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Zilda Márcia Grícoli Iokoi

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LEI Laboratótio de Estudos sobre a Intolerância - USP

A saga dos judeus comunistasentre a


Polônia, a Palestinae o Brasil
1930/1975

ASSOCIAÇÃO EDITORIAL
HUMANrrAS UNIV/\U
editora
n t r o d u ç a o

Estampadaem O Estadode S. Paulo,a manchete Israel


deveelegerhoje o linha dura Sharonlmostravao semblantede
um judeu, filho de imigrantes russos,nascido em um kibutz
nas proximidadesde Tel Aviv. Militar, encarregadode repri~
mir os guerrilheiros palestinos (fedayin), na décadade 1950,
Sharon deixara para trás as posiçõesque tivera quando mem~
bro da Haganah.2Havia sido um militar pouco afeito ao cum~
primento das determinaçõeshierárquicas, provocando mor~
tes de centenasde judeuse palestinos,como ocorreu na bata~
lha de Mitla, em 1956, ou na matança da aldeia de Qibya.
Outros atos violentos são atribuídos a este personagemque
entra no cenário mundial num momento muito complexo das
relações internacionais.3 Pragmáticoe autoritário, ao longo
do processode criaçãodo Estadode Israeldefendeuuma ofen~
siva implacável contra os árabes,atuando com ímpeto como
membro da Haganah. Em 1973, foi indicado por Menachem
Begincomandantemilitar, na Guerrado Yom Kippur. Em 1974,

n
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

deixou o exército e participou da criação do Likud, partido


da direita em Israel. Sempre envolvido com os combates,
contrário a qualquer tolerância para com os palestinos,
fundou um partido, o Shlomtzion (A Paz de Sion), apresen,
tando um plano para negociar com a Organização de Liberta,
ção Palestina (OLP), de Yasser Arafat. Entretanto, tendo re,
cebido o cargo de ministro da agricultura, estimulou a ocupa;
ção de terras na Cisjordânia. Foi Ministro da Defesaentre 1981
e 1983, quando convenceu o governo a participar na Guerra
do Líbano (1982,1985), em que o pesado bombardeio
israelense provocou muitas mortes, deixando inúmeros
desabrigados entre os árabes. Foi fonte de discórdia entre os
israelensese seusaliados. As atitudes mais agressivasde Sharon
serviram de pano de fundo para o massacrede dois mil pales,
tinos pelas falanges cristãs nos campos de refugiados de Sabra
e Shatila, que e.Stavamsob o seu comando, e na vigilância de
Israel.
A escolhadeste líder de extrema direita pelos eleitores
israelensesno início de 2001 indica o prosseguimentodos
conflitos territoriais, econômicose religiosos do país, a per,
manênciadas ambigüidadesdo Estado,já que Israel tem pro,
curado manter o discurso da racionalidade moderna, contra
aquilo que chamá de forçasbárbarase arcaicas,representadas
pelos confrontos intermináveis com os palestinos,estesdesa,
lojados desde 1948, quando foi formado o Estadode Israel.
Caberia neste momento introduzir a pergunta formula,
da por Richard Rorty: tais dilemas podem ser considerados
conflitos entre lealdadee justiça, ou entre lealdadea um pe,
queno grupo e lealdadea um grandegrupo?Kant insisteque a
justiça advém da razão enquanto a lealdade do sentimento.
Para Rorty, não apenasa razão impõe obrigaçõesmorais, já
que elas se estruturam por relaçõesde confiança entre mem,
bros de um grupo unido. Destemodo, quanto maior for a ame,
aça ou o perigo sofrido por essegrupo, mais o outro serácon,
sideradoalgo ou alguéma ser eliminado.4No casoem tela, os
palestinosacabaramsendo consideradoso outro da relação e
a perda de territórios ocupados pelos judeus foi a marca
desseprocessoem parte analisadoneste trabalho.

7.4
Intolerânciae resistência

Ao aparecercomo um país dividido entre as posições


de direita e de centro esquerda,Israel propugnaum programa
político marcadopor diferentesformasde se lidar com o mes~
mo problema. Trata~sede definir como manter ou avançar
sobre as terras disputadasou ocupadaspor palestinos,e, mais
ainda, como se posicionar diante das ~xigências destes,em
criar um Estado independente sobre um território ocupado
por judeus. Duas áreasaparecemcomo lugaresem disputa, as
colinas sírias do Golan, desde 1967 e o palco dos combates
que tem em Jerusalémo centro de um problema simbólico
que não poderá deixar de ser tripartite. Ali estãoos símbolos
da fé judaica, cristã e muçulmana.

Foto - ~uro das La~entações

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Zilda Márcia Grícoli Iokoi

Além disso, os textos canônicos do cristianismo, do


judaísmo e do islamismo incluem um sistema de crenças fun-
dados na fé em um Ser supremo. Eles se baseiam no direito
canônico, a Halacha e a Sharia que traduzem a fé evolutiva
no desenvolvimento humano. Assim, conflituosidade contem-
porânea não é um problema de ordem religiosa, mas política.5
Evidentemente, não se pode atribuir o equilíbrio de forças
mundiais aos conflitos entre judeus e palestinos, mas é de
fato naquele pedaço de território que se realizam, há muito
tempo, disputas imperialistas memoráveis resultantes de di-
ferentes modos de entendimento dos caminhos do devir. No
tempo presente, as disputas pela formação do Estado de Israel
marcaram urna clara política de tamponamento da expansão
soviética no pós-Segunda Guerra Mundial. No século XIX,
essasterras foram palco de disputa de dois grupos de judeus
que foram ocuPilr a área. Um oriundo do Leste Europeu, que
pretendia instalar ali as primeiras experiências coletivistas
com os kibutzim, o outro, deslocado pelas forças colonialistas
inglesas, que sob o comando de Theodor Hertz, constituí-
ram um modelo de ocupação que permitiu o controle mer-
cantil do Oriente Médio. Desde esse período, o território
permaneceu em disputa, legitimado por ser um território sa-
grado - a terra santa - ao mesmo tempo em que também foi
se constituindo corno porta de entrada do ocidente para o
oriente, além de ser via de acesso ao Golfo Pérsico e das
imensas reservas de petróleo do planeta.
No governo de Bem Gurion (1953/1955), iniciou-se urna
guerra sob o comando do general Levi Eshkol, cujas conseqüên-
cias prosseguemsem solução definitiva e, até hoje, tomou-se ter-
mômetro das tensões militares internacionais. Elas representam
urna disputa no campo territorial, militar e religioso, num pro-
cesso que se move por dupla determinação: os impassesaber-
tos, corno aqueles que foram vivenciados numa repetição das
guerras religiosas do século XVII e XVIII, prefigurando o nasci-
mento do Estado Moderno; e o temor da guerra clausewichiana,
prefigurado no mito do império total descrito por Asirnov.6
Decifrar o enigma que envolve essa região não é tarefa fácil,
entretanto, sem essapreocupação muitas histórias nacionais no
Intolerância e resistênc

pós-SegundaGuerra perdem o sentido. A Guerra do Golfo (1991)


e a Guerra contra o Iraque (2003) são importantes lances das
disputasinternacionais pelo domínio do petróleo e pela hegemonia
no planeta. Essejogo ainda longe de ter um fim deve servir de
paradigma para o recuo histórico realizado neste estudo.
O Likud e os Trabalhistas de centro esquerdahaviam con-
cordado sobre a necessidadede atuação conjunta na busca de
uma forma política aceitável para os palestinos, procurando
cumprir o Acordo de Oslo de 1993. Evidentemente, os passosa
serem dados poderiam levar a uma solução final, mas Sharon
resolveu propugnar um acordo definitivo que definisse o con-
trole sobre Jerusalém.Essamudança de posição fez com que os
dois grupos políticos de Israel, que concordavam com as Reso-
luções da Organização das Nações Unidas (ONU)7 sobre a
concessão de áreas do território, em troca de acordos de paz
(reivindicação permanente dos palestinos) fossem separadosem
função do novo quadro político. Para o desenvolvimento des-
sas negociações, o discurso oficial de Israel indicou o congela-
mento na expansão de colônias na Cisjordânia e na Faixa de
Gaza. Os trabalhistas, derrotados nas eleições de 2001, concor-
davam em formular uma aliança com o Likud se estes aceitas-
sem a criação de um Estado Palestino. Aparentemente, pode-
ríamos sup;ora existência de um conflito ideológico nas dispu-
tas políticas internas de Israel, e os vizinhos palestinos serem
considerados apenas pólos de um equilíbrio tênue entre centro
esquerda e direita no jogo eleitoral. Mas os conflitos cresce-
ram muito indicando que as possibilidades de um acordo tor-
nar,se-iam praticamente nulas, bem como a necessidade de
novas mediaçõespolíticas. Entretanto, como nenhuma das partes
controlava a população mais radical, tanto no país como nos
vizinhos desterritorializados. A tensão tem prosseguido por dé,
cadas, oscilando o poder dos dirigentes dos países fronteiriços,
tais como a monarquia árabe e os governos do Irã e do Iraque.
Assim, o problema judeu não pode ser separado do problema
das disputas entre os países hegemônicos do capitalismo
mundializado, nem das rivalidades religiosas co~ o mundo
muçulmano, em franca expansão para diferentes regiões do
planeta.

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Zilda Márc Grícoli Ioko

Trata-se de um conflito que se acirrou a partir dos anos


de 1950, quando o ocidente capitalista e as forças soviéticas
criaram um divisor de águas que resultou num princípio ba-
seado na ideologia da guerra total. Na verdade, os acordos
pós-Segunda Guerra Mundial já deixavam em aberto o cami-
nho da corrida armamentista, uma vez que se cindia o bloco
dos aliados, refluindo o poder das antigas potências coloniais
do ocidente, ao adentrar nas disputas os Estados Unidos con-
tra os soviéticos.
Alteravam-se os interesses sobre a ciência da guerra e
suas possibilidades industriais. A experiência atômica realiza-
da na Guerra Civil Espanhola, expressa em "Guernica" de
Picasso, ou concluídas no horror dos corpos derretidos pelo
calor atômico em Hiroshima e Nagasaki, nos remetem a
imagens de destruição e de barbárie, projetando um devir
orientado pelos interesses econômicos, estimulados pelas for-
ças modernas e científicas da guerra. Elas também introduzi-
ram noções pouco exploradas pela crítica do período: a possi-
bilidade de destruição das pessoasmantendo o respeito às leis
da humanidade.8 As disputas estavam definidas numa estraté-
gia cujos objetivos seriam os de bloquear as forças soviéticas
na Eurásia, para que elas não pudessem atingir as ricas jazidas
de petróleo do Golfo Pérsico, ou garantir o seu controle pelo
Extremo Oriente. Dessemodo, tanto seguir para as franjas asi-
áticas como impedir sua penetração no Mediterrâneo e no
Índico eram tarefas das autoridades internacionais. A guerra
fazia parte de um novo modo de ver e legitimar a luta da
civilização contra a barbárie, num movimento de privar as
pessoas de seus direitos, legitimado com "singular ventura,
tranqüilidade, lealmente, filantroPicamente".9
Muitos haviam defendido a idéia da positividade do avan-
ço dos fascistas,da necessidadede se coibir tendências dos seto-
res populares rumo a uma posição de esquerda, na Itália, nos
anos de 1930 e de 1940. Estas noções foram reavivadas na dé-
cada de 1950 e ressurgemhoje com pleno vigor. A representa-
ção da positividade da guerra como um instrumento de defesa
permanente de valores da civilização, da ciência e do progres-
so, tem farta literatura, filmografia e faz parte, diariamente, do

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Intolerância e resistência

camposimbólico da iniciação infantil, seja no espaçoprivado


dos larespelosbrinquedose jogosde guerra,sejapela televisão.
Cada um dos habitantesdo planeta acabase envolvendocom
valoresdifundidos pelos grandesveículos das redesmundiais,
financiadaspelosprodutoresde bens e de serviçosda indústria
da violência e da guerra.Hoje, tambémaparecea idéia de guer,
ra preventiva,contra o terrorismo,tratada na mídia de tempo
real como realidadeabsoluta.Entretanto,essanova forma sofre
controlese censurana liberaçãodasinformaçõescomo nos tem,
pos da Guerra Fria.
Nessenovo modo de informação, as positividades da
ciência e da técnica são defendidasontologicamentea partir
de uma posiçãoahistórica sobreo seu valor na construçãodo
bem comum, na defesado planeta e da vida, atribuindo,se às
inovaçõescontínuas um tal atributo de qualidadeque oculta
suascontradiçõesinternas, mesmoque para sua vigência seja
necessáriaa destruiçãodo outro. O valor atribuído às forças
da guerraé, no início destenovo milênio, tão poderosocomo
em temposmais longínquos.Os Estadosteocráticosvoltaram
a ser estimulados como expressão de um poder homo,
geneizadore autoritário, que exige uma reflexão histórica. A
banalizaçãoda violência e da vida tornou,se um elemento
central nt?stepoderoso caminho de destruição. Ele é muito
mais amplo do que o estudo aqui apresentado.Consideramos
que a análise da questãojudaica é ainda uma boa referência
para a compreensãodessesfenômenoscontemporâneos,agu,
çadoscom o avanço da globalizaçãoe da crise do Leste Euro~
peu. Esteestudoprocurarefazerum percursohistórico centrado
na hipótese de que o conflito na Palestina desempenhouao
longo dos séculosXIX.e XX um papel central na consolidação
do imperialismoe das práticas de intolerância.
A Intolerâncianasceda negaçãodo outro e crescecomo
um polvo cujos tentáculos acabamenvolvendo uns e outros
num movimento autofágico,mediadopor ódios e pela guerra.
Ela significa que a idéia de que todos os povos do mundo for,
mam a humanidadejá não é mais uma verdadepara o gênero
humano. A separaçãoque o homem faz entre si e os outros
animais mostra precisamenteque ele não se reconhecemais

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Zilda Márcia Grícoli Iokoi

como parte de um mesmotodo integradoà natureza.O gênero


humano distingue,seem suacomunidadee destemodo se opõe
às outras,criando distinçõese separações que exclueme discri~
minam. Lévi,Strauss,numa conferênciana Unesco,em 1968,
afirmou que a noçãode humanidadeengloba,semdistinçãode
raça ou de civilização,todasas formasda espéciehumana,tan,
to as de aparecimentomais tardio ou de expansãolimitada,
como as demaisjá expandidassobre o planeta.loEssanoção,
hoje quaseesquecida,revela,sepela intolerância que aparece
em diferentesformase manifestaçõesno mundo contemporâ,
neo, formasregressivas de práticasreligiosas,xenofobiasreaber,
tas no continente europeu,fundamentalismosantigose novos,
disputasimperialistas,egoísmose narcisismosindividualistase
pela contínua imposiçãodas desigualdades sociais.11
O afastamentoentre uns e outros tem gerado práticas
violentas que se expandiram e, de certo modo, perderam as
razõesexplicativasformuladaspelos códigosjurídicos produzi'
dos entre os séculosXVIII e XIX. A certezada capacidadedo
EstadoModerno produzir alguns consensosfundamentaisper,
mitindo tanto a formulaçãodo sentido da justiça como do seu
aparatolegal parecemhoje insuficientespara convenceras vá,
rias sociedades da importância dessasgarantiascomo defesada
vida. Em diferente~países,o desencantocom asformase garan,
tias sociaisproduzidasno bojo do liberalismofezcom que trans,
gressõespassassem a ser vivenciadascotidianamentee, sendo
assim,o rancor e o ódio têm alimentadoa cultura da guerrae
da violência que se reproduzcomo o modo de vida preferencial
no mundo globalizado.
Evidentemente, a doutrina dos direitos, aquisição da
modernidadee do pensamentoliberal, produzidasnum processo
histórico permeadode conflitos religiosose políticos destacou
um modode vida no Ocidente que se sobrepôsaosdemais.Mas
essaprópriaconquistahistóricase manifestouno períodoseguin,
te (séculoXIX), como uma maneirado Ocidentese auto proje'
tar sobreo restodo mundo.A expansãoimperialistaproduziude
certo modo um yetorno ao passadorecriandonoçõesnegativas
sobre os povos do sul do planeta e aprofundou processos
exploratórios às últimas conseqüências.As ambigüidadesdo

'1,0
Intolerância e resistênci:

liberalismo acompanharam esseexpansionismo, que culminou


na Primeira Guerra Mundial justificada pela luta da civilização
contra a barbárie. Cabe aqui perguntar se esseprocesso teria es,
gotado a máxima liberal do direito e do consenso para preser,
var a liberdade e a justiça.
Diferentes intelectuais têm afirmado a relevância do di,
reito na defesa da vida no planeta. Pode,se considerar a dou,
trina dos direitos humanos como referência necessária ,ao
enfrentamento dos dilemas contemporâneos assim como defi,
nido por Norberto Bobbio.12 Para ele não se trata de fO17nular
um novo conjunto de direitos do homem, mas de protegê,los.
A questão contemporânea, desse modo, não é filosófica, mas
política. Ao analisar o modelo hobbesiano, afirma que ele não
esteve tão distante daquele formulado pelo jusnaturalismo
antigo, apenas deu relevância aos direitos subjetivos dos indi,
víduos e, portanto, agregou à organicidade do modelo antigo
o individvalismo moderno.
Como esta modernidade se projetou superior em rela,
ção às demais experiências históricas do planeta, a crítica da
sociedade européia se fez incorporando esse mesmo valor.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o lugar da superioridade
foi paulatinamente se deslocando para os Estados Unidos, que
atribuíram a si a totalidade da superioridade. Para Boaventura
de Souza Santos, a crítica ao modelo liberal se fez pelo mar,
xismo, mas entre ele e o liberalismo percebe,se uma linha de
continuidade maior do que as aceitas pelos seus teóricos. Afir,
ma Boaventura:

Eles [o marxismo e o liberalismo] representam diferen-


tes maneiras da crise no pensamento eurocêntrico do
Norte. Eles representam muito do modelo civilizacional
que nasceu na Europa e que viveu uma expansão colo-
nial e, depois, uma expansão imperial. Por exemplo, a
maneira como o Marx olhou para o colonialismo na
Índia, me dá vergonha hoje como marxista, porque, no
fundo, para ele, era a civilização que estava chegando à
Índia. Temos hoje um outro registro, quando sabemos
que a Índia tinha um rendimento per caPita que era me-
tade do da Inglaterra quando os ingleses chegaram e que,

1,1
Zilda Márcia Grfcoli Iokc

poucosanosdepois,estavacom algo em tomo de vinte


vezesmenos.Foi um processode destruiçãomassivaque
o colonialismoproduziu,não a grandemodernizaçãoem
relação à barbárie.J3

Os princípios formuladosnos séculosXVIII e XIX pas,


sarama ser insuficientespara a efetivaçãode direitos ligadosà
liberdade (direitos civis e políticos) sem os direitos ligados à
idéia de dignidade (direitos econômicose sociais) e ao con,
ceito de solidariedade(direitos de terceira geração,como os
direitos culturais, direito à paz, ao desenvolvimento,ao meio
ambiente sadio e equilibrado).14Foi este o sentido da criação
da ONU no encerramentoda SegundaGuerra Mundial e nos
documentospropostospara a ampliação das metas já defini,
das pelas revoluçõesFrancesae Americana. Dessemodo, as
razõesdesta proposta seguemos estímulos de SouzaSantos,
uma vez que: .

Então, estamos numa fase totalmente nova e é preciso,


como eu digo em Crítica da Razão Indolente, aprender
com o Sul. Isto é, cada vez mais chegamosà conclusão de
que a Europa e os EUA são um pequeno rincão, onde não
só se reproduziram experiências extremamente destrutivas
em termos de genocídio, mas também de destruição do
conhecimento. Estas teorias, estesconhecimentos produzi,
dos não têm hoje capacidade para nos transportar para o
século 21. Eles foram impOrtantes,eles representaramtodo
um ciclo. Mas hoje precisamosde outros conhecimentos, e
essesvêm do Sul, vêm de todos essespovos que sofreram o
colonialismo e o imperialismo.15

Não havendo paradigmas revolucionários, todas as lu,


tas da esquerda são pensadas a partir da compatibilidade com
o capitalismo. Esta compatibilidade é necessária para
Boaventura de Souza Santos como ponto de partida, mas não
de chegada. Assim, o estudo de práticas singulares pode per,
mitir um conhecimento que considere novas formas de orga,
nização dos conflitos e das lutas na relação entre o Estado e a
sociedadepresentesneste estudo. Trata,se de analisar a intolerân,
cia política como prática repressiva do Estado e da sociedade;

~7
Intolerância e resistência

a intolerdncia cultural, ou seja, xenofobias, e os preconceitos; e


a tolerdncia do intolerável, como a sociedade aceitou as práticas
de intolerância naturalizando,as e assimilando o autoritarismo.
Neste último grupo, trata, se de estudar como a sociedade con,
vive com naturalidade com o descumprimento das leis em
vigor no país e nos acordos internacionais.
Chave no entendimento do poder mundial apoiado pela
máquina da guerra, a questão judaica nos faz rever que o mo,
nopólio da violência se move na definição de estratégias, ar,
mas, racional idades, eficiências, mas também por preconcei,
tos e dogmas, cujas ancestral idades estão remetidas a tempos
.
históricos presentes e pretéritos.16
As imagens das lutas entre judeus e palestinos são dramá,
ticas, uma vez que elas significam uma guerra não declarada,
consentida, estimulada. Uma guerrilha diária que acoberta apa,
ratos militares, negócios, interesses,os quais não são registrados
nas imagens e, até certo ponto, estão ausentes na cena. Elas
ocultam sofrimentos e feridas históricas, atendem a intere~ses
geopolíticos, estratégicose econômicos e são frutos de uma ten,
tativa de subordinação de um Estado teológico, pré,moderno,
retomando a mesma perplexidade manifestada por Alexis
Tocqueville,17 qual seja, a decadência das potências européias,
em benefíciQ da supremacia americana e russa.Para ele, a velha
Europa nada mais tinha a contribuir com a liberdade e tolerância
necessáriasà civilização.
A existência da intolerância nos leva à questão judaica e
questiona tanto os seus próprios paradigmas, quanto às utopias
libertadoras, os campos de articulação entre os níveis teórico,
analíticos e a realidade histórica, congregando e concentrando
dimensões de temporalidades distintas e simultâneas. Ela pro,
põe uma investigação do papel do indivíduo e da coletividade
na história e permite mitigar a força avassaladorado poder do
atraso, da longa duração dos mitos e ancestra,lidades radicais,
no modo de vida de formações econômico,sociais distintas.18
Ela nos remete tanto ao princípio, a Gênesis no sentido bíblico,
como ao começo, no sentido moderno.
O Oriente Médio é o lugar. Extremo oriente do Mar Me,
diterrâneo, caminho de muitas e milenares passagens,de povos

~~
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

navegadorese comerciantes, ele sofre de um estigma ancestral.


Lugar paradisíaco contrastando seu céu azul, com o branco de
suas construções, a exemplo de Jerusalém, onde uma
luminosidade especial emoldura a paisagem rústica e encanta,
dora. Esse aparente equilíbrio, entretanto, contrasta com uma
guerra contínua, introjetada no espírito dos jovens, no uso
diário de armas, na responsabilidadede cada um em não permi,
tir novas diásporas.Não há paz quando o medo da guerra não
permite o sono tranqüilo.
Em uma estreita faixa de terra está Israel, entre a Síria,
seguindo o mar da Galiléia, estreitando,se entre a Cisjordânia, o
Mar Mediterrâneo e o Mar Morto, tendo ainda I.'°r áreas
fronteiriças a Jordânia e o Egito. Os palestinos sem territórios es,
tão espalhadostanto pela estreita faixa de Gaza, como conviven,
do em partes de Jerusaléme Tel Avivou na Sína e no Líbano.
Conhecido como o lugar da guerra, o Oriente Médio vive
desde 1967 em 'permanente processo de destruição. Naquele
período, o programa desenvolvimentista e nacionalista moder,
no de Ben Gurion chegara a um certo esgotamento. As indeni,
zaçõesda Segunda Guerra haviam terminado e as doações di,
minuíram muito. Havia necessidadede mais recursos financei,
ros e o grande escândalo de Lavon envolveu o líder populista,
que foi derrotado ~m 1963.
Assim, subiu ao poder Moshe Dyan, liderança na reto,
mada da guerra, especialmente devido a um cerco árabe que
provocou uma reação interna para o estabelecimento de uma
nova política de confronto para garantir o território. A Guerra
dos Seis Dias não só garantiu apoio ao Primeiro Ministro, mas
moveu uma enorme cooperação internacional de recursos e ho,
mens, ressurgindo o perigo da diáspora, especialmente pela exis,
tência do conflito entre um Estado religioso e um povo desalo,
jado. É certo que as sobrevivências das contendas territoriais
estavam pendentes deste o encerramento da Segunda Guerra
Mundial e foram aprofundadas posteriormente, pois o Estado
de Israel deveria ainda frear os interesses do bloco comunista
no ocidente,
Israel nasceu como um Estado para judeus. Seria possí,
vel formar um Estado religioso em meadosdo século XX? Como

,4.
Intolerânciae resistência

Foto 2 - Conflito na Palestina

conciliar a existência deste novo Estado com a presença do


povo palestino, do povo muçulmano, que tinha na região o
mesmo fundamento mítico da terra sagrada?Quais as conse-
qüências deste ato para a utopia libertária do retomo ao cam-
po para uma vida integrada e em equilíbrio com as singulari-
dades culturais e o sofrimento de judeus oriundos do holocausto
e de países diversos? Mesmo,em relação ao Ociente o proble-
ma se colocava de modo relevante, uma vez que a razãoiluminista
não fora suficiente para impedir que a moral e a solidariedade
fossem aplicadas contra os vizinhos, os iguais e mesmo os que
experimentavam experiências semelhantes. De certo modo, a

35
Zilda Márcia Grícoli Iokc

solidariedade ampliada, dependente dos riscos estabelecidos


para a sobrevivênciado nós, ante a escassez passavaa ser res,
trita e, muitas vezesaté mesmoindividual. Portanto, entre a
utopia marxista e a liberdade individual havia muitos pontos
de aproximação(razãoe sentimento) e isto não foi suficiente
para respondera díade solidariedadee justiça. Revisitemosa
questão.

Marx escreveu, no outono de 1843, um manuscrito


intitulado Bruno Bauer: a questãojudaica19,em que debatia o
problema da emancipaçãodos judeus em relação ao Estado
prussiano.Questionoua proposiçãolevantandodois imporran'
tes argumentospara o problemae iniciando um longo e difícil
debatete6rico,(ilosóficoque acompanhouas esquerdasao lon,
go de todo o século XX. Como equacionar, ao mesmo
tempo, as liberdadescivil e política e as liberdadesindividuais,
sem impor estruturasde dominaçãoe o aprisionamentodo ho,
mem em relaçãoao homem e desteem relaçãoao Estado?De
modo explícito, foi colocado o paradigmado século XIX que
se encerrou com a.Primeira Guerra Mundial. Estava superadaa
fasede disputasentre as potênciasterrestrese marítimas,uma
vez que a RevoluçãoIndustrial promoveraa máquinade guer,
ra, capazde levar por terra, mar e ar a força da dominação,com
uma nova mercadoriafetichizada.Os canhões,as bombas,fun,
cionavam como representações do poder e da subordinaçãoe,
ainda, como o desenvolvimentodas forças produtivas.
Com o fim do conflito em 1918,foi possívelconstituir a
relaçãode subsunçãodos Estadosperiféricosaoscentraise das
várias formas produtivas à l6gica da produção industrial do
período anterior, além de expropriar sem custosadministrati,
vos e sema presençaefetiva dos agentesmetropolitanos,como
fora necessáriona épocada expansãocolonial. Definia,se um
novo sentido para a hegemoniae outro papel para os Estados
Modernos.Tambémera outro o significadodo colonialismonas
relaçõesentre os paísesindustrializadose os paísesfornecedores

3li
Intolerância e resistênci,

de matérias-primas,submetidosao intercâmbio desigual.Deste


modo, tanto o desenvolvimento capitalista como as formas
mercantis ganhavam nova densidade, ocultando os poderes
extraterritoriais e explicitando o papel e o lugar da produção
industrial nas disputaspor áreasde influência e territórios.
Quando Marx debateu o problema, ele estavapreocu-
pado com duasdimensõesdo Estado,no sentido de regular a
esferapública e não de se imiscuir na religiosidadedos cida-
dãos por serem elas de ordem privada. Segundoele este era
o sentido definido para a constituição do Estadonaquelaetapa
histórica.2OAssim, as démarchesde judeus em busca de sua
emancipaçãoforam criticadas, uma vez que a superaçãode-
veria se dar simultaneamenteem relação às classese ao Esta-
do. Assim, se a demandafossepor um Estado que reconhe-
cesseo direito do indivíduo em seguir sua religião, o modelo
a ser adotado era o do Estadojá existente, o Estadolaico da
América do Norte. Marx via na propostade Bauer dois equí-
vocos: um estavaem se considerar o judeu uma classeparti-
cular e, o outro, em fazê-Ia beneficiário de um Estado pró-
prio. A historicidade do problema é fundamental nesta re-
flexão. Ela nos remete à diáspora pré-moderna e nos leva à
Europa Ocidental.
Os Est~dos cristãos, devido à intolerância religiosa,
excluíram os judeus das linhagens centradas na limpeza de
mãos e de sangue. Lidar com o trabalho material e com o
dinheiro eram marcas negativas. Deste modo, responsáveis
pelasatividadescomerciais,pelascontas públicas e pelo reco-
lhimento de tributos, aospoucosos judeuspassarama partici-
par de casasbancárias,como ocorreu de modo pioneiro nos
PaísesBaixos. Sua vinculação ao circuito do mercado,com o
sistema financeiro e com o complexo produtivo capitalista,
levou alguns teóricos, tais como Adam Smith, a entendê-Ias
como uma classesocial, o que fez com que os debatesabertos
sobre a formaçãodo Estadofossemcentradosno casodos ju-
deus. Deste debate, formularam-se propostasda necessidade
do judeu constituir um Estado,manter uma baseterritorial e
separar-sedo Estadocristão. O tema da emancipaçãodos fi-
lhos de Israel irradiava-se no século XIX, promovendo um

~7
Zild;l

conjunto de possibilidadesa fim de solucionar o que passoua


se chamar questãojudaica.
Um dos argumentosinteressantesfoi a defesa,feita por
Marx, do direito que o homem privado tem em seguirsuacren,
ça religiosade modo livre, sem interferênciade qualquerpoder.
Assim, superandoa discriminação,o homem teria no Estado
um instrumento de defesae não de subordinaçãodo nível de
escolhaprivada. A esferapública, constituída pelo consenso,
seriaum benefíciono caminho de buscada liberdade.A sacie,
dade humana comporia por processosdemocráticosos códigos
fundamentaisdo direito privado, fosseele individual ou grupal.
Deste modo, Marx criticava Bauer,considerando,oequivoca,
do, por pleitear de forma particular uma singularidadeaos ju,
deus- um Estadoqueexplicitamente
os emancipasse
-, distin,
ta dos demaisalemãesque se encontravamsubmetidosa inú,
merasformasde opressão,entre as quais a exploraçãoeconô'
mica. O debare que se seguiu foi carregadode significadose
incompreensões. Mas a basedo argumentoaqui defendidoé o
de esclarecimentodos termos dessedebate.Não se pode atri,
buir a adjetivaçãode anti,semita a Marx, pois este não era o
problemaem discussão.Retomemoso momento.
Marx, filho de judeus,foi batizadoaos 6 anos de idade
quando seu pai o converteu ao cristianismo, matriculando,o
na EscolaPúblic~ de Trier. A conversão,que durante os sécu,
los XV ao XVII tinha o objetivo de fugir às perseguições,no
século XVIII tornara,se mais ou menos freqüente, já que na
EuropaOcidental a religião deixara de ter o papel central que
tivera na vida das pessoasno período anterior. Henrich Marx,
pai de Karl, tambémconvenido, era um homem do Iluminismo
e optou por um processo educacional fora da yeshiva.21
Tomou tal atitude para exercer a profissão de advogado,já
que determinadasfunções eram vedadasaos judeus.
Henrich Heiner, batizadoum ano depois de Marx, ridi,
cularizavao ato, vendo,o como a compra de bilhetes para o
ingressona sociedadeeuropéia. Durante o século XIX, pelo
menos 250.000 judeus foram batizados. Segundo Theodor
Mommsen, no mesmo período o cristianismo deixara de ser
uma religião para se tomar única palavraexpressivado caráter
Intolerânciae resistência

da civilização internacional na qual milhões em todo o glo~


bo sentiam~seunidos.22Johnson afirma que, excluindo os Es~
tados Unidos, havia uma série de problemasem se permane~
cer judeu no século XIX na Europa, pois eles eram mantidos
fora dos círculos da modernidade. Evidentemente, quando
Bruno Bauer propôs o tema como uma questãoa ser resolvi~
da, fazia~oem função da conjuntura histórica em que vivia,
sugerindo, portanto, aos judeus a emancipaçãoem lugar do
judaísmo.
Criticando o sentido atribuído ao problema por Bauer,
Marx afirmava a impropriedadede se definir uma religião de
Estadoe a contradiçãoentre preconceitoreligiosoe emancipa~
ção política. Defendeua tesede que um Estadojudeu seriainfe~
rior a um Estadolaico, uma vezque o sentidouniversalda cida~
dania conteria liberdadespara todas as expressõessimbólico~
religiosas, e que a liberdade apenas por ser judeu poderia
esconder a opressãoeconômica para os próprios judeus sem
dinheiro.Destemodo, no campo da religião, Marx propugnava
contra o Estado religioso, debatendo a proposição de Bauer
com o seguinte argumento:

a que título, portanto, desejaisvós, judeus,a emancipa,


ção? Por causade vossareligião? Mas ela é o inimigo
mortal da religião de Estado.Como cidadãos?Mas, na
Alemanha não há cidadãos. Como homens?Mas vós
não sois homens, como não são aqueles a quem
recorreis.23

ParaMarx, Bauernão resolviaa questãojudaica,deixan,


do,a apenascomo uma questãoteológica,ou seja, definindo a
necessidadede auto,emancipaçãoantesda emancipaçãode ou'
tros grupos.Para Marx, o judeu alemão sofria da carência de
emancipaçãopolítica e do acentuadocristianismo do Estado.
De certa maneira,essaquestãoo levou a um sentido universal,
já que a emancipação política do judeu passavaa ser uma
condiçãodo Estado,que deveria emancipá,loe emancipar,sea
si próprio. Segundo o autor, só seria possível romper
com o universal no campo do privado, uma vez que tanto o
Estado como os cidadãos pertenciam às esferas públicas.

~9
Zilda Márcia Grfcoli ,koi

Estas,por sua vez, deveriam ser separadasdas decisõespriva'


das que não pertenciam ao Estado.
O paradigmado Estadopara Marx eram os EstadosUni,
dos, onde não havia religião oficial. A plena emancipação
política, todavia, não fez com que as religiões desapareces,
sem. Nos EstadosUnidos, segundoHamilton e Tocqueville,
elas permaneciamcheiasde vigor. Assim, confirmavamo pen,
samentode Marx - que a religião de Estadoé um defeito, e as
religiosidadeshumanas uma explicitação de suas limitações
seculares. Neste ponto, como um homem vinculado ao
cientificismo de seu tempo, Marx consideravaque essaslimi,
taçõessó poderiam ser superadasquando as questõesteológi,
cas fossemsecularizadas.Essaspossibilidadesestavamabertas
pelo conhecimento do homem e da natureza, que a ciência
trazia, em oposição ao moralismo religioso, ou mesm~ aos
mitos, oriundofsda ambivalência agostiniana em relação às
imagens dos judeus bíblicos em conflito com os ataques
dominicanose franciscanosa judeus talmúdicosverdadeiros.24
Do mesmomodo, quando o Estadoaboliu a proprieda,
de privada que estavanas mãosdos senhoresfeudais,ele não
aboliu apenasessadimensão,mas o censo,a hierarquia social
estabelecidapor nascimento,a posiçãosocial, a educaçãoe a
profissão.Essasdistinções deixaram de ser políticas e passa,
ram a ser de ordem particular. Marx retoma, assim, a tese
hegeliananos seguintestermos:

Para que o Estado possasurgir como realidade ética


autoconscientedo espírito, é essencialque se distinga
das formas de autoridade e de fé. Mas tal distinção s6
emergena medida em que há divisõesna própria esfera
eclesiástica.S6 assimé que o Estado,por cima das igre,
jas particulares,alcançoua universalidadedo pensamen,
to - o orincíoio da sua forma - e o traz à existência}5

A defesa do Estado como órgão político superior à vida


material toma o sentido de sociedadecivil restrito ao indivíduo,
joguete de poderes estranhos. Em contrapartida, no Estado o
homem é um ser genérico, membro imaginário de uma soberania

40
Intolerância e resistência

imaginária, despojadode sua vida real, individual e dotado de uni,


versalidadeirreal. Tal desencontrocolocou em questãotanto a so,
berania do Estadoquanto do indivíduo e, destafonna, a necessida,
de da superaçãode ambos.
Os argumentos foram sendo tecidos no plano filosófico
pelo pensamento triádico, centrado na superação dos termos,
de modo a combater as teses de Bauer no plano metodológico
e, especialmente, atribuindo um outro nível para a necessida,
de de superação da religião. No entendimento do autor dos
Manuscritos, o homem emancipa,se politicamente da religião
ao bani, Ia do direito público para o nível do privado. Ela dei,
xa de ser o espírito do Estado para ser o da sociedade civil,
constituindo,se na essência da diferenciação. Este deslocamen,
to, enfim, não é uma fase, mas a consumação da emancipação
política. Dessa forma, o Estado cristão aperfeiçoado não é o
Estado cristão que admite o cristianismo como sua base, mas
o Estado laico, democrático, que relega a religião para o meio
dos demais elementos da sociedade civil. De outro modo, o
Estado cristão é simplesmente o não,Estado, e o que nele pre,
valece não é o homem, mas a alienação. O único homem que
conta - o Rei - encontra,se especificamente diferenciado dos
outros homens, e ele é ainda representado como ser religioso
diretamente. ligado ao céu e a Deus. Ao afirmar isso, Marx
procurava demonstrar que as relações assim estabelecidas são
de fé, pois o espírito religioso não se encontra realmente secu'
larizado. Mais ainda, que o cristianismo aperfeiçoado atinge a
expressão prática de seu significado religioso universal porque
as mais variadas visões de mundo se reúnem em sua forma, e
também porque ele não pede a ninguém que o professe, mas
que apenas acredite em alguma coisa.
Seria possível imaginar um Estado judeu distinto dessatra,
jetória? Por que os judeus não puderam desenvolver um Estado
antes da época moderna?As hipóteses sobre a ausênciade terri,
tório não respondem aos problemas colocados. De um lado, por'
que os conflitos históricos decorrentes dos caminhos seguidos
pelos judeus foram sendo superadospelos conflitos entre os Esta,
dos teocráticos (veja,se, por exemplo, a estrutura dos 12, 22 e 32
Templos em Jerusalém), ou mesmo a separação entre origem e

4
Zilda Márcia Grícoli lok,

religiosidadeque marcou os conjuntos populacionaisarticula,


dos em tomo do judaísmona modernidade.
ParaMarx, o jesuitismojudaico contido no Pentateucoe
no Talmud buscavaa relação do mundo do interessepessoal
com as leis que governavama natureza,o homem e suasneces,
sidades.A formaçãodo EstadoModerno teve, como elemento
constitutivo, a oposiçãoe a guerraentre os judeuse os mouros.
A guerra foi de ordem econômica,embora se justificassee se
fundamentasseno plano teológico. Baseadonessacontradição,
o EstadoModerno não se laicizou, aprisionandoo próprio bur,
guêsna lógica do Estadocristão como pôde ser observadono
processode expulsãodos judeusda Espanhae de Portugalnos
séculosXV e XVI. O Deus dos judeus foi secularizadopela
noção do dinheiro, masnão criou um Estadojudeu, porqueele
se realizounum Estadoteológico. Assim como o judeu foi en,
tendido como um "povo classe"26-os comerciantes-, não se
transformouná burguesia,apesarde muitos judeus terem feito
parte dela; o judaísmotambémnão se transformounuma nacio,
nalidade,porquea lógica da constituiçãodo Estado,Naçãonão
comportavao universalismointrínseco a ele. A universalidade
do judaísmo se efetivou com o cristianismo. Porqueo cristia,
nismo proveio do judaísmoenquanto teoria e impôs ao judaís,
mo o seusentidoprático. O cristãoprático é o judeu teórico. O
cristianismonão absorveudo judaísmoo seusentidomessiânico
e, portanto, a idéia da utopia libertária permaneceurelegadaa
um devir abertopelospróprioslimites do Estado,porqueo cris,
tianismo, institucionalizadono augedo Império Romano,pro,
jetou um nível teológico que foi absorvido pelo Estado e se
introjetou nas formaspráticasda religiosidadeanterior. Final,
mente, a suasuperaçãono Estadolaico não levou à emancipa~
ção da humanidade.Ao contrário, os judeusforam sendoleva,
dos a constantesalteraçõesem suainserçãonos váriosterritórios
da Europa.
Perseguidose reprimidos pelos pogróns, ocorridos des,
de a Idade Média, e retomadosno séculoXIX, os judeusdes,
locaram,se rumo à Palestina, reacendendoo messianismoe
estimulando a idéia da utopia da terra prometida. No Leste
Europeu, os movimentos Hovev Zion (Amantes do Sião) e
Intolerânciae resistência

Poalé Zion (Operários do Sião), movidos pelo milenarismo


libertário, iniciaram um fluxo migratório para a Palestinacom
o objetivo de estabelecerum território onde a opressãoe os
massacresnão existissem.Os sionistas socialistasali instala,
ram dezenasde kibutz, de um lado para frear o avanço do
colonialismoe, de outro, paraconstituir uma comunidadeigua,
litária. Entretanto, naquele momento, outros interessesdispu'
tavam aquelesterritórios e a lealdadeampliadafoi submetida
à prova.
A colonização da Palestina pelos judeus também se
enquadrou no processode expansão imperialista do século
XIX, especialmentese considerarmoso sionismo político de
Theodor Herzl, que, em 1896, publicou um texto denomina,
do O EstadoJudeue realizouo primeiro CongressoSionista na
Suíça, em 1897. Apoiado pela Inglaterra e pela França,Herzl
propôs a absorçãode uma parte do território que pertencia ao
Império Turco,Otomono para os judeus,participando de uma
ciranda diplomática envolvendo o Sultão Abdulhahid, o papa
Pio X, Lloyd George(Ministro do Tesouroinglês), JamesFinn
(embaixadoringlês) e Walter Cressom(cônsul americanoem
Jerusalém), em cujas negociaçõesobjetivava,se a formação
de um "Estado-tampão" para estancar o avanço otomano e
permitir uma basede penetraçãoda EuropaOcidental na Ásia.
Portanto, o movimento sionista liderado por Herzl pre,
tendeu a formaçãode um Estadojudeu na Palestinacomo um
posto avançado da civilização contra a barbárie, ou seja, a
exclusãodos ideais libertários submetidosao neocolonialismo
e à hegemonia da Inglaterra. Essaposição eurocêntrica ga,
nhou muitas simpatias,tendo avançadocom a declaraçãode
Balfour na conquistade uma parte do território que já estava
ocupado pelas colônias socialistas.Tais colônias, criadas em
terras rurais ocupadaspelos árabes,atraíam interesseseuro,
peus não apenasde sionistas, mas de homens como o Barão
Maurice Hirsch, um empreendedoringlês, agente de imigra-
ção que queria controlar o deslocamentomaciço do norte e
do leste da Europapara o Oriente Médio.
O sionismo nasceu,portanto, como um fenômeno mo,
derno no século XIX, uma vez que a idéia do Estado,Nação

43
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

não permitia outra definição de povo que não estivessecalca~


da na tríade território, língua e cultura. De certo modo, aos
judeus limitava~seo sentido das tradiçõesoriundasdos textos
da Torá ou dos sábiosdo Sião. Essasdefinições minavam, de
alguma maneira, a confortável posição que os judeus do oci~
dente haviam conseguidonas negociaçõescom a Inglaterra,
Françae EstadosUnidos. De um lado, os interessesimperialis~
tas do Ocidente estimuladosnaquele período, especialmente
pela Inglaterra, e, de outro, a ação das comunidadessocialis~
tas da Lituânia, Polônia e Rússia.
O retomo dessesjudeusdo leste europeupara a Palesti~
na, ou Jerusalém,remete a buscade suastradiçõesculturais e
religiosase o sentido sagradocontido na idéia de restauração
do Templo de Jerusaléme da basenacional que ele significara.
Esseretomo fortaleceu também as posiçõesanti~semitas,ou
seja, a idéia de um Estadojudeu abalavaa posiçãodos assimi~
lados, incorpor~doscomo cidadãosem outros Estados,ou dos
que se laicizavamna Europa. Isaac Deutscherescreveuem A
RevoluçãoRussae o ProblemaJudeuque os maioresadversários
do sionismo na Polônia foram os operários não judeus, pois,
ao apoiarem a expulsãode operários judeus imaginando que
com issomanteriamseuspostosde trabalho,elesestavamapenas
reduzindo a class~e restringindo seu potencial de combate,
até porque os judeus eram portadoresde uma cultura letrada
e dominavam de modo mais elaboradoos fundamentosteóri~
cos do socialismo.
Estimulado pelo nacionalismo crescente na Europa,
influenciando o ressurgimentoitaliano e a unificação alemã,
Herzl, ao articular o nacionalismo27com as possibilidadesde
constituição de uma nação judaica na Palestina, atraía os
judeus do Oriente, recuperando o imaginário messiânicoda
terra livre por meio do sionismo e praticamente ignorando a
existênciade 500 mil árabesque ali haviam se instalado com
suasraízese tradições.
O estímulo da Inglaterra para a criação das Compa~
nhias ColonizadorasJudaicas,que deslocavamcontingentes
populacionais para a Palestina, Estados Unidos, Argentina
ou Brasil, fez parte desseprocessode desenvolvimento dos

AA
Intolerância e resistência

movimentoonacionalistasdo séculoXIX, como tambémdo for,


talecimento do anti,semitismo.De certo modo, as várias posi,
ções reformistas que negavam as tradições e o Talmud, tais
como o racionalismo cientificista e um certo intelectualismo,
servirampara aprofundara indefinição entre os judeus.A per,
da do sentido de pertencimentoaos lugaresde nascimentofoi
sendo transferida aos da origem religiosa e territorial, estimu,
lando a buscade uma comunidadeimaginada.Mas é verdade
também que essacomunidadecriada pela reinvenção de tra,
diçõessó foi possívelpelo constanteretomo de judeusa Jeru,
salém e pela recorrência do mito do Sião, tanto nos desloca,
mentospopulacionaisdo Ocidente, como nos do Oriente, en,
tre os séculosXII e XVI, quando o Império Otomano con,
quistou a cidade.
A hegemoniaturca permaneceuativa até o fim da Pri,
meira Guerra Mundial, mesmo com a presença,a partir da
segundametade do séculoXIX, de vários movimentos migra'
tórios ocupando a Palestina.Assim, a colonizaçãoagrícola, e
com ela o sionismo prático estimuladopelo temor da imigra'
ção maciça de judeus pobresoriundos do norte e do leste da
Europa, foi impedindo as boas hipóteses propugnadas por
Herzl, de formação de uma monarquia associadaaos interes,
sesimperialistasda Inglaterra.
Até então não havia qualquer reaçãoquanto à presen,
ça dos árabesno mesmo espaço,tanto que o próprio Barão
Maurice Hirsch negociou com eles a compra de terras para
criar colônias. No início do séculoXX, a populaçãoda Pales,
tina era de 700 mil habitantes,dos quais 615 mil eram árabes
e 85 mil judeus. Foi apenasem 1908, com a revolução dos
"jovens turcos" que a questãonacional passoua ser uma refe,
rência importante naquele território. Essemovimento latente
já havia sido mencionado como um problema em 1905 por
I. Epstein,um representantedos colonizadoresda Palestinano
72 CongressoSionista. Lembrou o representanteque a políti,
ca de colonizaçãorepresentaraum processode concentração
fundiária na Palestina,expropriando os minifundiários árabes
e abrindo a necessidadede maior aproximaçãocom essespo,
vos que eram livres, já que, até então, os colonizadoresapenas

45
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

articulavam políticas de conciliação e alianças com o Império


Otomano. As váriasconsiderações,entretanto, foram minimizadas
ou rejeitadas, deixando de lado um grande conjunto de reivindi-
caçõesdos árabes,que acabou se manifestando com pleno vigor
três anos mais tarde.
O governo inglês prometeu, em 1905, ao Príncipe
Hussen a independência das terras árabes, aó mesmo tempo
Lord Balfour negociou com o movimento sionista o estabele-
cimento de urna pátria judaica na Palestina. Naquele momen-
to, a Inglaterra não tinha poder de fato nem de direito sobre
as terras, mas o obteve mais tarde, devido a sua decisiva parti-
cipação na derrota dos jovens turcos. Em 1917, propôs um lar
nacional judeu na Palestina, que resguardasseao mesmo tem-
po os direitos civis e religiosos dos não-judeus escondendo,
entretanto, que 90% da população daquele lugar não era cons-
tituída por judeus. Em 1922, os ingleses receberam da Socie-
dade das Nações poderes para impor-se política e militarmen-
te no território. A mediação dos ingleses impedira, de fato, a
constituição de um Estado-Nação judeu, mantendo o contro-
le da área até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Mas os sionistas aplicaram com coerência as políticas
de aliança com as grandes potências, negando ao povo da
Palestina o direit9 à identidade nacional, reivindicada pelo
povo judeu. Manteve-se a matriz eurocêntrica, que deixou
marca indelével sobre o sionismo, derrotando as posições pró-
unidade nacional e aquelas defendidas pelos socialistas, que
propugnavam pela igualdade e fim do capitalismo. Aos exila-
dos, os sionistas se propunham a realizar seu translado de to-
das as partes do mundo. Essaposição acabava por legitimar o
seu contrário, fazendo crescer o anti-semitismo nos países de
origem, urna vez que os judeus passavam a ser considerados
estrangeiros, inimigos, apátridas. Foi este um dos argumentos
dos nazifascistas contra os judeus.
Corno a ideologia nacionalista somente cresceu e se de-
formou nas três primeiras décadas do século XX, abriu cami-
nho para que a questão judaica passassea ser o centro de urna
,contenda internacional. Na verdade, ela mistificava os impasses
de um mundo que se integrava na lógica da acumulação, do

46
Intolerância e resistência

capital monopolista e da necessidadede expandir seuslimi,


tes fixados anteriormente nas fronteiras territoriais dos Esta,
dos,Nação. Em dois extremos do planeta, a concentração
territorial possibilitava maior aporte de recursos econômi,
cos, entendidoscomo forças produtivas e mercados.No Oci,
dente, encerrara,se,com a Primeira Guerra Mundial, a par,
tilha do mundo entre as potênciasterrestrese marítimas, com
a derrota do liberalismo que tanto estimulara os homens do
século XIX, enca~tados com o desenvolvimento das forças
produtivas, da ciência, dos governosmediadospor represen,
tações eleitorais e por constituições e contratos sociais. O
fim da guerra, para Hobsbawm, representouo início da Era
da Catástrofe, já que os valores da vida foram submetidos
aos interessesde poderes cada vez mais tirânicos; a vida -
um valor preservávelcomo havia anunciado a ciência - pas,
sou a ser descartável,banalizada,uma vez que se submetia à
violência estabelecida pelo direito. Os regimes liberais fo,
ram sendo soterrados por militarismos, nacionalismos e
autoritarismos, todos eles oriundos de programase projetos
políticos de direita, centrados nos interessesdo capital, do
mercado e do poder dessacorrelação de forças.28
Essaconstatação nos levou a refletir sobre o impasse
registraM por Marx na questão judaica, uma vez que nesta
discussãoencontrava,se a chave do processorevolucionário.
Como ao mesmo tempo eliminar o Estado religioso e a reli,
gião?Nos parece central contrapor, nesta reflexão, a tríade
construída por Henri Lefebvre para a superaçãodos termos.
De um lado, é verdadeiro o dilema dos judeus, e a diáspora
espontâneaou imposta permitirá a busca da genealogia do
problemapara responderà questãoainda hoje aberta. O livro
do Êxodo permite o entendimento da origem, da busca da
liberdade e da utopia sobre um território sagradoe capazde
prover todas as necessidadesdo povo de Israel. A busca da
felicidade, do prazer e os messianismoslibertários que se
encontram nos cânticos de Javeh indicam que, em sua ori,
gem, o lugar da felicidade estavarepresentadopor um povo e
uma cultura. Entretanto, esselugar não podia representarape,
nas uma abstração:ele era um bem destinadoa um povo que

47
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

fora purificado por Javeh, quando este permitiu suá fuga da


escravidão.O cativeiro da Babilônia passoua ser ele mesmo
um misto de redençãoe de utopia, pois dele saíramos filhos
dos patriarcas para formar um reino sagrado. Entretanto,
a concretude destes fundamentos foi aprisionada pelo
cristianismo,que lhe garantiu a prática e dela recebeuos uni~
versaisnecessários à suaprópria constituiçãoenquantodogma.
De modo muito resumido, para pontuar o problema,
se este processopermitiu que se formulassemos postulados
de um pensamentolibertário, ele também estruturou os có~
digos de sua própria destruição - a emancipaçãodos judeus
deveria ser feita pelo Estado cristão e, este mesmo Estado,
para efetivá~la, deveria se auto~superar.Em outros termos,
os judeus concretos não poderiam reivindicar um Estado ju~
deu, pois deste modo, estariam constituindo algo mais do
que superado no Estado cristão, o qual, já no século XIX,
deixara de sê~l(J,tomando~seum Estado democrático.
Neste trabalho procuro estudaressecomplexo conjunto
de contradiçõesa partir da análisedo casobrasileiro.A questão
central é verificar como os diplomatasbrasileirosentenderama
questãojudaica. Além disto, pretendo acompanharos níveis
de discriminaçãoe de exclusãoque foram feitas contra os ju~
deusno Brasil, par~percebera permanênciaou não da separa~
ção entre cultura, povo e território, ou melhor, se os judeus
aqui existentestiveram que partilhar do movimento sionista
como os demais,os riscos existentes contra essesgrupos e o
entendimento da questão judaica para os judeus engajados
nas forças da esquerda,que lutavam pela superaçãodas clas~
sese do Estado.Ao analisar sua conexão com a geopolítica
mundial do pós~SegundaGuerra, sua relação com o Estado,
com os organismossupranacionaise o entendimento desses
grupossobre o Estado Soviético, poderemosrecuperar os di~
lemasque envolvem hoje os debatessobreEstadoe democra~
cia num panoramamundial constituído por Estadosteocráticos
cada vez mais numerosos.
O estudoda esquerdajudaica no Brasil de 1935 a 1975
deve avaliar as políticas de repressãovoltadas principalmente
contra os judeuscomunistas,os liberaise mesmoos ortodoxos,

48
:tolerância e resistência

e se foram realizadasde modo integrado pelo aparato diplo~


mático e policial brasileiros.Muito já se debateu sobre o pa~
pel polêmico de Osvaldo Aranha no comando do Ministério
das RelaçõesExterioresao longo do EstadoNovo, entretanto,
pouco se sabesobre o modo de produçãode informaçõesque
alimentaram as decisõesdo Ministro, muitas vezesrefém de
preconceitos,xenofobiase mesmode interessesde funcioná~
rios que se encontravamno exterior. Pouco se discutiu a ges~
tão de Prudentede MoraesNeto, que permaneceuà frente do
Ministério em momento tão significativo, i1jldicandocontra~
dições importantes na prática dessesservidores nas atitudes
governamentais,ora mais humanitárias e no mais das vezes
plenasde intolerânciasou de violências como ocorreu com as
deportaçõesde judeus aos nazistas.
Considerando deste ponto de vista, o estudo dos pro~
cessoshistóricos ocorridosno Brasil no período de 1935/1975,
pode recuperaros nexos explicativos das relaçõesentre as lu~
tas sociais empreendidaspelos comunistas judeus e não ju~
deus em seu confronto com o Estado.Deste modo, interessa~
nos verificar se a intolerância manifestadanas várias formas
de repressãovivenciadas no período em questão indicariam
uma política anti~semitade governo. A polêmica tem ocupa~
do as refle~õesdos historiadorese seu entendimento pode es-
clarecer os limites de ação tanto das lutas da esquerdano pe~
ríodo, como da fragilidadedo poder do presidenteem enfren~
tar os embatesinternacionaisque se tornaram mais poderosos
desdea SegundaGuerra em diante.
A historiadora Tucci Carneiro tem insistido na tese do
anti~semitismocomo política de governo. A vasta documen-
tação recolhida pela professoramostra que se trata de um pro~
blema relevante no entendimento do funcionamento de Esta~
do e da repressão.Entretanto, cotejadas as afirmaçõescom
fontes da diplomacia é possívelverificar que simultaneamen~
te às deportações,o Brasil recebeugrande contingente de ju~
deus emigradosda Europa Ocidental e dos EstadosUnidos,
especialmenteintelectuais, cientistas, grandescomerciantes,
banqueirose técnicos,indicandoque sehouve o anti-semitismo,
ele foi circunscrito aosjudeus oriundos do Leste Europeu,por

49
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

representaremuma língua bárbara e desconhecida (o iídiche) e


uma realidade social anticapitalista. Ou então, o anti,semitismo
teria sido aplicado por Vargas e seu Ministro Osvaldo Aranha
contra alguns judeus, não se caracterizando como uma política
de Estado.
Jeffrey Lesser, que estudou de modo exaustivo a imigra'
ção de judeus para o Brasil, discorda de Carneiro, argumentan,
do sobre o extremo assimilacionismo da sociedade brasileira,
que recebeu judeus no Brasil desde o período colonial até os
refugiados do Pós,Segunda Guerra.
Possoafirmar que em ambos os autores existem verdades
parciais. Elas, entretanto, não definem nem um assimilacionismo
total, nem uma política de Estado anti,semita. Em todo o pro,
cessohistórico brasileiro, as discriminações se fizeram pela mar,
ca social. Assim, no período indicado nesta pesquisa, os judeus
perseguidoseram em primeiro lugar comunistas ou intelectuais
de esquerda e não apenas judeus}9
No caso brasileiro, a discriminação social se fez guiada
pelo paradigma europeu negando projetos que estabelecessem,
no processode ruptura colonial, o fim da escravidão e a socie,
dade do contrato social. O paradigma exterior fez com que se
negassemas experiências culturais nativas, os valores multicul,
turais trazidos pelos,diferentes e inúmeros imigrantes e mesmo a
pródiga natureza que acabou ameaçada. Racismo, discrimina,
ção aos modos de vida rurais e as práticas camponesas, numa
sociedade marcada pela violência da escravidão e do autori,
tarismo, formaram um continuum sem mudanças}OAutoritaris,
mo, anticomunismo, repressão,controle sindical, limitaram sem,
pre a democracia, confundindo as esferas públicas e privadas.
Martins considera este um drama da história lenta do país, que
reforma para não mudar as estruturas sociais e políticas}1
Olhando do ponto de vista do Brasil, acompanhamos pela
história de um lugar, a grande história de quatro décadas de
Guerra Fria (1945,1989)., em que o jogo mundializado interfe,
riu nos destinos de cada um, de modo mais ou menos direto.
No primeiro capítulo recupero, a partir dos anos de 1920,
o entendimento que diplomatas brasileiros tiveram sobre a ques,
tão judaica, especialmente os debates sobre os imigrantes do

50
Intolerância e resistênci.

Leste Europeupara a América e para o Oriente Médio, como


representações dessecontínuo movimento de diáspora}2Tra~
tam~sede documentosdas embaixadasdo Brasil no exterior,
nos quaisos funcionáriosdo Ministério dasRelaçõesExteriores
(MRE) analisaramou produzirampetições,cartas,telegramas,
principalmente sobre os imigrantes, refugiadospolíticos e de
guerras.Essematerial, cotejado com a vasta bibliografia sobre
as relaçõesinternacionais,nos indicou os objetivos,os limites e
as utopias expressaspelos judeus que migraram ou se refugia~
ram no Brasil. Dentre estes,e~colhi os membrosdas organiza~
çõesde esquerda,fossemeles militantes de instituiçõescomu~
nistasou socialistase aquelesque foram observados como mili~
tantes ou suspeitos;pessoasque seguiamem buscade sonhos
múltiplos, muitas vezesnão compreendidospelosfuncionários
que ocupavamos postosde vigilância e de segurançajunto aos
departamentosde segurançainternacional das Embaixadas.
Nesta parte, procurei detalhar nuancesque aparecemna docu~
mentaçãodiplomática, separandoas tipologias documentaise
verificando como relatórios, normas, leis, notícias, depoimen~
tos e intrigascompõema teia dosfatos.Da mesmaforma,quan~
do necessário,os processosexplicativos das questõesindicadas
foram tratadosnasfontes primárias,cruzando~as com o densoe
diversificado debatehistoriográfico.
No segundocapítulo, percorri os debatessobre a ques~
tão judaica com a documentaçãopolicial do período de 1935
a 1975. Foram analisadosprontuários, dossiêse demaisdocu~
mentos, reunidos nos arquivos públicos do Estadodo Rio de
Janeiro e de São Paulo, especialmente a série oriunda dos
Departamentosde Ordem Política e Social.
Polícia e poder, autonomia policial e os fundamentos
do processorepressivoinstauradocontra a esquerdaem geral
e os judeus em particular são revisitados.As fontes são as da
repressãoe elucidam como os agentespoliciais atuavam em
relação aos judeus, sendo que foi por meio delas que pude
reconstituir uma história da esquerda,mesmo considerando
as dificuldades em se lidar com fontes da repressão.Imagens
distorcidas, depoimentos obtidos sob tortura, mentiras que
seguiamorientaçõesde normasde segurançadas organizações

51
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

clandestinas,informantes infiltrados e documentosanônimos


permitiram recuperar as formas criadaspelos judeus imigran,
tes para viabilizar o sonho da igualdadeoriginária do Bund
(Algemener Yidisher Arbeter Bund),33realizadaou pretendi,
da no Brasil, bem como suarelaçãocom os comunistase com
o sionismo. Nessesentido, refleti sobre as continuidades das
lutas desenvolvidasna Europa e no Brasil, o papel da guerra,
da repressão,das várias tendênciasdas esquerdasna definição
de suaspráticas e as instituições criadas para fazer frente às
tarefaspolíticas e culturais definidas pelos gruposanalisados.
No terceiro capítulo, analiso as representaçõesdos ju,
deuse das lutas libertáriaspelo resgateda memória.Os depoi,
mentoscolhidosde diferentesparticipantesque de algum modo
estiverampresentesnas lutas em São Paulo, na criação e no
desenvolvimento da Casa do Povo, desdesua instalação no
Centro Cultura e Progressoaté a formaçãodo Instituto Cultu,
ral IsraelitaBrasil~iro (ICIB). Além deles,dois veículosde im,
prensapermitiram o resgatecotidiano dos debatesexistentes
sobre os acontecimentos mundiais e locais. No conjunto de
pessoasque gentilmente abriram seu coraçãoe suasferidas a
umagói,relatandodetalhesde sentimentostão profundos,pude
perceber a riqueza do vivido e do processode superaçãode
sonhostão belos e sofridos. Assim busco apreendero funcio,
namento daquele espaçocultural e político da esquerdaju,
daica em São Paulo, o desenvolvimento da cultura política
do grupo, articulado à militância, no coro, no teatro e na es,
cola. De certo modo, pude resgatarmemóriasque apontaram
a ausência dos debates culturais antes de 1968, no Partido
Comunista, que esteve controlado por práticas stalinistas.34
Os esforçose debatesao final da décadade 1920, para cum,
prir o programa revolucionário da Internacional Comunista
(IC), a construçãodo edifício do Teatro da AssociaçãoIsraelita
Brasileira(TAIB) e a instalaçãoda EscolaScholemAleichem,
nos anos de 1950, indicaram um amplo esforçode desenvol,
vimento cultural. Esseespaço,que recebeuo nome de Institu,
to Cultural Israelita Brasileiro, abrigandoa Casado Povo, foi
um centro de articulação política e de difusão cultural, base
legal e de manutençãodo PartidoComunistado Brasil em suas

,,7
Intolerância e resistência

duas fases,núcleo de resistência e de abrigo aos intelectuais dos


Centros Populares de Cultura (CPCS);5 do grupo Arena, do
Oficina. Nele foram realizados muitos debates entre os educa,
dores críticos, reunindo as experiências dos colégios experi,
mentais, de aplicação e o próprio Scholen. Seu jornal, Unzer
Shtime (Nossa Voz), debateu os problemas internacionais vivi,
dos pela comunidade ao longo do período e, com ele, os jo,
vens, reunidos nos clubinhos puderam receber muitas orien,
tações necessáriasà sua formação política e intelectual. Tam,
bém analisei O Reflexo, Revistada Juventudelsraelita Brasileira,
que era apoiada e editada na mesma redação do jornal Nossa
Voz. Os depoimentos compõem o roteiro desta rememoração
e representam a voz do passado dos militantes ainda vivos de
três gerações de judeus de esquerda. A primeira, que imigrou
nos anos de 1930, já com tarefas da Internacional, aqueles
que participaram da criação do Centro Cultura e Progresso,
desenvolvendo atividades nas décadas de 1940/50, e a gera,
ção das décadas de 1960/70, durante a ditadura civil,militar.
Nas considerações finais, retomei ao tema teórico para
destacar a atualidade da questão judaica no entendimento dos
conflitos contemporâneos e dos limites da democracia atual.
Para tanto, as referências estão nos debates e nas contribui,
ções de Karl Marx, Henri Lefebvre, Michel Lõwy e Benedict
Anderson sobre o messianismo judaico, a utopia libertária e o
Estado, procurando explicitar os dilemas apontados anterior,
mente entre judaísmo e marxismo, ou melhor, entre religio.-
sidade e Dolítica.

53
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

N o

1 O EstadodeSãoPftulo, 6 fev 2001. Caderno A, pp.16-17.


"
2 A origem da Haganah remonta à Primeira Guerra Mundial, quando
Vladimir Jabotinsky, correspondente de um jornal de Moscou, uniu-se
a Joseph Trumpeldor, um herói da Guerra Russo-Japonesa,criando
uma unidade militar (Unidade de Mulás do Sião) para lutar em defesa
dos judeus contra os turcos no Oriente Médio. Essaforça militar permi-
tiu a unidade entre os judeus, que no final do século XIX passarama
ocupar a Palestina. Apesar da oposição britânica, ela permaneceu ati-
. va
de em três batalhões
voluntários de fuzcileiros
americanos; reais:
o 402 o 382 Est End
recrutado pelo de Londres;
próprio 0392
Yishuv.

Jabotinsky serviu no 382, fazcendoa travessia do Rio Jordão. Termina-


daa Guerra, os dois líderes militares da unidade foram surpreendidos
pela ação britânica, que ordenou a desmobilizcaçãoda Legião Judaica.
Dessaforma, nasceua Haganah, como força de autodefesaclandestina,
embrião de um poderoso exército. Em 1920, o grupo entrou em ação
pela primeira vezccombatendo os árabesque atacaram os povoamentos
judeus na Galiléia. Trumpeldor foi morto em combate. Jabotinsky foi
preso com outros membros da Haganah, condenado a 15 anosde traba-
lhos forçados. Na década de 1930, houve uma grande cisão no Con-
gresso Mundial Sionista. A Haganah (revisionista) foi acusada por
Davi Bem Gurion de fascista.Ver sobrea questão:JOHNSON, P.Histó-
ria dosjudeus. Rio de Janeiro: Imago, 1995, pp. 451; 453 e 463; YIGAL,
A. The Makingoflsrael's Army. Nova York: s/ed., 1970.
3 As acusaçõescontra Sharon são inúmeras, fazcendotremer os defensores
da ordem jurídica e da pazcinternacional. Execução semjulgamento de
dirigentes palestinos em Gazca,envenenamento de poços de água em
áreasocupadaspor beduínos, instalação de assentamentosjudaicos em
terras palestinas, são alguns dos feitos atribuídos ao novo Primeiro-
Ministro.
4 RORTY, R. Justiça como lealdadeexpandida. In MENDES, C. (Org.)
Pluralismo cultural, identidadee giobalização.Rio de Janeiro: Record,
2002, pp.494-517.
5 COTLER, Irvin. Religião, intolerância e cidadania: rumo a uma cultu-
ra mundial dos direitos do homem. In:lntolerância: Foro internacional
sobrea tolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 60- 73.

'14
Intolerância e resistência

6 ASIMOV, I. Fundação.Rio de Janeiro: Paze Terra, 1982.


7 Organização das Nações Unidas, criada em 1947 em território ameri-
cano com objetivo de estabelecer equilíbrio econômico-social e a
segurança internacional, limitando a autonomia dos estados para
evitar a guerra. Será abordada com mais detalhe no capítulo I.
8 CHOMSKY, Noan. Camelot: osaoosKennedy. São Paulo: Scritta Edi-
" torial, 1993. Citando Tocqueville, Chomsky define a metáfora-título
'ae seu trabalho: Camelot, "[...] enquanto assistiaao exército america-
no expulsar os índios de suas moradias, no meio do inverno, com a
neve dura no chão, um espetáculo solene de morte e degradação, se-
guia a marcha triunfal da civilização através do deserto", p. 14.

9 Idem, ibidem.
10 LÉVI-STRAUSS,Claude.Antropologiestructureladeux. Plont, 1973,
pp. 383-384.
11 A intolerância.:Foro Internacional sobrea Intolerância, UNESCO, 27
de maio de 1997, La Sourbonne, 28 de março de 1997. Academia
Universal dasCulturas, publicação sob a direção de Françoise Barret-
Ducrocqj Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000,


12 BOBBIO, Norberto. A Era dosDireitos. Rio de Janeiro, Campus, 1982.
13 CAN ÇADO, JoséMaria et aUi. EntrevistamBoaventurade SouzaSan-
tos. Disponível em: www.dh/Direitos Humanos em 25/02/03.

14 Idem, ibidem.
15 Idem, ibidem.
16 Ver BENEVIDES, M. V. Violência, Povoe Polícia: Violência Urbana 00
Noliciário da Imprensa.São Paulo: Brasiliense, 1983. HOROWITZ, D.
(Org.). Revoluçãoe Repressão.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969;
PINHEIRO, P.S. EscritosIndignados.São Paulo: Brasiliense, 1984.
17 TOCQUEVILLE, Alexis A democraciaamericana.São Paulo: Cia. Edi-
tora Nacional! Universidade de São Paulo, 1969.
18 MARTINS, J. de S. O Poder do Atraso. São Paulo: Hucitec, 1994;
BRAUDEL, F.O Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

19 MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos.Lisboa: Edições 70,


1993. (Prefácio de Eric Fromm e Introdução de Thomás B.
Bottomore).
20 ARCARY, V. As EsquinasPerigosasda História. São Paulo: Tese de
Doutorado, FFLCH-USP, 2000.

55
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

21 JOHNSON, P. História dosJudeus. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p.


324.
22 Idem, ibidem.
23 MARX, K. Op. cit., p. 37.
i
24 LESSER, Jeffrey. O Brasil e a QuestãoJudaica: Imigração, Diplomacia e
Preconceito.Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 25.
25 HEGEL, F.Grundlinien der PhilosophiedesdRechts.I. Aufgabe, 1821,
p. 346., Apud MARX, K. Op.cit., p. 45.
26 LÉON, A. Concepci6nMaterialista de laCuesti6nJudía. In MARX, K.
LaCuesti6nJudía. BuenosAires: Heráclito, 1974.
27 O nacionalismo que serealiza com o nascimento do Estado Moderno
guarda um conjunto de demandas de universalidades, especialmente
decorrentes de um sentido da autodefesa,da propriedade e do direito
marcadamente ligados ao principio da unidade território, lfngua e
cultura. Já o nacionalismo judaico está centrado num movimento de
busca,de presençae ausênciaarticuladas com a idéia da Terra Prome-
tida na trfadeAb;aão, o errante, Moisés, o legislador, e Cristo, o enig-
mático, ou seja, a diáspora, a Lei e o Messias.
28 HOBSBAWM, E. Era dosExtremos: O BreveSéculoXX-1914/1991.
São Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 113-118.
29 CARNEIRO, Ma. L.Tucci. O anti,semitismo na era Vargas.(1930-
1945). São Paulo: Brasiliense, 1988; LESSER, J.O Brasil e a questão
judaica imigração, diplomaciae preconceito. Rio de Janeiro: IMAGO,
1995.
30 EISEMBERG, Peter.Modernizaçãosemmudança:a indústriaaçucareira
emPernambuco.1840/1910. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1977.
31 MARTINS, Joséde Souza. O poder do atraso: ensaiosde sociologiada
história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
32 A série documental analisada é constitufda por correspondências re-
cebidas e expedidas pelo Ministério das Relações Exteriores, e reuni-
da no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro, onde tive-
mos acessoà documentação corrente e aosdocumentos reservadosou
confidenciais, trocados entre os representantes do governo e seus
interlocutores em diferentes pafses.
33 União Geral dos Trabalhadores Judeus, uma organização de massas
no Império Russo, para Hobsbawm, de tendência social-democrata.
Brossat e Klingberg afirmam: "Des sa fondation, le Bund seconsidere
comme parti prenante du mouvement social-démocrate ~sse. Trois
de sesdéléguésson présents lors de Ia fondation du POSDR en 1898,
Intolerância e resistência

il est représene à son Comité central, doté d'une solide structure


organisattionelle, regroupant desmiliers de militants (25.000 à 35.000
entre 1903 et 1905)". Op. citop. 34 ("Desde a suafundação, o Bund se
considera o partido aliciador do movimento social-democrata russo.
Três de seus delegados estavam presentes quando da fundação do
POSDR em 1898; ele (o Bund) é representado por seu Comitê cen-
tral, é dotado de uma sólida estrutura organizacional, e reúne milha-
res de militantes (de 25000 a 35000 entre 1903 e 1905") (Tradução
nossa)). Ver ainda MINCZELES, Henri. Histoire Genéraledu Bund. Un
Mouvemt Revolutionaire]uif. Paris: Austral, 1995.
34 Alguns intelectuais entrevistados insistiram na pobreza cultural dos
comunistas, como se esseproblema decorressede uma orientação de
Moscou. Ver Nelson Pereirados Santos e JorgeAmado. In: RIDENTE,
M. Em buscado Povo Brasileiro: Artista da revolução, do CPC à era da
TV. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2000, pp. 67-69.

35 Idem,ibidem.

~7
Intolerância e resistência

Eu quero dizer que a única coisalinda na minha vida foi


ter tido o partido. Eu não sei o que seria se eu tivessea
concepção de hoje e tivesse saído do partido, eu me
sentiria destroçada,arruinada, aniquilada. Me alimento
muito da história do partido, onde é que poderia ter
acontecido a não ser lá, a coisa mais linda que poderia
ter acontecido a um ser humano, ter lutado por coisas
tão bonitas, subir, crescer,ver o mundo sobreoutro ân,
guIo e criar um certo pudor em relaçãoàs coisasmenos
importantes,saberter a medida,até certo ponto, "doque
é importante e do que não é. Então eu acho que quem
passoupela história do partido pode morrer tranqüila
porque viveu, sofreu, com dignidade, conheceu gente
maravilhosa,que a história não repetiu, pois a história
não se repete.Essaspessoaspor causadascondiçõeshis,
tóricas, não tinham necessidadede heróis, como disse
uma vez o Malina, mas só tinha heróis, heróis no coti,
diano. Então eu vejo com melancolia quem não tem
uma história dessapara contar!

369
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

É claro que a pessoaque não viveu, que não sentiu, não


pode ter essadimensão, mas quem como nós vivemos
aquilo tem um lastro de vida, que te alimenta, que te
enriquece, que te torna feliz. Por acasoeu encontrei,
preciseiencontraro partido como eu encontrei a Felícia,
o Bernardo que me levaram e que me alimentam até
agora.Eu ouço às vezesem entrevistas o Apolônio de
Carvalho e sinto a mesmasensaçãode alegria,de cerre,
za de que nós agimos corno deveríamos agir e que o
mundo para ser um mundo, só pode ser socialista. E
nunca ficarmos decepcionadoscom as pessoasporque
nós somos pessoas, também erramos,l1lasnão deve,
mosnos deixar vencer por essaarma terrível que asclas,
sesdomin~ntes têm, que é nos deixar apáticas,indife,
rentes e desesperançadas. Não precisa nem metralha,
dora, bastaessadesesperança para que as classesdomi,
nantes possamsobreviver.

[Sara Becker Mello]'

A memória de Sara sobre o passadotem em si mesma um


sentido positivo mostrando o vigor desta mulher, que se toma
um gigante quando revive os momentos de luta, de dor e de
prazer dos tempos pretéritos. Tempos consolidados, importan,
tes no autoentendimento do vivido, que se refez continuamen,
te tanto pelas representaçõesque foram sendo criadas sobre esse
vivido, como pela agregaçãoda memória coletiva do grupo de
judeus comunistas dedicados à causa da liberdade. Essamemó,
ria coletiva, de redesde interrelaçõesestruturadas, imbricadasem
circuitos de comunicação,2essemodo de rever o passadoatributo
da memória, permite ao sujeito construir suas narrativas e delas
tirar os rumos de uma vida, dedicada, neste caso particular, às
causassociais e coletivas.
Cabe aqui um balanço das várias memórias recolhidas e
perguntar qual sua relação com a história. De certo modo, ore,
sultado das investigaçõesrealizadastem um sentido desigualcomo
se pôde verificar pelos documentos utilizados nesta pesquisa.De
um lado, o conjunto analisado no primeiro capítulo - documen,
tos diplomáticos - faz parte dasformascomo a instituiçãodeci,
diu organizar as atividades dos funcionários governamentais nas

,,7C1
Intolerância e resistência

Foto 56 - Sara Becker Mello no Comício pelasDiretas Já em São Paulo em


26/06/84

371
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

embaixadase consuladosem diferentespartesdo mundo. Não


se tratava de registro memorialístico, mas de organizaçãodo
funcionamento da burocraciano exercício de funçõesespecí,
ficas. A buscadessesdocumentospelo historiador é feita com
o intuito de recuperarfragmentosdo passadoe procurar per,
ceber como eles permitem o entendimento da diversidadedas
relaçõesentre o Estadoe a sociedadenos momentosreferidos.
Assim, para encontrar os imigrantese refugiadosde guerra,o
conhecimento do funcionamento da máquina administrativa
e de seusresponsáveisfoi mais importante do que de fato o
encontro dos personagensdeste livro. Foi o modo como esses
atores manifestaramseu entendimento sobre o seu momento
vivido que definiu a forma dos registrossobre homens e mu,
lheres deslocadosde paísesdistantes.
Outro conjunto tratado no segundo capítulo provêm
dos registrosreunidosno DOPS. Aqui, além do entendimento
do funcionamento dos mecanismosutilizados pela repressão,
ainda foi necessáriodepuraros diferentesmodoscomo os fun,
cionários (delegados, investigadores, escrivães, médicos e
infiltrados) representaram o grupo dos judeus comunistas.
Como o aparelhode Estadonão é homogêneo,já que é consti,
tuído por uma diversidadede sujeitosna depuraçãoanalítica de
suaprática, foi p~ssívelencontrardiferençassignificativas,bre,
chashistóricas,nuançasresponsáveis por sobrevidasou mortes.
As histórias de vida recuperadasno terceiro capítulo,
por mais carregadasde emoção,também exigiram um traba,
lho investigativo que relativizasseo sentido absolutoe pessoal
do depoimento,de modo a inserir o narrador na complexida'
de dasrelaçõessociaisdo seuvivido. Lembrançasde um pas,
sado cheio de emoção aparecemem cada relato, presenças
nas ausênciase dessemodo um reconstruir contínuo de signi,
ficados permitindo entendimentosmúltiplos dessasvidas.
Ao longo de todo o texto, as imagens.Procurei nesse
percurso encontrar as várias representaçõescongeladasnas
fotografias dessalonga história. Inicialmente, o lugar de dis,
puta contínua e o símbolo das representaçõesreligiosas.De,
pois, os deslocamentospopulacionaisvariados.

372
Intolerância e resistência

Pude, além disso, recolher imagens das lutas por direitos


e cidadania que os próprios militantes e suas organizações pre,
servaram. São imagens variadas de comícios, atividades tea,
trais, corais, brincadeiras, férias e a atividade escolar da ju,
ventude paulista, participando da vida cultural oferecida pela
Casa do Povo. Pelas imagens é possível perceber a divergida,
de de práticas culturais e a amplitude de seu público, que não
se limitou aos militantes comunistas judeus de São Paulo.
Há ainda imagensrecolhidas pelos órgãosrepressores,cujos
materiais apreendidos mostram cenas do cotidiano dos militan,
tes relativas à sua vida privada, que nos acervos da repressão
permitem compreender como a máquina do Estado usurpava
dos perseguidoso direito de preservaçãoda vida civil e familiar.
Ainda nesse campo, percebe,se não o vivido dos militantes,
mas o sentido e o funcionamento das instituições referidas.
Um conjunto pode atestar como a violência do Estado
registrou imagens fortes e bem constituídas de seu orgulho
destrutivo. A imagem do holocausto é siginificativa do afã de
mostrar o outro violado e humilhado de tal modo que a
fúria autoritária se colocou com clareza nas imagens
deliberadamente produzidas. Há ainda imagens dissimuladasque
procuraram esconder a violência dos aparelhos da repressão,
responsabilizando as vítimas pelos desmandos do poder policial
clandestino, como se órgãos como a OBAN e os DOI,CODls
não fossem do conhecimento de todas as autoridades governa'
mentais. Essasúltimas foram, na medida do possível, contra,
postas às imagens dessesjovens militantes para permitir ao leitor
um outro olhar que marcassea esperançadesseshomens e mu,
lheres na construção de um país mais justo e democrático.
Dessemodo foi possível perceber as muitas escolhas pre,
sentes nesse conjunto documental, organizado de tal modo
que permite recuperar a história dessesprocessos pela crítica
da sociedade. Assim, a história não é cativa da memória, já
que esta é um mecanismo de registro e retenção, depósito de
informações, conhecimento e experiências.3 Para Meneses, ela tem
que ser resgatada, pois se perde pelo esquecimento, pelos
traumas que precisam de remoção, estratospor estratosaté a luz
do dia, tal como o argueólogodesenterraos objetosretidos no solo.

373
Intolerânciae resistência

Pude, além disso, recolher imagens das lutas por direitos


e cidadania que os próprios militantes e suas organizaçõespre,
servaram. São imagens variadas de comícios, atividades tea,
trais, corais, brincadeiras, férias e a atividade escolar da ju,
ventude paulista, participando da vida cultural oferecida pela
Casa do Povo. Pelas imagens é possível perceber a diversida,
de de práticas culturais e a amplitude de seu público, que não
se limitou aos militantes comunistas judeus de São Paulo.
Há ainda imagensrecolhidas pelos órgãosrepressores,cujos
materiais apreendidos mostram cenas do cotidiano dos militan,
tes relativas à sua vida privada, que nos acervos da repressão
permitem compreender como a máquina do Estado usurpava
dos perseguidoso direito de preservaçãoda vida civil e familiar.
Ainda nesse campo, percebe,se não o vivido dos militantes,
mas o sentido e o funcionamento das instituições referidas.
Um conjunto pode atestar como a violência do Estado
registrou imagens fortes e bem constituídas de seu orgulho
destrutivo. A imagem do holocausto é siginificativa do afã de
mostrar o outro violado e humilhado de tal modo que a
fúria autoritária se colocou com clareza nas imagens
deliberadamente produzidas. Há ainda imagens dissimuladasque
procuraram esconder a violência dos aparelhos da repressão,
responsabilizando as vítimas pelos desmandos do poder policial
clandestino, como se órgãos como a OBAN e os DOI,CODIs
não fossem do conhecimento de todas as autoridades governa'
mentais. Essasúltimas foram, na medida do possível, contra,
postas às imagens dessesjovens militantes para permitir ao leitor
um outro olhar que marcassea esperançadesseshomens e mu,
lheres na construção de um país mais justo e democrático.
Dessemodo foi possível perceber as muitas escolhas pre,
sentes nesse conjunto documental, organizado de tal modo
que permite recuperar a história dessesprocessos pela crítica
da sociedade. Assim, a história não é cativa da memória, já
que esta é um mecanismo de registro e retenção, depósito de
informações, conhecimento e experiências.3 Para Meneses, ela tem
que ser resgatada, pois se perde pelo esquecimento, pelos
traumas que precisam de remoção, estratospor estratos até a luz
do dia, tal como o argueólogodesenterraos objetosretidos no solo.

'2'7'2
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

Para o historiador, a decomposiçãoentre a memória


coletiva e a nacional exigeum profundoprocessoinvestigativo,
já que a última não é a somatória das diferentes memórias
coletivas integradasno processonacional. Ela é fruto da cul,
tura e do desenvolvimentoda identidade nacional, das ideo,
logiasque devemser decodificadasno resgatedo processohis,
tórico. Esseprocessonão é linear e nem homogêneo e dele
decorreo entendimento dos conflitos analisadosneste livro.
Como o Brasil passoua viver a partir de 1930 um hiato
extremamentecomplicado do ponto de vista do Direito e da
Diplomacia,esseprocessoacaboupor interferir no modo como
o país se relacionou com o exterior, e dessarelação decorreu
o tratamento dado aos imigrantes no período. Em primeiro
lugar, um governo provisório que se estendeuaté a Constitu,
inte de 1933, cujo resultado foi a promulgaçãoda Constitui,
ção em 1934, que tornava o conjunto legal dotado de certo
hibridismo, cuj~s contradições não tardariam a aparecer; o
intervencionismo econômico não estavade acordo com o li,
beralismo político, e este não se realizava na prática social
autoritária. A ação centralizadora do Estado sobre a econo,
mia careciade basesde controle sobrea classeoperária. Ha,
via para os grupos que se manifestavam desde a década de
1920 uma forte expectativa em relação ao restabelecimento
da ordem democrática,especialmenteporque as lutas em de,
fesa do processoeleitoral haviam atingido um grau máximo
em 1932, unindo liberais e atraindo a esquerdamilitar e ope,
rária de São Paulo para um movimento de questionamentoda
frente popular, que acabouchegandonum confronto militar.
Os conflitos relacionadosaos interessesdos trabalhado,
res ampliaram,see novas grevesforam deflagradas,como a do
setor bancário de São Paulo em 1934, apoiadaspelo Partido
Comunista, entre muitas outras.4Evidentemente,a expansão
das lutas reivindicativas fortalecia os setores ligados à
Internacional Comunista e dentre os membros atuantes na
organizaçãoda frente popular estavamalgumasliderançasque
haviam criado o Centro Cultura e Progresso. Ali faziam
reuniõesou delasparticipavam atraindo grandepresençaope,
rária no Centro e dinamizandosuasatividades.As liberdades

~74
Intolerância e resistência

políticas definidasna nova Constituição entusiasmaramtanto


os gruposprogressistas, quanto, no plano internacional, os re,
presentantesbrasileirosnas várias embaixadas.Osvaldo Ara'
nha, em Washington, apostavano processoeleitoral, que de,
veria ser aberto rapidamente,e tentava convencer os ameri,
canosde que o caminho democráticodefinido pela nova Car,
ta Magna seria duradouro. Havia muita expectativa especial,
mente sobre as eleiçõesa seremrealizadasno ano de 1938 e
na candidaturade Armando de Salles Oliveira.
Desdeo ano de 1924,entretanto,vinha sendopreparado
um acordo de cooperaçãomilitar entre o Brasil e os Estados
Unidos, especialmente no que se refere a uma missão de
instruçãonaval. De fato, os acordossecretosindicavamque as
expectativasda vigênciada democraciaeramapenasdiscursivas.
Informaçõessobre o acordo militar, publicadasna impressa,
motivaram muitos protestosna América Latina, especialmente
do governoargentino,que alertavapara o perigode uma corri,
da armamentistano continente latino,americano.5
O protesto tinha legitimidade do ponto de vista dos di,
plomatas,uma vez que, naqueleperíodo, uma grandearticula,
ção estavasendo montada entre eles, objetivando dois níveis
distintos de c~operaçãono plano das relaçõesinternacionais:
uma ampla movimentaçãoorientadapelos respectivosministé,
rios das RelaçõesExteriores da Argentina, Brasil e Chile, no
sentido de acompanharo plano de organizaçãodos membros
da InternacionalComunistae outra, a cooperaçãoentre os sis,
temaspoliciais e de segurançadessespaíses,lançando as bases
de um sistemaintegradode repressão. A estratégiaestabelecida
pelos agentesda repressãobaseava,seem trocas de informa,
ções,vigilância de fronteiras,treinamentode quadrose, especi,
almente, um sistemade informaçãobaseadona infiltração de
agentesnos gruposda esquerdaque lhes permitissemconhecer
"por dentro" o funcionamento de seusopositores.6
Nessequadro, havia preocupaçãocom os deslocamen,
tos populacionais,e a vigilância sobreos gruposde imigrantes
era feita prioritariamente em relação àquelesque não estives,
sem mediadospelas empresascolonizadoras.A ICA era um

17,
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

exemplo, pois estavaenvolvida com o transladode colonosjá


há algum tempo e atribuía,sea ela os cuidadosnecessários na
seleção daquelesque seriam trazidos para o Brasil. O grupo
mais numerosoentre os imigrantes era o de judeus e assima
orientação que se fazia aos agentesno exterior era a de esco,
lher entre eles os que pudessemser inseridosno sistemapro,
dutivo por portarem capitais ou conhecimentos técnicos. A
vigilância sobre os judeus era realizadano grupo oriundo do
Leste Europeu, por seremcomunistas.
No Brasil, os dois gruposobjetivavam uma maior apro,
ximação com os americanos: a esquerda,que tinha muitas
esperançasno movimento comunista dos EstadosUnidos, e
os liberais, que esperavamum certo apoio ao novo processo
sucessório com base nos acordos e negócios obtidos pelo
embaixador Osvaldo Aranha. Assim, "quando ocorreu o gol,
pe de 1937, conhecido pela circular 1.166 de 12 de novem,
bro, enviada pelo Itamaraty às missõesdiplomáticas sediadas
no Rio de Janeiro"7, o nível de preocupaçãocresceumuito e
Aranha teve de fazer um grande esforço para tranqüilizar o
Departamento de Estado norte, americano.
Pareciaaos políticos americanosque o Brasil realizaria
uma política externa mais voltada para a Europa. Evidente,
mente, a inclinação para o eixo se fez por interessescomuns
entre os vários quadrosdo governo: admiraçãoà ordem e ao
plano propagandísticodo Reich, um certo antiamericanismo
de muitos, mas especialmentedo próprio Presidente,tentati,
va de ganhar uma dimensãoeconômicana Europacentral. O
controle e a segurançaestabelecidoscom os paíseslatino,
americanoshaviam preparadoessaestratégia.
Dessaforma, mais do que medidas de prevenção ao
processopolítico circunscrito ao território nacional, havia
um importante campo de cerceamento ao programa
associativoda esquerdalatino,americana e a quebra de soli,
dariedadeinternacional da classeoperária. Do mesmomodo,
ao entender o amplo processode inter,relação que já se de,
senvolvia desdeos anos de 1910, no campo de forçasda clas,
se operária (especialmentedos libertários, quando estesdes,
locavam lideranças intelectuais e programasde cooperação

376
Intolerância e resistência

para formar os trabalhadores um processo cultural que os li,


bertasse das concepções próprias das elites}, os governos, bra,
sileiro e argentino, preparavam um tamponamentodas frontei,
ras, esperando que as vantagens obtidas com o governo do
Terceiro Reich seriam suficientes e compensatórias ao progres,
sivo afastamento em relação aos Estados Unidos. Esse plano
explicava as atitudes tolerantes do governo em relação a um
conjunto de denúncias remetidas ao Itamaraty pelos governos
do Paraná e de Santa Catarina a propósito da formação de
grupos nazistas naqueles Estados.B
Vargas, entretanto, não pôde manter uma clara aproxi,
mação com o Eixo, já que inúmeros manifestos de diferentes
setores acabaram por exigir alguma alteração em seus planos
de ação. É visível, nesse caso, a pressão exercida interna e
externamente, especialmente pela nomeação de Osvaldo Ara,
nha, em março de 1938, para o Ministério das Relações Exte,
riores.9 Tal nomeação não se fez sem sérias conseqüências para
os estrangeiros residentes no país. Estava proibida toda a ati,
vidade de caráter político, desde organizar clubes, socieda,
des, partidos políticos do país de origem, desfiles, passeatas
ou manter jornais, revistas e demais publicações.lo Ficavam
preservados os direitos de reunião e organização com objeti,
vos culturais ou de assistência, sendo este o único dispositivo
que permitiu a continuidade do Centro Cultura e Progresso.
Mesmo assim, um forte sistema de espionagem e de controle
sobre seus membros demonstra que não era especialmente
contra os nazistas ou seus simpatizantes que o Decreto n$! 383,
de 18 de abril de 1938, era dirigido. Complementa esse qua,
dro de vigilância e controle a nacionalização da educação.
Assim, o caso polonês, recuperado neste trabalho,
insere,se num momento político baseado nas oscilações e
ambigüidades do governo brasileiro em relação aos comprome,
timentos internacionais, mas é bastante definido no
combate aos comunistas, especialmente à sua cooperação
internacional. Esseconjunto de decretos, cerceadoresdas liber,
dades organizacionais dos estrangeiros, possibilitou um amplo
investimento num sistema repressivo que deixou profundas
marcas no país. Não é supérfluo relembrar que as deportações

~77
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

impostas aos comunistas judeus fazem parte desse processo.


De fato, o anticomunismo, quando agregado ao componente
judaico, despertou grande ira e cooperou para um sistema que
teve seu último ato no holocausto.
A correspondência da diplomacia brasileira também de~
monstrou, ao longo de todo o período, uma profunda diferen~
ça em relação à postura do governo federal. Assim, cabe res~
saltar a importância de Aranha como um Ministro que procu~
rou aparar as posições mais evidentes do antiamericanismo de
Vargas. O Presidente chegou, em vários momentos, a explicitar
uma posição contrária ao imperialismo norte~americano. O
famoso discurso que proferiu em 11 de junho de 193811é um
indicativo, e a reação do Embaixador dos Estados Unidos
encontra em Outra e Góis Monteiro uma boa base de apoio.
Estava construída uma relação que seria aprofundada a partir
daquele ato, quando os militares brasileiros passariam a rece~
ber, do Departamento de Estado norte~americano, coopera~
ção sistemática.
Essateia do fato foi aos poucos sendo tecida e, dessemodo,
o temor manifestado pelos contemporâneos de uma ruptura
entre Osvaldo Aranha e o Presidente não me parece pertinen~
te. A inclinação para a Alemanha era um desejo de muitos
germanófilos do governo, mas Vargas foi pressionado naquele
momento e não seria possível tomar uma posição que não
fosse aceita pelo Chile, Uruguai e, de certa forma, até mesmo
pela Argentina. O Brasil não poderia se isolar no contine1}te
americano. Essa complexa situação aparecia claramente nos
vários documentos produzidos pelos diplomatas, fazendo com
que os comandos fossem manejados pragmaticamente por mi~
litares, cada vez mais consorciados com as orientações do
Pentágono e por diplomatas que, de alguma maneira, podiam
planejar e definir políticas para atender aos interessesde seto~
res e grupos econômicos no país.
É preciso, entretanto, destacar que a diplomacia brasi~
leira envolveu~se com a questão judaica. Em primeiro lugar,
por estar interessada em cooperar com os comitês de socorro
aos refugiados, agindo de modo muito claro em defesa de um

~7Q
Intolerânciae resistência

lugar para os judeus, debatendo a necessidade de receber


essesgrupos e garantir apoio àqueles que precisassemser reco~
lhidos dos campos de concentração. Também foi muito discu~
tida a questão da formação do &tado de Israel.
No pós~Segurida Guerra, os esforços no processo de
construção da ONU, o temor do avanço soviético e as vanta~
gens em participar dos programas econômicos abertos pelo
Plano Marshall, atraíram tanto os empresários como os mem~
bros da diplomacia brasileira. Nesse sentido, os debates em
torno da criação do &tado de Israel foram, no Brasil, um meio
de explicitação de posições tanto da direita quanto da esquer~
da e dos limites das proposições dessesgrupos.
Outra dimensão do problema foi o da fragmentação entre
os próprios judeus. Os defensores de um &tado judeu articu~
lavam~secom as elites dos países imperialistas que os queriam
aprisionados. A colonização financiada pelos filantropos so~
brepunha os trabalhadores judeus aos árabes pobres, que ocu~
pavam os territórios da Palestina; os judeus socialistas procu~
ravam, por meio de colônias rurais coletivistas, uma universa~
lidade impossível naquele espaço e tempo. Assim, aparente~
mente progressista, os kibutzim já eram anacrônicos naquele
período.
A questão central escolhida supunha uma forma de
entender o problema do ponto de vista dos funcionários brasilei~
ros, de modo a verificar se nossosdiplomatas compreenderam a
questãojudaica e qual o seu papel nesseprocesso.Pudemosverifi~
car que a questão envolveu a diplomacia, especialmente depois
da Revolução Russa,de modo que o tema judaico acompanhou
os assuntossignificativos no Ministério. Entretanto, se houve uma
boa acolhida ao dilema dos judeus em diáspora, especialmente
em relação àquelesque dispunham de um certo prestígio, de um
capital, mesmo que pequeno, e muita simpatia em relação à ne~
cessidade de um território, de outro, a intolerância contra os
judeus comunistas foi elevada.
Em relação aos comunistas, pudemos constatar que mes~
mo quando citados, interrogados pelas forças da repressão,não
aparecem indícios de anti~semitismo oficial. Havia por parte
das autoridades um forte empenho em evitar que as forças

~7Q
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

dissolventesse instalassem,corrompendo a sociedadee a or,


dem familiar. Criou,se, em articulaçãocom as forçaspoliciais,
um aparato de segurança,de infiltração e de preparaçãode
supostosmilitantes capazesde penetrar na hierarquia das or,
ganizaçõesde esquerdae delas obter informaçõespara are,
pressão.Desseprocesso,um forte mecanismode falseamento
ideológico, de traição e corrupçãofoi sendo criado, com pro,
fundas conseqüências.
Os diplomatas, entretanto, puderamperceberque a es,
colha de suasposiçõesno momento das votaçõespara a cria,
ção do Estado de Israel siginificavam voltar os interessesdo
Brasil ao pólo hegemônicoque se formara no pós,guerrae não
na defesade um Estadojudeu.
De certo modo, o próprio Estadobrasileiro,que naquele
momento já estavainseridono autoritarismo,não implementou
os níveis de discriminaçãoe de exclusãocontra os judeus no
Brasil. As formaspor elescriadaspara manter o acessoà cultu,
ra, os esforçospara se obter unidade na formaçãocultural em
diferentes estadosda federação,quando preocupadoscom um
aprofundamentodos valoresda Lei Mosaica,para os religiosos,
e da filosofia libertária, para os socialistas,empenharam,seem
formar associações culturais e foi bem aceita pelo governobra,
sileiro. Essesespaçosculturais apareciam distanciados da
militância convencional e davam um certo brilho às cidades
que se remodelavam.Foi com esseobjetivo que o sistemaedu,
cacional e de formação,criado e defendidoao longo dasdéca,
das de 1940 a 1980, esteveintegrado ao sistemaeducacional
do paíscomo maisum pólo de experimentaçãoe de crítica. Foi
por essemotivo que, na décadade 1960, ele foi alvo da sanha
repressivainiciada com o golpe militar.
Os judeus aqui radicadostiveram de partilhar do mo,
vimento semita como os demais, pois temiam serem consi,
derados estrangeiros, deportados ou mesmo perseguidos,já
que, sendo judeus em diáspora, viviam as representações
mundialmente construídas contra eles. Os riscos existentes
contra essegrupo eram reafirmadosnas políticas mundiais e
a idéia de um território para judeus aliviou a todos, confor,
me afirmaram Carlos Frydman, Gorender e outros.

~R()
Intolerânciae resistência

Dessa maneira, parece importante destacar que, sendo


ou não religiosos, os judeus se auto~representavam como um
grupo que portava uma cultura particular. Ao analisar suas
conexões com a geopolítica mundial do pós~guerra, sua re~
lação com o Estado e com os organismos supranacionais, e
ao buscar o entendimento desse grupo, encontramos um sig~
nificativo processo de aproximação com um imaginário pro~
jeto de libertação, que para eles estava em curso na União
Soviética.
Entretanto, entre o imaginário, ou a representação da
igualdade que os judeus comunistas projetavam e os dilemas
da Guerra Fria, muitos desvios e violências foram sendo pro~
duzidos. No que se refere aos mecanismos de repressão, pu~
demos entender as contradições entre Estado e democracia,
num panorama mundial. A violência do aparato institucional
domesticou a crítica e o protesto, utilizando~se de muitos
mecanismos de controle, todos eles baseadosna força. Pude~
mos perceber que os comunistas projetavam um campo de
cooperação internacional no Cone Sul, e o sistema de segu~
rança dos Estados procurou, por todos os meios, impedir sua
efetivação. A Internacional representou um ponto de apoio
e promoveu um longo processo de treinamento dos militan~
tes que se deslocaram por diferentes países para participar
de estudos, encontros e programas de cooperação. Mais ain~
da, esse internacionalismo não fez com que as decisões fos~
sem tomadas de modo abstrato, sem levar em consideração
a realidade do país. Assim, por exemplo, o programa da
7~ Conferência da IC, em 1933, havia deliberado pelo pro~
cesso revolucionário nos países latino~americanos, depois de
um longo levantamento dos conflitos sociais e do crescimen~
to das políticas de frente amplas. Mas, simultaneamente às
tentativas de organização, houve também um movimento
policial para impedir seu propósito.
A articulação dos revolucionários nos paíseslatino~ameri~
canos foi intensa, e suas tarefas deveriam ser complementares.
Esseprocessofoi muito important~, considerando que ele se fazia
num período extremamente conturbado, com muitos elementos
desagregadores do internacionalismo. Assim, a Revolução de 1935

381
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

foi um movimentoque se fezdevido às açõesdasfrentesamplas


nos diferentespaísesdo Cone Sul e que acrescentouvalor na
luta empreendidapelos comunistasuruguaiose chilenos. Ela
não pode ser considerada nem quartelada, nem mesmo
intentona, já que de fato suapreparaçãoatendiaplanosestraté,
gicos mais amplossuplantadospor traiçõese infiltrações, par'
tindo dasaçõesda luta de classesdaqueleperíodo.Dessemodo,
ela não deve ser entendidacomo uma derrota,mascomo revo,
lução inconclusarumo à utopia libertária.
Pode,se,nessesentido, perceberque o nacionalismoju,
daico que remonta aos textos dos profetaspossuíamuitos ele,
mentos de modernidadee permaneciacomo referência. Essa
comunidade imaginadase fazia num cotidiano cheio de tare,
fas simples,com muitos limites, de modo a permitir a identifi,
cação de um campo de força, não de um devir descontex'
tualizado.Anderson, Hobsbawme Thompson prognosticaram
críticas fundaméntaispara o entendimento do problema.Con,
sidero como elesque a soluçãoda questãojudaica e a da liber,
dade estão unidas.
Este olhar, do ponto de vista do Brasil, da história do
lugar-a Casa do Povo-articulada como a grande história de
quatro décadasde Guerra Fria, quando o jogo mundializado
interferiu nos destinos de cada um, de pode ser esclarecedor
de tempos heróicos, tanto dos judeus imigrantes, como para
a juventude composta por seusdescendentes.Os esforçose
debatesno final da décadade 1920, para cumprir o progra'
ma revolucionário da Internacional Comunista, foram reali,
zadosnum pequeno espaçono Bom Retiro, obtido graçasà
radical idade daquele grupo, ou de certo modo, devido ao
precário conhecimento do funcionamento da máquina da
repressão.O apoio recebido pelos judeus comunistas de um
vasto grupo de pequenosempresáriosligados às construções,
ao comércio, à indústria de móveis, confecçõese alimentos
garantiam algumas iniciativas, como o estímulo ao desen,
volvimento do bairro, da qualidadede vida dessessujeitose à
expansãodo conhecimento para todos os moradoresdaquele
lugar. Por meio de coletas, mantinha,se a publicação de um
periódico que reunia um grupo de jovens capazesde criar e

~R?
Intolerância e resistênc

desenvolver os interesses intelectuais próprios. Era necessário


um novo modo de entender a realidade, a indústria e as pró~
prias tradições.
Muitos empresáriosacreditaram no projeto e, assim, uma
rede de doações foi sendo forjada visando ao desenvolvimen~
to ,de um padrão cultural adequado aos novos anseios da ju~
ventude. Essarede de pequenos empresários, entre eles livrei~
ros, padeiros, moveleiros, proprietários de negócios de cons~
trução, entre outros, apoiou e sustentou tanto as atividades
culturais da Casa do Povo, como o PCB em sua longa fase de
clandestinidade.
O programa revolucionário foi forjado na unidade entre
um setor progressistada pequena burguesia, intelectuais e operá~
rios, não por um etapismo abstrato, mas pelas relaçõesconcretas
entre os vários grupos de militantes que se reuniam na Casa do
Povo. O crescimento do grupo e as precárias possibilidades de
acessoà educaçãopública fizeram com que se iniciassem as cam~
panhaspara a construçãodo edifício do Instituto Cultural Israelita
Brasileiro, reunindo o Teatro TAIB e a instalação da Escola
Scholem Aleichem, a redação do Unzer Shtime e o Coro.
No início dos anos de 1950, pronto o complexo cultural
no coração da cidade, reunindo mais de seis mil famílias associa~
das e pagantes de anuidades, os debates cresceram e atraíram
para o lugar um grande público das mais diversas regiões. Ali
estiveram os principais personagensdessahistória, que registra~
mos neste trabalho, indicando um amplo esforço de desenvolvi~
mento cultural. Os debates entre os educadorescríticos promo.-
veram uma consciência pedagógica revolucionária, reunindo as
experiências dos colégiQ&renovados, de aplicação e do Scholem.
O jornal Unzer Shtime, o Nossa Voz, publicou análises dos pro~
blemas internacionais vividos ao longo do período e, com
eles, os jovens reunidos no Clubinho puderam receber muitas
das orientações necessáriasà sua formação política e intelectual.
O Reflexo fez com que seusleitores pudessemser iniciados nos
debates contemporâneos e nos estudos teóricos e filosóficos,
suprindo a ausência de um clima diversificado, em que os dife~
rentes pontos de vista fossem debatidos. Os depoimentos repre~
sentam a voz do presente sobre o passadodos militantes ainda

,Q,
Zilda Márcia Grfcoli Iokoi

vivos de três geraçõesde judeus de esquerda,que viveram a ques.-


tão judaica, ora aproximando,se do sentido moderno e abando,
nando a Lei Mosaica, ora retomando ao messianismo abando,
nando a utopia.
Toma,se, dessemodo, central a retomada do tema dessa
obra, -tanto no que se refere ao processodiscricionário brasileiro,
como no que tange ao tema das utopias. Vale retomar ao pen,
samento de Michel Lõwy, a afinidade eletiva entre judaísmo e
comunismo aprisionado nas revoluções inconclusas. De modo
muito claro, o Oriente Médio, ou melhor, a Palestina, continuou
a ser um lugar idealizado como do encontro entre a terra, a ver,
dade e a lei. Essaregião foi utilizada como freio e como sonho.
Guardou lutas, sofrimentos e foi cobiçada por impérios antigos e
modernos. Abrigou o povo refugiado da Segunda Guerra. Foi o
lugar do fim das diásporas e garantiu o sossego dos judeus
agnósticos, ateus ou religiosos. Entretanto, não conseguiu rom,
per a díade projetada no século XIX e prossegueenfrentando os
problemas religiosos e políticos.
Nos lugares onde o judaísmo se desenvolveu sem ser uma
política de Estado, os judeus ganharam a cidadania, mas não dei,
xaram de ser judeus, como aconteceu no Brasil e nos demais
paísesda América. Assim, a tese marxiana resolveu um dos dile,
mas da crise revo,lucionária, mas não o outro. A cidadania dos
judeus foi garantida sem que o Estado superassea si mesmo, e as
religiões continuaram a proliferar tanto no campo do cristianis,
mo como no judaísmo, mas especialmente cresceu o Islã. Em
Israel, entretanto, desenvolveu,se um Estado militarizado,
centrado em uma definição religiosa, restando aos cristãos e
muçulmanos uma cidadania parcial. No Oriente Médio, os con,
flitos com os palestinos chegaram a um limite. A quem deve
pertencer a cidade sagrada?Os judeus realizam sua identidade
religiosa em Jerusalém,portanto, é impossível abrir mão do sím,
bolo de sua própria existência; do lado dos palestinos há uma
integração com o conjunto dos muçulmanos, que também têm
no Muro das Lamentações e na Grande Mesquita de Ornar
um centro religioso importante.
De certo modo, os debates ocorridos no pós,guerra só
podem ser compreendidos com a aceitação do judaísmo como

384
Intolerância e resistência

religião e não como modo de vida. Retomemos o problema


apresentado no início deste trabalho.
O sionismo nasceu como um fenômeno moderno no
século XIX, uma vez que a idéia do Estado-Nação definia povo
na tríade território, língua e cultura. De certo modo, aos ju-
deus limitava-se o sentido das tradições oriundas dos textos
da Torá ou dos sábios do Sião. Essasdefinições minavam, em
certo sentido, a confortável posição que os judeus do ociden-
te haviam conseguido nas negociaçõescom a Inglaterra, França
e Estados Unidos. De um lado, os interesses imperialistas do
Ocidente estimulados naquele período, especialmente, pela
Inglaterra e, de outro, a ação das comunidades socialistas da
Lituânia, Polônia e Rússia, entre as principais.
O deslocamento dessesjudeus do Leste Europeu para a
Palestina, ou Jerusalém, os remetia a uma reflexão sobre suas
tradições culturais e religiosas e o sentido sagrado contido na
idéia de restauração do Templo de Jerusalém e da base nacio-
nal que ele significara. Esseretorno fortaleceu também as po-
sições anti-semitas, ou seja, a idéia de um Estado judeu abala-
va a posição dos assimilados, incorporados como cidadãos nos
Estados modernos europeus, pois estavam laicizados. É famo-
sa a frase de Isaac Deutscher, em A RevoluçãoRussae o Proble,
ma Judeu, de que os maiores adversáriosdo sionismo na Polônia
foram os operários. Estes, por sua vez, foram considerados par'
tidários da expulsão contínua dos judeus e não entendiam que
o seu silêncio em relação à falta de emprego não poderia ser
resolvido apenascom a diáspora judaica, mas com algo que não
pudesseser tolerado. De fato, as posiçõesmais negativas do ope-
rariado russo jogaram a repressão sobre o Bund, e a força
operária foi subordinada-a um programa de carestia e rebaixa,
mento tanto das remunerações como das condições de vida.
- Assim, ao invés da criação de um território para acomo,
dar as necessidades de interrupção da diáspora, prosseguiram
na região os conflitos ininterruptos de disputas entre os impé,
rios. Mesmo os confrontos entre as três religiões monoteístas
misturaram,se nestas disputas. Capital financeiro, petróleo e
Estado religioso como o próprio Vaticano. Hoje, a situação
está mais complexa, uma vez que o jogo de cena pertence a

385
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

um centro de poder que rompeu todas as dimensões da ética


na política. O império americano ganhou a hegemonia mun-
dial e continuou utilizando-se da questão judaica para se im-
por no Oriente Médio. A guerra contra o Iraque pode ser um
novo paradigma para a compreensão do jogo de forças do ca-
pitalismo pós-industrial centrado na aceleração e na guerra.
Não se trata mais da razão científica, mas de um novo
fundamentalismo cristão professado pelo governo Bush cons-
tituído de representações do bem e do mau.
Lefebvre já apontava em De L'EtatJl que o cristianismo
não temeu multiplicar essasmediações entre a natureza e o
divino, entre o corpo e o não-corpo. Histórica e teoricamen-
te, essamultiplicação definiu a religião cristã que serviu à cons-
tituição do Estado moderno. A divindade trinitária contém,
ela mesma, a primeira mediação. Cristo, o Verbo encarnado,
mediador entre Deus Pai e o mundo criado. Junto ao Logos
reside a Virgem Maria, que intercede sem cessar pelos huma-
nos ante seu Filho divino. O Espírito Santo fala pela boca dos
profetas e dos santos. Ele se vale do Lagos para suscitar inspira-
ções transcendentes. Contrariamente ao cristianismo, o islã e
o judaísmo não admitem potências mediadoras. Proíbem o
princípio da circulação entre o céu e a terra, entre o corpo e o
não-corpo, as mensagense os atos. Proíbem os intermediários.
Só Deus é Deus. Não apenas não contém nele o Lagos, como
não tem nome.
Foi, portanto, o cristianismo que possibilitou a prolife-
ração das representações e do representativo, valendo-se dele
para construir sua imagem do mundo. Essa separação permi-
tiu que o cristianismo tomasse para si a pragmática judaica e
pudesse construir-se como representação, tendo no mediador
a palavra, ou seja, separando Deus do Estado. Esseé o sentido
da proposição de Marx, quando, no debate com Bauer, apon-
tou a necessidadede o judeu recuar para traz do cidadão. Nesse
sentido, parece improvável a solução da questão judaica, já
que o judeu vive a unidade dos termos na Lei Mosaica.
De um lado, consideramos o dilema dos judeus um pro-
blema de ordem filosófica e mística simultaneamente, e a
diáspora espontânea ou imposta explicitou a busca de uma

~Rh
Intolerância e resistência

genealogiacentrada nos textos sagrados,da terra prometida,


lugar de igualdadee de felicidade. A grande Utopia passoua
ser a saída do impassee expôs a crítica da modernidade na
separaçãoentre o homem e o humano, a obra e o produto, o
corpo e o não'corpo.
No mundo contemporâneo,iniciou,se um processode
crítica ao nacionalismo judaico por não expressara tríade
centrada nas representações,garantindo de fato urna altera,
ção nos fundamentosdo problema aberto no século XIX. Se
nesseperíodo os judeus estariamno contrafluxo da história e
naçõesseriam constituídas num nacionalismo contra as pró,
prias nações, fenômeno encerrado com a Primeira Guerra
Mundial, o século XX teria corno fundamento a liquidação
plena do nacionalismo, abrindo um novo caminho em busca
de um mundo unido e sem fronteiras. Mas, entre o
internacionalismo operário propugnado pela ação dos
libertários 'e o mundo regido pela política partidária, criou,se
o Estado corno representação das representações,e, desse
modo, um retorno à idéia de Império. Estarialiquidada a ques,
tão nacional?A humanidadeestariasendoencaminhadapara
um internacionalismo, apagandoas particularidadesculturais,
simbólicasou da língua?Essedebatepermaneceem aberto. O
livro do Êxo~o permite o entendimento da origem, da busca
da liberdade e da utopia sobre um território sagradoe capaz
de prover todas as necessidades do povo de Israel. A buscada
felicidade e do prazer, o messianismorevolucionário que se
encontra nos cânticos a Javeh, indica que, em sua origem, o
lugar da felicidade estava representadopor um povo e urna
cultura. Entretanto, esselugar não poderiaser apenasurna re,
presentaçãoou urna abstração.Ele era um bem destinado a
um povo que fora purificado por Javeh. O cativeiro na
Babilônia passoua ser, ele mesmo,um sinal para a redenção
na utopia, pois dele saíramos filhos dos patriarcaspara formar
um reino perfeito. A concretude dessesfundamentos,porém,
foi aprisionadapelo cristianismo,que lhe garantiu sua prática
e dela recebeuos universaisnecessáriosà sua própria consti,
tuição enquanto dogma.
De modo bastante sintético, apenas para pontuar o

"0'"'
Zilda Márcia Grícoli Iokoi

problema, esse processo permitiu que se formulassem os pos,


tulados de um pensamento libertário. Ele também estruturou
os códigos de sua própria destruição - a emancipação dos ju,
deus deveria ser feita pelo Estado cristão e este mesmo Estádo,
para efetivá, Ia, deveria se auto,superar. Em outros termos, os
judeus não poderiam reivindicar um Estado, pois, assim,estariam
constituindo algo mais do que superado no Estado cristão,
o qual, já no século XIX, deixara de sê,lo, tornando,se um
Estado democrático. EsseEstado, entretanto, mantém a separa'
ção entre representantee representado,pressupondoa centralidade
da mediação.
O processo que se seguiu no século :XX, constituído por
duas guerras mundiais e por inúmeras guerras regionais distan,
ciou,se muito da grande Utopia. Ao invés disso, as guerraspas,
saram a ser pane do jogo de forças a panir daquele momento.
.
Não mais guerras convencionais, mas indiretas, com a presença
das grandes potências em segundoplano, para proteger um dos
lados do conflito e firmar seu poderio.
Entretanto, com a queda do muro de Berlin em 1989 e o
fim da Guerra Fria, hegemonizou,seos EUA. Dessemodo, a pü'
tência unipolar passoua se sobreporcom um discursoúnico sobreo
conjunto do planeta, recriando em escalaglobal o fundamentalismo
cristão num retroc~ impensável ao projeto moderno. O merca,
do controlado pela economia americana tornou,se um deus ex
macmna.Desregulaçãode direitos, aprofundamento das desigual,
dades, limites aos Estados nacionais passarama ser a lógica do
novo tempo, ameaçador aos 2/3 da população do planeta sem
acessoaos bens materiais produzidos.
Novos e velhos fundamentalismos religiosos e políticos
passarama ter campo fénil. A Guerra do Golfo Pérsico (1991)
expôs disputas geopolíticas e pelo controle do petróleo, libe,
rou armas e poder aos antigos aliados dos americanos, agora
seus inimigos. O terrorismo individual ou de pequenos grupos
tornou,se o terrorismo da superpotência americana. Ele se
contrapôs ao terrorismo da AI Qaeda. Em 11 de setembro de
2001 o império foi atacado pela primeira vez na história. Era o
que faltava para que novamente o maniqueísmo da cultura
americana fosse acionado. A idéia de a democracia americana

388
Intolerância e resistência

sera salvaçãodo planetacontrapôsocidentee oriente.Em 2003,


novamente, a juventude foi enviada ao lraque, agora para
empreender uma guerra preventiva. Sem autorização do
Conselho de Segurançada ONU e com enormesmanifesta,
ções mundiais pela paz, o império americano se contrapôs a
todo o equilíbrio de poder duramenteconstruído desdea Se,
gunda Guerra Mundial.
As entidadessupranacionaisforam ignoradase mesmo
a ONU, que já perdia paulatinamehte as possibilidadesde
constituir consensosmínimos entre os membrosdo Conselho
de Segurança,se vê atualmente ante a grandesindefinições.
Sharon permaneceno poder e juntamente com George W.
Bush já representao grandeperigo para o devir da humanida,
de. A questão judaica é atual e o seu desenvolvimento no
Brasil serviu de paradigma.
Entretanto, o mundo globalizadopermitiu também que
novassolidariedadesfossemsendocontruidase que as críticas
pudessemse expressar por diferentes formas novas e sem
institucionalidadescerceadoras.O Fórum Social Mundial tem
sido um espaçopara a expressãodos resíduosconstitutivos da
cultura e dasnovasresistênciasarticuladasem todo o planeta.
As redeseletrônicas e a aceleraçãopermitiram o contato de
seu oposto: a interligação de um mundo não homogêneodi,
verso e com fundamento em experiênciasexpressivasde uma
consciêncianacional e não de nacionalismos.ParaBoaventura
de Souza Santos!3 e Noam Chomsky,!4há espaço na crise
provocada pelo império unipolar para solidariedadesuniver,
saisque estãose prOduzindofora das determinaçõesdos Esta,
dos,de tal modo que a livre organizaçãodos homenspossaser
uma alternativa nova para a superaçãode todos os Estados
que até o momento mais ameaçarama vida do que as prote,
geram.A globalizaçãopositiva pode realizar a agendadefini,
da por Marx e resolver a Questão Judaica.

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Zilaa Márcia Grfcoli Iokoi

N o t a s

1 Depoimento de Sara Becker Mello, realizado em seu apartamento na


cidade de São Paulo, em 17 de julho de 2002.
2 MENESES, U.B. de. "A História: Cativa da Memória?" Revistado
Instituto de EstudosBrasileiros. São Paulo, 34. set. 24. 1992.pp.,9-25.
3 MENESES, U.B. Op.cit. p.15.

4 Murilo Teixeira Mello, futuro marido de Sara Becker, comandou a


greve dos bancários no ano de 1934, sendo perseguido pela polícia
que vigiava o casal constantemente. No caderno de fotos deste traba-
lho ele aparece ao centro.
5 RODRIGUES, J. H. Uma História Diplomática do Brasil. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 1995, p. 371.
6 Nasceu, exatamente desseprocesso,uma cooperaçãoentre aspolícias
e os demaisgrupos repressivos,resultando na Operação Condor, ativo
sistemade repressãodurante asditaduras militares contemporâneas.
7 RODRIGUES,J. H. Op. cit., p.371.
8 FALCÃO, L. E Entre ontem e amanhã.Itajaí: Univali, 2000.
9 As relações de amizade entre Aranha e Vargassão insuficientes para
explicar essesmomentos. O Ministro estava em Washin~on e já ma-
nifestara inúmeras vezesa sua compreensão.
1ODiário Oficial, 19/4/1938, pp .7357-7359.
11 Discurso Presidencial de 11 de junho de 1938, proferido a bordo do
Minas Gerais, no dia Nacional da Marinha.

12LEFEBVRE, H. De l'Etat. De Hegel a Mao par Staline (La Thiorie


Marxiste de l'Etat) , 3 V. Paris: Union Generale d'Éditions, 1976.
13 SANTOS, Boaventura de Souza.Entrevista a André Deak e Giovanna
Modé. Disponível em: http://www.nova-e.inf.br/nomes/boaventura.htm

14CHOMSKY, Noam. Nasceum paria internacional. FolhadeSãoPaulo.


São Paulo, 26 mar. 2003, p. A 22.

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