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CLA - Centro de Letras e Artes - Maio, 2021

Departamento de Estética e Teoria do Teatro – UNIRIO


Trabalho referente a Formação do Teatro Brasileiro
Docente: Flora Sussekind
Discente: Elisa Tavares de M. O. de Menezes - 201414130007

CORPOCOLÔNIA E CORPORREVOLTA

“Mil nações moldaram minha cara


Minha voz, uso pra dizer o que se cala
o meu país é meu lugar de fala”
canção de Elza Soares com Douglas Germano.

Um presidente apelidado de “mito”em cima de um palanque desfila sobre 400 mil mortos.
Em nome de Deus, pastores de igrejas o aprovam. Os mais afortunados louvam o tal líder
acompanhados da babá do filho, de um motorista e segurança particular. Estes últimos,
atravessaram a cidade e deixaram os seus para cuidar da dita “família tradicional brasileira.”
Enquanto isso a babá reza para que seu filho não seja o próximo baleado em sua
comunidade, o motorista coloca no papel e precisa escolher entre o preço da passagem ou
da gasolina. O segurança quase atrasou porque foi parado pela polícia no caminho do
trabalho. O pai da babá fora um dos construtores de uma boa parte da calçada onde pisam
os patrões, o motorista anda preocupado com a filha que deixara o cabelo naturalmente
crescer em blackpower e agora fora a vez dos pelos do sovaco. O segurança sente
saudades da capoeira, mas resolve seguir o conselho do pastor de que é coisa do sete
pele. Os patrões estão em êxtase, entre sinais da cruz e armas. Eles evitam espelhos pelo
medo de enxergar o próprio rosto e se ver Brasil. Enchem-se de botox, água oxigenada e
colágeno em uma tentativa de se distanciar ao máximo de si; corpocolônia. Paralelamente a
população vai às ruas para provar o oposto, se rebela e rebola pelo direito da própria
existência, cartazes com nomes de filhos assassinados pela polícia,cantorias de coragem,
corporrevolta. Teatro e sociedade não são passíveis de desassociação, ambos se
modificam em detrimento do outro. O contato com o estudo da formação do teatro brasileiro
me intrigou sobre um tema do qual pretendo me inclinar daqui para frente com esse texto; o
corpo individual e coletivo como veículos de memórias. No início do texto, propus certas
situações recorrentes ao cenário contemporâneo brasileiro, mas a referência para tal
perspectiva veio de muitos séculos para trás, do tempo do Brasil colônia. O nosso corpo
carrega e se movimenta sobre uma história de silenciamento e revoltas.

No texto “A Procissão Barroca” de Júnia Furtado notamos que a estratégia de utilização de


uma ferramenta pública em detrimento do poder privado está longe de ser fenômeno do
século XXI e seus mecanismos propagandistas do “agro é pop.” As festas barrocas do
período colonial eram acontecimentos grandiosos, em que o intuito era a demonstração do
poder real, a divisão das hierarquias sociais e introdução de simbolos a serem seguidos
pelo colonizador. O poder real era o primeiro a desfilar, com pompas e artefatos de
deslumbrar os olhos, logo após a igreja assinava embaixo em nome de deus. As classes
mais afortunadas desfilavam exibindo roupas de veludo e camadas e mais camadas de
anáguas mesmo no calor de quarenta graus. O povo assistia ao espetáculo do qual os
frisavam como servos dos monarcas ao mesmo tempo em que se divertiam.

“Neste jogo de oposições, as festas eram, acima de tudo, mecanismos de reforço dos laços
sociais pois cumpriam um duplo papel, tinham um aspecto pedagógico, ensinando aos
indivíduos o papel que eles ocupavam, e também os relaxavam das contradições existentes
da sociedade.” FURTADO, Júnia p. 254 - A Procissão Barroca.

As procissões eram formas também de descontração sobre a imposição que a mesma


causava. Seria prudente dizer que o povo não participava diretamente das tais procissões
como protagonistas, pois além de serem os executores dos instrumentos e das alegorias do
desfile, há relatos de que a maioria dos professores de música, por exemplo , eram
africanos. Para além desses registros, o que se dançava afinal? Através da exclusão dos
mesmos, uma nova cultura traçava a sua história. Os diversos povos que foram roubados
de seus locais e lançados ao mar e os outros que tiveram o próprio Brasil roubado de si (os
indígenas), conviviam e dividiam apesar de toda a diferença de uma questão em comum: o
arrombamento cultural. Deste modo conseguimos visualizar o Brasil construindo seus
“brasis”; uma mistura de cenarização social e arquitetônica com uma arte operária, do que
se recria na margem, pelo transbordamento desses corpos que - mesmo os que não
estavam em negação do que estava sendo imposto - acabavam sendo outra coisa, por
mero fato do existir em contradição da cultura imposta. As procissões apostaram em uma
linguagem visual pois grande parte da população era analfabeta, o que nos leva a pensar
em como era recebida a interpretação das peças que assistiam, já que algumas vezes
utilizavam-se de várias línguas. O tupi, por exemplo, era remetido a figura do diabo.
Carregamos até hoje esse autoflagelamento de nós mesmos. Lembro de uma passagem de
um romance, o “Hibisco Roxo”, da escritora Chimamanda Adichi. O livro aborda o processo
de embranquecimento no continente africano, e em um dado momento a personagem
principal, uma adolescente negra que segue as regras de um catolicismo rígido, pergunta
ao padre o porquê de Nossa Senhora nunca ter sido vista no continente africano. Até hoje a
forma de se contar a nossa história é pelo viés do colonizador, nos dá a impressão que fora
simples e fácil nos moldar aos conceitos europeus de entender a existência. É preciso que
cada vez mais cuidemos da memória de nosso corpo que reagiu, e não foram poucas
vezes. Minas Gerais por exemplo, fora o cenário de muitas rebeliões. No livro Rebeliões do
Brasil Colônia de Luciano Figueiredo, há uma citação de Conde Assumar (governador das
capitanias de Minas e São Paulo) que descreve da seguinte forma a atmosfera geral do
período:

“A terra parece que evapora tumultos, a água exala motins, o ouro toca desaforos, destilam
liberdades os ares, vomitam insolências as nuvens, influem desordens os astros, o clima é
tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e amotinada lá por
dentro, é como no inferno.”

Nosso país que a primeira vista era tido como um paraíso na terra, rapidamente torna-se
um local bélico, de disputas territoriais e discrepâncias sociais. O teatro era bélico. Há uma
falsa imagem de uma cena pacificamente organizada e com o intuito catequético. Porém as
peças eram montadas geralmente durante festividades, e tinham como o objetivo o
mantimento da crença cristã em determinado aldeamento. As peças apostavam em cenas
violentas, retratavam de alguma maneira, a atmosfera de disputa de território. A violência
servia para intimidar e mostrar o lado mais forte. O diabo altamente comparado a figura
indígena também ganhava destaque na comicidade, ridicularizado,sempre bêbado de caim.
Deste modo continham a liberdade dos corpos, colocavam negros e indígenas contra a
própria cultura, garantiam enfim o policiamento feito de povo para povo. A notória
preocupação da igreja e do estado em organizar a ordem estabelecida nos dá também,
implicitamente, a informação de que se vivia um tempo de eclosão de muitas rebeliões e
revoltas.

Hoje vivemos sob a prova viva de que a história não acontece de forma linear, e que passos
para trás também podem ser dados. O passado nos responde sobre possibilidades de
futuro. Há o Brasil que ajoelha e há também o que mete o pé na porta. A história do nosso
fazer artístico é, ao mesmo tempo, uma elaboração forjada, e resposta urgente a essa
elaboração. Corpo da contenção e de revolução. Somos frutos de uma memória doída, e a
nossa potência não está em ser excessivamente receptivo ou bom de bola. Nossa história
se transforma em potência quando assumimos e reagimos a essa memória bélica. Hoje
nunca foi tão importante entender que nunca deixamos de lutar nem por um segundo.
Parafraseando o mestre Darcy Ribeiro: " O Brasil tem um longo passado pela frente."

Bibliografia:
FURTADO, Júnia- A Procissão Barroca l
FIGUEIREDO, Luciano - Rebeliões do Brasil Colônia
MAYOR, Maria Santos- Corpos de Trabalho, Corpos de festa colonial
REIS, João José Quilombos e Revoltas
OTICICA,Héio - Brasil Diarréia
ADiCHI, Chimamanda- Hibisco Roxo
DE ANCHIETA,JOSÉ - O Auto de São Lourenço

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