
dirigida a seu superior, provavelmente justificando-se por colocar em risco um bem patrimonial
privado – os escravos – cuja integridade cabia ao poder público, por ele representado, zelar: “foi-
me necessário mandar fazer fogo, com o que consegui desperçarem-se, e indo em alcance prendi
a Negra Zeferina, a qual se achava com arco e flecha na mão” (Pedreira, 1973, p. 141). Citando a
mesma fonte, ao que parece, Nina Rodrigues (2010) descreve o episódio de forma semelhante:
“Nessa ocasião foi presa a negra Zeferina, com armas na mão, diz a parte oficial; apenas
conduzindo um pequeno saco de farinha, afirmam diversas testemunhas” (p. 55-56).

O historiador Flávio dos Santos Gomes confirma a importância do Urubu, assegurando que “Os
quilombos suburbanos de Salvador foram os mais famosos desde o século XVIII, com destaque
para os mocambos do Urubu e outros estabelecidos próximos a Itapuã” (Gomes, 2018, p. 373). A
referência ao período, remete à outra protagonista de insurreição contra a escravização, Tereza de
Benguela, que esteve à frente do Quilombo do Quariterê no Mato Grosso. Também conhecido
como Quariteté, ou do Piolho, foi combatido pela primeira vez em 1770, porém continuou
existindo até 1795, quando segundo Luiza Volpato (1996), os portugueses o destruíram e deram
início a sucessivos ataques a outros menores existentes na região. A luta da quilombola pela
liberdade, bem como de outras negras[206], foi reconhecida oficialmente por meio da instituição
de 25 de julho como Dia Nacional Tereza de Benguela[207] e da Mulher Negra[208], em
atendimento a reivindicações de coletivos femininos.
A irresignação dos escravizados foi minimizada, porque a história do Brasil contada por
escravizadores ou por quem aceitava a versão deles prevaleceu por longo tempo, assim muitos
casos de insurgência foram sonegados. Procurando-se outras fontes, no entanto, a realidade se
mostra diferente, como atesta João José Reis (2018), ao afirmar que apenas “Entre 1814 e 1835
aconteceram várias revoltas, principalmente na região dos engenhos (...)”, sendo que a “década
de 1820 foi particularmente agitada, com cerca de quinze levantes” (p. 394)[209]. Nesse sentido,
obras como Um defeito de cor podem preencher lacunas da historiografia, como sucede em
relação a Zeferina e ao Quilombo do Urubu, mencionados no romance por Nega Florinda,
quando fala a respeito da fuga de alguns negros: “Soube que conseguiram escapar para o Urubu,
que estava se formando com muitos pretos fujões e valentes, intimidando tanto os soldados que
eles nem se atreviam a passar por perto” (Gonçalves, 2017, p. 200).

O relato é apresentado de forma vaga e logo se percebe o motivo: “Perguntei onde ficava tal
quilombo e ela não soube responder, pois talvez o caminho só fosse informado aos que estavam
de fato indo morar lá, que para isso tinham que ser indicados por alguém que já estava no
quilombo” (Gonçalves, 2017, p. 200). Florinda, porém, tem uma certeza: “Ela sabia apenas que
era governado por uma mulher, de quem também não sabia o nome” (Gonçalves, 2017, p. 200).
A ignorância quanto à identidade da mulher se contrapõe às alusões à atmosfera de segredo em
torno do quilombo, estabelecendo um jogo próprio da literatura e ao mesmo tempo propiciando
reflexões sobre a realidade do passado e do presente. Desta maneira, é possível observar que o
romance desestrutura o discurso enraizado numa interpretação histórica eurocêntrica (Picotti,
2006), pois produz deslocamento na sua representação a partir de elementos de um novo
protagonismo para a mulher negra, ratificação de novas subjetividades, legitimação do discurso
oral e a transformação dos estereótipos relacionados às mulheres negras (Santos 2015;
Vasconcelos, 2015). A personagem Kehinde[210] aponta para essa alteração importante.

Jabardo (2012) adverte que “Devemos sair, portanto, das lógicas do discurso da dominação,
afastar-se das formas em que foram pensados” (tradução nossa). Nessa perspectiva, o romance
indica lacunas existentes na abordagem sobre personagens e fatos que não constam nos livros e
documentos oficiais[211] e provoca dúvida sobre a veracidade do até agora historiado. Por esse
viés, o tom descolonizador da obra se abre a novas arremetidas sobre o que havia sido deixado de
lado pela literatura e pela historiografia dominantes até então, e ao reforçar “escovar a história a
contrapelo” (Benjamin, 1987, p. 225), atribuem-lhe novos significados.

Nesse bojo, a Revolta dos Malês[212] (1835) é representada sob um enfoque em que se apela à
revisão histórica e se busca tornar visíveis homens e mulheres apagados dos discursos
hegemônicos de formação da identidade nacional. Daí se sobressaem novos acontecimentos,
enlaces e personagens, principalmente mulheres. A construção da rebelião pelo romance
apresenta uma versão alternativa deste fato histórico, incluindo a participação da protagonista
Kehinde, algumas mulheres, escravos muçulmanos e de outras origens. É nesse cenário e sob
essas condições que a protagonista narra os preparativos ligados à insurreição:

O próprio Manoel Calafate foi abrir a porta, e dentro da loja o clima era de muita
alegria. Além do meste Calafate, encontramos o Agrípio e o Belchior, que moravam
com ele, um preto chamado Vitório Sule, o Gaspar, o outro Belchior e mais seis ou
sete pretos. Todos já estavam vestidos com as roupas muçurumins[213], e tratamos de
pôr as nossas, que tinham sido mandadas para lá. Eu e a Edum, as únicas mulheres
do grupo, não colocamos o barrete, mas amarramos um lenço branco na cabeça. O
Fatumbi disse que as roupas também serviam para que ficássemos parecidos, o que
dificultava o reconhecimento por parte das autoridades ou o possível acerto de
desafetos. (Gonçalves, p. 517).

Num outro momento, são demonstradas as expectativas em relação ao referido acontecimento,


tal como se evidencia no relato de Kehinde a seu filho desaparecido:

Na manhã do dia vinte e quatro de janeiro, saí de casa com o sol ainda por nascer e
deixei você dormindo na minha cama, para onde o levara na noite anterior. Eu
estava certa de que nada me aconteceria, mas, de qualquer forma, queria fazer
preciosas aquelas últimas horas que antecediam a rebelião, e não havia nada que me
fosse mais caro do que estar com você. Eu sabia que voltaria, mas não sabia
quando, principalmente porque ninguém conhecia todos os detalhes do plano, nem
qual o papel que teria nele. (Gonçalves, p. 516).

Em outra situação, a protagonista relata acontecimentos inerentes à insurreição, fazendo emergir


noções de reinvenção ou reificação de identidades negras, nas quais se alimentam e adquirem
sentido solidário, quiçá communitas (Turner, 1974; Schechner, 2012):

Eu estava com o grupo que ia à frente abrindo caminho, tentando não perder de
vista o Fatumbi e o Mussé, e quando olhava para trás e via todas aquelas pessoas,
pensava no que poderiam ter passado para estar ali. Pelas palavras de ordem
gritadas em línguas de África e respondidas por todos, dava para perceber que
quase não havia crioulos entre nós, que aqueles homens e mulheres que rumavam
para Itapagipe tinham feito a mesma viagem que eu (Gonçalves, p. 528).
Pelo contexto no qual o fato é narrado, é evidente que Gonçalves não hesita em subverter a
história, pois “ressuscita”, literariamente, acontecimentos e personagens que haviam sido
condenados à “[...] cova funda do esquecimento na qual o enterrou a reação escravagista”
(Oliveira, p. 20).

Recentemente tem aumentado o interesse de pesquisadores pela Revolta dos Malês, sendo um
deles o historiador João José Reis[214], referência mundial para os estudos sobre a escravidão no
século XIX. Minucioso, Reis foi um dos pioneiros a estudar os muçulmanos na Bahia, a Revolta
dos Malês e personagens ligados a ela, como o alufá Rufino. O contexto enfatizado no livro
Rebelião Escrava no Brasil – A história do levante dos Malês de 1835 (2003) é abordado a partir
de uma perspectiva que demonstra as inconsistências que foram atribuídas ao fato, tais como a
ausência de sobreviventes e as estratégias de organização do levante. Em contrapartida, Reis
garante que não há nenhuma evidência da participação de alguma mulher chamada Luísa na
insurreição ou na lista de presos envolvidos nela.

Diferentemente da visão histórica de Reis, o romance proporciona uma interpretação que explora
a possibilidade da participação ativa de mulheres nos acontecimentos, atribuindo à protagonista
um papel dinamizador na insurreição, a partir de lacunas documentais, ou ressignificando suas
entrelinhas, propondo que se pense a mulher em uma dinâmica e em um fluxo que aludem aos
papéis sociais das negras nas suas redes diárias de convívio, portanto, de trocas sociais, que
permitem evocar a presença de “quilombos de serviços” ao avançar por ruas, vielas, largos, e
demais espaços de Salvador na época da insurreição. A ficcionalização demonstra que essa
recriação compromete a genuinidade das versões oficiais, visto que instiga a multiplicidade de
perspectivas e interpretações sobre os fatos, provoca a rejeição de uma única verdade e coloca a
predominância da ficção sobre a história (Aínsa, 1996).

Com isso, consideramos que o romance questiona e transgride as interpretações tradicionais


sobre a representação e a participação de mulheres negras nos eventos históricos, outorgando-
lhes um papel emblemático através da literatura. Julgamos necessário entender a literatura como
espaço de possíveis interlocuções, onde “realidade histórica e ficção literária se entrelaçam, se
sobrepõem, se cruzam e se deixam soltar livremente”[215] (Steckbauer, p. 5), num projeto
ficcional que visa recuperar histórias e personagens relegados aos ‘porões do esquecimento’. Por
esse ângulo, Um defeito de cor como narrativa histórica convida o leitor a meditar
simbolicamente sobre a memória do passado escravagista representado historicamente:

[...] através do processo de interação e diálogo entre o presente e o passado, no ‘vai


e vem’ de um tempo ao outro que toda narração histórica propicia, se estabelece
uma relação coerente entre ambos, um sentido histórico de pertença orgânica a um
processo coletivo, local, nacional ou regional[216] (Aínsa, 1996, p. 67).

O romance desarticula os fatos históricos, pois mostra a resistência e a participação política do


coletivo negro – principalmente das mulheres –, expõem as relações de poder baseadas na
violência (estupros, espancamentos, torturas) e compromete o imaginário das mentalidades
escravagistas que se enraizaram nas elites do Brasil. Nesse sentido, abala as estruturas coloniais
que contribuíram para a construção da identidade brasileira e a consequente ideia de
miscigenação concebida no “berço esplêndido”[217] da democracia racial. Para realizar esse
percurso, um ponto de partida é a revisão desse panorama histórico-cultural e suas
representações sancionadas pela literatura, mediante suas metáforas[218].
Imagens culturais na literatura brasileira

Com base no exposto, conjectura-se que Um defeito de cor desconstrói o discurso da


representação da identidade brasileira ainda em voga, porque enfatiza questões
desestabilizadoras do já estabelecido pelo imaginário social. Tal desafio aciona uma tensão que
coloca o texto na discussão de dois aspectos importantes: a representação e a participação
política de homens e mulheres negras nos processos históricos. O mote, nesse caso, instiga o
debate sobre os critérios atribuídos a essa representação e, de algum modo, aponta a necessidade
de abordá-los dentro do contexto de identidade nacional. Julga-se necessário, portanto, repensar
esse panorama considerando-se os aspectos que abrigam essas alterações em relação à
construção da identidade nacional como decorrência dos fatos históricos. É imprescindível
interrogar os critérios atribuídos a essa construção, cujos alicerces remontam às mentalidades do
período escravista, pois foi se constituindo (se constitui) levando adiante a deleção de fatos e
personagens não representativos das elites brasileiras.

Por esse viés, é possível refletir sobre o panorama histórico-cultural do Brasil e suas procedentes
representações sancionadas pela literatura, mediante algumas imagens de determinados períodos.
Assim, consideramos que Kehinde pode ser entendida como imagem representativa da
identidade nacional nas primeiras décadas do século XXI, pois sua história individual permite
visualizar indícios da emancipação do coletivo das mulheres negras. Isso se confirma, com a
citação a seguir:

Apesar da pouca idade, acho que foi naquele momento que tomei consciência de
que tinha que fazer alguma coisa, pelos meus mortos, por todos os mortos dos que
estavam ali, por todos nós, que estávamos vivos como se não estivéssemos, porque
as nossas vidas valiam o que o sinhô tinha pagado por elas, nada. (Gonçalves, p.
144).

A literatura tem sido um dos cenários mais representativos desses processos de elaborações e
experimentos, e o romance Um defeito de cor pode ser entendido como um arquétipo da
experiência supracitada. Por esse viés, são observados os critérios de ficcionalização inerentes ao
imaginário do cotidiano da protagonista mediante a recriação literária de momentos
fundamentais da história do Brasil, pois abarca desde a transferência da corte portuguesa até a
metade do reinado de Pedro II. Além desses aspectos, há a intenção subjacente de apontar para a
mudança da representação da mulher negra não só no texto literário, mas também no lugar que
ocupa na sociedade atual.

Ainda sobre o quadro interpretativo do romance, a obra narra a saga de Kehinde, vivência
marcada por experiências dramáticas de perdas, dor e morte na África e, por conseguinte, pela
escravização no Brasil. No entanto, a sua história não reúne apenas tragédias e consternação, já
que remete também às experiências de resistência e emancipação feminina evidenciados tanto na
sua trajetória pelo Brasil como no seu retorno à África.

Um defeito de cor reconstrói a experiência traumática da escravização/escravidão a partir da


subjetividade feminina por meio de uma narração em primeira pessoa, repercutindo o tom de
uma versão de uma história não oficial de homens e mulheres escravizados (Duarte, 2014). Na
obra, os fatos estão relacionados com a rotina de personagens (históricos e fictícios) num cenário
de fundo que remete ao Brasil e à África do século XIX. Na apropriação literária desse
panorama, a escravização/escravidão é apresentada a partir de um enfoque dinâmico e complexo
de trocas e de relações de diversas índoles entre europeus e africanos, apontando alterações
importantes nos constantes processos de transformação social e de redefinição da sociedade e do
regime político que a representava, a monarquia.

Esse panorama funciona como argumento basilar para alvitrar uma reformulação da África em
relação à escravatura já que estabelece uma desarticulação interessante dos elementos literários,
de enfoques, de olhares, de estruturas narrativas e de aspectos ficcionais. Com isso, constatamos
no romance, um ponto de vista contemporâneo de consciência social que granjeia múltiplas
possibilidades de leitura para a história da escravatura a partir de várias subjetividades. Um
defeito de cor traz para a cena literária a busca de uma mãe por seu filho perdido nos umbrais da
escravidão, cujo destino é traçado ao ser vendido pelo pai como pagamento de uma dívida de
jogo. Subsequente a esse fato, traça um panorama que engloba acontecimentos relevantes da
história do Brasil do período, de modo que os vestígios da emancipação vão se sobrepondo em
diacronia com a libertação da protagonista como mãe, mulher e insurreta; tal conjuntura a
transforma numa personagem mítica e histórica de sua própria narrativa[219]. Da mesma maneira,
o papel perseverante adjudicado à protagonista aponta as lacunas existentes na história das elites
brasileiras que ainda constam nos livros e documentos oficiais.

O quadro interpretativo do romance engloba uma mudança do status quo da mulher negra para as
discussões sobre a história da escravatura a partir do olhar feminino, cujo protagonismo não só
foi apagado/desfigurado dos processos históricos e políticos nacionais, mas também foi
restringido a alguns espaços da sociedade colonial: cama e mesa[220]. Neste sentido, Carneiro
(2001) explica:
O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial
permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e
funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as
relações de gênero segundo a cor ou a raça instituída no período da escravidão. As
mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso
clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem
dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem
na identidade feminina das mulheres negras (Carneiro, 2001, p. 1).

Segundo Carneiro (2001), o contexto escravista enfatizado no romance refuta essa representação
usualmente associada à mulher negra e destaca a importância de revisar o imaginário social e o
seu lugar na sociedade. Esse aspecto dialoga com a afirmação “Mulher negra tem história”
(Rufino et al. 1987), desta maneira, o romance resgata a história a partir da perspectiva dos
vencidos, e com este propósito outorga um lugar significativo ao sujeito feminino como mulher e
negra. Outro fator é que mesmo numa sociedade escravista fortemente marcada pela hierarquia
de gênero, as negras escravas e forras circulavam por espaços diversos, tornando-se verdadeiras
pontes de processos de mobilidade social (Reis, 2012).

Daí é possível observar que Um defeito de cor se configura a partir das vozes silenciadas pelo
poder e entrega o perfil de uma heroína vanguardista que não se adequa ao modelo legitimado,
até então, pela literatura brasileira tradicional[221]. Se remontarmos às discussões sobre as
matrizes culturais do Brasil e sua relação com a literatura, nos defrontaremos com o que explica
Vasconcelos:

[...] nossa “múltipla ancestralidade” possui uma representação bastante limitada


quando a buscamos no relato dos principais eventos da nossa história oficial, assim
como na nossa produção cultural mais conhecida. Na literatura, por exemplo, essa
representação é quase totalmente branca, tanto no que diz respeito à ocorrência de
personagens quanto à presença de autores (Vasconcelos, 2015, p. 47-48).

A ausência das matrizes ancestrais (principalmente das mulheres negras) apontada por
Vasconcelos permite dialogar com a proposta de “enegrecer o feminismo” (Carneiro 2001) a
nível literário e, ao mesmo tempo, reivindicar o papel da mulher negra nas diversas esferas da
sociedade brasileira tanto em nível histórico, político, econômico, como em qualquer espaço que
possa ocupar dentro dela. Nesse sentido, consideramos relevante esboçar algumas alterações
pontuais sobre a representação e o lugar do coletivo feminino negro nos discursos, de modo que
seja possível pleitear uma imagem representativa do Brasil alinhada às demandas sociais das
primeiras décadas do século XXI.

Nesse sentido, Um defeito de cor se evidencia como uma representação do Brasil do período
supracitado, porque provoca tensões sobre a interpretação do passado e, ao mesmo tempo, valida
a importância de homens e mulheres negras para a formação social e a representação do país. O
fato é que Gonçalves não hesita em atribuir um papel basilar a esse coletivo dentro e fora da
literatura, sendo, por conseguinte, um argumento fundamental para refletir sobre as
representações ligadas à identidade brasileira. Para fazer esse percurso, um ponto de partida é
discutir a representação literária de algumas imagens que sintetizam a ideia abstrata da
identidade nacional em três momentos da literatura brasileira: Romantismo, Modernismo e o
início do século XXI[222].

No Romantismo, o modelo social estava representado pelo homem branco de origem portuguesa,
católico e vinculado à oligarquia latifundiária, proprietário de escravos, com mulher e filhos sob
o seu poder na Casa Grande[223]. Do Romantismo, ressaltam-se a valorização do nacionalismo e
da liberdade – entre outros aspectos–, cujos significados ajustam-se muito bem às condições do
Brasil, de jovem nação e, de algum modo, relacionam-se com a discussão em curso na época
norteada pela ideia de uma cultura brasileira completamente livre de influências, em particular,
da portuguesa. No Modernismo, o panorama nacional adquiriu outra configuração em
decorrência de um processo de transformação no qual, apesar do fôlego da agricultura
latifundiária, a indústria toma impulso. Ao mesmo tempo, ocorre um deslocamento do eixo
econômico para São Paulo ao qual se somam proprietários de terra do Sul e do Nordeste, dando
origem a novas forças políticas que se aglutinam em nome da modernização do Brasil.

Por outro lado, no século XXI, surge um recrudescimento em razão de novas conjunturas sociais,
políticas e econômicas, alinhavadas aos processos migratórios inter/transcontinentais e às
demandas dos movimentos sociais de diversos tipos, a luta pelos direitos das minorias, os
debates relacionados ao universo negro – como as ações afirmativas –, instigam a repensar o
imaginário da identidade brasileira. Este desafio deu lugar a intensas discussões,
problematizações, tensões e divergências, pois confrontaram a construção do imaginário social
sobre a identidade brasileira, porque compromete os mitos como a democracia racial, a
cordialidade, a integração harmônica, já “[...] que disfarçam a exclusão e a segregação dos mais
fracos, dos mais pobres, dos diferentes do padrão definidor da identidade defendida” (Gonçalves,
p. 11). Esse fato foi observado também por Chiappini e Bresciani (2002) em Literatura e cultura
no Brasil: identidades e fronteiras.

Como aqui já foi dito, Um defeito de cor propõe uma nova interpretação da história através de
uma leitura crítica do passado sob um olhar analítico do presente. O passado escravagista
funciona como um ensejo para questionar o contexto atual em que se discute o projeto de ações
afirmativas e, ao mesmo tempo, insiste em mostrar o lugar de protagonistas de homens e
mulheres negras além da ficção literária. Além disso, chama a atenção o contexto escravagista
apropriado pelo discurso literário através da perspectiva da voz duplamente marginalizada pela
história hegemônica: a voz negra e feminina.

Neste sentido, podemos afirmar que Um defeito de cor oferece uma metáfora do Brasil por meio
da representação da personagem Kehinde, visto que sua trajetória sintetiza a ideia abstrata da
emancipação do coletivo feminino e se encontra representada nos diversos episódios de luta e
resistência retratados no romance. Além de vincular esse contexto de escravidão com a
exploração laboral, cabe indagar que lugar ocupa a mulher negra nesse contexto e como viveram
essas experiências na Casa Grande (do passado e do presente). O romance relata a procura de
um protagonismo coletivo feminino, uma vez que Kehinde representa o conjunto de mulheres
negras que tiveram uma experiência histórica violenta no período escravagista, fato que ainda se
observa, no presente, sob diversas formas: agressão física e psicológica, estupro, assédio sexual,
assassinatos, entre outras.

É nesse contexto, sob essa condição que Kehinde– adolescente – relata as relações de poder
estabelecidas entre senhores e suas escravizadas/escravas, como uma prática comum a violência
era exercida:

Em uma das visitas, o sinhô José Carlos me olhou de modo estranho, pedindo que o
Cipriano me levasse até ele, quando me fez abrir a boca e olhou meus dentes.
Depois, com a ponta da vara que usava para cutucar o cavalo, levantou a barra da
minha saia e olhou minhas personas. Olhou também para a minha bata na altura dos
peitos, que já estavam quase tão grandes quanto os da Felicidade. À noite, a Ignácia
passou a mão sobre a minha cabeça e disse que eu não era mais uma menina, que já
tinha corpo de mulher, e perguntou se meus sangues já tinham aparecido
(Gonçalves, p. 151).

O relato continua:

O sinhô José Carlos perguntou se eu achava que ia conseguir escapar e nada


respondi, nem mesmo olhei para ele, porque achava que sim, que depois do
acontecido ele não ia mais insistir. Mas, além disso, da insistência, ele conseguiu
ser muito mais vingativo do que eu poderia imaginar, ao entrar no quarto e dizer
que a virgindade das pretas que ele comprava pertencia a ele [...] (Gonçalves, p.
170).

Os extratos anteriores comprometem as ideias de “democracia racial” e a imagem “romântica” da


Casa Grande, já que a violência praticada demonstra o poder dos senhores sobre suas
“propriedades”, o qual usavam segundo os seus desejos, num regido por relações em que os
senhores sempre seriam senhores e os escravos patrimônio deles. Tal afirmação reforça o ponto
de vista de Abdias do Nascimento no seu livro O genocídio do negro brasileiro (1978): “A
norma consistia na exploração da africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra um dos
aspectos mais repugnantes do lascivo, indolente e ganancioso caráter da classe dirigente
portuguesa” (p. 61).

Em Casa Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre elabora um retrato da formação nacional
brasileira a partir das três etnias que, segundo ele, contribuíram harmonicamente para isso. É
importante ressaltar que Freyre era neto de fazendeiros no Nordeste do Brasil e escreveu sob o
enfoque de sua classe social e, como salienta Oliveira (2015), este mesmo senhor assinara uma
matéria intitulada “Meu caro “Zumbi Neto”[224], inculcando como demagógica, dentre outras
coisas, a comemoração da Consciência Negra. Da “janela da Casa Grande”, Freyre entrega outra
textura a esse contexto, e o faz de uma forma que “suaviza” a violência da escravidão no Brasil,
revelando uma “visão romântica do engenho de açúcar”, fortalecendo, desse modo, o mito da
democracia racial. Em contrapartida, Carneiro explica que

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores


brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está
na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o
decantando o mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até
as últimas consequências (Carneiro, 2001, p. 1).

Um defeito de cor, por outro lado, refuta essa visão romântica, pois confronta o imaginário
violento da Casa Grande (Gonçalves 2011) a partir da representação literária da rotina de uma
escravizada, tal como foi retratado nas citações acima.

Nesse período, forja e reforça o mito da democracia racial na sociedade brasileira, delimitando-se
como uma imagem que está presente no imaginário social até hoje. Em relação ao mencionado
anteriormente, Abdias do Nascimento chama a atenção para este fator [n]O genocídio do negro
brasileiro (1978):

[…] erigiu-se no Brasil o conceito da democracia racial: segundo esta tal expressão
supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da sociedade
brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais
oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade
social, das respectivas origens raciais ou étnicas. (Nascimento, 1978, p. 41).

Abdias do Nascimento enfatiza a condição social e as oportunidades para o grupo coletivo negro,
deixando claro que estes não estão em pé de igualdade com os brancos. O que aumenta o
estranhamento sobre a existência da democracia racial é que se o Brasil sempre foi visto
internacionalmente como tal, por que o Estado recentemente implantou um sistema de ação
afirmativa? Outra pergunta que se impõe é por que as ações afirmativas encontram resistências
de parte da elite econômica branca dos grupos identificados com ela? Talvez, as respostas se
mostrem menos precisas no projeto literário de Um defeito de cor, cujo pano de fundo revela,
implicitamente, problemas contemporâneos por trás da releitura do passado da escravidão, a
partir de uma perspectiva que revalida/reivindica a identidade negra como identidade brasileira,
sobretudo se esse ponderar que a proposta da ação afirmativa ainda é bastante controvertida na
sociedade brasileira, pois muitos – inclusive alguns intelectuais influentes – continuam pregando
e crendo em uma sociedade racialmente harmônica[225].

Aceitando-se os argumentos de Abdias, é de suma importância observar o papel da mulher negra


no contexto da escravidão e nos processos históricos brasileiros, porque, nesses espaços, ela
ocupa um lugar de destaque usualmente assumido por homens, e, ao mesmo tempo, rejeita o
papel de vítimas e/ou de personagens secundários. Por trás desses processos abordados,
evidencia-se, no romance, a relação de dependência de poder, que é exercido pelo sujeito
feminino negro, o que ainda merece um estudo mais profundo que vincule problemáticas mais
amplas e globais.

A importância de responsabilizar-se por um projeto literário que permite reflexionar sobre a


proposta de “enegrecer o feminismo” reivindica o papel de protagonista da mulher negra nas
diversas camadas da sociedade brasileira tanto em nível histórico, literário, político, como em
qualquer papel que desempenhe nesta sociedade. É importante salientar que o eixo central
enfatiza um sujeito coletivo feminino (mulheres escravas e negras) e exige uma alteração
significativa do papel representativo para as discussões sobre a história da escravatura a partir de
um olhar feminino, e da condição de estar em movimento que transpõe silenciamentos, e
fronteiras ou paredes entre casas e senzalas, ou entre a casa e a rua. De acordo com Soares
(2001) se a visão social hegemônica de mentalidade senhorial e patriarcal impôs à mulher
geralmente papéis e procedimentos mais recatados, à mulher negra, contudo foi negada sua
condição precípua de mulher, marcada pela escravidão, fosse ela escrava ou forra. O cotidiano
dessas mulheres impunha papéis sociais conquistados com astúcia nas brechas da escravidão,
através de conflitos, revoltas e algumas conquistas, no trânsito da sociabilidade do ganho de rua.

Trata-se, portanto, de um projeto ficcional que resgata a história sob uma perspectiva dos
vencidos, ou dos “vultos negros da história do Brasil”, como ratifica Oliveira, N. (2001), e, com
este fim, propõe uma função de protagonista para o sujeito feminino como mulher e negra. Tal
escritura pode se circunscrever ao marco discursivo que se pergunta por uma metáfora do Brasil
contemporâneo, metáfora que se concebe como o processo de uma autêntica emancipação social
e participação do grupo coletivo feminino – das minorias econômicas e políticas – no cenário
representacional desse país, pelo menos no que se refere às duas primeiras décadas do século
XXI.
Considerações finais

Essa representação compromete as estruturas que construíram as metáforas dos períodos


anteriores, pois reforça a luta social pelos direitos e pela emancipação da mulher negra. No que
diz respeito à emancipação em particular, deve-se levar em consideração a situação econômica
do Brasil das primeiras décadas do século XXI, quando houve uma ascensão importante da nova
classe média brasileira (Classe C), que era composta por mais da metade de mulheres
afrodescendentes. É neste período de intensas mudanças sociais que se observam vários tipos de
mudanças na configuração do imaginário social da identidade brasileira. Com isso, atinam-se
transformações importantes nesta sociedade onde novos agentes sociais espaços e conjunturas
são reivindicados como um lugar diferente neste processo de desconstrução do imaginário sobre
a identidade determinante, e, por conseguinte, forjam uma metáfora para o Brasil para o período
aludido.

Nessa encruzilhada, a literatura brasileira contemporânea funciona como um espaço dinâmico


para a confabulação da terceira metáfora, pelo menos no que se refere ao período mencionado.
No entanto, subjaz dessa figuração uma consonância de vozes femininas negras – e de outras
minorias – que se apropriaram do universo criativo da literatura para, através dele, oferecer um
deslocamento de protagonismo, de elementos literários, de releituras e olhares, fluxos e
encruzilhadas. Tarefa que Ana Maria Gonçalves não hesita em desenvolver no seu projeto
literário.

Um defeito de cor é um exemplo concreto desse projeto criativo onde emerge uma voz feminina
e negra que reinventa a história, legitima o universo negro na identidade brasileira e demanda
uma mudança importante na representação e participação política do coletivo feminino negro. À
guisa de conclusão, argumentamos que o romance abre um debate sobre a revisão do passado
escravocrata do Brasil e insta uma discussão sobre esse contexto doloroso e seus efeitos ainda
presentes. Julga-se, portanto, necessário, repensar e reelaborar-se como nação, principalmente
dentro dos processos de constantes mudanças e de tensões do panorama atual. O fato é que esse
cenário se torna hesitante para a representação da metáfora, pois demonstra que a identidade
brasileira ainda se encontra no seu processo de redefinição, e, de algum modo, outras metáforas
surgirão. Há, pois, dois desafios a serem enfrentados nessa encruzilhada: um olhar para o futuro
que dialoga com as mudanças atuais em que se visualizam novos agentes e conjunturas sociais
ligadas ao panorama nacional e internacional, ou se está a correr o risco de voltar/ressuscitar as
estruturas da Casa Grande que ainda insistem em manter-se presente no presente.
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A presença de mulheres no comércio do Atlântico Negro na escrita
de Antônio Olinto e de Ana Maria Gonçalves
[226]
Édimo de Almeida Pereira

Introdução

Mas meu sangue


está cada vez mais forte,
tão forte, quanto as imensas pedras
que meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis.

(Adão Ventura)

Entre os séculos XVII e XIX, uma intensa relação comercial se estabeleceu entre o Brasil e a
Costa Ocidental da África. Não representa novidade o fato de que grande parte dos produtos que
transitavam entre essas fronteiras do Atlântico Negro era constituída principalmente de mão de
obra africana escravizada. Esta fatia do comércio de carga humana foi ampla e exclusivamente
explorada por homens, os quais chegaram até mesmo a alcançar postos de comando político no
continente africano, sendo então denominados Chachás. A abordagem das temáticas relacionadas
a este capítulo da História do Brasil, bem como da História da África, experimenta inovadores
contornos na prosa ficcional desenvolvida pelo escritor Antonio Olinto nas linhas do romance A
casa da água (1988), originariamente publicado no ano de 1969. Cerca de trinta e sete anos mais
tarde, Ana Maria Gonçalves, retoma estas questões históricas em romance de sua lavra intitulado
Um defeito de cor (2007), com primeira publicação em 2006.

Dessa maneira, por intermédio do processo de inter-relação estabelecido entre a ficção literária e
os relatos históricos, o qual nos permite refletir não só a respeito da constituição da população
brasileira, como também sobre a influência de brasileiros na formação de populações de países
africanos da Costa do Benim, os autores colocam suas respectivas personagens – Mariana, a
matriarca da narrativa olintiana, e Kehinde/Luísa, a heroína surgida da lavra ficcional de Ana
Maria Gonçalves – na condição de comerciantes de importância para as comunidades em que
procuraram estar inseridas.

Nesse passo, é preciso atenção para o fato de que a escritora Ana Maria Gonçalves enumera entre
as referências em que se baseou para a confecção de sua referida obra, o mencionado romance
olintiano A casa da água (1988), mote a partir do qual o presente trabalho vislumbra estabelecer,
em sede de exercício comparativista, as relações de proximidade e de esperado e natural
distanciamento entre as características das duas personagens. Sob esse enfoque, também
adentramos a discussão em torno das eventuais diferenças no delinear de cada personagem,
investigando se as cores utilizadas pelo escritor ubaense para dar forma à protagonista de sua
narrativa, a afro-brasileira Mariana, seriam em muito diferenciadas daquelas que Ana Maria
Gonçalves empregou para configurar as feições da africana Kehinde.

Estabelecer, todavia, um percurso de caráter comparativista entre os romances A casa da água


(1988), primeiro volume da trilogia Alma da África, do escritor e jornalista Antonio Olinto, e o
romance histórico Um defeito de cor (2007), da ex-publicitária Ana Maria Gonçalves, talvez
possa parecer uma atividade pouco complexa caso seja levado em conta apenas o fato de que esta
autora menciona na relação bibliográfica consultada para a imbrincada pesquisa que realizou
para a escrita de seu livro a obra olintiana ora comentada. De fato, tal referência está lá, citada na
página 950 da segunda edição de Um defeito de cor (2007).

Não obstante, trata-se de tarefa árdua, tendo em vista que poderíamos afirmar que, a um só
tempo, as mencionadas obras reservam momentos de aproximação e de distanciamento na sua
estrutura narrativa por intermédio das coincidências que podemos verificar nas vidas fictícias das
respectivas protagonistas, em um labirinto de caminhos que se fazem, por um lado, de igualdades
e de contrários, mas que, por outro, reúnem-se no exato ponto em que conseguem fascinar e
prender a sensibilidade e a atenção dos leitores, enredando-os nas linhas que pontuam as
narrativas tipicamente de saga[227]. Não há dúvidas de que em ambas as narrativas, revela-se um
forte apelo histórico em capítulos da História Brasileira e da História da África que, há bem
pouco tempo, podemos afirmar, mostravam-se relativamente afastados do conhecimento do
brasileiro comum.

Desse labirinto plurifacetado, optamos por tomar por referência o fato de que tanto a personagem
de Antonio Olinto quanto a de Ana Maria Gonçalves estabelecem- se no continente africano
como comerciantes bem-sucedidas, além de terem atravessado as águas do Atlântico Negro[228]
em situações bastante diversas e em momentos distintos da diáspora africana. Na tentativa de dar
conta do desafio que se anuncia, parece-nos melhor desenvolver neste trabalho um percurso que
passará pela breve apresentação dos autores, pelo relato da narrativa contida em cada um dos
respectivos romances, pela questão dos agudás e por isso mesmo pela forma como as
personagens de Olinto e de Ana Maria fazem a travessia oceânica África-Brasil-África e como
vão se estabelecer em cada um desses dois lados do Atlântico, sem, contudo, esgotarmos as
possibilidades de comparação que os romances suscitam, dada a óbvia limitação espacial deste
trabalho, que assume aqui a forma de artigo.
Antonio Olinto e Ana Maria Gonçalves

Toda viagem influi na mudança de perspectiva de uma pessoa.

(Antonio Olinto)

Antonio Olyntho Marques da Rocha, crítico literário, jornalista, poeta, romancista, professor
universitário e membro da Academia Brasileira de Letras, era filho de Áurea Loures Rocha e de
José Marques da Rocha. Nasceu na cidade mineira de Ubá, cidade da Zona da Mata mineira, em
10 de maio de 1919. O escritor faleceu em 12 de setembro de 2009, na cidade do Rio de Janeiro,
já bem próximo aos noventa anos.[229]

Antonio Olinto, foi adido cultural do Brasil em Lagos (Nigéria), no quadriênio de 1960 a 1964, e
foi posteriormente nomeado para exercer essas mesmas funções em Londres (Inglaterra), no ano
de 1968. O mineiro estabeleceu-se como autor de uma obra, já traduzida para diversos idiomas,
que pode ser inserida tanto na cena literária brasileira quanto na africana.

Por sua vez, a escritora Ana Maria Gonçalves nasceu na cidade mineira de Ibiá, em 1970, sendo
filha de pai de descendência indígena e portuguesa e de mãe afro-brasileira. Aos dezoito anos,
passou a cursar Publicidade em São Paulo, e ao terminar a faculdade fundou uma agência na qual
atuou como sócia até o ano de 2001. Neste mesmo ano, a mineira mudou-se para Itaparica
(Bahia) e em seguida para a cidade de Salvador (Bahia), onde realizou as pesquisas para a escrita
de Um defeito de cor (2007)[230].
A casa da água e Um defeito de cor

E eu acho que é isto: nunca quisemos assumir a nossa história que,


contaminada pela escravidão e pela ditadura, é violenta, é repressora, e
nos faz acreditar que boa parte da população é descartável. Enquanto
não olharmos para trás e entendermos o caldo histórico que nos molda
como povo, os nossos piores momentos continuarão nos assombrando.

(Ana Maria Gonçalves)

O romance A casa da água (1988), como já destacamos, originalmente publicado em 1969,


encerra a narrativa da “viagem de Mariana”, iniciada na cidade de Piau, Zona da Mata mineira,
culminando na cidade de Lagos (Nigéria), locus em que os personagens (principalmente a
matriarca Catarina) passarão por um processo de reaproximação com as origens, e de construção
identitária (caso específico de Epifânia, filha de Catarina; e de Mariana, Emília e Antonio, netos
da velha africana).

Catarina, a avó de Mariana, nascera em Abeokutá (Nigéria) e fora vendida aos dezoito anos, pelo
próprio tio, ao comércio de escravizados, vindo a ser transplantada nessa condição para o Brasil.

Depois de mais de cinquenta anos de permanência no Brasil, movida pelo desejo de retornar à
terra natal, Catarina deixa a casa de tio Inhaim (Joaquim), fazendo-se acompanhada pela filha
Epifânia e pelos três netos, dentre os quais Mariana. A família perpassa as cidades de Juiz de
Fora, Rio de Janeiro e Salvador, onde permanece por um relativo período até tomar um saveiro
em direção à cidade de Lagos (Nigéria).

Desse marco em diante, A casa da água (1988) revela ao leitor grandes mudanças e experiências
vivenciadas pelas personagens, quando é possível verificar o estranhamento da velha ex-
escravizada Catarina em relação à sua terra de origem, assim como o processo de adaptação
experimentado por Epifânia e por seus filhos, Antonio, Emília e Mariana. Mariana, por seu
turno, despontará como o principal personagem de toda a narrativa, sendo talhada pela pena de
Antonio Olinto como uma espécie de heroína que atravessará toda a vida entre dificuldades e
conquistas obtidas a partir da ideia de construção de um poço, no terreno de um sobrado ao qual
é dado o nome de “Casa da água” (omi, água, water).

Por meio do comércio de água potável e de outros produtos, muitos deles importados do Brasil,
Mariana prospera, transformando-se em uma grande empreendedora/construtora, status que lhe
possibilita educar os filhos (Joseph, Sebastian e Ainá) na França e na Inglaterra. Muitos anos
depois, o mais novo dos filhos homens de Mariana, Sebastian Silva, vai se tornar o primeiro
presidente de um recém-liberto Estado Nacional denominado Zorei, quando a narrativa olintiana
irá se aproximar da temática da luta por libertação e por independência na qual estiveram
envolvidas as ex-colônias africanas em relação às nações colonizadoras europeias.

A vida da matriarca Mariana, a quem é atribuída uma extraordinária longevidade, é conduzida


por Antonio Olinto até o romance terceiro da trilogia Alma da África, intitulado Trono de vidro
(1987), em que a afro-brasileira terá grande importância no processo de transformação da neta,
Maria Ilufemi Silva, em presidente do mesmo Estado Nacional do Zorei, seguindo uma trajetória
política inspirada no pai, antes vitimado por um assassinato.

Além desses aspectos, o romance Trono de vidro (1987), é também marcado pela temática da
busca dos personagens pelo retorno à suas próprias origens e parece-nos evidenciar o mister
desenvolvido por Antonio Olinto no tocante às reflexões a respeito das identidades culturais
africanas e afro-brasileira, uma vez que o percurso pessoal empreendido pela jovem Mariana
Ilufemi em nenhum momento se afasta da trajetória de vida da avó Mariana Silva, a grande
matriarca de toda a trilogia Alma da África. Assim, em Trono de vidro (1987), encontramos a
narrativa da viagem de Mariana Ilufemi Silva à terra natal da avó – a cidade brasileira de Piau,
Zona da Mata mineira – local de onde Mariana, ainda menina e na companhia de sua família,
partira com destinação final à cidade africana de Lagos, na Nigéria, temática explorada, como
afirmamos anteriormente, no romance inaugural A casa da água (1988). Em diversas passagens
de Trono de vidro (1987), a escrita olintiana alinhava os romances, em um contínuo movimento
de ir e vir, em um fluir e refluir de acontecimentos, de diversos personagens e de seus
respectivos arcabouços culturais que permite ao leitor chegar a algumas conclusões em relação à
relevância das atividades e da influência exercida pelos afro-brasileiros junto às culturas dos
países da chamada Costa do Benim, em África. O terceiro romance da trilogia Alma da África
encerra-se com a neta, Mariana Ilufemi, relatando à avó as notícias da cidade de Piau, a qual
visita como representante de Estado de seu país, marcando de certo modo o reencontro da velha
Mariana com o Brasil, o seu país natal, ao qual jamais retornou.

Para a criação e composição da personagem Mariana, Antonio Olinto revelou haver buscado
inspiração na história pessoal da brasileira Romana da Conceição. Segundo o autor de O rei de
Keto (2007):

Romana da Conceição chegou do Brasil em 1900, aos 12 anos de idade, num


veleiro chamado “Aliança”. Nina Rodrigues fala nessa viagem no livro “Africanos
no Brasil”. Quando lhe pergunto: “Que tal a viagem no veleiro, minha tia?”, ela
responde: “Foi uma consumição!”
[...]

A avó de Romana da Conceição, que nascera na Nigéria, sempre tivera o sonho de


voltar à terra natal. Conseguiu convencer a filha, já nascida no Brasil e mãe de
Romana, a ir com ela e levar os filhos: Manuel, Romana e Luísa. Cerca de sessenta
brasileiros pegaram o veleiro “Aliança” na Bahia. A viagem de Salvador demorou
seis meses. Houve semanas de calmaria em que Romana me conta que ficava
olhando o mar. Começaram a faltar víveres. Doze pessoas morreram. A viagem
parecia não terminar mais. Quando aportaram a Lagos, as autoridades inglesas
colocaram todo mundo de quarentena e não deixaram que descessem com um
objeto sequer.

Roupas, joias, pertences de qualquer tipo, foram, por medo de contaminação por
doenças, retirados dos viajantes brasileiros, que desceram em Lagos com pedaços
de pano enrolados no corpo ou com roupas emprestadas. Encontrei ainda em Lagos
passageiros dessa viagem do “Aliança”: Romana, Maria Ojelabi, Manuel Emídio da
Conceição, Luíza da Conceição e Júlia da Costa (Olinto, 1964, p. 165).

Vale-nos salientar o fato de que os ex-escravizados africanos que retornavam do Brasil para a
África e também os seus descendentes brasileiros que os acompanhavam e acompanharam
quando desse retorno são chamados até os dias de hoje, na esfera das culturas dos países do
Golfo do Benim ou antiga Costa dos Escravos, dentre os quais a Nigéria e o Benim, como
“brasileiros da África” ou “agudás”, referência em iorubá, fom ou mina aos “parentes de Uidá”,
ou seja, aos benimenses portadores de sobrenome de origem lusitana ou, na Nigéria do século
passado, a todos aqueles indivíduos que professavam a religião católica.[231]

Um defeito de cor (2007), por intermédio do trabalho autoral de Ana Maria Gonçalves guarda a
narrativa, em primeira pessoa, da vida de Kehinde, jovem africana da etnia jeje, nascida em
Savalu, no Daomé (atual Benim), no ano de 1810, início do século XIX. Algum tempo após o
assassinato de Kokum, o irmão menor, e o da própria mãe, Kehinde e a irmã gêmea, Taiwo,
deslocam-se para a cidade de Uidá, na companhia da avó. Com cerca de seis, sete anos, Kehinde
e sua irmã são capturadas por intervenção de um poderoso comerciante do local e vendidas como
escravizadas. A avó das meninas se deixa capturar com o intuito de protegê-las e as três
embarcam em um tumbeiro em direção ao Brasil.

Durante a viagem, morrem a irmã e a avó da protagonista. Kehinde chega sem a família ao
Brasil, é comprada por um fazendeiro, de nome José Carlos Gama, e passa a viver em uma
fazenda da Ilha de Itaparica como escrava de companhia de Maria Clara, filha do homem que a
havia adquirido.

A personagem, a quem é dado no Brasil o nome de Luísa, cresce executando e se submetendo


aos serviços da casa-grande – visto que como escrava de companhia não passava de mero
brinquedo para a filha do fazendeiro – e tem a oportunidade de, em razão da própria esperteza e
presença de espírito, aprender a ler. Por desejo e capricho da mulher de seu proprietário, Keinde
é expulsa dos serviços da casa-grande e passa a viver na Senzala na companhia dos demais
escravizados da fazenda. A protagonista é submetida ao duro trabalho no eito. Com pouco mais
de doze anos, retorna à casa-grande, sucedendo-se a isso o estupro da personagem pelo dono da
fazenda, episódio do qual advém a gravidez de um filho. O fazendeiro morre, por suposta picada
de cobra, após o que a fazenda é vendida e a viúva e a filha mudam-se para Salvador, levando
consigo os escravizados que desempenhavam os serviços domésticos, dentre eles Kehinde e o
filho dela, Banjokô, que é batizado pela viúva do fazendeiro com o nome de José Gama.

Na cidade de Salvador, trabalhando como escrava de aluguel, Kehinde passa a prestar seus
serviços para uma família inglesa, ocasião em que aprende não apenas o idioma dos patrões
como também a feitura de cookies, cuja venda vai transformá-la em uma pequena comerciante. É
que, próximo aos dezoito anos, Kehinde/Luísa é posta a trabalhar para o sustento da viúva como
escrava de ganho, labor a partir do qual a própria protagonista é quem vai prosperar, a ponto de
poder comprar a sua alforria e a de seu filho. Alforriada, Kehinde conhece Alberto, um
português, tendo com o mesmo o seu segundo filho, Omotunde (ou Luiz Gama). Tempos depois,
o menino acabará por ser vendido pelo próprio pai como escravizado, em razão de dificuldades
financeiras daquele. Kehinde, durante sua trajetória, narra a participação na articulação da
Revolução dos Malês, na Bahia do ano de 1835, segundo as linhas ficcionais de Ana Maria
Gonçalves.

Por volta do ano de 1837, a vida da personagem sofre outras transformações. A Kehinde de Ana
Maria Gonçalves experimenta os tempos de efervescência da luta pela independência da Bahia
em relação ao restante do Brasil e, por engano, é levada à prisão, acusada de ser contrária ao
governo. Kehinde escapa da prisão em uma fuga arranjada e é aconselhada, em plena Revolução
Federalista, a abandonar a Ilha de Itaparica, deixando o filho com o pai e com uma amiga,
Claudina. A personagem passa pela cidade de São Luís do Maranhão e retorna tempos depois ao
Recôncavo, mas ainda afastada de Alberto e do filho Omotunde. Claudina falece e, desde então,
ninguém mais é capaz de dar notícia do pai e do menino que havia desaparecido. A partir disso,
Kehinde se lança em uma busca constante pelo filho, perpassando as cidades brasileiras das
quais tinha alguma informação de serem possíveis paradeiros da criança. Permanece um bom
período em São Sebastião do Rio de Janeiro à procura do menino. Em 1841 ainda não havia
notícias do paradeiro de Omotunde. Assim, a respeito desse fato, a narradora em primeira pessoa
assim se expressa:

Durante anos eu tinha esperado por aquele momento, e quando finalmente ele
chegou, fiquei com as pernas bambas de medo do que poderia descobrir. Entrei com
muito cuidado, como se de uma hora para outra fosse te encontrar tão perto de mim,
depois de tanta procura (Gonçalves, 2007, p. 705).

O menino teria passado apenas quinze dias em São Sebastião do Rio de Janeiro e provavelmente
devesse estar em Santos, para onde Kehinde parte, depois para São Paulo, Campinas e de volta a
São Salvador. Frustrada por não encontrar o filho perdido, Kehinde resolve retornar para a
África, em uma viagem de vinte e seis dias rumo a Uidá (1847).

De acordo com a professora Eurídice Figueiredo (2009):

O livro é escrito para um destinatário, o filho desaparecido, cujo nome não é jamais
mencionado, nem mesmo no prólogo, quando a autora se refere ao seu personagem
“que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais tarde se tornou um
dos principais poetas românticos brasileiros, um dos primeiros maçons e um dos
mais notáveis defensores dos escravos e da abolição da escravatura”. Assim, a
autora evita o grande personagem histórico para se concentrar na figura da mãe –
um verdadeiro fantasma na vida de Luiz Gama – que a autora constrói como uma
mulher forte, que vence na vida apesar de todos os sofrimentos (Figueiredo, 2009,
p. 61).

Em África, a personagem conhece John, um mulato escuro de Serra Leoa. Os dois se casam e
têm filhos gêmeos, além de construírem um grande patrimônio, pois nesse tempo, Kehinde vai se
dedicar ao comércio e o marido também irá se valer dessa atividade, atuando inclusive como
comerciante de armas. Podemos ler em Gonçalves (2007), o seguinte

Mesmo faltando quase tudo, em África as regras de comércio eram diferentes das
do Brasil, onde qualquer um podia vender o que quisesse. Antes de se estabelecer, o
comerciante tinha que estar sob a proteção do rei ou de alguém influente. Não digo
as vendas feitas nas feiras, de pouco vulto, mas as que podiam interferir no
comércio local, nos preços e nos acordos firmados entre comerciantes estrangeiros e
locais. Eu levava quase três contos em produtos comprados na Bahia, uma quantia
considerável que poderia fazer com que alguém se sentisse prejudicado (Gonçalves,
2007, p. 742).
Em Uidá, Kehinde reencontra velhos amigos, tendo em vista que passa, neste momento, a ser
considerada como uma agudá – assim como o foi a personagem Catarina (ou Adunké – avó de
Mariana) do romance A casa da água (1988), de Antonio Olinto – ou seja, uma ex-escravizada
africana retornada do Brasil.

Dessa maneira, tal como as personagens engendradas pela escrita olintiana, também a Kehinde
de Ana Maria Gonçalves experimentará as diferenças culturais existentes no território africano
em relação ao que vivenciara no Brasil, e vai narrar a forma como os agudás se organizaram ao
retornarem ou chegarem ao outro lado do Atlântico, fornecendo ao leitor informações sobre a
rotina instaurada pelos agudás nos bairros brasileiros da África, tais como o Quartier Brésil,
bairro que realmente existe em Lagos até os dias de hoje.

Certo início de noite, uma bagunça na rua chamou nossa atenção e saímos todos,
para entrar logo em seguida, com medo de nos machucarmos. Era época do entrudo
no Brasil e, em alguns lugares da cidade, os retornados também faziam o seu. Os
africanos não gostavam e saíam atrás deles, provocando brigas e confusões,
causando muitas mortes. Mas aqueles que estavam na nossa rua não eram
brasileiros, e sim africanos imitando brasileiros, bebendo cachaça e batendo tambor,
sendo que alguns ainda usavam máscaras feitas com cabeça de carneiro (Gonçalves,
2007, p. 758).

Dessa fase em diante, Kehinde, além de comerciante, passa a fazer fortuna construindo casas
para os grandes comerciantes de Uidá e de outras cidades. Algum tempo depois, a próspera
construtora fica viúva e se muda para Lagos. “Fui feliz em Lagos. De um jeito diferente do que
eu imaginava, mas de uma felicidade simples e sincera” (Gonçalves, 2007, p. 887). Assim, ao
escrever longamente sobre a vida da personagem em Lagos, Ana Maria Gonçalves, aproxima-se
bastante, neste momento, da narrativa que é desenvolvida por Antonio Olinto no romance A casa
da água (1988), uma vez que a autora retoma a temática das históricas viagens de ex-
escravizados e de seus descendentes afro-brasileiros em retorno ao continente africano, logo após
a Abolição da Escravatura no Brasil. Este aspecto é também tema de abordagem, de estudo e de
recriação por parte do escritor ubaense. A escritora de Ibiá traz para as linhas do seu romance a
repercussão da notícia da Abolição junto às comunidades agudás, do seguinte modo:

Mas nada superou a alegria da festa que comemorou a libertação e todos os


escravos do Brasil, em um mil oitocentos e oitenta e oito, quando o governador Sir
Moloney disse que mandaria vapores para buscar todos que quisessem voltar para
Lagos. A essa festa, realizada na praça da Catedral, não compareceram somente os
brasileiros, mas foi motivo de diversão também para os sarôs, estrangeiros e
selvagens (Gonçalves, 2007, p. 910).

Apropriando-se da narrativa de fatos históricos, Kehinde/Luísa conta as dificuldades e o final


fracasso das viagens dos vapores ingleses que buscavam os retornados no Brasil. Impressiona-
nos a intertextualidade estabelecida pela escritora Ana Maria Gonçalves com a obra de Antonio
Olinto, quando os dois autores se valem do mesmo fato para desenvolverem a trama de seus
respectivos romances. Trata-se da viagem do veleiro Aliança – que realmente existiu e cujo
nome em Antonio Olinto é transmutado para Esperança – sendo este o patacho que levará a
personagem Mariana, na companhia da avó, da mãe e dos irmãos ao continente africano,
passando pelas exatas experiências que a personagem Kehinde de Ana Maria Gonçalves relata
haver presenciado. Nesse passo, é na voz de Kehinde que a verve ficcional de Ana Maria
Gonçalves se aproxima da História narrando o seguinte:

Tudo o que se comenta ultimamente, e devo dizer que estamos no dia vinte e sete de
setembro de um mil oitocentos e noventa e nove, é a viagem do Aliança, um velho
patacho que já tinha feito inúmeras viagens Lagos – São Salvador. Um dos
desentendimentos recentes que tive com os seus irmãos foi por causa dessa última
viagem do Aliança, da notícia e da tristeza que ele levou até Lagos em junho deste
ano. A Bahia está sofrendo com uma epidemia de febre amarela e os navios que
saem de lá têm que carregar boletim de saúde para todos os passageiros e
tripulantes, mas na pressa de viajar ou por irresponsabilidade mesmo, o capitão do
Aliança arrumou atestados falsos para todos os viajantes. Deu azar, porque alguns
deles estavam com a febre, que rapidamente se alastrou, matando onze passageiros
durante a viagem e mais de um depois que o patacho ancorou em Lagos. Sabedoras
do que estava acontecendo, as autoridades de Lagos não deixaram que ninguém
fosse à terra e mandaram outra embarcação pra recolher os passageiros, a bordo da
qual eles tiveram que ficar de junho até o início deste mês, quando um oficial-
médico britânico achou que não haveria mais problemas. [...] Quando os
passageiros e tripulantes finalmente foram autorizados a desembarcar, foi sem os
pertences, que tinham ficado no Aliança e possivelmente estavam contaminados.
[...] Antes de embarcar fiz mais uma coisa por eles, doei tudo de uso pessoal e
exclusivo meu, como as roupas e os sapatos que não trouxe comigo agora e que
nunca mais usaria mesmo (Gonçalves, 2007, p. 911).

Poderíamos, então, até imaginar que os lençóis que envolveram Mariana no desembarque
em Lagos, como conta o narrador olintiano, teriam sido cedidos pela personagem de Ana Maria
Gonçalves. Voltando à narrativa, temos que a despeito de sua longa trajetória no continente
africano, Kehinde fica doente e cega, e embora tenha tido notícias tardias do paradeiro do filho,
não se sabe se chegará a revê-lo, sonhando ter forças suficientes para poder ingressar no convés
de um navio que a trouxesse de volta ao Brasil, a bordo do qual parece narrar a sua saga.
Aproximações e distanciamentos

Note que minha personagem, que mora no interior da Nigéria, é vendida


pelo tio. Ela voltou para procurar a sua própria família. Claro que não
encontrou mais nada. Aqui ela era Catarina, mas lá se chamava Ainá.
Quando chega, fala para todo mundo: de hoje em diante, meu nome é
Ainá. Não se deve trocar o nome de ninguém. É a reconquista da sua
personalidade.

(Antonio Olinto)

Conforme anteriormente explicitado, um trabalho comparativo entre as narrativas inscritas nos


romances A casa da água (1988), de Antonio Olinto, e Um defeito de Cor (2007), de Ana Maria
Gonçalves, não caberia, na inteireza de seus múltiplos aspectos, nas restritas linhas deste artigo.
Todavia, para além do desafio presente na tentativa de resumidamente narrar o que consta do
extenso romance de Ana Maria Gonçalves, o mesmo se podendo afirmar sobre A casa da água
(1988), consideramos ao menos outro exercício válido, qual seja, a busca por apontar algumas
aproximações entre as duas obras, para o que consideraremos certos marcos, tais como a viagem
de Mariana e a viagem empreendida por Kehinde, a alfabetização e a capacidade de leitura e de
fala de outros idiomas apresentadas pelas duas personagens, como pontos de aproximação entre
as duas histórias, ao mesmo tempo em que as diferenças ou os pontos de distanciamento entre
ambas se colocam em evidência.

Da leitura das obras é possível depreendermos que a personagem Mariana de A casa da água
(1988) empreende uma viagem do Brasil à África, na companhia da avó ex-escravizada e de seus
demais familiares, a mãe, a irmã e o irmão. Mariana é uma afro-brasileira, que ligada pelos laços
familiares, vê-se compelida a deixar a terra natal para lutar pela sobrevivência em um continente
que lhe é absolutamente estranho. Uma vez em África, a personagem se transforma em uma
matriarca de grande reconhecimento (quase uma heroína) que jamais conseguirá retornar ao
Brasil.

A Kehinde de Um defeito de cor (2007), por sua vez, é escravizada, e nessa condição se vê
forçada a empreender uma viagem da África até o Brasil, onde passa pelas agruras da escravidão,
mas liberta pela compra da carta de alforria, consegue retornar ao continente de origem, no qual
também se torna uma próspera matriarca. A personagem retornará uma vez mais da África ao
Brasil, em busca do paradeiro do filho que se perdera, e narrará sua história a bordo de um navio
que a vem trazendo de volta. O final que Ana Maria Gonçalves imprime à narrativa não dá ao
leitor a absoluta certeza se Kehinde conseguirá ou não chegar ao seu destino.
Desponta em ambas as narrativas o fato de as personagens conseguirem se alfabetizar. Mariana
frequenta a escolha de missionárias na África, onde aprende o inglês; Kehinde se vale das lições
da filha do fazendeiro para aprender a ler. Anos depois, na casa de patrões ingleses, aprende a
falar o idioma deles. Tal fato coloca as personagens em situação de vantagem quando se
aproximam de universos culturais em que poucos indivíduos são alfabetizados. Graças aos
estudos, Mariana terá a ideia de construir um poço de água potável cuja exploração alavancará
sua vida como grande comerciante; Kehinde aprenderá a fazer cookies, cuja venda possibilitará
seu crescimento como comerciante, atividade que mais tarde, inclusive, em África, vai se tornar
diversificada. Aliás, ambas as personagens tornar-se-ão construtoras de imóveis além da
atividade no comércio de produtos. Não temos notícia histórica, pelo menos até o momento, da
participação do elemento feminino como traficantes e comerciantes de indivíduos escravizados
no comércio alimentado por muitos anos entre nações africanas e outras da Europa e do Novo
Mundo. Este universo parece-nos marcadamente dominado por homens, vale salientarmos.
Kehinde, todavia, será em sua infância, vitimada por este comércio vil, situação que também
incorreu, não diretamente sobre a protagonista de A casa da água (1988), mas, sim, sobre
Ainá/Catarina, a ancestral avó de Mariana.

Tanto em A casa da água (1987) quanto em Um defeito de cor (2007), não só os autores se
valem, em algum momento de importância, do conhecimento que têm da viagem empreendia
pelo navio Aliança entre o Brasil e a África com o fito de levar a este continente os escravizados
retornados e os seus descendentes afro-brasileiros, como também ambos fazem ressaltar a força e
a altivez de duas personagens femininas, as quais, a despeito de todo o sofrimento e a má-sorte
que se tenham atravessado suas respectivas trajetórias, configuram-se como emblemáticas
matriarcas negras: uma, a Mariana de Antonio Olinto, afro-brasileira; outra, a Keinde de Ana
Maria Gonçalves, uma africana. Ambas, mulheres agudás.
Considerações finais

Apenas enunciando alguns aspectos de aproximação e de distanciamento entre esses dois


importantes romances afro-brasileiros que enriquecem o panorama da Literatura Brasileira,
vemos nesse pequeno exercício comparativo, timidamente desenvolvido no corpo deste artigo, a
grande possibilidade de que esse mister possa ser ampliado, dada a riqueza das narrativas da
lavra dos mineiros Antonio Olinto e Ana Maria Gonçalves.

São notórios não apenas o fato de que ambos os autores se mostram eficazes no expediente de
levarem os seus leitores à reflexão acerca do regime escravocrata que vigorou no Brasil, mas
também o de lhes possibilitarem a compreensão de como se deu a constituição da diversidade
étnica que é o nosso país.

Acrescente-se ainda a possibilidade aberta aos leitores de terem alguma ideia sobre a
contribuição de afro-brasileiros na constituição de núcleos populacionais no continente africano,
o que, por si só, ressalva a relevância que africanos e afrodescendentes têm na formação da
própria população de um país chamado Brasil, em cujo cotidiano ainda se manifestam
nefastamente práticas racistas e excludentes que impedem os seus habitantes de, afinal,
(re)conhecerem-se como sujeitos de constituição étnico-cultural plural e diversa.
Referências

FIGUEIREDO, Eurídice. (2009). Os brasileiros retornados à África. Cadernos de Letras da UFF


– Dossiê: Diálogos Interamericanos, n. 38, p. 51-70. Disponível em:
http://www.cadernosdeletras.uff.br/joomla/images/stories/edicoes/38/artigo3.pdf. Acesso em: 25
ago. 2018.

GILROY, Paul (2001). O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. por Cid
Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro
de Estudos Afro-Asiáticos.

GONÇALVES, Ana Maria. (2007). Um defeito de cor. 2. ed. Rio de Janeiro: Record.

GURAN, Milton. (2000). Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

MOISÉS, Massaud. (2004). Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix.

OLINTO, Antonio. (1964). Brasileiros na África. Rio de Janeiro: Edições GRD.

OLINTO, Antonio. (1987). Trono de vidro. Rio de Janeiro: Nórdica.

OLINTO, Antonio. (1988). A casa da água. 4. ed. Rio de Janeiro: Nórdica.

OLINTO, Antonio. (2007). O rei de Keto. Antonio Olinto; ilustrações Carybé. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil. (Trilogia Alma da África; v. 2).

POMPEU, Renato. (2019). Um defeito sem máculas. Disponível em:


www.yumpu.com/pt/document/read/12802880/um-defeito-sem-maculas-retrato-do-brasil.
Acesso em: 12 set. 2019.

[1] Contato: michelyakini@gmail.com

[2]Doutora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta da
Universidade Federal do Sul da Bahia. Contato: fabicarneirodasilva@yahoo.com.br

[3]Em tradução livre: “Essa caracterização inicial estabelece o fundamento perturbador do enigma da maternidade da mammy:
seu amor pelas crianças que cuida se torna mais sublime, mais extraordinário quando supera seu amor pela sua própria carne e
sangue, essas crianças que são propriedade do seu senhor ou, às vezes, das próprias crianças sob seus cuidados”.

[4]
De modo correlato, Wallace-Sanders mostra como nos Estados Unidos a figura da “mammy” na relação com as crianças
brancas é representada de modo idealizado, na figura da condutora de um amor sublime, enquanto na relação com suas próprias
crianças ela é instintiva, grosseira e selvagem (Wallace-Sanders, 2008).

[5]
A perversidade dessa dinâmica é explicitada contundentemente por Lélia Gonzalez, que no texto “Racismo e Sexismo na
Cultura Brasileira” discute a figura da “multata” e da “mãe preta” atribuindo a esta, porém, o potencial de “passar uma rasteira na
classe dominante”. Segundo ela, os problemas das formas de representação da “mãe preta” não são suficientes para neutralizar o
fato, contido nesse estereótipo, de que na cultura brasileira é a mulher negra quem de fato exerce o papel de “mãe”: “Exatamente
essa figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante. É através dela que o ‘obscuro objeto
do desejo’ (o filme do Buñuel), em português, acaba se transformando na ‘negra vontade de comer carne’ na boca da moçada
branca que fala português. O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como
querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como quem alguns negros muito apressados em seu
julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente
pergunta: quem é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a
falar, que conta história e por aí afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira. Enquanto
mucama, é a mulher; então ‘bá’, é a mãe. A branca, a chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que
pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a ‘mãe preta’ é a
mãe” (Gonzalez, 1984, p. 235). A sagaz inversão realizada por Gonzalez busca tirar o recalque da experiência como mãe que
também integra o repertório das mulheres que se viram impelidas ao trabalho com os filhos de outrem (e ainda se veem, como ela
demonstra, no caso das babás e outras trabalhadoras domésticas). Porém, essas experiências, retidas nas diversas e conflituosas
narrativas literárias, não podem ser perfazer sem a consideração do alheamento entre mãe negra e filho negro tão agressivamente
expressa na imagem da “mãe preta”. O que há de dor e violência nesse estereótipo, bem como tudo aquilo que o excede e aponta
para outras múltiplas formas de exercício da maternidade pelas mulheres negras, encontra eco num conjunto de obras literárias
produzidas desde uma complexa perspectiva interna negra que, contudo, permaneceram invisibilizadas ou às margens do cânone.

[6] Desde uma perspectiva elaborada pela história social da escravidão, acompanhamos como as amas de leite foram
primeiramente destituídas da relação com o próprio filho e, depois, já num processo de construção do discurso racialista
brasileiro, também afastadas da relação com a criança branca.

[7]Isso não significa que não haja representações da maternidade desde a perspectiva da mulher negra. Maria Firmina dos Reis,
ainda no contexto escravista do século XIX, transfigurou literariamente essa experiência (a qual aparece de modo contundente no
conto “A escrava” de 1887), que também figura, já em meados do século XX, por exemplo, na obra de Carolina Maria de Jesus,
como em Quarto de despejo de 1960, ou de Anajá Caetano, que em 1966 publica Negra Efigênia, paixão do senhor branco. Com
o fortalecimento da produção literária de mulheres negras nas últimas décadas, a própria Conceição Evaristo constitui referência
de autoria de uma série de personagens que são mães negras e vivenciam de formas diversas o evento da maternidade. Há, assim,
uma genealogia desta tópica por se fazer, sobretudo, a partir da literatura de autoria negra. Esse é um empreendimento que tenho
realizado em minhas atividades de pesquisa.

[8]
Algumas dessas obras são: DUARTE, Eduardo de Assis. “Na cartografia do romance brasileiro, Um defeito de cor, de Ana
Maria Gonçalves. Portal Literafro: http://www.letras.ufmg. br/literafro/; GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Luiza Mahin
entre a ficção e a história. Dissertação. UNEB, 2010. Disponível em: http://www.ppgel.uneb.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/
goncalves_aline.pdf. Acesso em: 1º jul. 2014; BERND, Zilá. “Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 40, jul./dez. 2012, p. 29-42;
FIGUEIREDO, Eurídice. “Os brasileiros retornados à África”. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos,
no 38, p. 51-70, 2009, CORTÊS, Felipe Ribeiro de Araujo. Viver na fronteira: a consciência da intelectual diaspórica em Um
defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Dissertação. UFMG, 2010; LANGE, Mariana de Bastiane. Vicissitudes da memória:
destino, desvio e(m) Um defeito de cor. Dissertação. UFSC, Florianópolis, 2008.

[9]
Davis identifica uma ideologia da “feminilidade” que surge com a industrialização no século XIX e afasta cada vez mais a
mulher branca da esfera do mundo do trabalho produtivo. Mulher (branca) torna-se, segundo ela, sinônimo de “mãe” e “dona de
casa”. Contudo, isso não se aplica às mulheres negras, já que: “A exaltação ideológica da maternidade – tão popular no século
XIX – não se estendia às escravas. Na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas
instrumentos que garantiriam a ampliação da força de trabalho escrava. Elas eram ‘reprodutoras’ – animais cujo valor monetário
podia ser calculado com precisão a partir de sua capacidade de se multiplicar” (Davis, 2016, p. 19). Sendo assim, a autora mostra
como houve uma diferença na incorporação dos papéis sexuais (assim como na relação homem-mulher) dentro dessa nova
ideologia, a qual teve desdobramentos ulteriores. De modo a não deixar dúvidas disso, ela afirma ainda: “Embora tenham
colaborado de forma inestimável para a campanha antiescravagista, as mulheres brancas quase nunca conseguiram compreender a
complexidade da situação da mulher escrava. As mulheres negras eram mulheres de fato, mas suas vivências durante a escravidão
– trabalho pesado ao lado de seus companheiros, igualdade no interior da família, resistência, açoitamentos e estupros – as
encorajavam a desenvolver certos traços de personalidade que as diferenciavam da maioria das mulheres brancas” (Davis, 2016,
p. 39).

[10] Conceito formulado por Conceição Evaristo.

[11]
Não esquecendo que ela já havia perdido a mãe e a avó. Esta não tendo suportado a viagem a bordo do tumbeiro e aquela
assassinada em África diante dos filhos em passagem que abre a narrativa.
[12] Em uma das vezes que Kehinde sai às escondidas com Banjokô e é descoberta por Ana Felipe, a reação da senhora é violenta:
“Ela gritou para que a Esméria pegasse o menino e me arrastou pelos cabelos até a varanda, dizendo que além de insolente eu era
irresponsável (...) Quando chegamos à varanda, ela começou a me dar tapas no rosto, com uma força que nunca imaginei que
tivesse (...)” (Gonçalves, 2006, p. 210).

[13]No momento futuro da narrativa, Kehinde revela que os sucessivos abortos de Ana Felipa se deviam a ações dos escravizados
que, como forma de vingança pelos maus tratos sofridos, colocavam elementos abortivos na comida dela. Essa versão que matiza
a ideia de esterilidade, não deixa de ser significativa no sentido que sublinha a agência negra (e desmente a condição dócil e
servil com que a população escravizada foi descrita em alguns textos de referência sobre o período) e ratifica a caracterização da
sinhá como aquela que não pode ter filhos.

[14]Todos os partos de Kehinde são descritos no romance e cada um deles é passível de ser lido como episódio que sintetiza as
transformações da vida da narradora. Esse dado é muito significativo para essa genealogia de imagens da maternidade negra que
evocamos.

[15]O filho de Kehinde recebe dois nomes, o africano Omotunde e o português Luiz. Tendo em vista a condição da narradora
como africana liberta no Brasil, priorizaremos o nome africano (assim como o fazemos com a sua mãe). Omotunde Adeleke
Danbiran: três nomes que têm como respectivos significados “a criança voltaram”, a criança será “mais poderosa que os
inimigos” e uma homenagem aos voduns (em memória da avó), em especial à “Dan”. Em outros trabalhos, detenho-me na
referência que tais personagens fazem às figuras de Luiz Gama e Luísa Mahin, retomando a questão dos nomes.

[16]
Dois abikus, isto é, “criança nascida para morrer” (Gonçalves, 2006, p. 19).

[17] As medidas drásticas pós-revolta dos Malês (deportação, taxa de 10 mil réis anuais, perseguições, impedimento de que esses
africanos adquiram bens e anulação da legitimidade do que eles já possuíam) duraram por 40 anos.

[18] Cunha escreve: “Assim, os libertos africanos não eram evidentemente nem eleitores nem elegíveis, nem podiam fazer parte
do Exército, Marinha ou Guarda Nacional, nem ingressar nas ordens religiosas. Em 1830, um decreto proibia aos forros e forras
africanos, sob pena de prisão, a livre circulação fora de seu domicílio a não ser com passaporte de limitada vigência e que só
deveria ser concedido mediante ‘exame da regularidade de sua conduta’” (Cunha, 2012, p. 99).

[19]
A ideia antiescravista defendidas por essa linha de pensamento implicava na abolição e exclusão dos negros do país, uma
deportação progressiva, chegando-se pensar e especular a compra de um território na África para se fazer de colônia e campus de
deportação. Angola, por exemplo, recusou tal proposta. De acordo com os indícios, afirma Cunha, foram sobretudo as precárias
finanças do império que impediram a consecução de tão grandioso projeto (Cunha, 2012, p. 110).

[20] Na primeira travessia, no tumbeiro, Kehinde embarca, em África, com a avó e a irmã, mas desembarca, no Brasil, sozinha.

[21]
A polêmica surge a partir de uma queixa protocolada no Conselho Nacional de Educação, em 2010, por Antonio Gomes
Costa Neto, que aponta a presença de conteúdo racista na obra de Lobato e, sobretudo, nas descrições da Tia Nastácia presentes
no livro Caçadas de Pedrinho, publicado em 1933.

[22]Depois de explicitar os vínculos entre Lobato e o projeto eugenista de eliminação da população negra do país, Gonçalves
(2016) dirige-se ao leitor e pede o seu deslocamento do lugar de privilégio que a branquitude instaura: “Peço agora que você faça
um exercício: imagine uma criança na sala de aula das escolas públicas de ensino médio e fundamental no Brasil. Negra”.

[23]
Acompanhamos nos diálogos finais da peça:

“JORGE – Eu sou teu filho!... Dize!... Uma vez ao menos... este nome.

JOANA – Ah!... Não!... Não posso!

JORGE – Fala! Fala! JOANA – É um atrevimento!... Mas eu queria antes de morrer... beijar sua... sua testa, meu nhonhô!...

JORGE – Mãe!...

JOANA – Ah!... Joana morre feliz!

JORGE – Abandonando seu filho.


JOANA – Nhonhô!... Ele se enganou!... Eu não... Eu não sou tua mãe, não... meu filho! (Morre.)

JORGE (de joelhos) – Minha mãe!...” ALENCAR (1922).

[24] Seguimos aqui a análise da peça realizada por Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro em “Imagens de ‘mães pretas’:
representações da maternidade e da escravidão na escrita de José de Alencar” (2006).

[25] No que se refere a isso, o cotejamento entre esse romance e a primeira obra, de caráter autobiográfico, publicada por
Gonçalves, a saber, Ao lado e à margem do que sentes por mim, permite que vislumbremos a diferença entre essas construções de
identidade. No primeiro livro, ao descrever uma situação de infância em que, na cidade do interior mineiro em que nasceu, Ibiá,
uma criança branca, durante a preparação para um festejo religioso, afirma que a narradora “Ana” não pode representar uma santa
por ser “quase preta”, essa narradora afirma-se “morena”. Segue o trecho: “A Elzinha, do alto de sua loirice, de dentro de sua
pele clara, feito santa de porcelana, fixou em mim os olhos azuis de Nossa Senhora e disparou: – Quem é que já viu Nossa
Senhora quase preta?! Tem graça…Não tinha graça nenhuma. Uma raiva imensa fez com que eu desatasse a chorar e nem
conseguisse dizer que não era preta, que era apenas morena. E que tinha os olhos verdes, e que ao nascer eles eram azuis”
(Gonçalves, 2002).

[26] Doutoranda em Teoria da Literatura na UFPE/CAPES. Contato: camiladematossilva@gmail.com

[27] Doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Contato: julia.ddias@gmail.com

[28]
As ideias da historiadora Beatriz Nascimento referenciadas neste texto estão documentadas no longa-metragem Ori, dirigido
pela socióloga Raquel Berger e lançado no ano de 1989. GERBER, Raquel (Dir.) (1989). Ori. São Paulo, Angra Filmes. 90 min.

[29]
Segundo a escritora e antropóloga afro-costa-ricense Shirley Campbell Barr (2017, p. 21), a diáspora africana está atrelada a
três elementos fundamentais. O primeiro “se refere à transferência forçada de milhões de africanos para o Novo Mundo, como o
resultado do tráfico de escravos; o segundo, à formação de culturas afro-americanas a partir da reelaboração das culturas
africanas e da sua combinação com culturas europeias e nativos-americanas; e o terceiro, ao surgimento de identidades culturais
fundadas na origem racial, étnica e cultural (africana).

[30]
“Tinha esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia ‘fica para gozar a vida, nós imploramos’. Assim são os
abikus, espíritos amigos há mais tempo do que qualquer um de nós pode contar” (Gonçalves, 2017, p. 19).

[31]
De acordo com Eurídice Figueiredo (2010, p. 67): “Em se tratando da escravidão no Brasil, pode-se apontar que a resiliência
se oporia ao banzo, doença mental que acometia os africanos aqui chegados e que os levava ao suicídio, depois de muito
sofrimento causado seja pelo ressentimento diante dos castigos injustos, seja pela perda de referenciais culturais e emocionais”.

[32] Cabe salientar que opto pela escrita da palavra “escravizado”, no lugar de “escravo”; de acordo com Grada Kilomba (2019,
p. 20): “escravizado descreve um processo político ativo de desumanização, enquanto escrava/o descreve o estado de
desumanização como a identidade natural das pessoas que foram escravizadas”. No entanto mantive as grafias “escravo(s)” nas
citações, respeitando, assim, a escolha dos autoras e autores citadas/os.

[33] Segundo Beatriz Nascimento, corpo-documento é “o corpo que ocupa os espaços e deles se apropria”.
[34]
Orum: céu, ou firmamento, onde vivem as almas, enquanto esperam para voltar ao ayê” (Gonçalves, 2017, p. 58).

[35]
Nega Florinda “também era jeje, capturada em Ardra mais de sessenta anos antes, vivendo como liberta havia mais de trinta”.
Assim como a avó de Kehinde, “No Daomé, tinha chegado a ser vodu-no – nome dado às sacerdotisas jejes no culto de Dãnh-gbi,
a Grande Serpente” (Gonçalves, 2017, p. 83).

[36]A morte de Taiwo representa, além da perda física, uma perda anímica, uma vez que uma dependia da outra “sempre por
perto para continuar tendo a alma por inteiro” (Gonçalves, 2017, p. 60). Assim um pingente benzido, as lembranças e as imagens
de Taiwo em manifestações oníricas são, para Kehinde, maneiras de tornar presente a irmã, materialidades para ressignificar a
vida.

[37]
Ori, palavra em yorubá, que “significa cabeça ou centro e que é um ponto chave de ligação do ser humano com o mundo
espiritual” (Ratts, 2007, p. 63).

[38] No trânsito entre Bahia e Maranhão, o vodum de Agontimé surgiu e lhe indicou o caminho e o lugar onde deveria erguer o
seu templo e sua gente: a Casa de Minas, “em tal casa trabalhariam as vodúnsís africanas, as minas, como eram chamadas as
escravas embarcadas na Costa da Mina, em África (Gonçalves, 2017, p. 134).

[39]
Segundo Joaquim (2001, p. 31), “os cultos funcionaram como um elemento de afirmação do negro. O negro se sentia
despedaçado porque não tinha o direito de cultuar seus próprios deuses e para isto precisou criar mil subterfúgios!”.

[40]
Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais na UFABC. Pesquisadora em Ciências Sociais e Humanas no Centro de
Pesquisa e Formação do SESC-SP. Contato:

[41]Ver Lima, Dulcilei C. “Desvendando Luíza Mahin: Um mito libertário no cerne do Feminismo Negro. Dissertação
(mestrado) em Educação, Artes e História da Cultura, Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2011.

[42] Cf. “Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no cerne do Feminismo Negro”.

[43]
Significa “os eminentes vêm depois”, e justifica-se pela protagonista ser uma ibêji (gêmea), segunda a nascer (Epega, 2005,
p. 104).

[44]
Em 1880, o poeta, jornalista, advogado e abolicionista Luiz Gama endereçou uma carta ao também jornalista Lúcio de
Mendonça. Nessa carta, Gama narra sua própria biografia e registra em dois parágrafos o nome, características físicas e alguns
feitos de sua mãe, Luíza Mahin (Lima, 2011).

[45]
Cristiane Côrtes define Um defeito de cor como um produto da Metaficção historiográfica que por sua vez se expressa “pela
vontade de reinterpretar o passado com a consciência do poder da representação e, consequentemente, do poder de narrar e de sua
importância na constituição das identidades das nações modernas” (Côrtes, 2010, p. 59).

[46]Adandozan governou o Abomey entre 1797 e 1818 após um golpe de estado. Vendeu como escrava Nã Agontimé, viúva do
rei Agonglo e mãe do rei Ghezo. Conta-se que seu filho teria enviado missões ao Brasil no intuito de recuperar a mãe, mas nunca
mais a encontrou. Sugere-se que tenha sido a fundadora da Casa das Minas (Ferretti, 1996, p. 102).

[47] “O primeiro a provar o mundo” (Epega, 2005, p. 104).

[48]
Segundo Parés, “voduns” é o termo utilizado por sociedades do Golfo do Benin para designar suas divindades. Não há
certeza quanto a sua etimologia, “mas, de modo geral, o termo evoca uma ideia de mistério, o inefável que não pode ser
conhecido” (Parés, 2006, p. 37).

[49]O brasileiro Francisco Félix de Souza, mais conhecido como Chachá foi um grande comerciante de escravos que viveu e
atuou em Ajudá (Reino do Daomé) entre 1800 e 1849 aproximadamente. Recebeu o título de “Chachá de Ajudá” do rei Guezo,
como recompensa pelo apoio dado ao governante por ocasião do golpe de estado que destronou Adandozan. Ao associar-se ao rei
Guezo, Francisco Félix tornou-se um “agente do rei em Ajudá”. Nessa posição angariou o respeito tanto de comerciantes locais
quanto de comerciantes estrangeiros que “tinham de haver-se com ele, em vez de diretamente com o soberano, em tudo o que
dizia respeito ao comércio”. Os privilégios comerciais dos quais usufruía permitiram ao Chachá fazer fortuna com o comércio
transatlântico (Law, 2001).

[50] Após a Revolta dos Malês muitos africanos foram deportados de volta ao continente africano, e outros voltaram
espontaneamente após conseguir a liberdade. Parte desse contingente se instalou no Golfo do Benim, região onde se encontra
Nigéria, Benim e Togo. Nessa região se desenvolveu uma arquitetura que se assemelha muito com a arquitetura colonial como a
do Pelourinho em Salvador, Bahia. Tendo como referência os solares rurais e os palacetes urbanos, essa arquitetura desenvolvida
por africanos retornados marca a paisagem da região do Golfo do Benim (Conduru, 2012).

[51]
O tipo de narrativa adotada por Ana Maria Gonçalves tem elementos da picaresca, oriunda da literatura ibérica em que
predomina “a forma narrativa autobiográfica, um contexto social marcado pela exclusão, o caráter itinerante” do protagonista e o
uso da esperteza e astúcia como meios de vencer os obstáculos impostos pela desvantagem social na busca por sobrevivência e
ascensão social (Portilho, 2005, p. 50).

[52]
As referências ao universo mítico começam no prefácio intitulado Serendipidades. De acordo com Joseph Campbell em
entrevista concedida no documentário O poder do mito, Serendipty deriva do sânscrito “Swarandwipa”, ou seja, Ilha da Seda o
antigo nome do Ceilão. Trata da história de uma família que a caminho do Ceilão acaba passando por múltiplas e inesperadas
aventuras (Ver Campbell, Joseph. O poder do Mito, 1988. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v= kFzT03JL9X0.
Acesso em: 15 set. 2018). Ana Maria Gonçalves usa essa expressão para explicar como teria chegado aos manuscritos que
originaram o romance. A autora define o termo como “aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa
enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados” e afirma Um defeito de cor é
fruto da serendipidade” (Gonçalves, 2009, p. 9).

[53] Ver a dissertação Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no cerne do Feminismo Negro.

[54]
Em depoimentos colhidos por Ferreti há referências a homens que recebiam voduns, mas, segundo o pesquisador, isso não
ocorre já há várias décadas (Ferretti, 1996).

[55]Nanã ou Nanã Buruku é uma das orixás mais antigas do panteão iorubano. Segundo Verger (1997), “Nàná é um termo de
deferência empregado na região de Ashanti para as pessoas idosas e respeitáveis e […] esse mesmo termo significa “mãe” para os
fon, os ewes e os guang da Atual Gana” (Verger, 1997, p. 236).

[56] Doutoranda em Literatura e Cultura no Instituto de Letras da UFBA. Contato: hildaliafernandes@hotmail.com

[57] Segundo Lopes; Katlau (2018. p. 312): “[...] cabe à perlaboração a tarefa de dar voz ao não dito, mediante a incessante
tentativa de estabelecer os contornos daquilo que insiste em se apresentar como impossível de ser colocado em palavras”.

[58]
Senhora do Mar. Representa a riqueza dos fundos marinhos. É oportuno salientar que faremos uso de vocábulos na língua
yorùbá. Recuperar e fazer uso desta apresenta-se, nesse ensaio, como um ato político, para sinalizar aquela que deveria ser a
nossa língua materna e não a do colonizador, pois compreendemos que a forma como nomeamos o mundo incide, diretamente, na
forma como o concebemos. Dito isso, é de bom tom salientar, ainda, que todas as vezes que o “s” aparecer com um acento
subsegmental é para sinalizar a letra “ṣ” (che) que no idioma yorùbá equivale ao som represento pela letra “x” ou pelo dígrafo
“ch” na língua portuguesa. Vale comentar que nem a letra “x” nem os dígrafos existem no alfabeto da língua yorùbá.

As vogais E e O que apresentarem o acento subsegmental estarão sinalizando para a pronúncia destas de forma aberta, isto
porque a sinalização, nessa língua não ocorre tal qual o português do Brasil com os acentos agudo e grave. A língua yorùbá é
tonal. Não sinalizará, dessa forma, a sílaba tônica.

[59]A autora dedica o livro A cor Púrpura ao(s) espírito(s) que a ajudou a escrever a obra. Há, ainda, um ensaio no livro In
Search of Our Mother's Gardens, intitulado de “Writing The Color Purple” que explicita a participação de cada um deles na
composição do referido livro.

[60] Expressão utilizada por Fernanda Rodrigues Miranda (2016) para falar, especificamente, sobre o conto de Ana Paula Lisboa
intitulado de “Preta” e que é parte integrante do livro Olhos de Azeviche, antologia publicada pela editora Malê em 2017.
Resenha disponível em: http://www.suplementopernambuco. com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-resenha/1815-uma-
antologia-al%C3%A9m-do-c%C3%A2none.html. Acesso em: 12 set. 2019.

[61]
Ferramenta litúrgica. Uma espécie de leque e espelho e que faz parte da indumentária de quatro Òrìṣà. São eles: Òṣàlà, Ọ̀ṣun,
Iemoja e Lógún Ẹdẹ.

[62]
Movimentos da capoeira trazidos à cena enunciativa como metáforas para pensar os nossos esforços em driblar e lidar com o
racismo. Enquanto a ginga é a posição básica de onde deriva todas as outras, ora avançando, ora recuando, a volta ao mundo é
percorrer a roda ou para descansar de um ritmo mais rápido de jogo ou para tentar pegar o outro jogador de surpresa com golpes
não esperados.

[63]
Proposta na tese em andamento e por mim elaborada no doutorado em Literatura e Cultura. Pretende servir como
possibilidade de leitura de parte do acervo literário de Toni Morrison, escolhida como autora para testar a ferramenta teórico-
crítica. Como corpora para a escrita da tese elegeu-se três dos onze romances por ela publicados. São eles: O Olho Mais Azul;
Pérola Negra e Deus Ajude a Criança.

[64]
Cf. vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=m HUo9M5KI5k&t=834s. Parte integrante de um projeto
chamado de Literatura Inteira. Nesse episódio ela falará de suas pesquisas acadêmicas que mesclam teoria com poesia de lésbicas
negras.

[65]
O termo remete, etimologicamente, a noção de ferida ou lesão.

[66]
Empregamos tal palavra por vermo-nos na impossibilidade de encontrar alguma outra que satisfaça e que se apresente como
coerente ao contexto e situação apresentados. Não que a mesma se revele como a mais adequada. Vale lembrar que estamos
falando de atrocidades históricas perpetradas sobre os corpos e existências de seres humanos, ainda que estes fossem concebidos
e tratados como coisa.

[67]
Na segunda obra publicada: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, Carolina declara sobre a nova situação, a
mudança de endereço e a realização do sonho da casa própria: “... Eu ainda não habituei com este povo da sala de visita – uma
sala que estou procurando um lugar para me sentar” (Jesus, 1961, p. 66).

[68] A edição utilizada nesse ensaio é a correspondente ao ano de 2013, nona edição.

[69] Última data que aparece, explicitamente, nas páginas do romance – p. 935.

[70] Para maiores informações sobre o assunto, ver: Verger (1983) e Augras (1994).

[71] Kẹ́hìndé – nome da segunda criança gêmea nascida (lit. o que chegou depois) (Beniste, 2011, p. 453)

[72] Táíwò – nome dado ao primeiro gêmeo nascido (lit. aquele que veio provar o mundo) (Beniste, 2011, p. 743)

[73]
Omontunde significa O filho que retorna. Tunde é outra categoria específica para essas civilizações que creem que os entes
queridos voltam nas gerações mais novas.

[74] Ver maiores detalhes no ensaio de Ubiratan Castro intitulado de A chegada dos sem nome.

[75]“É uma variedade de caracol de concha cônica com o topo aberto. Okotô é a denominação da parte superior, que repousada
na ponta do cone (uma perna, um único ponto de contato), evolui em espiral, abrindo-se em cada rotação até tornar-se uma
circunferência que se expande ao infinito (cume oco). Okotô demonstra que Exu, apesar de vários, possui uma única origem e
natureza, e explica também seu princípio dinâmico e seu modo de autoexpansão e multiplicação. Exu é uno e infinitamente
multiplicável. Muitos textos e cantos referem-se À relação entre Exu e o conceito de 1” (Santos, 2014, p. 27).

[76] Assim grafado para salientar o legado deixado por eles.


[77] É de bom tom salientar ainda aqui que a temática da infância negra é ainda pouco usada na produção literária negro-
brasileira. O que por si só já merecia um demorado e minucioso estudo sobre as razões que levam a essa lacuna, dentre outras.

[78]
Rendendo homenagens e fazendo referência ao texto de Leda Martins. A fina lâmina da palavra. Disponível em: http://www.
letras.ufmg.br/poslit. Acesso em: 13 set. 2019.

[79]
Por autoficcão entenderemos aqui: “forma de encenação de si”, uma “dramatização de si”, escrita que “torna híbrida a
fronteira entre o real e o ficcional”. Segundo Lasch (1983, p. 42): “o autor hoje fala com sua própria voz mas avisa ao leitor que
não deve confiar em sua versão da verdade”.

[80]
Professora/Pesquisadora. Doutora em Literatura e Cultura (UFBA). Contato: sietnia@yahoo.com.br

[81]
Iroco, além de ser uma árvore de origem africana, é ainda o nome de um orixá. É considerada sagrada.

[82]
Pesquisador de pós-doutorado (CAPES/PNPD) no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.
Contato: gabrielestides@gmail.com

[83]As pesquisas de Regina Dalcastagnè, reunidas até o momento no livro Literatura brasileira contemporânea: um território
contestado, têm demonstrado não só a homogeneidade do perfil autoral brasileiro publicado pelas grandes e prestigiadas editoras
locais. Masculino e branco, tal perfil – aferido quantitativamente (Dalcastagnè, 2012, p. 162) – prolonga-se no espaço
composicional das obras, determinando a matéria ficcional e a maneira de formalizá-la. O que se tem de modo majoritário são
dramas pequeno-burgueses narrados e protagonizados por personagens que replicam o perfil autoral, numa sensaboria
autorreferente típica da ausência de diversidade.

[84]
Ver, por exemplo, verbete no sítio on-line da Fundação Cultural Palmares: “Luísa Mahin” (2013).

[85]
Ver revisão bibliográfica de Dulcilei da Conceição Lima (2011, p. 39-47).
[86]No romance de Gonçalves, grafa-se “Luísa”, ao invés do original com “z” utilizado por Luiz Gama. A diferença, embora
mínima, é estratégica, como notou Fabiana Carneiro da Silva (2017, p. 92n), posto que reafirma uma relação de “similaridade não
idêntica” entre o romance e sua matéria. Voltaremos com vagar a esse ponto.

[87]
Seguindo a cosmologia iorubá, nomeia-se o primeiro gêmeo vindo à luz como Taiwo. O segundo é Kehinde (Ogunyemi,
1996, p. 74). São ibêjis (gêmeos) (Gonçalves, 2015 [2006], p. 19n).

[88] Regente de 1797 a 1818 (Ferretti, 1995, p. 117).

[89]Para uma análise deste que é o primeiro romance afro-brasileiro publicado, no entanto, e de modo sintomático, ausente das
principais historiografias da literatura nacional, ver o posfácio de Eduardo de Assis Duarte (2004).

[90]
São essas as formas empregadas por Gonçalves em seu romance para designar a nação jeje mahi (Gonçalves, 2015 [2006], p.
133, 498, 502).

[91]Para mais detalhes a respeito de Nã Agontimé, personagem histórica evocada pelo livro de Gonçalves, é preciso consultar
Querebentã de Zomadônu, de Sérgio Ferreti. E também, do mesmo autor, Repensando o Sincretismo, em que o estudioso
recupera tese de Pierre Verger (1990) sobre a provável fundação da Casa das Minas pela rainha daomeana, “viúva do rei Agonglô
e mãe do futuro rei Ghezo [regência: 1818-1858]” (Ferretti, 1995, p. 117). Em contraste, todavia, com a forma escolhida por
Gonçalves em seu romance, a memória oral da Casa maranhense registra sua fundadora como Maria Jesuína. A escolha de
Gonçalves curiosamente replica samba-enredo da Beija-Flor no carnaval de 2001, nominado “Agotimé Maria Mineira Naê”
(Ferretti, 2001). Vale frisar que a Casa das Minas talvez seja “o único lugar fora da África em que são cultuados voduns da
família real de Abomey” (Ferretti, 2009 [1985], p. 20).

[92]
Vejamos passagem em que há referência direta ao herói da Abolição recuperado pelos movimentos sociais negros: “Ao
desmascaramento na ordem moral, correspondiam a laboriosa reconstrução do papel histórico desempenhado pelo ‘negro’ no
passado da sociedade brasileira e a exigência de verdadeiro respeito mútuo nas relações raciais. Assim, datas como o 28 de
Setembro e o 13 de Maio adquiriram nova significação; pessoas como Patrocínio, Luís Gama [sic], Rebouças, e tantos outros,
receberam um autêntico preito engrandecedor; e os fundamentos axiológicos da ordem social competitiva e democrática
sofreram uma reinterpretação realmente íntegra e puritana” (Fernandes, 2008b [1964], p. 127; grifos nossos). É no mesmo flanco
simbólico dessa luta que Ana Maria Gonçalves almeja posicionar-se.

[93]
E, nesse ponto, é central o contato constante com os escravos mulçumanos (Gonçalves, 2015 (2006), p. 455-568), cuja crença
em Meca e a leitura sagrada do Alcorão são trazidas do continente africano. Isso porque seu letramento é outro ponto de partida
para a composição na sociedade brasileira.

[94]O êxito comercial começa com uma banca móvel de cookies – receita aprendida na casa britânica em que trabalhara –, e
avança, ainda em São Salvador, para uma padaria; ao final, a grande senhora, estabelecida em Lagos, envia os filhos mais jovens
para estudar em Paris (Gonçalves, 2015 [2006], p. 914-916). Sendo em tudo pioneira, a personagem tentará a última volta ao
Brasil: país de sua afirmação como sujeito da história, mas também de sua maior derrota.

[95]
Conferir, por exemplo, as pesquisas pioneiras de Octávio Ianni (As metamorfoses do escravo) e Fernando Henrique Cardoso
(Capitalismo e escravidão no Brasil meridional).

[96]
Um curioso mea culpa, acionado em determinado momento da tese de Florestan Fernandes, recupera a importância dos
“traços culturais transplantados” para a adaptação das populações afro-brasileiras, mas é, a nosso ver, de todo insuficiente quando
contraposto à orientação geral do estudo: “[N]ão ignoramos a influência dinâmica de traços culturais transplantados da África e
reelaborados no Brasil, embora isso possa parecer pouco evidente na apresentação dos resultados de nossa investigação.
Julgamos que M. J. Herskovits tinha razão quando ressaltava a conotação etnocêntrica das reconstruções ou das explicações que
negam o ‘passado histórico do negro’ e sua importância nos processos adaptativos ou integrativos ocorridos nas Américas. [...]
[A]s questões suscitadas pela plasticidade do comportamento humano diante de condições anômicas de existência podem ser
focalizadas na literatura etnossociológica brasileira [...], que nos mostra como um povo tribal enfrenta os efeitos da
desorganização permanente do sistema sociocultural” (Fernandes, 2008a [1964], p. 425-426).

[97]
Muito comum e de efeitos devastadores para a imagem e autoimagem do povo negro no Brasil, tal linha de entendimento
fatalista, que pode, como no caso da tese de Fernandes, ser balanceada pelo destaque concomitante do poder negro de agência,
sedimenta-se também de maneira extremada e não apenas em registro científico/sociológico, mas igualmente em elaborações
artísticas e literárias. Na literatura de autoria negra, por exemplo, obra de maior destaque nas últimas décadas, o romance Cidade
de Deus, de Paulo Lins, erige figuração estritamente marginal e pré-política da população negra carioca. Uma comparação entre
os livros de Lins e Gonçalves é, nesse sentido, programa crítico de extrema produtividade, que infelizmente deixamos apenas
indicado nesta ocasião.

[98]E podemos indicar como exemplo a narração da experiência da viagem no navio negreiro, segundo trecho que destacamos no
início da análise.

[99]Em oposição ao “regramento” de tipo literário – “stilus primus, doctrina ultimus” –, que tende a indicar a insuficiência do
discurso científico na representação da realidade (Waizbort, 2006 [2000], p. 61). Nesse jogo diferenciador entre campos de
produção cultural, são relevantes as restrições que – em período heroico de fundação (melhor seria dizer, autonomização) da
disciplina sociológica no Brasil – Florestan Fernandes nutria relativamente à forma ensaística empregada por intérpretes da
geração anterior, como, por exemplo, Gilberto Freyre. O sociólogo ligava tal gênero de exposição, no que tinha de fronteiriço
com a forma literária, a “uma concepção estamental do mundo”, pouco afeita aos rigores da nova disciplina, bem como ao modo
radical de seu exercício, que pressuporia uma “democratização da cultura” (Fernandes, 1976 [1962], p. 226, 230).

[100] Sobre o ponto, ver Eduardo de Assis Duarte (2009), em que o crítico define a obra de Gonçalves como “metaficção
historiográfica”. Tal avaliação crítica problematiza o enquadramento do livro como “romance histórico”. Infelizmente, não
poderemos desenvolver a questão nesta oportunidade, restando-nos indicar a ponderada leitura de Fabiana Carneiro da Silva
(2017, p. 57-71), que reconstitui o conceito desse subgênero à luz de Um defeito de cor.

[101] Na importância medular que tem para a cultura afro-brasileira (Ferretti, 2009 [1985], p. 41).

[102]Doutora em Letraspela PUC Minas. Professora vinculada à Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Contato|:
karinacalado@gmail.com

[103]
A noção de testemunho, aqui pensada, tem um sentido amplo, e vai ao encontro do que Seligmann-Silva (2009) caracteriza
como “teor testemunhal” da literatura, uma marca inerente à obra literária, conforme se evidencia na leitura de Grande Sertão:
Veredas feita pelo teórico: “a partir de seus traços testemunhais e confessionais”. Para tanto, o crítico defende que o testemunho
não seja visto como um gênero tradicional, mas que o conceito seja repensado: “trata-se também de ver este romance como uma
performance da memória e do ato de recordação” (Seligmann-Silva, 2009, p. 132).

[104]
Seligmann-Silva entende que a palavra testemunha pode apresentar duas noções, oriundas de diferenças etimológicas:
“Verificamos a diferença entre superstes e testis. Etimologicamente testis é aquele que assiste como um ‘terceiro’ (terstis) a um
caso em que dois personagens estão envolvidos. […] Mas superstes descreve a ‘testemunha’ seja como aquele ‘que subsiste além
de’, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no fato’, que está aí presente” (Benveniste
apud Seligmann-Silva, 2010, p. 4).

[105]Essa cena se inspira em uma construção semelhante, no romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, que
consta, inclusive, da bibliografia apresentada pela autora, no final do livro.

[106]
Doutora em Literatura. Professora da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Contato:
anamari1020@yahoo.com.br

[107]
A ficção de Ana Maria Gonçalves é embasada na história dessa heroína africana que viveu no Brasil no século XIX, e que
provavelmente é mãe de Luís Gama, importante líder negro da história do Brasil. No romance Um defeito de cor, Luísa Mahin
aparece primeiro representada como Kehinde, seu nome africano de batismo e depois como Luísa Gama, nome dado à Kehinde
pelo fazendeiro que a comprou no mercado de negros. O sobrenome Mahin é originado pela sua etnia africana, a tribo Mahi, da
nação africana Nagô.

[108]
Descontentes com a atuação de D. Pedro I, os brasileiros manifestaram sua insatisfação no dia 13 de Março de 1831, quando
destruíram com um ataque de pedras e garrafas, a festa de boas-vindas organizada pelos portugueses para receber o imperador
que retornava de Minas Gerais. O conflito se prolongou nos dias seguintes, tendo D. Pedro feito várias tentativas para contê-lo,
mas todas sem sucesso. A situação resultou na abdicação de D. Pedro I em favor do filho que tinha apenas cinco anos de idade, d.
Pedro de Alcântara, fato que aconteceu no dia 7 de abril de 1831.

[109]
Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília. Contato: maricruzdeoliveira@gmail.com

[110]
Catharine Walsh é professora na Universidad Andina Simón Bolívar, coordena o doutorado em Estudos Culturais e o
Departamento de Estudos afro-andinos e é coeditora (com Walter Mignolo) da série editorial “On Decoloniality”, Duke
University Press.

[111]Trecho original: “la etnoeducación es una fuerza de voluntad, entendida como práctica que ayuda a enfrentar los legados
coloniales, la exclusión y subalternización que siguen orientando al sistema educativo nacional” (Walsh, 2009, p. 131).

[112]Trecho original: “sujetos capaces de buscar el conocimiento no sólo en los textos escritos sino también en la memoria
colectiva de las comunidades y en las enseñanzas de los ancianos” (Walsh, 2009. p. 131).

[113]De acordo com a tradutora do texto, Juliana de Castro Galvão, “o termo outsider within não tem uma correspondência
inquestionável em português, por isso optamos por manter o termo original. Possíveis traduções do termo poderiam ser
‘forasteiras de dentro’, ‘estrangeiras de dentro’” (Collins, 2016, p. 99).

[114]Trecho original: “Living as we did-on the edge-we developed a particular way of seeing reality. We looked both from the
outside in and and from the inside out” (Hooks, 1984, p. vii).

[115]Trecho original: “Etnoeducar es tener mucho valor, valor para enseñar sobre lo que por muchos años se nos enseñó que no
tenía valor... Los conocimientos que nos habían dicho que no eran conocimientos... La lucha es volver esta forma de
conocimiento, de esta manera de entender la vida, de entender nuestros propios saberes como también insertar en los procesos
educativos nuestra visión de la historia y nuestra visión de conocimiento” (Walsh, 2004, p. 342).

[116] Doutora em Literatura comparada pela UFMG. Professora do CEFET – MG, campus IX. Contato:
crisfelipecortes@gmail.com

[117]A partir daqui, em todas as citações relacionadas com a obra Um defeito de cor, serão identificadas apenas os números das
páginas referentes aos trechos selecionados para comporem esta dissertação.

[118]Termo entendido, a partir do conceito de história de Walter Benjamin, como a narrativa que propõe uma revisão do passado
a fim de evidenciar as vozes silenciadas pela historiografia oficial.

[119]Essa concepção de nós que usamos está relacionada àquilo que o antropólogo Sérgio Costa (2006), em sua explanação sobre
os binarismos do pensamento pós-colonial, afirma sobre os territórios com passado colonial, em que há uma barreira cultural
definidora de um “nós” e um “eles” que reproduz um local em que este é superior àquele, geralmente visto de forma caricatural
ou estereotipada.

[120]
Professora do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas (DLEM) da Universidade Federal da Paraíba. Contato:
danielle@ccae.ufpb.br

[121]
Disponível em: http://juventude.gov.br/articles/participatorio/ 0010/1092/Mapa_do_Encarceramento_-
_Os_jovens_do_brasil. pdf. Acesso em: 10 jun. 2017.

[122]
Disponível em: http://www.sentencingproject.org/publication s/color-of-justice-racial-and-ethnic-disparity-in-state-prisons.
Acesso em: 11 jun. 2017.

[123]
Dados do FBI citados no relatório elaborado por Erika Harrell (2007), Black victims of violent crime, divulgado pelo
Departamento de Justiça norte-americano. Disponível em https://www.bjs.gov/content/pub/pdf/bvvc.pdf. Acesso em: 10 jun.
2017.

[124] Dados disponíveis na página eletrônica do United States Census Bureau em:
https://www.census.gov/quickfacts/table/RHI22521 5/00. Acesso em: 10 jun. 2017.

[125] A autora, contudo, faz referência à diferenciação das medidas de espaço alocadas para homens, mulheres e crianças no
navio. Apesar de concordar com a maior parte dos argumentos de Spillers (2000), Patton (1999) argumenta que o processo deve
ter envolvido a perda do gênero, mas não do sexo (ungendered, but not unsexed), uma vez que as escravizadas eram valorizadas
por suas capacidades reprodutivas. Além disso, defende que esse processo de “perda de gênero” pode ter ocorrido no ponto de
vista das classes dominantes, mas não do ponto de vista dos descendentes de africanos. Mesmo sendo consideradas
“reprodutoras” pelos senhores, estas mulheres assumiram o papel de mãe, responsáveis pela proteção de seus filhos e também
preocupadas com sua comunidade.
[126]Não se discute aqui se, na verdade, tratava-se de uma configuração matrifocal ou matrilinear. O fato é que a força e a
importância da mulher negra nas famílias afro-americanas foram postas em causa pelo relatório. Concordo com Spillers (2000)
que aponta que o termo matriarcado aqui não poderia ser aplicado, uma vez que, durante a escravidão, os filhos não pertenciam
nem ao pai nem à mãe. A ideia de um matriarcado afro-americano, como evidencia a autora, é anterior à publicação do relatório.
A crença em uma independência e autonomia feminina negra fez-se fortemente presente, de acordo com Spillers (2000), em
obras como Negro family in the United States, de Franklin Frazier (1939).

[127] O termo também se aplicaria aos ameríndios (Gonzalez, 1988).

[128]
Tradução livre do seguinte trecho: “[i]nvolvement with these African diasporic religions therefore provides alternative
models of womanhood that differ substantially from those found in dominant Western patriarchal culture, namely, that of virgin,
asexual wife/mother, and whore. Within traditional Yoruba religion and their syncretized variations found in the Western
Hemisphere, we find images of the sexual woman, who enjoys her body without any sense of shame; the mother who nurtures her
children without sacrificing herself; the warrior woman who actively resists demands that she conform to one-dimensional
stereotypes of womanhood” (Valdés, 2014, p. 2).

[129] Baba Ogumfiditimi, Nega Florinda e Agontimé, seriam exemplos destes guias espirituais.

[130]
Outro símbolo de conexão mística e religiosa em Um defeito de cor é a figura da serpente.

[131]
Para uma análise comparativa entre Ana Maria Gonçalves e Toni Morrison, ver a tese Silva, Danielle de Luna e (2017).
Maternagens na diáspora Amefricana: resistência e liminaridade em Amada, Compaixão e Um defeito de cor. Tese (Doutorado
em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (PPGL-UFPB), João Pessoa.

[132]
Tradução livre do seguinte trecho: “denominate and grapple with experiences associated with a special category of children.
These children are part-human and part-spirit beings. They are also believed to go through a pattern of repeated births, deaths and
rebirths to and through the same mother. An aspect of Igbo and Yoruba material existence, metaphysics, and mythic
consciousness, the Ogbanje and abiku are assumed to engage in this scheme of transitory and transitive returns with sinister
motives, including torturing the mothers into believing that she has conceived “normal” children who have come to stay in the
human world” (Okonkwo, 2008, p. xiv).

[133]
Tradução livre do seguinte trecho: “Because traditional religions permeate all the departments of life, there is no formal
distinction between the sacred and the secular, between the religious and non-religious, between the spiritual and the material
areas of life. Wherever the African is, there is his religion” (Mbiti, 1990, p. 2).

[134]
O próprio autor comenta que sua apresentação da percepção do tempo pelos africanos tem sido alvo de vários
questionamentos.

[135]Tradução livre do fragmento “time is simply a composition of event which have occurred, those which are taking place now
and those which are inevitably or immediately to occur. […] time is a two-dimensional phenomenon, with a long past, a present,
and virtually no future” (Mbiti, 1990, p. 16, grifo do autor).

[136]
Tradução livre da passagem: “Ogbanjes” are therefore part human and spirit beings whose lives are confounded by the
added loyalty which they owe to spirit deities. A ‘normal' individual is born owing his loyalty to his “chi”. But and “ogbanje’s”
life is complicated by being mixed up with the demands of paranormal deities. The most notable of these demands is that the
“ogbanje” will not be allowed to enjoy a full life cycle” (1986, p. 27).

[137]
O compartilhamento da responsabilidade pela criação dos filhos que é compartilhada com familiares ou pessoas próximas.

[138] Ditado iorubá (Gonçalves, 2009, p. 204).

[139]
Tradução livre do original: “[e]ven today the presence of Yoruba-speaking groups in Bahia explains many of its cultural and
religious traits. During the first three decades of the nineteenth century, most of the 7,000 Africans who arrived each year in
Bahia were Yoruba-speaking individuals from the Bight of Benin” (Araujo, 2010, p. 4).

[140]
Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Contato: maringolocatia@gmail.com
[141]O vídeo pode ser encontrado no link: https://www.ted.com/ talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?
language=en

[142]
Rememberings, aqui traduzido como rememorações é um termo, um conceito presente no romance Beloved, de Toni
Morrison publicado em 1987. A personagem protagonista Seth fala que determinados acontecimentos, eventos do passado
permanecem mesmo com o passar do tempo. Compreendemos o termo como uma metáfora para a escravatura, que apesar de ter
sido extinta enquanto sistema organizacional, administrativo e econômico, suas marcas, efeitos, consequências, de certo modo,
ideologias permanecem.

[143]
Whether actually writing or only orally relating their lives, slave narrators drew on multiple discourses as a way of
cultivating such complex identities that lay ambiguously within and without contemporary norms (Gould, 2007, p. 12).

[144] as residually oral, modern narratives of escape from bondage to freedom (Bell, 1987, p. 289).

[145]illustrate the centrality of the history and the memory of slavery to our individual, racial, gender, cultural, and national
identities” (Smith, 2007, p. 168).

[146]“How does one become a racist, a sexist? Since no one is born a racist and there is no fetal predisposition to sexism, one
learns Othering not by lecture or instruction but by example” (Morrison, 2017, p. 6).

[147]Trecho de entrevista concedida por Ana Maria Gonçalves intitulada: Ana Maria Gonçalves: “Nossas vozes e nossas ideias
são pó de ouro”. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ home/ana-maria-goncalves-entrevista/. Acesso em: 21 mar. 2019.

[148] Sobre as pesquisas vide: http://iberical.paris-sorbonne.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf;


http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9077; https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-
o-autor-brasileiro/.

[149]
Foreshadow é uma estratégia literária onde o narrador dá dicas sobre o que irá acontecer depois.

[150] Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Contato:
gabrielagaiaa@gmail.com

[151] Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Contato: sosoccl@gmail.com

[152]
Em 2015, Gabriela Leandro Pereira defendeu a tese “Corpo, discurso e território: cidade em disputa nas dobras da narrativa
de Carolina Maria de Jesus” (PPGAU/FAUFBA, 2015), na qual a cidade, enquanto problematização, emerge, tendo como guia a
obra da escritora Carolina Maria de Jesus.

[153]
Em aula sobre “Adaptação literária e a linguagem audiovisual”, Ana Maria explica o seu processo de criação da
personagem. A masterclass fez parte do I Seminário do Audiovisual Negro, em dezembro de 2016 na sede do Itaú Cultural, em
São Paulo-SP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lgmo9q1Yc 2E&t=2268s

[154]
Peça: os africanos trazidos eram chamados de peças, considerados objetos, “não eram necessariamente humanos, mas uma
peça de utilidade seja no trabalho ou de outra forma” (França, 2012, p. 10).

[155]
Como é sabido, as pessoas escravizadas eram batizadas quando chegavam ao Brasil. Segundo afirma Antônio Risério (2004)
em “Uma história da cidade da Bahia”, os europeus impunham seus valores, crenças e práticas, das quais o batismo e o
catolicismo fazem parte.

[156]
Ibêjis: “assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás” (Gonçalves, 2006, p. 19).

[157]
Muçurumins: muçulmanos

[158]
Para visualizar o mapa/vídeo completo, é necessário acessar o link:
https://drive.google.com/file/d/1f_awExPwTb77tHpLcByG FercFaOBkxyV/view?usp=sharing
[159]Nega Florinda: Nega Florinda, também era jeje, capturada em Andra. Já era liberta, e foi capturada 60 anos antes de
Kehinde, sendo liberta 30 anos depois de chegar ao Brasil. Conhecia sobre voduns e sobre os orixás. Explicou a Kehinde como
deveria ser o culto aos seus orixás na casa, deu a ela as imagens seus orixás guardiões. Não era muito querida pela Sinhá Ana
Felipa.

[160]Abiku: “criança nascida para morrer” (Gonçalves, 2006, p. 19). Essas crianças normalmente morriam até os 7 anos, por isso,
era necessário fazer trabalhos e ter atenção com elas até que atinjam a idade que não corressem mais perigo.

[161]
Loja: “As “lojas” eram os espaços situados em térreos e subsolos das edificações plurifamiliares, como também designavam
espaços de moradia nos porões das casas tipologicamente conhecidas como “de porão alto” (Costa, 1991, p. 29)

[162] Para visualizar os dois mapas completos é necessário acessar o link


https://drive.google.com/file/d/1QmNBkpU3Y5S945lML8ayaDC2UqcIkvm1/view?usp=sharing

[163] Professora Adjunta na Universidade de Brasília. E-mail: lulannoy@gmail.com

[164]
Trecho vertido ao espanhol: “saímos andando pela praia, na direção oposta ao baleeiro e depois de uns quinze minutos de
andar rápido (...) avistamos um barco” (p. 126).

[165]
“Para sempre ficou gravada na minha memória a São Salvador daquele dia” (p. 127).

[166]
“Anos depois, em África, a tantos quilômetros e a tanto tempo de distância, era naquelas impressões e sensações que eu
pensava ao me lembrar da Bahia ou mesmo do Brasil. Lembro-me ainda hoje dos nomes das praças e das ruas que percorri por
anos e anos, e por onde muitas vezes refiz o caminho daquele dia” (p. 127).

[167] “Quando o barco contornou o Forte de São Marcelo” (p. 127). (Figura 2).

[168]
“Algumas construções, as mais altas, com três, quatro e até mais andares, e muitos templos e palacetes (...) pareciam flutuar”
(p. 127).

[169]
“Ao desembarcarmos, fizemos um caminho (...) do ancoradouro até a rua principal da cidade baixa, mas que naquele dia
parecia diferente por estar quase vazio” (p. 127): “até mesmo o Arsenal (...), naquela manhã estaria deserto. Nem mesmo a
fedentina..” (p. 128).

[170]
“Os nomes dos lugares eu vim a saber depois” (p. 128).

[171]
“Mas naquele dia caminhamos até uma construção onde funcionava um hospício, onde dobramos, bem na quina com a
Ladeira da Preguiça, que subia, íngreme, até metade da montanha” (p. 128).

[172] DÓREA, Luiz Eduardo. Os nomes das ruas contam histórias. Salvador: Câmara Municipal do Salvador, 1999.
[173]
“Calados para poupar o fôlego, inclinávamos o corpo para a frente e caminhávamos, seguindo as construções e os muros da
torta Rua Direita da Preguiça” (p. 128).

[174]
“As construções pequenas, quase sempre grudadas umas nas outras, sendo que as grandes separadas por imensos jardins” (p.
129).

[175]
“A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos que teria sido construída por uma irmandade de pretos banto” (p.
130).

[176]
“Ao irem em direção à Freguesia da Barra, por ruas de terra, subiam e desciam morros, passavam por áreas despovoadas e
charcos imundos, fedorentos para seguir por ruas com casas de ambos os lados, passam por fortes, igrejas, conventos, edifícios
imponentes ao lado de casinhas simples. A cidade parece acabar, mas ressurge com ares e jeitos diferentes” (p. 244).

[177]
Propomos uma segunda visão da “Modernidade”, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinação
fundamental do mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) “centro” da História Mundial.
Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início da operação do “Sistema-mundo”. Antes
dessa data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que
atinge o extremo oriente no século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar” de “uma
só” História Mundial. Disponível em: http://biblioteca.clacso. edu.ar/gsdl/collect/clacso/index/assoc/D1200.dir/5_Dussel.pdf.
Acesso em: 29 mar 2019.

[178]
Pós-doutoranda em Letras (USP); Doutora e mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa –
Universidade de São Paulo. Autora de Silêncios prescritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras. Ed. Malê, 2019.

[179] Utilizo aqui a 10ª edição do romance, de 2014.

[180] Nascida de mãe negra e pai branco, sou daqueles seres cujo corpo e mestiçagem foram e continuam sendo usados para
defender o que não se sustenta: a inexistência de racismo. Racismo que está na própria raiz da minha existência ao ter sido
inventado para justificar o envio de corpos negros como força motriz na construção do Mundo Novo. Tive então, como mestiça, o
privilégio de não ter que me pensar negra, de não ter que me pensar como fruto de um projeto de dominação até bastante tarde na
vida, quando o livro já começava a fazer parte dela. Foi o meu mapa. Foi o meu guia por entre as ruínas internas de onde
brotavam vozes, histórias, segredos, lamentos, risos, resquícios de outros mapas cujas línguas e símbolos fui aprendendo a
interpretar (Gonçalves, 2017, p. 3).

[181]
Em nós, até a cor é um defeito. / Um imperdoável mal de nascença, / o estigma de um crime. / Mas nossos críticos se
esquecem / que essa cor, é a origem da riqueza / de milhares de ladrões que nos / insultam; que essa cor convencional / da
escravidão tão semelhante / à da terra, abriga sob sua superfície / escura, vulcões, onde arde / o fogo sagrado da liberdade (Gama,
1859).

[182]Adondozan governou o Abomey entre 1797 e 1818, quando foi deposto por um golpe de estado. Quando era rei, vendeu
como escrava Ná Agontimé, que era viúva do rei Agonglo e mãe do rei Ghezo. Conta-se que seu filho teria enviado algumas
missões ao Brasil na tentativa de reencontrar a mãe, sem sucesso. Ná Agontimé costuma ser apontada como fundadora da Casa
das Minas, no Maranhão (Ferreti, 1996, p. 102).

[183]Afropolitanismo é conceito cunhado inicialmente pela escritora britânica de origem ganesa Taiye Selasi, e faz referência a
uma cultura negra pós-moderna, derivada tanto dos processos migratórios que atingiram as populações negras em função da
colonialidade; quanto da própria imbricação de culturas de base africana com as realidades europeias. A identidade afrodita
entende que há um Outro além daquilo que se entende como “pessoa negra”, sintonizando às novas demandas tanto da identidade
nacional quanto da identidade mais específica em termos raciais. A palavra aponta ainda para uma concepção de África diversa
do vínculo geográfico e pautada na ideia de que a África é um capital simbólico supra e transnacional, assim como a identidade
negra (afrodita) (Selasi, 2005). Para Achille Mbembe, “O afropolitanismo não é o mesmo que o pan-africanismo ou a Negritude.
O afropolitanismo é uma estilística, uma estética e uma certa poética do mundo. É uma maneira de ser no mundo que recusa, por
princípio, toda forma de identidade vitimizadora, o que não significa que ela não tenha consciência das injustiças e da violência
que a lei do mundo infringiu a esse continente e a seus habitantes. É igualmente uma tomada de posição política e cultural em
relação à nação, à raça e à questão da diferença em geral. Na medida em que nossos Estados são invenções (além do mais,
recentes), eles não têm, estritamente falado, nada em sua essência que nos obrigaria a lhes render um culto – o que não significa
que nós sejamos indiferentes ao seu destino” (Mbembe, 2015, p. 70-71).

[184]
Mestranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Contato:
oluwaseyi@usp.br

[185]
Na definição apresentada por Patrícia Carvalhinhos e Alessandra Antunes, no artigo “Princípios teóricos de toponímia e
antroponímia: a questão do nome próprio”, “ esvaziamento semântico é um fenômeno inerente à maioria das palavras, dada a
própria dicotomia que assegura a evolução da linguagem, conservadorismo/mudança, binômio que expressa os fatores estáticos e
dinâmicos da linguagem, assegurando a comunicação entre os seres humanos” (Carvalhinhos; Antunes, 2007, p. 115).

[186]
Do total desses sete mitos sobre as divindades gêmeas, em dois, há a morte de um dos irmãos; em outro, há a morte de
ambos e num último, eles juntos enganam Icu, a Morte.

[187]Na tradução apresentada por Pierre Verger, no artigo “A sociedade Egbe Òrun dos Àbíkú, as crianças nascem para morrer
várias vezes”, o nome Kokumo significa apenas “não morra mais”.

[188]Na tradução apresentada por Pierre Verger, no artigo “A sociedade Egbe Òrun dos Àbíkú, as crianças nascem para morrer
várias vezes”, o nome Dúrójaiyé significa apenas “fica para gozar a vida”.

[189]
Na tradução apresentada por Pierre Verger, no artigo “A sociedade Egbe Òrun dos Àbíkú, as crianças nascem para morrer
várias vezes”, o nome Bánjókó significa apenas “senta-se comigo”.

[190] No genérico dado às divindades da região de Daomé, atual Benin.

[191] Jogo divinatório realizado por sacerdotes de Ifá.

[192]
Antes do batismo cristão, Kehinde providenciou uma cerimônia de nome ao filho, já que somente esse ritual poderia ter
alguma eficácia contra a condição de abiku.

[193]Nas páginas anteriores da mesma obra, há a definição do termo em nota de rodapé: “Lançados ou tangomaus: homens que se
embrenhavam África adentro para capturar ou enganar os futuros escravos, a maioria era de estrangeiros, mas também havia
africanos entre eles, muitos dos quais eram ex-escravos” (Gonçalves, 2018, p. 39)

[194]O personagem Benevides, brevemente apresentado, não chegou a usar seu nome cristão porque, logo em seguida ao trecho
transcrito, enforcou-se no porão do navio negreiro, durante a noite.

[195] Todas as cerimônias de nomes dos netos de Kehinde parecem ocorrer por insistência desta.

[196]
Doutora em Literatura Brasileira pela UFMG. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas
Gerais. Contato: alinearruda10@bol.com.br

[197]
Entendemos como “estória romanesca”, o correspondente a romance em inglês. A diferença, portanto, entre “estória
romanesca” e “romance” é a mesma de romance e novel, em inglês. O que os difere, está, principalmente, segundo Chase (apud
Frye, 1957), na maneira como veem a realidade. O romance ou novel aborda a realidade mais próxima do cotidiano, enquanto a
estória romanesca ou romance segue a tradição medieval e nos retrata um enredo menos detalhado. Segundo Frye (1957), “a
estória romanesca é, de todas as formas literárias, a mais próxima do sonho que realiza o desejo, e por essa razão desempenha,
socialmente, um papel curiosamente paradoxal” (p. 185).

[198]Doutora em Estudios Americanos – Pensamiento y Cultura. Professora da Universidad de Playa Ancha, Chile. Contato:
daiana.nascimento@upla.cl.

[199]
Doutor em Antropologia Social. Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Contato: fagundes@uesc.br.

[200]
Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Bolsista PNPD-
CAPES pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Contato: pauloroberto3031@uol.com.br

[201]
Conferir nossas discussões prévias sobre o assunto: NASCIMENTO DOS SANTOS, Daiana. História e Memória no
romance Um defeito de cor. Izquierdas, v. 31, p. 162-171, diciembre 2016. Em alguns momentos da discussão, retomaremos
alguns argumentos do referido artigo.

[202]
O quadro estrutural da obra está composto por vários subcapítulos articulados por um tom memorial.

[203] Conferir: Brasil: uma biografia (2015) das historiadoras Lilia M. Schwarchz e Heloisa M. Starling.

[204]
Hilária Batista de Almeida.

[205]
O surgimento do samba decorre de uma série de fenômenos socioculturais que aconteceram entre as décadas finais do século
XIX e o início do século XX e se deu dentro de um processo que envolve a fusão de diversos elementos musicais ao ritmo dos
cantos e das danças de origem africana, inclusive os de caráter religioso. Por equívoco, existe quem entenda que Pelo telefone,
música registrada na Biblioteca Nacional no final de 1916 como um “samba carnavalesco”, a mesma inscrição impressa no selo
do disco do início de 1917, foi o primeiro samba gravado. Renato Vivácqua (2016) lista vários casos de registros fonográficos
anteriores com a denominação de samba, inclusive o de ‘“Um samba na Penha’, cantado por Pepa Delgado, gravado pela Casa
Edison”, em torno do qual “persiste a dúvida, se a peça é de 1904, porque a gravação só foi feita em 1909”. Ao mesmo temo, há
controvérsias envolvendo a autoria de Pelo telefone, por exemplo, Jairo Severiano (2008) cita como fonte Edigar de Alencar para
afirmar que “uma roda de batuqueiros (...) criou, em noites sucessivas, uma composição chamada ‘O roceiro’, que Donga
(Ernesto Joaquim Maria dos Santos), registrou com o título de ‘Pelo telefone’”. Entre os “batuqueiros” estavam Tia Ciata (Hilária
Batista de Almeida), Hilário Jovino (Hilário Jovino Ferreira), Sinhô (José Barbosa da Silva) e Donga, fato sugerido por Vivácqua
ao mencionar uma paródia da letra que faz alusão a tal circunstância. É importante ressaltar, ainda, que o nome do jornalista
Mauro de Almeida como coautor não aparece na partitura original.

Um marco fonográfico é Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, o primeiro samba gravado se for considerado o registro
da partitura junto à Biblioteca Nacional, no qual consta a inscrição “samba carnavalesco”, a mesma identificação que aparece no
selo do disco prensado posteriormente. A primazia é contestável diante da existência comprovada de músicas com fixação
fonográfica anterior a 1917 sob a etiquetada de samba, como demonstra Renato Vivácqua (2016) em artigo no qual lista vários
casos, inclusive o de ‘“Um samba na Penha’, cantado por Pepa Delgado, lançado pela Casa Edison”, em torno do qual “persiste a
dúvida, se a peça é de 1904, porque a gravação só foi feita em 1909”. Sobram controvérsias envolvendo a autoria da composição,
por exemplo, Jairo Severiano (2008) cita como fonte Edigar de Alencar para afirmar que no final de 1916, Donga (Ernesto
Joaquim Maria dos Santos) registrou junto à Biblioteca Nacional a partitura de Pelo telefone, como um “samba carnavalesco”,
rotulação que a música também e recebeu quando gravada fonograficamente no início do ano seguinte. Em torno dessa música
existem algumas polêmicas, a começar pela autoria que, segundo pesquisadores é coletiva, teria a participação de Tia Ciata,
misturando trechos inéditos com outros de domínio público. Existe, porém, um coautor reconhecido, Mauro de Almeida, cujo
nome não consta na partitura original, conforme. Outra controvérsia diz respeito ao fato de alguns considerarem Pelo telefone a
primeira música gravada com o rótulo de samba, algo que não se comprova diante da constatação da existência de composições
gravadas nos anos anteriores sob esta denominação.

[206]
Embora não seja diretamente associada à resistência diante da escravidão, uma das mulheres reconhecidas pela participação
em acontecimentos históricos é Maria Felipa de Oliveira, que tomou parte na luta pela independência do Brasil. Por conta da
atuação no enfrentamento aos portugueses, na Bahia, seu nome foi inscrito no Livro dos heróis e heroínas da pátria, pela Lei 13
697, de 26 de julho de 2018. Além disso, é citada por Xavier Marques no romance histórico O sargento Pedro e a Ilha de
Itaparica, de Ubaldo Osório, pai de João Ubaldo Ribeiro que, por sua vez, segundo alguns, a tomou como modelo para a
personagem Maria da Fé, de Viva o povo brasileiro.

[207]
Data definida pela Lei 12.987, de 2 de junho de 2014.

[208]
Em 1992, aconteceu o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingos, na República
Dominicana, de onde surgiu o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, reconhecido pela ONU no mesmo ano. O Dia da Mulher
Negra foi instituído no Brasil a partir desse fato.

[209]
A quantidade de comunidades quilombolas serve como indicação do quanto aconteceram insurreições de escravos:
“Levantamento da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mapeou 3.524 dessas comunidades. De acordo com
outras fontes, o número total de comunidades remanescentes de quilombos pode chegar a cinco mil”, segundo a Fundação
Cultural Palmares (http://www.palmares.gov.br/?p=3041) Acesso em: 18 abr. 2019.

[210]
No início do romance, a protagonista prefere ser chamada de Kehinde, entretanto, ao longo da trajetória, se decide por Luísa
Mahin ou Luisa Gama. Nesse trabalho, utilizar-se-á o nome de “Kehinde”.

[211]
Vários fatos da história do Brasil Colonial e Imperial são retomados no romance, no entanto, a Revolta dos Malês possui um
destaque especial na narrativa.

[212]Foi
uma insurreição de escravos de origem muçulmana, na sua grande maioria, ocorreu em Salvador na Bahia. Cabe salientar
que, durante muito tempo, esse fato foi “esquecido” pela historiografia brasileira. Essencialmente porque se sacralizou o mito da
ausência de sobreviventes, tal como foi feito com a Guerra de Canudos ocorrida no final do século XIX no interior da Bahia.
Provavelmente, outros fatos da história brasileira jazem nos “porões do esquecimento”.

[213]
Um dos termos usados naquela época para se referir aos muçulmanos.

[214]
Tem atuado como professor em várias universidades estrangeiras. Possui publicações em revistas e vários livros sobre o
tema. Em 2012, ganhou o prêmio Casa de las Américas pelo livro O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico
Negro (1822-1853). Além do mais, foi premiado em diversas instâncias no Brasil e no exterior.

[215]
Tradução da autora do artigo.

[216]Tradução
da autora do artigo.

[217]Um dos versos do Hino Nacional Brasileiro.

[218]
De resto, nós próprios já discutimos sobre as metáforas do Brasil, num estudo prévio mencionado na bibliografia do presente
trabalho.

[219]
Luisa Mahin é um ícone para o Movimento negro Brasileiro, principalmente para o setor feminista, como nos informa
Vasconcelos (p. 228).

[220]Não se pode ignorar que esses argumentos, ainda permeiam o imaginário social do Brasil, em especial em relação à
representação das mulheres negras e/o africano descendentes, enraizadas em construções carregadas por teor de ordem sexual ou
alimentícia. Não é objetivo desse trabalho, aprofundar-se nessa discussão. Para maiores informações, ver os trabalhos de Julio
José Chiavenato; Jurema Oliveira; Sueli Carneiro, entre outros.

[221]
Destaca-se o exemplo do romance Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro, uma apropriação satírica da
história oficial do Brasil.

[222] Cabe salientar que, não nos aprofundaremos nas discussões sobre os aludidos períodos literários, à vista disso, nos
referiremos apenas aos aspectos relacionados ao assunto do artigo.

[223]A menção a Casa Grande, aqui, não se refere apenas ao espaço de poder ligado ao período escravagista, assim como à sua
representação como instituição de poder na atualidade.

[224]
Veiculada pelo Diário de Pernambuco de 29 de novembro de 1981, página 9.

[225]
O Estatuto da Igualdade Racial, como é conhecido a Lei 12.288/2010, promove o ingresso de africano descendentes por
meio de cotas nas universidades, empregos públicos etc. Esta proposta pretende incentivar uma melhor mobilidade social, mas,
ao mesmo tempo, provocaram a inconformidade de grande parte dos setores tradicionais brasileiros que tentam boicotar de várias
formas estas vitórias. Sobre este assunto, ver o documentário Raça (2013) do cineasta brasileiro Joel Zito Araújo, que retrata o
complexo processo de votação da mencionada lei e de outras situações que envolvem a condição social do africano descendente
no Brasil.

[226]
Doutor em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
(CESJF). Contato: edimopereira@pucminas.cesjf.br

[227]
Termo definido por Massaud Moisés (2004, p. 412) como correspondente às narrativas épicas, em prosa, que circularam
entre os povos da Islândia e da Escandinávia, de formas oral e anônima, antes do século XII, e de forma escrita e geralmente
anônima, daí por diante. Mesclando fatos verídicos, folclóricos e imaginários, relatavam a história de reis, como Heinskringla, de
Snorri Sturluson, ou de famílias, como Laxdaela Saga, de autor desconhecido.

[228]
Expressão criada por Paul Guilroy em sua obra O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, na qual o teórico tenta
estabelecer um ponto de partida para a empreitada que consiste na discussão acerca da existência de uma unidade formal de
elementos culturais diversos na modernidade, e dá a esta unidade formal o nome de Atlântico Negro.

[229]
Sobre a vida de Antonio Olinto, nome como o autor assina seus romances, ver: LIRA, José Luís (2008). Brasileiro com alma
africana: Antonio Olinto. Rio de Janeiro: ICAO; ALBUQUERQUE, João Lins de (2009). Antonio Olinto: 90 anos de paixão.
Memórias póstumas de um imortal. São Paulo: Editora de Cultura; e AMORIM, Adelina Maria Alfenas (2007). O narrador-
intruso e os orikis em: A casa da água, de Antonio Olinto. Juiz de Fora: Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Dissertação
(Mestrado). Disponível em: web2.cesjf.br/node/ 3319. Acesso em: 24 set. 2012.

[230]
Ana Maria Gonçalves fala de sua trajetória de vida e da gênese do romance Um defeito de cor em entrevista ao jornalista
Renato Pompeu, intitulada Um defeito sem máculas. Disponível em: http://www.yumpu.com/pt/document/read/12802880/um-
defeito-sem-maculas-retrato-do-brasil. Acesso em: 12 set. 2019.

[231]
Sobre o tema, ver: GURAN, Milton (2000). Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; e OLINTO,
Antonio (1964). Brasileiros na África. Rio de Janeiro: Edições GRD.

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