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FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil.

3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2001.

Para uma sociologia histórica da infância no Brasil – Marcos Cezar de Freitas (p.11-18)

p. 12

“Se fôssemos arriscar uma visão panorâmica do século XX através de tais documentos [cito abaixo
alguns listados pelo autor], com suas variáveis descritivas, normativas e ideológicas, poderíamos
sinalizar o seguinte dado: as carências infantis de toda ordem têm sido associadas a uma questão
maior que é a do desenvolvimento econômico (em muitos casos de tipo industrial) reconhecido
como “chave” para a solução de tais problemas.”

O autor cita como exemplos relatórios da UNICEF e de instituições brasileiras sobre a situação da
infância. Menciona o recenseamento escolar apresentado por Sampaio Dória (1921), as
considerações do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais sobre crianças faveladas em escolas
públicas (1959), o relatório da UNICEF sobre Infância nos países em desenvolvimento (1964) e
outro sobre A situação mundial da infância em 1995.

“(...) faço menção a esse tópico para salientar que a infância como questão pública, assim como a
escola e a saúde, etc., cada vez mais tem sido cada vez mais tem sido considerada um dado
subordinado ao tema desenvolvimento, de modo que, ao se considerar quês os poderes
governamentais estão incapacitados para gerir e fomentar o desenvolvimento econômico, reitera-
se, paulatinamente, dos mesmos poderes a obrigação de pensar aqueles temas como questão de
Estado. Ao meu ver, isso é um risco à civilização ou, para dizer de outra forma, um alimento
substancioso à barbárie.”

p. 13

“Não é arriscado dizer que a história social da infância no Brasil é também a história da retirada
gradual da questão social infantil (com seus corolários educacionais, sanitaristas etc.) do universo
de abrangência das questões de Estado.”

p. 15
“O advento da República (...) ensejou uma revalorização da infância, uma vez que o imaginário
republicano reiterava de diversas maneiras a imagem da criança como herdeira do novo regime que
se instalava.”

p. 15-18

Marcos Cezar de Freitas apresenta os autores e as discussões dos próximos capítulos do livro.
A infância no século XIX segundo memórias de viagem – Miriam L. Moreira Leite (p. 19-52)

p.20

“A criança passa a ser ‘visível’ quando o trabalho deixa de ser domiciliar e as famílias, ao se
deslocarem e dispersarem, não conseguem mais administrar o desenvolvimento dos filhos
pequenos. É então que as crianças transformam-se em ‘menores’, e como tal rapidamente
congregam as características de abandonados e delinqüentes.”

Continuação do texto anterior. “No século XIX, criança, por definição, era uma derivação das que
eram criadas pelos que lhe deram origem. Era o que se chamava ‘crias’ da casa, de responsabilidade
(nem sempre assumida inteira ou parcialmente) da família consanguínea ou da vizinhança.”

p.20-21

Em textos estatísticos da época, pouco confiáveis, segundo a autora, “as crianças, como as
mulheres, têm a sua inserção no grupo familial configurada muitas vezes pela / ocultação no interior
do grupo. (...) as denominações adotadas para designar os dados são frequentemente ambíguas e
disfarçam preconceitos raciais, tradicionais e de classe. Lembre-se que crianças ‘sem pai’ podem ser
órfãos, filhos ilegítimos, expostos, ou ter um pai ausente. A denominação de ‘bastardos’, com todas
as conotações do termo, pesa sobre elas como um decreto de exclusão. Abandonados, mendigos e
infratores frequentemente foram confundidos sob o nome de ‘menor’, que nunca designa filhos de
famílias das camadas médias e altas, e tem conotações negativas desqualificantes.”

Continuação do trecho anterior. “Além de não serem ainda um foco de atenção especial, as crianças
eram duplamente mudas, nas palavras de Katia de Queirós (Del Priori, 1992). Não eram percebidas,
nem ouvidas. Nem falavam, nem delas se falava.”

p.21

“Para o código filipino, que continuou a vigorar até o fim do século XIX, a maioridade se verificava
aos 12 anos para as meninas e aos 14 para os meninos, mas para a Igreja Católica, que normatizou
toda a vida das famílias nesse período, 7 anos já é a idade da razão.”
p. 25

Marcas do século XIX: o sistema escravista de trabalho, a educação informal e a fragilidade da vida
humana (alto índice de morbidade e mortalidade). “As febres e o cólera dizimaram arraiais em
pânico, já castigados pela multiplicação de casos de bócio, cegueira e tuberculose, afora as doenças
infantis e adultas de que não se conheciam as causas.”

p. 25 / 26

“As memórias mostram aspectos internos e às vezes marcas psicológicas deixadas por essa presença
da morte no cotidiano das famílias. Dão pormenores dos processos de preparação para a vida adulta,
entre as crianças brancas e as negras. As mães como ‘mestras naturais’, as primas ensinado canto e
piano, as amas recontando as tradições das famílias e dos escravos, os tios abrindo as bibliotecas / e
introduzindo sobrinhos e netos nos autores, encomendando livros na cidade e na corte, ou se
propondo a dar aulas de geografia e de física. As mães ensinavam as meninas e as escravas a rezar,
a fazer renda, a costurar. Os oficiais ensinando a ferrar animais, a fazer sapatos, a construir cercas.
As doceiras a fazer doces e flores artificiais, a dissecar animais e plantas, a fazer e enfeitar pratos.”
A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 1726-1950 – Maria Luiza
Marcilio (p. 53-79)

p. 53

“A roda de expostos foi uma das instituições brasileiras de mais longa vida, sobrevivendo aos três
grandes regimes de nossa História. Criada na Colônia, perpassou e multiplicou-se no período
imperial, conseguiu manter-se durante a República e só foi extinta definitivamente na recente
sacada de 1950! Sendo o Brasil o último país a abolir a chaga da escravidão, foi ele igualmente o
último a acabar com o triste sistema da roda dos enjeitados.”

“Quase por século e meio, a roda de expostos foi praticamente a única instituição de assistência à
criança abandonada em todo o Brasil. É bem verdade que, na época colonial, as municipalidades
deveriam, por imposição das Ordenações do Reino, amparar toda criança abandonada em seu
território. No entanto, essa assistência, quando existiu, não criou nenhuma entidade especial para
acolher os pequenos desamparados. As câmaras que ampararam seus expostos limitaram-se a pagar
um estipêndio irrisório para que amas-de-leite amamentassem e criassem as crianças.”

Rodas de expostos: sistema inventado na Europa medieval, na Itália, para evitar que as crianças
fossem abandonadas no lixo, em porta de igrejas, em casa de famílias abastadas etc. e acabassem
morrendo antes de serem encontradas. O sistema garantia o anonimato de quem entregava a criança.

p. 54

As primeiras rodas de expostos foram instaladas em Portugal no final da Idade Média. O sistema foi
adotado em todo o império ultramarino. No Brasil, durante o período colonial, no século XVIII,
foram instaladas rodas nas três principais cidades: Salvador, depois Rio de janeiro e, por último, no
Recife. Antes das rodas, os bebês, que deveriam ser cuidados pelas municipalidades, acabavam, na
verdade, sendo criados por famílias, por caridade ou porque tinham interesse na mão de obra
gratuita da criança quando ela crescesse.

p. 55

“(...) a quase totalidade destes pequenos expostos nem chegavam [sic] à idade adulta. A mortalidade
dos expostos, assistidos pelas rodas, pelas câmaras ou criados em famílias substitutas, sempre foi a
mais elevada de todos os segmentos sociais do Brasil, em todos os tempos – incluindo neles os
escravos (...).” A referência do dado está publicada em:

MARCILIO, M. L. Abandoned Children in Brazil: Infant mortality rates in the 19th Century. In:
Seminar on “Child and Infant Mortality in the Past. International Union for the Scientific Study on
Population”. Committee on Historical Demography. Montreal, Canadá, 1992. 12 p. (Mimeo.)

“Vendo o fenômeno do abandono de crianças na perspectiva histórica ampla, abrangente, podemos


afirmar, sem incorrer em grandes erros, que a maioria das crianças que os pais abandonaram não
foram assistidas [sic] por instituições especializadas. Elas foram acolhidas por famílias substitutas.
No entanto, bem entrado neste nosso século, último deste milênio, os chamados até bem
recentemente ‘filhos de criação’ não tinham seus direitos garantidos pela lei.”

p. 56 / 57

Origens da roda de expostos: relacionada ao surgimento das confrarias de caridade. A confraria do


Santo Espírito nasceu em Montpellier, sul da França (1160 e 1170), junto a um hospital, para assistir
aos pobres, peregrinos, doentes e expostos. “O papa Inocêncio II, chocado com o número de bebês
encontrados mortos no Tibre, transferiu essa irmandade para Roma, criando o Hospital de Santa
Maria in Saxia (1202-1204) (...). / Nascia assim o primeiro hospital destinado a acolher as crianças
abandonadas e assisti-las. Nele foi organizado um sistema institucional de proteção à criança
exposta que logo seria copiado nas principais cidades italianas e em toda a Europa. Séculos depois
seria exportado para outros continentes.”

p. 57

O Hospital de Roma os expostos entravam a partir de uma “roda” e era era rigorosamente vedada a
busca de informações sobre o expositor.

Forma da roda: “Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na
janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a
criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e a criança já estava do outro lado do muro.
Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um bebê acabava de
ser abandonado e o expositor furtivamente retirava-se do local, sem ser identificado.”
p. 57/58

Esses cilindros, nos mosteiros, já eram usados para colocar mensagens e comida para os religiosos
enclausurados, evitando qualquer contato com o mundo exterior. “Como os mosteiros medievais
recebiam crianças doadas por seus pais, para o serviço de Deus – os chamados oblatos -, muitos
pais que queriam abandonar um filho utilizaram a roda dos mosteiros para nela depositarem o bebê.
Esperavam eles que o pequeno não só teria os cuidados dos monges, como seria batizado e poderia
receber uma educação aprimorada (como no caso do oblato). [Parágrafo] Desse uso indevido das
rodas dos mosteiros, surgira o uso da roda para receber expostos, fixadas nos muros dos hospitais
que / foram sendo criados a partir dos séculos XII e XII, para cuidar dos meninos abandonados.

p. 58

Em Portugal, as primeiras instituições de assistência direta à criança surgiram por iniciativa das
mulheres da alta nobreza, infantas e rainhas. As instituições foram mantidas por esforços da
sociedade, do clero e da Coroa. A primeira casa de expostos foi fundada em 1273, pela rainha D.
Beatriz, esposa de D. Afonso II – chamava-se Hospital de meninos órfãos de Lisboa.

p. 59

Em 1543, por decreto do D. Manuel, a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa “passou a incorporar
em seus compromissos a assistência à infância abandonada e a institucionalizar esse serviço, dentro
da melhor forma de assistência caritativa. (...) Em 1657 uma casa de expostos foi fundada em
Lisboa, para assistir aos expostos deixados na roda. Essa sistemática foi seguida por outras
Misericórdias do Reino.”

Continuação, em outro parágrafo, do trecho anterior. “A tradição passou para o Brasil quando, no
século XVIII, se reivindicou à coroa a permissão de se estabelecer uma primeira roda de expostos
na cidade de Salvador da Bahia, junto à sua Misericórdia e nos moldes daquela de Lisboa.”

p. 60-62

A roda da Bahia foi instalada em 1726. Na cidade do Rio de Janeiro foi instalada a segunda, em
1738. A última roda do período colonial foi instalada no Recife em 1789. Após a Independência,
uma roda foi instalada em São Paulo, em 1825. Em 1828, a chamada Lei dos Municípios eximia os
municípios que tivesse Misericórdias a dar assistência aos expostos. Essa função ficaria a cargo das
Misericórdias, mudando a ênfase da roda: antes, ela tinha caráter de caridade; com a lei, passou a
ser uma ação filantrópica, associando-se ao Estado.

p. 64

“Essa mesma lei [dos Municípios – v. trecho anterior] foi feita também para incentivar a iniciativa
particular a assumir a tarefa de criar as crianças abandonadas, liberando as municipalidades desse
serviço. Com base nela surgiram, dentro do novo espírito filantrópico e utilitarista, algumas rodas
de expostos Quase todas essas foram de diminutas dimensões e de precárias condições para assistir
os pobres pequenos enjeitados.”

p. 65

Em Pernambuco, a lei provocou a abertura de uma segunda roda, dessa vez em Olinda, chamada
“filial” da do Recife. Há registro dessa roda em relatório de Presidente de Província em 1846.

p. 68.

“Em meados do século XIX, seguindo os rumos da Europa liberal, que fundava cada vez mais sua
fé no progresso contínuo, na ordem e na ciência, começou forte campanha para a abolição da roda
dos expostos. Esta passou a ser considerada imoral e contra os interesses do Estado. Aqui no Brasil
igualmente iniciou-se movimento para sua extinção. Ele partiu inicialmente dos médicos
higienistas, horrorizados com os altíssimos níveis de mortalidade reinantes dentro das casas de
expostos. Vidas úteis estavam sendo perdidas para o Estado. Mas o movimento insere-se também na
onda pela melhoria da raça humana, levantada com base nas teorias evolucionistas, pelos
eugenistas.”

Continuação do trecho anterior, em outro parágrafo. “Os esforços para extinguir as rodas no país
tiveram adesão dos juristas, que começavam a pensar em novas leis para proteger a criança
abandonada e para corrigir a questão social que começava a perturbar a sociedade: a da
adolescência infratora. Por sua vez os homens de letras apontavam em romances sociais a
imoralidade da roda.” A autora cita como exemplo a A luneta mágica, de Joaquim Manoel de
Macedo.

O movimento pela extinção das rodas no Brasil não foi tão forte e não conseguiu extingui-las no
século XIX. A autora não diz quando a roda do Recife deixou de funcionar, mas as de São Paulo,
Salvador e Porto Alegre só foram deixadas em 1950, “sendo as últimas do gênero existentes nessa
época em todo o mundo ocidental”.

p. 68 / 69

“As rodas de expostos foram, assim, muito poucas em número, insuficientes para atender à
demanda de todas as épocas. Para / começar, foram criadas tardiamente, apenas no século XVIII e,
mesmo assim, até inícios do século XIX, só havia roda em três cidades capitais. Foi, portanto, um
fenômeno essencialmente urbano e pontual.”

p. 69-70

Grande parte dos expostos morria nas ruas, sem assistência. Outra grande parte era acolhida por
famílias substitutas, que nem sempre era rica (muitos não tinham escravos).

p. 70

“As crianças expostas em casa de famílias muitas vezes eram recenseadas, na lista de habitantes de
finais do século XVIII e princípios do XIX junto com a lista dos filhos legítimos da família, sem
distinção. Isso pode mostrar que, nestes casos, a família os havia incorporado como filhos. Este fato
era recorrente entre os roceiros e sitiantes pobres, que praticamente nenhuma preocupação tinham
com a transmissão de propriedades. A herança sempre foi o nó para a aceitação dos expostos (e dos
filhos naturais) como filhos pelas famílias. Está na essência do sistema dominante.”

“(...) as famílias estéreis ou que só puderam ter um ou dois filhos, acabavam ‘adotando’ uma criança
abandonada.”

p. 73
A maior parte das crianças abandonadas não ia para as rodas, mas essa é o “setor” de infância que
tem melhor documentação. “Esta instituição manteve sempre uma variedade de livros de registro
individuais das crianças expostas sob sua proteção. Na maioria dos casos, os expostos era
acompanhados em toda sua vida, registrando-se nos livros os importantes momentos de sua vida e
da morte.”

p. 74

“A roda foi instituída para garantir o anonimato do expositor, evitando-se, na ausência daquela
instituição e na crença de todas as épocas, o mal maior, que seria o aborto e o infanticídio. Além
disso, a roda poderia servir para defender a honra das famílias cujas filhas teriam engravidado fora
do casamento. Alguns autores atuais estão convencidos de que a roda serviu também de subterfúgio
para se regular o tamanho das famílias, dado que na época não havia métodos eficazes de controle
de natalidade.”

Continuação do trecho anterior, em outro parágrafo. “A criança depositada na roda, recolhida pela
rodeira, era logo batizada. Fazia-se um inventário de todos os eventuais pertences que trazia
consigo, inscrevia-se no livro de entrada dos expostos cada uma das peças de vestuário e objetos
que vestia (...). Transcreviam-se os bilhetes ou escritinhos que eventualmente o expositor deixava
preso à roupa do bebê. No livro de entrada dos expostos, já registravam a criança com seu nome de
batismo, e por vezes suas condições de saúde aparentes. A cada criança reservava-se uma página do
grande livro de registro de entradas, pois todas as eventualidades de sua vida seriam
cronologicamente aí inscritas (data da morte e causa mortis, saídas para casas de ama, para prestar
serviços, casamento, emancipação da casa etc.).”

Poucas foram as rodas que tinham condições de asilar as crianças. Normalmente, os bebês era
entregues a amas de leite, com quem podia ficar até os 3 anos ou até os 7 ou 12 anos, quando
podiam ser exploradas para o trabalho (remunerado ou em troca de comida). As amas, enquanto
ficavam com as crianças, recebiam um pequeno estipêndio.

p. 75

Fraudes no sistema. “Não foi raro o caso de mães levarem seus filhos na roda e logo a seguir
oferecerem-se como amas-de-leite do próprio filho, só que agora ganhando para isso. Além disso,
dentro da tradição do Direito Romano, toda criança escrava depositada na roda tornava-se livre; no
entanto, muitos senhores mandaram suas escravas depositarem seus filhos na roda, depois irem
buscá-los para serem amamentados com estipêndio e, funda a criação paga, continuarem com as
crianças como escravas. (...) Freqüente ainda era a ama-de-leite não declarar a morte de uma criança
à Santa Casa e continuar por algum tempo recebendo o seu salário de ama, como se o bebê estivesse
vivo.”

“Como as Misericórdias não podiam abrigar todas as crianças que voltavam do período de criação
em casas de amas, e como estas só em minoria aceitavam continuar criando as crianças, passado o
período em que recebiam salários grande parte das crianças ficava sem ter para onde ir. Acabavam
perambulando pelas ruas, prostituindo-se ou vivendo de esmolas ou de pequenos furtos.”

p. 76

Para evitar essa situação, a roda buscava casa de famílias que pudessem receber as crianças como
aprendizes de algum ofício, no caso dos meninos (sapateiro, caixeiro, balconista, ferreiro etc.), ou
como empregadas domésticas, no caso das meninas. Os meninos também podiam ser enviados para
as Companhias de Aprendizes Marinheiros ou de Aprendizes do Arsenal de Guerra, “verdadeiras
escolas profissionalizantes dos pequenos desvalidos, dentro da dura disciplina militar”.

“No estaleiro a criança vivia ao lado de presos, escravos e degredados. Sua alimentação era tão
fraca, à base quase só de farinha de mandioca, que acabavam definhando e muitos morrendo.”

“A menina, devido à preservação da honra e castidade, era alvo de maiores preocupações pela Santa
Casa. Para elas foram criadas junto às maiores Misericórdias um Recolhimento de meninas órfãs e
desvalidas que estiveram sempre muito ligadas às casas de expostos.”

p. 77

Houve tentativas de solução da questão dos expostos. No Recife, na Bahia e em Fortaleza, foram
criadas colônias agrícolas “orphanologicas”, seguindo o modelo das colônias de Mettray, da França,
ou de Red Hill, da Inglaterra.
p. 78

Fim do século XIX, início do XX: início da fase assistencialista filantrópica, que foi preponderante
no Brasil até os anos 1960. “A caridade, confrontada com uma nova realidade econômica e social,
foi absorvendo objetivos e táticas de filantropia, como as ‘prevenções das desordens’ por exemplo;
a filantropia, por sua vez, não abandonou inteiramente os preceitos religiosos.”

“A filantropia surgia como modelo assistencial, fundamentada na ciência, para substituir o modelo
da caridade. Nesses termos, à filantropia atribuiu-se a tarefa de organizar a assistência dentro das
novas exigências sociais, políticas econômicas e morais, que nascem com o início do século XX no
Brasil. (...) A assistência filantrópica, particular ou pública, imperava [a parti dos anos 1930].”

Entre as entidades filantrópicas surgidas nos anos 1930 estão o Rotary Club e a Liga das Senhoras
Católicas.

p. 79

“Só a partir dos anos de 1960, houve funda mudança de no modelo e de orientação na assistência à
infância abandonada. Começava a fase do estado de Bem-Estar, com a criação da FUNABEM
(1964), seguida da instalação, em vários estados, das FEBEMs. Com a Constituição Cidadã de
1988, inseriam-se em nossa sociedade os Direitos Internacionais da Criança, proclamados pela
ONU nos anos de 1950. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 e a LOAS
[Lei Orgânica da Assistência Social, Lei nº 8.742/93] (1993), o Estado assume enfim sua
responsabilidade sobre a assistência à infância e à adolescência desvalidas, e estas tronam-se
sujeitos de Direito, pela primeira vez na História.”
A cidade de menores: uma utopia dos anos 30 – Mariza Corrêa (p. 81-99)

p. 83 / 84

“Depois da Primeira Guerra, vários tratados internacionais estabeleceram novas regras de


convivência entre os países membros da Sociedade das Nações, e um dos resultados desses tratados
foi a aprovação de uma Declaração dos Direitos da Criança, na Conferência de Genebra, em 1921
[no site da ONU conta que foi em 1924]. No Brasil, o que se decretou foi um Código de Menores,
em 1927, do qual constava a proibição do trabalho de / crianças até 12 anos e sua impunidade até os
14 anos. Dos 14 aos 18 anos, as crianças poderiam ser internadas em ‘estabelecimentos especiais’
(...). As crianças da categoria dos 14 aos 18 anos, desde então numa espécie de limbo legal, serão
transformadas em menores, e os estabelecimentos especiais destinados a elas, bem como os agentes
sociais que delas deveriam se encarregar, passam a ser objeto da atenção de médicos e juristas, de
psicólogos e pedagogos. E, ainda que houvesse algumas divergências a respeito do modo como
deveria se distribuir o peso desse cuidado, ora com ênfase no Estado, ora na sociedade, ora na
Igreja, (...)e, dois pontos cruciais parece ter havido concordância entre eles: primeiro, a questão do
menor abandonado era também uma questão de institucionalização, e, em segundo lugar, os agentes
preferenciais nesse cuidado institucional seriam mulheres.”

p. 84

“Categorias vistas quase como sinônimos desde que se tratou de sua participação no mercado de
trabalho, os menores e as mulheres serão dissociados à medida que se ampliam os deveres da mãe
em relação aos seus filhos, à medida que as mulheres reclamam para sai a ampliação da definição
de maternidade para além dos limites do lar e são chamadas a ocupar funções maternas fora dele.
Dissociam-se também à medida que a categoria menor passa a ser quase sinônimo de menor
abandonado e de delinqüente em potencial.”

p. 84 / 85

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “Boa parte da retórica sobre a ampliação dos
deveres da mãe era resultado da influência do discurso higienista a respeito da família, mas não só:
assim como as mães são chamadas a observar / os desvios de personalidade de seus filhos, numa
política de prevenção típica da atuação médica na época, as professoras primárias são também
conclamadas a observar seus alunos ‘problema’. É a partir da rede formada pelas escolas primárias
que serão postas em prática certas medidas preconizadas pelas propostas higienistas.”

p. 86

“(...) é principalmente às mães que se destinam seus conselhos [os conselhos higienistas]: ‘a
infância é a idade de ouro da higiene mental’ e ‘a maior responsabilidade desta educação higiênica
cabe às mães. (...) A figura da mãe vai se desdobrar na da professora primária e na da assistente
social, profissão que se formava na época, no bojo de uma série de atividades filantrópicas lideradas
por mulheres (...).”

p. 87-90

Nos anos 1930, surgem os primeiros cursos de serviço social, com quadros de estudantes entre
senhoras e moças católicas. A profissionalização do serviço social vestia-se do halo da continuidade
da função materna.

Citando IAMAMOTO e CARVALHO (1982): “A partir dos aspectos materiais de sua intervenção, o
Serviço Social deixa de ser uma forma de distribuição / controlada da exígua caridade particular das
classes dominantes para constituir-se numa das engrenagens de execução das políticas sociais do
Estado e corporações empresariais.” [IAMAMTO, Marilda; CARVALHO, Raul de. Relações sociais
e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez,
Celats, Lima, 1982]

p. 91

Leonídio Ribeiro, médico simpatizante das práticas higienistas da Itália fascista (que apontava
causas biológicas- como certos tipos de doenças - para a criminalidade), foi um dos responsáveis
pelo projeto da “Cidade dos Menores”, um local para onde as crianças abandonadas e de rua seriam
levadas. O projeto, do arquiteto Adelardo Caiuby, era conjugado com o de um presídio para adultos.

Citando Leonídio Ribeiro [Archivos, 1938]: “Para isso tive a felicidade de contar com a
colaboração de um grupo de especialistas, entre engenheiros, médicos e juristas, que gentilmente
estão cooperando comigo, a fim de tornar possível dotar a nossa cidade de um sistema completo e
eficiente de assistência, não só dos criminosos de hoje, o que é importante, mas principalmente dos
de amanhã, que são os menores abandonados e delinquentes.” [grifo meu]

p. 94

“A cidade de menores era tão utópica quanto outras construções planejadas pelo governo na época:
menos monumental do que o Palácio da Cultura e a Cidade Universitária, projetadas por arquitetos
italianos, compartilhava com elas uma visão total e totalizante do que seria a vida dos que deveriam
habitá-la.”

p. 94-95

A cidade dos menores seria habitada por crianças a partir dos 6 anos, que morariam nela até os 21.
Habitariam nela 1 mil habitantes, sem contar os funcionários. A cidade comportaria vários edifícios,
descritos minuciosamente: portaria, almoxarifado, centro educacional, oficinas, cinema, “lar dos
egressos” (onde ficariam os que fossem alocados em empregos externos), hospital, capela, cassino
dos funcionários (para o lazer dos que trabalhariam com as crianças), lavanderia, estádio e o lar. O
lar e a base do sistema e comportaria 36 crianças sob a direção de um casal. No lar, com dois
pavimentos, no térreo haveria sala de jantar, cozinha, despensa, sala de leitura, biblioteca, um
apartamento do vigilante e um quarto de observação. No andar superior, haveria três dormitórios
com doze camas cada, um apartamento para o casal, banheiros e rouparia. Cada lar ficaria em um
lote separado.

p. 95

“A descrição do arquiteto, quando comparada às prelações do especialista, parece mais um sonho de


higiene do que de higienização; parecia tratar-se de criar uma comunidade onde tudo funcionasse
(ele não esqueceu as árvores, nem o lixo), como não funcionada na ‘vida real cá fora’. Um
simulacro do lar (até com armários embutidos), da família (expressa também na privacidade
reservada ao ‘casal’), da vizinhança, do qual destoam no entanto os laboratórios e o ‘quarto de
observação’ (sem maiores explicações) que evoca imagens tristes, expulsas do projeto, mas que
teimam em voltar até na advertência de Nelson Hungria [jurista penalista] a respeito do modo como
seriam tratados os que fossem enviados à penitenciária, que era também modelo. (...) a expectativa
parece ser de continuidade: os criminosos de amanhã sendo socializados, na cidade dos menores,
para a longa carreira que os aguardava na penitenciária: a cada um de acordo com sua tendência, ou
predisposição.”

p. 95 / 96

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “Tanto o projeto arquitetônico que, de fato,
lembra mais alguns condomínios contemporâneos do que o sonho benthamiano de vigilância / do
século XIX, quanto a proposta médica nele embutida, entretanto, parecem estar em demasiado
desacordo com a sociedade na qual pretendem se instalar: a proposta higienista supõe, afinal, uma
sociedade higienizada, material e ideologicamente. Como conciliar o banho de água quente, a boa e
farta comida, a roupa limpa, na penitenciária e na cidade, com as condições de vida cá fora?”

p. 96

Continuação em outro parágrafo. “Se essa, como tantas outras utopias desse período de nossa
história, sobreviveu apenas no papel, nem por isso refletir sobre ela tem menos importância do que
se as perspectivas sombrias de controle completo dos indivíduos em instituições educacionais, de
saúde, de punição, tivessem, casa uma, logrado obter sucesso. Em certa medida, elas foram todas
muito bem-sucedidas em âmbitos menos espetaculares: nos currículos das escolas de medicina,
particularmente na constituição da medicina legal; nos currículos das faculdades de educação e de
serviço social, particularmente na constituição da psicologia educacional; nas instituições
penitenciárias e naquelas de segregação de crianças, particularmente no que se refere a uma
disseminação difusa da idéia de predisposição, tão cara aos ideólogos dos anos 30 e tão presente na
nossa vida cotidiana. E a vitória da idéia de que o menor (já sinônimo de menor abandonado) é um
delinquente em potencial pode ser aferida todos os dias, em nossos meios de comunicação de
massa.”
Arquitetura escolar republicana: a escola normal da praça e a construção de uma imagem de
criança – Carlos Monarcha (p. 101-140)

p. 102

“Preocupados com a acolhida dos 'recém-chegados' à vida republicana – os novos -, os republicanos


paulistas configuram uma arquitetura escolar caudatária do imaginário da época e promovem, por
meio de um discurso elaborado em estilo alto e idealizados – pleno da impressão do novo e do
messianismo político -, a construção de uma imagem de criança, subitamente valorizada e
representada como herdeira da República recém-instalada.”

p. 103

Cidade de São Paulo cresce. No terrenos altos, são construídos boulevards para as áreas burguesas,
ao estilo neoclássico e ecletista. As áreas alagadiças são reservadas aos bairros operários.

p. 104

“Na abertura da República, São Paulo despede o passado colonial e monárquico para transformar-se
em uma cidade cosmopolita, que concentra as funções de capital econômica, administrativa, política
e cultural do estado de São Paulo. Entretanto, o tecido arquitetônico, a atmosfera cosmopolita e a
retórica republicana dissimulam a presença de uma atmosfera saturada de tenções causadoras de
luto e desolação: acumulação progressiva das populações, irrupção de epidemias, pobreza e
indigência das massas urbanas, especulação imobiliária, escassez de imóveis e alta dos aluguéis; e,
no âmbito mais geral da nação, o jacobinismo político e a guerra civil – a Revolta da Armada, a
Revolução Federalista e a Revolta de Canudos.”

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “A imagem contrastada e opressiva da cidade


de São Paulo torna-se algo inverossímil, deixando entrever a existência de mundos opostos: um
centro urbano com boulevards aristocráticos e luminosos, convivendo com aglomerações operárias
constituídas por ruas sombrias e confusas, com populações encurraladas em cortiços.”

p. 104 / 105
Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “Nesse momento histórico de mudanças
aceleradas, consolida-se o poder de uma classe social ativa, em ascensão para uma posição de
domínio econômico e espiritual e interessada em aprofundar a experiência republicana,
empenhando-se arduamente na separação entre esfera pública e esfera privada. (...) / [parágrafo] Em
outras palavras, os republicanos paulistas – representantes do ‘governo para o povo’ – organizam
um investimento político e cultural com vistas *a ordenação do corpo social, segundo os valores
republicanos: as instituições político administrativas são representadas como impessoais e
objetivam restaurar e resgatar uma origem e uma soberania esquecidas.”

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “No âmbito desse investimento social, político
e cultural, ao Estado cabe assumir a função de preceptor dos novos: o povo e a criança, ambos
representados como portadores da menoridade intelectual e social.”

“Cristaliza-se, assim, a concepção de governo político como ‘administração de coisas’ e a noção de


liberdade como satisfação das necessidades materiais, fazendo da política uma arte científica.”

p. 105 / 106

“Dentre as inúmeras idealizações e concretizações que visam a estabilizar e perpetuar o regime


recém-instalado, ressaltam-se aquelas relativas à instrução pública, que nesse momento assume
características / de uma quase religião cívica, cuja finalidade é dotar a sociedade de coesão,
mediante a educação dos novos – povo e criança – recém-chegados à vida republicana. (...)
Tomados de súbita ternura e sentimento de justiça social, os republicanos explicitam um vago
pensamento socialista informado pelas diferentes teorias positivistas do século XIX – comtismo,
darwinismo, spencerianismo, entre outros. Mediante um sacerdócio esclarecido e filantrópico,
anseiam por levas as luzes ao povo-criança, a fim de incorporar esses novos à ordem social, por
meio do trabalho regular e da instrução.”

p. 107

Interessante. “Segundo a tradição do mundo ocidental, as praças são ocupadas por instituições
representativas da autoridade espiritual, representada pelas igrejas e catedrais e, por vezes,
seminários e conventos, e do poder temporal, representado pelo executivo, legislativo e judiciário.
Poder temporal e autoridade espiritual disputam entre si a condução dos destinos dos habitantes da
cidade. A localização da Escola Normal de São Paulo em uma praça pública – aparentemente
predomínio do poder temporal sobre a autoridade espiritual – é indicativa da fusão entre o secular e
o religioso, originando uma quase religião cívica, presidida por sacerdotes laicos, a qual se instala e
se expande na cultura escolar urbana paulista da virada do século [XIX para XX].”

p. 109

“A localização da Escola Normal de São Paulo na Praça da República é uma alusão à superioridade
moral e intelectual e vitalidade da República. O conjunto funciona imaginariamente como um
centro de comunhão cívica que convoca os homens sensíveis e as almas de boa vontade a
partilharem de uma sociedade composta de cidadãos, que, além de se reconhecerem como iguais,
estão envolvidos na edificação de um mesmo porvir.”

p. 112

“A escala monumental, a elegância severa e a sobriedade na decoração do edifício sugerem


reciprocidade entre grandeza dimensional e grandeza moral: a arquitetura transforma-se em
pedagogia eloqüente que ensina aos indivíduos os princípios da sociedade perfeita. Dessa maneira,
os instituidores da República acrescentam imagens às idéias.” O estilo arquitetônico do edifício, à
época, era dita “renascentista moderno”, o que proclamava, imaginariamente, a filiação dos
republicanos paulistas à Renascença européia.

p. 113

“A escala monumental, o estilo histórico, o isolamento do edifício ornamentado por oito estátuas de
olhar fixo e pétreo – alegorias das Artes e das Ciências -, circundado por jardins sinuosos e gradis
de ferro artisticamente trabalhados, e a iluminação produzida por lâmpadas de arco voltaico, todos
esses aspectos conferem aparência européia ao conjunto arquitetônico, simbolizando para os
homens da época a presença do mundo moderno e seus princípios fundamentais: civilização,
técnica, progresso, laicidade, igualdade e democracia.”

“(...) para os instituidores da República, essa cellula mater da instrução pública e da sociedade
representa, sobretudo, um falanstério, na acepção ampla do termo: conjunto de estruturas
arquitetônicas, administrativas, econômicas e morais, sobra o qual se assentará a sociedade
transparente envolvida na abundância e trabalho atraente, conduzida por um governo político, que
se dissolve na 'administração das coisas', substituindo-se a servidão e os conflitos sociais pela
harmonia e moralidade pública, mediante a instrução dos novos.”

Definição de falanstério do dicionário Priberam online: s. m. Edifício que, no sistema de Fourier,


deve habitar a falange com as três condições de economia, utilidade e magnificência. [Disponível
em: <http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=falanst%C3%A9rio>. Acesso em: 8 out
2009]

p. 118

“Sob a proteção e a inspiração da República – alegorizada na figura feminina [ficava no hall do


prédio da escola]-, essas almas em formação através do estudo e da introspecção são envolvidas
pelos símbolos nacionais – a bandeira e o hino nacional -, pelo culto aos heróis emergentes –
Tiradentes e Silva Jardim – e pela voga dos livros de leitura de Felisberto de Carvalho e do livro
Coração: diário de um aluno, Edmundo de Amicis.”

p. 122

“Coerentemente com sua visão de mundo, os republicanos paulistas configuram uma arquitetura
escolar que, reunindo o grandioso e o funcional, promove a construção de uma imagem de criança.
Diferentemente da representação produzida pela psicologia da infância da época – presente,
sobretudo, nas teorizações sobre métodos de / ensino, nos programas escolares e, de forma difusa,
na literatura escolar -, que procura caracterizar a 'marcha do espírito' da criança, associando
crescimento biológico e aptidões de cada ciclo de idade, a imagem da criança segundo os cânones
do discurso republicano, elaborado em estilo alto e idealizador, assume, sobretudo, natureza
sociológica e política.”

“ Nesse momento histórico, representado como Ano 1 da nova era, o discurso republicano, pleno de
messianismo político, promove uma súbita valorização da criança, representando-a como herdeira
da República, alegorizada esta na figura da mulher amorosa e abnegada. Para esse ponto de vista,
cabe ao Estado exercer o papel de preceptor dos novos, subtraindo-os do âmbito do privado, do
familiar e afetivo e conduzindo-os para o âmbito do público, social e político. Em outras palavras,
esse discurso convida os novos a herdarem o novo regime e a protagonizarem, no transcorrer de
suas vidas, uma história fabular, cujo enredo deve ser a liberdade e o progresso.”
A LBA, o Projeto Casulo e a Doutrina de Segurança Nacional – Fúlvia Rosemberg (p. 141-
161)

p. 141

“O Brasil, como outros países subdesenvolvidos, tem sido bombardeado com assessorias,
recomendações, propostas de organismos internacionais e intergovernamentais. Sua presença na
elaboração e implantação de políticas sociais nas áreas da infância e dos direitos reprodutivos tem
sido marcante: têm sido atrizes no jogo de tensões, conflitos e coalizões que marcam as políticas
sociais brasileiras destinadas à pobreza.”

Continuação do trecho anterior, em outro parágrafo. “Nesse texto, procuro mostrar como se deu o
infeliz casamento entre organismos intergovernamentais e o governo militar no Brasil no campo da
educação infantil de massa dos anos 70. O casamento foi possível porque o namoro ocorreu na
paisagem da guerra fria, e a aliança compartilhada foi a concepção chave de 'participação da
comunidade' para a implantação de programas destinados às crianças pobres.”

p. 142

A autora localiza na guerra fria como o “fermento” para a produção do pressuposto societário que
embasou a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e a proposta de Desenvolvimento de
Comunidade (DC).

p. 143

“A versão brasileira da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento constituía um corpo


teórico, integrando, segundo Moreira Alves (1984), três grandes teorias: uma teoria sobre o
potencial geopolítico do Brasil e seu papel na política mundial; uma teoria de guerra, incluindo aí a
subversão interna; um modelo específico de desenvolvimento econômico associado e dependente
combinando elementos da economia keynesiana ao capitalismo de Estado (Moreira Alves, 1984,
p.20)”

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “A tese geopolítica que sustentou as DSNs na
América Latina foi a da divisão do mundo em dois grandes blocos políticos e de poder, o Ocidente
cristão e democrático e o expansionismo soviético comunista.”

“A tese geopolítica brasileira sustentava uma concepção de Nação como um todo homogêneo,
dotado de uma única vontade, sem conflitos ou interesses divergentes (…).”

“As diferenças sociais observadas foram atribuídas à existência de regiões e de populações


'desintegradas' do processo nacional de desenvolvimento.”

p. 144

“A DSN postulava que vivia-se [sic] um momento de guerra total entre o Ocidente cristão e o
Oriente comunista; para o Brasil, alinhado ao Ocidente, os objetivos nacionais confundiam-se com
a defesa do Ocidente e o combate ao comunismo.”

“Para a DSN, a guerra total era sem quartel, não se restringindo mais à esfera militar, envolvendo a
vida política, econômica e cultural.”

p. 145

“A verdadeira segurança, para a DSN, pressupunha um processo de desenvolvimento econômico e


social: 'econômico porque o poder militar está também essencialmente condicionado à base
industrial e tecnológica do país. Social, porque mesmo um desenvolvimento econômico satisfatório,
se acompanhado de excessiva concentração de renda e crescente desnível social, gera tensões e
lutas que impedem a boa prática das instituições e acabam comprometendo o próprio
desenvolvimento econômico e a segurança do regime'.” Citando o Marechal Castello Branco.

p. 145/146

“(...) as políticas de assistência – entre elas o Projeto Casulo (...) – são parte das estratégias de
combate à guerra psicológica [atribuída aos comunistas]. Atuar nos bolsões de pobreza, chamados
'bolsões / de ressentimentos (Silva Pinto, 1984, p.11), constituiria medida preventiva ao
expansionismo do 'comunismo internacional'. (…) Daí o caráter preventivo que orientou tais
programas em detrimento de uma concepção de política social que respondesse a direitos de
cidadania.”

Cita como referência o estudo Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil, de Safira B.


Ammann (Cortez, 1982)
p. 146

Proximidade entre a DSN e a ideologia do DC: visão bipolarizada do mundo (combate entre
“democracia” e comunismo) e “concepção de sociedade que se rege pelos supostos do equilíbrio e
da harmonia”.

O objetivo era melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das comunidades, integrá-las à
vida nacional e capacitá-las para “contribuir plenamente para o progresso do país” (ONU apud
Ammann, 1982, p.25).

p. 146/147

“Desta concepção de sociedade, a existência de desigualdades sociais é explicada através de


processos de causação circular: os pobres estariam, por insuficiência, desintegrados do processo de
desenvolvimento. Para pôr fim a esta desintegração seria necessário atuar, de forma integrada (nas
áreas de saúde, alimentação, educação), principalmente junto às crianças (…).

Esta concepção de pobreza e de programas para recuperação de crianças pobres parece ter sido,
também, adotada pelo UNICEF até pelo menos 1979, Ano Internacional da Infância (...)”

p. 147

“Em 1970, foi criada a Coordenação dos Programas de Desenvolvimento de Comunidade (CPDC)
(…). O DC e a participação comunitária constituíam, no período, estratégias propostas para a
integração social e nacional de pessoas ou regiões desintegradas do processo de desenvolvimento.”

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “Com base nesse fundamento, criaram-se
programas, acionaram-se mecanismos, destinaram-se incentivos visando à integração regional e
social. Com a participação da comunidade no custeio dos programas.”

Construção de um modelo federal e de massa de pré-escola, baseado nesses princípios.

p. 150
Em 1967, o Departamento Nacional da Criança (DNCr) elabora o Plano de assistência ao pré-
escolar, inspirado em conferência da UNICEF da qual participou em 1965, em Santiago, no Chile.
“Nesse documento estão presentes as orientações que guiaram as propostas governamentais de pré-
escola de massa elaboradas no Brasil durante a década de 70 e parte da de 80.”

p. 151

O DNCr propôs, no Plano, a construção de centros de recreação, que só foram implantados em


1977: o Projeto Casulo. “Suas características foram: objetivos de assistência e de desenvolvimento
integral da criança, que ampliaram a perspectiva exclusiva de preparação para a escolaridade
obrigatória, mas que adotaram uma forte conotação preventiva; perspectiva de atendimento de
massa, ampliando a cobertura a baixo custo, o que seria conseguido através de construções simples,
uso de espaços ociosos ou cedidos pela comunidade e a participação de trabalho voluntário ou semi-
voluntário de pessoas leigas (a comunidade). (…) Tratou-se, portanto, de um modelo centralmente
elaborado que ignorou particularidades e contradições nacionais ou regionais, fossem elas
econômicas, culturais, políticas ou propriamente educacionais e que, não obstante, necessitava para
sua implantação de adesão local (governamental ou comunitária) sem que fosse acompanhado da
contrapartida central de alocação suficiente de verbas.”

A LBA. “O programa de educação pré-escolar de massa – o Projeto Casulo – foi implantado em


1976 pela LBA, órgão federal de assistência social. A LBA havia sido criada em 1942, associada ao
esforço de guerra, como órgão de apoio aos pracinhas e suas famílias. Considerada como criadora e
criatura do serviço social no Brasil, a LBA desenvolveu, até a implantação do Projeto Casulo, uma
série de programas destinados à maternidade e à infância, localizados, não extensivos, com base no
voluntariado.”

p. 152

Os pobres são sempre ameaça... “O discurso da LBA para atuação junto à infância pobre conteve,
desde sua criação, um forte componente preventivo, adequando o estilo ao período em questão.
Assim, ao final da II Guerra Mundial, a perspectiva preventiva, que justificava a atuação do órgão
junto à infância, aparece com conotações eugênicas: a LBA orientava sua atividade e seus recursos
'na defesa de nossa raça, cuidando das mães e das crianças, os homens de amanhã' (LBA, Boletim,
1946, p.10-1); posteriormente, sua ação em prol da infância destinava-se a evitar 'a ociosidade e a
mendicância, vistos como consequência do abandono infantil e da decadência moral do meio'
(LBA, Boletim, 1960, p.15). No momento da criação do Projeto Casulo, o discurso da prevenção
adquiriu nova conotação: a da segurança nacional, pois os pobres poderiam ameaçar a integração
nacional.”

p. 154

“A primeira avaliação do projeto, efetuada no ano seguinte [1978] ao de sua implantação,


evidenciava já seus problema estruturais decorrentes do modelo a baixo custo com apoio da
comunidade: falta de pessoal capacitado; pouco conhecimento da cultura das famílias atingidas a
cujo nível educacional e econômico era atribuídas dificuldades no desenvolvimento de atividades;
inadequação do espaço físico e falta de água nos locais em que a creche era implantada; falta de
verbas e recursos humanos, materiais e equipamentos (…). Ou seja, já se percebia a dificuldade de
implantação de um programa apoiado em grande parte nos recursos de comunidades pobres.”

p. 155

“(...) a pré-escola de massa, atendimento pobre para pobre, estava sendo usada, também, como
alternativa mais barata à educação primária. (…) mesmo respondendo a uma reivindicação das
mulheres (como acontecera no Brasil), pode reforçar e gerar novas discriminações contra as
mulheres, as crianças pobre e negras, quando sua expansão ocorre através dos chamados modelos
'alternativos' destinados ao pobre.”

Abaixo, excerto do texto: Escola Superior de Guerra. Departamento de Estudos. TG 4-76. 4º


Trabalho de Grupo. Análise de conjuntura/interna. (Campo Psicossocial). CSG. SUBGRUPO3.
Previdência Social.

“Parágrafo 9 – Relativamente à Assistência Social, muito pouco tem sido feito, mormente se
levarmos em conta o caráter preponderante paternalista de nossos programas, que não
correspondem às necessidades dos assistidos, cujo número, segundo recente pronunciamento
ministerial, é da ordem de 25 milhões de pessoas, quase totalmente carentes em termos de
alimentação, habitação, vestuário, estado sanitário etc.”

(cont. em outro parágrafo) “É, o chamado quarto estrato da nossa sociedade, exatamente a grande
maioria da clientela para a qual é dirigida a LBA, com a missão de tentar obter o ingresso desse
enorme contingente de brasileiros ainda desassistidos na economia de mercado.”

A produção social da identidade do anormal – José Geraldo Silveira Bueno (p. 163-185)

p. 163

“Se a identidade social do anormal, como uma construção histórica, mantém alguma continuidade
no transcurso da civilização, é a de que, em todas as épocas, o meio social identificou, por algum
critério, indivíduos que possuíam alguma(s) característica(s) que não fazia(m) parte daquelas que se
encontravam entre a maior parte dos membros desse mesmo meio – não pela simples presença de
uma diferença, mas pelas consequências que tais diferenças acarretavam às possibilidades de
participação desse sujeito na construção coletiva de sobrevivência e reprodução de diferentes
grupamentos sociais, em diferentes momentos históricos.”

p. 164

“A concepção hegemônica moderna de anormalidade social tem utilizado como base o paradigma
biológico, na medida em que essa ciência já teria chegado a alto nível de certeza na distinção entre
o estado normal e o patológico, ao considerar a doença como um desvio do estado habitual (de
saúde), este último manifestado pela sua maior frequência, que corresponderia às condições de vida,
isto é, de dua própria manutenção.”

p. 168

“O termo norma remonta ao latim, o qual, por sua vez, é equivalente ao termo grego órtos, e se
refere, fundamentalmente, à gramática, isto é, à regulamentação do uso da língua, o que demonstra
a preocupação do homem na busca de regularidades em suas ações (CF. Canguilhem, 1982, p. 216).
Entretanto, o processo de normalização inerente às exigências da sociedade industrial constitui algo
radicalmente novo por atingir as mais diferentes atividades humanas (…)”

“(...) se o termo norma remonta à Antiguidade, seu derivado normal surge, na Europa, apenas no
século XVIII, mais precisamente na França, em 1759 e, mais do que isso, foi incorporado à
linguagem popular a partir de vocabulários específicos de duas instituições, a instituição escolar e a
instituição sanitária, cujas reformas ocorrem em consequência da mesma causa, ou seja, da
Revolução Francesa (…).” Ambas exprimem uma exigência de racionalização.

p. 169

“Se, por um lado, a escola normal se constitui na instituição social em que se ensina a ensinar, em
que se instituem os métodos pedagógicos e se procura formar os responsáveis pela transmissão de
conhecimentos suficientes para a integração das novas gerações às exigências das novas relações
sociais baseadas na industrialização, e o hospital vai se caracterizando não como o lugar da
reclusão, para que o doente desenganado aguarde a morte, mas, crescentemente, como a instituição
privilegiada, com recursos humanos e equipamentos que possibilitem a recuperação da normalidade
do doente, surgem, por outro lado, instituições que têm como função básica o isolamento de uma
parcela da população que, por característica peculiares da sua anormalidade, não têm, em última
instância, possibilidade de ser curada: os hospícios e as instituições para deficientes.”

p. 169-182

Considerações sobre a história das escolas voltadas para crianças com deficiência, na Europa e no
Brasil.
As políticas e os espaços para a criança excepcional – Gilberta Jannuzzi (p. 187-227)

Não li.
Infância de papel e tinta – Marisa Lajolo (p. 229-250)

p. 229

Interessante! “Enquanto objeto de estudo, a infância é sempre um outro em relação àquele que a
nomeia e a estuda. As palavras infante, infância e demais cognatos, em sua origem latina e nas
línguas daí derivadas, recobrem um campo semântico estreitamente ligado à ideia de ausência de
fala. Esta noção de infância como qualidade ou estado de infante, isto é, d'aquele que não fala,
constrói-se a partir dos prefixos e radicais linguísticos que compõem a palavra: in = prefixo que
indica negação; fante = princípio presente no verbo latino fari, que significa falar, dizer.”

p. 230

Continuação, em outro parágrafo e outra página, do trecho anterior. “Não se estranha, portanto, que
esse silêncio que se infiltra na noção de infância continue marcando-a quando ela se transforma em
matéria de estudo ou de legislação.”

Continuação do trecho anterior. “Assim, por não falar, a infância não se fala e, não se falando, não
ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. E, por não ocupar esta primeira pessoa,
isto é, por não dizer eu, por jamais assumir o lugar do sujeito do discurso, e, consequentemente, por
constituir sempre um ele/ela nos discursos alheios, a infância é sempre definida de fora.”

Continuação em outro parágrafo. “Esta reificação da infância, no entanto, cristalizada desde a


origem das falas que dela se ocupam, não é privilégio exclusivo dela, infância. Junto com crianças,
mulheres, negros, índios e alguns outros segmentos da humanidade foram ou continuam sendo
outros eles e outras elas no discurso que os define. Até que esperneiam, acham a voz e, na força do
grito, mudam de posição no discurso que, ao falar deles e delas, acaba constituindo-os e
constituindo-as. De objeto passam a sujeito, ou melhor dizendo, passam a sujeito e objeto
simultaneamente, que as posições se alternam no engendramento do discurso.”

Continuação em outro parágrafo. “Assinalar, no entanto, a alienação a que está desencontrada a


posição discursiva confina a infância, ao contruí-la e defini-la, não diminui a força das categorias e
definições pelas quais se fala da infância, quando a questão, como aqui, não é nem ontologia nem
epistemologia da infância: infância – como feminino ou negritude – não são substâncias ou seres de
existência autônoma (…): negritude, feminino e infância são categorias que só vivem no espaço
social em que são estabelecidas, negociadas, desestabilizadas e reconstruídas.”
Continuação em outro parágrafo. “Ou seja: muito embora os seres humanos tenham sempre nascido
frágeis, pequeninos e leves e – quando sobrevivem... - tenham sempre ganhado altura e peso ao
longo de muitos anos até que ficam fortes e seu tamanho se estabiliza, e seja sua idade contada por
anos, por luas, por chuvas, o significado de ser um ser humano deste ou daquele tamanho, com
muita ou com pouca altura, varia enormemente de um lugar para outro, de um tempo para outro”

p. 231

São “tantas infâncias quantas foram idéias, práticas e discursos que em torno dela e sobre ela se
organizem”.

Áreas de conhecimento que se ocupam, mais do que as outras, com a infância: psicologia, biologia,
psicanálise e pedagogia.

p. 232

“Foi, aliás, através de diferentes formulações destas disciplinas que começaram a circular diferentes
concepções de infância: primeiro, vendo a criança como um adulto em miniatura; depois,
concebendo-a como um ser essencialmente diferente do adulto, depois... Fomos acreditando
sucessivamente que a criança é a tabula rasa onde se pode inscrever qualquer coisa, ou que seu
modo de ser adulto é predeterminado pela sua carga genética, ou ainda que as crianças do sexo
feminino já nascem carentes do pênis que não têm (...)” etc. A autora acrescenta também a
Literatura construindo a imagem da infância.

“Em conjunto, artes e ciência vão favorecendo que a infância seja o que dizem que ela é... e,
simultaneamente, vão se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos
modos de ser infância.”

p. 233

Falando da literatura brasileira, mas acho que se aplica a outras áreas também. “Já vai longe o
tempo em que se podia acreditar numa imagem idílica de infância. Evocada numa perspectiva
otimista e saudosa, o início da vida humana costumava traduzir-se em imagens ingênuas, naturais e
positivas.” Imagem construída fortemente pela poesia romântica. “Esta representação edênica da
infância parece ter calado tão fundo no imaginário brasileiro (em função, talvez, da frequência com
que compareceu a antologias e manuais escolares) que se transformou em clichê, conjunto
empoeirado de metáforas, que acorre à boca de que quer que se prepare para falar da infância.”
Representação, lembra a autora, que fez calar outras.

p. 233 - 236

Fala da criança citada, embaçadamente, coberta por panos, aparecendo só as pernas, na carta de
Pero Vaz de Caminha. Também comenta, dessa vez mais detidamente, o filho de Iracema, do
romance de José de Alencar, que é levado à Europa com o pai português após a morte da mãe.

p. 236

Interessante e importante! “A fragilidade da infância foi e continua sendo artifício retórico poderoso
em nossa cultura. Com a lágrima que arranca dos olhos do leitor, o sentimentalismo que a imagem
da infância, particularmente da infância desvalida, provoca, costuma patrocinar a adesão de
corações sensíveis a ideias e causa variadas: às vezes, até, a causas altas e nobres e lúcidas. Como,
aliás, fez o autor de Iracema, ao reforçar o recado de seu livro, simultaneamente nostálgico e
nacionalista, com a inclusão, na história, da fragilidade de uma criança órfã e migrante.”

p. 236/237

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “Esta utilização da imagem da infância, como
reforço de teses que interessam ao mundo adulto, é antiga na literatura ocidental (...)”. / Exemplo na
literatura francesa: Le tour de la France par deux garçons, da década de 1870, a historinha de dois
órfãos que deixam a Alsácia-Lorena, ocupada pela Alemanha, em busca de familiares no resto da
França. A autora vê, no livro, a superposição dos valores família e pátria - “a perda de uma coincide
com a perda da outra e, por efeito de simetria, a reconquista da outra traz de troco aquela uma
perdida.”

p. 237
Exemplo semelhante ao livro francês, dessa vez na literatura brasileira: Através do Brasil, de Olavo
Bilac e Manuel Bonfim. Os meninos Carlos e Alfredo vivem peripécias percorrendo o Brasil atrás
do pai, tido como morto. A tarefa do livro era “difundir a ideia de um Brasil grande e unido”. Na
história, os meninos partem do Recife e chegam até uma estância gaúcha, passando pela Amazônia.

p. 237/238

Um livro italiano - Cuore, de De Amicis (1886) –, em forma de diário de um menino, relata


episódios vividos por crianças de escola. O livro, considera a autora, “é instrumento importante para
uma Itália que unifica, nos corações e nas mentes fisgados na leitura do livro, o Estado e o território
nacionais que Garibaldi unificava no campo de batalha e na política. O livro foi traduzido para o
português em 1891. /

“(...) sua popularidade é tal, que, em sua ápoca, mais do que o francês Le tour de la France, é a
história italiana que se torna uma espécie de modelo da literatura infantil e, enquanto modelo,
matriz de uma relação estreita entre literatura infantil e diferentes projetos nacionais. É, pelo menos,
nesta direção que aponta o comentário que em 1916 Monteiro Lobato, que se preparava para fundar
a literatura infantil brasileira moderna, faz para Godofredo Rangel, relativamente à inadequação
entre o livro italiano e o público brasileiro:

E de tal pobreza a tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos. Mais
tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis – um livro tendente a formar italianinhos. [Monteiro Lobato,
J. B. A barca de Gleyre. II vol. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1956]”

p. 239

Para a autora, a obra infantil de Monteiro Lobato pode seu um “bom exemplo verde-amarelo de
suporte infantil a propostas nacionais”. “No polo da positividade, as histórias do pica-pau amarelo
parecem fazer do sítio de Dona Benta um modelo social para o Brasil posterior a 1930, o que de
certa forma dá à obra infantil lobatiana papel de relevo no projeto de formação, reconstrução ou
modernização do país em que se empenha o escritor. Fica, por isso, sugestivo observar como a
presença de crianças em obras não infantis do mesmo Lobato muda de registro e traz para o texto
lobatiano uma tecla amarga de desesperança, já assinalada a propósito do texto de Alencar.” Para
explicar essa última característica, a autora expõe e discute trechos do conto “Negrinha”, publicado
em 1920 no livro homônimo.
p. 240 / 241

Entre as características levantadas pela autora, a que mais me chamou atenção foi a caracterização
da negrinha pela animalização. “(...) neste conto de Lobato prossegue a vinculação, já insinuada
pelo texto de Alencar, entre mundo infantil e mundo animal. Crianças mestiças, com sangue
indígena ou africano, nestas / duas representações separadas por um intervalo de mais de um século
[o filho de Iracema, de Alencar, e a Negrinha, de Lobato], sofrem igualmente o inevitável
rebaixamento a que a sociedade brasileira confina mestiços, negros e índio, menorizados que na
prática da vida em sociedade, quer como se vê na representação que desta vida em sociedade faz a
literatura.”

p. 243 / 244

Poema de Manuel Bandeira, “Meninos carvoeiros”, é apontado pela autora como outra
representação negativa da infância, uma constante na literatura brasileira. O texto foi publicado em
1921, em Ritmo dissoluto. Nele, “ao lado da miséria, pobreza e abandono já constituintes do conto
'Negrinha' de Lobato, surge o trabalho infantil.” / No texto também há a aproximação do mundo das
crianças com o mundo dos bichos (no espelhamento das crianças raquíticas e com os burros
magrinhos).

p. 244

No poema de Bandeira, aparece uma velhinha que recolhe os carvões que caem do chão, estando
mais excluída socialmente do que os próprios carvoeiros, por não participar das forças produtivas,
mesmo as marginalizadas. A parte em que a velhinha aparece na narrativa, sugestivamente, está
entre parentes.

“(...) não é nova a aproximação entre infância e velhice: esta aliança de extremos tem vida longa na
tradição da cultura infantil, manifestando-se, por exemplo, nas incontáveis figuras de anciãs
contadeiras de histórias cuja linhagem, inaugurada pela mère l'oye de Perrault (1697), cruza séculos
e fronteiras e chega até as mães pretas do Nordeste brasileiro, como os vultos que o mesmo
Bandeira evoca em tantos poemas e autobiografias.”
p. 244-246

A autora cita e comenta o texto testemunhal e autobiográfico “Minha Vida”, de Carolina Maria de
Jesus, transcrito no livro A Cinderela negra, de José Carlos Sebe Bom-Meihy e Robert Levine. O
texto falar de um episódio da vida da menina na escola, quando ela ouviu, pela primeira vez, seu
nome civil. Ela queria sair da sala para mamar (aos sete anos) e foi alvo de chacota (e agressão
física) da professora, que a deu reguadas na perna.

p. 246-249

Comenta a letra de “Pivete”, de Chico Buarque e Francis Hime. Narrativa/rotina de meninos


abandonados que vivem em ambientes urbanos: vender chiclete no sinal, roubar carros, usar drogas,
sonhar que é Pelé, Mané (Garrincha) e Ayrton (Senna).

p. 249

Conclusão: a infância na literatura brasileira é mais de sofrimento do que de saudosismo/idílica.


História da infância no pensamento social brasileiro. Ou, fugindo de Gilberto Freyre pelas
mãos de Mário de Andrade – Marcos Cezar de Freitas (p. 251-268)

p. 251/252

Citação da obra Ordem e progresso, de Gilberto Freyre, sobre a relação da infância e do brinquedo
no final do século XIX. Brinquedos (objetos?) já como forma de distinção. [Me parece que, hoje,
não é mais o “ter” o objeto que trás distinção, mais o poder comprar cada vez mais objetos]. “Maria
Joaquina da Conceição, mulher do povo e analfabeta, nascida em Goiana, na Província de
Pernambuco, em 1885, e neta bastarda de certo senhor de Goiana, chamado M. P., em cujo sobrado
viu pela primeira vez a luz do dia, diz que as meninas pobres naquela parte do interior da então
Província de Pernambuco que ela conheceu, brincavam com bonecas de pano. Mas brincar com
boneca de pano era sinal de ser menina de gente inferior. Ela que bem ou mal nascera em sobrado,
não tolerou nunca boneca de pano: sempre brincou com boneca de louça. Boneca velha, já gasta de
ter servido de filha a menina rica, mas de louça. Mesmo porque suas amigas e companheiras de
brinquedo eram todas iaiás brancas (…). / Mas boneca toda de louça: nem sequer metade de louça e
metade de pano, como havia algumas, mais baratas que as só de louça, que eram em geral louras e
de olhos azuis. E francesas. Europeias.”

p. 252

“A criança, numa sociedade em permanente projeção para o futuro, destinada a vir-a-ser, facilmente
tornou-se componente descritivo de um complexo social no qual o estar-e,-formação da criança
misturava-se a um estar-em-construção com o qual a 'personalidade' do país tornava-se objeto de
reflexão.”

p. 253

“A incompletude natural da criança [diria eu, Andréa, não a de qualquer pessoa?] é projetada como
metáfora da nação inconclusa, e a 'peculiaridade' da nação inconclusa é o recurso argumentativo
com o qual a história social da infância torna-se depositária dos exemplos de um quotidiano no qual
tudo é fratura, fragmento e dispersão.”
p. 253/254

“As representações da infância têm se multiplicado paralelamente à construção da autoridade


argumentativa de uma série de disciplinas, / discursos e pareceres que, a partir de uma evocação
qualquer da ciência, classificam a criança, destinando a ela a condição de ser (…) um objeto de
estudo.”

p. 254

“(…) as representações da infância também são elementos decisivos na configuração das ciências e
das disciplinas a elas relacionadas. Quem fala em nome da criança? Sua educabilidade escolar vem
à luz, por exemplo, pelas 'mãos da pedagogia', mas uma pedagogia tomada de assalto no século XX
pela psicologia, a qual tornou a ciência da educação, muitas vezes, um laboratório do
comportamento. Com quais argumentos defende-se a criança no âmbito das leis? Frequentemente, o
universo disciplinar do direito é 'tomado de assalto', desde o fim do século XIX, pela medicina legal
a qual tornou a criança, antes de tudo, o 'menor de idade'.”

p. 254-255

“(...) a autoridade intelectual com a qual há muitos séculos a criança tem sido abordada, em muitos
casos, decorre da superposição de ciência sobre ciência, / de campo epistemológico sobre campo
epistemológico e o resultado muitas vezes corresponde a um acervo de imagens sobre a infância
impregnado de certa 'fantasmagoria'. Fantasmagoria quer designar, aqui, a situação do ator social
que se vê no espelho e não reconhece a própria imagem.”

p. 255/256

O autor vai se ater, a partir deste ponto do texto, sobre o que ele considera formas de violência
simbólica na constituição da chamada história social da infância no Brasil. / Os exemplos são de
três clássicos de Gilberto Freyre: Casa-grande e senzala; Sobrados e mocambos; Ordem e
progresso. “O objetivo da 'aferição do acervo de imagens' é comentar a constância com que a
representação se automatiza em relação ao representado e a coincidência que faz com que o mesmo
fato se repita nos documentos jurídicos, nas ciências humanas e nas classificações que arriscam uma
descrição geral da infância.”
p. 256-260

Anjo: as crianças mais pequenas. [Sobrados e mocambos]

Moleque leva-pancada: “moleque leva-pancada”, escravo criança que era o “brinquedo” e


companheiro do menino branco. [Casa grande & senzala, Rio de Janeiro, José Olympio, 1984, p.
50]

Menino diabo: dos seis ou sete anos aos dez, não era nem anjo nem gente grande, os mais
castigados da casa depois dos escravos e do “moleque leva-pancada”; idade que não carecia de
cuidados. [Sobrados e mocambos]

Homenzinho: homúnculo, de nove ou dez anos, obrigados a se comportarem como gente grande e a
usarem “marcas” de adultos (cabelo bem penteado, colarinho duro, calça cumprida, roupa preta,
botina preta, andar grave, gestos sisudos, “ar tristonho de quem acompanha enterro” [Casa grande
& senzala, p. 441]

p. 260

“A sociedade patriarcal e escravocrata entendia (toda ela?) a criança como anjo, demônio, parceiro
de folguedo do senhor, senhor / do folguedo do escravo etc.”

p. 261/262

“Não se pretende aqui, e nem seria possível, desqualificar a reconstituição portentosa de Freyre.
Mas falta algo de relativização em relação aos preconceitos e protótipo de cada época. Falta quebrar
a imagem da criança como depositária das conciliações atrozes da sociedade. / (…) Ora, a criança é
localizada naquele e noutros contextos com o mesmo espírito que rege a obra do autor como um
todo: o de que mesmo as relações humanas mais brutais se permitem à conciliação e ao hibridismo.
E essa sociedade é o produto da mistura permanente de suas brutalidades, cuja forma resultante
apresenta um escravocrata menos brutal e um escravo um pouco menos reduzido à condição de
coisa. E a criança transita por esse mundo e é reconstituída através do acervo de representações que
a própria época forneceu sobre ela. Nela todos os antagonismos se atenuam.”
p. 261

Importante! “(…) o campo das representações deve ser entendido como aquele que contém os
elementos necessários à constituição de um outro campo, no qual está a possibilidade de investigar
a violência simbólica que se pronuncia contra a criança (…). Dessa forma, a violência subjetiva
deve deixar de ser considerada um 'aspecto inevitável' da sociedade a partir dessa ou daquela
característica peculiar de sua formação política e econômica.”

“Essa é uma observação que se deve fazer à narrativa de Freyre: se a violência física na sociedade
brasileira patriarcal era uma constante, a violência simbólica e subjetiva não devem ser
reconstituídas 'apena' como expressões menores da opressão cotidiana.”

p. 263

O autor alerta que, nas representações sobre a criança, ela é sempre vista de fora, como
personagem.

“Observar o observador da infância/nação nos domínios da esfera privada suscitou imagens fortes,
utilizadas de forma recorrente na composição de um domínio narrativo no qual, tanto a 'criança/país'
quanto o 'país/criança', foram vistos por dentro e revelaram ad intra a violência como componente
das conciliações mais danosas do quotidiano.”

p. 263/264

“Todavia, mesmo que muito brevemente, é possível recuperar – como contraponto, outras imagens
e representações da infância / relacionadas às possibilidades de 'ocupação' e definição da esfera
pública, tendo por base o trato especial das necessidades propriamente infantis.”

Esse ponto de vista, diferente do de Freyre, era o de Mário de Andrade, no Departamento de Cultura
da cidade de São Paulo. Ele propôs a criação de parques infantis na cidade, ambientes lúdicos para
educação da criança e da cidade como um todo. “Os Parque Infantis representavam a criança como
componente 'disciplinador' da cidade que, então, se metropolizava. O impotente 'leva-pancadas' de
outrora ressurgia idealizado como o componente suavizador das formas do urbanismo e revestia-se,
então, da importância, de ser considerado o seu conteúdo (in)tenso.”
p. 264/265

Interessante! “Como cuidado preventivo em relação à possibilidade da metrópole tornar-se um


conjunto de irracionalidades, o Departamento de Cultura colocava a criança no coração da
reconfiguração urbana que andava então a galope. A questão da oferta do brinquedo público, a
disponibilização do equipamento público, o Parque, / enfim, eram entendidos como
responsabilidades maiores junto a quem devia tornar o espaço urbano um laboratório experimental
da humanização da brasilidade. Diante desse projeto, percebia-se que, na esfera pública, a criança
não estava mais condenada à passividade. Só essa convicção era suficiente para torná-la uma
personagem mais dona de si, ainda que nos limites da trama andradiana. (…) A imagem da
infância sugerida é a da potencialidade: é ela o componente submerso na materialidade de uma
cultura necessitada de (re)humanização. (…) Os Parques ofereciam uma advertência à multiplicação
das iniciativas imobiliárias, acrescentando à cultura material metropolitana 'clarões de brincadeira'
que não poderiam ser danificados.” [grifo meu] Essa, segundo o autor, também era uma forma de
entender a criança como o coração da cidade.

p. 266

Havia uma preocupação “em relação à manutenção do espaço ao ar livre para a criança, e o
consequente apreço ao divertimento entendido como recurso pedagógico”.

p. 266/267

“(...) a exposição simples, quase singela, do papel a ser desempenhado pelos Parques Infantis,
possibilita perceber que o cuidado às subjetividades necessariamente presentes na formação da
criança conduz a um universo discursivo sobre a infância essencialmente diferente do conjunto de
representações no qual o folguedo e o riso são tomados como pistas de um mundo no qual a
violência é doce e branda. Se a cidade lúdica é a antítese discursiva do entre muros, no qual o
menino foi o 'leva-pancadas', a construção da liberdade e da democracia considerando a ocupação
dos espaços / livres conforme os moldes andradianos, permite a inversão de um registro simbólico.”

p. 267
Trecho bonito, parágrafo de conclusão do texto. “Nos anos trintas do século XX, antigos 'leva-
pancadas' era [sic] então senhores procurando pelas portas da cidadania. Quantos não terão sonhado
com a cidade infante quando ainda eram personagens da casa-grande e da senzala? Desde os anos
vintes, separados pela distância de um país continental, dois jovens intelectuais brilhantes escreviam
suas impressões sobre a cultura brasileira. Se as personagens pudessem saltar entre os livros,
quantas não teriam pulado os muros dos sobrados a procura do mato-virgem, onde um 'preto retinto
filho do medo da noite' foi parido feio no 'murmurejo do Uraricoera' e nos tornou a todos, desde
então, macunaímas errantes, procurando nas cidades os parque infantis que nos roubaram.”
A infância no Brasil pelos olhos de Monteiro Lobato – Ivan Russef (p. 269-289)

Não li.
Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas –
Marta Maria Chagas de Carvalho (p. 291-309)

p. 291

História da educação como história da disciplinarização das pessoas (higienização como modo de
disciplina); “escola como instituição intrinsecamente disciplinar, e a modernidade como sociedade
da escolarização”.

A autora se propõe a analisar duas modalidades de constituição da infância como objeto de


intervenção disciplinar, nas primeira quatro décadas do século XX, a partir dos discursos que
“buscaram legitimar-se enquanto saber pedagógico de tipo novo, moderno, experimental e
científico”

p. 292

A autora se propõe a trabalhar com duas metáforas da disciplina: disciplina como ortopedia e
disciplina como eficiência.

“Em duas figuras que introduzem a leitura de Vigiar e punir, lê-se: “L'orthopédie ou l'art de
prévenir et de corriger dans les enfants les difformités du corps”. Em ambas as gravuras, de N.
Andry, a arte de prevenção e correção é referida à imagem da linha reta. Na primeira, uma ´régua
com a inscrição – Haec est regula recti – propõe-se como arte da prevenção, como regra e suposto
da harmonia reinante em uma cena de governança infantil. Na segunda, a famosa árvore torta, toda
amarrada por um grossa corda a um pau reto firmemente fincado no solo, explicita a ortopedia
como arte de correção da deformação. Num e noutro caso, cânone e deformação configuram o
campo das práticas de prevenção e correção. Nas imagens, o que se explicita como objeto da arte da
ortopedia não é a falta de forma, não é o uniforme, mas a deformação de uma forma canônica. Em
ambas as figuras, a reta é regra e norma que constitui o desvio e a deformidade como sua
confirmação.” [o último grifo foi meu]

p. 292-294

Instalação, em 1914, do Laboratório de Pedagogia Experimental, no Gabinete de Psicologia e


Antropologia Pedagógica, anexo à Escola Normal Secundária de São Paulo. Pretendia-se, com ele,
desenvolver estudos científicos, teóricos e práticos, sobre pedagogia e sobre as crianças.

p. 294

O objetivo do Laboratório era a medição para a construção de um “conhecimento científico do


indivíduo”. “A ideia de que as diferenças entre os educando requerem 'meios absolutamente vários
de educação', devendo ser 'objeto de um estudo e tratamento particular' é que, desse ponto de vista,
comanda a constituição de uma pedagogia científica. Assentada em uma pluralidade de práticas de
mediação, tal pedagogia se contrapunha à 'velha pedagogia, (…) abstrata, dogmática, absoluta', que
sonhava 'poder generalizar todos os princípios, universalizar todos os meios, como se todos os
indivíduos pudessem para comodidade do pedagogista e do professor, adaptar-se à fôrma de um só
modelo decretado'.” Os trechos citados são de [Thompson, Oscar. O futuro da pedagogia é
científico. In: O Laboratório de Pedagogia Experimental, São Paulo, Tip. Siqueira, Nagel & Comp.,
1914], publicado à época de um curso promovido no gabinete, com o professor italiano Ugo
Pizzoli.

p. 295

Exemplo de prática da “ciência do indivíduo”: a Carteira Biográfica Escolar. “A carteira deveria ser
generalizada a todos os grupos escolares e abranger registros acerca da vida do aluno nos cinco anos
de curso. Deveria ser elaborada e assinada pelo diretor do estabelecimento, pelos professores das
classes e pelo médico escolar. Deveria ser conservada durante todo o período escolar do aluno pelo
diretor, que ao final do curso a entregaria ao governo. Constando de nove páginas, a Carteira reunia
fotografias anuais do aluno e inúmeros registros de mensurações resultantes de 'observações
antropológicas' e 'fisio-psicológicas', além de anotações registradas como 'dados anamnésticos da
família' e 'notas anamnésticas', estas últimas obtidas por exame médico.”

Procedimentos de identificação escolar que mesclam ciências que lhes era contemporâneas –
antropologia, psicologia, biologia, medicina e psiquiatria. Era um dispositivo de conhecimento
sobre o aluno e “de constituição da criança enquanto aluno, dispositivo de produção da
individualidade na confluência das medidas e dos 'dados' de observação constituídos como índices
de normalidade, anormalidade ou regenerescência. Compleição física, tipo racial, traços morais,
marcas de hereditariedade, ambiente familiar constituíam um roteiro de observação e medida e
forneciam as tópicas de registro na Carteira Biográfica Escolar. No cruzamento dessas medidas e
observações é que ganhava contorno o caráter específico do aluno.”

p. 296/297

Pizzoli representa o campo epistemológico da pedagogia através de uma árvore. Nas raízes estão as
ciências que dão subsídios à educação: sociologia, legislação escolar, história da escola, anatomia,
fisiologia, antropologia, psicologia, higiene individual, higiene coletiva, higiene da casa e da escola,
ortofrenia, pedologia, pediatria e arte didática. As raízes convergem para o tronco, a Pedagogia,
“ciência da educação humana”. Do tronco, emergem dois processos de educação – a educação
normal, representada por várias galhos, com muitas folhas e fruto; e a educação emendatória,
anormal ou corretiva, representada por galho com folhas raquíticas e frutos murchos. / As práticas
educacionais emendatórias serão voltadas para “criminosos, amorais, tarados, idiotas, cretinos,
imbecis, surdos-mudos, cegos de nascença e deficientes físicos”.

p. 297

Na Pedagogia Científica, conhecer o indivíduo era “enquadrar o indivíduo no tipo e ler nos corpos
sinais que uma ciência determinista constituía como índices de normalidade, anormalidade, ou
degeneração. Era classificar o tipo segundo divisões inscritas na natureza, que repartiam e
hierarquizavam a humanidade. E era – ao que indica a recorrência da tópica da degeneração –
operar com os parâmetros postos pelas teorias raciais que, desde finais do século anterior, vinham-
se constituindo na linguagem principal dos intelectuais brasileiros, no seu afã de pensar as
possibilidades de progresso para o país e legitimar as hierarquias sociais.”

p. 298/299

“Discriminar as crianças normais das anormais ou degeneradas era tarefa que se instalava no
âmago da pedagogia científica que, segundo Thompson, deveria 'confrontar e distinguir os casos
normais dos anormais, para cuidar de cada um segundo o seu valor exato'. Para tanto, importava não
confundir 'os casos de anomalias simples com os de grave e profunda degeneração'. Pois os
primeiros podem 'ser compatíveis com a natureza e fim da escola', sendo-lhes facultado 'frequentar
as escolas dos normais', onde seriam 'corrigidos e modificados por métodos especiais'. Já os
'degenerados' devem / ser 'excluídos absolutamente das escolas dos normais, seja qual for a forma
de seu caráter degenerativo'.

p. 299

“Prática humanitária [assim essa prática era adjetivada pelos seus defensores] de distribuição
científica das crianças por escolas, casas de correção, hospícios ou prisões, a pedagogia científica,
via-se, assim, constituída como recurso de seleção e composição da clientela escolar. A organização
de classes homogêneas, um dos objetivos das práticas de medição, era recurso de maximização dos
resultados do ensino simultâneo e seriado, ponto estratégico do empenho das autoridades
educacionais paulistas de constituição de um sistema de educação pública no estado. Mas,
contraditoriamente, o intuito 'humanitário' de seleção da clientela escolar indicia o horizonte
ideológico em que se inscreviam as intenções políticas republicanas de levar a educação a todos os
cidadãos. Nesse horizonte, critérios raciais, nem sempre explicitados, traçavam os limites das boas
intenções republicanas, operando a distinção entre populações educáveis, capazes portanto de
cidadania, e populações em que o peso da hereditariedade (leia-se, sobretudo, 'raça') era marca de
um destino que a educação era incapaz de alterar.” Ambiguidade de um projeto de universalização
da escola em uma sociedade excludente.

p. 300

“Observar, medir, classificar, prevenir, corrigir. Em todas essas operações, a remissão à norma é
uma constante. A pedagogia científica, as práticas que a constituíam e as que derivam dela,
caracterizavam-se, assim, por essa remissão constante a cânones de normalidade produzidos, pelo
avesso, na leitura de sinais de anormalidade ou degenerescência que a ciência contemporânea
colecionava em seu afã de justificar as desigualdade sociais e de explicar o progresso e o atraso dos
povos pela existência de determinações inscritas na natureza dos homens. E é por referência a essa
norma que a pedagogia se fazia, nas práticas aqui analisadas, ortopedia – arte da prevenção ou da
correção da deformação.”

p. 301/302

A partir dos anos 20, começa uma mudança no paradigma da educação, a chamada “escola nova”.
“Uma oposta otimista na natureza infantil e na educabilidade da criança insinua-se como o
enunciado principal a regular / as articulações discursivas. As figuras da deformação, que
assombravam a produção discursiva anterior e que traziam a detecção e o controle da anormalidade
para o âmago da pedagogia, são como que gradativamente expelidas do campo pedagógico (…).
seus preceitos, apesar de também 'tirados da própria natureza', subordinavam-se a desígnios
pedagógicos que não se viam mais tão constrangidos pelos determinismos (…). A nova pedagogia
era otimista. Era aposta em uma sociedade nova, moderna, que as lições da guerra, mediatamente
apreendidas, faziam entrever como dependente de uma nova educação, redefinida em seus
princípios e largamente baseada na ciência. (…) [Esse otimismo pedagógico] Era aposta no poder
disciplinarizador do progresso que essa 'nova compreensão' entrevia embutido no processo de
racionalização das relações sociais sob o modelo da fábrica. A regra que organiza as novas práticas
pedagógicas não deriva mais, senão mediatizadamente, da ciência. Ele é metáfora dos ritmos
impostos aos corpos e às mentes pela vida moderna, império da indústria e da técnica.”

p. 303

“O processo de corrosão gradativa dos pressupostos que fundavam a pretensão de construir uma
pedagogia científica não derivou apenas, entretanto, de mutações nos paradigmas científicos. No
Brasil, ele foi decisivamente marcado pelas motivações políticas, sociais e econômicas que
confluíram no chamado 'entusiasmo pela educação', movimento que reuniu intelectuais de
diferentes categorias profissionais – principalmente professores, médicos e engenheiros – na
propaganda da 'causa educacional'.”

p. 303/304

Após a I Guerra e sob o impacto das greves operárias de 1910, houve um refluxo das correntes
imigratórias – apontadas como opção das teorias racistas como recurso civilizatório [para
“embranquecer” o Brasil]. “A partir de então, 'organizar i trabalho nacional' com o recurso da
escola, 'civilizando' as populações negras e mestiças até então consideradas inaptas para o trabalho,
passa a ser o caminho alternativo para o progresso. Não é outro o sentido da 'descoberta' feita pelos
entusiastas da educação na década de 1920: a de que a educação / era o 'grande problema nacional'
por sua capacidade de 'regenerar' as populações brasileiras, erradicando-lhes a doença e incluindo-
lhes hábitos de trabalho.”
p. 305

“Constituir-se a saúde (e a educação) como problema nacional funcionou como espécie de


exorcismo de angústias alimentadas por doutrinas deterministas que, postulando efeitos nocivos da
miscigenação racial e do clima, tornavam infundadas as esperanças de progresso para o Brasil, país
de mestiços sob o trópico. Para os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos anos 20, as
teorias racistas que, desde o século anterior, constituíam a linguagem pela qual era formulada a
questão nacional, são, assim, relativizadas por uma nova crença: a de que saúde e educação era
fatores capazes de operar a 'regeneração' das populações brasileiras.”

Saúde e educação eram vistos como questões indissociáveis. Além disso, as duas lutas “tinham
como objetivos comuns a reforma dos serviços públicos, a modernização do país e ampliação de
possibilidades de participação política e de atuação profissional (...)”

p. 306

“Na campanha educacional, saúde, moral e trabalho compunham o trinômio sobre o qual se deveria
assentar a 'educação do povo' [chamada também 'educação integral']. (…) o trabalho aparece como
síntese da sociedade que se pretende instaurar. Sinônimo de vitalidade, o 'trabalho metódico,
adequado, remunerador e salutar' era (…) o antídoto para os males do país, condensados em
representações das populações brasileiras como indolentes e doentias. (…) 'Regenerar' as
populações brasileiras, por meio da higiene e da educação, era a solução que descobriam como
alternativa aos impasses postos pelos determinismos raciais.”

“Nesse projeto, a educação era especialmente valorizada enquanto dispositivo capaz de garantir a
'ordem sem necessidade do emprego da força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade', e
a 'disciplina consciente e voluntária e não apenas automática e apavorada'.”

p. 307

Organização do meio escolar nos termos das (então) novas máximas da organização industrial.
“Enraizava-se, assim, no discurso pedagógico, o que Lourenço Filho [um dos defensores e teóricos
dessa chamada 'nova escola] identificou como uma das tendências principais da nova pedagogia – o
'taylorismo na escola': inovações pu sistemas' que visavam 'dar maior rendimento escolar do ponto
de vista da organização das classes ou cursos'. Tal tendência concebia a escola 'como a produção das
modernas indústrias que deve ser rápida, precisa, com perdas mínimas de energia e pessoal'.”

p. 308

Na “escola nova”. “Disciplinar não é mais prevenir ou corrigir. É moldar. É contar com a
plasticidade da natureza infantil, com sua adaptabilidade, com sua capacidade natural de
ajustamento a fins postos pela sociedade. Por isso, esse otimismo conta, mais do que com a
natureza, com o poder disciplinador das novas exigências postas nos novos ritmos que a técnica e a
máquina imprimem à sociedade.”
Para uma história disciplinar: psicologia, criança e pedagogia – Mirian Jorge Warde (p. 311-
332)

p. 325

“A literatura 'especializada', de fins do século XIX e início deste, destinada aos cursos de formação
do magistério (…), bem como os 'estudiosos da pedagogia', tanto na Europa quando nas Américas, é
marcada pela aceitação de dois princípios: primeiro, os estudos pedagógicos são alimentados por
várias disciplinas auxiliares; segundo, a prática pedagógica só pode desembaraçar-se do 'bom senso'
e da doutrina do 'dom' se aprender com a psicologia os procedimentos experimentais, bem como o
seu objeto e destinatário privilegiado: a criança.”

p. 326

Inclusão da criança no quadro de preocupações científicas: a partir do impacto das ideias


evolucionistas, tendo como Baldwin [1985, Mental Development in the Child and the Race, uma
exploração da doutrina evolucionista na psicologia] um de seus principais expoentes. Na década de
1879, no campo da psicologia norte-americana, houve um crescente interesse pelo desenvolvimento
individual da mente do homem, da infância à vida adulta. Baldwin converteu esse interesse num
programa específico de estudos sobre uma psicologia da criança (ou ontogênica).

Em nota de rodapé, a autora cita também a importância de Stanley Hall para o desenvolvimento de
uma psicologia da criança. Um aluno teria teria proposto, em 1893, o termo pedologia para designar
um novo ramo da ciência, cujo objeto seria a criança encarada sob os mais variados aspectos.

p. 327

“Para Baldwin, a psicologia tradicional era pautada na ideia de que a alma é uma substância fixa,
com atributos fixos. (…) Nesta concepção, 'o homem era o pai da criança': o que a consciência
adulta descobre em si mesma é verdade, e as mesmas faculdades devem ser encontradas na criança.
(…) A ideia genética inverte tudo isso, diz Baldwin: em lugar de substância fixa, temos o
crescimento e o desenvolvimento [base da chamada psicologia funcional].”

p. 327/328
“A chamada psicologia funcional revelará o forte impacto das ideias evolucionistas (…) / Para
muitos deles [os primeiros psicólogos da criança, tanto europeus quanto norte-americanos], essas
ideias evolucionistas significaram a passagem de uma filosofia especulativa para uma psicologia
científica, ou a subordinação da doutrina filosófica às descobertas científicas. Eles estavam movidos
pelo interesse em desembaraçar a psicologia dos procedimentos então considerados filosóficos
porque 'especulativos' e fazê-las mergulhar nos métodos experimentais (...)”.

p. 328

Outra tese para o começo dos estudos em torno da criança enquanto tal, independente das
consequências para a vida adulta: para Moreira Leite, também teriam nascido “das necessidades
práticas de escolarização universal que começou a ser implantada na Europa nos fins do século XIX
e no início do XX”.

“Dois temas marcam a virada provocada pelos estudos da criança: os temas clássicos da filosofia
relativos ao conhecimento reapresentam-se, na psicologia, na forma de 'inteligência' e
'aprendizagem'. Não se trata mais de perguntar sobre as condições de possibilidade do
conhecimento, mas sim sobre as condições de possibilidade de aquisição de conhecimentos já
produzidos.”

Continuação do trecho anterior em outro parágrafo. “As clássicas questões do conhecimento quando
enfrentadas pelas psicologias da inteligência / cognição ou da aprendizagem convertem-se em
questões de hábitos, condutas, processos adaptativos, fases do desenvolvimento cognitivo etc.”

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