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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE

JANEIRO

CLA - Centro de Letras e Artes


Maio, 2021

- Elisa Tavares de Macedo O de Menezes- 201414130007

A PRÁTICA DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS


COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
por Elisa Ottoni
- INTRODUÇÃO

“ Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro.

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”

Agosto de 2016, novembro de 2018 e inicia-se a barbárie de 2019. Os últimos anos


foram sobre arrombamentos violentos de portas da extrema direita para a chegada do
poder. Há os que dizem que é uma resposta por conta das pequenas fissuras que
conquistamos nos últimos anos das camadas mais baixas da sociedade, porém chamar de
mera resposta me remete a quando chamamos o estupro de abuso. De alguma maneira o
termo se distancia da perversidade que ele precisa carregar para ocorrer a indignação
necessária para o manifesto. Por conta disso, é preferível entender esses últimos anos
como um ato de extrema violência, uma trajetória de covardias e de disseminação do ódio
para a chegada do poder. A dita resposta dos opressores é sempre pela via da agressão por
conta da ausência de argumentos sólidos e em palavras ao fim de todo e qualquer
discurso estará o mantimento da máquina neo liberal em que só é possível ser alimentada
pela discrepância entre classes sociais. O capitalismo é regido pelo desejo de uma vida de
poucos sustentada por muitos em condições precárias. Eles armamentos, nós argumentos.
Por não terem a palavra como aliada proliferam falsas notícias, criam inimigos, silenciam
culturas, desqualificam nossos mestres e nos tornam inimigos de nós mesmos. Em um
sistema como esse, que muitas vezes parece utópico assistir seu desmoronamento, como
encontrar meios para resistir? Começo falando da palavra porque não há fuzil que a
vença, porém, é necessário regá-la, cuidá-la para que ela continue a romper fronteiras.

O Histórias que Contamos, grupo de contação de histórias que se reúne mensalmente na


comunidade da Babilônia- Leme(RJ) nasceu da necessidade de se encontrar, contar, ouvir
e cuidar tendo a oralidade como ponto de partida e como forma de fortalecimento. Por ser
uma iniciativa recente e ter nascido de um impulso do fazer, do pôr em prática com os
instrumentos que se tem nas mãos, está em um processo intenso de transformações.

O objetivo deste texto é de compartilhar os processos de formação do grupo Histórias


Que Contamos e seus atravessamentos gerados na prática de se pensar a arte como
ferramenta essencial para a transformação social.

-PARTE 1

Responsabilidade social : ideologia x patrão


Para sobreviverem, suas propostas devem adequar-se às estratégias de
marketing de seus patrocinadores, notadamente grandes empresas ou o
próprio Estado, que se afirma cada vez mais perante seus cidadãos por
meio da publicidade.

VIGANÓ, Suzana, 2006 p.47

Silenciar a cultura de um povo para a obtenção do poder é uma herança colonialista


assiduamente continuada pelo sistema capitalista. Indivíduos aculturados tornam-se
frágeis por ausência de referências, de sentido de pertencimento e empoderamento para
assumir suas próprias escolhas de como ser e se revindicar no mundo. Sem o sentido de
pertencer-se nos tornamos cada vez mais seres dependentes. Sem histórias próprias
acatamos o enredo do dominador, sem conhecimento apostamos e confiamos na
sabedoria externa, sem amor pela nossa trajetória passamos a amar tudo o que não seja
semelhante a nós mesmos. Deste modo, é pela relação da dependência que o
Neoliberalismo nos convence a aceitar a condição de explorados.

“Com a palavra o homem se faz homem. A dizer a sua palavra, pois, o


homem assume conscientemente sua essencial condição humana. E o
método que lhe propicia essa aprendizagem comensura-se ao homem
todo, e seus princípios fundam toda pedagogia, desde a alfabetização até
os mais altos níveis do labor universitário”
FREIRE, Paulo, 1985

As palavras do mestre Paulo Freire apontam o início da luta contínua pela verdadeira
liberdade, busca essa que só se dá de maneira processual, pois, os primeiros passos para o
conhecimento está no ato de se reconhecer. O encontro com nossos saberes é lento, tem a
duração de nossa vida inteira e, por mais que sejam esses processos, responsáveis por dar
significado a existência, é preciso antes confrontar o tempo que nos foi imposto. O
capitalismo atribui felicidade com satisfação imediata, trabalho com suor e sofrimento e é
dono de um tempo sobre-humano para o mantimento das indústrias. Transformam-nos
em máquinas humanas facilmente satisfatórias com o escasso e falso tempo livre que nos
resta e que desfrutamos sendo consumidores. Vivemos em um mecanismo em que está
sendo sempre alimentado e que como um camaleão encontra brechas, muitas vezes sutis,
para continuar sendo o protagonista da vez. Não pretendo tornar o texto pessimista, e que
se transforme em um objeto de desanimo e sim para que possamos compreender o que
está por trás de algumas inciativas que por muitas vezes parecem estar aliadas a luta pela
igualdade social mas são apenas mais uma forma de adequação em prol do sistema
capitalista.

O meu primeiro emprego deve-se a um projeto social que, de certa maneira, foi um dos
responsáveis pelo encontro do que me faz mover como artista e ao mesmo tempo por
desencontros das razões do porque fazer e para quem. Pequenas bibliotecas em formato
de bancas de jornal foram montadas em alguns locais da cidade com o intuito de
promover o empréstimo gratuito de livros e atividades relacionadas a literatura. Fui
selecionada para trabalhar na comunidade da Babilônia, Leme- RJ e recém chegada de
Nova Friburgo, pouco conhecia a realidade das favelas. Inicialmente o projeto me
encantou, as bancas tinham um aspecto caprichoso, os livros eram lançamentos, tudo
tinha cheiro de novo. Existia uma certa autonomia dos funcionários que trabalhavam
direto nos locais em relação a escolha de atividades a serem feitas com o público. Por
meio desse trabalho conheci a Babilônia e foi essa certa autonomia inicial que
possibilitou que eu e os moradores, em sua maioria crianças e jovens, nos
conhecêssemos. Nos confrontamos com nossas realidades e aos poucos os meus olhos
romantizados para aquele espaço ganharam outras leituras. Foi bonito esse reconhecer-se,
eramos nós e nossas histórias e quem sabe o livro, foram três anos de segunda à sexta.

Os problemas começaram a surgir a medida em que as vivências dentro da favela não


cabiam mais no discurso do projeto. A discrepância entre a realidade que aos poucos eu
conhecia, dentro das possibilidades do se conhecer como não moradora, cotidianamente e
os discursos das reuniões do projeto eram nitidamente dicotômicas. A empresa
patrocinadora exigia cada vez mais e mais burocracias, quantidades de livros adotados,
resultados imediatistas, atividades superficiais para o uso de imagens e todo e qualquer
confrontamento era respondido em um discurso assistencialista de como se fosse a
comunidade que precisasse do projeto e não ao contrário. Essa experiência faz relação
direta ao artigo da Veganó em que em determinado momento a autora faz uma
comparação a utilização da arte, nesses casos, como uma vitrine propagandista, onde não
há preocupação por uma efetiva emancipação social.

Muito jovem, insegura e ganhando funções que não estavam ao meu alcance cumpri-las
por falta de experiência quebrava algumas regras, mas não ia além por medo da perda do
emprego e por ausência de conhecimento necessário para me empoderar de razões. O
relato de minha primeira vivência em uma comunidade ligado a um projeto de
responsabilidade social me serviu como marco para o ponto de partida e criação do grupo
Histórias que Contamos. Outros projetos vieram e com eles muitos dos problemas se
repetiam e pretendo aqui aqui apontar alguns como exemplo:

1. Atividades que não proporcionam continuidade: Geralmente há uma preocupação


com a megalomania, são esteticamente convincentes porém frágeis no que se diz a
conteúdo. O intuito é o de produzir imagens para que a empresa possa divulgar a sua
falsa generosidade perante os próprios problemas que as mesmas geram. Em pouco
tempo o projeto acaba refrisando mais uma vez o abandono e a frustração da falta de
recursos para a continuidade da atividade.

2- Circulação financeira: Esse tópico é um dos fatores que mais denunciam tal atividade
como propagandista. Vende-se que há extrema preocupação no local com propagandas
assistencialistas porém não há nenhum interesse na circulação financeira do local. Muitos
projetos esbanjam recursos financeiros mas poucos empregam os próprios moradores.

3- Distanciamento: Não há um englobamento da própria cultura comunitária como


forma de promover o fortalecimento do que é produzido nas favelas.

4- Burocratização: As exigências da empresa acabam por dificultar e engolir a


possibilidade de aprofundamento do trabalho.

Esses são alguns de muitos problemas frequentes de projetos em detrimento do lucro e


da propaganda empresarial. Em meu último trabalho, em um projeto de responsabilidade
social vinculado à TRANSPETRO conheci Viviane Rodrigues, integrante do grupo
Histórias Que Contamos. Foi por conta de frequentes relações abusivas dentro do projeto
em contradição ao que acreditávamos de fato para a transformação social que idealizamos
o nosso próprio caminhar, pedimos demissão e fomos atrás da busca pela liberdade.
“Ninguém se conscientiza separado dos demais. A consciência se
constitui como consciência do seu mundo. Se cada consciência tivesse o
seu mundo as consciências se desencontrariam em mundos diferentes e
separados- seriam mônadas incomunicáveis.”

FREIRE, Paulo, 1987

-PARTE 2: Morro da Babilônia

Reta final para as eleições de 2018, muitas gentes indo as ruas para conversar sobre
democracia. Medo e muita união. A criação do grupo Histórias que Contamos surgiu
também sob esse quadro. Queríamos de alguma forma um modo de continuar falando
sobre democracia e foi necessário nos revisitar. O que sabíamos e gostávamos mais de
fazer? Contar e ouvir boas histórias. Quando saí do projeto no morro da Babilônia, havia
saído com uma sensação de querer muito voltar para aquele espaço de maneira autônoma.
Ligamos um fato a outro e escolhemos a Babilônia. Em nossa primeira visita pude
perceber em como a minha imagem estava ligada a Banca de Livros. “Tia a biblioteca vai
voltar?” Aos poucos fomos conversando que fisicamente não, mas que estávamos
pensando em fazer visitas para nós criarmos a nossa própria biblioteca de dentro da
cabeça.

O morro da Babilônia situado no Leme do Rio de Janeiro é uma favela da Zona Sul com
vista para o mar, características essas propícias para o processo de gentrificação.
Localizada em uma área nobre da cidade é alvo de especulação imobiliária e com ela o
aumento de custo de vida e a desconfiguração do espaço. Muitos moradores vivem de
turismo ou como vendedores ambulantes da praia porém muitas vezes não é o suficiente
comparado ao nível do padrão que precisam estar a par e mudam para as zonas mais
distantes dos grandes centros da cidade. Deste modo embranquecem a zona sul, maquiam
feridas abertas do estado e enfraquecem a identidade cultural do local. “Aqui nos anos 90
tinham mais de dez terreiros, agora sabe quanto temos? Nenhum! “ reclama Alírio
morador do morro da Babilônia sobre as recorrentes mudanças de espaço. Modificar é
mudar memórias. A Babilônia é uma pequena favela em que quase todo mundo tem um
grau de parentesco, o clima é de cidade de interior mas sem o descanso das casas e do
tempo. Os adultos passam o dia todo fora e as crianças são muito presentes, brincam
bastante pelas ruas com tranquilidade por não ser um local de muitos alvos de conflitos
diretos. Assim que revisitamos a Babilônia, sabíamos que era com o público infantil que
iríamos trabalhar. E como tínhamos necessidade do fazer, não demoramos muito para a
elaboração do projeto, realizamos um financiamento coletivo com o custo bem pequeno
para a compra de materiais como instrumentos, cordas para pular, material de papelaria e
uma chita para demarcação do espaço que iriamos realizar nossos encontros.

PARTE 3- Histórias que Contamos e a comunidade.

“”Nas culturas orais, o conhecimento adquirido por várias gerações ao


longo dos tempos é armazenado na memória. Nessas culturas, os
anciãos têm um lugar privilegiado porque representam a memória viva
de seus antepassados. Referindo-se a eles, os povos africanos, que
guardaram muito dos valores e das tradições da cultura oral, costumam
dizer: “ Na África, cada velho que morre é uma biblioteca que se
queima.””

SORSY, Inno, 2005 p.3

Por qual razão o conto como ponto de partida? A cultura oral é algo que só sobrevive se
permanecer viva no imaginário coletivo. Em tempos de distorção de nossa história, é
preciso cuidar, se encontrar, ouvir e ser ouvido. A arte de contar histórias só se dá pelo
encontro e é uma forma de dividir universos particulares coletivamente. O ato de fabular
em conjunto faz com que a fantasia caiba na realidade, e esta difere da alienação. A
proposta não é sobre passar por cima da realidade e sim de forma conjunta através da
fabulação despertar o interesse pela própria realidade, pela história de sua casa, de sua
família, da sua cidade.
- Estórias de antigamente é assim que já foram há muito tempo?

- Sim,filho.

- Então antigamente é um tempo, Avó?

- Antigamente é um lugar

- Um lugar assim longe?

- Um lugar assim dentro.

Ondjaki- Avó Dezanove e o Segredo Soviético.

O História que Contamos é um ato de celebração de encontros. Mensalmente subimos a


Babilônia e em um local determinado da comunidade estendemos um tecido grande de
Chita, com instrumentos para tocar, e sentamos em roda. Esperamos. As crianças
começam a chegar a experimentar os instrumentos – e agora, a nos reconhecer- sentam na
roda e começamos o nosso diálogo geralmente pelo viés musical, estímulo esse que se
deu com a entrada de mais uma integrante Samantha Jones. A cada encontro levamos
uma história. O encontro é bastante aberto pois há uma preocupação de estarmos com e
para a Babilônia. Após contarmos as histórias, desenhamos em conjunto a continuação ou
reflexões sobre elas, contamos juntos e no desenrolar do encontro muitas outras histórias
são criadas. Tem sempre um momento que partimos para o físico, para as brincadeiras
populares pois a faixa etária a que somos contemplados são crianças de 5 à 10 anos,
bastante diversa mas todas com muita energia para brincar, produzir e criar. Á medida
que os encontros foram acontecendo fomos aprendendo as melhores formas de acesso,
mas ainda é tudo muito novo. O Histórias que Contamos é um momento de liberdade por
isso os encontros são sempre diferentes em suas qualidades. É um projeto autônomo sem
recursos finaneiros, mas que não exige muitos custos, é palavra e relação.

Algumas questões já atravessam nosso caminho, não é fácil encontrar e manter as tais
fissuras que se refere John Holloway em seu artigo ”Como fissurar o capitalismo” entre
elas estão; a entrega do nosso tempo a ele em relação ao tempo das obrigações cotidianas,
o empoderamento de nossos nãos para a entrada de interesses midiáticos e políticos,
formas de manter o projeto futuramente e realização de uma estrutura mais sólida para a
assimilação do pensamento lúdico e político. Para combater algumas questões também
criamos uma lista da qual nomeamos de “possíveis utopias” com sonhos nossos e das
crianças para o desenrolar de nossos encontros como forma de resistir com
afeto.Começamos pela prática com o que tínhamos em mãos e agora sentimos que
conquistamos mais propriedade no que estamos fazendo. O acesso a diversas
metodologias, formas de se fazer e sobretudo colocar-nos à luz de Paulo Freire
contribuíram para o fortalecimento de que é apenas pela liberdade do oprimido que é
viável começar a verdadeira revolução.

Referências bibliográficas:

- HOLLOWAY, John. Fissurar o Capitalismo.United States: Pluto Press, 2010

- FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

- VIGANÓ, Suzana Schmidt. As Regras do Jogo:A ação Sociocultural em Teatro e o


Ideal Democrático. São Paulo: editora Hucitec,2006

- AVELAR, Gislayne e SORSY, Inno .O Ofício do Contador de Histórias. São Paulo:


Martins Fontes, 2005

- BOAL, Augusto. O Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1975

- NOGUEIRA, Márcia Pompe. Buscando uma interação poética e dialógica com a


comunidade. Urdimento: 2002

- ONDJAKI. A Avó Dezanove e o Segredo Soviético. São Paulo: Seguinte 2008

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