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CORPOCOLÔNIA E CORPORREVOLTA
Um presidente apelidado de “mito”em cima de um palanque desfila sobre 400 mil mortos.
Em nome de Deus, pastores de igrejas o aprovam. Os mais afortunados louvam o tal líder
acompanhados da babá do filho, de um motorista e segurança particular. Estes últimos,
atravessaram a cidade e deixaram os seus para cuidar da dita “família tradicional brasileira.”
Enquanto isso a babá reza para que seu filho não seja o próximo baleado em sua
comunidade, o motorista coloca no papel e precisa escolher entre o preço da passagem ou
da gasolina. O segurança quase atrasou porque foi parado pela polícia no caminho do
trabalho. O pai da babá fora um dos construtores de uma boa parte da calçada onde pisam
os patrões, o motorista anda preocupado com a filha que deixara o cabelo naturalmente
crescer em blackpower e agora fora a vez dos pelos do sovaco. O segurança sente
saudades da capoeira, mas resolve seguir o conselho do pastor de que é coisa do sete
pele. Os patrões estão em êxtase, entre sinais da cruz e armas. Eles evitam espelhos pelo
medo de enxergar o próprio rosto e se ver Brasil. Enchem-se de botox, água oxigenada e
colágeno em uma tentativa de se distanciar ao máximo de si; corpocolônia. Paralelamente a
população vai às ruas para provar o oposto, se rebela e rebola pelo direito da própria
existência, cartazes com nomes de filhos assassinados pela polícia,cantorias de coragem,
corporrevolta. Teatro e sociedade não são passíveis de desassociação, ambos se
modificam em detrimento do outro. O contato com o estudo da formação do teatro brasileiro
me intrigou sobre um tema do qual pretendo me inclinar daqui para frente com esse texto; o
corpo individual e coletivo como veículos de memórias. No início do texto, propus certas
situações recorrentes ao cenário contemporâneo brasileiro, mas a referência para tal
perspectiva veio de muitos séculos para trás, do tempo do Brasil colônia. O nosso corpo
carrega e se movimenta sobre uma história de silenciamento e revoltas.
“Neste jogo de oposições, as festas eram, acima de tudo, mecanismos de reforço dos laços
sociais pois cumpriam um duplo papel, tinham um aspecto pedagógico, ensinando aos
indivíduos o papel que eles ocupavam, e também os relaxavam das contradições existentes
da sociedade.” FURTADO, Júnia p. 254 - A Procissão Barroca.
“A terra parece que evapora tumultos, a água exala motins, o ouro toca desaforos, destilam
liberdades os ares, vomitam insolências as nuvens, influem desordens os astros, o clima é
tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e amotinada lá por
dentro, é como no inferno.”
Nosso país que a primeira vista era tido como um paraíso na terra, rapidamente torna-se
um local bélico, de disputas territoriais e discrepâncias sociais. O teatro era bélico. Há uma
falsa imagem de uma cena pacificamente organizada e com o intuito catequético. Porém as
peças eram montadas geralmente durante festividades, e tinham como o objetivo o
mantimento da crença cristã em determinado aldeamento. As peças apostavam em cenas
violentas, retratavam de alguma maneira, a atmosfera de disputa de território. A violência
servia para intimidar e mostrar o lado mais forte. O diabo altamente comparado a figura
indígena também ganhava destaque na comicidade, ridicularizado,sempre bêbado de caim.
Deste modo continham a liberdade dos corpos, colocavam negros e indígenas contra a
própria cultura, garantiam enfim o policiamento feito de povo para povo. A notória
preocupação da igreja e do estado em organizar a ordem estabelecida nos dá também,
implicitamente, a informação de que se vivia um tempo de eclosão de muitas rebeliões e
revoltas.
Hoje vivemos sob a prova viva de que a história não acontece de forma linear, e que passos
para trás também podem ser dados. O passado nos responde sobre possibilidades de
futuro. Há o Brasil que ajoelha e há também o que mete o pé na porta. A história do nosso
fazer artístico é, ao mesmo tempo, uma elaboração forjada, e resposta urgente a essa
elaboração. Corpo da contenção e de revolução. Somos frutos de uma memória doída, e a
nossa potência não está em ser excessivamente receptivo ou bom de bola. Nossa história
se transforma em potência quando assumimos e reagimos a essa memória bélica. Hoje
nunca foi tão importante entender que nunca deixamos de lutar nem por um segundo.
Parafraseando o mestre Darcy Ribeiro: " O Brasil tem um longo passado pela frente."
Bibliografia:
FURTADO, Júnia- A Procissão Barroca l
FIGUEIREDO, Luciano - Rebeliões do Brasil Colônia
MAYOR, Maria Santos- Corpos de Trabalho, Corpos de festa colonial
REIS, João José Quilombos e Revoltas
OTICICA,Héio - Brasil Diarréia
ADiCHI, Chimamanda- Hibisco Roxo
DE ANCHIETA,JOSÉ - O Auto de São Lourenço