Você está na página 1de 29

1

APOSTILA DE LITERATURA AFRO - FEMININA BRASILEIRA

Professora Cristina Prates

Maria Firmina dos Reis Carolina Maria de Jesus Conceição Evaristo

Ana Maria Gonçalves Esmeralda Ribeiro Miriam Alves

Lia Vieira Mel Duarte Jarid Arraes

2018/2
2

Dawn Duke organizou, em “A Escritora Afro-


Brasileira: ativismo e arte literária”, textos, análises
e entrevistas com seis autoras (Cristiane Sobral,
Mel Adún, Conceição Evaristo, Débora Almeida,
Esmeralda Ribeiro e MIriam Alves). Nessa
publicação, de 2016, procura-se explorar as ações
afirmativas, o feminismo, a afrodescendência, a
literatura africana e afro-americana, entre outros,
além de compartilhar um discurso centrado na
mulher. AUTORAS: Cristiane Sobral, Mel Adún,
Conceição Evaristo, Débora Almeida, Esmeralda
ribeiro e Miriam Alves ORGANIZADORA: Dawn
Duke ISBN: 978-85-8358-029-

Forma narrativa concisa, de revelar afetos e dramas


negros, tem se tornado um campo efervescente de
produção desta nossa literatura negro-brasileira,
além do formato atrair, também é preciso registrar
que a presença destas mulheres contistas aparece em
Olhos de azeviche na forma de antologia. Olhos de
azeviche: dez escritoras negras que estão
renovando a literatura brasileira, que a editora
Malê de forma sensível e comprometida, uma vez
mais, se debruça em torno dos 20 contos,
mergulhando no universo de 10 mulheres negras,
ativista, contistas e cronistas: Ana Paula Lisboa,
Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Cristiane
Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátma Trinchão, Geni
Guimarães, Lia Vieira, Mirian Alves e Taís Espírito
Santo. O desafio destas autoras negras, de diferentes
gerações é que a produção escrita, de sua auto-
representação, assim como suas leituras de mundo a
partir de suas singularidades de mulheres negras,
possam alcançar mais leitoras e leitores, através de
imagens positivas, ampliando sua efetiva participação,
nos circuitos literários, nos espaços escolares, e no imaginário
de seu público.
3

1. Traços do discurso literário feminino afro-brasileiro, segundo Zilá Bern1

1- A primeira característica da poética no feminino é rastrear os “guardados da memória”,


através dos traços, dos fragmentos deixados pela herança de suas antepassadas.

2- A segunda característica: a passagem de uma certa busca identitária, do tipo de raiz única,
pivotante, para uma abertura ao que se pode chamar de enraizamento dinâmico ou relacional,
ou seja, de uma procura das origens, que não negligenciará os rastros deixados pela palavra
materna, uma identidade que quer se construir no respeito à alteridade e no reconhecimento
da extraordinária diversidade da nação brasileira.

3- A terceira característica da poética feminina afro-brasileira seria o resgate da memória


transatlântica.

Em resumo:

Afirmação da identidade feminina e negra, através do resgate dos valores de suas linhagens,
ou seja, tentando recuperar as vozes e os saberes de suas mães, avós, bisavós e tataravós,
mergulhando lá onde memória e mito se entrelaçam e a imaginação os redescobre.

1
BERN, Zilá. “Apresentando a Antologia de poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no
Brasil”. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 21, n. 46, p. 261-274, maio/ago. 2012
4

2. Considerações sobre a Literatura feminina afro-brasileira

“Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade” Eduardo de Assis Duarte: 2

Enquanto personagem, a mulher afrodescendente integra o arquivo da literatura brasileira desde seus começos.
De Gregório de Matos Guerra a Jorge Amado e Guimarães Rosa, a personagem feminina oriunda da diáspora africana
no Brasil tem lugar garantido, em especial, no que toca à representação estereotipada que une sensualidade e
desrepressão. “Branca para casar, preta para trabalhar e a mulata para fornicar”: assim a doxa patriarcal herdada dos
tempos coloniais inscreve a figura da mulher presente no imaginário masculino brasileiro e a repassa à ficção e à
poesia de inúmeros autores. Expressa na condição de dito popular, a sentença ganha foros de veredicto e se recobre
daquela autoridade vinculada a um saber que parece provir diretamente da natureza das coisas e do mundo, nunca de
uma ordenação social e cultural traduzida em discurso.
Nessa ordem, a condição de corpo disponível vai marcar a figuração literária da mulata: animal erótico por
excelência, desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas, confinada ao império dos sentidos e às artimanhas e
trejeitos da sedução. Via de regra desgarrada da família, sem pai nem mãe, e destinada ao prazer isento de
compromissos, a mulata construída pela literatura brasileira tem sua configuração marcada pelo signo da mulier
fornicaria da tradição europeia, ser noturno e carnal, avatar da meretriz. Chama a atenção, em especial, o fato dessa
representação, tão centrada no corpo de pele escura esculpido em cada detalhe para o prazer carnal, deixar visível em
muitas de suas edições um sutil aleijão biológico: a infertilidade que, de modo sub-reptício, implica em abalar a
própria ideia de afrodescendência.

(...)

E o modelo se repete em inúmeras personagens de narrativas do século XX. Basta lembrar as mulatas assanhadas
de Jorge Amado, exaltadas, todavia, mais como sujeitos desejantes do que como objetos do desejo masculino.
Destaco dentre elas, Gabriela, Tereza Batista, Tieta do Agreste. Poderia citar ainda, Glória, Ana Mercedes e tantas
mais, dentre amantes lascivas, prostitutas ou mulheres em busca de realização amorosa e pessoal. De uma forma ou
de outra, carregam consigo os traços do estereótipo. A afrodescendência marca sua constituição enquanto
personagens, mas, também, seu caráter de figuras híbridas, nem brancas, nem negras. A apropriação de algumas
dessas personagens pela indústria cultural, seja no cinema, televisão, quadrinhos ou outras inserções midiáticas, se dá
no sentido de reforço da ideia do erotismo desfrutável. Nessa linha, a versão cinematográfica de Gabriela, cravo e
canela coloca a personagem no alto de um telhado, em trajes sensuais, com o propósito de “salvar” um gato que ali se
alojara. A cena não existe no romance e foi inserida no filme por razões puramente mercadológicas, voltadas para a
exibição do corpo de Sônia Braga.

2
DUARTE, Eduardo de Assis. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 17-A
(dez. 2009) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa
5

Literatura afro- feminina brasileira do século XXI: corpo, voz, poesia e resistência:
Amanda Crispim Ferreira e Luiz Carlos Ferreira de Melo Migliozzi 3

Pensar a escrita afro-feminina é pensar um movimento, em um ato de resistência. Acredita-se que teve seu
início em 1859, com a publicação do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Digo acredita-se, porque
não se pode negar que, provavelmente, outras mulheres negras escreveram antes de Firmina, mas não temos
notícia, visto que no século XIX, era, praticamente, impossível uma mulher poder escrever em um jornal ou
publicar um livro. Um exemplo claro dessa situação, é o próprio Úrsula, que foi lançado sob o pseudônimo de
“uma maranhense”. O romance aborda não só a questão feminina, mas também a negra, por fazer a forte
crítica ao patriarcado e também uma denúncia do tráfico negreiro. Assim, tal obra é um marco, que se
empenhou em “destronar a autoridade do falo-etno-euro-centrismo” (ZOLIN, 2009, p.329).

Úrsula inaugurou a presença da mulher negra na Literatura Brasileira/ afro-brasileira enquanto sujeito de sua
história, porém, enquanto objeto, ou seja, personagem, esta já visitava os espaços literários brasileiros desde o
Barroco, com Gregório de Matos. Neste momento, a representação da mulher, ou melhor, da mulher negra,
pelas lentes do poeta brasileiro, apresentava uma visão estereotipada (dócil, destituído de vontade, de voz e
como objeto manipulável) e zoomorfizada (bicho fera, besta domesticado), nunca humanizada.

Assim como Gregório de Matos, outros nomes da Literatura canônica brasileira reforçaram essa visão, como
José de Alencar, com suas “morenas ardentes” e “escravas dóceis e manipuláveis”, Aluísio de Azevedo, com
suas Ritas Bahianas e Bertolezas, Jorge Amado, com suas Gabrielas, Terezas Batistas, Tietas do Agreste, e
tantas outras mulatas assanhadas, objetos sexuais de homens brancos, escravas boas, negras estéreis ou como
disse Eduardo de Assis Duarte (2010) “mulheres marcadas” de nossa Literatura. As estereotipias culminam
com a publicação de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre em 1933, em que o autor reforça a ideia,
talvez inconscientemente, da mulata boa de cama, e apresenta-nos o mito da “democracia racial”, alegando
que a miscigenação em nosso país ocorreu de forma amigável entre negras e portugueses, com relações
consentidas por ambas as partes e não por meio da violência do estupro. Sobre a influência da obra de Freyre
na composição de tal mito e na realidade atual da mulher negra brasileira, citamos Nascimento (2006 ):

Transcorridos sessenta anos desde a publicação de Casa Grande e Senzala, de


Gilberto Freyre, o mito permanece atuante. Sua versão atualizada configura-se,
hoje, na mulata tipo exportação, novo produto brasileiro na praça; antes eram
exportados açúcar, ouro, café, etc, hoje se exportam corpos: o novo ciclo de
comercialização, a mais recente retificação da mulher de cor. (NASCIMENTO,
2006, p.49).

Assim, configurava-se e ainda configura o retrato da mulher negra em nossa Literatura. O objetivo da
literatura afro - feminina, portanto, é romper com todos esses estereótipos e propor novas histórias, novos
olhares, por meio de novas vozes.

3
Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491524538.pdf
6

“Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de


uma perspectiva de gênero”. Sueli Carneiro4

Sueli Carneiro, negra brasileira, também aborda essa questão em seu artigo “Enegrecer
o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma perspectiva
de gênero” (S/D), e ao refletir sobre a militância da mulher negra, propõe um feminismo
negro, pois percebe que a resistência da mulher negra se difere da mulher branca:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a


proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de
mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas
ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam
nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e
trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de
objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados.
Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas
tipo exportação.

4
Disponível em: http://www.unicap.br/neabi/?page_id=137
7

Conceição Evaristo: Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de


nascimento de minha escrita5

Mas digo sempre: creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a
infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam nossa casa e adjacências. Dos fatos
contados a meia-voz, dos relatos da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ouvir. Eu
fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia
palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor dependendo do enredo das histórias. De
olhos cerrados eu construía as faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo de escrever no
escuro. No corpo da noite. Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas
debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para outras as suas
mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir, entre nós, era
talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres,
mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeiro a dos patrões, depois a dos
homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam
um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoiá-los
depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto
sobre isto, não afirmo.

(...)

Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o
de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio
do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de
um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais
diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de
insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as
normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da
matéria narrada.
A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos.

5
Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-
dos.html
8

Conceição Evaristo: “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face”6

Sendo as mulheres negras invibilizadas, não só pelas páginas da história oficial brasileira,
mas também pela literatura, e quando se tornam objetos da segunda, na maioria das vezes,
surgem ficcionalizadas a partir de estereótipos vários, para as escritoras negras cabem vários
cuidados. Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco,
as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-
representação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido.
A escre (vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem
conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e
negra. Na escrita busca-se afirmar a duas faces da moeda num um único movimento, pois o
racismo como lucidamente observa Sueli Carneiro, (op.cit. 51) “determina a própria
hierarquia de gênero” em sociedades como as latino-americanas, multirraciais, pluriculturais
e racistas. Para pensar também racismo vinculado a outros modos de opressão, busco as
conclusões de Luiza Bairros (2000), quando a estudiosa afro-brasileira lendo as feministas
afro-americanas discorre sobre a teoria feminist standpoint (ponto de vista feminino)
defendida pelas feministas negras americanas.

(...)

Retomando a reflexão sobre o fazer literário das mulheres negras, pode-se dizer que os
textos femininos negros, para além de um sentido estético, buscam semantizar um outro
movimento, aquele que abriga toda as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito,
assim como se toma o lugar da vida.
Nesse sentido alguns textos tornam-se exemplares, como os de: Geni Guimarães, Esmeralda
Ribeiro, Miriam Alves, Lia Vieira, Celinha, Roseli Nascimento, Ana Cruz, Mãe Beata de
Iemanjá, dentre outras. Não se pode esquecer, jamais, o movimento executado pelas mãos
catadoras de papel, as de Carolina Maria de Jesus, que audaciosamente reciclando a miséria
de seu cotidiano, inventaram para si um desconcertante papel de escritora, que para muitos
veio macular uma pretensa e desejosa assepsia da literatura brasileira.
Essas escritoras buscam na história mal-contada pelas linhas oficiais, na literatura
mutiladora da cultura e de dos corpos negros, assim como em outros discursos sociais
elementos para comporem as suas escritas. Debruçam-se sobre as tradições afro-brasileiras,
relembram e bem relembram as histórias de dispersão que os mares contam, se postam
atentas diante da miséria e da riqueza que o cotidiano oferece, assim como escrevem às suas
dores e alegrias íntimas.

6
Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/search/label/proseando
9

ESCRITORAS AFRO-BRASILEIRAS

MARIA FIRMINA DOS REIS Maria Firmina dos Reis, que, em seu romance Úrsula, de
1859, faz surgir pela primeira vez em nossas letras a voz da
escrava e, junto com ela, o suplício do navio negreiro e a
memória do mundo de liberdade deixado do outro lado do
oceano. Através da personagem Mãe Suzana, a autora
inaugura não um novo paradigma, mas um modo
diferenciado da representação até então existente. Nele, a
autoria feminina e afro-identificada substitui o
protagonismo da mulata pelo da negra. Mãe Suzana é
negra e explica ao jovem escravo alforriado o verdadeiro
sentido da liberdade. Fala de sua vida em África, da
família, e da filha que teve de deixar para trás, enjaulada
que foi como “mercadoria humana” pelos traficantes
insensíveis aos seus apelos de mãe: “foi embalde que
supliquei em nome de minha filha que me restituíssem a
liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas e
olhavam-me sem compaixão” (Reis 2004: 116, grifo
nosso). E, como ela, outra mãe, a fugitiva Joana, do conto
“A escrava”, de 1887, enlouquecida depois de ver os filhos
menores serem vendidos pelo senhor. A obra de Firmina dá
início à desconstrução do estereótipo, substituindo o apelo
carnal da mulata pelo drama da escrava impedida de criar
seus filhos.

Eduardo de Assis Duarte

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: romance; “A escrava”: conto. 6


ed. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017a.

Com os ensaios:

DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina, mulher do seu tempo e


do seu país (cronologia). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula:
romance; “A escrava”: conto. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC
Minas, 2017a.

DUARTE, Eduardo de Assis. Úrsula e a desconstrução da razão


negra ocidental (Posfácio). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula:
romance; “A escrava”: conto. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC
Minas, 2017b.
10

Úrsula, Maria Firmina dos Reis

A experiência subjetiva de uma africana escravizada surge do nono capítulo de Úrsula,


no qual Susana conta, em discurso direto, sua vida na África, o cativeiro, e o trauma da
diáspora. Assim sendo, temos nesse livro a primeira narrativa, em primeira pessoa, do
que significou a travessia do Atlântico dentro do porão de um navio negreiro; bem como
o processo de transformação de sujeitos em "mercadoria humana"

Vou contar-te o meu cativeiro.


Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o mendubim eram em abundância
nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folga-
res, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso
enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a
primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela
gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de
minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la...
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas,
me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me aguardava. E logo dois homens apare-
ceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira - era uma escrava! Foi embalde que
supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das
minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não
me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles
lugares, onde tudo me ficava - pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! meu Deus! o que se
passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e
infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é
mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para
caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de
revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos
potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má
e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento
e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não
lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar esse último extremo - davam-se à morte.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande
Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a
morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foram sufocadas nessa viagem pelo hor-
ror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti - é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva
com novos tormentos que aqui me aguardavam.
11

Carolina Maria de Jesus


Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914 em Minas Gerais.
Com 33 anos se mudou para a capital paulista. Sem dinheiro,
sem emprego e sem formação ela se mudou para uma das
primeiras favelas do Brasil, a favela do Canindé. Lá ela criou
seus três filhos, construiu seu barraco e entre a luta pela
subsistência e contra a fome ela leu muitos romances e
escreveu os seus próprios. Em 1958 o jornalista Audálio
Dantas descobriu os diários da escritora e os levou para
serem publicados. Seu primeiro livro “Quarto de Despejo:
diário de uma favelada” teve mais de 100 mil exemplares
vendidos e foi traduzido para mais de 13 idiomas.

Em Quarto de despejo, narra suas experiências como mulher negra, pobre, catadora de
lixo e moradora da favela do Canindé, onde hoje fica o campo da Portuguesa de
Desportos de São Paulo.
Apesar de subjugada pela sua condição de moradora da favela, por ser mãe solteira de
três filhos e pelo pouco tempo de estudo que lhe foi permitido, seu diário é carregado de
reflexões sobre a mulher, política e também sobre a vida daqueles que viviam uma
situação parecida com a sua.

2 de junho 1 de novembro de 1958


Dêixei o lêito as 5 e 44. E fui carregar água. Não
Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João ir havia fila.
comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou Mandei o João comprar 10 de pão e Fiz café. O
um pedaço. João e o José Carlos sairam comigo. Fui no
Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro, eu queria ser Frigorifico Incapre pegar os ossos. Depôis fui na
um raio para cortar-lhe em mil pedaços. O pão não deu e os Pedacha. Não ganhei porque já havia acabado.
meninos não levaram lanche. Depôis fui no deposito de ferro vender uns ferros.
...De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não Ganhei 23. Passei na padaria guine a Dona
arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é Madalena deu-me bananas pão docê 15 paes docê.
segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) O senhor Pedaços de queijo presunto, e salame. Fiquei
Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu contente. Achei um saco de fuba no lixo e trouxe
não quero porque já estou na maturidade. E depois, um para dar ao porco. Eu ja estou tao habituada com as
homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar latas de lixo que não sei passar por elas sem ver o
sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e que ha dentro.
papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver Hoje eu não fui catar papel porquê sei que não vou
só para o meu ideal. Êle deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a encontrar nada. Tem um velho que circula na minha
costureira. Um vestido que fez para a Vera. A Dona Alice frente. Hontem eu li aque fabula da rã e a vaca
veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe Tenho a impressão que sou rã. Que queria crescer
insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! O ate ficar do tamanho da vaca – Eu desêjei varios
dinheiro! Que faz morte, que faz odio criar raiz. empregos. Não acêitaram-me por causa da minha
linguagem poetica. porisso eu não gosto de
conversar com ninguém.
Hoje eu fu pidir esmola.
12

Conceição Evaristo7 Conceição nasceu numa comunidade da zona


sul de Belo Horizonte, vem de uma família
muito pobre, com nove irmãos e sua mãe, ela se
mudou jovem para um lugar um pouco melhor
e teve que conciliar os estudos trabalhando
como empregada doméstica, até concluir o
curso normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou-
se então para o Rio de Janeiro, onde passou
num concurso público para o magistério e
estudou Letras na UFRJ.

Na década de 1980, entrou em contato com o


grupo Quilombhoje. Estreou na literatura em
1990, com obras publicadas na série Cadernos
Negros, publicada pela organização.

É mestra em Literatura Brasileira pela PUC-


Rio, é doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense.

Suas obras, em especial os romances Ponciá


Vicêncio e Becos da memória abordam temas
como a discriminação racial, de gênero e de
classe. A obra foi traduzida para o inglês e
publicada nos Estados Unidos em 2007.

Em 2017, Conceição Evaristo foi tema da


Ocupação do Itaú Cultural de São Paulo.

Conceição Evaristo é militante do movimento


negro, com grande participação e atividade em
eventos relacionados a militância política social

7
Ver biografia, ensaios e textos em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo e
no blog da escritora: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/
13

Poemas, Conceição Evaristo


1. EU-MULHER (Conceição Evaristo)

Uma gota de leite


me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes - agora - o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
(Cadernos negros, número 13, p. 30. Os melhores poemas)

2. Vozes-mulheres

Conceição Evaristo

A voz de minha bisavó ecoou


criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
14

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha


recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

3. Todas as manhãs
Todas as manhãs acoito sonhos
E acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.
Todas as manhãs tenho os punhos
Sangrando dormentes
Tal é minha lida
Cavando, cavando torrões de terra,
Até lá, onde os homens enterram

A esperança roubada de outros homens [...]


Todas as manhãs junto ao nascente dia
Ouço a minha voz-banzo,
âncora os navios de nossa memória.

4. Meu rosário
Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
padres-nossos e ave-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques
do meu povo
e encontro na memória mal adormecida
As rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, em que as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos
em minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,
nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
15

As contas do meu rosário são contas vivas.


(Alguém disse um dia que a vida é uma oração,
eu diria, porém, que há vidas-blasfemas).
Nas contas de meu rosário eu teço intumescidos
sonhos de esperanças.
Nas contas de meu rosário eu vejo rostos escondidos
por visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas
de meu rosário.
Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome
no estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas do meu rosário,
eu falo de mim mesma um outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas,
vidas que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário,
que são pedras marcando-me o corpo caminho.
E neste andar de contas-pedras,
o meu rosário se transmuta em tinta,
me guia o dedo,
me insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conto do meu rosário,
me acho aqui eu mesma
e descubro que ainda me chamo Maria.

5. PEDRA, PAU, ESPINHO E GRADE

“No meio do caminho tinha uma pedra”,


Mas a ousada esperança
De quem marcha cordilheiras
triturando todas as pedras
da primeira à derradeira
de quem banha a vida toda
no unguento da coragem
e da luta cotidiana
faz do sumo beberagem
topa a pedra pesadelo
é ali que faz parada
para o salto e não o recuo
não estanca os seus sonhos
lá no fundo da memória,
pedra, pau, espinho e grade
são da vida desafio.
E se cai, nunca se perdem
os seus sonhos esparramados
adubam a vida, multiplicam
são motivos de viagem.
16

6. RECORDAR É PRECISO
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
Dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

7. Favela
Barracos montam sentinela
na noite
Balas de sangue
derretem corpos
no ar
Becos bêbados
sinuosos labirínticos
velam o tempo escasso
de viver

8. Da menina, a pipa
Da menina a pipa
e a bola da vez
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua,
um barbante áspero,
másculo cerol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.

E quando o papel
seda esgarçada
da menina
estilhaçou-se entre
as pedras da calçada
a menina rolou
entre a dor
e o abandono.

E depois, sempre dilacerada,


a menina expulsou de si
uma boneca ensanguentada
que afundou num banheiro
público qualquer.
17

9. Filhos na rua
O banzo renasce em mim.
Do negror de meus oceanos
a dor submerge revisitada
esfolando-me a pele
que se alevanta em sóis
e luas marcantes de um
tempo que aqui está.

O banzo renasce em mim


e a mulher da aldeia
pede e clama na chama negra
que lhe queima entre as pernas
o desejo de retomar
de recolher para
o seu útero-terra
as sementes
que o vento espalhou
pelas ruas...

10. A noite não adormece nos olhos das mulheres


Em memória de Beatriz Nascimento
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece


nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece


nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá


jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
18

Ana Maria Gonçalves 8

Na cartografia do romance afro-brasileiro, Um defeito de cor,


de Ana Maria Gonçalves, Eduardo de Assis Duarte

A expressão Um defeito de cor traz à baila a prática


discriminatória vigente no período colonial de vedar aos
descendentes de africanos, mesmo livres, o acesso a cargos
públicos ou eclesiásticos, a não ser que renegassem sua
identidade de origem – o “defeito de cor” – e se declarassem
brancos. Por outro lado, o título funciona como precioso índice
temático que conforma um determinado horizonte de
expectativas, e dialoga, entre outros, com o Negro preto cor da
noite, de Lino Guedes (1932), com os Poemas negros, de Solano
Trindade (1936), com o Sortilégio – mistério negro, de Abdias do
Nascimento (1957), com A cor da pele, de Adão Ventura (1980) e
também com os citados Cadernos Negros.

Centrado na trajetória da heroína, o romance encena no feminino a saga africana no


Brasil. Afasta-se, talvez por isto mesmo, do monologismo próprio à epicidade
encomiástica e do maniqueísmo pelo qual todo branco é explorador e todo negro é
vítima. As marcas da violência patriarcal e escravista estão também em África, cenário
primeiro e último da trama. A infância de Kehinde em Savalu, no Daomé, é marcada
pela visão do estupro seguido de assassinato da mãe e do sacrifício do irmão mais velho
pelas mãos dos guerreiros do rei Adandozan. Em seu manuscrito, a africana narra a
viagem com a irmã e a avó até Uidá, sua permanência nesse entreposto de comércio e
tráfico; o aprisionamento pelos negreiros; a longa viagem ao Brasil, marcada pela morte
da avó e da irmã; e a chegada ao litoral baiano.

O romance toma a forma do testemunho para incursionar pela crônica da escravidão a


partir de um olhar interno à afro-brasilidade, oposto ao branco, mas que não idealiza a
África, nem o negro. Os horrores da viagem no porão e do cativeiro na plantação no
interior baiano surgem em registro realista de tal ordem, que chega ao estupro de um
escravo pelo senhor. As faces da violência escravista convivem, no entanto, com bons
relacionamentos. A narrativa remete à história de homens e mulheres submetidos à
escravidão tanto rural quanto urbana e destaca a cidade como locus privilegiado para a
conquista paulatina de uma vida mais livre e sem os rigores das fazendas, onde a
vontade dos senhores era lei. Na cidade, negros e negras vão para o “ganho” nas ruas,
integram irmandades e muitos conquistam a alforria, passando de simples vendedores a
comerciantes, vez por outra bem-sucedidos, como no exemplo de Kehinde.

8
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/443-ana-maria-goncalves
19
Jornalista, nascida em São Paulo em 1958, Esmeralda Ribeiro faz
parte da Geração Quilombhoje, que atua nos movimentos de
Esmeralda Ribeiro9 combate ao racismo e na construção de uma ‘Literatura Negra’, a
partir do resgate da memória e das tradições africanas e afro-
brasileiras.

Em texto de 1982 já demonstrava preocupação com o “papel da


escola como instrumento de transmissão e de reforço às ideias e
práticas racistas”, e defendia a inclusão nas escolas de ensino
fundamental e médio de estudos sobre a cultura e a história afro-
brasileiras, como forma de combater o branqueamento e estereótipos
racistas.

Por ocasião do centenário da Abolição, Esmeralda Ribeiro publicou


o volume de contos Malungos e Milongas, em que a condição
afrodescendente aflora em toda sua dimensão, com destaque para o
tom militante que denuncia a discriminação dos irmãos de cor no
contexto da sociedade “cordial” instalada nos trópicos.

No momento, é responsável, junto com Márcio Barbosa, pela


direção do projeto cultural Quilombhoje e pela coordenação
editorial da série Cadernos negros, atualmente no quadragésimo ano
de existência. A escritora está presente em diversas antologias de
prosa e de poesia negras, tanto no Brasil quanto no exterior.

Sálùbá

Nanã Buruku
Divindade do povo Ashantí
embala com dignidade
àqueles de tez escura
jogados em qualquer vala dura
na lua sua banhe com altivez os corpos
daqueles sem rosto na multidão.

9
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/244-esmeralda-ribeiro
20

Poemas de Esmeralda Ribeiro

Serão sempre as terras do Senhor?


Ensinamentos
É invasão
ser invisível quando não se quer ser quando gente do campo
é ser mágico nato
planta o espírito de Palmares
não se ensina, não se pratica, mas se aprende e dá vazão ao desejo de criar
no primeiro dia de aula aprende-se um Quilombo
que é uma ciência exata e trabalhar com seus pares?
o invisível exercita o ser “zero à esquerda”
o invisível não exercita cidadania É invasão
as aulas de emprego, casa e comida se as terras do Senhor
são excluídas do currículo da vida cobrem-se de mato
ser invisível quando não se quer ser enquanto olhares à espreita
é ser um fantasma que não assusta ninguém esperam que uma estrela
quando se é invisível sem querer traga-lhes justiça e
ninguém conta até dez desfaça o temor?
ninguém tapa ou fecha os olhos
a brincadeira agora é outra É invasão
os outros brincam de não nos ver quando em Luiza Mahin
saiba que nos tornamos invisíveis outra mulher se transforma
sem truques, sem mágicas, pra acabar com a dor
ser invisível é uma ciência exata de ser tratada como
mas o invisível é visto no mundo financeiro
coisa-ruim?
é visto para apanhar da polícia
é visto na época das eleições
É invasão
é visto para acertar as contas com o leão
para pagar prestações e mais prestações o homem
é tanto zero à esquerda que o invisível fincar os pés na terra, pois
na levada da vida soma-se será a própria Terra que
a outros tantos zeros à esquerda vai devorá-lo como
para assim construir-se humano. um joão-ninguém?

Um dia, quem sabe,


depois dos 300, 400, 1000 anos de Palmares
gestaremos novos Zumbis, Acotirenes
para redesenhar
a Nação
e talvez do rubro solo
verdes frutos surgirão.

(Cadernos Negros 17, p. 20-21).


21

Cidinha da Silva é formada em História pela


Universidade Federal de Minas Gerais, começou a
Cidinha da Silva10 publicar artigos acadêmicos sobre relações sociais,
de gênero e diálogos com a Educação e Juventude.
Em 2006, cedeu ao forte ao desejo de contar suas
próprias histórias. Escritora, posicionada
politicamente e portadora de aguçado senso crítico,
transmite nos seus trabalhos o sentimento de
indignação e revolta ao racismo que, para ela, muitas
vezes, está amparado por formas cordiais e afetuosas
no dia a dia.

Em Cada Tridente em seu lugar, seu primeiro


livro, abordou as ações que visam garantir o acesso e
a permanência do negro nas universidades. Depois
passou pela literatura infantil com os livros Os Nove
Pentes D’África (Mazza Edições, 2009), Kuami
(Nandyala, 2011), o Mar de Manu (Kuanza
Produções, 2011), se permitindo fabular e resgatar da
africanidade brasileira os valores de amizade, amor e
esperança. Até o momento, já publicou oito livros,
entre romances, literatura infanto-juvenil e crônica.

Seus dois últimos livros Oh, Margem! Reinventa os


Rios (Selo Povo, 2011), e Racismo no Brasil e Afetos
Correlatos (Conversê, 2013) retomam, fortemente, as
relações de gênero e étnicas no Brasil. Seu livro mais
recente Africanidades e relações raciais: insumos
para políticas públicas na área do livro, leitura,
literatura e bibliotecas no Brasil foi publicado pela
Fundação Cultural Palmares e pode ser solicitado,
gratuitamente pelo, pelo e-mail
biblioteca@palmares.gov.br

10
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/186-cidinha-da-silva
22

Textos de Cidinha da Silva

Usos e abusos da toga de Joaquim


Começou a navegar pelas redes sociais, e naufragou logo, uma imagem ora austera, ora
sorridente do Ministro Joaquim Barbosa, associada à própria “não-necessidade de cotas raciais”
para ser um homem negro bem formado, bem-sucedido e alçado ao posto de super-herói.
A mim, causava espécie escutar a presença de várias pessoas negras repetindo acriticamente o
bordão, numa confusa demonstração de orgulho. Ah, o quanto é destruidora essa profunda
carência de ícones, que nos leva, muitas vezes, a ouvir ruídos e a confundi-los com música, boa
música.
Joaquim Barbosa, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Hélio Santos, Ruth Guimarães, Leda Martins,
Gilberto Gil, vivíssimos entre nós, não se valeram das cotas raciais para construir a carreira,
mas, seguramente, não seriam exemplos isolados se contássemos com cotas raciais desde o
momento em que cada um deles passou pela universidade.
Recentemente, a ministra Luiza Bairros, alicerçada em cálculos feitos por sua equipe,
prospectou a entrada de 56 mil estudantes negros, anualmente, nas universidades públicas
federais a partir da Lei de Cotas, sancionada pela Presidenta Dilma. Ora, ora, seremos mais de
meio milhão de graduados negros em 10 anos.
Estamos a caminho de virar o jogo. Se nós não estamos atentos a isso, eles estão. É de lamentar
que muitos de nós ainda nos enganemos com o canto de sereia lançado por eles, que, outra vez,
tentam nos afundar na Kalunga Grande. Se deixarmos, se não separarmos a música dos
grunhidos de desespero, lá no fundo do mar, vagaremos insepultos.
(Racismo no Brasil e afetos correlatos, p. 23
23

Miriam Alves

Poeta, dramaturga e prosadora brasileira, nascida em São


Paulo, em 1952. Publicou os livros de poemas Momentos de
Busca (1983), Estrelas nos Dedos (1985), a
peça Terramara (1988), em coautoria com Arnaldo Xavier e
Cuti, o livro de ensaios Brasilafro autorrevelado (2010) e a
coletânea de contos Mulher Mat(r)iz (2011). Integrou o
movimento Quilombhoje Literatura de 1980 a 1989, e foi
escritora visitante na Universidade do Novo México, na
Escola de Português de Middelbury College em 2010, nos
Estados Unidos, e participou de debates sobre a literatura
afro-brasileira e feminina nas Universidades do Texas, na
Universidade do Tennessee e na Universidade de Illinois.
Publica poemas nos Cadernos Negros desde 1982 e foi
traduzida em antologias americanas e europeias.

Mahin amanhã

Ouve-se nos cantos a conspiração


vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
Malês
bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
Gotas aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
Mesmo que eu não saiba falar a língua a luta é tramada na língua dos Orixás
dos anjos e dos homens é aminhã, aminhã”
a chuva e o vento sussuram
purificam a terra Malês
Mesmo que eu não saiba falar a língua bantus
dos anjos e dos homens geges
Orixás iluminam e refletem-me nagôs
derramando “é aminhã, Luiza Mahin falô”
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori (Cadernos negros: melhores poemas, p. 104)
( (De) Clamar, p. 27)
24

Mel Duarte trata de temas socialmente importantes para a


Mel Duarte
sociedade, como o racismo e o machismo institucionalizados

Em 2016, aos 27 anos, expandiu sua arte e apresentou sua poesia


na abertura da Flip(Festa Literária Internacional de Paraty), sendo
este o primeiro evento internacional ao qual participou. E esse
não foi o único ponto positivo do ano para Mel Duarte! Em 31 de
março, ela lançou o seu segundo livro, “Negra Nua Crua”, que
está se espalhando pelo Brasil com as rimas empoderadoras da
moça.

O trabalho foi publicado pela Editora Ijumaa, uma nova


referência para a publicação de escritores negros. Na própria
página da editora, que é formada por três mulheres negras, elas
deixam claro que o objetivo de seu trabalho é “o de posicionar o
indivíduo negro como narrador de sua própria história na
contemporaneidade”. O trabalho de Mel foi o primeiro livro a ser
publicado através da editora.

Para ela, a parte mais importante de sua arte é abranger o público


jovem em seu alcance e trabalhando em medidas socioeducativas.
“Eu gosto muito de trabalhar dessa forma e tento dar acesso pra
essa galera, da mesma forma que eu gostaria de ter tido quando
era mais nova”, disse em conversa com o iG.

Ela é voz ativa no coletivo “Slam das Minas “, originado em


Brasília e expandido para São Paulo, que tem a intenção de criar
um espaço auto-organizado para que mulheres se sintam mais a
vontade para apresentar suas poesias e suas rimas.

Mel também participa do projeto “Poetas Ambulantes “, que leva


as rimas e os saraus ao transporte público, seja em linhas de
ônibus, trens ou metrôs. “Nós acreditamos que a poesia pode
estar em todos os lugares.
25

Não desiste, Mel Duarte


Não desiste negra, não desiste!
Ainda que tentem lhe calar,
Por mais que queiram esconder
Corre em tuas veias força yorubá,
Axé! Para que possa prosseguir!
Eles precisam saber, que a mulher negra quer
Casa pra morar
Água pra beber,
Terra pra se alimentar.
Que a mulher negra é
Ancestralidade,
Djembês e atabaques
Que ressoam dos pés.
Que a mulher negra,
tem suas convicções,
Suas imperfeições
Como qualquer outra mulher.
Vejo que nós, negras meninas
Temos olhos de estrelas,
Que por vezes se permitem constelar
O problema é que desde sempre nos tiraram a nobreza
Duvidaram das nossas ciências,
E quem antes atendia pelo pronome alteza
Hoje, pra sobreviver, lhe sobra o cargo de empregada da casa
É preciso lembrar da nossa raiz
semente negra de força matriz que brota em riste!
Mãos calejadas, corpos marcados sim
Mas de quem ainda resiste.
E não desiste negra, não desiste!
Mantenha sua fé onde lhe couber
Seja Espírita, Budista, do Candomblé.
É teu desejo de mudança,
A magia que trás na tua dança,
Que vai lhe manter de pé.
É você, mulher negra! Cujo tratamento majestade é digna!
Livre, que arma seus crespos contra o sistema,
Livre para andar na rua sem sofrer violência
E que se preciso for, levanta arma,
mas antes,
luta com poema.
E não desiste negra, não desiste!
Ainda que tentem lhe oprimir
E acredite, eles não vão parar tão cedo.
Quanto mais você se omitir,
Eles vão continuar a nossa história escrevendo!
Quando olhar para as suas irmãs, veja que todas somos o início:
Mulheres Negras!
Desde os primórdios, desde os princípios
África, mãe de todos!
Repare nos teus traços, indícios
É no teu colo onde tudo principia,
Somos as herdeiras da mudança de um novo ciclo!
E é por isso que eu digo:
Que não desisto! / Que não desisto/ Que não desisto
26

Cristiane Sobral11
Cristiane Sobral é carioca e mora em Brasília desde a década de 90.
Escritora, poeta, atriz, diretora e professora de teatro. Ganhadora em
2017, do Prêmio FAC-Secult-DF de Culturas Afro-Brasileiras. Imortal
cadeira 34 (Academia de Letras do Brasil). Mestre em Artes (UnB),
Especialista em Docência Superior pela Universidade Gama Filho, RJ.
Licenciada em Educação Artística; Bacharel em Interpretação Teatral
(Universidade de Brasília). Professora da SEDF — Atuando como
Coordenadora Intermediária na Regional de Ensino do Núcleo
Bandeirante — DF. Diretora de literatura afro-brasileira no Sindicato dos
Escritores. Começou a publicar em prosa e poesia em 2000 na antologia
Cadernos Negros. Suas obras poéticas e ficcionais são O tapete voador
(2016), Espelhos, Miradouros, Dialéticas da Percepção, Não vou mais
lavar os pratos, e Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz. Você pode
ver o trabalho de Cristiane em seu blog e na página do Facebook.
Cristiane foi uma das poetas indicadas por Jarid Arraes em nossa lista
Poetas Negras da Literatura Brasileira.

Estes poemas, originalmente do livro “Só por hoje vou deixar o meu
cabelo em paz”, foram publicados na iniciativa Mulheres que
escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que
visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos
diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os
dilemas de sermos escritoras.

11
https://cristianesobral.blogspot.com/ http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/203-cristiane-sobral
27

Três poemas de Cristiane Sobral


Meu corpo nunca estará em liquidação

Retina Negra
Sou preta fujona
Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas

Que tenta me descolorir com os seus feixes de luz


Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema
Invado a cena

Sou preta fujona


Defendo um escurecimento necessário
Tiro qualquer racista do armário
Enfio o pé na porta e entro

Black Friday
Alguns homens sonham com meu corpo
Entre os seus lençóis
Eles desejam desesperadamente
Consumir meu sexo
Mas não suportariam meu banzo
Meu clamor
Não aguentariam vestir a minha pele negra
Nem por um segundo

Eles poderiam tomar posse de tudo que sou


E até germinar ali os seus filhos
Mas sairiam sem olhar pra trás

Esses homens devorariam o meu corpo


Com ardor
Como lobos sugariam o meu interior
Até secar meu ventre…
Impunes, voltariam para os seus lares brancos
Sem o meu menor pudor

Tenho medo desses homens


Que rezam para o criador
Que juram um falso amor
Eu tenho medo desses homens

Não aceito os seus sorrisos


Nem me iludo com as suas promessas
Não sou produto com desconto
Esqueçam as ofertas
28

Black Friday
Meu corpo nunca estará em liquidação!
Para vocês jamais venderei barato
O que sempre custará o dobro.

Tente me amar
Tente me amar
Enquanto a chuva não vem
Depois que o leite derramar
Ame como nunca amou ninguém

Tente me amar
Sem pensar em voltar
No balanço do trem
Esperando a hora certa
De fazer um neném

Tente me amar
Sem desculpas pra me deixar
De anel no dedo
Ame completamente sem medo

Tente me amar
Sem me confundir com ninguém
Enquanto seu lobo não vem
Tente me amar
E consiga.
29

Jarid Arraes

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em


12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista
e autora dos livros “As Lendas de Dandara” e “Heroínas
Negras Brasileiras”. Atualmente vive em São Paulo (SP),
onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Até o
momento, tem mais de 60 títulos publicados em Literatura de
Cordel, incluindo a coleção Heroínas Negras na História do
Brasil e publicações em parceria com a Artigo 19 e o Think
Olga. Os poemas desta matéria foram retirados de seu
blog: http://jaridarraes.com/blogue/

Reflexo
preta,
essa tua pele
cinco tons
mais marrom
que a minha
atiça o toque
das minhas mãos
e dos meus beijos
a saliva
.
te olho derramada
escorrendo
em contraste
no lençol
absorvida
e quero cada poro
induzindo melanina
desmedida

preta,
você tem a textura
qua arrepia
meus pelos
tem o toque
que desperta
meus peitos

e meus olhos
transbordam
um tesão
que é espelho.

Você também pode gostar