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HISTÓRIA DA CRIANÇA, NO BRASIL

MARY DEL PRIORE, ORG.

INTRODUÇÃO

Nesta coletânea, os trabalhos de autores, pesquisadores do Centro de Demografia Histórica da


América Latina (CEDHAL), pertencente à FFLCH/USP, fazem parte integrante de uma pesquisa
desenvolvida sob orientação da profa. dra. Maria Luiza Marcílio e sob os auspícios da FINEP, sobre
a história do menor carente e abandonado no Brasil. Esta coletânea reúne artigos que procuram
esclarecer como viveram ou eram vistas as crianças em vários momentos da história do Brasil. Seus
textos apontam também para o trânsito entre o anonimato - durante anos elas foram tão-somente
crianças -, e o presente, que pretende reconhecer-lhes seu papel protagônico e sua condição de
cidadãos com direitos e deveres.
Vale lembrar que a história da criança fez-se à sombra daquela dos adultos. Entre pais, mestres,
senhores ou patrões, os pequenos corpos dobraram-se tanto à violência, à força e às humilhações,
quanto foram amparados pela ternura e os sentimentos maternos. A trajetória dos pequenos entre
os grandes ‒ homens ou mulheres ‒, permitiu aos autores vislumbrar o papel que desempenhou a
infância numa sociedade vincada por contradições econômicas e mudanças culturais, ao mesmo
tempo em que se revelava o comportamento dessa sociedade em relação à vida e à morte de seus
filhos.

No entanto, quem lê adultos, leia também instituições; pois esta história que contamos, lança luzes
sobre crianças prisioneiras da escola, da Igreja, da legislação, do sistema econômico e, por fim, da
FEBEM, numa linhagem extensa de tarefas e obrigações que as desdobravam, no mais das vezes,
em adultos. Enfaticamente orientadas para o aprendizado, o adestramento físico e moral e para o
trabalho, perguntamo-nos se havia entre elas tempo e espaço para o riso e a brincadeira.
Perguntamo-nos se em algum momento elas se sentiam realmente crianças.

Resgatar a história da criança brasileira é dar de cara com um passado que se intui, mas que se
prefere ignorar, cheio de anônimas tragédias que atravessaram a vida de milhares de meninos e
meninas. O abandono de bebês, a venda de crianças escravas que eram separadas de seus pais, a
vida em instituições que no melhor dos casos significavam mera sobrevivência, as violências
cotidianas que não excluem os abusos sexuais, as doenças, queimaduras e fraturas que sofriam no
trabalho escravo ou operário foram situações que empurraram por mais de três séculos a história da
infância no Brasil. Contudo, se é verdade que desta história surge uma imagem do autoritarismo e
indignidade impostas por adultos às crianças, surge também uma história de amor materno e
paterno, de afeto e de humanidade das inúmeras pessoas que acima de preconceitos e interesses
mesquinhos, deixaram-se sempre sensibilizar com aqueles que, antes de tudo, são os mais carentes
e indefesos dos seres humanos.

Uma das características marcantes dos trabalhos aqui reunidos é a busca das vozes dessas crianças
através da pesquisa e da revalorização do documento histórico. Uma garimpagem na imensa, frag-
mentária e fascinante massa documental em arquivos e bibliotecas, levou os autores a empreender
a descoberta exaustiva e diligente de documentos sobre o passado da criança brasileira que lhes
permitiu ter um outro olhar, uma outra percepção sobre a infância. As cartas, memórias, registros e
cartilhas trazem, no entanto, a fala do adulto sobre a criança. Foi preciso ler nas entrelinhas, decifrar
lacunas e apontar temas a serem proximamente desenvolvidos para que o cenário ficasse mais
completo. O silêncio, contudo, permanece quanto aos jogos e brincadeiras, a literatura infantil, a
saúde e a educação. Há ainda pistas sobre os "filhos de criação", estes personagens do cotidiano no
passado e no presente, que apenas tangenciamos.

Por isso, fomos até os primeiros momentos da então colônia de Santa Cruz para observar a tentativa
de adestramento físico e mental a que foram submetidas as crianças indígenas, pelos jesuítas (Del
Priore). Examinaram-se aspectos da sexualidade infantil, como a pederastia, desnudando a carga de
violentos preconceitos que já existiam nas Minas setecentistas (Mott) bem como também a
discriminação racial na adoção de "enjeitadinhos mulatos" (Mello e Souza).

No século XIX, o sofrimento da criança tornava-se especialmente palpável, pois este é o momento
por excelência do "enjeitamento" que teve entre as crianças negras do Rio de Janeiro as suas maiores
vítimas (Lima/Venâncio). Na Bahia, no mesmo período, a Lei do Ventre Livre modificava as
relações parentais e o destino das crianças filhas de escravos (Mattoso). Já aos finais do século XIX,
a Roda dos Expostos, instituída pela Santa Casa de Misericórdia promovia uma espécie de
infanticídio maquiado com as crianças abandonadas à sua porta (Moreira Leite). A virada do século
acusa a presença de crianças no trabalho fabril, sofrendo acidentes e distantes de qualquer proteção
da lei (Moura). A Primeira República marca a entrada em cena do conceito de menoridade e
adensam-se as relações entre Estado e Sociedade para disciplinar o menor (Londono), até que a
FUNABEM e a FEBEM, encarnando o Estado-preceptor, passam a ditar regras sobre a
marginalização do menor abandonado (Passetti).

Do período colonial à República dos anos 30 assistimos ao desenrolar e ao desdobramento desses


assuntos complementares, anotando que se a criança é o grande ausente da História, ela é, por um
paradoxo, o seu motor. Ela é o adulto em gestação. Apenas estudando a infância e compreendendo
as distorções a que esteve submetida, teremos condições de transformar o futuro das crianças
brasileiras. E de nos transformar através delas.

História da Criança no Brasil quer ser uma contribuição na tarefa de reconstituir o difícil caminho
que a sociedade brasileira tem percorrido para reconhecer, na criança, um ser autônomo e digno.
Caminho este, que supõe de nós adultos, a renúncia a nossa natural onipotência.

Mary Del Priore e Fernando Londono

In PRIORE, M. (Org) História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.

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