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Robert Smithson
Ele riu com brandura: ‘Eu sei: Não há dores, críticos e curadores” na Galeria A. M.
saída. Não pela Barreira. Talvez isso não Sachs (uma carta que eu recebera pelo cor-
seja o que eu queria, afinal. Mas isso... reio naquela manhã me convidava para “en-
isso... – Ele olhou fixamente para o trar no jogo antes que a exposição acabasse
Monumento – Parece tudo errado al- em 4 de outubro”); Walter Schatzki estava
gumas vezes. Eu simplesmente não con- liquidando “Pinturas, desenhos, aquarelas” a
sigo explicar. É a cidade toda. Isso faz “33 1/3% de desconto” Elinor Jenkins, o “ro-
com que eu me sinta fora de controle. mântico realista”, estava expondo nas Gale-
Então fico tendo esses flashes...’ rias Barzansky, mobiliário inglês dos séculos
Henry Kuttner, Piloto brincalhão 18 e 19 à venda em Parke-Bernet, “Novas
Direções na Arte Gráfica Alemã” na Casa
Hoje em dia nossas câmeras pouco so- Goethe, e na página 29 havia a coluna de
fisticadas gravam a seu modo o nosso John Canaday com texto [sobre] Temas e
mundo apressadamente arranjado e as variações usuais. Olhei para uma repro-
pintado. dução borrada de Paisagem alegórica, de
Vladmir Nabokov, Convite para uma Samuel F. B. Morse, no topo da coluna de
decapitação Canaday; o céu era um sutil cinza de papel
de jornal; e as nuvens pareciam manchas de
No sábado, 30 de setembro de 1967, fui ao suor remanescentes de um famoso aquare-
edifício Port Authority na esquina da Rua 41 lista iugoslavo cujo nome esqueci. Uma pe-
com a Avenida 8. Comprei o New York Ti- quena estátua com o braço direito para o
mes e um livro em brochura chamado alto encarava um açude (ou seria o mar?).
Earthworks (Trabalhos de terra), de Brian W.
Edifícios “góticos”, na alegoria, tinham apa-
Aldiss. Em seguida dirigi-me à bilheteria 21 e
The Monuments of Passaic, rência evanescente, enquanto uma árvore
comprei bilhete só de ida para Passaic. Segui
1967, imagens extraídas da desnecessária (ou seria uma nuvem de fu-
então até o andar de embarque dos ônibus
série de 24 fotografias em maça?) parecia inflar-se no lado esquerdo da
preto e branco a partir de (plataforma 173) e subi no de número 30 da
negativos originais de 7,6 x Companhia de Transporte Inter-City. paisagem. Canaday se referia à imagem como
7,6cm “comparável seguramente a outras represen-
Fonte das imagens: Robert Smithson,
Sentei e abri o Times. Dei uma olhada na tações alegóricas das artes, ciências e altos
seção de arte: uma “Seleção de coleciona- ideais que as universidades fomentam”. Meus
Le paysage entropique 1960/1973.
Marseille: MAC, 1994
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caos unitário. Como era sábado, muitas cano. Na verdade, a paisagem não era paisa-
máquinas não estavam sendo usadas, pa- gem alguma, mas “um tipo particular de
recendo então criaturas pré-históricas pre- heliotipia” (Nabokov), um tipo de mundo
sas na lama, ou melhor, máquinas extintas – de cartão-postal autodestrutivo, de imorta-
dinossauros mecânicos sem pele. No limiar lidade fracassada e grandeza opressiva. Esti-
da era pré-histórica das máquinas havia ca- ve vagando em um filme de imagens que eu
sas suburbanas pré e pós-Segunda Guerra quase não conseguia imaginar, mas, justamen-
Mundial. As casas se espelhavam até perder te quando fiquei perplexo, vi uma grande
a cor. Algumas crianças atiravam pedras umas placa que explicava tudo:
nas outras perto de uma vala. “Agora você
SUAS TAXAS DE PEDÁGIO EM AÇÃO
não vai mais entrar no nosso esconderijo.
Juro!”, declarou uma menina loura que tinha Rodovia Federal Departamento de Comércio
sido atingida por uma pedra. Norte Americano
Enquanto eu andava ao longo do que resta- Recursos de Crédito Ofício de Estradas Públicas
va de River Drive, vi um monumento no 2.867.000 Recursos da Rodovia Estadual
meio do rio – uma draga com um longo cano
acoplado. O cano era sustentado em parte 2.867.000
por uma armação de pontões, enquanto o
Departamento Rodoviário Estadual de Nova Jersey
resto dele se estendia por aproximadamen-
te três quarteirões ao longo da margem do Esse panorama zero parecia conter ruínas às
rio até desaparecer dentro da terra. Era pos- avessas, isto é, todas as novas edificações que
sível ouvir detritos batendo na água que pas- eventualmente ainda seriam construídas. Tra-
sava por dentro do grande cano. ta-se do oposto da “ruína romântica” porque
as edificações não desmoronam em ruínas
Perto dali, na margem do rio, encontrava-se
depois de serem construídas, mas se erguem
uma cratera artificial que continha um tanque
em ruínas antes mesmo de serem construídas.
de água límpida, e ao lado da cratera
Essa mise-en-scène antirromântica sugere a
protuberavam seis canos largos esguichando
desacreditada ideia de tempo e muitas ou-
a água do tanque para o rio. Constituía-se
tras coisas “ultrapassadas”. Mas os subúrbios
assim uma fonte monumental, de onde saíam
existem sem passado racional e sem os “gran-
seis chaminés horizontais que pareciam estar
des eventos” da história. Ah, talvez haja umas
inundando o rio com fumaça líquida. O gran-
poucas estátuas, uma lenda e umas quinqui-
de cano estava conectado de algum modo
lharias, mas não há nenhum passado – ape-
enigmático à fonte infernal. Era como se o
nas o que passa para o futuro. Uma utopia
cano estivesse secretamente sodomizando
menos um fundo, um lugar onde máquinas
algum orifício tecnológico escondido, levan-
são ídolos, o sol se tornou vidro e a fábrica
do um monstruoso órgão sexual (a Fonte)
de concreto de Passaic (River Drive, 253) tem
ao orgasmo. Um psicanalista pode dizer que
bons negócios em PEDRA, BETUMINOSOS,
a paisagem exibia “tendências homossexuais”,
AREIA E CIMENTO. Passaic parece cheia de
mas não vou chegar a essas crassas conclu-
sões antropomórficas. Vou simplesmente afir- “buracos”, comparada com a cidade de Nova
mar: “Era isso que estava lá”. York, que parece compacta e sólida, e esses
buracos em certo sentido são os vazios mo-
Mapa em negativo Ao longodo rio em Rutherford, era possível numentais que definem, sem tentar, os tra-
mostrando a região dos ouvir a voz fantasmagórica de um sistema ços de memória de uma série de futuros
monumentos ao redor do de alto-falantes e, mais fracos, os gritos de abandonados. Esses futuros se encontram em
rio Passaic uma multidão em um jogo de futebol ameri- filmes utópicos classe B, que passam a ser
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e “blocos” do tamanho de edifícios. A qual- sintomas da progressiva meningite ce-
quer momento meus pés estavam aptos a rebral: o esvaziamento do cérebro.
cair através do chão de papelão. Estou con- Luis Sullivan**
vencido de que o futuro está perdido em
algum lugar nos depósitos de lixo do passa- Agora eu deveria ter a intenção de provar a
do não histórico; está nos jornais de ontem, irreversibilidade da eternidade usando uma
nos anúncios insípidos de filmes de ficção experiência de recursos escassos para com-
científica, no falso espelho de nossos sonhos provar a entropia. Imagine com o olho de
rejeitados. O tempo transforma as metá- sua mente a caixa de areia dividida em duas
foras em coisas e as guarda em depósitos com areia preta de um lado e areia branca
frios, ou as coloca nos playgrounds celestiais do outro. Pegamos uma criança e a fazemos
dos subúrbios. correr no sentido horário dentro da caixa
completando 100 voltas, até que a areia se
Será que Passaic tomou o lugar de Roma, a misture e comece a ficar cinza; depois disso
Cidade Eterna? Se certas cidades do mundo a fazemos correr no sentido anti-horário, mas
forem colocadas lado a lado em linha reta e o resultado não será a restauração da divi-
ordenadas de acordo com o tamanho, a são original e sim grau ainda maior de cinza
começar por Roma, onde Passaic estaria e aumento da entropia.
nessa progressão impossível? Cada cidade
seria um espelho tridimensional que refleti- É claro que, se filmássemos tal experiência,
ria a cidade seguinte para a existência. Os poderíamos provar a reversibilidade da eter-
limites da eternidade parecem conter tais nidade passando o filme de trás para frente,
ideias nefandas. O último monumento era mas então, mais cedo ou mais tarde, o pró-
uma caixa de areia – ou uma maquete de prio filme iria estragar ou se perder e entrar
deserto. Sob a luz morta da tarde de Passaic, no estado de irreversibilidade. De algum
o deserto se torna um mapa de infinita de- modo, isso indica que o cinema oferece uma
sintegração e esquecimento. Esse monumen- escapatória ilusória ou temporária da disso-
to de partículas diminutas resplandecia sob lução física. A falsa imortalidade do filme dá
o sol brilhando de modo desolado, sugerin- ao espectador a ilusão de controle sobre a
do a sombria dissolução de continentes in- eternidade – mas os “superastros” estão
teiros, a secagem de oceanos – não havia desaparecendo gradualmente.
mais florestas verdes e altas montanhas –
tudo o que existia se resumia a milhões de Robert Smithson (1938-1973), um dos artistas mais ino-
grãos de areia, um vasto depósito de ossos vadores e contestadores de sua geração, foi figura de
e pedras pulverizados, formando poeira.
ponta da Land Art. Através de sua prática artística e
ensaística, seu trabalho desempenhou papel radical na
Cada grão de areia era uma metáfora morta modificação das fronteiras artísticas da cultura contem-
que se igualava à atemporalidade, e quem porânea. Ver: http://www.robertsmithson.com/
decifrasse tais metáforas seria levado atra-
vés do falso espelho da eternidade. Essa cai- Tradução Pedro Sussekind
xa de areia de algum modo se dobrava como Revisão técnica Cecilia Cotrim
cova aberta – uma cova dentro da qual as
crianças brincam alegremente.
* Publicado originalmente em Artforum, dezembro 1967:48.
...todo senso de realidade se foi. Em seu A primeira versão dessa tradução apareceu em O Nó