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Apostila
Amazonas
2018
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO
AMAZONAS ESCOLA NORMAL
SUPERIOR
Av Djalma Batista, 2470 Chapada
Fone/fax: (92) 3878-7721/ CEP: 69050-010 –
Manaus/Amazonas
PLANO NACIONAL DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DA EDUCAÇÃO BÁSICA – PARFOR
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS
COORDENAÇÃO PARFOR PEDAGOGIA
CURSO
Licenciatura em Pedagogia
Meire Botelho
Jane Lindoso
PROFESSORES ORGANIZADORES
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO
AMAZONAS ESCOLA NORMAL
SUPERIOR
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Manaus/Amazonas
UEA
UNIVERSIDADE
DO ESTADO DO
AM AZ ON AS
PARFOR
PLANO DE DISCIPLINA
l. IDENTIFICAÇÃO
CURSO: PEDAGOGIA PERÍODO:
DISCIPLINA: CRIANÇA, SIGLA:
SOCIEDADE E CULTURA.
PROFESSORES: CARGA HORÁRIA: 60 h
CREDITOS: 04
2. EMENTA
Fundamentos antropológicos, sociológicos e históricos da infância e da juventude. A
educação de crianças no Brasil. Infância, educação e diversidade sócio-cultural. Função
social e cultura escolar: a condição social das crianças no contexto atual. Influência da
cultura pós-moderna na educação de crianças e as culturas da infância.
3. OBJETIVOS
Mês/Ano CONTEÚDO Nº DE
AULAS
Junho/2018
Unidade I – Fundamentos antropológicos, sociológicos e
históricos da infância e da juventude: 16
Dinâmica de apresentação
Análise crítico conceitual do título da disciplina
Turbilhão de ideias
Análise de fotografia e de gravuras
Leitura crítica dos textos
Relação entre as leituras e as experiências dos alunos
Discussão em grupo
Aula expositiva dialogada
Projeção de filmes
Produção de textuais
Pesquisa Bibliográfica
Seminário
6. AVALIAÇÃO
2ª Nota: AP2
Seminário temático (10.0)
3ª Nota:
Prova Final (10.0)
7. REFERÊNCIAS
JAVEAU Claude. Criança, Infância(s), Crianças: que objetivo dar a uma ciência social da
infância?. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Conhecer a infância: Os desenhos das crianças como produções
simbólicas. Braga-Portugal. Relatório da Disciplina Sociologia da Infância:UMINHO-IEC,
2006.
SITES:
www.mec.gov.br
www.anped.org.br
www.ced.ufsc.br/nupein/
http://www.ie.uminho.pt/
Local/Data: Local/Data:
CLAUDE JAVEAU**
Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005 379
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?
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Claude Javeau
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?
A criança
O campo semântico que tem por denominação o termo “criança”
é o primeiro a ser proposto. A conotação desse campo é de ordem psico-
lógica. Com efeito nas disciplinas originadas da psicologia compor-
tamental, o discurso que trata das “fases de desenvolvimento” da criança,
considerado de modo canônico, adquiriu uma forte legitimidade. Depois
de Piaget, que se deve evidentemente evitar de caricaturar como o faz
uma certa doxa para uso de revistas especializadas, assim como de certas
escolas onde são formadas as puericultoras, construiu-se um objeto abs-
trato, a “criança”, destinado a passar por níveis diversos e sucessivos na
aquisição de competências, cada um deles constituindo uma etapa na fa-
bricação da personalidade dos indivíduos. Em certos textos, essas etapas
adquirem uma coloração normativa, pouco se importando com a varie-
dade dos contextos efetivos nos quais indivíduos concretos são chamados
a se “desenvolver”.
O rebento da burguesia de classe média helvética, por exemplo,
não está destinado a ter a educação atropelada que pôde ter uma crian-
ça ruandesa na época dos massacres entre etnias.
Seria fútil negar que o trabalho de socialização, ele mesmo divi-
dido em uma fase “primária” e em várias fases “secundárias”, não se in-
sere num substrato biológico cuja universalidade não pode ser contes-
tada. Mas nem mesmo esse substrato escapa à “construção social da
realidade”.2 Como para com os “velhos”, a infância é objeto de uma de-
finição social, mais ou menos partilhada pela população interessada. De
um certo modo, e por paradoxal que essa afirmação possa parecer, não
se nasce criança, vem-se a sê-lo. Há ainda neste planeta muitos lugares
onde a maneira de se tornar criança não tem nada a ver com uma sine-
cura, nem com uma história de nursery, de creche ou de kindergarten.
Uma variante desse paradigma, no sentido lingüístico do termo,
encontra-se na imagem do aluno visto sob o ângulo de competências
cognitivas e comportamentais, entre outras, tais como são tomadas a
cargo pela instituição escolar. Nesse caso também, o modo de aquisi-
ção dessas competências passa muitas vezes por caracterizações
normativas. Essa normatividade se inscreve no mais profundo da peda-
gogia escolar, nas suas diversas variantes. Não é minha intenção contes-
tar a existência dessa normatividade, mas sim mostrar sua camuflagem
sob o álibi da objetividade científica. A escola é um dos lugares essen-
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Claude Javeau
A infância
A infância constitui o nosso segundo campo semântico. Esse para-
digma se inscreve no ponto de partida numa perspectiva demográfica. Es-
bocei-a acima. Às faixas de idade constituindo a “infância propriamenta
dita” sucedem com efeito as da adolescência, da idade adulta, da tercei-
ra, da quarta idade etc. O seu elo com um discurso macroeconômico,
eventualmente recoberto por um discurso de tipo macrossociológico se
inscrevendo na corrente dominante (main trend sociology), tornou fácil
abordar a questão sob o ângulo dos custos, aqui privilegiado. A infância,
com efeito, demograficamente falando, é geralmente considerada impro-
dutiva, pelo menos nas nossas latitudes, onde a obrigação escolar é larga-
mente respeitada, ultrapassando amplamente, no sentido inferior, o li-
mite fixado pela lei, graças à generalização, pelo menos em certos países,
das creches e dos jardins-de-infância.
No rasto desse paradigma econômico, a imagem do aluno é vista
como uma ocasião de investimento. A escola é assimilada a um sistema
de produção de competências, cujo efeito diferido é suposto ser útil à
conservação e se possível ao incremento do bem-estar material, compo-
nente essencial do sistema social global. A demografia escolar, aplicada
às gerações sucessivas de alunos, estuda em particular os fluxos de en-
trada e os fluxos de saída nas escolas, sob o ângulo do critério do êxito
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?
As crianças
Trata-se aqui do meu terceiro campo semântico, de coloração
deliberadamente antropológica. Os indivíduos reagrupados sob esse nome
constituem um “território”, no sentido literal (as populações ditas “pri-
mitivas”) ou metafórico do termo, de contorno mais ou menos preciso
no tempo e no espaço, com suas estruturas e seus modelos de comporta-
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Claude Javeau
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?
Notas
1. Viu-se na Bélgica, quando foram descobertos os crimes cometidos por Dutroux e gente da
mesma laia: no auge da emoção coletiva, os jornais chamaram sistematicamente de “meninas”
duas jovens flamandas, An e Eefje, igualmente vítimas dos mesmos criminosos. Ora, uma
delas, juridicamente maior de idade no momento da sua morte, tinha a mesma idade que
Diana, Princesa de Gales, quando essa se casou.
2. Esse é o título de uma obra célebre de P. L. Berger e Th. Luckmann, publicada pela primei-
ra vez em inglês em 1962.
3. O autor utiliza aqui o verbo “bricoler” e em nota ao pé da página remete a: Javeau, Le bricolage
du social, Paris: PUF, coll. Sociologie d’Aujourd’Hui, 2001.
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Claude Javeau
Referências bibliográficas
Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005 389
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Currículo sem Fronteiras, v.6, n.1, pp.5-14, Jan/Jun 2006
APRESENTAÇÃO:
Tempos e Espaços das Infâncias
Ana Cristina Coll Delgado
Fundação Universidade Federal do Rio Grande
Brasil
Fernanda Muller
Universidade do Rio Grande do Sul
Brasil
(Organizadoras)
Resumo
Abstract
The dossier gathers Brazilian and Portuguese research discussing times and spaces of childhood
in the XXI century. The articles present perspectives on the organization of childhood times and
spaces, which are not only confined to the way adults organize the world. We have no doubts
that school has great legitimacy when it determines childhood, connecting it with schooling.
Children are understood as students. Childhood is confounded with a schooling stage –
Childhood Education. The time demarcations are also products of the knowledge construction
along the history and it is this time, counted and submitted to an economic rationality that will
articulate with the childhood times. Although the spaces are ready, built and idealized by us,
adults, they do not guarantee human relations based on feelings that respect diversity and the
childhood pluralities included in them. The research represented in this dossier brings diverse
and singular empirical and theoretical experiences, transgressing the universal interpretations,
focusing on times and spaces where childhoods are experienced in different ways. The question
is, indeed, to understand how children resist and reinterpret the reality in order to guarantee their
childhood.
Ariès (1981) mostrou que, para classificar as fases da vida, várias foram as
correspondências com os fenômenos naturais e cósmicos: o número de planetas, sete,
quando ainda não eram do conhecimento humano Netuno e Plutão; os doze signos do
Zodíaco; as quatro estações do ano. Na Idade Média, a Igreja Católica estabeleceu o
término da infância aos sete anos, pois se entendia que a partir desse período iniciava a
idade da razão. De certa forma, a escola conseguiu legitimar isso no decorrer da História,
uma vez que impôs a idade de sete anos como própria para a alfabetização. Segundo Pinto
(1997, p.35), “[...] a Igreja, desde o 4º concílio de Latrão, em 1215, considerava atingido
algum uso da razão “e autorizava, por isso, a confissão e a comunhão”. Atualmente, vários
organismos delimitam as idades da infância. A Convenção dos Direitos da Criança, adotada
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, considera como
criança “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade”. O Estatuto da Criança e
do Adolescente (Art.2º, 1990) considera criança “a pessoa com até doze anos incompletos”.
Mesmo entendendo a importância das convenções internacionais e nacionais, certamente é
de responsabilidade do mundo do trabalho e da escola a legitimação das idades da vida.
A Constituição de 1988 prevê a idade mínima de quatorze anos para o ingresso no
mundo do trabalho (Art.227, §3º, cap.I), o que ainda é ressalvado no Art. 7º, XXXIII – a
“proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de
qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir
dos 14 (quatorze) anos”. Por outro lado, no ambiente escolar, a infância geralmente é
entendida como o período de vida dos zero aos seis anos. Será que a LDB (1996),
paradoxalmente, contribuiu para isso ao legitimar a educação da criança pequena como
parte da Escola Básica? Buckingham (2002, p.19) responde a essas questões e alerta de que
a escola “é uma instituição social que constitui e define de forma eficaz o que significa ser
criança e criança de uma determinada idade”. Nem sempre esse critério foi usado se
analisarmos a História. Na Idade Média, a organização da escola era multietária, pois “a
escola medieval permaneceu indiferente à distinção e separação das idades, uma vez que
não se destinava a educar a infância” (Pinto, 1997, p.36). Contudo a organização dos
tempos e espaços da infância não se limita somente à forma pela qual os adultos organizam
o mundo. As crianças se apropriam e traduzem isso pelas expressões do tipo “quando eu
crescer” ou “gente grande” nos seus modos de representação, como se fossem referenciais
para demarcar os tempos e os espaços escolares.
Florestan Fernandes, em pesquisa realizada nos anos 40 no bairro do Bom Retiro/SP,
mostrou que nas trocinhas1 não existia nenhuma iniciativa de organização pelo critério de
idade. Segundo as suas observações, os grupos se reuniam a partir de interesses comuns e,
em alguns momentos, os menores exerciam funções diferenciadas. O autor (p.167) ainda
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Apresentação: Tempos e Espaços da Infância
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ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER
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Apresentação: Tempos e Espaços da Infância
incompletamente formadas. E quando se deixa de ser criança? Sabemos que esta questão
produz paradoxos entre nós, dentre eles o de considerar que as crianças a partir dos sete
anos devem ingressar num mundo escolar semelhante ao do mundo do trabalho, com
tempos e espaços controlados. Mais paradoxal é o fato de que estas práticas já começam a
ser instituídas nas instituições de Educação Infantil, uma vez que alguns adultos dizem que
é necessário às crianças irem adaptando-se às rotinas de tempo e espaço, pois logo elas
estarão vivenciando o mundo escolar. Explica Pinto (1997, p.17) que ser criança é algo que
varia entre sociedades, culturas e comunidades, que pode variar em uma mesma família e
de acordo com a estratificação social, ao mesmo tempo em que varia com a duração
histórica e com a definição institucional da infância dominante em cada época. Ele percebe
a necessidade de focalizar as crianças como possibilidade para o estudo das realidades de
infância.
Atualmente, a produção sobre a Educação Infantil considera a infância como uma
categoria social, graças ao estudo de Áries (1981) que contribuiu para esta concepção.
Porém, este historiador centralizou suas análises sobre o surgimento da infância como
conseqüência da mudança do comportamento dos adultos. Segundo o autor (1981, p.158), a
infância só emergiu a partir de dois sentimentos constituídos no século XVII: a paparicação
e a moralização. Paparicação é explicada como: “a criança, por sua ingenuidade, gentileza e
graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto”. Já o sentimento
de moralização foi constituído pelos educadores e moralistas, sendo o controle parte
essencial na educação das crianças. O objetivo principal era formar homens racionais e
cristãos e para isto “Tentava-se penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a
seu nível os métodos de educação” (Ariès, 1981, p.163).
Especialmente nos estudos vinculados à Sociologia da Infância, como o já citado
estudo de Pinto (1997), encontramos posicionamentos que superam esta perspectiva.
Corsaro (1997) concebe as crianças como responsáveis por suas infâncias, e portanto, elas
afetam e são afetadas pela sociedade. A concepção das crianças, a partir dessa postura,
corrobora a visão de infância exposta por James e Prout (1997, p.7) como “duplamente
construída para as crianças e por elas”. Nós partilhamos e reconhecemos a produção teórica
desse campo teórico3 como um marco que assinala para o reconhecimento das crianças
enquanto atores sociais. Inspiradas por Corsaro (1997, p.5), temos considerado em nossas
pesquisas, que:
• As crianças são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem
para a produção do mundo adulto.
• A infância é uma forma estrutural ou parte da sociedade.
A palavra ator tem sentido de ação e não foi tão simples nos últimos tempos perceber
que as crianças não somente reproduzem regras, valores, hábitos e comportamentos do
mundo adulto, mas principalmente criam e recriam as realidades e dão outros sentidos ao
mundo. Hoje também reconhecemos que há modos diversos e plurais das condições de vida
das crianças, embora também saibamos que as formas de regulação e controle da infância
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ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER
ganharam força e expressão com a modernidade. Para nós adultos/as que pesquisamos e
escrevemos sobre as crianças é um desafio superar o entendimento de infância relacionado
à idade cronológica e aos espaços institucionais legitimados historicamente.
As pesquisas resgatadas neste dossiê apresentam experiências teóricas e empíricas
diversas e singulares, transgredindo as interpretações universais, destacando tempos e
espaços onde as infâncias são vividas de modos diferentes. Nós compreendemos as
categorias tempo e espaço das infâncias numa dimensão mais ampla, considerando que as
vivências das crianças não estão somente vinculadas aos espaços institucionais, mas
também se encontram em outros espaços nos quais elas experimentam outras relações
educadoras.
É indiscutível que no Brasil estamos construindo uma tradição de estudos e pesquisas
no campo da Educação Infantil que tem obtido destaque, sobretudo a partir da década de 70
do século XX. Porém, ainda temos um caminho a ser trilhado no que diz respeito aos
estudos voltados às crianças e suas culturas interagindo em outros espaços, além daqueles
que denominamos creches (para a faixa etária dos zero aos três anos) e pré-escolas (para a
faixa etária dos quatro aos seis anos). Também é urgente a constituição de grupos de
pesquisa que considerem as vozes, criações e interações das crianças em outros espaços
educadores como: a televisão, os jogos de vídeo-game, as salas da internet, os movimentos
sociais, as ruas, as vilas e favelas, as academias, os shoppings, as escolas de samba, as
danceterias, as cidades, a zona rural, dentre outros.
Igualmente temos poucos estudos que se preocupam com metodologias investigativas
criadas a partir das crianças e não apesar delas. Demartini (1997, p.2) insiste sobre a
importância “de aprender a ouvir as crianças e os jovens”. Segundo a autora, podem ser
considerados dois grupos de relatos orais referentes às crianças e infância, quais sejam:
relatos sobre as crianças e sobre a infância e relatos de crianças. Escutar as crianças, na
perspectiva da autora (p.7), significa entender “que uma criança, de qualquer grupo social,
após breves espaços de tempo, já construiu algum tipo de identidade, tem uma memória
construída”.
Nós reconhecemos que há um grande contingente de crianças brasileiras fora do
atendimento mantido pelo Estado. Estas crianças não estão sendo educadas? Para nós é
inviável pensar em educação da infância na contemporaneidade sem incluir em nossas
pesquisas estes outros espaços educadores e as culturas infantis, o que implica compreender
concepções de infância e de crianças ainda desconhecidas entre nós adultos/as.
Acostumamos-nos a pensar em educação como algo institucionalizado, porque nossas lutas
estão vinculadas à necessidade de garantir Educação Infantil pública e gratuita para todas as
crianças brasileiras. Contudo, apesar de nossas lutas indiscutivelmente importantes, outros
tempos e espaços de educação da criança têm emergido como formas de organização da
própria sociedade civil, como reação às políticas neoliberais que isentam o Estado do
compromisso com a Educação Infantil.
Não pretendemos com este dossiê apontar soluções, respostas, ou filiações teóricas que
resolvam todas as nossas inquietações. Pelo contrário, inquietações produzem boas
reflexões, assim como dão continuidade aos estudos e pesquisas sobre as crianças que, de
10
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância
certa forma, propiciam certo distanciamento dos olhares adultocêntricos ainda fixos e
marcantes nas formas como interpretamos as questões da infância. Kramer (2002) nos
ajuda a desconstruir ou reconstruir esse olhar adultocêntrico do pesquisador/a quando nos
aponta uma questão ainda pouco explorada nas pesquisas com crianças: a ética. Ao
apresentar um conceito de criança como “[...] cidadã, sujeito criativo, indivíduo social,
produtora da cultura e da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na
cultura que lhe são contemporâneas”, a autora (2002, p.42-43) nega as decisões arbitrárias
do pesquisador/a em relação aos grupos de crianças, que aparecem em explicações no corpo
de seu relatório final da pesquisa.
O campo da Sociologia da Infância tem nos ensinado que as crianças são atores sociais
porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e
desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. Mesmo assim, ainda
necessitamos construir referenciais de análise que nos permitam conhecer estes atores
sociais que nos colocam inúmeros desafios, seja na vida privada ou na vida pública.
Apresentamos alguns textos que buscam fazer este movimento de refletir acerca de
outros tempos e espaços das infâncias. Espaços diversos e plurais em pleno século XXI, na
contemporaneidade para alguns, ou pós-modernidade para outros, mas fundamentalmente
um tempo diferente daquele em que a categoria infância surgia em plena modernidade,
como uma categoria social que pretendia se resguardar e se diferenciar dos adultos.
O dossiê se inicia com uma entrevista com o Professor Manuel Jacinto Sarmento da
Universidade do Minho em Portugal, realizada por Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda
Muller. Esta entrevista aborda temas relacionados à infância, tempos, espaços e educação
infantil. Mostra também a importância e aspectos significativos no desenvolvimento de
uma Sociologia da Infância e suas implicações para o campo educacional e para a pesquisa
nesta área, tanto na Europa quanto no Brasil.
O trabalho de Natália Fernandes Soares, “A investigação participativa no grupo social
da infância”, abre as discussões do dossiê. A autora explora a necessidade de reconsiderar a
participação das crianças na investigação de forma a desconstruir a sua persistente afonia e
invisibilidade. Explora as metodologias participativas como um recurso metodológico
importante, para contrariar a tendência metodológica centrada no adulto, atribuindo às
crianças o estatuto de sujeitos de conhecimento, e não de simples objetos.
“As crianças como prisioneiras do seu tempo-espaço: do reflexo da infância à reflexão
sobre as crianças”, de Catarina Almeida Tomás, discute a intrincada relação entre espaço e
tempo nos universos das crianças, principalmente no tensionamento com a conjuntura
econômica. A autora argumenta que os processos provocados pela globalização vêm
gerando uma erosão nas formas institucionais tradicionais, acarretando o surgimento de
movimentos sociais portadores de novos valores. É precisamente sobre estes “novos”
movimentos que a autora centra suas análises, especificamente, os movimentos de defesa
dos direitos das crianças e sobre a emergência e a reivindicação do papel que as crianças
desempenham no quotidiano como no desenvolvimento da própria democracia. Ao
considerar que não é possível tratar a questão da globalização sem considerar diferentes
perspectivas como a dimensão política, econômica e cultural, Tomáz salienta que o espaço-
11
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER
tempo social passa por uma profunda transformação, por uma mistura complexa de
processos, onde a globalização ocupa lugar de destaque.
Os textos de Maria Carmem Barbosa, Marie Jane Soares Carvalho e Juliana Brandão
Machado problematizam relações espaço-temporais vividas pelas crianças, em propostas
pedagógicas de escolas infantis e de ensino fundamental públicas e particulares. “A rotina
nas pedagogias da educação infantil”, de Maria Carmen Barbosa, discute o conceito de
rotinização a partir de uma investigação em instituições de Educação Infantil. As rotinas
operam com o objetivo de estruturar, organizar e sistematizar as ordens moral e formal –
acentuando seus esforços na ordem moral, já que segundo a autora, um dos principais
papéis da escolarização inicial é o de transformar as crianças em alunos. Para desempenhar
esse papel, as rotinas utilizam-se de rituais – cerimônias, castigos, imagem de condutas,
caráter, modos valorizados de ser e proceder – que relacionam os indivíduos com a ordem
social do grupo, criando um repertório de ações que são compartilhadas com todos e que dá
o sentimento de pertencimento e de coesão ao grupo. A rotina desempenha um papel
estruturante na construção da subjetividade de todos que estão submetidos a ela. Esses
rituais são geralmente decididos pelos adultos, mas também as crianças os estabelecem.
Marie Jane Soares Carvalho e Juliana Brandão Machado exploram no texto “O uso
discricionário do tempo: gênero e classe social” a compreensão sobre os usos do tempo de
crianças de classe popular e de classe média alta, na faixa etária entre 8 a 12 anos, em
especial a utilização do seu tempo fora do horário escolar regular. A intenção era mapear
todas as atividades realizadas pelas crianças quando não estão na sala de aula, para traçar
comparações quanto ao gênero (entre meninos e meninas) e quanto aos diferentes grupos
sociais (classe popular e classe média alta).
O texto de Ana Cristina Coll Delgado trata de uma modalidade de Educação Infantil
ainda pouco explorada nas pesquisas brasileiras, embora tendo surgido no Brasil
oficialmente no final da década de 70 em programas subvencionados em alguns Estados.
Em “Culturas infantis no cotidiano de uma creche domiciliar: tensões, ambigüidades e
negociações entre adultos e crianças”, a autora enfatiza a necessidade de conhecermos
estes espaços e seus modos de organização. O texto apresenta análises decorrentes de um
estudo de caso etnográfico realizado em uma creche domiciliar de um bairro popular de São
Gonçalo, Rio de Janeiro. O foco da investigação é a análise dos significados que assume a
atividade de tomar conta de crianças para uma trabalhadora e cinco mães, bem como a
organização desse trabalho no cotidiano. Há um destaque para as culturas infantis e três
dimensões da socialização, a partir de um referencial teórico que abrange estudos sobre
culturas infantis (sociologia da infância), gênero e famílias das camadas populares. Embora
não tenha encontrado uma proposta pedagógica formalizada no cotidiano, suas análises
evidenciam a existência de relações educativas entre adultos e crianças, diferentes do que
ocorre em outros espaços de educação da infância, como creches e pré-escolas.
Jader Janer Moreira Lopes traz um outro desafio que é pensar “A infância migrante”, a
partir das categorias lugar, identidade e educação. O autor procura compreender as crianças
que migram, que se deslocam no espaço geográfico por motivos diversos, quase sempre
acompanhando seus grupos. Lopes passou a questionar quais são os espaços de vivência da
12
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância
infância pelas crianças migrantes, como também: Como essas estabelecem amarrações com
os espaços que deixam e chegam? Que concepção de espaço e lugar elaboram? Como esses
espaços entram em sua formação? O trabalho também conta com uma revisão histórica do
conceito de migração, o que resultou em uma incursão pelo passado brasileiro, abordando
as crianças e os jovens migrantes em cada período de nossa história.
Notas
1
Grupos de crianças que se organizavam na rua para brincar.
2
Elias denomina habitus, um saber incorporado ou segunda natureza do homem civilizado, à estabilidade
dos mecanismos de auto-controle.
3
Segundo Pinto (1997, p.67-68), uma boa parte da produção recente que tem contribuído para a construção
da sociologia da infância é teórica e metodologicamente inspirada nas correntes da sociologia interpretativa,
de inspiração fenomenológica, como o interacionismo simbólico e a etnometodologia. Em um artigo sobre
a emergência de uma sociologia da infância no Brasil, Quinteiro (2002, p.138-139) comenta que os estudos
de Sirota (2001) e Montandon (2001) são um marco na releitura crítica do conceito de socialização e de
suas definições funcionalistas, na produção de língua francesa e de língua inglesa.
Referências
Ariès, P. História Social da Criança e da Família. Rio De Janeiro: Zahar Editores, 1981.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada Em 5 De Outubro De 1988. São
Paulo: Saraiva, 2002.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069. Promulgada em 13 de Julho de 1990.
Porto Alegre: Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2000.
13
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Federal 9.394. Promulgada Em 20 De
Dezembro De 1996. Rio De Janeiro: Dp&A., 2001.
Buckingham, D. Crecer en la Era de los Medios Electrónicos: Tras La Muerte de la Infancia. Madrid:
Ediciones Morata/Fundación Paidéia, 2002.
Corea, C.; Lewkowicz, I. Se Acabó la Infancia? Ensayo sobre la Destituición de la Niñez. Buenos Aires:
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Correspondência
Ana Cristina Coll Delgado, Professora da Fundação Universidade do Rio Grande, Brasil.
E-mail: anacoll@uol.com.br
14
Pro-Posiçães, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004
233
Pro-Posições, v. 15. n. 2 (44) - maio/ago. 2004
e
branças pela memória. Assim, Demartini ressalata a importância dos relatos
orais para se conhecer e aprofundar conhecimentos a respeito das crianças e das
infâncias, de forma plural, de épocas, lugares, e realidades distintas.
O segundo estudo apresentado no livro é parte do trabalho de doutorado de
]ucirema Quinteiro, que discute as relações entre infância e educação, buscando
apontar para um campo de estudos em construção. A autora, ao fazer um
levantamento das pesquisas que, na área da sociologia estudam a criança e a infância,
nos fala da emergência de uma sociologia da infância na Europa, das contribuições
teóricas acerca da infância no Brasil, numa perspectiva sociológica, e as implicações
metodológicas sobre a infância na escola. O artigo de Quinteiro é uma contribuição
fundamental, pois aponta para a elaboração de uma concepção de criança e de
infância diferente da perspectiva psicológica tão predominante nos estudos da
pedagogia, atualmente bastante criticada.
Galzerani, no trabalho seguinte, nos convida para uma viagem pelas produções
textuais do pensador Walter Benjamin. O texto escolhido é Infância em Berlim,
no qual Benjamin escreve sobre passagens de sua infância, por volta de 1900,
tentando apresentar as impressões que tinha do mundo adulto e como apreendia
essa realidade. A partir dessesescritos de Benjamim, a autora reflete sobre o conceito
benjaminiano de modernidade capitalista, sobre as imagens benjaminianas de
infância e ainda apresenta as contribuições de Benjamim sobre o conceito de sujeito.
E, bem ao estilo benjaminiano, a autora termina o texto, mas não o conclui, ela
apenas
(.,,) puxa alguns fios simbólicos relativos às imagens de infância; fios esses que não
pretendem ser a palavra final, a palavra verdadeira sobre essa questão; fios ou teias
que pretendam deixar a problemática, ora focalizada, ora em aberto. Como narrativa
capaz de ser continuada por outros sujeitos (p.64).
(".) como documentos que permitem aos pesquisadores saber mais acerca desses
sujeitos e não somente isso, possibilitam-nos conhecer mais suas percepções da
realidade por eles vivida, não sendo percebidos como textos escritos, mas sim como
textos visuais que podem ser olhados, sentidos, lidos (p.76).
234
Pro-Posiçães, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004
que, nessas três experiências, o desenho foi utilizado não numa perspectiva
psicológica, mas sim para conhecer e entender os aspectos socioculturais das
cnanças.
A brincadeira como manifestação cultural das crianças pequenininhas é o tema
do quinto artigo, escrito por Patrícia Prado, que remete à sua pesquisa de mestrado,
onde observou o cotidiano de uma creche, da chegada à saída das crianças,
procurando conhecer o seu dia-a-dia, além de identificar as atividades desenvolvidas
e suas brincadeiras, em especial. O artigo é muito interessante, pois a autora afirma
que, partindo da sua formação na área da psicologia, que possibilitou experiências
diversas com crianças e lhe suscitou inúmeros questionamentos, ela busca no seu
trabalho de mestrado outros caminhos para conhecer e analisar as brincadeiras
infantis. Assim,
235
Pro-Posições, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004
236
.
Sarmento, Manuel Jacinto (2004). “As Culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª
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AS CULTURAS DA INFÂNCIA
NAS ENCRUZILHADAS DA 2ª MODERNIDADE
1
Há um lugar, um pequeno lugar, tão pequeno como uma casinha de vidro na
floresta em cima do alfinete, disse a criança. É lá que eu guardei a minha pena da cara
de todos.
Esta criança vai deixar de sorrir, disse o Medidor de Crianças.
(...)
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como o ovo azul do bicho da seda,
disse a criança. É lá que eu guardei o meu amigo.
Esta criança vai deixar de falar, disse o Medidor de Crianças.
(...)
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como a pedra de açúcar que a
mosca leva para os seus filhinhos partirem e fazerem espelhos, disse a criança. É lá que
eu guardei a minha mãe.
Esta criança morreu, disse o Medidor de Crianças.
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como a bolha de sumo dentro do
gomo da tangerina, disse a criança. É lá que eu me guardei e comi-o e passou para o
dentro do dentro do mais pequeno dos buracos do meu coração.
Esta criança acabou, disse o Medidor de Crianças. É preciso fazer outra.
Que lugar é esse que a criança ocupa, a ponto de causar a perturbação do “medidor de
crianças”, de modo tal que ele decreta o fim da infância?
2
e faz renascer o mundo. As crianças, todas as crianças, transportam o peso da sociedade
que os adultos lhes legam, mas fazendo-o com a leveza da renovação e o sentido de que
tudo é de novo possível. É por isso que o lugar da infância é um entre-lugar (Bhabha,
1998) o espaço intersticial entre dois modos – o que é consignado pelos adultos e o que
é reiventado nos mundos de vida das crianças – e entre dois tempos – o passado e o
futuro. É um lugar, um entre-lugar, socialmente construído, mas existencialmente
renovado pela acção colectiva das crianças. Mas um lugar, um entre-lugar, pre-disposto
nas suas possibilidades e constrangimentos pela História. É, por isso, um lugar na
História. Convém por isso, marcar o ponto geodésico da história deste lugar.
A ideia de infância é uma ideia moderna. Remetidas para o limbo das existências
meramente potenciais, durante grande parte da idade da Idade Média, as crianças foram
considerados como meros seres biológicos, sem estatuto social nem autonomia
existencial. Apêndices do gineceu, pertenciam ao universo feminino, junto de quem
permaneciam, até terem capacidade de trabalho, de participação na guerra ou de
reprodução, isto é, até serem rapidamente integrados na adultez precoce. Daí que,
paradoxalmente, apesar de ter havido sempre crianças, seres biológicos de geração
jovem, nem sempre houve infância, categoria social de estatuto próprio. A consciência
social da existência da infância– como estabeleceu a historiografia da infância, desde P.
Ariès (Ariés, 1973; Becchi, & Julia, 1998)– é, com efeito, algo que começou a emergir
com o Renascimento, para se autonomizar a partir do século das luzes. Se, na arte, as
meninas de Velazquez vêm ocupar o lugar vazio que essas crianças de forma adulta da
aescultura gótica evidenciavam na gritante ausência de traços de juvenilidade, na
sociedade mais geral, a construção histórica da infância foi o resultado de um processo
complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação dos seus
quotidianos e mundos de vida e, especialmente, de constituição de organizações sociais
para as crianças.
3
O primeiro, e decisivo, foi a criação de instâncias públicas de socialização,
especialmente através da institucionalização da escola pública e da sua expansão como
escola de massas. Com efeito, a escola está associada à construção social da infância,
dado que, a sua constituição pelo Estado de meados do século XVIII1 institui, pela
primeira vez, a libertação das actividades do trabalho produtivo para um sector do grupo
geracional mais novo (inicialmente constituído só por rapazes da classe média urbana),
sendo progressivamente alargado a toda a geração, com a proclamação da escolaridade
obrigatória. Deu-se, assim, a “institucionalização educativa da infância” (Ramirez,
1991), pela separação formal e protegida pelo Estado das crianças face aos adultos,
durante uma parte do dia, e pelo cometimento correspondente de exigências e deveres
de aprendizagem, que são também modos de inculcação de uma epistemologia (a
inerente à cultura escolar), de um saber homogeneizado (o da ciência normal), o de uma
ética (a do esforço) e a de uma disciplina mental e corporal (Foucault, 1993).
1
Instituida primordialmente na Prússia e no Portugal do Marquês do Pombal, em meados do século
XVIII, a escola pública em 1870 tinha sido proclamada em 47 países, sendo actualmente inerente à
própria constituição do Estado das sociedades modernas (cf. Ramirez e Boli, 1982).
4
Esses saberes desenvolvem-se paradigmaticamente em torno de duas ideias conflituais
da infância, que acompanharam sempre as representações sociais ao longo dos últimos
250 anos, originando outras tantas orientações e abordagens interpretativas do mundo
das crianças e das formas de prescrição comportamental e pedagógica. Referimo-nos às
concepções antagónicas rousseaunianas e montaigneanas sobre a criança, ao
construtivismo e ao comportamentalismo, às pedagogias centradas no prazer de
aprender e às pedagogias centradas no dever do esforço, às pulsões libertadores e aos
estímulos controladores, em suma, às ideias da criança-anjo, natural, inocente e bela e à
criança-demónio, rebelde, caprichosa e disparatada. Esta dicotomia, que actualiza as
duas ideias da infância identificadas por Ariès (1973 e 1986) no dealbar da modernidade
(a criança-bibelot e a criança-irracional) vem sendo, com actualizações sucessivas,
incorporada no imaginário colectivo e é a fonte dupla donde emanam as representações
sociais modernas sobre as crianças.
5
reguladores com a Convenção dos Direitos da Criança e com normas de agências
internacionais (como a UNICEF, a OIT, a OMS) configuradoras de uma infância global,
no plano normativo.
Reinstitucionalização na 2º modernidade
Estas rupturas são de âmbito, sentido e impacto desigual, mas todos contribuem para a
instabilização de algumas ideias fundadoras do espírito da modernidade: a crença na
razão, o sentido do progresso, a hegemonia dos valores ocidentais, a ideia do trabalho
como base social.
6
O que pretendo enfatizar é que estas mudanças, que conjugam a plena expansão dos
factores modernos de institucionalização da infância com a crise das instâncias de
legitimação e com as narrativas que as justificam, têm sérias implicações no estatuto
social da infância e nos modos, diversos e plurais, das condições actuais de vida das
crianças. As instâncias através das quais as crianças têm sido socialmente inseridas na
sociedade percorrem os seus trajectos de crise e são redefinidos procedimentos de
administração simbólica da infância. Há, deste modo, um processo de
reinstitucionalização, isto é, o lugar social imputado às crianças não é já idêntico ao de
outrora.
A escola, por seu turno, de suposta instância de socialização para a coesão social,
visibiliza-se como o palco das trocas e disputas culturais, que sendo inerentes a uma
sociedade cosmopolita e de circulação facilitada das populações, não deixam por vezes
de ser violentas. A multiculturalidade contemporânea não se faz sem a disputa das
instâncias que procuram estabilizar princípios de justificação educacional. Sobretudo, a
escola da 2ª modernidade, de massas, heterogénea e multicultural, radicalizou o choque
cultural entre a cultura escolar e as diversas culturas familiares de origem dos alunos de
proveniência social e étnica diferenciadas cf. Montadon, 1997). Essa radicalização
exprime-se na “turbulência” dos contextos organizacionais de acção educativa e em
indicadores de insucesso escolar e de disrupção comportamental.
7
Neste contexto, a crença nas ”virtudes” do mercado educacional para confrontar a crise
nas escolas, através da liberalização e empresarialização da acção educativa, marcha a
par das correntes neo-conservadores que preconizam o “regresso” a uma concepção de
escola autoritária, selectiva e segregadora. Sendo dominantes estas correntes na
edificação das políticas educativas, emergem, em contra-corrente, as ideias da “criança
ao centro”, da “educação para a cidadadania” e da “participação educativa” como
referenciais da gestão da crise educacional, para a lado da edificação das escolas como
mundos de vida das crianças. Não obstante, no mainstream das correntes político-
educativas, esses conceitos ganham conteúdos semânticos diversos e pluralizados,
podendo (crescentemente) “cidadania” significar “disciplinação social” e “autonomia”
subordinação aos programas periciais das ciências legitimadoras dos novos modos de
administração simbólica (Popkewitz, 2000 e Sarmento, 2001a). O que resulta, em
definitivo, destas tensões no interior das instituições educativas é a deslocação da escola
do estatuto de instância de integração social, a fragilização da sua missão institucional –
tantas vezes testemunhada na inquietação de ser professor hoje – e a entrada num
“universo de justificação múltipla” (Derouet, 1992) que faz com que as escolas hoje se
constituam como um palco decisivo da luta político-pedagógica por dar um sentido à
actividade educativa e por fazer dela um instrumento do devir social.
8
Importa também considerar a variação seminal que consiste na troca de papeis
geracionais, com a crescente ocupação do espaço físico doméstico pelos adultos
(nomeadamente os desempregados, reformados, com licenças parciais de trabalho ou no
âmbito do trabalho remoto) e a saída das crianças para as múltiplas agências de
ocupação e regulação do tempo (ludotecas, ateliês de tempos livres, actividades de
formação não escolar, do tipo de cursos de inglês, cursos de informática, desporto semi-
federado, etc.). Esta mudança de papéis e lugares – as crianças fora de casa, onde
regressam muitos adultos – sendo embora ainda tendencial e progressiva, vai de par
com a crescente ocupação das crianças em instituições controladas pelos adultos, sem
tempo para procurar descobrir os seus limites, nem espaço para conhecer o sabor da
liberdade. A vida institucionalizada das crianças – a “institucionalização”, como
frequentemente se afirma, num sentido distinto do que aqui estamos a utilizar –
constitui-se como uma forma decisiva para a compreensão da infância na 2ª
modernidade, pela alteração que opera na centralidade do espaço doméstico.
9
Braga, do Rio de Janeiro, de Dili ou de Los Angeles têm acesso (ainda que desigual)
aos mesmos produtos culturais, mas não o fazem pondo de lado os processos simbólicos
e culturais que constróem a sociabilidade de forma distinta em cada uma dessas cidades
e, sobretudo, no uso desses produtos, põem em acção características próprias inerentes à
sua condição infantil.
2
Para uma crìtica a Postman, cf., e.g., Buchingham, 2000)
10
A radicalização a que nos referimos atrás exponencia as duas imagens da infância que
emergiram na modernidade. Isso explica a extraordinária complexidade dos paradoxos
em que exprime a condição social da infância (Qvortrup, 1991 e 1995). Entre a criança
desejada, que se quer livre, amada, espontânea, sonhadora e depositária do futuro e da
esperança e a criança rejeitada, abandonada ou enviada para as instituições de custódia,
perturbadora do quotidiano dos adultos, comprada e seduzida, mas, ao mesmo tempo,
temida na turbulência que leva à escola ou à família; entre a criança romântica e a
criança da crise social; entre a criança protegida e a criança violentada; entre a criança
vítima e a criança vitimadora; entre as crianças de Birmingham e as crianças de
Liverpool; entre uns e os outros, afinal, há um universo inteiro de diferenças, sem que,
todavia, não se dissipe nessa diferença uma marca distintiva essencial: é sempre de
crianças que estamos a falar e é irredutível ao mundo dos adultos a sua identidade.
Essa identidade da infância reside, primordialmente, no seu estatuto social face aos
direitos sociais – as crianças não têm capacidade jurídica de decisão autónoma,
necessitam de protecção e têm uma responsabilidade social em parte depositada em
quem exerce o poder paternal. Depois, essa identidade, reside ainda nos factores sociais
que impendem sobre as crianças e que condicionam profundamente as suas formas de
existência: há estatisticamente mais crianças pobres que outro qualquer grupo
geracional; a compulsividade de frequência de uma instituição escolar – a escola –
apenas obriga as crianças; a imensa maioria das crianças não tem rendimentos
económicos próprios. Essa identidade é também construída e continuamente investida
pelo sistema económico que destina uma parte dos seus produtos às crianças, cuidando
de autonomizar bem esse segmento de mercado, nas várias áreas em que ele se exprime.
A identidade das crianças é também a identidade cultural, isto é a capacidade das
crianças constituírem culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos.
11
crianças constitui, na expressão vulgar do adultos, o reconhecimento, no senso comum,
dos modos de construção de significado pelas crianças. Do lado das ciências que se
dedicam ao estudo das crianças – especialmente a Psicologia e as Ciências da Educação
- o estudo das práticas culturais da infância, nomeadamente no âmbito das actividades
escolares ou no contexto comunitário, tem originado um número significativo de
trabalhos de investigação. Há, igualmente, testemunhos históricos e arqueológicos que
registam a presença de artefactos e outros elementos simbólicos utilizados ou
construídos por crianças em numerosas civilizações desde a Antiguidade (Derevenski,
2000). Não obstante, a autonomia cultural das crianças continua sendo um tema envolto
em alguma controvérsia (cf. Iturra, 1997; Sarmento e Pinto, 1997; Frazão-Moreira,
2000). O debate não se centra no facto, reconhecido, das crianças produzirem
significações autónomas, mas em saber se essas significações se estruturam e
consolidam em sistemas simbólicos relativamente padronizados, ainda que dinâmicos e
heterogéneos, isto é, em culturas.
12
Torna-se então necessário reconhecer os traços distintivos das culturas da infância. A
gramática das culturas da infância exprime-se em várias dimensões:
Falei de gramática, mas importa destacar que as culturas da infância não se reduzem a
elementos linguísticos, antes integram elementos materiais, ritos, artefactos, disposições
cerimoniais e também normas e valores (Mollo-Bouvier, 1998).
A inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é uma
tarefa teórica e epistemológica que se encontra em boa medida por realizar. Constitui,
deste modo, um desafio científico a que se não podem furtar todos quantos se dedicam
aos estudos das criança. Esse esforço científico deve, a meu ver, seguir os 4 eixos
estruturadores das culturas da infância: a interactividade, a ludicidade, a fantasia do real
e a reiteração.
13
A interactividade
O mundo da criança é muito heterogéneo, ela está em contacto com várias realidades
diferentes, das quais vai apreendendo valores e estratégias que contribuem para a
formação da sua identidade pessoal e social. Para isso contribuem a sua família, as
relações escolares, as relações de pares, as relações comunitárias e as actividades sociais
que desempenham, seja na escola ou na participação de tarefas familiares. Esta
aprendizagem é eminentemente interactiva; antes de tudo o mais, as crianças aprendem
com as outras crianças, nos espaços de partilha comum. Estabelecem-se dessa forma as
culturas de pares, isto é. “um conjunto de actividades ou rotinas, artefactos, valores e
preocupações que as crianças produzem e partilham na interacção com os seus pares.”
(Corsaro, 1997: 114).
A interacção realiza-se tanto no plano sincrónico, como diacrónico (cf. James, Jenks e
Prout, 1998). As crianças, quando crescem, deixam o seu legado, sob a forma de
brincadeiras que praticam com os mais novos ou que estes observam e reproduzem. As
crianças partilham conhecimentos, rituais e jogos que vão sendo transmitidos de uma
14
geração de crianças para a seguinte. Isso explica esse dado surpreendente das crianças
continuarem a jogar ao pião ou à macaca em plena era dos jogos electrónicos. É pois
deste modo que se compreende que se continuem a recorrer a muitos jogos, estratégias
de encarar o real e visões face a determinadas questões já usadas há várias gerações
atrás. Estes comportamentos nascem das cultura infantis, já que não são comunicados
directamente pelos adultos..
A ludicidade
Se a cultura lúdica (Brougère, 1998) constitui algo central à própria ideia da infância,
desde há séculos, importa considerar o relevo que esta faceta tem no mercado de
produtos culturais para a infância. Com efeito, os brinquedos tradicionais vêm caindo
em desuso, substituídos pelos brinquedos industriais produzidos em série que são quase
sempre mais baratos, mais vistosos e estão mais na moda, constituindo-se como factor
de distinção social. Estes brinquedos que surgem no mercado, estereotipados e em
massa, condicionam as brincadeiras que com eles se têm e uniformizam-nas: a imagem
mais expressiva disso mesmo é dada pela mais americana cidadã do mundo, a boneca
Barbie (cf. Rogers, 1999). A principal característica destes brinquedos é a sua
“demasiada” estruturação, coarctora do imaginário infantil, como se o que fosse
importante fosse o brinquedo e não a brincadeira em si. No entanto, isso altera um traço
central da brincadeira das crianças ao longo da história: Tal como afirma Sutton-Smith,
“brincar com os outros, não brincar com objectos” (Sutton-Smith 1986: 26).
15
Com efeito, a natureza interactiva do brincar das crianças constitui-se como um dos
primeiros elementos fundacionais das culturas da infância. O brincar é a condição da
aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso,
que o brinquedo acompanhe as crianças nas diversas fases da construção das suas
relações sociais.
A fantasia do real
O “mundo do faz de conta” faz parte da construção pela criança da sua visão do mundo
e da atribuição do significado às coisas. No entanto, esta expressão “faz de conta” é algo
inapropriada para referenciar o modo específico como as crianças transpõem o real
imediato e o reconstroem criativamente pelo imaginário, seja importando situações e
personagens fantasistas para o seu quotidiano, seja interpretando de modo fantasista os
eventos e situações que ocorrem. Na verdade, a dicotomia realidade-fantasia é
demasiado frágil para denotar o processo de imbricação entre dois universos de
referência, que nas culturas infantis efectivamente se encontram associados. Poderemos
de resto, justamente, interrogar-nos sobre se essa imbricação não ocorre também no
mundo dos adultos, isto é, se toda a interpretação não é sempre projecção do imaginário
e se o “real” não é, afinal, o efeito da segmentação, transposição e re-criação feita no
acto de interpretação de acontecimentos e situações.
16
O pensamento fantasista, se se reporta a situações, pessoas ou acontecimentos, também
se exprime na apropriação de objectos pela criança – estes não são nunca apenas o que
valem e para que servem, mas outra coisa ainda e, como dizia Fernando Pessoa, “essa
coisa é que é linda”. Walter Benjamin explica muito bem esta capacidade tde
transposição e não literalidade das crianças com os objectos quando descreve a “criança
desordenada”.
“[Na criança] as coisas passam-se como nos sonhos, não conhece nada
que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu
encontro, esbarram com ela. Os seus anos de nómada são horas na
floresta do sonho. É de lá que arrasta a sua presa até casa, para a limpar, a
fixar e desmontar. As suas gavetas têm de se transformar em arsenal e
jardim zoológico, museu criminal e cripta. “Arrumar” seria destruir uma
construção repleta de castanhas eriçadas de espinhos que são clavas,
papeis de estanho que são um tesouro de pratas, paralelipípedos de
madeira que são ataúdes, cactos que são tótens e tostões de cobre que são
escudos.” (Benjamim, 1992a)
A reiteração
17
É ainda Walter Benjamim quem nos ajuda na compreensão deste elemento
característico das culturas infantis:
(Benjamin, 1992b)
O lugar da criança é, em suma, o lugar das culturas da infância. Mas esse lugar das
culturas é continuamente reestruturado pelas condições estruturais que definem as
gerações em cada momento histórico concreto.
18
desempenho de um certo número de aspectos emergentes, ainda pouco estudados, mas
possivelmente configuradores de um futuro:
Estas reconfigurações fazem das crianças contemporâneas construtoras activas dos seu
próprio lugar na sociedade contemporânea, esse ponto no mapa , afinal, que é também a
mesma encruzilhada em que todos nós nos situamos lugar que com ela partilhamos,
ainda que com responsabilidades (e culpas...) distintas: cidadãos implicados na
construção da (so)ci(e)dade.
19
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sarmento@iec.uminho.pt
Jogos na guerra
Uma imagem de guerra, extraída num campo de refugiados albaneses no Kosovo, mostra
duas crianças brincando com uma boneca Barbie, perante o olhar entre o apreensivo, o
desolado e o fatalisticamente resignado dos adultos que com elas partilham as tendas de
campanha dispostas para os albergar.
Não é apenas a boneca Barbie que aparece neste contexto de incerteza e de dor
insolitamente exposta, na sua arrogância loira oxigenada perante o infortúnio colectivo.
Símbolo maior da indústria cultural fornecedora do mercado infantil de jogos e brinquedos,
a boneca Barbie é talvez menos inesperada no processo de globalização dos dispositivos de
jogo e nos produtos de consumo lúdico das crianças do que o próprio acto de brincar das
crianças, no momento em que tudo falta: a casa, a escola, um país para viver, talvez até
uma família, a confiança num futuro vivível, a certeza – mesmo se precária - da
sobrevivência.
No entanto, o que relatos e estudos das crianças da guerra nos contam é essa forma de
conseguir criar um mundo outro, nas condições da mais dura adversidade, através do jogo
*
Este texto foi produzido no âmbito das actividades do Projecto “As Marcas dos Tempos: a
Interculturalidade nas Culturas da infância”, Projecto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação
para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das Jornadas “Educação e
Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em Março de 2003.
1
e da ficção de uma existência onde até o horror aparece transmudado em projecção
imaginária de uma realidade alternativa. Pedro Rosa Mendes conta no livro “a Baía dos
Tigres” que viu uma criança entre as ruínas da cidade do Bié, em Angola, jogando futebol,
indiferente à desolação à sua volta. O esférico com que se entretinha - imaginando-se o
Eusébio ou o Pelé da época, como qualquer criança de qualquer outra parte do mundo -
era, à falta de melhor, os restos de uma caveira humana: “Não é por maldade. O crânio
estava disponível, perto e seco. Tu e eu conhecemos as balizas da humanidade: crânios
enterram-se, bolas são redondas. [À criança] ninguém deu oportunidade para tanto.”
(Mendes, 1999:386).
O jogo da criança do Bié tem o mesmo significado do de qualquer outra criança que, em
paz, brinca à guerra e até já aprendeu, a golpes de joystick, o que é um míssil Patriot ou um
B-52 carregado de bombas de implosão...
Entre as crianças que brincam com uma Barbie, ou que chutam um crânio humano, ou que
empunham uma Kalashnikov de plástico, ou que jogam ao berlinde, ou lançam o peão, ou
brincam às casinhas, ou se divertem na consola ou no écran do computador há todo um
mundo de diferenças: de condição de social, de contexto, de valores, de referências
simbólicas, de expectativas e possibilidades. Mas há também um elemento comum: a
experiência das situações mais extremas através do jogo e da construção imaginária de
contextos de vida.
O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas características das formas
específicas de relação das crianças com o mundo. A investigação tem sido dominada pelas
correntes teóricas da Psicologia. As perspectivas predominantes são as psicanalíticas e as
construtivistas. Para Freud, o imaginário infantil corresponde à expressão do princípio do
desejo sobre o princípio da realidade, sendo o jogo simbólico uma expressão do
inconsciente, para além da formação da censura. Para Piaget, o jogo simbólico é a
expressão do pensamento autístico das crianças, progressivamente eliminado pelo processo
de desenvolvimento e construção do pensamento racional. Apesar das diferenças essenciais
entre as diversas orientações, sedimentadas na história da disciplina, as perspectivas
psicológicas do imaginário infantil possuem um elemento comum, que é aliás inerente à
própria concepção moderna da infância: o imaginário infantil é concebido como a
expressão de um déficit - as crianças imaginam o mundo porque carecem de um
pensamento objectivo ou porque estão imperfeitamente formados os seus laços racionais
2
com a realidade. Esta ideia do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que
constitui um pressuposto epistémico na construção social da infância pela modernidade:
criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno), o que não trabalha, o que
não tem direitos políticos, o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental
ou judicial, o que carece de razão, etc.
Sublinhamos que a negatividade definitória da infância assenta numa base ideológica que é
resultante do processo de reflexividade moderna, e tem suporte no discurso científico e
pericial.
Mas é numa vertente sociológica e antropológica que essa diferença pode fazer mais
sentido. O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da
personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto
social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições
sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a
de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e
que está sob o controlo da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua
dimensão simbólica nas culturas da infância.
3
O conceito de “culturas da infância” tem vindo a ser estabelecido consistentemente pela
Sociologia da Infância como um elemento distintivo da categoria geracional (e.g. Corsaro,
1997; James, Jenks e Prout, 1998). Por esse conceito entende-se a capacidade das crianças
em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de acção
intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção.
A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são
produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por
relações de classe, de género e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a
fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não
obstante, a “marca” da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural.
As culturas da infância são tão antigas quanto a infância. Resultam do processo societal de
construção da infância, coevo da modernidade. A diferença geracional é, assim,
historicamente construída, com efeitos na evolução do estatuto social e das representações
sociais sobre as crianças. Ao dizermos isto, recusamos uma concepção ontogénica das
culturas infantis e afastamo-nos de uma perspectiva que “naturaliza” os modos de
percepção, representação e significação do mundo pelas crianças, gerado a partir de
características desenvolvimentais específicas e realizadas no vazio social. Ao invés, as
culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são
alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as
crianças e que regem as possibilidades das interacções das crianças, entre si e com os
outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos,
exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade.
4
elas são a expressão de competências infantis no uso e criação vocabular e semântica. Uma
vez mais, é da ordem da diferença (do uso da linguagem) e não do deficit que se trata.
É no vai-vém entre culturas geradas, conduzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças e
culturas construídas nas interacções entre as crianças que se constituem os mundos
culturais da infância.
Entre as primeiras – as formas culturais criadas e dirigidas pelos adultos para as crianças1 -
para além da cultura escolar (com os seus códigos próprios, resultantes do arbítrio cultural
que estabelece o recorte, selecção, incorporação, hierarquização e correspondentes
dispositivos de transmissão dos saberes e valores), deveremos considerar o conjunto de
dispositivos culturais produzidos para as crianças, com uma orientação de mercado,
configuradora da indústria cultural para a infância (literatura infantil, jogos e brinquedos,
cinema, bandas-desenhadas, jogos vídeo e informáticos, sites e outros dispositivos da
Internet, serviços variados – de férias, de tempos livres, de comemoração de aniversário,
de festas, etc.).
1
Na sua abordagem da “cultura de pares infantil”, W. Corsaro (1997) distingue estas formas culturais entre a
“cultura simbólica da infância”, constituída pelos media, a literatura infantil, as lendas e figuras mitológicas,
e a “cultura material da infância”, constituída por roupa, livros, ferramentas artísticas e literárias e
brinquedos. Esta distinção, além de especiosa, tende a tornar-se improcedente, considerando, por exemplo, a
fusão de elementos “simbólicos” e “materiais” originados na mesma fonte (por exemplo, os desenhos
animados televisivos, sejam hollywoodescos ou japoneses, entre outros, dão frequentemente origem a
elementos materiais, como T-Shirts, canetas, jogos vídeo, etc. Há uma “materialidade” no simbólico e uma
incorporação simbólica da “cultura material” que a distinção de Corsaro escamoteia.
5
específicas de recepção pelas crianças. O estudo das relações entre a produção e recepção
cultural na infância poderá levar-nos a um olhar diferente sobre a história das ideias
pedagógicas, centrada nas aprendizagens e não já, como é habitual, nas teorias de ensino e
nas respectivas bases filosóficas, psicológicas, políticas, morais, etc. De modo similar, a
prioridade analítica concedida à ideia da criança como construtora de cultura poderá levar
a considerar o “insucesso escolar” como um fenómeno de desadaptação do discurso
didáctico à recepção infantil, o que, escusado será dizer, corresponde a uma inversão da
lógica exclusionista pressuposta nas principais teorias correntes do insucesso, segundo as
quais ele se deve às condições individuais ou sociais da recepção da cultura escolar pelos
alunos ou aos meios da sua “transmissão”, deixando inquestionada a própria natureza e
conteúdos da cultura escolar (cf. Charlot, 2000).
De modo similar, os produtos da indústria cultural para as crianças devem a sua eficácia à
empatia que conseguem estabelecer com os seus “consumidores”: dos filmes Disney às
cartas Pokemon e da boneca Barbie às consolas da Mattel verifica-se o estabelecimento de
uma conformidade com o imaginário infantil que explica a universalização desses
produtos. Eles tornam-se referências no mercado infantil pelo valor simbólico que lhes está
associado e que, em larga medida, se sobrepõe ao seu potencial lúdico (a posse da boneca
Barbie, por exemplo, é um elemento de distinção social cujo valor simbólico não é
transaccionável por qualquer outra boneca, mesmo com potencialidades lúdicas superiores,
cf. Rogers, 1999); porém, o uso a que se prestam pelas crianças está em linha de
convergência com o desejo e as potencialidades de fruição infantil (ainda que,
evidentemente, as não esgote).
Se a indústria cultural de produtos para a infância atende às culturas infantis tendo em vista
a expansão comercial e o lucro, por razões completamente distintas, a interpretação
sociológica das culturas da infância constitui-se como prioritária. Desde logo, porque ela é
6
essencial à compreensão da própria infância. A análise da recepção pelas crianças desses
produtos culturais é, portanto, fundamental. Uma das conclusões mais insistentemente
afirmadas na análise da recepção dos produtos da indústria cultural pelas crianças,
nomeadamente no que respeita aos programas televisivos, é de que, contrariamente ao que
é correntemente veiculado pelo senso-comum, as crianças não são receptoras passivas,
acríticas e reprodutivas desses produtos, mas, pelo contrário, ainda que se estabeleça uma
relação empática, essa recepção é criativa, interpretativa e frequentemente crítica das
respectivas mensagens (Buckingham, 1994 e 2000 e Pinto, 2000). Contrariamente ao que
por vezes é dado por adquirido (Steinberg e Kincheloe, 1997), a análise política e
simbólica dos produtos da indústria mercado cultural para a infância é insuficiente para
objectivar as culturas da infância e a institucionalização contemporânea da infância.
7
Formas culturais produzidas pelas crianças
8
interpretativa” (Corsaro, 1997), constitutivo das identidades individuais de cada criança e
do estatuto social da infância como categoria geracional.
Esta tarefa é reconhecida no interior do espaço antropológico – menos disponível até agora
para integrar a compreensão da autonomia relativa das culturas infantis, apesar de logo no
início dos anos 70 vários antropólogos denominarem de “cultura da infãncia” o conjunto
de jogos e de brincadeiras que identificaram nas suas pesquisas (cf. James, Jenks e Prout,
1998:83 e s.) – como o atesta as palavras de Clifford Geertz:
Desde logo, na sociologia, onde o conceito de “socialização”, com raízes na obra de Emile
Durkheim, remeteu para a condição de seres pré-sociais as crianças, assim tematizadas
como objecto de um processo de inculcação de valores, normas de comportamento, e de
saberes úteis para o exercício futuro de práticas sociais pertinentes. O conceito, nas suas
múltiplas reinterpretações futuras, incorpora sedimentalmente a história de uma produção
teórica sociológica que se ocupou sempre das crianças como objectos manipuláveis,
vítimas passivas ou joguetes culturalmente neutros, subordinados a modos de dominação
ou de controlo social, que assumiam a garantia da sua continuidade precisamente por esse
trabalho de condução para os lugares, os comportamentos, as atitudes ou as práticas sociais
pertinentes. A desconstrução do conceito de socialização é inerente à emancipação da
9
infância como objecto teórico e à interpretação das crianças como seres sociais plenos,
dotados de capacidade de acção e culturalmente criativos2.
No entanto, se a evolução das ciências sociais que estudam a infância evoluiu no sentido
do reconhecimento da autonomia das formas culturais, a inventariação dos princípios
geradores e das regras das culturas da infância é uma tarefa teórica e epistemológica que se
encontra em boa medida por realizar.
Assim, as culturas da infância podem ser analisadas na Semântica, isto é nos processos de
referenciação e significação próprios das crianças, na Sintaxe, isto é nas regras de
articulação entre os elementos simbólicos e na Morfologia, isto é, na especificidade das
formas que assumem os elementos constitutivos das culturas da infância: os jogos, os
2
Para a revisão da literatura crítica ao conceito de socialização , cf.. Jenks, 1996; Corsaro, 1997; Montadon,
1998; Sirota, 1998.
10
brinquedos, os rituais, mas também os gestos e as palavras. Podem ser ainda analisadas na
sua Pragmática, isto é, nas relações de comunicação que se estabelecem entre pares e nos
modos pelos quais se realizam os processos de cooperação e de estratificação entre as
crianças (Adler e Adler, 1999). Cada uma destas dimensões da gramáticas das culturas da
infância necessita de ser analisada nos seus princípios e traços distintivos.
Como hipótese a explorar, pode avançar-se a ideia de que as crianças estabelecem uma
deslocação sobre os princípios lógicos estruturantes das gramáticas culturais adultas3 e,
especialmente, sobre os princípios da identidade e da sequencialidade: Para as crianças, no
âmbito do jogo simbólico - cuja importância na infância está bem estabelecida (Winnicot,
1975) -, o objecto referenciado não perde a sua identidade própria e é, ao mesmo tempo,
transmutado pelo imaginário: a criança pode passar a ser um astronauta, ou um índio, ou
um modelo exibindo-se nas passerelles, ou um gato, sem deixar de ser ela própria, assim
como o toco de uma vassoura se transmuta numa espada, ou num cavalo, e uma toalha se
transforma numa túnica ou numa bandeira, sem que a criança perca a noção da identidade
de origem. Do mesmo modo, a criança incorpora no tempo presente, o tempo passado e o
tempo futuro, numa sincronização de diacronias que altera a linearidade temporal,
possibilita a recursividade e garante a simultaneidade de factos cronologicamente distintos.
A criança repete a história “era uma vez...” e presentifica esse passado de cada vez que se
identifica com o herói que “então eu era...”, cometendo o futuro antecipado do acontecido.
A alteração da lógica formal não significa que as crianças tenham um pensamento ilógico.
Pelo contrário, esta alteração, estando patente na organização discursiva das culturas da
infância (especialmente no que respeita ao jogo simbólico), é coexistente com uma
organização lógica formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente
“navegue entre dois mundos” – o real e o imaginário – explorando as suas contradições e
possibilidades (Harris, 2002:232). Por outro lado, os princípios lógicos alterados também
não são exclusivamente integrantes das culturas da infância, sendo inerentes aos processos
de construção da linguagem poética, onde a subversão do princípio da identidade e da
sequencialidade são constitutivos dos respectivos processos de significação (e.g., Baktine,
1976; Kristeva, 1978).
3
Referimo-nos às culturas ocidentais de matriz europeia. As culturas não ocidentais não se estruturam
necessariamente sobre os mesmos princípios lógicos.
11
Para além dos princípios que enformam as gramáticas das culturas da infância, estas
estruturam-se em torno de alguns pilares que a investigação tem permitido destacar e
sublinhar.
12
cultural para as crianças faz parte integrante – é, no entanto, algo central à própria ideia da
infância ocidental, desde há séculos. Com efeito, a natureza interactiva do brincar das
crianças constitui-se como um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da
infância. Tal como afirma Sutton-Smith, “brincar com os outros, não brincar com
objectos” (1986: 26). O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da
aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso, que o brincar, o jogo e o brinquedo4
acompanhem as crianças nas diversas fases da construção das suas relações sociais.
4
A língua portuguesa permite distinguir estes três vocábulos (o que não acontece necessariamente noutras
línguas) sendo os três integrantes da mesma realidade lúdica, respectivamente: prática lúdica não formal;
prática lúdica estruturada regida por regras; artefacto lúdico.
13
(Benjamim, 1992) de jogar o jogo outra vez, de repetir a experiência e alcançar, deste
modo, um meio de domínio dos recursos ou da linguagem adequada para dominar a
situação. E para sentir o prazer redobrado de uma experiência fruível.
O jogo simbólico
O imaginário infantil, de acordo com a perspectiva que temos vindo a desenvolver sobre as
culturas infantis, corresponde a um elemento nuclear da compreensão e significação do
mundo pelas crianças. Com efeito, a imaginação do real é fundacional do seu modo de
inteligibilidade. As crianças desenvolvem a sua imaginação sistematicamente a partir do
que observam, experimentam, ouvem e interpretam da sua experiência vital, ao mesmo
tempo que as situações que imaginam lhes permite compreender o que observam,
interpretando novas situações e experiências de modo fantasista, até incorporarem como
experiência vivida e interpretada.
O jogo simbólico desempenha, deste modo e desde a mais tenra idade (cf. Harris, 2002)
uma função nuclear na construção do sentido pelas crianças; a intermediação desse jogo
com as outras, através da sociabilidade infantil e no âmbito das culturas de pares é central à
configuração de um imaginário colectivo, que está contextualizado socialmente, mas
exprime, nas condições específicas de cada situação espaço-temporal, a diferença cultural
14
estabelecida pela pertença geracional. É esse imaginário colectivo, afirmado na
transposição imaginária de situações, pessoas, objectos ou acontecimentos, esta “não
literalidade”, que pode explicar a excepcional da capacidade de resistência que as crianças
possuem face a situações muito dolorosas ou ignominiosas da existência, como tem sido
aliás sublinhado por um importante conjunto de estudos sobre crianças vítimas de
catástrofes naturais ou de maus-tratos (cf. Gavarini e Petitot, 1998). É por isso que fazer de
conta é processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para a
criança.
“Desde a mais pequena idade, a maior parte das crianças têm a capacidade
de se envolver activamente em jogos simbólicos. Esses jogos sublinham três
aspectos importantes da imaginação das crianças: a sua capacidade de pôr
de parte a sua própria personalidade e de se imaginar estar no lugar de outra
pessoa numa situação que não é a sua situação actual; imaginando essa
situação, as crianças ficam limitadas pelo seu conhecimento dos processos
causais do mundo real – elas interpelam no quadro dessa situação
imaginária os mesmos processos e necessidades causais que sabem existir
na realidade; e, enfim, se o jogo simbólico repousa sobre a invocação de
situações afastadas da realidade presente, elas têm o poder de provocar
emoções reais.” (2002: 237).
Esta capacidade de transposição emocional das situações presentes, permite explicar como
o confronto com a dor é vivida frequentemente pelas crianças de modo imaginário5,
transpondo o sofrimento para o prazer de brincar no mundo que é de faz de conta, mas que
é levado totalmente a sério (como tantas vezes recorda o cinema; veja-se, por exemplo “A
Vida é Bela” de Roberto Benigni), que torna vivível uma vida, noutras circunstâncias,
tragicamente dominada pela ignomínia, a violência e a opressão. Que esta transposição
radica nas gramáticas e nos pilares das culturas da infância, foi o que pretendemos
demonstrar.
5
Uma vez mais, é possível estabelecer um paralelismo com a linguagem poética, recordando a transposição
imaginário do real no “fingimento” pessoano, evocado na sua Autopsicografia numa situação que é a inversa
da que aqui registamos: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor
que deveras sente.”
15
Conclusão
Em contraponto com uma visão determinista da recepção cultural pelas crianças, o estudo
do imaginário infantil, no quadro das culturas da infância, como modo de apropriação
alternativa da realidade social, poderá inserir-se no âmbito da abertura a novas abordagens
epistemológicas a que somos convidados perante a crise dos paradigmas legados pela
modernidade (Santos, 2001). A incorporação do imaginário não conhecimento do mundo,
16
que é inerente às gramáticas das culturas da infância corresponde a um resgate do sensível
na interacção com a natureza e com os outros. O imaginário infantil é um factor de
conhecimento, e não uma incapacidade, uma marca de imaturidade ou um erro.
Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este esforço, que é,
simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos mundos sociais e culturais da
infância, e político e pedagógico, na concepção da mudança das instituições para as
crianças, tomando como ponto de ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o
nosso próprio mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns pintores, há
muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta dos traços das crianças. É
um mundo infinitamente mais pacífico aquele que se desenha nesses traços...
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experiência das situações mais extremas através do jogo e da construção imaginária de
contextos de vida.
O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas características das formas
específicas de relação das crianças com o mundo. Apesar das diferenças essenciais entre as
diversas orientações, sedimentadas na história da disciplina, as perspectivas psicológicas
do imaginário infantil possuem um elemento comum, que é aliás inerente à própria
concepção moderna da infância: o imaginário infantil é concebido como a expressão de um
déficit - as crianças imaginam o mundo porque carecem de um pensamento objectivo ou
porque estão imperfeitamente formados os seus laços racionais com a realidade. Esta ideia
1
do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que constitui um pressuposto
epistémico na construção social da infância pela modernidade: criança é o que não fala
(infans), o que não tem luz (o a-luno), o que não trabalha, o que não tem direitos políticos,
o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de
razão, etc.
Sublinhamos que a negatividade definitória da infância assenta numa base ideológica que é
resultante do processo de reflexividade moderna, e tem suporte no discurso científico e
pericial.
Mas é da ordem da diferença e não do deficit que falamos, quando falamos do imaginário
infantil, por relação com o dos adultos.
A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são
produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por
relações de classe, de género e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a
fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não
obstante, a “marca” da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural.
2
As culturas da infância são tão antigas quanto a infância. Resultam do processo societal de
construção da infância, coevo da modernidade. A diferença geracional é, assim,
historicamente construída, com efeitos na evolução do estatuto social e das representações
sociais sobre as crianças. Ao dizermos isto, recusamos uma concepção ontogénica das
culturas infantis e afastamo-nos de uma perspectiva que “naturaliza” os modos de
percepção, representação e significação do mundo pelas crianças, gerado a partir de
características desenvolvimentais específicas e realizadas no vazio social. Ao invés, as
culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são
alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as
crianças e que regem as possibilidades das interacções das crianças, entre si e com os
outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos,
exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade.
3
É no vai-vém entre culturas geradas, conduzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças e
culturas construídas nas interacções entre as crianças que se constituem os mundos
culturais da infância.
Entre as primeiras – as formas culturais criadas e dirigidas pelos adultos para as crianças -
para além da cultura escolar (com os seus códigos próprios, resultantes do arbítrio cultural
que estabelece o recorte, selecção, incorporação, hierarquização e correspondentes
dispositivos de transmissão dos saberes e valores), deveremos considerar o conjunto de
dispositivos culturais produzidos para as crianças, com uma orientação de mercado,
configuradora da indústria cultural para a infância (literatura infantil, jogos e brinquedos,
cinema, bandas-desenhadas, jogos vídeo e informáticos, sites e outros dispositivos da
Internet, serviços variados – de férias, de tempos livres, de comemoração de aniversário,
de festas, etc.).
De modo similar, os produtos da indústria cultural para as crianças devem a sua eficácia à
empatia que conseguem estabelecer com os seus “consumidores”: dos filmes Disney às
cartas Pokemon e da boneca Barbie às consolas da Mattel verifica-se o estabelecimento de
uma conformidade com o imaginário infantil que explica a universalização desses
produtos. Eles tornam-se referências no mercado infantil pelo valor simbólico que lhes está
associado e que, em larga medida, se sobrepõe ao seu potencial lúdico (a posse da boneca
Barbie, por exemplo, é um elemento de distinção social cujo valor simbólico não é
transaccionável por qualquer outra boneca, mesmo com potencialidades lúdicas superiores,
4
cf. Rogers, 1999); porém, o uso a que se prestam pelas crianças está em linha de
convergência com o desejo e as potencialidades de fruição infantil (ainda que,
evidentemente, as não esgote). Com efeito: “A cultura comercial das crianças apela tanto
às crianças porque toma seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças..”
(Kenway e Bullen 2001:46)
Se a indústria cultural de produtos para a infância atende às culturas infantis tendo em vista
a expansão comercial e o lucro, por razões completamente distintas, a interpretação
sociológica das culturas da infância constitui-se como prioritária. Desde logo, porque ela é
essencial à compreensão da própria infância. A análise da recepção pelas crianças desses
produtos culturais é, portanto, fundamental. Uma das conclusões mais insistentemente
afirmadas na análise da recepção dos produtos da indústria cultural pelas crianças,
nomeadamente no que respeita aos programas televisivos, é de que, contrariamente ao que
é correntemente veiculado pelo senso-comum, as crianças não são receptoras passivas,
acríticas e reprodutivas desses produtos, mas, pelo contrário, ainda que se estabeleça uma
relação empática, essa recepção é criativa, interpretativa e frequentemente crítica das
respectivas mensagens (Buckingham, 1994 e 2000 e Pinto, 2000). Contrariamente ao que
por vezes é dado por adquirido (Steinberg e Kincheloe, 1997), a análise política e
simbólica dos produtos da indústria mercado cultural para a infância é insuficiente para
objectivar as culturas da infância e a institucionalização contemporânea da infância.
5
expressão quase universal, conhecida pela “amarelinha” no Brasil, por exemplo), os
berlindes, o jogo do laço; a brinquedos como o pião, os papagaios de papel, as tampinhas
de garrafas de refrigerantes transformadas em veículos de corrida ou em bolas para jogos
simulados de futebol em miniatura, os carrinhos de rolamentos, ou mesmo a brinquedos
em relativo desuso como o arco e a roda ou o espeto. Mas integram também as culturas da
infância modos específicos de significação e de uso da linguagem que se desenvolvem
especialmente no âmbito das relações de pares e que são distintos dos processos adultos.
A inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é uma tarefa
teórica e epistemológica que se encontra em boa medida por realizar.
6
Sintaxe, isto é nas regras de articulação entre os elementos simbólicos e na Morfologia,
isto é, na especificidade das formas que assumem os elementos constitutivos das culturas
da infância: os jogos, os brinquedos, os rituais, mas também os gestos e as palavras. Podem
ser ainda analisadas na sua Pragmática, isto é, nas relações de comunicação que se
estabelecem entre pares e nos modos pelos quais se realizam os processos de cooperação e
de estratificação entre as crianças (Adler e Adler, 1999). Cada uma destas dimensões das
gramáticas das culturas da infância necessita de ser analisada nos seus princípios e traços
distintivos.
Como hipótese a explorar, pode avançar-se a ideia de que as crianças estabelecem uma
deslocação sobre os princípios lógicos estruturantes das gramáticas culturais adultas e,
especialmente, sobre os princípios da identidade e da sequencialidade. È importante frisar
que nos estamos a referir às culturas ocidentais de matriz europeia. As culturas não
ocidentais não se estruturam necessariamente sobre os mesmos princípios lógicos. Para as
crianças, no âmbito do jogo simbólico - cuja importância na infância está bem estabelecida
(Winnicot, 1975) -, o objecto referenciado não perde a sua identidade própria e é, ao
mesmo tempo, transmutado pelo imaginário: a criança pode passar a ser um astronauta, ou
um índio, ou um modelo exibindo-se nas passerelles, ou um gato, sem deixar de ser ela
própria, assim como o toco de uma vassoura se transmuta numa espada, ou num cavalo, e
uma toalha se transforma numa túnica ou numa bandeira, sem que a criança perca a noção
da identidade de origem. Do mesmo modo, a criança incorpora no tempo presente, o tempo
passado e o tempo futuro, numa sincronização de diacronias que altera a linearidade
temporal, possibilita a recursividade e garante a simultaneidade de factos
cronologicamente distintos. A criança repete a história “era uma vez...” e presentifica esse
passado de cada vez que se identifica com o herói que “então eu era...”, cometendo o
futuro antecipado do acontecido.
A alteração da lógica formal não significa que as crianças tenham um pensamento ilógico.
Pelo contrário, esta alteração, estando patente na organização discursiva das culturas da
infância (especialmente no que respeita ao jogo simbólico), é coexistente com uma
organização lógica formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente
“navegue entre dois mundos” – o real e o imaginário – explorando as suas contradições e
possibilidades (Harris, 2002:232). Por outro lado, os princípios lógicos alterados também
não são exclusivamente integrantes das culturas da infância, sendo inerentes aos processos
de construção da linguagem poética, onde a subversão do princípio da identidade e da
7
sequencialidade são constitutivos dos respectivos processos de significação (e.g., Baktine,
1976; Kristeva, 1978).
O jogo simbólico
O imaginário infantil, de acordo com a perspectiva que temos vindo a desenvolver sobre as
culturas infantis, corresponde a um elemento nuclear da compreensão e significação do
mundo pelas crianças. Com efeito, a imaginação do real é fundacional do seu modo de
inteligibilidade. As crianças desenvolvem a sua imaginação sistematicamente a partir do
que observam, experimentam, ouvem e interpretam da sua experiência vital, ao mesmo
1
A língua portuguesa permite distinguir estes três vocábulos (o que não acontece necessariamente noutras
línguas) sendo os três integrantes da mesma realidade lúdica, respectivamente: prática lúdica não formal;
prática lúdica estruturada regida por regras; artefacto lúdico.
8
tempo que as situações que imaginam lhes permite compreender o que observam,
interpretando novas situações e experiências de modo fantasista, até incorporarem como
experiência vivida e interpretada.
O jogo simbólico desempenha, deste modo e desde a mais tenra idade (cf. Harris, 2002)
uma função nuclear na construção do sentido pelas crianças; a intermediação desse jogo
com as outras, através da sociabilidade infantil e no âmbito das culturas de pares é central à
configuração de um imaginário colectivo, que está contextualizado socialmente, mas
exprime, nas condições específicas de cada situação espaço-temporal, a diferença cultural
estabelecida pela pertença geracional. É esse imaginário colectivo, afirmado na
transposição imaginária de situações, pessoas, objectos ou acontecimentos, esta “não
literalidade”, que pode explicar a excepcional da capacidade de resistência que as crianças
possuem face a situações muito dolorosas ou ignominiosas da existência, como tem sido
aliás sublinhado por um importante conjunto de estudos sobre crianças vítimas de
catástrofes naturais ou de maus-tratos (cf. Gavarini e Petitot, 1998). É por isso que fazer de
conta é processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para a
criança.
“Desde a mais pequena idade, a maior parte das crianças têm a capacidade
de se envolver activamente em jogos simbólicos. Esses jogos sublinham três
aspectos importantes da imaginação das crianças: a sua capacidade de pôr
de parte a sua própria personalidade e de se imaginar estar no lugar de outra
pessoa numa situação que não é a sua situação actual; imaginando essa
situação, as crianças ficam limitadas pelo seu conhecimento dos processos
causais do mundo real – elas interpelam no quadro dessa situação
imaginária os mesmos processos e necessidades causais que sabem existir
na realidade; e, enfim, se o jogo simbólico repousa sobre a invocação de
situações afastadas da realidade presente, elas têm o poder de provocar
emoções reais.” (2002: 237).
Esta capacidade de transposição emocional das situações presentes, permite explicar como
o confronto com a dor é vivida frequentemente pelas crianças de modo imaginário2,
2
Uma vez mais, é possível estabelecer um paralelismo com a linguagem poética, recordando a transposição
imaginário do real no “fingimento” pessoano, evocado na sua Autopsicografia numa situação que é a inversa
da que aqui registamos: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor
que deveras sente.”
9
transpondo o sofrimento para o prazer de brincar no mundo que é de faz de conta, mas que
é levado totalmente a sério (como tantas vezes recorda o cinema; veja-se, por exemplo “A
Vida é Bela” de Roberto Benigni), que torna vivível uma vida, noutras circunstâncias,
tragicamente dominada pela ignomínia, a violência e a opressão. Que esta transposição
radica nas gramáticas e nos pilares das culturas da infância, foi o que pretendemos
demonstrar.
Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este esforço, que é,
simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos mundos sociais e culturais da
infância, e político e pedagógico, na concepção da mudança das instituições para as
crianças, tomando como ponto de ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o
nosso próprio mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns pintores, há
muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta dos traços das crianças. É
um mundo infinitamente mais pacífico aquele que se desenha nesses traços...
10
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Winnicott, D. W. (1975). Jeu et Realité. Paris. Gallimard.
11
O SABER DA “ESCOLA DO BRANCO” E AS CULTURAS DAS
CRIANÇAS INDÍGENAS: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA DOS
(DES)ENCONTROS1
Resumo: O objetivo deste texto é estabelecer, a partir das falas das crianças
Sateré-Mawé, o cruzamento entre os saberes vividos por elas no cotidiano de
sua comunidade indígena e os saberes instituídos pela escola regular,
destacando os (des)encontros que foram emergindo no processo da pesquisa
e que configuraram a distinção entre os lugares das culturas indígenas,
totalmente ausentes no contexto escolar, e a lógica da escola que determina a
existência de uma hierarquia de saberes onde os padrões da vida social
urbana devem ser seguidos como o modelo hegemônico vigente.
Introdução:
1
In: NASCIMENTO, Adir Casaro (Org.). Crianças Indígenas: diversidade cultural, educação e
representações sociais. Brasília: Liber Livros, 2011. (p. 181-204).
2
Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas. Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Santa Catarina, com aprofundamento de estudos no Instituto de Estudos da Criança, Braga-PT.
3
Segundo Bourdieu (2007, p. 51) é preciso não confundir objetivação participante com observação
participante. Para o autor a primeira representa de fato uma imersão no cotidiano da realidade por meio da
pesquisa e a segunda representa “uma – falsa – participação num grupo estranho”.
4
Os Sateré-Mawé que moram na comunidade são oriundos da região do médio rio Amazonas e
habitavam as áreas indígenas dos rios Andirá e do Marau, que foram demarcadas em 1982 e homologadas
em 1986, com 788.528 hectares, entre os estados do Amazonas e Pará. O processo de migração desta
etnia para Manaus, assim como para outras cidades do interior do estado, deu-se devido uma série de
fatores, mas, principalmente, pela “pretensa ilusão” da busca de melhorias. Hoje há uma estimativa de
morarem em Manaus aproximadamente 2.000 indígenas dessa etnia.
2
5
Esses dados foram coletados na própria comunidade no decorrer da pesquisa, com a colaboração do
Cacique Luiz. É importante salientar que existe outra comunidade Sateré-Mawé, bem ao lado desta onde
realizamos a pesquisa, mas, por conflitos entre eles, estão separados e não mantêm uma relação amigável,
o que nos “obrigou”, de certa forma, fazer a escolha por uma delas, neste caso a de maior população
adulta e infantil.
6
Perrenoud (1995) afirma que, idealmente, o ofício de aluno incita-os a trabalhar para aprender. Na
realidade, pede-se também às crianças e adolescentes que trabalhem para estarem ocupados, para
transformarem textos, exercícios, problemas verificáveis, para serem avaliados, para contribuírem para o
bom funcionamento didático, para tranquilizarem professores e pais.
3
7
Sarmento (2008).
4
professor, dentista, policial, juiz, comerciante, entre outras mais), e que ser
“fazedora de farinha” não era profissão nenhuma e que quem vem para a
escola tem que ter uma profissão de verdade. Ela assim se reportou às
crianças:
“Menina você tá brincando comigo? Eu mandei falar de profissão e não
ficar inventando coisa que não tem sentido. Onde já se viu falar que fazedora
de farinha é profissão?! Acho mesmo que você não entende o que eu ensino e
quer continuar sendo índia. Presta atenção que você não está na aldeia e que
mora na cidade e na cidade todo mundo tem que ter uma profissão”
(Professora Diva).
8
Mubarac Sobrinho (2009).
11
“Vocês duas aí, não sabem escrever nada, nem sei por que já estão na
segunda série. Esse monte de coisas que rabiscaram no papel não tem sentido
nenhum, eu expliquei que era para escrever o significado de cada figura e
esses ‘garranchos’ que escreveram não servem para nada”. (Professora,
Clara)
que escreveu na resposta, quando tem mais gente no ônibus paga-se mais. O
que representa uma maneira lógica de se descrever a questão. Porém, para a
professora, o correto era a representação do resultado em forma de números,
ou seja, o valor em reais que seriam gastos pelas pessoas.
Como para as crianças Sateré-Mawé o contato com dinheiro é
praticamente nenhum, ela não tinha noção de valor, mas conseguiu expressar
uma noção de quantidade perfeita, relacionando-a à brincadeira que vivencia
na comunidade e ainda confirmando a lógica de que quanto mais pessoas,
maior o tamanho das folhas e também a quantidade. Infelizmente, essa lógica
não é aceita pela escola e o resultado é o castigo, que para Larissa foi bem
vindo, pois ela voltou mais cedo para sua casa.
Desse modo, podemos perceber que a escola, enquanto “representante”
da sociedade urbana, mantém relações de justaposição ou de integração e
também de exclusão e de conflitos, ou, ainda, marcadas por indiferença ou
mesmo por castigos.
Neste caso, para Sacristán (2005, p. 14):
Conclusão:
sendo apenas diferenciadas por sua entrada no cenário histórico. Uma das
consequências desse equívoco ocorre quando essa concepção naturalizada de
cultura se encaixa com exatidão na representação do senso comum sobre os
índios, que é a de um indivíduo que vive na selva, utiliza técnicas rudimentares
e possui instituições mais primitivas, sendo ele pouco distanciado da natureza.
É, no entanto, essa representação que habita o imaginário das manifestações
artísticas, os estatutos legais, a política indigenista e mesmo os mecanismos
oficiais de proteção e assistência aos índios.
Neste sentido, o fato de muitas etnias virem morar nas cidades tem sido
equivocadamente compreendido como um indicador do desejo dos indígenas
de não conservação de sua condição étnica, deduzindo-se automaticamente a
renúncia à proteção já garantida pela legislação. Essa compreensão não leva
em conta toda uma série de processos históricos de opressão e discriminação
e gera espaço para novos tipos de preconceitos, ainda não devidamente
tratados pela legislação brasileira. Em geral, a tentativa dos indígenas da
cidade de fazer valer os seus direitos resulta em tipos diversos de preconceito
e discriminação, que consistem em desqualificar suas pretensões aos lhes
negar a condição de indígenas e, mesmo que haja esse reconhecimento, sem
traduzi-las em garantia dos direitos correspondentes e de práticas escolares
coerentes com seus processos próprios de aprendizagem.
Em se tratando mais especificamente da questão das fronteiras como
elementos capazes de aproximar tais culturas, o que se percebeu nas escolas
pesquisadas é a intensificação da diferença, da construção de mecanismos
pedagógicos que excluem totalmente a possibilidade de um diálogo
intercultural, onde os saberes das crianças Sateré-Mawé e os saberes da
escola possam ser legitimados como autênticos e capazes de produzirem
novos saberes, que rompam com a visão hegemônica e homogeneizadora e
abram espaço para uma escola de múltiplas possibilidades, contrapondo-se a
essa didática dos (des)encontros.
As reflexões de Forquin (1993, p. 173), em relação a essa escola,
levam-nos a pensar também no nosso papel enquanto agentes desse
processo.
16
Referências:
Roberto Sanches Mubarac Sobrinho RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão
acerca do trabalho de pesquisa etnográfica realizada em uma
Professor da Universidade do Estado do Amazonas. comunidade indígena na cidade de Manaus - Amazonas e em
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. duas escolas públicas que atendem um grupo de 12 crianças
da etnia Sateré-Mawé, residente na zona urbana da cidade. A
pesquisa foi realizada durante o ano de 2007 e teve no cotidiano
das crianças e na observação das práticas pedagógicas dos
professores seus elementos principais de análise. Como base
de fundamentação mais abrangente, procuramos trabalhar
com o conceito de Violência Simbólica (BOURDIEU, 2001),
entrecruzando-o e relacionando-o com as vozes que foram
“geradas” pelas crianças durante o processo de coleta de dados
da pesquisa de campo, tanto na comunidade indígena quanto
na escola, o que nos possibilitou um olhar mais vigilante
sobre esse grupo social de crianças e as práticas pedagógicas
destinadas a ele.
INTRODUÇÃO: urbana da cidade de Manaus-AM, e um processo de observação
durante dois meses, que se deu em duas escolas públicas das
O trabalho de pesquisa com crianças, seja na área da redes Estadual e Municipal de Educação. Esses pressupostos
Educação ou nas diversas áreas das Ciências Sociais, envolve constituem-se como pontos de proximidade com os princípios
dimensões e cuidados1 extremamente importantes que deverão da sociologia de Pierre Bourdieu (1998), quais sejam: a pesquisa
nortear o processo de planejamento, execução e avaliação empírica e a formulação epistemológica.
da ação do pesquisador/investigador. Neste texto, procurarei Durante o ano de 2007, dos meses de janeiro a novembro, foi
discutir de maneira introdutória tais preocupações, focalizando, realizado um processo de entrada no campo, primeiramente no
para tanto, como categoria chave das reflexões aqui propostas, contexto onde as crianças moram e, posteriormente, nas escolas
o conceito de Violência Simbólica, de Pierre Bourdieu (2001), onde estudavam, abrindo possibilidades de confrontamento
e as contribuições que esse autor pode trazer a esse processo de entre as práticas pedagógicas desenvolvidas e a realidade dos
pesquisa ainda cheio de lacunas e questões que demandam das seus contextos próprios. Isso nos possibilitou o desvelamento de
Ciências Humanas e Sociais um esforço de busca. uma série de questões que transitam entre o dito e o não-dito.2
Tomarei como base para os argumentos aqui esboçados, Essas incursões foram movidas pela possibilidade de conhecer
além das formulações do autor e de seus seguidores, a pesquisa a realidade das crianças Sateré-Mawé de forma mais aprofundada,
de cunho etnográfico que foi realizada durante o período de visando uma imersão nos seus universos infantis, o que contribuiu
oito meses, junto a 12 crianças da etnia Sateré-Mawé, na zona para o reconhecimento da infância enquanto produção cultural, pois
1 2
1
Teóricos, metodológicos e éticos. Aprofundamentos em Kramer (2002).
2
³2GLVFXUVRPDQLIHVWRQmRSDVVDULDD¿QDOGHFRQWDVGDSUHVHQoDUHSUHVVLYDGRTXHHOHGL]HHVVHQmRGLWRVHULDXPYD]LRPLQDGRGRLQWHULRUWXGRTXHVHGL]´)RXFDXOW
(2007, p. 28).
Os discursos, os ritos e as doutrinas constituem não apenas modali- Foi a partir dessa “teia de relações” 5 que surgiram nossas
GDGHVVLPEyOLFDVGHWUDQV¿JXUDomRGDUHDOLGDGHVRFLDOPDVVREUH- questões centrais de análises e que desvelaram, em muitos
WXGR RUGHQDP FODVVL¿FDP VLVWHPDWL]DP H UHSUHVHQWDP R PXQGR sentidos, a força que a Violência Simbólica tem na formação
natural e social em bases objetivas e nem por isso menos arbitrárias. das crianças e o imponente papel massificador das relações
sociais de poder que a mesma vai imprimir no processo de (des)
Efetivamente, a tentativa de compreensão das implicações socialização da infância desse grupo.6
e efeitos da Violência Simbólica na cultura e na linguagem das Porém, antes de entrarmos no escopo da pesquisa e tentarmos
crianças Sateré-Mawé deve considerá-los como mecanismos trazer, a partir das vozes das crianças, essa violência tão
formais e informais cujas capacidades geradoras são ilimitadas. presente, e ao mesmo tempo ausente – pela supressão das falas
Parafraseando Bourdieu (2001), passamos a evidenciar que o –, buscaremos fundamentar alguns conceitos que iluminaram
uso que se faz da língua depende diretamente da distribuição do nossas análises, assumindo o risco de não dar conta de tal tarefa,
capital cultural e, por conseguinte, do acesso à aquisição desse uma vez que o vasto referencial produzido por Bourdieu não
capital e da própria fração de classes. se aplica de forma tão sucinta. Mas queremos, pelo menos,
Neste sentido, as análises de Bourdieu nos ajudaram a categorizar algumas de suas reflexões que aqui faremos nossas e
pensar essa relação arbitrária estabelecida pela escola quanto à que servirão de base teórico-metodológica para nossas análises.
3 4 5 6
3
)RUDPIHLWDVLQ~PHUDVDWLYLGDGHVFRPDVFULDQoDVHWLUDGDXPDJUDQGHTXDQWLGDGHGHIRWRJUD¿DVHPVXDVDWLYLGDGHVFRUULTXHLUDV
4
Como as falas das crianças são o grande referencial de aproximação com a realidade, utilizaremos essa expressão entre aspas por entendermos que o nosso objeto de
pesquisa na verdade é um sujeito social.
5
³FDPSRGHOXWDVFRPRVLVWHPDGHUHODo}HVREMHWLYDVQRTXDODVSRVLo}HVHDVWRPDGDVGHSRVLomRVHGH¿QHPUHODFLRQDOPHQWHpTXHGRPLQDDLQGDDVOXWDVTXHYLVDPD
transformá-lo” (BOURDIEU, 1999, p. 175).
6
Mubarac Sobrinho (2008).
Uberlândia, Ano XI, n.11, p. 11-23, 2010 ~ Olhares & TrilhaS 13
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR: tenham incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes
PARA INICIARMOS A DISCUSSÃO os apreendem;; que a submissão não seja um ato de consciência
susceptível de ser compreendido na lógica do constrangimento ou
O tema da violência é bastante recorrente na literatura, na lógica do consentimento.
tendo por muito tempo tido nas ciências da saúde, e mais
especificamente na psicologia, seus marcos balizadores. Porém, Logo, a educação escolar deve estar no centro dessa
o conceito de Violência Simbólica, que utilizaremos nesta discussão.8 Teoricamente, por meio da educação, o indivíduo
análise, foi elaborado por Bourdieu para descrever o processo poderia tornar-se capaz de distinguir quando está sendo vítima
pelo qual a classe que domina econômica e socialmente se da Violência Simbólica e constituir-se como um agente social
impõe e reproduz seus mecanismos de ação, percepção e que vai agir contra a sua legitimação. Devido à desigualdade da
julgamento frente aos dominados. O autor parte do princípio realidade presente, entre outros fatores, os pais na comunidade
de que a cultura é arbitrária, uma vez que não se assenta numa Sateré-Mawé são influenciados por determinismos da sociedade
única realidade, que, por sua vez, é também arbitrária. Assim, o urbana,9 a acreditarem que a escola representa a melhor
sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção possibilidade de suas crianças conquistarem mais espaço na
social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de sociedade dos “brancos”.
uma determinada sociedade, através da interiorização da cultura É neste sentido que, para Forquin (1993, p. 166):
por todos os membros da mesma. O que Bourdieu (1998) vai
denominar de “Arbitrário Cultural”. a razão pedagógica é essencialmente normativa e prescritiva, sua
A Violência Simbólica se expressa na imposição legítima tentação natural é o universalismo, compreendido aí no que isto
e dissimulada, com a interiorização da cultura dominante, pode comportar por vezes de segurança de si etnocêntrica, sua pos-
reproduzindo as diversas relações do mundo. O dominado não tulação normal é uma certa espécie de idealismo prático.
se opõe ao seu dominador, já que não se percebe como vítima
desse processo, ao contrário, o oprimido7 considera sua situação Este fator tem reduzido significativamente a idade
natural e inevitável. Os moldes dessa violência se caracterizam para as crianças ingressarem na escola, situação que foi
não só na ação mental, mas também agem fortemente na relação evidenciada na pesquisa pela presença de 3 crianças Sateré-
corporal determinada pela escola. Mawé entre 4 e 5 anos, que já estão frequentando as escolas
Assim, para Bourdie u (2007, p. 231): de educação infantil. E que, precocemente, entram em
contato com todo um arsenal ideológico e cultural que,
A violência simbólica como constrangimento pelo corpo. Para que à distância da sua condição étnica, confere a elas uma
a dominação simbólica funcione é necessário que os dominados condição de inferioridade.
789
7
Freire (2007) trabalha muito bem esta questão em suas obras, tendo sido ele um dos primeiros a desenvolver a discussão acerca da “pedagogia dos oprimidos”.
8
Forquin (1993).
9
Como, por exemplo, que a escola é o único meio de melhoria da vida e que garante a ascensão social. Esse discurso extremamente presente no cotidiano da sociedade
urbana tem marcado fortemente a busca desse grupo indígena pela escola.
10
No sentido crítico da expressão, distinguindo-se do indivíduo, que é aquele vem ao mundo sem saber dos seus direitos, ou seja, sem estar no mundo.
11
Fala constantemente presente nos discursos dos professores da escola (lócus da pesquisa)
Uberlândia, Ano XI, n.11, p. 11-23, 2010 ~ Olhares & TrilhaS 15
da Tucandeira,12 do qual apenas os curumins (meninos) podem A infância, para as crianças Sateré-Mawé, é um grande
participar, vai ser o balizador do fim da infância e começo da universo de aprendizagens, de liberdade, de escolhas e, sobretudo,
preparação para exercerem papéis sociais que somente os adultos de possibilidades de viver as mais diversas expressões do seu
podem exercer. Segundo Cohn (2005, p. 09), “não podemos cotidiano. Os pais falam das crianças com um respeito que nos
falar de crianças de um povo indígena, sem entender como esse faz desejar aprender a lidar com o mundo infantil da maneira
povo pensa, o que é ser criança e sem entender o lugar que elas deles. Elas são, como nos disseram na comunidade indígena,
ocupam naquela sociedade”. “artesãs do futuro”,14 que irão garantir a existência do seu povo.
As falas a seguir, fazem parte dos depoimentos orais que Nas palavras do cacique15 “uma criança é o nosso maior tesouro,
foram “gerados” durante a pesquisa de campo, e ilustram a cada parente que nasce aqui pra nós é sinal que Tupaná está nos
percepção das crianças sobre suas infâncias: dando mais vida e alegria, por isso fazemos muita festa para
festejar quando uma das nossas mulheres tem criança”.
– Ser criança é muito bom, nós podemos correr, brincar, Logo, para Silva (2002, p. 44):
fazer um monte de coisas... (Raq uel, 09 anos).
Há sempre novos conhecimentos à espera de ser[em] descobertos e
– Eu gosto de ser criança, de ser menino, mas quando eu incorporados à experiência de vida de cada um. O aprendizado parece
puser as mãos na luva das tucandeiras já vou ser homem ser pensado, assim, como algo para toda a vida: a cada etapa vencida,
(Gabriel, 7 anos). novos patamares de conhecimentos e de experiências apresentam-se.
– Não sei por que as meninas que moram aqui perto da nossa Apesar do estado de pobreza pelo qual passa a comunidade,
casa, aquelas que não são índias, fazem um monte de coisas os pais oferecem o que podem a suas crianças, tudo que existe
que nós não fazemos... acho que as mães delas que mandam é dividido com elas e entre elas, não importa o que seja, mas
(Taíza, 12 anos). é fundamental que possam se alimentar. Vivenciamos algumas
situações em que só havia farinha de mandioca para comer. As
– É bom ser criança por que a gente não tem que ter filho, só mães misturavam com água e faziam o Chibé 16 para que as
de brincadeira (Talice, 9 anos).13 crianças não passassem fome. Primeiro, as crianças comiam e,
quando sobrava alimento, os adultos dividiam entre eles.
12 13 14 15 16
12
WAUMAT, o ritual da tocandira, pode ser divido em três partes: a preparação;; o ritual propriamente dito;; a reintegração num novo status. “Durante o ritual propriamente dito, os
MRYHQVLQWURGX]HPDPmRQXPDOXYDGH¿EUDVRQGHVmRLQVHULGDVDVIRUPLJDVWRFDQGLUDVparaponera clavata sp), com o ferrão voltado para o interior. Esta ação é acompanhada
por uma série de cantos, ao ritmo do chocalho, e uma dança da qual participam várias pessoas do grupo” (ALVARES, 2005, p. 05).
13
1RGHFRUUHUGRWH[WRXWLOL]DUHPRVYiULDVSDVVDJHQVGDVIDODV³JHUDGDV´SHODVFULDQoDVGXUDQWHDSHVTXLVDHWQRJUi¿FD
14
O uso do termo se explica pela confecção do artesanato, que é a principal fonte de sobrevivência do grupo, assim: um artesão do futuro é um adulto promissor.
15
A comunidade é liderada pelo cacique Manoel Luiz, cuja participação foi fundamental para a realização da pesquisa. Esta é uma das passagens de sua fala extraída na
pesquisa de campo.
16
Comida feita em uma cuia, onde se mistura água com farinha d’água (Ui) ou farinha de mandioca (Mani) grossa, para servir de alimento. (PEREIRA, 2003).
– Quando estou na escola parece que as pessoas olham a – Eu tenho na minha sala duas crianças Sateré-Mawé, elas até sabem
gente como alguma coisa ruim, muitas crianças não chegam ler um pouco mas são muito preguiçosas (Professora Fátima).
perto de mim (Mateus, 07 anos).
– O meu aluno tem até a letra boa, mas quando tá com
– Eu ouvi a secretária falar que os índios não deveriam estar preguiça, meu Deus do céu, não faz nada, mas nada mesmo,
nessa escola aqui e sim no meio da mata. Mas eu gosto de acho que isso é coisa deles mesmos, esses índios devem ser
morar aqui na cidade (Talice, 09 anos). todos assim (Professora Rosa)
– Uma vez eu fui contar que tinha cobra lá perto de casa e – E las n ão s abem n ada, e u a cho q ue c onfundem a n ossa e scrita
a professora disse que eu era mentirosa e os outros alunos com a língua delas e isso piorou desde que começaram a ter
riram de mim (Raquel, 09 anos). essas aulas na comunidade, acho mesmo é que elas deveriam
é ficar por lá (Professora Iris). 18
As crianças demonstram não estarem satisfeitas com a
forma de serem tratadas nas escolas, mas poucos expressam As crianças na comunidade possuem uma capacidade de
essa situação para os pais e, muito menos, para os professores. criação e recriação (Corsaro, 2002) das diversas situações do
Nas conversas que estabeleceram conosco, dada a intensidade cotidiano, inclusive ressignificando costumes que somente os
de convívio que já havíamos construído durante os oito meses adultos podem realizar, mas que elas os fazem simbolicamente.
de estada na comunidade, elas nos revelaram uma série de Ao chegarem às escolas, essas riquíssimas experiências culturais
17 18
17
2VQRPHVXWLOL]DGRVVmR¿FWtFLRVSRLVDVSURIHVVRUDVQmRDXWRUL]DUDPDXWLOL]DomRGHVHXVQRPHVUHDLV
18
Falas coletadas junto às professoras das escolas durante a pesquisa de campo.
Uberlândia, Ano XI, n.11, p. 11-23, 2010 ~ Olhares & TrilhaS 17
são desconsideradas, pois como não se enquadram nos conteúdos “majoritárias em todos os grupos sociais, sendo impossível
“legítimos”, não representam uma possibilidade de serem classificar culturas de grupos ou de classes que compõem a
abordadas ou utilizadas como elementos contextualizadores de formação social” (LAHIRE, 2006, p. 154). Conforme aponta
aprendizagens que possam se tornar mais significativas para elas Elias (1994) não há nada de mais comum e frequente, na
e ampliar a possibilidade de as outras crianças conhecerem a sociedade contemporânea, que a singularização dos indivíduos.
cultura desse povo indígena. Com as crianças Sateré-Mawé este distanciamento tem ocorrido
Nas vivências acompanhadas nas escolas, principalmente continuamente nas escolas pesquisadas.
relacionadas à forma das crianças estarem presentes na orga- Infelizmente, o contexto das escolas e da comunidade pro-
nização do espaço da sala de aula, fica evidenciado o distancia- duz ritmos e ritos diferentes para as crianças Sateré-Mawé, dife-
mento das mesmas, tanto dos professores quanto das outras cri- rentes no sentido da exclusão e do distanciamento das demais
anças, como apresentado na observação de campo que se segue: crianças na escola, pois na comunidade esse sentido ganha um
Chegamos a uma sala de aula e a professora estava aspecto de coletividade, de união, de estar juntas. Na verdade,
organizando a turma para realizar um trabalho de escrita. Ela a escola produz tempos e espaços e não tempos-espaços (GID-
foi direcionando as crianças e criando posições para cada uma DENS, 1991), pois fragmenta sua ação e reproduz o modelo de
delas. Larissa (11 anos), a única criança indígena que estudava na sociedade em que os indivíduos são moldados a ficarem fixos
turma, foi posta bem num canto, no fundo da sala. A professora aos lugares que irão desempenhar determinados papéis sociais,
fazia as perguntas para os alunos que iam respondendo da forma para os quais as crianças indígenas não têm espaço e, portanto,
como haviam aprendido, mas em momento algum se reportou devem ser deixadas de lado.
à menina Sateré-Mawé. Sua atitude era como se a mesma não Outra situação, que representou bem esses processos
estivesse presente na sala de aula. Foi quando resolvemos excludentes produzidos pelas escolas, foi vivenciada durante
perguntar à Larissa sobre essa situação. Ela assim nos relatou: a realização de um trabalho desenvolvido pela professora da
quarta série do ensino fundamental e que procurou identificar,
– Eu sempre sento no fundo da sala, a professora me colocou no contexto da sociedade de consumo, a questão das profissões.
aqui desde que descobriu que eu era indígena, acho que ela A professora levou para a sala de aula um cartaz contendo
não gosta de mim, por que não fala quase nada comigo. Mas uma série de profissões que devem ser exercidas na sociedade
eu também não falo com ela, mas gosto dela sim (respondeu e a importância de cada uma delas. Depois, pediu que cada
meio amedrontada). Lá na comunidade eu sento junto com criança falasse o que gostaria de “ser quando crescer”, ou seja,
as outras crianças pra brincarmos, pra fazermos um monte qual profissão gostaria de exercer. As crianças foram fazendo
GHFRLVDVQmRJRVWRGH¿FDUDTXLQRFDQWRVR]LQKDSUH¿UR suas exposições.
quando estou com as crianças de lá da comunidade. (Larissa, Quando Taíza (12 anos), em forma de uma história, começou
11 anos). a falar sobre o que gostaria de ser quando crescer, a professora
imediatamente interrompeu a criança e disse que sua história
Estas configurações individuais e excludentes são não tinha nada a ver com o conteúdo que estavam estudando,
estabelecidas pelos modos de recepção e tornam-se hoje pois aquilo que ela relatara era completamente insignificante
19
“O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de inter-
conhecimento e interrelacionamento...” (BOURDIEU, 1998, p. 67).
20
“O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa...” está ligado à ação escolar. (BOURDIEU,
1998, p. 74-75).
21
Mubarac Sobrinho (2009).
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Tais perspectivas analíticas, que foram construídas e (ou do Habitus);; ou, em outros termos, ao sistema de separações
constituídas neste caminho de configuração de saberes, GLIHUHQFLDLV TXH GH¿QHP DV GLIHUHQWHV SRVLo}HV >@ GR HVSDoR
possibilitaram, na verdade, um processo de reflexão social corresponde um sistema de separações diferenciais nas
compartilhada e sedimentada nos princípios apreendidos com as propriedades dos agentes [...], isto é, em suas práticas e nos bens
crianças, quais sejam: a solidariedade, o respeito e a vontade que possuem.
de fazer as coisas do seu jeito, o que nos leva a crer que as
palavras de Cohn (2005, p. 33) são extremamente pertinentes “a Assim, como nos aponta Bourdieu (2003), reforçamos
diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas nosso entendimento de que as coisas são, e ao mesmo tempo
qualitativa;; a criança não sabe menos, sabe outras coisas”, sabe não são, da forma como aparecem a nós. Essa possibilidade
de outro jeito e nós devemos aprender com elas a aprender essa rigorosa de análise e percepção da sociedade e da educação,
possibilidade de re-criar o mundo. proposta por Bourdieu, é um dos pontos fundamentais para
Perceber o cotidiano das crianças Sateré-Mawé – por meio continuarmos acreditando na transformação social. Por isso,
da pesquisa realizada – como engendrador de práticas sociais ainda que introdutoriamente – como relatado neste texto e
e culturais reais, permite o desvelamento das estratégias de vivenciado em nossa experiência –, as práticas educativas com
“conversão e reconversão” das estruturas sociais de dominação, as crianças indígenas devem compor o cotidiano das instituições
através da ação escolar, que, integrada a uma visão crítica da de ensino com mais frequência, o que tende a contribuir para a
realidade, pode contribuir para a construção de um projeto construção de novas estratégias de enfrentamento a esse modelo
de escola que se proponha a lutar pela consolidação de uma de sociedade que uniformiza as crianças e, consequentemente,
sociedade democrática pautada na diversidade. todos os seus membros.
É nessa possibilidade de transgressão que se sustenta nossa Nessa perspectiva, apoiamo-nos nas palavras de Bourdieu
análise acerca do trabalho de pesquisa na formação docente e (1999, p. 183) para reforçar essa importância:
nas representações da infância, pois entender que as crianças
indígenas possuem uma conjuntura social diferenciada não deve Tudo leva a crer que um brusco desligamento das oportunidades
reduzi-las à condição de expropriadas sob a forma de “Habitus”, objetivas com relação as esperanças subjetivas sugeridas pelo
muito pelo contrário, contribui para a afirmação da possibilidade estado anterior das oportunidades objetivas é de natureza a
de sedimentação de um outro lócus com elas e para elas, pois determinar uma ruptura na adesão que as classes dominadas –
para Bourdieu (2001, p. 21): subitamente excluídas da corrida, de forma objetiva e subjetiva –
atribuem aos objetivos dominantes, até ao tacitamente aceitos, e,
O espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de por conseguinte, tomar possíveis a invenção ou a imposição dos
tomada de posições pela intermediação do espaço de disposições objetivos de uma verdadeira ação coletiva.
22
22
“Em seu livro The Little Prince (Principezinho) (1945), Antoine Saint-Exupery escreve que os adultos não podem por si próprios compreender o mundo do ponto de
vista da criança e, consequentemente, necessitam que as crianças o expliquem. Este é um conselho sábio para investigadores da infância. Somente ao ouvir e escutar
o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam conosco é que se fará progresso nas pesquisas que se levam a cabo com crianças, mais do que,
simplesmente, sobre as crianças” (CHRISTENSEN & JAMES, 2005, p. XIX).
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Uberlândia, Ano XI, n.11, p. 11-23, 2010 ~ Olhares & TrilhaS 23
METODOLOGIAS DE PESQUISAS COM CRIANÇAS: OUTROS MAPAS,
NOVOS TERRITÓRIOS PARA A INFÂNCIA1.
Resumo: O objetivo deste texto é fazer uma reflexão acerca dos outros mapas e dos
novos territórios que estão se sedimentando em relação às crianças e suas infâncias e
evidenciar a necessidade de serem consolidados espaços em que elas sejam
protagonistas nas transformações das formas de entendimento da realidade. Isto implica
numa efetiva participação e se torna lócus privilegiado para a construção das suas
culturas infantis, o que, sem sombra de dúvidas, requer a emergência de um campo
metodológico que possa abrir caminhos para que o testemunho das crianças seja
reconhecido como fonte de verdade e suas vozes sejam ouvidas e escutadas para a
redefinição de uma sociedade com elas e para elas.
Introdução:
1
Apresentado no Colóquio Caminhos de Futuro: Novos Mapas para as Ciências Sociais e Humanas,
na cidade de Coimbra, Junho de 2008 e publicado no E-Cadernos CES, Coimbra, 2009.
2
Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Amazonas e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, com aprofundamento de
estudos em Sociologia da Infância no Instituto de Estudos da Criança-IEC, Universidade do Minho,
Braga-Portugal.
3
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) aborda a problemática do limite
de idade de forma mais abrangente. Em contrapartida, são mais rigorosos em questões relativas aos danos
causados pelo trabalho infantil. A convenção n.º 182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil
produziu a recomendação 190, que foi adotada em 1999, determinando que todos os membros que a
ratificaram teriam o compromisso “de linear medidas efetivas e imediatas para assegurar a proibição e
eliminação das piores formas de trabalho infantil em caráter de urgência” (MYERS, 2001: 51).
2
O que falta, e não vale a pena termos ilusão, são modelos de pensamento e
uma visão global através dos quais consigamos, enquanto pensamos,
entender o que na realidade diariamente vemos, através dos quais possamos
entender como é que os muitos seres humanos em conjunto formam algo
que é mais diferente, do que simpesmente muitos seres humanos em
conjunto, perceber como formam uma sociedade e como é que será possível
que esta sociedade se possa transformar de forma a ter uma história...
Então como superar essa dicotomia que se apresenta tão fortemente cravada no
campo intelectual e conseguir de fato reviver as “utopias clássicas” tornando-as “utopias
realizáveis”(GIDDENS,1992) e que possibilitem a geração de alternativas de mudanças
que acompanhem de fato um projeto de sociedade mais democrática e menos
excludente? Como ficam, nesta conturbada situação, as crianças e os espaços sociais,
educacionais e de pesquisa destinados a elas?
4
“Retira-se definitivamente do professor o conhecimento, acaba-se com a dicotomia existente entre teoria
e prática, eliminando a teoria no momento em que esta se reduz a meras informações; o professor passa a
ser o balconista da pedagogia fast food, que serve uma informação limpa, eficiente e com qualidade, na
medida em que, com seu exemplo, desenvolve no aluno (cliente) o gosto por captar informações
utilitárias e pragmáticas.” (ARCE, 2001, p. 262)
5
Graue e Walsh, (2003).
3
É diante destas questões que o texto se propõe a fazer uma reflexão acerca dos
novos territórios que estão se sedimentando em relação à criança e suas infâncias e
evidenciar a necessidade de serem consolidados espaços em que elas sejam
protagonistas6 na construção de culturas infantis e não na infantilização das culturas, o
que, sem sombra de dúvidas, requer a emergência de um campo metodológico que
possa abrir caminhos para que o testemunho infantil seja reconhecido como fonte de
verdade e as vozes das crianças sejam ouvidas e escutadas para a consolidação de uma
sociedade com elas e para elas7. Esse reconhecimento não é novo, pois as discussões
acerca dessas questões já estão ocorrendo há pelo menos 30 anos8, porém a efetivação
de fato da condição das crianças enquanto protagonistas, sujeitos, atores sociais ainda é
motivo de muita discussão e é a ela que nos propomos.
As crianças desde o limiar das sociedades foram “objetos” nas mãos dos adultos
que impuseram padrões e concepções de vida a elas a partir da delimitação de
modelos que abarcaram desde a forma de se vestir até o jeito como as crianças
tinham que se comportar diante da sociedade adulta. A visão “adultocêntrica”
prevaleceu hegemônica até bem pouco tempo e como um fantasma, ainda atormenta
a possibilidade de dar visibilidade ao mundo infantil a partir da visão das próprias
crianças.
6
Tomás e Soares (2004)
7
“Em seu livro The Little Prince (Principezinho) (1945), Antoine Saint-Exupery escreve que os adultos
não podem por si próprios compreender o mundo do ponto de vista da criança e, conseqüentemente,
necessitam que as crianças o expliquem. Este é um conselho sábio para investigadores da infância.
Somente ao ouvir e escutar o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam
connosco é que se fará progresso nas pesquisas que se levam a cabo com crianças, mais do que,
simplesmente, sobre as crianças” (CHRISTENSEN ; JAMES, 2005, p. XIX).
8
Qvortrup (1999).
4
imperfeição. Estes seres sociais ‘em trânsito’ para a vida adulta foram, deste
modo, analisados prioritariamente como objecto do cuidado dos adultos. A
precocidade do estudo das crianças pela medicina, pela psicologia e pela
pedagogia encontra aqui as suas razões de ser: as crianças eram
consideradas, antes de mais, como o destinatário do trabalho dos adultos e o
seu estudo só era considerado enquanto alvo do tratamento, da orientação ou
da acção pedagógica dos mais velhos (cf. Rocha e Ferreira, 1994) e (Rollet e
Morel, 2000). Esta imagem dominante da infância remete as crianças para
um estatuto pré-social: as crianças são ‘invisíveis’ porque não são
consideradas como seres sociais de pleno direito. Não existem porque não
estão lá: no discurso social. (SARMENTO, 2006, pp. 62-63)
Estudar as crianças – para que? Eis a nossa resposta: Para descobrir mais.
Descobrir sempre mais, porque, se o não fizermos, alguém acabará por
inventar. De facto, provavelmente já alguém começou a inventar, e o que é
inventado afecta a vida das crianças; afecta o modo como as crianças são
vistas e as decisões que se tomam a seu respeito. O que é descoberto desafia
as imagens dominantes. O que é inventado perpetua-as. (Idem, p. 12)
Assim a construção de uma visão da criança enquanto ser de direitos, protagonista das
suas ações e construtora de lógicas próprias de ação e criação ganha cada vez mais espaço entre
as pesquisas nas áreas das Ciências Sociais e Humanas em especial na Sociologia da Infância,
na Antropologia da Criança e, conseqüentemente no campo das Ciências da Educação. Sob o
foco desta argumentação, partimos do pressuposto de que a criança é um sujeito
histórico, e por isso, enveredamos nossos olhares ao reconhecimento desta condição
social de sujeito. Essa possibilidade, para Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 15), apesar
das questões balizadas pelo trabalho do historiador francês Philippe Áries: Historia
Social da Criança e da Família (1962:1981), das propostas surgidas na década de 1970 e
do crescimento dos debates na década de 1980, a sedimentação de fato deste espaço
ganha relevância somente a partir de 1994, influenciada pelo movimento europeu da
Antropologia, em especial da Etnografia, que “... inaugura em definitivo um espaço de
investigação científica, legitimando-o como de vital importância para as crianças e para
a reflexão atual que se faz no seio das ciências sociais e da educação”.
Fundamentados nos estudos da antropóloga Allison James e do sociólogo Alan
Prout, de 1990, explicitaremos a seguir, seis princípios9, destacados pelos autores, que
têm sido utilizados para orientar a consolidação de um novo paradigma para o estudo da
infância e que muito contribuíram, tanto teórico quanto metodologicamente, para os
novos estudos da infância:
9
Extraídos do texto de Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 18).
6
De acordo com Bourdieu (2007), romper com o senso comum é uma das mais
difíceis tarefas da prática científica. No entanto, restituir complexidade a objetos de
aparente fácil reconhecimento e definição social como o caso da infância/criança é, na
recomendação deste autor, um exercício necessário de fuga à “passividade empirista”,
10
que faz do pesquisador presa de seu próprio objeto de estudo. Esta “advertência
metodológica” faz ainda mais sentido quando se trata de enfocar problemas de forte
10
Cabe lembrar que, mesmo a “passividade empirista” não é assim tão “passiva”, pois o pesquisador que
aceita tacitamente um conceito pré-construído está ativamente reforçando o seu sentido comum.
Assim, o que é, em verdade, uma escolha conservadora traveste-se de uma não-escolha.
7
apelo social, moral, emocional, além de político como é o caso da infância. Esta é hoje
considerada um caro valor à civilização. 11
11
Marchi, (2007).
12
Infâncias possíveis, mundos reais (2008)
8
uma voz própria, que deverá ser seriamente tida em conta, envolvendo-a num diálogo
democrático e na tomada de decisão”.Tal opção é reforçada pela posição de Silva,
Barbosa e Kramer (2005, p. 52). Segundo essas autoras:
[...] relações e interacções sociais entre adulto e crianças e entre estas ultimas,
onde poderes, racionalidades e subjectividades, aferindo-se em permanência,
(re)constroem reflexivamente sentidos partilhados do que «ali se está a fazer»,
assim é preciso entrar cuidadosamente no terreno (FERREIRA, 2002, p. 150).
Assim é preciso que seja feito um planejamento das ações que serão desenvolvidas
no processo de investigação, porém, com o caráter de extrema flexibilidade, pois o
contexto será o elemento marcante para que questões postas possam ser re-planejadas
mediante a necessidade de alguma situação nova que possa ocorrer durante o processo da
pesquisa. Kramer (2002), nos elenca algumas questões fundamentais nesse processo de
pesquisa:
ü Deixar fluir sempre o discurso das crianças, explicitando as condições de
produção dos mesmos;
ü Buscar rever como as crianças conhecem o contexto em que estão inseridas;
ü Mostrar as contradições e a diversidade presentes entre as crianças e suas
relações com o trabalho, a brincadeira, o ser menino, menina, criança ou
adulto.
ü Criar condições para que as crianças possam se reconhecer no texto que é
escrito sobre elas e suas historias;
13
A utilização deste termo é uma apropriação da obra de Graue & Walsh (2003). Os autores preferem o
termo geração de dados a recolha de dados, pois segundo eles, “Os dados não estão ai a nossa espera,
quais maçãs nas arvores prontas a serem colhidas. A aquisição de dados é um processo muito activo,
criativo e de improvisação” (p.115).
9
Ainda de acordo com a autora, uma questão fundamental que merece muito debate
por parte dos investigadores da infância, refere-se às questões éticas com o uso dos
nomes, fotos ou relatos das crianças. Sendo as mesmas “dependentes” – sob a ótica das
legislações – dos adultos, questiona:
Conclusão:
Não temos dúvidas que estas e outras questões ainda deverão passar por muitos
debates para chegarmos a uma melhor maneira de resolver esses impasses e
principalmente garantir em nossas pesquisas a presença protagonizada das crianças. Que
os nossos textos possam ser construídos por várias mãos, vários rostos e vários nomes.
Que não tenhamos a inescrupulosa vaidade de assumirmos sozinhos a autoria de um
trabalho coletivo. Que possamos dividir com as crianças os resultados alcançados e os
desafios enfrentados se quisermos, de fato, consolidarmos uma perspectiva de
participação ativa.
14
Sarmento (2002)
10
Diante de tantas questões e inúmeras dúvidas, algumas certezas nos são muito
presentes. Não conseguiremos efetivar esse caminho de forma fácil e imediata, mas
certamente com a união de esforços e a combinação da vontade política de construir
novos territórios para as infâncias, as peças desse mosaico, as vezes obscurecidas, irão
sendo montadas o que, confiantemente, poderá nos fornecer subsídios para que possamos
lutar por uma sociedade mais justa onde as crianças sejam cidadãos de direitos plenos e
autenticas participantes das decisões políticas e públicas de nossa sociedade. Talvez essa
seja a grande “utopia realizável” que representa o nosso maior desafio. Inspiremo-nos em
Bertolt Brecht, em seu “Elogio da Dialética”15 e reafirmemos nossas forças para continuar
a luta.
Referências:
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dez passos para se tornar um professor reflexivo. Campinas-SP. Educação e Sociedade,
ano XXII, n. 74, abril/2001.
15
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11
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revista do Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina.
vol. 23, jan/julho, Florianópolis, 2005.
No entanto, o paradoxo maior da expressão “ouvir a voz das crianças” reside não
apenas no facto de que ouvir não significa necessariamente escutar, mas no facto
que essa “voz” se exprime frequentemente no silêncio, encontra canais e meios de
comunicação que se colocam fora da expressão verbal, sendo aliás, frequentemente
infrutíferos os esforços por configurar no interior das palavras infantis aquilo que é
∗
Professor de Sociologia da Infância no Instituto de Estudos da Criança e investigador do LIBEC,
Universidade do Minho, Braga, Portugal. Contacto: Sarmento@iec.uminho.pt
1
o sentido das vontades e das ideias das crianças. Mas essas ideias e vontades
fazem-se “ouvir” nas múltiplas outras linguagens com que as crianças comunicam.
Ouvir a voz é, assim, mais do que a expressão literal de um acto de auscultação
verbal (que, aliás, não deixa também de ser) uma metonímia que remete para um
sentido mais geral de comunicação dialógica com as crianças, colhendo as suas
diversificadas formas de expressão.
O desenho das crianças necessita por isso de ser analisado num triplo
enquadramento, articulando as várias dimensões de análise: primeiro, como um
acto realizado por um sujeito concreto, para o qual são mobilizados saber, vontade,
capacidade físico-motora, destreza técnica, emoções e afectos que identificam o
sujeito como realidade singular e como produtor cultural único; segundo, no quadro
da cultura de inserção que autoriza ou inibe a expressão gráfica da criança, que a
exalta ou a recalca, que a instrui, a proíbe ou a liberta, e que o faz através do
sistema específico de crenças, das representações e imagens sociais sobre a
infância e das instituições que possui; terceiro, como uma expressão geracional
específica, distinta da expressão plástica dos adultos, veiculadora de formas e
conteúdos expressivos e representacionais que necessitam de ser lidos de acordo
com uma gramática interpretativa das culturas da infância (Sarmento, 2004). A
este propósito, alguns autores recusam mesmo a expressão “arte infantil”,
2
considerando precisamente essa diferença de estatuto da expressão plástica das
crianças face à pintura (ou escultura) adulta, não porque lhe falte dimensão
estética, mas porque decorre de uma intencionalidade e de um sentido intrínseco
distinto (cf. Matthews, 2003).
A conjugação das três dimensões de análise dos desenhos infantis tem tudo a
ganhar se puder ser feita de modo a fazer reverberar o conhecimento adquirido em
cada um deles sobre os restantes, isto é, se articular as dimensões subjectivas,
sócio-culturais e geracionais no seu escopo. A evocação da interdisciplinaridade,
constituída em torno de objectos que a exigem como condição da sua compreensão
totalizadora, faz, a este propósito, todo o sentido.
1
A par da Psicologia do Desenvolvimento, a Psicanálise constitui a mais fecunda tradição dos estudos do
desenho infantil. Com efeito, a utilização do desenho como indicador de comportamentos e revelador de
conflitos emocionais remonta a Freud e tem uma significativa expressão na abordagem psicanalítica da
infância. A tradição psicanalítica do desenho infantil, nas suas várias abordagens, encontra expressão
nos principais psicanalistas que escreveram sobre crianças, nomeadamente Anne Freud, Melanie Klein,
Winnicott e Françoise Dolto, entre outros. Para além da intenção analítica há uma preocupação clínica
com importantes contributos na detecção e tratamento de distúrbios psico-afectivos e maus-tratos físico
e psiquícos. Para uma revisão da utilização do desenho na terapia, cf Malchioli, 1998. Para uma
abordagem sociológica dos saberes psicológicos e psicanalíticos sobre a infância, cf. Neyrand, 2000.
3
A afirmação do desenho da criança como um acto intencional remonta a Wallon,
para quem o desenho só é definível a partir do momento em que o traço se torna o
destino do gesto da criança (Wallon, 1979[1941). No entanto, para o autor, o
estudo do desenho, bem como do jogo ou das actividades infantis em geral, está
associado a um programa investigativo que proclama expressamente que “o estudo
da criança é essencialmente o estudo das fases que vão fazer dela um adulto”
(idem: 30). A imensa maioria das produções teóricas e interpretativas dos
desenhos das crianças incorpora esta visão que gradualiza em fases distintas de
desenvolvimento, progredindo em direcção à condição adulta, a actividade gráfica
infantil. Os campos disciplinares em que essa literatura se ancora são
essencialmente a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicanálise, a Psicoterapia e a
Pedagogia. São escassas as produções críticas de uma concepção gradualista do
desenho infantil bem como aquelas que se centram expressamente naquilo que o
desenho da criança significa a partir do seu próprio campo, isto é, objectos
artísticos susceptíveis de uma leitura a partir da expressividade das linhas, dos
traços, das formas e das cores que neles se inscrevem.
4
forma progressivamente agregada, assumindo proporções. As figuras convencionais
da casa e do sol e a representação proporcional e agregada do corpo humano são
usualmente realizadas pela maioria das crianças aos cinco-seis anos. É a “idade de
ouro” do desenho da criança (Gardner, 1980; Greig, 2004), que se vai desenvolver
até à adolescência, com refinamento progressivo na composição, na representação
dos volumes e organização do espaço, na pormenorização do desenho e na
individualização das formas.
Uma tipologia das fases do desenho infantil que incorpora uma revisão dos
trabalhos mais influentes na área2, é proposta pela investigadora em arte-terapia
C. Malchiodi (1998: 68-98). A autora assinala 6 estádios:
2
Os autores mais convocados para esta síntese são Piaget (1978), Lowenfeld (1968[1947]), Kellog
(1970) e Gardner (1980).
5
“efeito fotográfico” incorpora-se de forma marcante no desenho infantil; há uma
preocupação crescente com a perfeição, a ponto de algumas crianças abandonarem
o desenho nesta fase, por se sentirem desencorajadas ante a auto-exigência da
representação realista ou por encontrarem noutras linguagens meios mais
adequados de expressão;
3
Wallon (1979[1941]), por exemplo, criticou o carácter rígido da conceptualização piagetiana de
estádios de desenvolvimento, sublinhando a flexibilidade e reversibilidade das fronteiras entre as
diversas etapas e a influência das variáveis sócio-culturais na evolução psicológica da criança.
6
pelos fundamentos essenciais da cultura e reflecte de maneira
privilegiada os valores que subjazem à comunicação na sociedade.
Para lá da dimensão biológica, a elaboração dos signos e a sua
reunião são índices de socialização, de aculturação: desenhar é para
a criança aprender a utilizar os símbolos e a manipular as relações ou
as regras que ligam os significantes aos significados no seu
contexto.“ (1990: 86)
A compreensão dos desenhos infantis como objectos simbólicos impõe uma análise
semiológica atenta às várias dimensões do símbolo: linguísticas, culturais, sociais.
Peirce estabelece uma distinção entre índice, ícone e símbolo, que nos é útil reter.
Para o linguista americano, os índices correspondem aos traços sensíveis de um
fenómeno que o produziu; assim, o fumo é o índice do fogo; há uma relação de
contiguidade entre o índice e o seu referente, dado que ambos são consubstanciais
a uma só realidade (se não há fumo sem fogo, também não há fogo que não deixe
os seus traços – o fumo, as cinzas, etc.). Os ícones têm uma relação de
semelhança com aquilo que evocam, apesar de não fazerem parte do mesmo
fenómeno. O ícone é na verdade um signo que refere o objecto por reproduzir
7
características que lhe são formalmente atribuíveis; por exemplo, um sinal de
trânsito de curva perigosa à direita representa visualmente a linha curva apertada
que pretende assinalar. Os quadros figurativos são também ícones e há algo de
iconográfico nos desenhos “realistas” das crianças. No entanto, seria ilusório pensar
que todos os desenhos infantis são iconográficos; na verdade, eles são constituídos
por elementos que remetem para dimensões não apenas representacionais. Têm,
com efeito, um carácter simbólico. Os símbolos, para Peirce, operam por uma
contiguidade instituída com os objectos que representam. São elementos gráficos
ou sonoros inventados, que, por efeito de um arbítrio estabelecido por convenção
entre os comunicantes, remetem para ou evocam objectos concretos ou abstractos.
Norberto Elias (1994) filia na capacidade simbólica dos seres humanos a sua
possibilidade de acção social4. A produção simbólica - que em Elias é tomada como
essencialmente produção na/pela linguagem verbal - espelha e exprime o processo
civilizacional. A transmissão simbólica configura-se como essencial para a vida em
sociedade, sendo recorrentes as referências de Elias ao desenvolvimento pessoal e
social das crianças icomo um desenvolvimento pelo e através da aprendizagem da
língua particular em que cada criança está inserida (idem:129). Apesar de Elias
atribuir às crianças um papel passivo, na sua análise do processo de aprendizagem
simbólico, sem reconhecimento da capacidade infantil de apropriação
transformadora do legado cultural - o que torna, do ponto de vista da Sociologia da
infância, a sua proposta ambígua e a sua teoria da socialização deficiente (cf. Prout,
2005: 106) - o seu contributo teórico configura-se como muito útil para a
inteligibilidade do desenho infantil.
Os desenhos das crianças são actos comunicativos e, portanto, exprimem bem mais
do que meras tentativas de representação de uma realidade exterior. Apesar de
alguns trabalhos psicológicos proporem a ideia de que a “evolução” das formas do
4
Afirma Elias:
“Tentei salientar o duplo carácter do mundo de que temos experiência como um mundo independente de
nós, mas incluindo-nos, e como um mundo mediado, para a nossa compreensão, por uma teia de
representações simbólicas, predeterminadas pela constituição natural dos seres humanos, que se
materializam apenas com o auxílio de processos de aprendizagem social.” (1994:131)
8
desenho infantil está articulada com a fixação de um ponto final na escala
evolutiva, ponto esse que seria o “realismo visual” (Gardner, 1990), as crianças,
desde as suas garatujas iniciais, atribuem significados aos seus desenhos que
desmentem a representação directa e a intenção realista.
Além disso, os desenhos das crianças variam com o espaço e o tempo e a sua
inserção social e cultural, sendo necessário considerar os povos e culturas que
atribuem às formas gráficas objectivos bem distintos da representação de uma
realidade exterior. Veja-se, a título de exemplo, o significado das formas gráficas
de povos indígenas amero-indios ou africanos, inscritas por vezes no próprio corpo,
que, sendo apropriadas pelas crianças e por elas reproduzidas (Silva, Macedo e
Nunes, 2001) objectivam finalidades ritualísticas, mágicas ou evocativas, que não
são de modo algum dependentes de uma preocupação realista. De uma forma mais
geral, a criança, mesmo quando procura a semelhança dos seus desenhos com
flores, nuvens, objectos, animais, pessoas, etc., inventa formas imaginárias e
incorpora elementos fantasistas com sentidos e objectivos muito diversos dessa
presumida intencionalidade realista (cf. Matthews, 2003). Tudo se passa como se a
criança procure no seu desenho não propriamente representar um real exterior ao
desenho, mas, desenhando-o, o inscreva como o real da representação, válido em
si próprio e interpretável no quadro da polissemia tolerada pelos códigos em ele foi
desenhado. Não se trata, por consequência, de uma vocação realista, mas do
trabalho de inscrição que legitima o jogo de “faz de conta” onde opera a ”afirmação
do simulacro; afirmação do elemento na rede do similar” (Foucault, 19735). Esse
trabalho simbólico é aquele por onde perpassa a interpretação do mundo.
5
A frase de Foucault ocorre na percutante análise a que submete o quadro de Matisse: “Ceci n’est pas
une pipe.”. Tal como Matisse (e aliás a arte moderna em geral) as crianças operam uma dupla operação
na sua “arte”: convocam o real, em formas frequentemente insuspeitadas, elementos referenciais e
invocam a materialidade do simulacro no seu desenho. (por exemplo, as crianças desenham uma casa e
afirmam: isto não é uma casa, é só o desenho de uma casa).
9
processos de elaboração dos desenhos necessita de atender aos meios disponíveis
para as crianças realizarem os seus trabalhos, às rotinas em que se inserem os
momentos de realização do desenho, às práticas institucionais (no interior da
família, na escola, nos ateliês de tempos livres, etc.) em que a actividade gráfica da
criança tem lugar, às relações sociais que se estabelecem no momento do desenho
com os pais, os irmãos, os professores, com outras crianças ou com outros adultos,
à materialidade do gesto gráfico e dos seus suportes físicos – o lápis, o papel, as
tintas, o pedaço de tijolo com que se risca a superfície de pedra ou de cimento, a
cana com que se desenha na areia, etc.
10
Nesta conformidade, a análise dos desenhos infantis não pode fazer economia nem
de um nem de outro tipo de factores sociais em presença – os que estabelecem a
unidade do grupo geracional e os que produzem a estratificação, a desigualdade e a
diversidade das condições sociais de existência das crianças. Para o primeiro tipo de
factores – os que “unificam” a infância como grupo geracional – o conceito de
“culturas da infância” é decisivo.
Não obstante, a defesa da autonomia cultural das crianças continua sendo um tema
envolto em alguma controvérsia. O debate não se centra no facto, reconhecido, das
crianças produzirem significações autónomas, mas em saber se essas significações
se estruturam e consolidam em sistemas simbólicos relativamente padronizados,
ainda que dinâmicos e heterogéneos, isto é, em culturas.
11
bebidas alcoólicas ou a obrigação da frequência da escola, a partir de certa idade),
são compostos por rituais e artefactos (por exemplo, canções de embalar ou de
roda, brinquedos e jogos), exprimem-se em ideias, frases, desenhos que obedecem
a gramáticas próprias de estruturação, nos seus aspectos semânticos, morfológicos,
sintácticos e pragmáticos (por exemplo, a linguagem infantil não é uma forma
empobrecida de actualização de uma língua-padrão, mas o exercício de uma
expressão onde se joga um modo particular de relação com o mundo e com a
linguagem), tanto quanto estão presentes nas acções individuais e colectivas das
crianças (nas brincadeiras, na postura corporal ao comer, nos hábitos de higiene
diária, na comunicação com os colegas e amigos, etc.).
Como dissemos, este processo é criativo, tanto quanto reprodutivo, isto é, nele se
presentifica um passado histórico culturalmente sedimentado e a inovação sempre
inerente a toda a acção humana.
A referência que fazemos aos círculos de inserção cultural das crianças afasta-se
num ponto da proposta da sociologia “formal” de Simmel. Na verdade, os “círculos”
a que nos referimos, mais do que formas preenchidas de conteúdos, preexistentes
à acção social e transmitidas por via da reprodução cultural intergeracional, são
aqui concebidas como contextos culturais de imersão das crianças, dotados de
dinamismo e tensão internas, formados de forma algo fragmentária e sempre
incorporados pelas crianças de modo que estas são chamadas a fazer selecções,
oposições, translações e interpretações, que fundam as condições individuais,
12
singulares e irrepetíveis do desempenho de cada criança, sem deixar de as
constituir como “indíviduos sociais”.
Ora, os desenhos infantis dão a ver essa bricolagem entre referenciais simbólicos
de diferente proveniência.
A imersão das crianças no universo simbólico pode ser vista pelas formas que os
seus desenhos adoptam na intercepção de vários planos de produção e reprodução
cultural:
A cultura local. O local é o espaço impuro das identidades sociais. Impuro, porque
o local não é independente das relações sociais mais vastas, é atravessado por
motivos simbólicos de geração supralocal e é continuamente ”contamidado” por
influências descaracterizadoras das raízes identitárias. Mas é também o espaço
social da transmissão pelas suas tradições, através do trabalho das instituições
locais e pela influência das relações de vizinhança. O “habitat” (também) faz o
“habitus”. Os desenhos das crianças incorporam como motivos temas da cultura
local (por exemplo, os desenhos das crianças rurais exprimem muito
frequentemente o trabalho agrícola), assim como são permeáveis a formas
incorporadas nas culturas locais (especialmente se estiverem ligados a tradições
artesanais; mas também, edifícios, objectos do mobiliário urbano, estátuas ou
artefactos). É provavelmente que a influência das culturas locais seja menor nas
crianças urbanas do que nas crianças dos meios rurais, mais fieis à preservação das
identidades. No entanto, sobretudo quando as crianças caminham para a
adolescência, as “tribos urbanas” podem ter influência no tipo de grafismo e na
paleta de cores usada, como se reconhece nos graffitti;
13
A cultura nacional. Os elementos das culturas nacionais de pertença são
comunicados prioritariamente através da escola, mas encontram outras instituições
sociais de veiculação (por exemplo, museus, as estruturas municipais do Estado,
grupos de escuteiros, etc.). A cultura nacional é provavelmente mais influente nas
formas gráficas dos desenhos infantis quando as tradições pictórias são
extremamente fortes na identidade nacional, quando os museus e a oferta cultural
tornam próximas das crianças objectos artísticos, como acontece em Itália ou
Espanha, por exemplo; no entanto, as lendas e sagas, os feitos épicos ou
acontecimentos heróicos ou trágicos da história de um povo são igualmente
influentes nos desenhos das crianças, constituem motivo habitual da sua escolha
temática e inscrevem-se no imaginário colectivo donde se extraem tantos dos
motivos do desenho infantil;
14
no entanto, a recepção infantil da cultura mediática e da indústria cultural não é
meramente passiva, nem muito menos as crianças se constituem como seres
puramente impregnáveis pelas formas induzidas nesses produtos. Pelo contrário, as
crianças são receptores interpretativos e frequentemente críticos, ainda que
também usualmente desavisados, da cultura de massas (Buckingham, 2000). É,
portanto, a interpretação das formas veiculadas pelos media que as crianças
inscrevem no seu trabalho plástico, não a reprodução linear dessas formas.
Afirma Matthews que “desenhar para os mais novos é como uma conversa e tem
uma estrutura conversacional “ (2003:20). O desenho é como uma linguagem que
se utiliza, prioritariamente, para a criança dialogar consigo própria (é muito
frequente as crianças falarem em voz alta enquanto desenham), com as coisas que
inscrevem no papel e com os colegas que partilham a prática comum do desenho.
O diálogo interpares, sobretudo quando o desenho é realizado como actividade
institucional na escola, no ateliê de tempos livres, ou mesmo quando praticada
entre irmãos, permite vislumbrar a emergência de um autor colectivo: as formas e
as cores são intermutadas pelos pares e, antes ainda da individualização dos
desenhos, é a procura de formas comuns comparáveis que a criança procura – daí
15
tantos desenhos das crianças se parecerem uns com os outros. Contrariamente ao
mito romântico ocidental do génio criativo individual (mito esse que não tem
paralelo nas culturas populares, nem nas culturas tradicionais não ocidentais, onde
a arte é colectiva ou anónima e as formas emergem da criação compartilhada das
comunidades, cf. Vidal e Silva, 1992), a criação plástica infantil vive da transacção
das formas, o plágio não é proibido, antes tolerado e cultivado (ainda que possa ser
restrito a grupos particulares de crianças, que preservam as suas formas de outros
grupos “rivais”) e a criação colectiva (do tipo dos jogos que o surrealismo veio a
importar no seu programa estético como “cadavre exquis”) muito comum. Há, por
consequência, uma autoria colectiva que é a marca de um dos aspectos mais
significativos das culturas da infância: a interactividade e a comunicação entre
pares (Corsaro, 2003)
6
Afirma Vigotsky:
“Enquanto a criança desenha, pensa no objecto da sua imaginação como se estivesse falando do
mesmo. Na sua exposição oral ele não se encontra atado pela continuidade do seu objecto no tempo e
no espaço e por ele pode, dentro de certos limites, tomar qualquer parte isolada ou saltar através dela.
(1998[1930] : 96).
16
1987),7 está na base do desenho das crianças e constitui a possibilidade de garantir
a experiência do real: fazer de conta é processual, permite continuar o jogo da vida
em condições aceitáveis para a criança.
Que isso seja construído de tal modo que o jogo esteja implicado em todas as
formas de representação é, finalmente, um outro traço das culturas da infância. O
desenho, afinal, é a expressão de uma das coisas que as crianças fazem de mais
sério: brincar.
7
É a imaginação de um outro mundo possível que se constitui como um elemento central da capacidade
de resistência que as crianças possuem face às situações mais dolorosas ou ignominiosas da existência,
como é belamente ilustrado, por exemplo, pelo filme de Roberto Benigni “A Vida é Bela”.
17
condição geracional da infância (onde desenhar é tido como “natural” e constitutivo
das formas de comunicação).
18
percepcionadas que emanam desses contextos de socialização, interpretam-nas,
ressignificam-nas e atribuem-lhes formas plásticas próprias que advém do seu
olhar particular sobre o mundo. O estudo dessas formas compósitas e híbridas é
necessária para interpretar os desenhos como objectos simbólicos.
Essa interpretação ganha tudo se for feita à luz das culturas infantis e,
nomeadamente dos seus pilares estruturantes: a cultura lúdica, a fantasia do real,
a interactividade e a reiteração. A articulação de todos eles institui os desenhos das
crianças como artefactos culturais que necessitam, à semelhança das culturas
distintas da nossa, do olhar antropológico que restitui ao outro a autenticidade da
sua própria diferença. Na verdade, a interpretação dos desenhos das crianças
mobiliza a orientação epistemológica e metodológica que recusa o etnocentrismo –
nomeadamente o etnocentrismo geracional adulto ou adultocentrismo – para poder
realizar uma efectiva “interpretação das culturas” (Geertz, 1989).
Conclusão
“Ouvir a voz das crianças” através do desenho é o convite para esse acto
sinestésico de apreensão de uma realidade que tanto nos encanta como por vezes
nos deixa perplexos, face ao modo frequentemente inesperado com que o real
surge transfigurado pelos traço inscrito no papel.
A interpretação dessa linguagem outra que é a dos desenhos não é mais facilitada
pelo facto de todos os adultos terem algum dia desenhado, quando crianças. Na
verdade, para um número muito considerável de adultos, as capacidades (e as
oportunidades) expressivas através do desenho acabaram precisamente com a
entrada na adolescência (Malchiodi, 1998: 98) … Tão pouco a tarefa se simplifica
por essa ser, na verdade a única linguagem que escapa à babelização do mundo
(Larrosa, 2003), dada a sua universalidade. As crianças quando pegam no lápis ou
19
no pincel inventam de novo o acto universal de inscrever no papel o mundo das
linhas e das cores como que inventam e exploram as formas incomensuráveis do
real. Fazem-no, a partir do lugar que ocupam no interior das esferas flexíveis de
aculturação. Fazem-no também, a partir da sua condição de crianças, com os seus
rituais e lógicas, que podem perdurar na memória futura, mas que se perdem
definitivamente na condição adulta.
Os olhos com que vêem esse mundo têm a limpidez e a perturbação dos primeiros
olhares; é por eles que descobrem objectos, nexos e sentidos que não é legítimo de
modo nenhum menosprezar. O desenho das crianças capta, no gesto com que esse
olhar primordial se transmuta em traço, uma parte da vida que não é visionável a
partir de nenhum outro ponto de vista. Reter esse olhar, ouvir essa voz, contém a
surpresa de (nos) descobrirmos (n)a infinita continuidade da renovação da vida: “É
8
preciso olhar toda a vida com os olhos das crianças” (Matisse, 1953)
8
É a seguinte a afirmação completa de Matisse :
“Ver é já uma operação criativa. Tudo o que vemos, na vida corrente, sofre uma deformação maior ou
menor pelos hábitos adquiridos e isso é talvez especialmente sensível numa época como a nossa onde o
cinema, a publicidade e a imprensa nos impõe quotidianamente um conjunto completo de imagens que
são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário
para lhes escapar exige uma espécie de coragem; esta coragem é indispensável ao artista que deve ver
todas as coisas como se as visse pela primeira vez: é preciso olhar toda a vida como quando se era
criança; a perda desta possibilidade impede-vos de vos exprimirdes de força original, quer dizer
pessoal »
20
Referências
21
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