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INTRODUÇÃO
No entanto, quem lê adultos, leia também instituições; pois esta história que contamos, lança luzes
sobre crianças prisioneiras da escola, da Igreja, da legislação, do sistema econômico e, por fim, da
FEBEM, numa linhagem extensa de tarefas e obrigações que as desdobravam, no mais das vezes,
em adultos. Enfaticamente orientadas para o aprendizado, o adestramento físico e moral e para o
trabalho, perguntamo-nos se havia entre elas tempo e espaço para o riso e a brincadeira.
Perguntamo-nos se em algum momento elas se sentiam realmente crianças.
Resgatar a história da criança brasileira é dar de cara com um passado que se intui, mas que se
prefere ignorar, cheio de anônimas tragédias que atravessaram a vida de milhares de meninos e
meninas. O abandono de bebês, a venda de crianças escravas que eram separadas de seus pais, a
vida em instituições que no melhor dos casos significavam mera sobrevivência, as violências
cotidianas que não excluem os abusos sexuais, as doenças, queimaduras e fraturas que sofriam no
trabalho escravo ou operário foram situações que empurraram por mais de três séculos a história da
infância no Brasil. Contudo, se é verdade que desta história surge uma imagem do autoritarismo e
indignidade impostas por adultos às crianças, surge também uma história de amor materno e
paterno, de afeto e de humanidade das inúmeras pessoas que acima de preconceitos e interesses
mesquinhos, deixaram-se sempre sensibilizar com aqueles que, antes de tudo, são os mais carentes
e indefesos dos seres humanos.
Uma das características marcantes dos trabalhos aqui reunidos é a busca das vozes dessas crianças
através da pesquisa e da revalorização do documento histórico. Uma garimpagem na imensa, frag-
mentária e fascinante massa documental em arquivos e bibliotecas, levou os autores a empreender
a descoberta exaustiva e diligente de documentos sobre o passado da criança brasileira que lhes
permitiu ter um outro olhar, uma outra percepção sobre a infância. As cartas, memórias, registros e
cartilhas trazem, no entanto, a fala do adulto sobre a criança. Foi preciso ler nas entrelinhas, decifrar
lacunas e apontar temas a serem proximamente desenvolvidos para que o cenário ficasse mais
completo. O silêncio, contudo, permanece quanto aos jogos e brincadeiras, a literatura infantil, a
saúde e a educação. Há ainda pistas sobre os "filhos de criação", estes personagens do cotidiano no
passado e no presente, que apenas tangenciamos.
Por isso, fomos até os primeiros momentos da então colônia de Santa Cruz para observar a tentativa
de adestramento físico e mental a que foram submetidas as crianças indígenas, pelos jesuítas (Del
Priore). Examinaram-se aspectos da sexualidade infantil, como a pederastia, desnudando a carga de
violentos preconceitos que já existiam nas Minas setecentistas (Mott) bem como também a
discriminação racial na adoção de "enjeitadinhos mulatos" (Mello e Souza).
No século XIX, o sofrimento da criança tornava-se especialmente palpável, pois este é o momento
por excelência do "enjeitamento" que teve entre as crianças negras do Rio de Janeiro as suas maiores
vítimas (Lima/Venâncio). Na Bahia, no mesmo período, a Lei do Ventre Livre modificava as
relações parentais e o destino das crianças filhas de escravos (Mattoso). Já aos finais do século XIX,
a Roda dos Expostos, instituída pela Santa Casa de Misericórdia promovia uma espécie de
infanticídio maquiado com as crianças abandonadas à sua porta (Moreira Leite). A virada do século
acusa a presença de crianças no trabalho fabril, sofrendo acidentes e distantes de qualquer proteção
da lei (Moura). A Primeira República marca a entrada em cena do conceito de menoridade e
adensam-se as relações entre Estado e Sociedade para disciplinar o menor (Londono), até que a
FUNABEM e a FEBEM, encarnando o Estado-preceptor, passam a ditar regras sobre a
marginalização do menor abandonado (Passetti).
História da Criança no Brasil quer ser uma contribuição na tarefa de reconstituir o difícil caminho
que a sociedade brasileira tem percorrido para reconhecer, na criança, um ser autônomo e digno.
Caminho este, que supõe de nós adultos, a renúncia a nossa natural onipotência.