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PLANO NACIONAL DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

DA EDUCAÇÃO BÁSICA – PARFOR


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS
COORDENAÇÃO PARFOR PEDAGOGIA

Apostila

Criança, Sociedade e Cultura

CURSO: Licenciatura em Pedagogia

Amazonas

2018

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO
AMAZONAS ESCOLA NORMAL
SUPERIOR
Av Djalma Batista, 2470 Chapada
Fone/fax: (92) 3878-7721/ CEP: 69050-010 –
Manaus/Amazonas
PLANO NACIONAL DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DA EDUCAÇÃO BÁSICA – PARFOR
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS
COORDENAÇÃO PARFOR PEDAGOGIA

CURSO

Licenciatura em Pedagogia

COORDENADORAS PARFOR PEDAGOGIA

Meire Botelho
Jane Lindoso

PROFESSORES ORGANIZADORES

Dr. César Lobato Brito


Me. Fernanda Quintino
Gizelly de Carvalho Martins
Dr. Meire Terezinha S. B. de Oliveira
Fabiane Maia Garcia
Me. Marcela Dantas Ximenes
Me. Jhaína Aryce de Souza
Erika da Silva Ramos
José Vicente Aguiar
Edeluza Pinto
Dr. Sebastião Rocha de Souza
Me. Ana Lucia Garcia Torres
Pedro Henrique Coelho Raposo
Dr. Jefferson Jurema Silva
Me. Ponyellen Morais Negreiros

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO
AMAZONAS ESCOLA NORMAL
SUPERIOR
Av Djalma Batista, 2470 Chapada
Fone/fax: (92) 3878-7721/ CEP: 69050-010 –
Manaus/Amazonas
UEA
UNIVERSIDADE
DO ESTADO DO
AM AZ ON AS

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS


PRÓ-REITORÍA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO

PARFOR
PLANO DE DISCIPLINA

l. IDENTIFICAÇÃO
CURSO: PEDAGOGIA PERÍODO:
DISCIPLINA: CRIANÇA, SIGLA:
SOCIEDADE E CULTURA.
PROFESSORES: CARGA HORÁRIA: 60 h
CREDITOS: 04

2. EMENTA
Fundamentos antropológicos, sociológicos e históricos da infância e da juventude. A
educação de crianças no Brasil. Infância, educação e diversidade sócio-cultural. Função
social e cultura escolar: a condição social das crianças no contexto atual. Influência da
cultura pós-moderna na educação de crianças e as culturas da infância.

3. OBJETIVOS

 Conhecer a realidade em que se insere a infância na sociedade, a partir da


compreensão dos aspectos filosóficos, sociais, históricos, econômicos, políticos e
culturais que a configuram e a condicionam.

 Proporcionar reflexão sobre infância, educação e pluralidade cultural nos diferentes


momentos da história e que permanecem no pensar e no fazer pedagógico e da
pesquisa contemporâneos.

 Oportunizar reflexão sobre a relação Infância e pesquisa, a partir da realidade


amazonense e dos problemas atuais enfrentados pelas crianças tanto nas instituições
quanto nas praticas sociais.

 Perceber a importância da cultura escolar na formação da criança bem como, sua


função social.
4. CONTEÚDO PROGRAMATICO / CORNOGRAMA

Mês/Ano CONTEÚDO Nº DE
AULAS
Junho/2018
Unidade I – Fundamentos antropológicos, sociológicos e
históricos da infância e da juventude: 16

 Uma história da infância em construção: os novos estudos sociais


da infância.
 Infância e cultura.
 Infância e sociedade.

Unidade II– Infância, Educação e Pluralidade Cultural 16


Junho/2018  Temas centrais nos Novos Estudos da Infância
 Infância e globalização

Unidade III – A problemática de pesquisa com as crianças 28


Julho/2018
 A criança abandonada e ou a criança de rua;
 Trabalho infantil em lugares populares;
 Crianças em situação de risco ou violência contra crianças e
adolescentes;
 Crianças indígenas na cidade e nas escolas.
 Metodologia de pesquisa com crianças

Unidade IV – A função social da cultural escolar


 A cultura escolar na formação da criança
 Crianças indígenas nas escolas e na cidade
5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

 Dinâmica de apresentação
 Análise crítico conceitual do título da disciplina
 Turbilhão de ideias
 Análise de fotografia e de gravuras
 Leitura crítica dos textos
 Relação entre as leituras e as experiências dos alunos
 Discussão em grupo
 Aula expositiva dialogada
 Projeção de filmes
 Produção de textuais
 Pesquisa Bibliográfica
 Seminário

6. AVALIAÇÃO

1a Nota: AP1 – Prova (10.0)

2ª Nota: AP2
Seminário temático (10.0)

3ª Nota:
Prova Final (10.0)

7. REFERÊNCIAS
JAVEAU Claude. Criança, Infância(s), Crianças: que objetivo dar a uma ciência social da
infância?. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005.

TOMÁS, Catarina Almeida. As Crianças como Prisioneiras do deu Tempo-Espaço. do reflexo


da infância à reflexão sobre as crianças em contexto global. In: Currículo sem Fronteiras, v.6,
n.1, pp. 41- 55, Jan/Jun 2006.

MUBARAC SOBRINHO, Roberto Sanches. O Saber da “Escola do Branco” e as Culturas das


Crianças Indígenas: uma prática pedagógica dos (des)encontros. In: NASCIMENTO, Adir
Casaro (Org.). Crianças Indígenas: diversidade cultural, educação e representações sociais.
Brasília: Liber Livros, 2011. (p. 181-204).

MUBARAC SOBRINHO, Roberto Sanches. Entre Outros Olhares e Novas Trilhas:


violência simbólica e práticas pedagógicas com crianças indígenas “urbanas”. In: Olhares
& Trilhas. Uberlândia, Ano XI, n.11, p. 11-23, 2010.
7. REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES
ARIÈS, Phillippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
DELGADO, Ana Cristina Coll; MULLER Fernanda. Tempos e Espaços da Infâncias. In:
Currículo sem Fronteiras, v.6, n.1, pp. 05- 14, Jan/Jun 2006.

MUBARAC SOBRINHO, Roberto Sanches. Metodologias de Pesquisas com Crianças:


outros mapas, novos territórios para a infância. Coimbra-PT. Ecadernos CES. Universidade
de Coimbra, 2009.

SARMENTO, Manuel Jacinto. As Culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In


M-J. Sarmento, e A. B. Cerisara, (Coord.), Crianças e Miúdos. Perspectivas sociopedagógicas
sobre infância e educação. Porto: Asa, 2004.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Imaginário e Culturas da Infância. Cadernos de Educação


(Revista da Fac. Educação da Univ. de Pelotas, RS, Brasil) ano 12, nº 21: 51-69, 2003.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Jogo, Imaginário e Educação. Braga-Portugal. Relatório da


Disciplina Sociologia da Infância:UMINHO-IEC, 2006.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Conhecer a infância: Os desenhos das crianças como produções
simbólicas. Braga-Portugal. Relatório da Disciplina Sociologia da Infância:UMINHO-IEC,
2006.

SITES:
 www.mec.gov.br
 www.anped.org.br
 www.ced.ufsc.br/nupein/
 http://www.ie.uminho.pt/
Local/Data: Local/Data:

Assinatura dos Professores: Assinatura do Coordenador(a):


Claude Javeau

CRIANÇA, INFÂNCIA(S), CRIANÇAS:


QUE OBJETIVO DAR A UMA CIÊNCIA SOCIAL
DA INFÂNCIA?*

CLAUDE JAVEAU**

RESUMO: A infância designa um conceito polissêmico que reenvia a


uma multiplicidade de dimensões ou campos. Se esse conceito é redu-
zido ao termo “criança”, entra-se no campo psicológico; ao termo “in-
fância”, no campo demográfico, o qual se revela ser também de ordem
econômica; se se fala de “crianças”, entra-se no campo propriamente
antropológico ou socioantropológico. A área que essa última dimensão
define constitui o verdadeiro objeto susceptível de ser abordado pelas
ciências sociais no que diz respeito a essa faixa da população. As pes-
quisas referentes a esse assunto exigem métodos apropriados. Se no que
diz respeito ao momento intersubjetivo relativo à sociedade, corres-
pondendo este ao nível de análise microssociológica, tais métodos po-
dem exigir do pesquisador que ele “se torne criança” a fim de poder
reconstituir pela imaginação o universo das culturas infantis. No que
diz respeito ao momento institucional, social, propriamente dito,
correspondendo ao nível de análise macrossociológico, trata-se de levar
em consideração os fenômenos estruturais, particularmente os que
concernem à dominação, que afetam as crianças tanto quanto as outras
faixas da população, e que se inscrevem numa perspectiva histórica.
Esse processo geral de estruturação se aplica também ao universo in-
fantil, e é ele que constitui a chave heurística de toda pesquisa sobre
esse universo.
Palavras-chave: Dominação. Crianças. História. Método. Estruturação.

* Tradução de Maria Fonseca, com revisão técnica de Ivany Pino.


Este artigo constitui a versão bastante remodelada e aumentada da comunicação que apresentei
no colóquio “Sociedades e culturas infantis”, organizado na Universidade Charles-de-Gaulle-
Lille 3, em novembro de 1997, e publicada nos atos desse colóquio, com o mesmo título:
Lille, Coleção UL3 trabalhos e pesquisas, 2000, p. 25-29.
** Professor do Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas ( ULB ). E-mail:
cjaveau@ulb.ac.be

Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005 379
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?

CHILD, CHILDHOOD(S), CHILDREN:


WHICH OBJECTIVE TO GIVE TO THE CHILDHOOD SOCIAL SCIENCE?

ABSTRACT: The childhood designates a polysemic concept that re-


mits a multiplicity of dimensions or fields. If this concept is reduced
to the term “child”, it enters in the psychological field; the term
“childhood” in the demographic field, which also reveals to be of eco-
nomic order; if it talks about “child” it enters in the properly anthro-
pologic or socio-anthropological field. The area that this last dimen-
sion defines constitutes the real susceptible object of being broached
to the social sciences, regarding this level of population. The researches
referring to this subject demand proper methods. With regards to the
inter subjective moment related to the society, this corresponds to the
level of micro-sociological analysis; such methods may demand from
the researcher that he “becomes a child” in order to be able to recon-
stitute through imagination the universe of children cultures, regard-
ing the institutional, social moment, corresponding to the level of
macro-sociological analysis. It has to be taken into consideration the
structural phenomena particularly those which concern the domina-
tion that affects the children as well as other age population, that sub-
scribe to a historical perspective. This process of general structure is also
applied to the child universe; it is the one which constitutes the heu-
ristic key of all research about this universe.
Key words: Domination. Children. History. Method. Structure.

ontrariamente ao que preconizava Durkheim na obra Regras do mé-


todo sociológico, é legítimo nas ciências sociais duvidar das defini-
ções prévias. Parece-me mais vantajoso definir, ainda que sumaria-
mente, campos semânticos capazes de alimentar e aceitar a emergência de
objetos de pesquisa específicos, dentro dos quais modelos heurísticos po-
dem ser elaborados servindo para orientar de modo progressivo as pes-
quisas primeiramente esboçadas em grandes linhas e de modo rudimen-
tar. Com efeito, segundo o conceito epistemológico que defendo, o objeto
de pesquisa não é construído ab initio, mas resulta, pelo contrário, ao ter-
mo (provisório) de um percurso heurístico, de uma oscilação contínua
entre os apuramentos conceituais e as provas empíricas, qualquer que seja
a natureza delas.
De um modo geral e necessariamente tosco, a “área de pesquisa”
em questão diz respeito aos indivíduos recém-nascidos ou vistos pouco
depois do nascimento, nessa faixa de vida que o senso comum chama a

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“infância”. Se parece fácil determinar o limite inferior dessa faixa de


idade (mas o que dizer do feto: sabe-se, por exemplo, que em numero-
sas legislações ele é um sujeito de direitos), mais difícil é determinar o
superior, na medida em que este varia conforme o país, a época e as
diversas divisões do corpo social.
Na maioria dos países, o direito comum fixa com precisão as ida-
des em que as diversas “maturidades” são proclamadas (e por conse-
guinte supostas) adquiridas: sexual, civil, política etc. Conforme o con-
texto institucional, essas idades podem variar consideravelmente. Mas
sabe-se, tomando-se em consideração somente os países atualmente
mais desenvolvidos, que, se a idade de entrada no mercado de trabalho
– e por conseguinte a vida simplesmente – era de apenas 14 anos há
alguns decênios para a maioria dos meninos e das meninas, hoje em
dia essa idade é muito mais alta. Ao mesmo tempo, o começo da ado-
lescência – fase de experiência que os jovens acima evocados não co-
nheciam pois passavam sem transição da escola primária ao trabalho
operário ou agrícola – deslocou-se, quanto a ele, para baixo, de modo
que se o coloca por volta dos 10 anos para os adeptos da sociedade de
consumo, isto é, para a maioria das faixas demográficas às quais se refe-
re. O período da adolescência se estira, pois, da pré-puberdade até o
momento da entrada no mercado de trabalho, isto é, por volta dos 25
anos. E ainda assim certos autores fazem durar a “post-adolescência” até
mais ou menos 30 anos. Neste ponto da questão, escolheremos fixar
por volta dos 10 anos o limite superior da faixa de idade que nos ocu-
pa, insistindo porém no fato de que se trata somente de uma aproxi-
mação cômoda que não se aplica a todas as situações empiricamete
detectáveis.
Mas as delimitações demográficas não são as únicas a serem le-
vadas em consideração. Outros pontos de vista o devem ser igualmen-
te. Meu propósito será, pois, o de propor o desbravamento de cam-
pos semânticos que, embora concorrentes, podem ser objeto de
distinções pertinentes. É claro que o que está enunciado acima são
apenas propostas e que, em se tratando de uma tentativa de organi-
zação racional de um domínio no qual se manifestam facilmente de-
terminações, até mesmo determinações concorrentes de tipo emotivo,1
essas propostas não pretendem de modo algum escapar ao jogo das
controvérsias que se situa no âmago mesmo de qualquer processo com
pretensão científica.

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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?

A criança
O campo semântico que tem por denominação o termo “criança”
é o primeiro a ser proposto. A conotação desse campo é de ordem psico-
lógica. Com efeito nas disciplinas originadas da psicologia compor-
tamental, o discurso que trata das “fases de desenvolvimento” da criança,
considerado de modo canônico, adquiriu uma forte legitimidade. Depois
de Piaget, que se deve evidentemente evitar de caricaturar como o faz
uma certa doxa para uso de revistas especializadas, assim como de certas
escolas onde são formadas as puericultoras, construiu-se um objeto abs-
trato, a “criança”, destinado a passar por níveis diversos e sucessivos na
aquisição de competências, cada um deles constituindo uma etapa na fa-
bricação da personalidade dos indivíduos. Em certos textos, essas etapas
adquirem uma coloração normativa, pouco se importando com a varie-
dade dos contextos efetivos nos quais indivíduos concretos são chamados
a se “desenvolver”.
O rebento da burguesia de classe média helvética, por exemplo,
não está destinado a ter a educação atropelada que pôde ter uma crian-
ça ruandesa na época dos massacres entre etnias.
Seria fútil negar que o trabalho de socialização, ele mesmo divi-
dido em uma fase “primária” e em várias fases “secundárias”, não se in-
sere num substrato biológico cuja universalidade não pode ser contes-
tada. Mas nem mesmo esse substrato escapa à “construção social da
realidade”.2 Como para com os “velhos”, a infância é objeto de uma de-
finição social, mais ou menos partilhada pela população interessada. De
um certo modo, e por paradoxal que essa afirmação possa parecer, não
se nasce criança, vem-se a sê-lo. Há ainda neste planeta muitos lugares
onde a maneira de se tornar criança não tem nada a ver com uma sine-
cura, nem com uma história de nursery, de creche ou de kindergarten.
Uma variante desse paradigma, no sentido lingüístico do termo,
encontra-se na imagem do aluno visto sob o ângulo de competências
cognitivas e comportamentais, entre outras, tais como são tomadas a
cargo pela instituição escolar. Nesse caso também, o modo de aquisi-
ção dessas competências passa muitas vezes por caracterizações
normativas. Essa normatividade se inscreve no mais profundo da peda-
gogia escolar, nas suas diversas variantes. Não é minha intenção contes-
tar a existência dessa normatividade, mas sim mostrar sua camuflagem
sob o álibi da objetividade científica. A escola é um dos lugares essen-

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ciais onde se forjam as modalidades de integração dos mais jovens à so-


ciedade global, ao lado da família (cujo papel neste sentido teria ten-
dência a enfraquecer), dos grupos de pares (muitas vezes constituídos
na escola, mas podendo também surgir da “rua” em geral), dos diver-
sos dispositivos próprios à cultura do divertimento de massa.
A sociologia chamada da educação endossou essa imagem particu-
lar da criança, considerada ora um “indivíduo” no sentido estatístico da
palavra (macrossociologia do “rendimento escolar”, em particular), ora
um “ator” num sistema de significações chamado estabelecimento esco-
lar, até mesmo em escala menor, a de classe (etnometodologia das rela-
ções pedagógicas) (Van Haecht, 1998). A dimensão psicológica, sem ser
abandonada, passa ao segundo plano servindo somente para a explicação
eventual dos desvios relativos aos modelos normativos adotados às vezes
sem distanciamento crítico (aluno retardado, violento, mau-caráter etc.).
Essa consideração nos leva ao nosso segundo campo semântico.

A infância
A infância constitui o nosso segundo campo semântico. Esse para-
digma se inscreve no ponto de partida numa perspectiva demográfica. Es-
bocei-a acima. Às faixas de idade constituindo a “infância propriamenta
dita” sucedem com efeito as da adolescência, da idade adulta, da tercei-
ra, da quarta idade etc. O seu elo com um discurso macroeconômico,
eventualmente recoberto por um discurso de tipo macrossociológico se
inscrevendo na corrente dominante (main trend sociology), tornou fácil
abordar a questão sob o ângulo dos custos, aqui privilegiado. A infância,
com efeito, demograficamente falando, é geralmente considerada impro-
dutiva, pelo menos nas nossas latitudes, onde a obrigação escolar é larga-
mente respeitada, ultrapassando amplamente, no sentido inferior, o li-
mite fixado pela lei, graças à generalização, pelo menos em certos países,
das creches e dos jardins-de-infância.
No rasto desse paradigma econômico, a imagem do aluno é vista
como uma ocasião de investimento. A escola é assimilada a um sistema
de produção de competências, cujo efeito diferido é suposto ser útil à
conservação e se possível ao incremento do bem-estar material, compo-
nente essencial do sistema social global. A demografia escolar, aplicada
às gerações sucessivas de alunos, estuda em particular os fluxos de en-
trada e os fluxos de saída nas escolas, sob o ângulo do critério do êxito

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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?

(sendo este um substrato de uma avaliação do “rendimento” do siste-


ma escolar). A essas análises quantitativas corresponde um imperativo
aparentemente ético (chamado às vezes “direito ao êxito”), que disfarça
na realidade um imperativo econômico, melhor dito contabilista, im-
portante, o de limitar as despesas escolares. De resto, o aluno cuja ima-
gem ultrapassa o quadro demográfico da infância, para se instalar no
âmago do quadro da adolescência, torna-se uma componente, a mesma
do jovem delinqüente, entre outras, de uma infância que se elabora
conceitualmente de maneira diversa, sob a forma das infâncias.
Aluno, jovem delinqüente, “pequeno trabalhador infatigável”, cada
uma dessas imagens da infância reenvia a uma trajetória ideal-típica, e é
devedora de uma macrossociologia específica, que busca na criminologia
a idéia de “passagem ao ato”. Essa opção metodológica contribui para
ocultar o que há de particular no gênero de vida, na qualidade de siste-
ma de ação construído pelos atores, desse gênero próprio à infância, e
que o recurso a um paradigma de natureza antropológica, as crianças,
permite abordar de modo menos redutor, ou, para retomar a expressão
de Georges Balandier, menos “ortopédico”. A passagem do demográfico
ao econômico, ademais, tem a ver com todas as categorias de idade. As
sociedades desenvolvidas fazem face ao problema, cuja amplidão só ten-
de a aumentar: trata-se da diminuição relativa da participação da faixa
de idade realmente ativa na sociedade global. Cabe aos jovens assumirem
uma parte importante das conseqüências provocadas pelo envelhecimen-
to de uma população cuja esperança de vida tem aumentado sensivel-
mente. E, ao mesmo tempo, despesas ocasionadas pela conservação de
um sistema escolar freqüentado cada vez mais tempo e cada vez mais exi-
gente em termos de capitais humanos e materiais. Atualmente esses pro-
blemas se colocam como pano de fundo de uma mudança institucional
considerável, induzida pela passagem de um modelo keynesiano-fordista
a um modelo neoliberal, melhor dito, neopaleoliberal.

As crianças
Trata-se aqui do meu terceiro campo semântico, de coloração
deliberadamente antropológica. Os indivíduos reagrupados sob esse nome
constituem um “território”, no sentido literal (as populações ditas “pri-
mitivas”) ou metafórico do termo, de contorno mais ou menos preciso
no tempo e no espaço, com suas estruturas e seus modelos de comporta-

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mentos particulares, seus “gêneros de vida, isto é, seus sistemas de ação


construídos pelos próprios atores” (Juan, 1991). Segundo esse paradigma
as crianças devem ser consideradas uma população ou um conjunto de
populações com pleno direito (científico), com seus traços culturais, seus
ritos, suas linguagens, suas “imagens-ações” ou, menos preciso no tempo
e no espaço, com suas estruturas e seus “modelos de ações” etc. Eviden-
temente está ligada a esse paradigma a noção de sucedâneo “infantil” de
cultura a vir, mas como um meio e um modo de construção da realidade
social irredutível a outros (e particularmente ao das pessoas idosas de
quem se diz que “voltaram a ser criança”). As crianças não devem desde
então ser vistas como um universo prefigurando o dos adultos, e ainda
menos como uma cópia imperfeita do mundo adulto. É essa uma tenta-
ção freqüente entre os especialistas do “merchandising”, à qual uma an-
tropologia digna desse nome deve dar as costas.
A sociologia clássica, sobretudo quando ela privilegia técnicas
quantitativas, está mal instrumentada para abordar os territórios das cri-
anças. Não somente estas são pouco aptas (e dispostas) a responder a
questionários estandardizados, mas os aspectos estudados, fora a freqüên-
cia com a qual aparecem (popularidade de um brinquedo, por exemplo,
ou difusão de um traço lingüístico), acham-se dificilmente nos cálculos
estatísticos. É que se trata antes de tudo de pôr em evidência as significa-
ções que as crianças atribuem aos diversos componentes dos estilos de
vida que levam, tanto na perspectiva da constituição bruta de uma cul-
tura específica quanto na da relação desta com os diversos processos de
socialização em ação, dos quais um grande número surge na realidade da
auto-socialização, qualquer que seja o quadro: família, escola, rua, terre-
no vago, colônia de férias etc.
As regras da metodologia antropológica aparecem desde então mais
pertinentes. Elas não excluem que se tome em consideração os subcon-
juntos constituídos por elos de classe, de referências étnicas, de “patrões”
de atividades particulares, como se pode ver nas escolas, de jovens delin-
qüentes, de jovens doentes, de jovens submetidos ao trabalho forçado,
de jovens burgueses que “se entediam aos domingos”, meninos entre si,
meninas entre elas etc. Representar as crianças como se fossem bambaras
ou bororos não quer dizer que se despreze os modos de estruturação pró-
prios dos tempos modernos, até mesmo pós-modernos. Desse ponto de
vista, a antropologia contemporânea desenvolveu procedimentos que le-
vam em conta complexidades inscritas no âmago das sociedades chama-

Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005 385
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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?

das “desenvolvidas”. De modo nenhum é necessário evocar, para justifi-


car o projeto antropológico, a preeminência nas crianças de um “pensa-
mento primitivo”. Esta hipótese, em razão das condições nas quais se de-
senvolve a primeira educação sob nossas latitudes, parece pouco
admissível. Não conviria confundir, com efeito, pensamento “primitivo”
e pensamento “mágico”. Os especialistas do desenvolvimento dos primei-
ros anos de vida recorrem muitas vezes a esta noção, que reenviaria um
pouco ao primeiro estado comtiano. Não é certo que se possa confiar-lhe
a tarefa de preencher totalmente a relação ao mundo das crianças como
segmento de população mais ou menos cuidadosamente delimitável.
Existiria perfeitamente uma racionalidade infantil que deitaria por terra
toda tentativa de fazer das crianças uma espécie de “primitivos” numa
escala de evolução cultural, que faria eco a um darwinismo social ao qual
a antropologia clássica nem sempre soube renunciar.
O ângulo de mira da “vida cotidiana” (Juan, 1991) convém parti-
cularmente ao nosso próposito, na medida em que ele leva em conta ao
mesmo tempo comportamentos, representações e contextos de naturezas
múltiplas. A vida cotidiana das crianças comporta, como qualquer outra,
sua parte de alienação a rotinas mais ou menos constrangedoras, de
cotidianidade, no sentido em que Lefèbvre dava a este termo. Para as cri-
anças, não se trata apenas de assimilar as disciplinas que lhes devem per-
mitir se integrarem nos diversos grupos dos quais elas fazem parte, mas
também de consolidar o sentimento de segurança ontológica (Giddens),
sem o qual a existência no dia-a-dia só pode ser uma aventura terrífica.
Infelizmente é verdade que, atualmente, o terror é a sina de muitas cri-
anças. Mas, se a sociedade das crianças comporta projetos, ela é também
balizada por ritos, frutos, muitas vezes, de transações espontâneas com o
mundo dos adultos. Projetos e ritos constituem, entre outros, excelentes
objetos de investigações. Sem dúvida, para levá-las a bom porto, é neces-
sário afinar instrumentos metodológicos aplicáveis a populações tão sin-
gulares. Como para qualquer outro objeto, o pesquisador deve praticar o
“olhar distanciado” celebrado por Claude Levi-Strauss. Mas, assim fazen-
do, ele deve também, nesta circunstância, reencontrar uma “alma de cri-
ança”. Nessa perspectiva, a aplicação da exigência de empatia não é, sem
dúvida, a tarefa mais fácil de se executar.
Como os outros grupos sociais, as crianças arranjam3 suas existên-
cias cotidianas com os meios que podem. Esses meios lhes são dados pe-
los dispositivos de socialização que lhes são impostos ou propostos. Nos

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Claude Javeau

países ricos, os meios de comunicação de massa, compreendendo tam-


bém atualmente os processos informáticos (o Net), ocupam no centro des-
ses dispositivos um lugar privilegiado. Entre as competências esperadas
das crianças, de agora em diante, até mesmo exigidas, o domínio da ma-
nipulação informática tornou-se imperativo. Não se poderia esquecer de
levar em consideração, no que diz respeito às crianças de diversos meios
(e não só às das sociedades desenvolvidas), as importantes modificações
advindas em torno delas, entre as quais a mais imediata que lhes possa
passar pela cabeça é a família. Segundo as diversas recomposições poden-
do se reproduzir no seio desta, os papéis dos “outros significativos” são
desempenhados por uma multiplicidade de pessoas que se tornam ou-
tros tantos personagens: padrastos, madrastas, concubinos, concubinas
etc., que podem ser, num casal, do mesmo sexo. Isso supõe que reencon-
trar “uma alma de criança”, não obstante um arranjo melhor, do que o
que se tinha outrora, das vias de passagem entre os universos adultos e os
universos infantis, constitui certamente, atualmente, um desafio cada vez
mais difícil de levantar.
O grupo (ou a configuração) é seguramente o objeto mais indica-
do para uma investigação do tipo socioantropológico. É dentro dele que
se elaboram as culturas infantis (falar de uma só “cultura infantil”, salvo
em termos de “forma”, no sentido simmeliano do termo, seria, com efei-
to, extremamente redutor), em função de determinantes de ordem
macrossocial que intervêm no processo de estruturação do qual esse gru-
po participa, como todos os outros. Pois não se pode esquecer que é com
relação à sociedade global que as práticas e representações desse grupo
tomam suas significações e formam seus esquemas de atividades. Se as
crianças produzem, sem exprimi-lo, um conjunto de feitos culturais que
constituem construções sociais “em constante redefinição (intervindo) na
regulação das relações sociais e no conjunto das tranformações da socie-
dade” (Mollo-Bouvier, 2000, p. 39-44), é bem porque as estruturas nas
quais se inscrevem essas relações concernem às crianças da mesma manei-
ra que às outras frações da sociedade. Sem dúvida dizê-lo é um truísmo,
mas talvez não seja fora de propósito lembrar que, em oposição a uma
visão por demasiado microssociológica das coisas, o grupo social das cri-
anças participa dos fenômenos de dominação que concernem à sociedade
inteira. Junto com o desdobramento dos efeitos do desenvolvimento bio-
lógico, dos efeitos do desenvolvimento simbólico (o que chamamos or-
dem cultural das coisas), dos efeitos do desenvolvimento das relações de

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Criança, infância(s), crianças: que objetivo dar a uma ciência social da infância?

poder, desde o microcosmo familiar até as bases propriamente políticas


da sociedade, não se deve nunca perder de vista a dimensão social das
combinações intersubjetivas, devedora de uma análise microssociológica,
constituindo somente um dos momentos da estruturação, sendo o ou-
tro, segundo a concepção dualista legitimamente posta em evidência por
Giddens, a dos sistemas institucionais, do social objetivado, devedor de
uma análise macrossociológica. Contentar-se com somente um desses
momentos seria dar provas de um defeito de miopia heurística, criticável,
quer se trate das crianças ou de qualquer outro “território” da sociedade
global. Aqui o processo metodológico requer, pois, uma entrada
duplicada: em primeiro lugar, a das interações se travando e estabelecen-
do continuamente dentro do território das crianças e entre esse território
e os outros territórios aos quais aquele está ligado; em segundo, as
interações das instituições que, dentro de uma sociedade dada, enqua-
dram a existência cotidiana dos habitantes do território mencionado.
Essa entrada, não o esqueçamos, não pode fazer a economia do recurso a
uma perspectiva histórica. Todo dispositivo institucional possui sua den-
sidade diacrônica. O antropólogo das crianças não somente deve esfor-
çar-se para reencontrar uma “alma de criança” mas deve também adqui-
rir uma alma de historiador, dobrada, se for o caso, de uma alma de
jurista e de uma de economista. Como se vê, praticar a “sociologia da
infância”, como qualquer outra aliás, exige das equipes de especialistas
que se dedicam a esse campo, ainda em plena elaboração, um leque de
competências extremamente variadas. Ainda que de maneira lapidar, es-
pero ter mostrado a pertinência dessa exigência.

Recebido em novembro de 2004 e aprovado em março de 2005.

Notas
1. Viu-se na Bélgica, quando foram descobertos os crimes cometidos por Dutroux e gente da
mesma laia: no auge da emoção coletiva, os jornais chamaram sistematicamente de “meninas”
duas jovens flamandas, An e Eefje, igualmente vítimas dos mesmos criminosos. Ora, uma
delas, juridicamente maior de idade no momento da sua morte, tinha a mesma idade que
Diana, Princesa de Gales, quando essa se casou.
2. Esse é o título de uma obra célebre de P. L. Berger e Th. Luckmann, publicada pela primei-
ra vez em inglês em 1962.
3. O autor utiliza aqui o verbo “bricoler” e em nota ao pé da página remete a: Javeau, Le bricolage
du social, Paris: PUF, coll. Sociologie d’Aujourd’Hui, 2001.

388 Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
Claude Javeau

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Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 379-389, Maio/Ago. 2005 389
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Currículo sem Fronteiras, v.6, n.1, pp.5-14, Jan/Jun 2006

APRESENTAÇÃO:
Tempos e Espaços das Infâncias
Ana Cristina Coll Delgado
Fundação Universidade Federal do Rio Grande
Brasil
Fernanda Muller
Universidade do Rio Grande do Sul
Brasil
(Organizadoras)

Resumo

O dossiê reúne investigações de pesquisadores brasileiros e portugueses que problematizam os


Tempos e Espaços das infâncias no século XXI. Os artigos apresentam perspectivas sobre a
organização dos tempos e espaços da infância que não se limitam somente à forma pela qual os
adultos organizam o mundo. Não temos dúvidas de que a escola tem grande legitimidade ao
determinar a infância, relacionando-a com a escolarização. Crianças são entendidas como
alunos/as. Infância é confundida com uma etapa da escolarização – Educação Infantil. As
demarcações do tempo também são produtos da construção de conhecimento ao longo da história
e é este tempo contado e submetido a uma racionalidade econômica que vai se articular com os
tempos das infâncias. Compreendemos que os espaços embora prontos, construídos e idealizados
por nós adultos não garantem relações humanas baseadas em sentimentos de respeito pela
diversidade, pelas pluralidades das infâncias ali contidas. As pesquisas resgatadas neste dossiê
apresentam experiências teóricas e empíricas diversas e singulares, transgredindo as
interpretações universais, destacando tempos e espaços onde as infâncias são vividas de modos
diferentes. Trata-se, sim, de entender como as crianças resistem e reinterpretam a realidade para
garantir suas infâncias.

Abstract
The dossier gathers Brazilian and Portuguese research discussing times and spaces of childhood
in the XXI century. The articles present perspectives on the organization of childhood times and
spaces, which are not only confined to the way adults organize the world. We have no doubts
that school has great legitimacy when it determines childhood, connecting it with schooling.
Children are understood as students. Childhood is confounded with a schooling stage –
Childhood Education. The time demarcations are also products of the knowledge construction
along the history and it is this time, counted and submitted to an economic rationality that will
articulate with the childhood times. Although the spaces are ready, built and idealized by us,
adults, they do not guarantee human relations based on feelings that respect diversity and the
childhood pluralities included in them. The research represented in this dossier brings diverse
and singular empirical and theoretical experiences, transgressing the universal interpretations,
focusing on times and spaces where childhoods are experienced in different ways. The question
is, indeed, to understand how children resist and reinterpret the reality in order to guarantee their
childhood.

ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 5


ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER

[...] a luta pelo estabelecimento dos limites da infância é, em si


mesma, uma das componentes do processo de construção social
da infância (PINTO e SARMENTO, 1997, p.17).

Ariès (1981) mostrou que, para classificar as fases da vida, várias foram as
correspondências com os fenômenos naturais e cósmicos: o número de planetas, sete,
quando ainda não eram do conhecimento humano Netuno e Plutão; os doze signos do
Zodíaco; as quatro estações do ano. Na Idade Média, a Igreja Católica estabeleceu o
término da infância aos sete anos, pois se entendia que a partir desse período iniciava a
idade da razão. De certa forma, a escola conseguiu legitimar isso no decorrer da História,
uma vez que impôs a idade de sete anos como própria para a alfabetização. Segundo Pinto
(1997, p.35), “[...] a Igreja, desde o 4º concílio de Latrão, em 1215, considerava atingido
algum uso da razão “e autorizava, por isso, a confissão e a comunhão”. Atualmente, vários
organismos delimitam as idades da infância. A Convenção dos Direitos da Criança, adotada
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, considera como
criança “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade”. O Estatuto da Criança e
do Adolescente (Art.2º, 1990) considera criança “a pessoa com até doze anos incompletos”.
Mesmo entendendo a importância das convenções internacionais e nacionais, certamente é
de responsabilidade do mundo do trabalho e da escola a legitimação das idades da vida.
A Constituição de 1988 prevê a idade mínima de quatorze anos para o ingresso no
mundo do trabalho (Art.227, §3º, cap.I), o que ainda é ressalvado no Art. 7º, XXXIII – a
“proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de
qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir
dos 14 (quatorze) anos”. Por outro lado, no ambiente escolar, a infância geralmente é
entendida como o período de vida dos zero aos seis anos. Será que a LDB (1996),
paradoxalmente, contribuiu para isso ao legitimar a educação da criança pequena como
parte da Escola Básica? Buckingham (2002, p.19) responde a essas questões e alerta de que
a escola “é uma instituição social que constitui e define de forma eficaz o que significa ser
criança e criança de uma determinada idade”. Nem sempre esse critério foi usado se
analisarmos a História. Na Idade Média, a organização da escola era multietária, pois “a
escola medieval permaneceu indiferente à distinção e separação das idades, uma vez que
não se destinava a educar a infância” (Pinto, 1997, p.36). Contudo a organização dos
tempos e espaços da infância não se limita somente à forma pela qual os adultos organizam
o mundo. As crianças se apropriam e traduzem isso pelas expressões do tipo “quando eu
crescer” ou “gente grande” nos seus modos de representação, como se fossem referenciais
para demarcar os tempos e os espaços escolares.
Florestan Fernandes, em pesquisa realizada nos anos 40 no bairro do Bom Retiro/SP,
mostrou que nas trocinhas1 não existia nenhuma iniciativa de organização pelo critério de
idade. Segundo as suas observações, os grupos se reuniam a partir de interesses comuns e,
em alguns momentos, os menores exerciam funções diferenciadas. O autor (p.167) ainda

6
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância

reforça: “A própria natureza do grupo infantil em ação favorece a inexistência de distinções


extremas entre as crianças, as quais vivem num mundo próprio, seu, nos folguedos, com
uma hierarquia e um sistema de valores exclusivos”.
Tentando problematizar a questão da institucionalização das idades da infância,
Buckingham (2002, p.27) afirma que “a construção das crianças como indivíduos pré-
sociais impede efetivamente a possibilidade de considerá-los seres sociais ou, desde logo,
cidadãos”. A idéia de cidadania, ou privação dela, provoca duas questões: crianças somente
entendidas como cidadãs quando consumidoras e crianças entendidas como pré-cidadãs.
Corea (1999, p.11-12) discute a primeira idéia, quando afirma que o consumismo impede a
diferenciação simbólica entre adultos e crianças, e, portanto, “como consumidor, a criança é
sujeito na atualidade; não em função de um futuro”. A problematização sobre a participação
das crianças, direta ou não, no consumo de bens e serviços, é completamente urgente.
Entretanto a perspectiva de análise de Corea (p.12), que concebe como importante “as
idades da vida em etapas sucessivas” não leva em conta o direito da criança à cidadania, e
sim somente o considera como um direito a ser conquistado na fase adulta. As idéias de
criança-cidadã-consumidora e a negação de cidadania às crianças compartilham os mesmos
tempos e espaços na contemporaneidade. A segunda se relaciona com a categoria pré-
cidadão, apontada por Buckingham anteriormente. Os discursos veiculados na escola
corroboram essa análise, uma vez que esta idéia está explícita nas nomenclaturas
institucionais: Pré-escola, Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Não temos dúvidas de que a escola tem grande legitimidade ao determinar a infância,
relacionando-a com a escolarização. Crianças são entendidas como alunos/as. Infância é
confundida com uma etapa da escolarização – Educação Infantil. O que é vivido, ensinado,
aprendido, manifestado na Educação Infantil, porém, também é fundamental!
Deste panorama de inquietações e angústias que vêm nos acompanhando em nosso
percurso de pesquisadoras da área da Educação Infantil surgiu Tempos e espaços das
infâncias e crianças: desafios na contemporaneidade. Pretendemos construir um debate
com pesquisadores/as de diferentes centros de pesquisa do Brasil e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Infância, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade
do Minho, Portugal. Tal debate tem como principal intenção apresentar investigações que
problematizam os Tempos e Espaços das infâncias no século XXI.
Elias (1998) afirma que o tempo não é natural, mas uma instituição social fruto de um
longo processo de aprendizagem. Esse aprendizado é histórico, uma vez que o indivíduo só
pode construí-lo a partir de um conjunto de saberes adquiridos. Por outro lado, essa
aprendizagem também é individual, uma vez que desenvolvemos um sistema de auto-
disciplinamento a partir dessa instituição social que é o tempo. Principalmente nas
sociedades industrializadas, a coerção que suscita o desenvolvimento da autodisciplina no
indivíduo é motivada pela interação com os objetos que medem o tempo: relógios e
calendários. Elias (1998) insiste que o processo civilizador contribuiu para formar os
habitus2 sociais que são parte integrante da estrutura da personalidade. Ou seja, tendemos a
pensar que tudo aquilo que foi adquirido como natural, mas pelo contrário, as demarcações
do tempo também são produtos da construção de conhecimento ao longo da história.

7
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER

Mollo-Bouvier (1998) estuda os ritos, os tempos e a socialização das crianças e explica


que o estudo das delimitações dos territórios das infâncias é inseparável da análise dos ritos
de passagem de uma etapa à outra, de um lugar a outro, de uma atividade a outra. Há um
sentido forte dos ritos de passagem ou ritos de instituição que se inscrevem nos processos
de socialização. Javeau (apud. Mollo-Bouvier, 1998) salienta o caráter social das divisões
dos tempos e avança na idéia de que o desenvolvimento tecnológico impôs a divisão das
seqüências temporais da jornada exigindo um tempo contado, medido. É este tempo
contado e submetido a uma racionalidade econômica que vai se articular com os tempos das
infâncias.
Como delimitar a infância? pergunta Mollo-Bouvier (1998, p.77-80). Perseguindo esta
questão, a autora explica que a psicologia do desenvolvimento contribuiu para a
generalização da idéia de que existe uma adequação entre os diferentes estágios de
desenvolvimento e a maneira de dividir as idades da infância. O estudo do processo de
segmentação das idades e das práticas sociais da infância ainda permanece impreciso e as
categorias crianças/jovens variam segundo as sociedades e as épocas. Estas são efetuadas
em função da evolução do processo de escolarização, das flutuações do mercado de
trabalho e da economia, dos imperativos da formação. Algum tempo, alguma idade, algum
lugar da infância não escapam ao processo de institucionalização, segundo Mollo-Bouvier
(1998). Cada idade e cada tempo são representados por uma instituição dominante: creche,
pré-escola, asilo, escola infantil, espaços de lazer, e todos são indicadores do lugar
dedicado à infância, em seu percurso de socialização segundo sua idade e o nível
econômico e cultural dos pais.
Refletir sobre os diferentes espaços das infâncias permite descentrar nossos olhares das
dimensões físicas e ambientais que instituímos como as mais adequadas para as crianças,
esquecendo-nos muitas vezes que em outros espaços também acontecem encontros,
desencontros, descobertas e trocas. Nesse sentido, entendemos que os espaços embora
prontos, construídos e idealizados por nós adultos não garantem relações humanas baseadas
em sentimentos de respeito pela diversidade, pelas pluralidades das infâncias ali contidas.
Pinto (1997, p.11-13) interpreta os paradoxos das infâncias na sociedade dos adultos,
apontando alguns aspectos que incidem no controle dos tempos e espaços das crianças, tais
como: os adultos cada vez concebem menos crianças e dedicam menos tempo para elas, ao
mesmo tempo em que sustentam discursos de valorização de que pais e crianças estejam
juntos. Os adultos valorizam a espontaneidade das crianças, ainda que submetam suas vidas
de crianças às regras das instituições. Os adultos dizem concordar que elas devem ser
educadas para a liberdade e democracia, ao mesmo tempo em que a organização social dos
serviços para a infância se baseia no controle e na disciplina. As escolas são consideradas
importantes para a sociedade, mas não é reconhecida a contribuição das crianças para a
produção do conhecimento. Este autor ainda aponta outros paradoxos que indicam que para
nós as crianças são importantes e ao mesmo tempo sem importância. Pergunta Pinto (1997,
p.11-13): em que limites etários se define o ser criança? Hoje já não há consenso de que a
infância começa quando se nasce, pois há evidências de que a existência humana inicia no
útero materno, e de que as crianças já reagem aos estímulos externos, ainda que

8
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância

incompletamente formadas. E quando se deixa de ser criança? Sabemos que esta questão
produz paradoxos entre nós, dentre eles o de considerar que as crianças a partir dos sete
anos devem ingressar num mundo escolar semelhante ao do mundo do trabalho, com
tempos e espaços controlados. Mais paradoxal é o fato de que estas práticas já começam a
ser instituídas nas instituições de Educação Infantil, uma vez que alguns adultos dizem que
é necessário às crianças irem adaptando-se às rotinas de tempo e espaço, pois logo elas
estarão vivenciando o mundo escolar. Explica Pinto (1997, p.17) que ser criança é algo que
varia entre sociedades, culturas e comunidades, que pode variar em uma mesma família e
de acordo com a estratificação social, ao mesmo tempo em que varia com a duração
histórica e com a definição institucional da infância dominante em cada época. Ele percebe
a necessidade de focalizar as crianças como possibilidade para o estudo das realidades de
infância.
Atualmente, a produção sobre a Educação Infantil considera a infância como uma
categoria social, graças ao estudo de Áries (1981) que contribuiu para esta concepção.
Porém, este historiador centralizou suas análises sobre o surgimento da infância como
conseqüência da mudança do comportamento dos adultos. Segundo o autor (1981, p.158), a
infância só emergiu a partir de dois sentimentos constituídos no século XVII: a paparicação
e a moralização. Paparicação é explicada como: “a criança, por sua ingenuidade, gentileza e
graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto”. Já o sentimento
de moralização foi constituído pelos educadores e moralistas, sendo o controle parte
essencial na educação das crianças. O objetivo principal era formar homens racionais e
cristãos e para isto “Tentava-se penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a
seu nível os métodos de educação” (Ariès, 1981, p.163).
Especialmente nos estudos vinculados à Sociologia da Infância, como o já citado
estudo de Pinto (1997), encontramos posicionamentos que superam esta perspectiva.
Corsaro (1997) concebe as crianças como responsáveis por suas infâncias, e portanto, elas
afetam e são afetadas pela sociedade. A concepção das crianças, a partir dessa postura,
corrobora a visão de infância exposta por James e Prout (1997, p.7) como “duplamente
construída para as crianças e por elas”. Nós partilhamos e reconhecemos a produção teórica
desse campo teórico3 como um marco que assinala para o reconhecimento das crianças
enquanto atores sociais. Inspiradas por Corsaro (1997, p.5), temos considerado em nossas
pesquisas, que:

• As crianças são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem
para a produção do mundo adulto.
• A infância é uma forma estrutural ou parte da sociedade.

A palavra ator tem sentido de ação e não foi tão simples nos últimos tempos perceber
que as crianças não somente reproduzem regras, valores, hábitos e comportamentos do
mundo adulto, mas principalmente criam e recriam as realidades e dão outros sentidos ao
mundo. Hoje também reconhecemos que há modos diversos e plurais das condições de vida
das crianças, embora também saibamos que as formas de regulação e controle da infância

9
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER

ganharam força e expressão com a modernidade. Para nós adultos/as que pesquisamos e
escrevemos sobre as crianças é um desafio superar o entendimento de infância relacionado
à idade cronológica e aos espaços institucionais legitimados historicamente.
As pesquisas resgatadas neste dossiê apresentam experiências teóricas e empíricas
diversas e singulares, transgredindo as interpretações universais, destacando tempos e
espaços onde as infâncias são vividas de modos diferentes. Nós compreendemos as
categorias tempo e espaço das infâncias numa dimensão mais ampla, considerando que as
vivências das crianças não estão somente vinculadas aos espaços institucionais, mas
também se encontram em outros espaços nos quais elas experimentam outras relações
educadoras.
É indiscutível que no Brasil estamos construindo uma tradição de estudos e pesquisas
no campo da Educação Infantil que tem obtido destaque, sobretudo a partir da década de 70
do século XX. Porém, ainda temos um caminho a ser trilhado no que diz respeito aos
estudos voltados às crianças e suas culturas interagindo em outros espaços, além daqueles
que denominamos creches (para a faixa etária dos zero aos três anos) e pré-escolas (para a
faixa etária dos quatro aos seis anos). Também é urgente a constituição de grupos de
pesquisa que considerem as vozes, criações e interações das crianças em outros espaços
educadores como: a televisão, os jogos de vídeo-game, as salas da internet, os movimentos
sociais, as ruas, as vilas e favelas, as academias, os shoppings, as escolas de samba, as
danceterias, as cidades, a zona rural, dentre outros.
Igualmente temos poucos estudos que se preocupam com metodologias investigativas
criadas a partir das crianças e não apesar delas. Demartini (1997, p.2) insiste sobre a
importância “de aprender a ouvir as crianças e os jovens”. Segundo a autora, podem ser
considerados dois grupos de relatos orais referentes às crianças e infância, quais sejam:
relatos sobre as crianças e sobre a infância e relatos de crianças. Escutar as crianças, na
perspectiva da autora (p.7), significa entender “que uma criança, de qualquer grupo social,
após breves espaços de tempo, já construiu algum tipo de identidade, tem uma memória
construída”.
Nós reconhecemos que há um grande contingente de crianças brasileiras fora do
atendimento mantido pelo Estado. Estas crianças não estão sendo educadas? Para nós é
inviável pensar em educação da infância na contemporaneidade sem incluir em nossas
pesquisas estes outros espaços educadores e as culturas infantis, o que implica compreender
concepções de infância e de crianças ainda desconhecidas entre nós adultos/as.
Acostumamos-nos a pensar em educação como algo institucionalizado, porque nossas lutas
estão vinculadas à necessidade de garantir Educação Infantil pública e gratuita para todas as
crianças brasileiras. Contudo, apesar de nossas lutas indiscutivelmente importantes, outros
tempos e espaços de educação da criança têm emergido como formas de organização da
própria sociedade civil, como reação às políticas neoliberais que isentam o Estado do
compromisso com a Educação Infantil.
Não pretendemos com este dossiê apontar soluções, respostas, ou filiações teóricas que
resolvam todas as nossas inquietações. Pelo contrário, inquietações produzem boas
reflexões, assim como dão continuidade aos estudos e pesquisas sobre as crianças que, de

10
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância

certa forma, propiciam certo distanciamento dos olhares adultocêntricos ainda fixos e
marcantes nas formas como interpretamos as questões da infância. Kramer (2002) nos
ajuda a desconstruir ou reconstruir esse olhar adultocêntrico do pesquisador/a quando nos
aponta uma questão ainda pouco explorada nas pesquisas com crianças: a ética. Ao
apresentar um conceito de criança como “[...] cidadã, sujeito criativo, indivíduo social,
produtora da cultura e da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na
cultura que lhe são contemporâneas”, a autora (2002, p.42-43) nega as decisões arbitrárias
do pesquisador/a em relação aos grupos de crianças, que aparecem em explicações no corpo
de seu relatório final da pesquisa.
O campo da Sociologia da Infância tem nos ensinado que as crianças são atores sociais
porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e
desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. Mesmo assim, ainda
necessitamos construir referenciais de análise que nos permitam conhecer estes atores
sociais que nos colocam inúmeros desafios, seja na vida privada ou na vida pública.
Apresentamos alguns textos que buscam fazer este movimento de refletir acerca de
outros tempos e espaços das infâncias. Espaços diversos e plurais em pleno século XXI, na
contemporaneidade para alguns, ou pós-modernidade para outros, mas fundamentalmente
um tempo diferente daquele em que a categoria infância surgia em plena modernidade,
como uma categoria social que pretendia se resguardar e se diferenciar dos adultos.
O dossiê se inicia com uma entrevista com o Professor Manuel Jacinto Sarmento da
Universidade do Minho em Portugal, realizada por Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda
Muller. Esta entrevista aborda temas relacionados à infância, tempos, espaços e educação
infantil. Mostra também a importância e aspectos significativos no desenvolvimento de
uma Sociologia da Infância e suas implicações para o campo educacional e para a pesquisa
nesta área, tanto na Europa quanto no Brasil.
O trabalho de Natália Fernandes Soares, “A investigação participativa no grupo social
da infância”, abre as discussões do dossiê. A autora explora a necessidade de reconsiderar a
participação das crianças na investigação de forma a desconstruir a sua persistente afonia e
invisibilidade. Explora as metodologias participativas como um recurso metodológico
importante, para contrariar a tendência metodológica centrada no adulto, atribuindo às
crianças o estatuto de sujeitos de conhecimento, e não de simples objetos.
“As crianças como prisioneiras do seu tempo-espaço: do reflexo da infância à reflexão
sobre as crianças”, de Catarina Almeida Tomás, discute a intrincada relação entre espaço e
tempo nos universos das crianças, principalmente no tensionamento com a conjuntura
econômica. A autora argumenta que os processos provocados pela globalização vêm
gerando uma erosão nas formas institucionais tradicionais, acarretando o surgimento de
movimentos sociais portadores de novos valores. É precisamente sobre estes “novos”
movimentos que a autora centra suas análises, especificamente, os movimentos de defesa
dos direitos das crianças e sobre a emergência e a reivindicação do papel que as crianças
desempenham no quotidiano como no desenvolvimento da própria democracia. Ao
considerar que não é possível tratar a questão da globalização sem considerar diferentes
perspectivas como a dimensão política, econômica e cultural, Tomáz salienta que o espaço-

11
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER

tempo social passa por uma profunda transformação, por uma mistura complexa de
processos, onde a globalização ocupa lugar de destaque.
Os textos de Maria Carmem Barbosa, Marie Jane Soares Carvalho e Juliana Brandão
Machado problematizam relações espaço-temporais vividas pelas crianças, em propostas
pedagógicas de escolas infantis e de ensino fundamental públicas e particulares. “A rotina
nas pedagogias da educação infantil”, de Maria Carmen Barbosa, discute o conceito de
rotinização a partir de uma investigação em instituições de Educação Infantil. As rotinas
operam com o objetivo de estruturar, organizar e sistematizar as ordens moral e formal –
acentuando seus esforços na ordem moral, já que segundo a autora, um dos principais
papéis da escolarização inicial é o de transformar as crianças em alunos. Para desempenhar
esse papel, as rotinas utilizam-se de rituais – cerimônias, castigos, imagem de condutas,
caráter, modos valorizados de ser e proceder – que relacionam os indivíduos com a ordem
social do grupo, criando um repertório de ações que são compartilhadas com todos e que dá
o sentimento de pertencimento e de coesão ao grupo. A rotina desempenha um papel
estruturante na construção da subjetividade de todos que estão submetidos a ela. Esses
rituais são geralmente decididos pelos adultos, mas também as crianças os estabelecem.
Marie Jane Soares Carvalho e Juliana Brandão Machado exploram no texto “O uso
discricionário do tempo: gênero e classe social” a compreensão sobre os usos do tempo de
crianças de classe popular e de classe média alta, na faixa etária entre 8 a 12 anos, em
especial a utilização do seu tempo fora do horário escolar regular. A intenção era mapear
todas as atividades realizadas pelas crianças quando não estão na sala de aula, para traçar
comparações quanto ao gênero (entre meninos e meninas) e quanto aos diferentes grupos
sociais (classe popular e classe média alta).
O texto de Ana Cristina Coll Delgado trata de uma modalidade de Educação Infantil
ainda pouco explorada nas pesquisas brasileiras, embora tendo surgido no Brasil
oficialmente no final da década de 70 em programas subvencionados em alguns Estados.
Em “Culturas infantis no cotidiano de uma creche domiciliar: tensões, ambigüidades e
negociações entre adultos e crianças”, a autora enfatiza a necessidade de conhecermos
estes espaços e seus modos de organização. O texto apresenta análises decorrentes de um
estudo de caso etnográfico realizado em uma creche domiciliar de um bairro popular de São
Gonçalo, Rio de Janeiro. O foco da investigação é a análise dos significados que assume a
atividade de tomar conta de crianças para uma trabalhadora e cinco mães, bem como a
organização desse trabalho no cotidiano. Há um destaque para as culturas infantis e três
dimensões da socialização, a partir de um referencial teórico que abrange estudos sobre
culturas infantis (sociologia da infância), gênero e famílias das camadas populares. Embora
não tenha encontrado uma proposta pedagógica formalizada no cotidiano, suas análises
evidenciam a existência de relações educativas entre adultos e crianças, diferentes do que
ocorre em outros espaços de educação da infância, como creches e pré-escolas.
Jader Janer Moreira Lopes traz um outro desafio que é pensar “A infância migrante”, a
partir das categorias lugar, identidade e educação. O autor procura compreender as crianças
que migram, que se deslocam no espaço geográfico por motivos diversos, quase sempre
acompanhando seus grupos. Lopes passou a questionar quais são os espaços de vivência da

12
Apresentação: Tempos e Espaços da Infância

infância pelas crianças migrantes, como também: Como essas estabelecem amarrações com
os espaços que deixam e chegam? Que concepção de espaço e lugar elaboram? Como esses
espaços entram em sua formação? O trabalho também conta com uma revisão histórica do
conceito de migração, o que resultou em uma incursão pelo passado brasileiro, abordando
as crianças e os jovens migrantes em cada período de nossa história.

A tentativa de sufocamento da infância aparece na geografia social. Nas instituições de


Educacao Infantil não são raras as vezes que a porta se mantém fechada, a pracinha nos
fundos, a falta de interação das crianças com o mundo externo. Temos evidenciado,
também, a privação de contato das crianças pequenas com as maiores. Interações entre
crianças de diferentes idades em um ambiente em que todas as crianças são concebidas
como seres de direitos só contribuem para experiências positivas. Também é observável
que os espaços urbanos evidenciam a supremacia do adulto saudável sobre crianças e
velhos/as, o que é percebido em vários elementos simbólicos: a roleta e a altura dos degraus
dos ônibus, a ausência de rebaixamento das sarjetas, as escadarias do metrô. Por outro lado,
é ingenuidade pensar que se podem controlar todas as manifestações das crianças. Não se
trata de romantizar capacidade das crianças em tolerar determinações dos/as adultos/as de
tempos e espaços tão penosos como o que temos observado. Trata-se, sim, de entender
como as crianças resistem e reinterpretam a realidade para garantir suas infâncias.
Que este dossiê possa nos ajudar a pensar nestas questões.

Notas

1
Grupos de crianças que se organizavam na rua para brincar.
2
Elias denomina habitus, um saber incorporado ou segunda natureza do homem civilizado, à estabilidade
dos mecanismos de auto-controle.
3
Segundo Pinto (1997, p.67-68), uma boa parte da produção recente que tem contribuído para a construção
da sociologia da infância é teórica e metodologicamente inspirada nas correntes da sociologia interpretativa,
de inspiração fenomenológica, como o interacionismo simbólico e a etnometodologia. Em um artigo sobre
a emergência de uma sociologia da infância no Brasil, Quinteiro (2002, p.138-139) comenta que os estudos
de Sirota (2001) e Montandon (2001) são um marco na releitura crítica do conceito de socialização e de
suas definições funcionalistas, na produção de língua francesa e de língua inglesa.

Referências

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Porto Alegre: Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2000.

13
ANA CRISTINA COLL DELGADO e FERNANDA MULLER

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Federal 9.394. Promulgada Em 20 De
Dezembro De 1996. Rio De Janeiro: Dp&A., 2001.
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Montandon, C. Sociologia da Infância: Balanço dos Trabalhos em Língua Inglesa. Cadernos de Pesquisa,
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Pinto, M. A Infância como Construção Social. In: Pinto, M.; Sarmento, M. J. (Coord.). As Crianças:
Contextos e Identidades. Braga: Centro de Estudos da Criança, Universidade Do Minho, 1997.
Pinto, M.; Sarmento, M. J. (coord.) As Crianças: Contextos e Identidades. Braga: Centro de Estudos da
Criança, Universidade do Minho, 1997.
Quinteiro, J. Sobre a emergência de uma Sociologia da Infância: Contribuições para o debate. Perspectiva,
Florianópolis, v.20, n.Especial, p.137-162, Jul/Dez, 2002.
Sirota, R. Emergência de uma Sociologia da Infância: Evolução do Objeto e do Olhar. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, n. 112, p.7-30, Março, 2001.

Correspondência

Ana Cristina Coll Delgado, Professora da Fundação Universidade do Rio Grande, Brasil.
E-mail: anacoll@uol.com.br

Fernanda Müller, Doutoranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.


E-mail fernanda.muller@gmail.com

Texto publicado em Currículo sem Fronteiras com autorização das autoras.

14
Pro-Posiçães, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004

Por uma cultura da infância:


metodologias de pesquisa com crianças
FARIA,Ana LúciaG.; DEMARTlNI,Zeila B. F.;PRADO,
Patrícia. (org.). Campinas: Autores Associados, 2002. 153p.
Anamaria Santana da Silva'

Dar visibilidade às crianças: suas falas, expressões, sentimentos, gostos, gestos.


Esse é um grande desafio que se tem colocado a professores e pesquisadores da
educação, preocupados em entender a infância: o que pensam as crianças a respeito
da escola, do trabalho, das brincadeiras, dos seus colegas, dos seus professores e
dos adultos em geral? Enfim, o que e como a criança vê, sente, pensa a respeito
desse mundo que já estava pronto quando ela chegou? E como interage com ele?
São questões que, a partir do momento em que são feitas, apontam para uma
concepção de criança capaz, que faz, pensa, conhece, atua, explora e modifica o que
está à sua volta. E revelam a necessidade de se dar voz (não necessariamente a fala)
para que esses seres de pouca idade manifestem as suas teorias a respeito da vida.
Este livro reúne artigos que falam de trabalhos que procuraram fazer isto:
elaborar metodologias de pesquisas que permitam conhecer e entender algumas
das múltiplas facetas que configuram a cultura da infância. Sobretudo, pretende
colaborar para a formação de pesquisadores envolvidos com a produção de
conhecimentos a respeito da criança, no sentido de elaborar propostas educativas
para as crianças, que as considerem como seres portadores e construtores de cultura.
Assim, o primeiro artigo discute diversas pesquisas, na área da sociologia, que
se propuseram a analisar o tema infância a partir de relatos orais. Demartini nos
fala a respeito da diferença entre os relatossobreas crianças e sobreas infâncias e os
relatosde crianças.Uma coisa é ouvir os adultos ou jovens que falam sobre a infância
e outra bem diferente é dar voz às próprias crianças. No entanto, as duas formas
de se pesquisar sobre a infância são importantes, pois permitem o conhecimento
sobre as diferentes maneiras de se sentir e pensar a infância, sejam as crianças que
ainda estão vivendo a infância, seja a partir visão dos adultos, mediada pelas lem-

Professorado Departamento de Educação- UniversidadeFederalde Mato Grosso do Sul -


Campus de Corumbá. anamariasantana@uol.com.br.

233
Pro-Posições, v. 15. n. 2 (44) - maio/ago. 2004

e
branças pela memória. Assim, Demartini ressalata a importância dos relatos
orais para se conhecer e aprofundar conhecimentos a respeito das crianças e das
infâncias, de forma plural, de épocas, lugares, e realidades distintas.
O segundo estudo apresentado no livro é parte do trabalho de doutorado de
]ucirema Quinteiro, que discute as relações entre infância e educação, buscando
apontar para um campo de estudos em construção. A autora, ao fazer um
levantamento das pesquisas que, na área da sociologia estudam a criança e a infância,
nos fala da emergência de uma sociologia da infância na Europa, das contribuições
teóricas acerca da infância no Brasil, numa perspectiva sociológica, e as implicações
metodológicas sobre a infância na escola. O artigo de Quinteiro é uma contribuição
fundamental, pois aponta para a elaboração de uma concepção de criança e de
infância diferente da perspectiva psicológica tão predominante nos estudos da
pedagogia, atualmente bastante criticada.
Galzerani, no trabalho seguinte, nos convida para uma viagem pelas produções
textuais do pensador Walter Benjamin. O texto escolhido é Infância em Berlim,
no qual Benjamin escreve sobre passagens de sua infância, por volta de 1900,
tentando apresentar as impressões que tinha do mundo adulto e como apreendia
essa realidade. A partir dessesescritos de Benjamim, a autora reflete sobre o conceito
benjaminiano de modernidade capitalista, sobre as imagens benjaminianas de
infância e ainda apresenta as contribuições de Benjamim sobre o conceito de sujeito.
E, bem ao estilo benjaminiano, a autora termina o texto, mas não o conclui, ela
apenas

(.,,) puxa alguns fios simbólicos relativos às imagens de infância; fios esses que não
pretendem ser a palavra final, a palavra verdadeira sobre essa questão; fios ou teias
que pretendam deixar a problemática, ora focalizada, ora em aberto. Como narrativa
capaz de ser continuada por outros sujeitos (p.64).

O quarto artigo apresenta uma discussão a respeito do desenho infantil e da


oralidade como instrumentos de pesquisa com crianças pequenas. A autora afirma
que os desenhos podem e devem ser vistos

(".) como documentos que permitem aos pesquisadores saber mais acerca desses
sujeitos e não somente isso, possibilitam-nos conhecer mais suas percepções da
realidade por eles vivida, não sendo percebidos como textos escritos, mas sim como
textos visuais que podem ser olhados, sentidos, lidos (p.76).

Gobbi nos fala de três experiências em que as crianças foram chamadas a


expressar suas idéias através do desenho, quais sejam: nos anos 30, na gestão de
Mário de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São
Paulo; nos anos 80, durante a gestão de Paulo Freire na Secretaria Municipal de
São Paulo; e durante a pesquisa de mestrado da própria autora. A autora afirma

234
Pro-Posiçães, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004

que, nessas três experiências, o desenho foi utilizado não numa perspectiva
psicológica, mas sim para conhecer e entender os aspectos socioculturais das
cnanças.
A brincadeira como manifestação cultural das crianças pequenininhas é o tema
do quinto artigo, escrito por Patrícia Prado, que remete à sua pesquisa de mestrado,
onde observou o cotidiano de uma creche, da chegada à saída das crianças,
procurando conhecer o seu dia-a-dia, além de identificar as atividades desenvolvidas
e suas brincadeiras, em especial. O artigo é muito interessante, pois a autora afirma
que, partindo da sua formação na área da psicologia, que possibilitou experiências
diversas com crianças e lhe suscitou inúmeros questionamentos, ela busca no seu
trabalho de mestrado outros caminhos para conhecer e analisar as brincadeiras
infantis. Assim,

numa condução metodológica definida sob os parâmetros da antropologia e por


meio do estudo do tipo etnográfico, busquei compreender essese outros fenômenos
educativos a partir da cultura em que a creche passa a ser concebida, portanto
como espaço de cultura e educação infantil (p.94).

No artigo de Magali Reis, o tema é entrevista com jovens falando da infância,


mais especificamente das lembranças dos tempos em que freqüentaram a creche.
No texto, a autora fala de um dos instrumentos de pesquisa que utilizou para a
realização de sua pesquisa de mestrado, na qual analisou a experiência da primeira
creche para filhos de servidores da UNICAMP. Reis pretendia investigar o que
essesjovens (ex-usuários da creche) pensam sobre o espaço coletivo em que perma-
neceram durante um certo tempo de suas vidas. Sendo assim, a pesquisadora
convidou um grupo de 10 jovens com 14 e 15 anos para conversar sobre o tema.
E, com o auxílio de fotos, da planta da creche e de alguns trabalhinhos realizados
pelas crianças na creche, as lembranças vieram à tona: os jovens falaram dos adultos
que deles cuidavam, dos afetos, das relações, dos confrontos, do espaço, das
brincadeiras, das proibições, das transgressões. Na avaliação das crianças e da autora,
a atividade foi muito positiva: para as crianças, porque puderam relembrar o passado
e expor suas opiniões sobre os fatos e, para a pesquisadora, porque foi um instru-
mento importante para reunir informações para sua pesquisa.
O último artigo discute as opções metodológicas de Maurício Roberto da Silva,
ao realizar sua pesquisa de doutorado sobre as condições de vida de crianças
trabalhadoras nos canaviais da Zona da Mata de Pernambuco e o espaço que o
lúdico ocupa na vida dessas crianças. No texto, Silva apresenta as suas ações de
pesquisa de campo, as quais intitula Eventos-Campos:atividades de que participou
e que aconteceram tanto no lócus da pesquisa (os canaviais da Zona da Mata)
como fora desse contexto (mas que envolviam a problemática dos meninos
canavieiros, tais como os Tribunais Nacionais, Internacionais do México e de São

235
Pro-Posições, v. 15, n. 2 (44) - maio/ago. 2004

Paulo e o Encontro da Contag). O autor destaca que foi a partir da participação,


observação e intervenção nessas atividades que se deu o processo de construção da
investigação e das categorias de análise da realidade.
Assim, os seis artigos que compõem esse livro são leituras indispensáveis para o
aprofundamento da reflexão e dos estudos sobre a diversidade de infâncias e crianças
que se apresentam para nós, adultos, "criançólogos e criancistas", professores,
pesquisadores e militantes, profissionais que procuram enfoques teórico-
metodológicos que indiquem caminhos, métodos, procedimentos e modos de
abordar a realidade das crianças brasileiras para conhecê-Ias melhor e, sobretudo,
para buscar caminhos que possam garantir, a todas elas, o direito à infância.

236

.
Sarmento, Manuel Jacinto (2004). “As Culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª
modernidade”, in M-J. Sarmento, e A. B. Cerisara, (Coord.), Crianças e Miúdos.
Perspectivas sociopedagógicas sobre infância e educação. Porto. Asa. (9-34)

AS CULTURAS DA INFÂNCIA
NAS ENCRUZILHADAS DA 2ª MODERNIDADE

Manuel Jacinto Sarmento


(Instituto de Estudos da Criança
Universidade do Minho)

Os tempos contemporâneos incluem, nas diferentes mudanças sociais que os


caracterizam, a reinstitucionalização da infância. As ideias e representações
sociais sobre as crianças, bem como as suas condições de existência, estão a
sofrer transformações significativas, em homologia com as mudanças que
ocorrem na estruturação do espaço-tempo das vidas quotidianas, na estrutura
familiar, na escola, nos mass-media, e no espaço público. Contrariamente à
proclamada “morte da infância”, o que a contemporaneidade tem aportado é a
pluralização dos modos de ser criança, a heterogeneização da infância enquanto
categoria social geracional e o investimento das crianças com novos papeis e
estatutos sociais.
O processo de reinstitucionalização da infância exprime-se e revela-se nos
planos estrutural e simbólico. Deste modo, as culturas da infância são também
objecto de pluralização e de diferenciação. No entanto, os traços distintivos das
culturas da infância permanecem na sua gramática própria. A análise da
morfologia, da sintaxe e da semântica das culturas da infância na 2º
modernidade constitui um objecto central na compreensão das mudanças
estruturais contemporâneas. Conhecer as “nossas” crianças é decisivo para a
revelação da sociedade, como um todo, nas suas contradições e complexidade.
Mas é também a condição necessária para a construção de políticas integradas
para a infância, capazes de reforçar e garantir os direitos das crianças e a sua
inserção plena na cidadania activa.

1
Há um lugar, um pequeno lugar, tão pequeno como uma casinha de vidro na
floresta em cima do alfinete, disse a criança. É lá que eu guardei a minha pena da cara
de todos.
Esta criança vai deixar de sorrir, disse o Medidor de Crianças.
(...)
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como o ovo azul do bicho da seda,
disse a criança. É lá que eu guardei o meu amigo.
Esta criança vai deixar de falar, disse o Medidor de Crianças.
(...)
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como a pedra de açúcar que a
mosca leva para os seus filhinhos partirem e fazerem espelhos, disse a criança. É lá que
eu guardei a minha mãe.
Esta criança morreu, disse o Medidor de Crianças.
Há um lugar, um pequeno lugar tão pequeno como a bolha de sumo dentro do
gomo da tangerina, disse a criança. É lá que eu me guardei e comi-o e passou para o
dentro do dentro do mais pequeno dos buracos do meu coração.
Esta criança acabou, disse o Medidor de Crianças. É preciso fazer outra.

(Maria Velho da Costa, O Lugar Comum, Desescrita, 1973)

Que lugar é esse que a criança ocupa, a ponto de causar a perturbação do “medidor de
crianças”, de modo tal que ele decreta o fim da infância?

Este texto ocupa-se dessa geografia, da procura do lugar que a contemporaneidade


reservou para a criança, e, sobretudo, do lugar que a criança, todas as crianças,
constrói(em) na sua interacção mútua, na edificação dos seus mundos de vida e das suas
culturas.

Ao contrário de todos os medidores de crianças, não nos preocupamos em decretar a


inconformidade das crianças contemporâneas com a norma, seja ela qual fôr. Pelo
contrário, defendemos que a diferença radical da infância consiste precisamente em
deslocar-se da norma axiológica e gnoseológica constituída pelos adultos, o que faz com
que cada criança se insira na sociedade não como um ser estranho, mas como um actor
social portador da novidade que é inerente à sua pertença à geração que dá continuidade

2
e faz renascer o mundo. As crianças, todas as crianças, transportam o peso da sociedade
que os adultos lhes legam, mas fazendo-o com a leveza da renovação e o sentido de que
tudo é de novo possível. É por isso que o lugar da infância é um entre-lugar (Bhabha,
1998) o espaço intersticial entre dois modos – o que é consignado pelos adultos e o que
é reiventado nos mundos de vida das crianças – e entre dois tempos – o passado e o
futuro. É um lugar, um entre-lugar, socialmente construído, mas existencialmente
renovado pela acção colectiva das crianças. Mas um lugar, um entre-lugar, pre-disposto
nas suas possibilidades e constrangimentos pela História. É, por isso, um lugar na
História. Convém por isso, marcar o ponto geodésico da história deste lugar.

A institucionalização moderna da Infância

A ideia de infância é uma ideia moderna. Remetidas para o limbo das existências
meramente potenciais, durante grande parte da idade da Idade Média, as crianças foram
considerados como meros seres biológicos, sem estatuto social nem autonomia
existencial. Apêndices do gineceu, pertenciam ao universo feminino, junto de quem
permaneciam, até terem capacidade de trabalho, de participação na guerra ou de
reprodução, isto é, até serem rapidamente integrados na adultez precoce. Daí que,
paradoxalmente, apesar de ter havido sempre crianças, seres biológicos de geração
jovem, nem sempre houve infância, categoria social de estatuto próprio. A consciência
social da existência da infância– como estabeleceu a historiografia da infância, desde P.
Ariès (Ariés, 1973; Becchi, & Julia, 1998)– é, com efeito, algo que começou a emergir
com o Renascimento, para se autonomizar a partir do século das luzes. Se, na arte, as
meninas de Velazquez vêm ocupar o lugar vazio que essas crianças de forma adulta da
aescultura gótica evidenciavam na gritante ausência de traços de juvenilidade, na
sociedade mais geral, a construção histórica da infância foi o resultado de um processo
complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação dos seus
quotidianos e mundos de vida e, especialmente, de constituição de organizações sociais
para as crianças.

Com efeito, a institucionalização da infância no início da modernidade realizou-se na


conjugação de vários factores.

3
O primeiro, e decisivo, foi a criação de instâncias públicas de socialização,
especialmente através da institucionalização da escola pública e da sua expansão como
escola de massas. Com efeito, a escola está associada à construção social da infância,
dado que, a sua constituição pelo Estado de meados do século XVIII1 institui, pela
primeira vez, a libertação das actividades do trabalho produtivo para um sector do grupo
geracional mais novo (inicialmente constituído só por rapazes da classe média urbana),
sendo progressivamente alargado a toda a geração, com a proclamação da escolaridade
obrigatória. Deu-se, assim, a “institucionalização educativa da infância” (Ramirez,
1991), pela separação formal e protegida pelo Estado das crianças face aos adultos,
durante uma parte do dia, e pelo cometimento correspondente de exigências e deveres
de aprendizagem, que são também modos de inculcação de uma epistemologia (a
inerente à cultura escolar), de um saber homogeneizado (o da ciência normal), o de uma
ética (a do esforço) e a de uma disciplina mental e corporal (Foucault, 1993).

Concomitantemente, a família, que outrora votara a criança ao estatuto subalterno da


companhia das aias e criadas, reconstitui-se através do seu centramento na prestação de
cuidados de protecção e estímulo ao desenvolvimento da criança, que se torna, por esse
efeito, o núcleo de convergência das relações afectivas no seio familiar, das classes
médias e o destinatário dos projectos de mobilidade social ascendente, pelo
investimento na formação escolar, por parte das classes populares.

Ao mesmo tempo, é dado lugar à formação de um conjunto de saberes sobre a criança,


constituída como objecto de conhecimento e alvo de um conjunto de prescrições
atinentes ao desenvolvimento dentro do que se convenciona como os padrões da
“normalidade”. Os saberes periciais sobre as crianças constituem-se como balizadores
da inclusão e da exclusão na “normalidade” e exprimem-se em procedimentos de
inculcação comportamental, disciplinar e normativa. Esses saberes originaram novas
disciplinas constitutivas do campo da reflexividade social sobre a criança, com
influência poderosa nos cuidados familiares e nas práticas técnicas nas instituições e
organizações onde estão crianças. Destacam-se nesses saberes a pediatria, a psicologia
do desenvolvimento e a pedagogia (Rocha e Ferreira, 1994 e Goldson, 1997)

1
Instituida primordialmente na Prússia e no Portugal do Marquês do Pombal, em meados do século
XVIII, a escola pública em 1870 tinha sido proclamada em 47 países, sendo actualmente inerente à
própria constituição do Estado das sociedades modernas (cf. Ramirez e Boli, 1982).

4
Esses saberes desenvolvem-se paradigmaticamente em torno de duas ideias conflituais
da infância, que acompanharam sempre as representações sociais ao longo dos últimos
250 anos, originando outras tantas orientações e abordagens interpretativas do mundo
das crianças e das formas de prescrição comportamental e pedagógica. Referimo-nos às
concepções antagónicas rousseaunianas e montaigneanas sobre a criança, ao
construtivismo e ao comportamentalismo, às pedagogias centradas no prazer de
aprender e às pedagogias centradas no dever do esforço, às pulsões libertadores e aos
estímulos controladores, em suma, às ideias da criança-anjo, natural, inocente e bela e à
criança-demónio, rebelde, caprichosa e disparatada. Esta dicotomia, que actualiza as
duas ideias da infância identificadas por Ariès (1973 e 1986) no dealbar da modernidade
(a criança-bibelot e a criança-irracional) vem sendo, com actualizações sucessivas,
incorporada no imaginário colectivo e é a fonte dupla donde emanam as representações
sociais modernas sobre as crianças.

Finalmente, a modernidade operou também a elaboração de um conjunto de


procedimentos configuradores da administração simbólica da infância. Referimo-nos
aqui a um certo número de normas, atitudes procedimentais e prescrições nem sempre
tomadas expressamente por escrito ou formalizadas, mas que condicionam e
constrangem a vida das crianças na sociedade. Referimo-nos a atitudes esperáveis sobre
a frequência ou não frequência de certos lugares por crianças, tipo de alimentação
promovido e proibido, horas de admissibilidade ou de recusa de participação na vida
colectiva. Mas referimo-nos também a uma definição de áreas de reserva para os
adultos: a produção e o consumo; o espaço-cultural erudito; a acção cívico-política.
Referimo-nos ainda à configuração de “um ofício de criança” (Chamboredon e Prévot,
1982; Sirota, 11994; Sarmento, 2000), intimamente ligado à actividade escolar, mas
claramente enunciado nos seus traços comportamentais, como sendo inerentes ao
desempenho activo pelas crianças de papéis sociais imputados.

Estes factores – a criação da escola, o recentramento do núcleo familiar no cuidado dos


filhos, a produção de disciplinas e saberes periciais, a promoção da administração
simbólica da infância – radicalizaram-se no final do século XX, a ponto de potenciarem
criticamente todos os seus efeitos. Assim, a escola expandiu-se e universalizou-se, as
famílias reordenaram os seus dispositivos de apoio e controlo infantil, os saberes
disciplinares sobre a criança adquiriram autonomia e desenvolvem-se
exponencialmente, e a administração simbólica adquiriu novos instrumentos

5
reguladores com a Convenção dos Direitos da Criança e com normas de agências
internacionais (como a UNICEF, a OIT, a OMS) configuradoras de uma infância global,
no plano normativo.

Não obstante, importa sublinhar que este esforço normalizador e homogeneizador, se


tem efectivas consequências na criação de uma infância global (Sarmento, 2001b), não
anula – antes potencia – desigualdades inerentes à condição social, ao género, à etnia,
ao local de nascimento e residência e ao subgrupo etário a que cada criança pertence. Há
várias infâncias dentro da infância global, e a desigualdade é o outro lado da condição
social da infância contemporânea. Aliás, esta radicalização da modernidade - esta 2ª
modernidade (U. Beck, 1999) – acentua essas desigualdades, no quadro do efeito
homogeneizador do processo de globalização. É, por isso, necessário, considerar esses
efeitos.

Reinstitucionalização na 2º modernidade

A 2ª modernidade caracteriza-se por um conjunto associado e complexo de rupturas


sociais, nomeadamente a substituição de uma economia predominantemente industrial
por uma economia de serviços, a criação de dispositivos de mercado à escala universal,
a deslocalização de empresas, a ruptura do sistema de equilíbrio de terror entre dois
blocos, com a crise dos países socialistas do Leste europeu e o fim dos regimes
comunistas, a afirmação dos EUA como única potência hegemónica, a conclusão do
processo de descolonização dos países africanos, a emergência de uma situação
ambiental crítica, as rupturas no mercado de trabalho pela subida das taxas de
desemprego, a crise de subsistência dos Estados-Providência, a crescente presença e
reclamação na cena internacional de movimentos sociais e protagonistas divergentes das
instâncias hegemónicas, a afirmação radical de culturas não ocidentais, nomeadamente
de inspiração religiosa, etc.

Estas rupturas são de âmbito, sentido e impacto desigual, mas todos contribuem para a
instabilização de algumas ideias fundadoras do espírito da modernidade: a crença na
razão, o sentido do progresso, a hegemonia dos valores ocidentais, a ideia do trabalho
como base social.

6
O que pretendo enfatizar é que estas mudanças, que conjugam a plena expansão dos
factores modernos de institucionalização da infância com a crise das instâncias de
legitimação e com as narrativas que as justificam, têm sérias implicações no estatuto
social da infância e nos modos, diversos e plurais, das condições actuais de vida das
crianças. As instâncias através das quais as crianças têm sido socialmente inseridas na
sociedade percorrem os seus trajectos de crise e são redefinidos procedimentos de
administração simbólica da infância. Há, deste modo, um processo de
reinstitucionalização, isto é, o lugar social imputado às crianças não é já idêntico ao de
outrora.

Um aspecto nuclear na reinstitucionalização da infância é a reentrada (ou, pelo menos, a


visibilização de algo que nunca deixou de acontecer, mas estava escondido) da infância
na esfera económica. As crianças participam na economia pelo lado da produção,
especialmente com o incremento do trabalho infantil nos países periféricos e
semiperiféricos, por efeito da deslocalização da indústria manufactureira com
incorporação de reduzida componente tecnológica e em diversas áreas dos países
centrais, no que se convencionou designar por “piores formas de trabalho infantil”, (cf.
OIT, 2002). Mas também entraram pelo lado do marketing, com a utilização das
crianças na promoção de produtos da moda ou na publicidade e ainda pelo lado do
consumo, como segmento específico, extenso e incremencialmente importante de um
mercado de produtos para a criança. As crianças “contam” na economia e esse é um
lado paradoxal do processo de reinstitucionalização, dado que, como vimos, a
modernidade caracterizou-se progressivamente pela exclusão das crianças do espaço
estrutural da produção.

A escola, por seu turno, de suposta instância de socialização para a coesão social,
visibiliza-se como o palco das trocas e disputas culturais, que sendo inerentes a uma
sociedade cosmopolita e de circulação facilitada das populações, não deixam por vezes
de ser violentas. A multiculturalidade contemporânea não se faz sem a disputa das
instâncias que procuram estabilizar princípios de justificação educacional. Sobretudo, a
escola da 2ª modernidade, de massas, heterogénea e multicultural, radicalizou o choque
cultural entre a cultura escolar e as diversas culturas familiares de origem dos alunos de
proveniência social e étnica diferenciadas cf. Montadon, 1997). Essa radicalização
exprime-se na “turbulência” dos contextos organizacionais de acção educativa e em
indicadores de insucesso escolar e de disrupção comportamental.

7
Neste contexto, a crença nas ”virtudes” do mercado educacional para confrontar a crise
nas escolas, através da liberalização e empresarialização da acção educativa, marcha a
par das correntes neo-conservadores que preconizam o “regresso” a uma concepção de
escola autoritária, selectiva e segregadora. Sendo dominantes estas correntes na
edificação das políticas educativas, emergem, em contra-corrente, as ideias da “criança
ao centro”, da “educação para a cidadadania” e da “participação educativa” como
referenciais da gestão da crise educacional, para a lado da edificação das escolas como
mundos de vida das crianças. Não obstante, no mainstream das correntes político-
educativas, esses conceitos ganham conteúdos semânticos diversos e pluralizados,
podendo (crescentemente) “cidadania” significar “disciplinação social” e “autonomia”
subordinação aos programas periciais das ciências legitimadoras dos novos modos de
administração simbólica (Popkewitz, 2000 e Sarmento, 2001a). O que resulta, em
definitivo, destas tensões no interior das instituições educativas é a deslocação da escola
do estatuto de instância de integração social, a fragilização da sua missão institucional –
tantas vezes testemunhada na inquietação de ser professor hoje – e a entrada num
“universo de justificação múltipla” (Derouet, 1992) que faz com que as escolas hoje se
constituam como um palco decisivo da luta político-pedagógica por dar um sentido à
actividade educativa e por fazer dela um instrumento do devir social.

A família, por seu turno, desenvolve tensões reinstitucionalizadoras em torno de


transformações estruturais crescentes. Essas transformações exprimem-se no aumento
da monoparentalidade, na precocidade da maternidade – especialmente em países como
o Brasil, vários países do hemisfério sul, e, na Europa, Inglaterra e Portugal – no
aumento das famílias reestruturadas, no incremento do número de lares sem crianças,
especialmente nos países do Norte e Centro da Europa, e ainda no aumento do número
de crianças investidas de funções reguladoras do espaço doméstico. As transformações
na estrutura familiar põem a descoberto o carácter mítico de algumas teses do senso-
comum que vêem no núcleo familiar o espaço aproblemático e “natural” de protecção e
promoção do desenvolvimento das crianças. Com efeito, este é um lugar problemático e
crítico, onde tanto se encontra o afecto como a disfuncionalidade, o acolhimento como o
mau-trato (Almeida, 2000; Seabra, 2000). Deste modo, a transformação familiar
convida a que a família seja pensada como instituição social, sendo como tal construída
e estruturada, e não como uma entidade natural, imune ao pathos da vida social.

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Importa também considerar a variação seminal que consiste na troca de papeis
geracionais, com a crescente ocupação do espaço físico doméstico pelos adultos
(nomeadamente os desempregados, reformados, com licenças parciais de trabalho ou no
âmbito do trabalho remoto) e a saída das crianças para as múltiplas agências de
ocupação e regulação do tempo (ludotecas, ateliês de tempos livres, actividades de
formação não escolar, do tipo de cursos de inglês, cursos de informática, desporto semi-
federado, etc.). Esta mudança de papéis e lugares – as crianças fora de casa, onde
regressam muitos adultos – sendo embora ainda tendencial e progressiva, vai de par
com a crescente ocupação das crianças em instituições controladas pelos adultos, sem
tempo para procurar descobrir os seus limites, nem espaço para conhecer o sabor da
liberdade. A vida institucionalizada das crianças – a “institucionalização”, como
frequentemente se afirma, num sentido distinto do que aqui estamos a utilizar –
constitui-se como uma forma decisiva para a compreensão da infância na 2ª
modernidade, pela alteração que opera na centralidade do espaço doméstico.

Questão central é, também, a da constituição do mercado de produtos culturais para a


infância (programas video, de televisão, cinema, desenhos animados, jogos
informáticos, jogos de construção, literatura infanto-juvenil, parques temáticos, etc.).
Estes produtos acompanham o incremento comercial de outros produtos de consumo
para as crianças (moda infantil, alimentação de fast-food, guloseimas, brinquedos,
serviços recreativos, material escolar, mobiliário infantil, etc.) a ponto de constituirem
um dos segmentos de mercado de maior difusão mundial, em torno do qual se
estabelecem algumas das mais difundidas cadeias de franchising, constituindo, por
vezes, alguns recordes de investimento económico (por exemplo: Eurodisney) .Este
facto contribui poderosamente para a globalização da infância. Dir-se-ia mesmo que,
aparentemente, há uma só infância no espaço mundial, com todas as crianças
partilhando os mesmos gostos: coleccionam cartas Pokemon, vêem desenhos animados
dos estúdios japoneses, brincam nas consolas de jogos da Mattel, lêem os livros do
Harry Potter, calçam ténis da Nike e vestem blusas da Benetton 0 a 12 ou da Chicco,
alimentam-se do Happy Meal da MacDonalds e vêem pelo Natal as superproduções dos
Estúdios Disney(cf. Steinberg e Kincholoe, 1997; Schepen-Hughes e Sargent, 1998).

Há a considerar, todavia, a reinterpretação activa pelas crianças desses produtos


culturais e o facto dessas reinterpretações se fixarem numa base local, cruzando culturas
societais globalizadas, com culturas comunitárias e culturas de pares. As crianças de

9
Braga, do Rio de Janeiro, de Dili ou de Los Angeles têm acesso (ainda que desigual)
aos mesmos produtos culturais, mas não o fazem pondo de lado os processos simbólicos
e culturais que constróem a sociabilidade de forma distinta em cada uma dessas cidades
e, sobretudo, no uso desses produtos, põem em acção características próprias inerentes à
sua condição infantil.

Afinal, ainda há um lugar para a infância...

Chegados aqui, importa interrogar-nos sobre as possibilidades da autonomia da


infância, considerando todas as mudanças e transformações que ocorrem
contemporâneamente.

Reformulando a questão de outro modo: há possibilidade de considerar as crianças


como sujeito social nas condições propostas pela 2ª modernidade? Não será que
regressamos àquela situação da pré-modernidade em que as crianças tinham realidade
empírica, mas não autonomia, nem como sujeitos de acção, nem como categoria
geracional com reconhecimento e direitos próprios?

Com efeito, nas condições plurais da reinstitucionalização, no processo de


ressemantização e de recuperação para formas de controlo e dominação a que estão
subordinados os seus mundos de vida, as crianças parecem acima de tudo assujeitadas e
não sujeitos. Acresce o facto de que, de acordo com a UNICEF e com ONG’s como a
Save the Children, a infância é o grupo geracional que, nas condições actuais da
globalização hegemónica, é mais (e mais progressivamente) afectado pelas condições de
desigualdade, pela pobreza, pela fome, pelas guerras, pelos cataclismos naturais e pela
SIDA e outras doenças.

Não obstante – contrariamente aos propagandeadores da “morte da infância” (Postman,


1983)2 – consideramos que a 2ª modernidade radicalizou as condições em que vive a
infância moderna, mas não a dissolveu na cultura e no mundo dos adultos, nem tão
pouco lhe retirou a identidade plural nem a autonomia de acção que nos permite falar de
crianças como actores sociais. A infância está em processo de mudança, mas mantém-se
como categoria social, com características próprias.

2
Para uma crìtica a Postman, cf., e.g., Buchingham, 2000)

10
A radicalização a que nos referimos atrás exponencia as duas imagens da infância que
emergiram na modernidade. Isso explica a extraordinária complexidade dos paradoxos
em que exprime a condição social da infância (Qvortrup, 1991 e 1995). Entre a criança
desejada, que se quer livre, amada, espontânea, sonhadora e depositária do futuro e da
esperança e a criança rejeitada, abandonada ou enviada para as instituições de custódia,
perturbadora do quotidiano dos adultos, comprada e seduzida, mas, ao mesmo tempo,
temida na turbulência que leva à escola ou à família; entre a criança romântica e a
criança da crise social; entre a criança protegida e a criança violentada; entre a criança
vítima e a criança vitimadora; entre as crianças de Birmingham e as crianças de
Liverpool; entre uns e os outros, afinal, há um universo inteiro de diferenças, sem que,
todavia, não se dissipe nessa diferença uma marca distintiva essencial: é sempre de
crianças que estamos a falar e é irredutível ao mundo dos adultos a sua identidade.

Essa identidade da infância reside, primordialmente, no seu estatuto social face aos
direitos sociais – as crianças não têm capacidade jurídica de decisão autónoma,
necessitam de protecção e têm uma responsabilidade social em parte depositada em
quem exerce o poder paternal. Depois, essa identidade, reside ainda nos factores sociais
que impendem sobre as crianças e que condicionam profundamente as suas formas de
existência: há estatisticamente mais crianças pobres que outro qualquer grupo
geracional; a compulsividade de frequência de uma instituição escolar – a escola –
apenas obriga as crianças; a imensa maioria das crianças não tem rendimentos
económicos próprios. Essa identidade é também construída e continuamente investida
pelo sistema económico que destina uma parte dos seus produtos às crianças, cuidando
de autonomizar bem esse segmento de mercado, nas várias áreas em que ele se exprime.
A identidade das crianças é também a identidade cultural, isto é a capacidade das
crianças constituírem culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos.

A gramática das culturas da infância

A questão fundamental no estudo das culturas da infância é a interpretação da sua


autonomia, relativamente aos adultos. Com efeito, há muito que se vem estabelecendo a
ideia de que as crianças realizam processos de significação e estabelecem modos de
monitorização da acção que são específicos e genuínos. O “mundo da fantasia” das

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crianças constitui, na expressão vulgar do adultos, o reconhecimento, no senso comum,
dos modos de construção de significado pelas crianças. Do lado das ciências que se
dedicam ao estudo das crianças – especialmente a Psicologia e as Ciências da Educação
- o estudo das práticas culturais da infância, nomeadamente no âmbito das actividades
escolares ou no contexto comunitário, tem originado um número significativo de
trabalhos de investigação. Há, igualmente, testemunhos históricos e arqueológicos que
registam a presença de artefactos e outros elementos simbólicos utilizados ou
construídos por crianças em numerosas civilizações desde a Antiguidade (Derevenski,
2000). Não obstante, a autonomia cultural das crianças continua sendo um tema envolto
em alguma controvérsia (cf. Iturra, 1997; Sarmento e Pinto, 1997; Frazão-Moreira,
2000). O debate não se centra no facto, reconhecido, das crianças produzirem
significações autónomas, mas em saber se essas significações se estruturam e
consolidam em sistemas simbólicos relativamente padronizados, ainda que dinâmicos e
heterogéneos, isto é, em culturas.

Estudos sociológicos da infância têm sustentado a autonomia das formas culturais da


infância (Denzin, 1977; Corsaro,1997; James, Jenks e Prout, 1998; Prout, 2000). Essas
formas culturais radicam e desenvolvem-se em modos específicos de comunicação
intrageracional e intergeracional. Sem prejuízo da análise dos factores psicológicos e
das dimensões cognitivas e desenvolvimentais que presidem à formação do pensamento
das crianças, as culturas da infância possuem, antes de mais, dimensões relacionais,
constituem-se nas interacções de pares e das crianças com os adultos, estruturando-se
nessa relações formas e conteúdos representacionais distintos.

As culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no


de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas
especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo. As
crianças portuguesas pertencem à cultura (heterogénea e complexa) portuguesa mas
contribuem activamente para a construção permanente das culturas da infância. Nesse
sentido há uma “universalidade” das culturas infantis que ultrapassa consideravelmente
os limites da inserção cultural local de cada criança. Isso decorre do facto das crianças
construirem nas suas interacções “ordens sociais instituintes” (Ferreira, 2002), que
regem as relações de conflito e de cooperação, e que actualizam, de modo próprio, as
posições sociais, de género, de etnia e de cultura que cada criança integra.

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Torna-se então necessário reconhecer os traços distintivos das culturas da infância. A
gramática das culturas da infância exprime-se em várias dimensões:

• Semântica – ou seja, a construção de significados autónomos e, a elaboração de


processos de referenciação e significação próprios; por exemplo, o “era uma vez” de
uma criança não tem uma denotação histórica e temporal, significando o passado,
mas remete para uma temporalidade recursiva, continuamente convocada ao
presente, de tal modo que “era uma vez” é sempre a vez em que é enunciada;

• Sintaxe – ou seja, a articulação dos elementos constitutivos da representação, que


não se subordinam aos princípios da lógica formal, mas sustentam a possibilidade da
contradição do princípio da identidade; o “então eu era o herói” da criança –
cantado por Chico Buarque da Holanda – exprime bem esta ideia de um ser que se
outra no que vê e projecta e, por isso, articula na ordem do discurso o real e o
imaginário, o ser e o não ser, o estar e o devir, homologizados na sua dupla face,

• Morfologia – ou seja, a especificidade das formas que assumem os elementos


constitutivos das culturas da infância: os jogos, os brinquedos, os rituais, mas
também os gestos e as palavras; o berlinde do jogo da criança não é apenas um
objecto esférico, mas é a peça de jogo, a preciosa moeda de troca, o troféu que se
obtém ou o artefacto mágico que refracta a luz.

Falei de gramática, mas importa destacar que as culturas da infância não se reduzem a
elementos linguísticos, antes integram elementos materiais, ritos, artefactos, disposições
cerimoniais e também normas e valores (Mollo-Bouvier, 1998).

A inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é uma
tarefa teórica e epistemológica que se encontra em boa medida por realizar. Constitui,
deste modo, um desafio científico a que se não podem furtar todos quantos se dedicam
aos estudos das criança. Esse esforço científico deve, a meu ver, seguir os 4 eixos
estruturadores das culturas da infância: a interactividade, a ludicidade, a fantasia do real
e a reiteração.

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A interactividade

O mundo da criança é muito heterogéneo, ela está em contacto com várias realidades
diferentes, das quais vai apreendendo valores e estratégias que contribuem para a
formação da sua identidade pessoal e social. Para isso contribuem a sua família, as
relações escolares, as relações de pares, as relações comunitárias e as actividades sociais
que desempenham, seja na escola ou na participação de tarefas familiares. Esta
aprendizagem é eminentemente interactiva; antes de tudo o mais, as crianças aprendem
com as outras crianças, nos espaços de partilha comum. Estabelecem-se dessa forma as
culturas de pares, isto é. “um conjunto de actividades ou rotinas, artefactos, valores e
preocupações que as crianças produzem e partilham na interacção com os seus pares.”
(Corsaro, 1997: 114).

A cultura de pares permite às crianças apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as


rodeia. A convivência com os seus pares, através da realização de actividades e rotinas,
permite-lhes exorcizar medos, representar fantasias e cenas do quotidiano, que assim
funcionam como terapias para lidar com experiências negativas. Esta partilha de
tempos, acções, representações e emoções é necessária para um mais perfeito
entendimento do mundo e faz parte do processo de crescimento.

No âmbito das culturas de pares, as crianças realizam um conjunto de acções,


designadamente: a Associação da palavra “amigo” aos companheiros com quem passam
a realizar actividades partilhadas observáveis (brincar); a defesa, para continuar
partilhando, dos espaços e brincadeiras (espaço interactivo) das crianças exteriores ao
seu grupo de amigos; a partilha de rituais, sobretudo baseados em lendas e mitos
culturais; a criação de estratégias para evitar fazer o que não querem; a elaboração de
ajustes secundários para contornar as regras dos adultos - estes ajustes são respostas
inovadoras e colectivas, por vezes mais elaboradas que as próprias regras, que criam nas
crianças a sensação de “grupo”; o uso de valores comunitários e o seu investimento na
perseguição de objectivos pessoais (Corsaro e Eder, 1990; Corsaro, 1997)

A interacção realiza-se tanto no plano sincrónico, como diacrónico (cf. James, Jenks e
Prout, 1998). As crianças, quando crescem, deixam o seu legado, sob a forma de
brincadeiras que praticam com os mais novos ou que estes observam e reproduzem. As
crianças partilham conhecimentos, rituais e jogos que vão sendo transmitidos de uma

14
geração de crianças para a seguinte. Isso explica esse dado surpreendente das crianças
continuarem a jogar ao pião ou à macaca em plena era dos jogos electrónicos. É pois
deste modo que se compreende que se continuem a recorrer a muitos jogos, estratégias
de encarar o real e visões face a determinadas questões já usadas há várias gerações
atrás. Estes comportamentos nascem das cultura infantis, já que não são comunicados
directamente pelos adultos..

Não obstante, seria desajustado compreender as culturas da infância desligadas das


interacções com o mundo dos adultos. Esta interacção não apenas é contínua e
produtora de formas de controlo dos adultos sobre as crianças, como tem como meio da
sua expressão a utilização pelos adultos de meios de configuração dos mundos
específicos da criança, a partir dos elementos característicos das culturas infantis. Isso
é particularmente visível no domínio dos jogos e brinquedos.

A ludicidade

A ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis. Brincar não é


exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas actividades sociais mais
significativas. Porém, as crianças brincam, continua e abnegadamente.. Contrariamente
aos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito
do que as crianças fazem de mais sério.

Se a cultura lúdica (Brougère, 1998) constitui algo central à própria ideia da infância,
desde há séculos, importa considerar o relevo que esta faceta tem no mercado de
produtos culturais para a infância. Com efeito, os brinquedos tradicionais vêm caindo
em desuso, substituídos pelos brinquedos industriais produzidos em série que são quase
sempre mais baratos, mais vistosos e estão mais na moda, constituindo-se como factor
de distinção social. Estes brinquedos que surgem no mercado, estereotipados e em
massa, condicionam as brincadeiras que com eles se têm e uniformizam-nas: a imagem
mais expressiva disso mesmo é dada pela mais americana cidadã do mundo, a boneca
Barbie (cf. Rogers, 1999). A principal característica destes brinquedos é a sua
“demasiada” estruturação, coarctora do imaginário infantil, como se o que fosse
importante fosse o brinquedo e não a brincadeira em si. No entanto, isso altera um traço
central da brincadeira das crianças ao longo da história: Tal como afirma Sutton-Smith,
“brincar com os outros, não brincar com objectos” (Sutton-Smith 1986: 26).

15
Com efeito, a natureza interactiva do brincar das crianças constitui-se como um dos
primeiros elementos fundacionais das culturas da infância. O brincar é a condição da
aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso,
que o brinquedo acompanhe as crianças nas diversas fases da construção das suas
relações sociais.

O brinquedo e o brincar são também um factor fundamental na recriação do mundo e na


produção das fantasias infantis.

A fantasia do real

O “mundo do faz de conta” faz parte da construção pela criança da sua visão do mundo
e da atribuição do significado às coisas. No entanto, esta expressão “faz de conta” é algo
inapropriada para referenciar o modo específico como as crianças transpõem o real
imediato e o reconstroem criativamente pelo imaginário, seja importando situações e
personagens fantasistas para o seu quotidiano, seja interpretando de modo fantasista os
eventos e situações que ocorrem. Na verdade, a dicotomia realidade-fantasia é
demasiado frágil para denotar o processo de imbricação entre dois universos de
referência, que nas culturas infantis efectivamente se encontram associados. Poderemos
de resto, justamente, interrogar-nos sobre se essa imbricação não ocorre também no
mundo dos adultos, isto é, se toda a interpretação não é sempre projecção do imaginário
e se o “real” não é, afinal, o efeito da segmentação, transposição e re-criação feita no
acto de interpretação de acontecimentos e situações.

Nas culturas infantis, todavia, este processo de imaginação do real é fundacional do


modo de inteligibilidade. Esta transposição imaginária de situações, pessoas, objectos
ou acontecimentos, esta “não literalidade” (Goldman e Emminson, 1987), está na base
da constituição da especificidade dos mundos da criança, e é um elemento central da
capacidade de resistência que as crianças possuem face ás situações mais dolorosas ou
ignominiosas da existência. A estrela que transporta para o céu uma pessoa querida, a
boneca com que se brinca no meio da desolação e do caos provocados pela guerra ou
por um cataclismo natural, a narrativa imaginosa com que se explica um insucesso, uma
falha ou até uma ofensa, integram este modo narrativo de estruturação não literal das
condições de existência. É por isso que fazer de conta é processual, permite continuar o
jogo da vida em condições aceitáveis para a criança.

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O pensamento fantasista, se se reporta a situações, pessoas ou acontecimentos, também
se exprime na apropriação de objectos pela criança – estes não são nunca apenas o que
valem e para que servem, mas outra coisa ainda e, como dizia Fernando Pessoa, “essa
coisa é que é linda”. Walter Benjamin explica muito bem esta capacidade tde
transposição e não literalidade das crianças com os objectos quando descreve a “criança
desordenada”.

“[Na criança] as coisas passam-se como nos sonhos, não conhece nada
que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu
encontro, esbarram com ela. Os seus anos de nómada são horas na
floresta do sonho. É de lá que arrasta a sua presa até casa, para a limpar, a
fixar e desmontar. As suas gavetas têm de se transformar em arsenal e
jardim zoológico, museu criminal e cripta. “Arrumar” seria destruir uma
construção repleta de castanhas eriçadas de espinhos que são clavas,
papeis de estanho que são um tesouro de pratas, paralelipípedos de
madeira que são ataúdes, cactos que são tótens e tostões de cobre que são
escudos.” (Benjamim, 1992a)

A saga da “criança desordenada” é, afinal, o ritual quotidiano de todas as crianças na


sua interpretação do mundo, transpondo-o, contra todos os determinismos e contra todas
as pretensões de subordinação a um controle total, para uma ordem habitável. Ordem
essa que também se exprime no modo peculiar de organização do tempo.

A reiteração

A não literalidade tem o seu complemento na não linearidade temporal. O tempo da


criança é um tempo recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades, um
tempo sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido. A criança constrói os
seus fluxos de (inter)acção numa cadeia potencialmente infinita, na qual articula
continuamente práticas ritualizadas (“agora diz tu, agora sou eu”), propostas de
continuidade (“e depois...e depois”) ou rupturas que se fazem e são logo suturadas
(“pronto, não brinco mais contigo”). Nesses fluxos estruturam-se e reestruturam-se as
rotinas de acção, estabelecem-se os protocolos de comunicação, reforçam-se as regras
ritualizadas das brincadeiras e jogos, adquire-se a competência da interacção: trocam-se
os pequenos segredos, descodificam-se os sinais cifrados da vida em grupo,
estabelecem-se os pactos. E reinventa-se um tempo habitado à medida dessas rotinas e
dessas necessidades da interacção, um tempo continuado onde é possível encontrar o
nexo entre ao passado da brincadeira que se repete e o futuro da descoberta que se
incorpora de novo.

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É ainda Walter Benjamim quem nos ajuda na compreensão deste elemento
característico das culturas infantis:

“Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas vezes – é


de acordo com este pequeno ditado de Goethe que a criança age. Só que a
criança não quer apenas duas vezes. Isto não é apenas o caminho para se
dominar experiências primárias terríveis, através do embotamento, do
exorcismo maligno e da paródia, mas também o caminho para se
experimentarem, cada vez mais intensamente, triunfos e vitórias. O
adulto, com o coração liberto do medo, goza uma felicidade redobrada
quando narra uma experiência. A criança recria toda a situação, começa
tudo de novo.”

(Benjamin, 1992b)

O tempo recursivo da infância tanto se exprime no plano sincrónico, com a contínua


recriação das mesmas situações e rotinas, como no plano diacrónico, através da
transmissão de brincadeiras, jogos e rirtuais das crianças mais velhas para as crianças
mais novas, de modo continuado e incessante, permitindo que seja toda a infância que
se reinventa e recria, começando tudo de novo.

De novo, o lugar da criança

O lugar da criança é, em suma, o lugar das culturas da infância. Mas esse lugar das
culturas é continuamente reestruturado pelas condições estruturais que definem as
gerações em cada momento histórico concreto.

Na 2ª modernidade, as condições estruturais da infância caracterizam-se pela afirmação


radicalizada dos paradoxos instituintes da infância. As instituições que ajudaram a
construir a infância moderna sofrem processos de mudança, que, por seu turno,
promovem a reinstitucionalização da infância. Ela própria, tal como as crianças que
reiteram criativamente os seus mundos de vida, é reinventada como se começasse
também tudo de novo. Porém, não são mais fáceis as suas condições de existência, mas
mais complexas, não é maior a autonomia que lhes é atribuída, é maior o controlo que
sobre elas é exercido, não é mais reconhecido o estatuto de actores sociais atribuído às
crianças, é mais subtil a recusa às crianças do exercício da cidadania.

Neste processo, as crianças acrescentam elementos novos e distintos aos seus


comportamentos e culturas. Há uma assunção de sujeitos que se prefigura no

18
desempenho de um certo número de aspectos emergentes, ainda pouco estudados, mas
possivelmente configuradores de um futuro:

1) a extensão do princípio da interacção às redes informáticas, as linguagens


estabelecidas na comunicação computacional nos grupos de conversação,
prefiguradoras de outras lógicas, menos lineares e com uma expressividade
distinta (cf. Barra e Sarmento, 2002);
2) a acção dos grupos de pares e as culturas de resistência, que vai dos gangs
meninos de rua, aos clubes e grupos de amigo constituídos fora do controlo
dops adultos, constitutivos, por vezes, de comportamentos desviantes, quase
sempre configuradores de convivialidades alternativas;
3) a extensão da ludicidade a novas modalidades de vida, com o progressivo
envolvimento dos adultos na cultura do lazer, e a constituição de uma indústria
do jogo, com consequências e efeitos pouco previsíveis,

4) finalmente, a assunção de certos valores e causas políticas pelas crianças, com


reivindicação de transformações no espaço público, nomeadamente em áreas
como o ambiente, a segurança urbana, as políticas urbanistas e a reinvindicação
do lazer, o que, se não está isento de riscos de manipulação, faz das crianças
potenciais protagonistas de acções potenciadoras da democratização social.

Estas reconfigurações fazem das crianças contemporâneas construtoras activas dos seu
próprio lugar na sociedade contemporânea, esse ponto no mapa , afinal, que é também a
mesma encruzilhada em que todos nós nos situamos lugar que com ela partilhamos,
ainda que com responsabilidades (e culpas...) distintas: cidadãos implicados na
construção da (so)ci(e)dade.

19
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IMAGINÁRIO E CULTURAS DA INFÂNCIA*

Manuel Jacinto Sarmento

sarmento@iec.uminho.pt

(LIBEC/ Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho)

Jogos na guerra

Uma imagem de guerra, extraída num campo de refugiados albaneses no Kosovo, mostra
duas crianças brincando com uma boneca Barbie, perante o olhar entre o apreensivo, o
desolado e o fatalisticamente resignado dos adultos que com elas partilham as tendas de
campanha dispostas para os albergar.

Não é apenas a boneca Barbie que aparece neste contexto de incerteza e de dor
insolitamente exposta, na sua arrogância loira oxigenada perante o infortúnio colectivo.
Símbolo maior da indústria cultural fornecedora do mercado infantil de jogos e brinquedos,
a boneca Barbie é talvez menos inesperada no processo de globalização dos dispositivos de
jogo e nos produtos de consumo lúdico das crianças do que o próprio acto de brincar das
crianças, no momento em que tudo falta: a casa, a escola, um país para viver, talvez até
uma família, a confiança num futuro vivível, a certeza – mesmo se precária - da
sobrevivência.

No entanto, o que relatos e estudos das crianças da guerra nos contam é essa forma de
conseguir criar um mundo outro, nas condições da mais dura adversidade, através do jogo

*
Este texto foi produzido no âmbito das actividades do Projecto “As Marcas dos Tempos: a
Interculturalidade nas Culturas da infância”, Projecto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação
para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das Jornadas “Educação e
Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em Março de 2003.

1
e da ficção de uma existência onde até o horror aparece transmudado em projecção
imaginária de uma realidade alternativa. Pedro Rosa Mendes conta no livro “a Baía dos
Tigres” que viu uma criança entre as ruínas da cidade do Bié, em Angola, jogando futebol,
indiferente à desolação à sua volta. O esférico com que se entretinha - imaginando-se o
Eusébio ou o Pelé da época, como qualquer criança de qualquer outra parte do mundo -
era, à falta de melhor, os restos de uma caveira humana: “Não é por maldade. O crânio
estava disponível, perto e seco. Tu e eu conhecemos as balizas da humanidade: crânios
enterram-se, bolas são redondas. [À criança] ninguém deu oportunidade para tanto.”
(Mendes, 1999:386).

O jogo da criança do Bié tem o mesmo significado do de qualquer outra criança que, em
paz, brinca à guerra e até já aprendeu, a golpes de joystick, o que é um míssil Patriot ou um
B-52 carregado de bombas de implosão...

Entre as crianças que brincam com uma Barbie, ou que chutam um crânio humano, ou que
empunham uma Kalashnikov de plástico, ou que jogam ao berlinde, ou lançam o peão, ou
brincam às casinhas, ou se divertem na consola ou no écran do computador há todo um
mundo de diferenças: de condição de social, de contexto, de valores, de referências
simbólicas, de expectativas e possibilidades. Mas há também um elemento comum: a
experiência das situações mais extremas através do jogo e da construção imaginária de
contextos de vida.

O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas características das formas
específicas de relação das crianças com o mundo. A investigação tem sido dominada pelas
correntes teóricas da Psicologia. As perspectivas predominantes são as psicanalíticas e as
construtivistas. Para Freud, o imaginário infantil corresponde à expressão do princípio do
desejo sobre o princípio da realidade, sendo o jogo simbólico uma expressão do
inconsciente, para além da formação da censura. Para Piaget, o jogo simbólico é a
expressão do pensamento autístico das crianças, progressivamente eliminado pelo processo
de desenvolvimento e construção do pensamento racional. Apesar das diferenças essenciais
entre as diversas orientações, sedimentadas na história da disciplina, as perspectivas
psicológicas do imaginário infantil possuem um elemento comum, que é aliás inerente à
própria concepção moderna da infância: o imaginário infantil é concebido como a
expressão de um déficit - as crianças imaginam o mundo porque carecem de um
pensamento objectivo ou porque estão imperfeitamente formados os seus laços racionais

2
com a realidade. Esta ideia do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que
constitui um pressuposto epistémico na construção social da infância pela modernidade:
criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno), o que não trabalha, o que
não tem direitos políticos, o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental
ou judicial, o que carece de razão, etc.

Sublinhamos que a negatividade definitória da infância assenta numa base ideológica que é
resultante do processo de reflexividade moderna, e tem suporte no discurso científico e
pericial.

A Psicologia tem sido a disciplina hegemónica na interpretação das formas de


racionalidade e comportamento das crianças. Recentemente, a revisão das bases
epistemológicas da disciplina tem vindo, porém, a contrariar as concepções do deficit que
atrás assinalamos. Por exemplo, uma revisão recente dos conceitos psicanalíticos e
construtivistas sobre o jogo simbólico, postula que, ao contrário da ideia de uma diferença
radical entre o jogo da criança e o jogo do adulto, por imaturidade infantil, o que existe é
um princípio de transposição imaginária do real, que é comum a todas as gerações e se
exprime, por exemplo, na experiência emocional das narrativas literárias ou
cinematográficas tanto quanto nas brincadeiras das crianças, constituindo assim uma
“capacidade estritamente humana” (Harris, 2002), mas que é radicalizada pelas crianças. É,
portanto, da ordem da diferença e não do deficit que falamos, quando falamos do
imaginário infantil, por relação com o dos adultos.

Mas é numa vertente sociológica e antropológica que essa diferença pode fazer mais
sentido. O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da
personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto
social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições
sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a
de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e
que está sob o controlo da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua
dimensão simbólica nas culturas da infância.

As crianças como construtoras de cultura

3
O conceito de “culturas da infância” tem vindo a ser estabelecido consistentemente pela
Sociologia da Infância como um elemento distintivo da categoria geracional (e.g. Corsaro,
1997; James, Jenks e Prout, 1998). Por esse conceito entende-se a capacidade das crianças
em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de acção
intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção.

A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são
produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por
relações de classe, de género e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a
fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não
obstante, a “marca” da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural.

As culturas da infância são tão antigas quanto a infância. Resultam do processo societal de
construção da infância, coevo da modernidade. A diferença geracional é, assim,
historicamente construída, com efeitos na evolução do estatuto social e das representações
sociais sobre as crianças. Ao dizermos isto, recusamos uma concepção ontogénica das
culturas infantis e afastamo-nos de uma perspectiva que “naturaliza” os modos de
percepção, representação e significação do mundo pelas crianças, gerado a partir de
características desenvolvimentais específicas e realizadas no vazio social. Ao invés, as
culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são
alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as
crianças e que regem as possibilidades das interacções das crianças, entre si e com os
outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos,
exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade.

A relação particular que as crianças estabelecem com a linguagem, através da aquisição e


aprendizagem dos códigos que plasmam e configuram o real, e da sua utilização criativa,
constitui a base da especificidade das culturas infantis. Ora, esta aquisição e aprendizagem
é desenvolvida predominantemente nas instituições educacionais (jardins de infância e
escolas), tanto quanto nas interacções realizadas no espaço doméstico, através da educação
familiar. No entanto, considerar seria erróneo supor-se que as culturas da infância
exprimem prioritariamente um deficit linguístico, a colmatar pela escola. Pelo contrário,

4
elas são a expressão de competências infantis no uso e criação vocabular e semântica. Uma
vez mais, é da ordem da diferença (do uso da linguagem) e não do deficit que se trata.

Do mesmo modo, seria erróneo atribuir-se as culturas da infância a processos


institucionalizados de formação e constituição, pelo facto das instituições para as crianças
(especialmente a escola) terem tido um papel histórico na construção social da infância
(Aries, 1973; Ramirez, 1991; Becchi & Julia, 1998); pelo contrário, as culturas da infância
realizam-se frequentemente por oposição e numa atitude de contraponto crítico ao projecto
educacional, numa espécie de “divisão de trabalho” entre as culturas societais
(adultocentradas) escolarmente transmitidas e a as culturas infantis (Mouritsen, 1997).

Formas culturais produzidas para as crianças

É no vai-vém entre culturas geradas, conduzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças e
culturas construídas nas interacções entre as crianças que se constituem os mundos
culturais da infância.

Entre as primeiras – as formas culturais criadas e dirigidas pelos adultos para as crianças1 -
para além da cultura escolar (com os seus códigos próprios, resultantes do arbítrio cultural
que estabelece o recorte, selecção, incorporação, hierarquização e correspondentes
dispositivos de transmissão dos saberes e valores), deveremos considerar o conjunto de
dispositivos culturais produzidos para as crianças, com uma orientação de mercado,
configuradora da indústria cultural para a infância (literatura infantil, jogos e brinquedos,
cinema, bandas-desenhadas, jogos vídeo e informáticos, sites e outros dispositivos da
Internet, serviços variados – de férias, de tempos livres, de comemoração de aniversário,
de festas, etc.).

Quer a cultura escolar, quer os produtos do mercado para as crianças só se conseguem


transmitir e difundir de modo sucedido quando se compatibilizam com as condições

1
Na sua abordagem da “cultura de pares infantil”, W. Corsaro (1997) distingue estas formas culturais entre a
“cultura simbólica da infância”, constituída pelos media, a literatura infantil, as lendas e figuras mitológicas,
e a “cultura material da infância”, constituída por roupa, livros, ferramentas artísticas e literárias e
brinquedos. Esta distinção, além de especiosa, tende a tornar-se improcedente, considerando, por exemplo, a
fusão de elementos “simbólicos” e “materiais” originados na mesma fonte (por exemplo, os desenhos
animados televisivos, sejam hollywoodescos ou japoneses, entre outros, dão frequentemente origem a
elementos materiais, como T-Shirts, canetas, jogos vídeo, etc. Há uma “materialidade” no simbólico e uma
incorporação simbólica da “cultura material” que a distinção de Corsaro escamoteia.

5
específicas de recepção pelas crianças. O estudo das relações entre a produção e recepção
cultural na infância poderá levar-nos a um olhar diferente sobre a história das ideias
pedagógicas, centrada nas aprendizagens e não já, como é habitual, nas teorias de ensino e
nas respectivas bases filosóficas, psicológicas, políticas, morais, etc. De modo similar, a
prioridade analítica concedida à ideia da criança como construtora de cultura poderá levar
a considerar o “insucesso escolar” como um fenómeno de desadaptação do discurso
didáctico à recepção infantil, o que, escusado será dizer, corresponde a uma inversão da
lógica exclusionista pressuposta nas principais teorias correntes do insucesso, segundo as
quais ele se deve às condições individuais ou sociais da recepção da cultura escolar pelos
alunos ou aos meios da sua “transmissão”, deixando inquestionada a própria natureza e
conteúdos da cultura escolar (cf. Charlot, 2000).

De modo similar, os produtos da indústria cultural para as crianças devem a sua eficácia à
empatia que conseguem estabelecer com os seus “consumidores”: dos filmes Disney às
cartas Pokemon e da boneca Barbie às consolas da Mattel verifica-se o estabelecimento de
uma conformidade com o imaginário infantil que explica a universalização desses
produtos. Eles tornam-se referências no mercado infantil pelo valor simbólico que lhes está
associado e que, em larga medida, se sobrepõe ao seu potencial lúdico (a posse da boneca
Barbie, por exemplo, é um elemento de distinção social cujo valor simbólico não é
transaccionável por qualquer outra boneca, mesmo com potencialidades lúdicas superiores,
cf. Rogers, 1999); porém, o uso a que se prestam pelas crianças está em linha de
convergência com o desejo e as potencialidades de fruição infantil (ainda que,
evidentemente, as não esgote).

É muito elucidativo o que este propósito afirmam Kenway e Bullen:

“A cultura comercial das crianças apela tanto às crianças porque toma


seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças.
Claramente, ela ajuda a construir o seu jogo, prazer e desejo, mas também
procura compreendê-lo e inserir-se dentro dele. Na pior das hipóteses, ele
envolve a exploração [da constatação] cínica (...) de [um] presidente de
agência publicitária (...): ‘A publicidade no seu melhor faz com que as
pessoas sintam que sem o seu produto você é um perdedor. As crianças são
muito sensíveis a isso’.” (2001:46)

Se a indústria cultural de produtos para a infância atende às culturas infantis tendo em vista
a expansão comercial e o lucro, por razões completamente distintas, a interpretação
sociológica das culturas da infância constitui-se como prioritária. Desde logo, porque ela é

6
essencial à compreensão da própria infância. A análise da recepção pelas crianças desses
produtos culturais é, portanto, fundamental. Uma das conclusões mais insistentemente
afirmadas na análise da recepção dos produtos da indústria cultural pelas crianças,
nomeadamente no que respeita aos programas televisivos, é de que, contrariamente ao que
é correntemente veiculado pelo senso-comum, as crianças não são receptoras passivas,
acríticas e reprodutivas desses produtos, mas, pelo contrário, ainda que se estabeleça uma
relação empática, essa recepção é criativa, interpretativa e frequentemente crítica das
respectivas mensagens (Buckingham, 1994 e 2000 e Pinto, 2000). Contrariamente ao que
por vezes é dado por adquirido (Steinberg e Kincheloe, 1997), a análise política e
simbólica dos produtos da indústria mercado cultural para a infância é insuficiente para
objectivar as culturas da infância e a institucionalização contemporânea da infância.

Em suma, a compreensão das culturas da infância só poderá ser feita na conjugação da


análise da produção das formas culturais para a infância com a recepção efectiva dessas
formas pelas crianças. Mas, além disso, essa compreensão não pode deixar igualmente de
pôr em relevo aquilo que são as formas culturais autónomas geradas pelas crianças nas
suas interacções e nas interacções com os adultos e com a natureza, e que as caracterizam
não apenas como fruidores, mas como criadores culturais.

7
Formas culturais produzidas pelas crianças

Entre as formas culturais produzidas e fruídas pelas crianças, consideraremos


fundamentalmente os jogos infantis, cuja memória histórica da sua construção se perde no
tempo e que são hoje um património preservado e transmitido pelas crianças, numa
comunicação intrageracional que escapa em larga medida à intervenção adulta. Referimo-
nos, por exemplo, a jogos como a macaca (assim designada em Portugal, mas com uma
expressão quase universal, conhecida pela “amarelinha” no Brasil, por exemplo), os
berlindes, o jogo do laço; a brinquedos como o pião, os papagaios de papel, as tampinhas
de garrafas de refrigerantes transformadas em veículos de corrida ou em bolas para jogos
simulados de futebol em miniatura, os carrinhos de rolamentos, ou mesmo a brinquedos
em relativo desuso como o arco e a roda ou o espeto. Mas integram também as culturas da
infância modos específicos de significação e de uso da linguagem que se desenvolvem
especialmente no âmbito das relações de pares e que são distintos dos processos adultos.

As culturas da infância constituem-se no mútuo reflexo de uma sobre a outra das


produções culturais dos adultos para as crianças e das produções culturais geradas pelas
crianças nas suas interacções de pares. Não sendo redutíveis aos produtos da indústria para
a infância e aos seus valores e processos ou aos elementos integrantes das culturas
escolares, tão pouco podem ser analisadas exclusivamente pelas acções, significações e
artefactos produzidos pelas crianças, porque estes não surgem do nada, antes estão
profundamente enraizados na sociedade e nos modos de administração simbólica da
infância (de que o mercado e a escola são integrantes centrais, a par das políticas públicas
para a infância). Considerando ainda, como afirmámos, que as culturas da infância são
cruzadas pelas culturas societais estabelecidas nas relações desiguais de classe, de género e
de etnia, podemos constituir um quadro interpretativo da complexidade da inserção cultural
da infância. As culturas da infância são, em síntese, resultantes da convergência desigual
de factores que se localizam, numa primeira instância, nas relações sociais globalmente
consideradas e, numa segunda instância, nas relações inter e intrageracionais. Esta
convergência ocorre na acção concreta de cada criança, nas condições sociais (estruturais e
simbólicas) que produzem a possibilidade da sua constituição como sujeito e actor social.
Este processo é criativo tanto quanto reprodutivo. O desafio hermenêutico colocado à
Sociologia da Infância consiste na compreensão deste processo de “reprodução

8
interpretativa” (Corsaro, 1997), constitutivo das identidades individuais de cada criança e
do estatuto social da infância como categoria geracional.

Esta tarefa é reconhecida no interior do espaço antropológico – menos disponível até agora
para integrar a compreensão da autonomia relativa das culturas infantis, apesar de logo no
início dos anos 70 vários antropólogos denominarem de “cultura da infãncia” o conjunto
de jogos e de brincadeiras que identificaram nas suas pesquisas (cf. James, Jenks e Prout,
1998:83 e s.) – como o atesta as palavras de Clifford Geertz:

“Surgiu uma concepção seriamente modificada da mente infantil – não uma


confusão alvoroçada e florescente, não uma fantasia voraz, girando em
desamparo num desejo cego, nem tampouco algoritmos inatos gerando uma
profusão de categorias sintéticas e conceitos prontos para ser usados, mas
uma mente criando sentido, buscando sentido, preservando sentido e usando
sentido; numa palavra – a palavra de Nelson Goodman – construtora do
mundo.” (2001:186)

A referência do grande antropólogo americano é tanto mais pertinente, quanto esta


“concepção seriamente modificada” abre novas perspectivas sobre a capacidade das
crianças de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da
natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem
para lidarem com tudo o que as rodeia (idem). Essas perspectivas convocam com
intensidade o trabalho de desconstrução de muitas das bases teóricas com que a s crianças
foram sistematicamente tematizadas nas Ciências Sociais.

Desde logo, na sociologia, onde o conceito de “socialização”, com raízes na obra de Emile
Durkheim, remeteu para a condição de seres pré-sociais as crianças, assim tematizadas
como objecto de um processo de inculcação de valores, normas de comportamento, e de
saberes úteis para o exercício futuro de práticas sociais pertinentes. O conceito, nas suas
múltiplas reinterpretações futuras, incorpora sedimentalmente a história de uma produção
teórica sociológica que se ocupou sempre das crianças como objectos manipuláveis,
vítimas passivas ou joguetes culturalmente neutros, subordinados a modos de dominação
ou de controlo social, que assumiam a garantia da sua continuidade precisamente por esse
trabalho de condução para os lugares, os comportamentos, as atitudes ou as práticas sociais
pertinentes. A desconstrução do conceito de socialização é inerente à emancipação da

9
infância como objecto teórico e à interpretação das crianças como seres sociais plenos,
dotados de capacidade de acção e culturalmente criativos2.

De modo idêntico, na Psicologia, a revisão dos fundamentos teleológicos e do linearismo


evolutivo da tradução desenvolvimentista (cf. Burman, 1994; Sousa, 1996), tem permitido
abrir novas perspectivas interpretativas da acção infantil, considerando-o na sua
complexidade e na sua dimensão de competência específica, isto é, como dotada de um
sentido próprio, pertinente e adequado aos contextos de vida das crianças. Em especial, a
revisão da psicologia piagetiana (mas também freudiana) põe em causa a concepção
dominante da criança como um ser essencialmente narcísico e egocêntrico, para considerar
a dimensão relacional e interaccional constitutiva da acção infantil, o que conduz, por
exemplo, à interpretação do jogo simbólico não como uma projecção imaginário de um self
auto-centrado mas à exploração da mudança de ponto de vista ou de condições de
existência, como forma de apreensão do mundo (Harris, 2002).

No entanto, se a evolução das ciências sociais que estudam a infância evoluiu no sentido
do reconhecimento da autonomia das formas culturais, a inventariação dos princípios
geradores e das regras das culturas da infância é uma tarefa teórica e epistemológica que se
encontra em boa medida por realizar.

Para uma gramáticas das culturas da infância

Noutro texto (Sarmento, 2003), procurei enunciar alguns traços identificadores da


“gramática das culturas infância”, isto é dos princípios de estruturação do sentido que são
característicos das culturas da infância. Apesar desta referência à “gramática” como
metáfora identificadora das regras de estruturação simbólica, é necessário referir que as
culturas da infância não se reduzem a elementos linguísticos, antes integram elementos
materiais, ritos, artefactos, disposições cerimoniais e também normas e valores (Mollo-
Bouvier, 1998).

Assim, as culturas da infância podem ser analisadas na Semântica, isto é nos processos de
referenciação e significação próprios das crianças, na Sintaxe, isto é nas regras de
articulação entre os elementos simbólicos e na Morfologia, isto é, na especificidade das
formas que assumem os elementos constitutivos das culturas da infância: os jogos, os

2
Para a revisão da literatura crítica ao conceito de socialização , cf.. Jenks, 1996; Corsaro, 1997; Montadon,
1998; Sirota, 1998.

10
brinquedos, os rituais, mas também os gestos e as palavras. Podem ser ainda analisadas na
sua Pragmática, isto é, nas relações de comunicação que se estabelecem entre pares e nos
modos pelos quais se realizam os processos de cooperação e de estratificação entre as
crianças (Adler e Adler, 1999). Cada uma destas dimensões da gramáticas das culturas da
infância necessita de ser analisada nos seus princípios e traços distintivos.

Como hipótese a explorar, pode avançar-se a ideia de que as crianças estabelecem uma
deslocação sobre os princípios lógicos estruturantes das gramáticas culturais adultas3 e,
especialmente, sobre os princípios da identidade e da sequencialidade: Para as crianças, no
âmbito do jogo simbólico - cuja importância na infância está bem estabelecida (Winnicot,
1975) -, o objecto referenciado não perde a sua identidade própria e é, ao mesmo tempo,
transmutado pelo imaginário: a criança pode passar a ser um astronauta, ou um índio, ou
um modelo exibindo-se nas passerelles, ou um gato, sem deixar de ser ela própria, assim
como o toco de uma vassoura se transmuta numa espada, ou num cavalo, e uma toalha se
transforma numa túnica ou numa bandeira, sem que a criança perca a noção da identidade
de origem. Do mesmo modo, a criança incorpora no tempo presente, o tempo passado e o
tempo futuro, numa sincronização de diacronias que altera a linearidade temporal,
possibilita a recursividade e garante a simultaneidade de factos cronologicamente distintos.
A criança repete a história “era uma vez...” e presentifica esse passado de cada vez que se
identifica com o herói que “então eu era...”, cometendo o futuro antecipado do acontecido.

A alteração da lógica formal não significa que as crianças tenham um pensamento ilógico.
Pelo contrário, esta alteração, estando patente na organização discursiva das culturas da
infância (especialmente no que respeita ao jogo simbólico), é coexistente com uma
organização lógica formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente
“navegue entre dois mundos” – o real e o imaginário – explorando as suas contradições e
possibilidades (Harris, 2002:232). Por outro lado, os princípios lógicos alterados também
não são exclusivamente integrantes das culturas da infância, sendo inerentes aos processos
de construção da linguagem poética, onde a subversão do princípio da identidade e da
sequencialidade são constitutivos dos respectivos processos de significação (e.g., Baktine,
1976; Kristeva, 1978).

3
Referimo-nos às culturas ocidentais de matriz europeia. As culturas não ocidentais não se estruturam
necessariamente sobre os mesmos princípios lógicos.

11
Para além dos princípios que enformam as gramáticas das culturas da infância, estas
estruturam-se em torno de alguns pilares que a investigação tem permitido destacar e
sublinhar.

Antes de mais, a interactividade. As culturas das crianças são, prioritariamente, culturas de


pares, isto é: “um conjunto estável de actividades ou rotinas, artefactos, valores e ideias
que as crianças produzem e partilham em interacção com os seus pares.” (Corsaro e Eder,
1990)

A cultura de pares permite às crianças apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as


rodeia, numa relação de convivência que permite exorcizar medos, construir fantasias e
representar cenas do quotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com
experiências negativas, ao mesmo tempo que se estabelecem fronteiras de inclusão e
exclusão (de género, de subgrupos etários, de status, etc.) que estão fortemente implicados
nos processos de identificação social. A interactividade é, deste modo, estratégica, sendo
acompanhada de um conjunto de acções tácticas que lhe dão sequência e contorno: a
identificação como “amigos” dos companheiros de actividade; a defesa do espaço
interactivo face a crianças exteriores ao seu grupo de amigos; a partilha de rituais,
sobretudo baseados em lendas e mitos culturais; a criação de estratégias para evitar fazer o
que não querem; a elaboração de ajustes para contornar as regras dos adultos - estes ajustes
são respostas inovadoras e colectivas, por vezes mais elaboradas que as próprias regras,
que criam nas crianças a sensação de “grupo”; o uso de valores comunitários e o seu
investimento na perseguição de objectivos pessoais (Corsaro e Eder, 1990; Corsaro, 1997).

Além da interactividade, a ludicidade constitui um tópico desde sempre associado às


culturas da infância, mas não apenas às culturas da infância. De acordo com Winnicott
(1975), o jogo é constitutivo do processo de formação cultural e o espaço do jogo
simbólico, que o bebé pratica e depois dele a criança e o adulto, a “terceira área” da
mediação entre o espaço interior e o mundo objectivo. Brincar não é, portanto, exclusivo
das crianças, é próprio do homem e uma das suas actividades sociais mais significativas.
Uma diferença importante, porém, é que as crianças brincam, continua e devotadamente e,
ao contrário dos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias (entre o ócio e o negócio ou
entre o lazer e o trabalho) não fazem distinção, sendo o brincar muito do que as crianças
fazem de mais sério. A cultura lúdica (Brougère, 1998), sendo transversal à sociedade - e
ademais, profundamente implicada na criação do mercado do lazer, de que a indústria

12
cultural para as crianças faz parte integrante – é, no entanto, algo central à própria ideia da
infância ocidental, desde há séculos. Com efeito, a natureza interactiva do brincar das
crianças constitui-se como um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da
infância. Tal como afirma Sutton-Smith, “brincar com os outros, não brincar com
objectos” (1986: 26). O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da
aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso, que o brincar, o jogo e o brinquedo4
acompanhem as crianças nas diversas fases da construção das suas relações sociais.

O jogo simbólico, é, metonimicamente, a própria expressão da cultura lúdica da infância,


associando uma outra característica inerente às culturas da infância – a fantasia do real ou a
“não literalidade” (Goldman e Emminson, 1987).

Referimo-nos atrás à dimensão fantasista presente no jogo simbólico das crianças. É um


“mundo de faz de conta” em que o que é verdadeiro e o que é imaginário se confundem
estrategicamente para que a brincadeira valha mesmo a pena. Aliás, “fazer de conta” é uma
expressão que não capta completamente o modo como as crianças introjectam real nas suas
brincadeiras, através da transposição de personagens ou situações. As crianças - como tão
bem descreveu Walter Benjamim (1992a e 1992b) em páginas que registam tão poética
quanto acuradamente (e são palavras próprias e acuradas porque poéticas) - representam o
mundo inteiro num instante e condensam um tesouro numa gaveta onde guardam os restos
com que brincam. Na verdade, elas são competentes e capazes tanto de “imaginar a
transformação do mundo físico de forma disciplinada e coerente”, quanto de “imaginar
uma panóplia de sensações, necessidades e de emoções dissociadas da realidade
envolvente” (Harris, 2002: 226).

Deste modo o “real” para as crianças é o efeito da segmentação, transposição e recriação


feita no acto de interpretação de acontecimentos e situações. O que torna a vida uma
aventura continuamente reinvestida de possibilidade.

Uma consequência da não-literalidade – ainda que com características próprias – é a não


linearidade temporal, ou iteração. O tempo da criança desloca-se da realidade cronológica
para a temporalidade diferida da situação imaginária. Deste modo, a continuidade temporal
é interrompida, e a irreversibilidade rebatida pela possibilidade de “começar tudo de novo”

4
A língua portuguesa permite distinguir estes três vocábulos (o que não acontece necessariamente noutras
línguas) sendo os três integrantes da mesma realidade lúdica, respectivamente: prática lúdica não formal;
prática lúdica estruturada regida por regras; artefacto lúdico.

13
(Benjamim, 1992) de jogar o jogo outra vez, de repetir a experiência e alcançar, deste
modo, um meio de domínio dos recursos ou da linguagem adequada para dominar a
situação. E para sentir o prazer redobrado de uma experiência fruível.

Como consequência, a criança constrói os seus fluxos interactivos numa cadeia


potencialmente infinita, onde se estabelecem os rituais, se pratica a cantilena (Corsaro,
1997: 128), se enraízam as lengalengas, os refrões, as palavras repetidas dos códigos e das
senhas, os vocábulos abracadábricos das soluções mágicas. Nesses fluxos, estruturam-se e
reestruturam-se as rotinas de acção, estabelecem-se os protocolos de comunicação,
reforçam-se as regras ritualizadas das brincadeiras e jogos, adquire-se a competência da
interacção: trocam-se os pequenos segredos, descodificam-se os sinais cifrados da vida em
grupo, estabelecem-se os pactos das relações de pares (Sarmento, 2003).

Este tempo recursivo sincrónico repercute homologamente no plano diacrónico, através da


transmissão de brincadeiras, jogos e rituais das crianças mais velhas para as crianças mais
novas, reinventando nessa transmissão tudo de novo, de tal modo que a cultura da infância
se constitui, em simultâneo, como “intemporal e temporalmente localizada” (James, Jenks
e Prout, 1998: 89).

O jogo simbólico

O imaginário infantil, de acordo com a perspectiva que temos vindo a desenvolver sobre as
culturas infantis, corresponde a um elemento nuclear da compreensão e significação do
mundo pelas crianças. Com efeito, a imaginação do real é fundacional do seu modo de
inteligibilidade. As crianças desenvolvem a sua imaginação sistematicamente a partir do
que observam, experimentam, ouvem e interpretam da sua experiência vital, ao mesmo
tempo que as situações que imaginam lhes permite compreender o que observam,
interpretando novas situações e experiências de modo fantasista, até incorporarem como
experiência vivida e interpretada.

O jogo simbólico desempenha, deste modo e desde a mais tenra idade (cf. Harris, 2002)
uma função nuclear na construção do sentido pelas crianças; a intermediação desse jogo
com as outras, através da sociabilidade infantil e no âmbito das culturas de pares é central à
configuração de um imaginário colectivo, que está contextualizado socialmente, mas
exprime, nas condições específicas de cada situação espaço-temporal, a diferença cultural

14
estabelecida pela pertença geracional. É esse imaginário colectivo, afirmado na
transposição imaginária de situações, pessoas, objectos ou acontecimentos, esta “não
literalidade”, que pode explicar a excepcional da capacidade de resistência que as crianças
possuem face a situações muito dolorosas ou ignominiosas da existência, como tem sido
aliás sublinhado por um importante conjunto de estudos sobre crianças vítimas de
catástrofes naturais ou de maus-tratos (cf. Gavarini e Petitot, 1998). É por isso que fazer de
conta é processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para a
criança.

O jogo simbólico, desenvolvida pela criança desde as suas experiências primordiais e


progressivamente inserido nas interacções grupais e construído colectivamente pelos pares,
insere-se na experiência de vida e favorece a sua apreensão do mundo, como destaca P.
Harris:

“Desde a mais pequena idade, a maior parte das crianças têm a capacidade
de se envolver activamente em jogos simbólicos. Esses jogos sublinham três
aspectos importantes da imaginação das crianças: a sua capacidade de pôr
de parte a sua própria personalidade e de se imaginar estar no lugar de outra
pessoa numa situação que não é a sua situação actual; imaginando essa
situação, as crianças ficam limitadas pelo seu conhecimento dos processos
causais do mundo real – elas interpelam no quadro dessa situação
imaginária os mesmos processos e necessidades causais que sabem existir
na realidade; e, enfim, se o jogo simbólico repousa sobre a invocação de
situações afastadas da realidade presente, elas têm o poder de provocar
emoções reais.” (2002: 237).

Esta capacidade de transposição emocional das situações presentes, permite explicar como
o confronto com a dor é vivida frequentemente pelas crianças de modo imaginário5,
transpondo o sofrimento para o prazer de brincar no mundo que é de faz de conta, mas que
é levado totalmente a sério (como tantas vezes recorda o cinema; veja-se, por exemplo “A
Vida é Bela” de Roberto Benigni), que torna vivível uma vida, noutras circunstâncias,
tragicamente dominada pela ignomínia, a violência e a opressão. Que esta transposição
radica nas gramáticas e nos pilares das culturas da infância, foi o que pretendemos
demonstrar.

5
Uma vez mais, é possível estabelecer um paralelismo com a linguagem poética, recordando a transposição
imaginário do real no “fingimento” pessoano, evocado na sua Autopsicografia numa situação que é a inversa
da que aqui registamos: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor
que deveras sente.”

15
Conclusão

Estamos agora em condições de resumir os principais argumentos deste texto. Em


alternativa a uma concepção psicologizante do imaginário infantil, que considera a
construção do jogo simbólico como expressão de um deficit a superar pela maturação e
pelo desenvolvimento, a perspectiva socio-antropologica enfatiza a colocação do
imaginário no quadro das culturas da infância. As crianças, nas suas interacções com os
pares e com os adultos, estabelecem processos comunicativos configuradores dos seus
mundos de vida. A análise das gramáticas das culturas da infância permite-nos interpretar o
jogo simbólico como um processo activo de interpretação, compreensão e intervenção na
realidade social. Esse processo é o responsável pela capacidade de resistência ao horror
que frequentemente são projectadas na vida das crianças.

Na 2ª modernidade (Beck, 1999), o imaginário infantil tem vindo a ser profundamente


influenciado e constituído pelo mercado de produtos culturais para a infância, mercado
esse que entronca na globalização social e cultural e que tende a uniformizar pelo gosto
crianças de todo o mundo ( Scheper-Hughes e Sargent, 1998, Kenway e Bullen, 2001,
Sarmento, 2001). As personagens do Senhor dos Aneis, Harry Potter e as suas Aventuras,
os soldados dos jogos da Mattell ou dos Game-Boys, Barbie, Pokemon e os animais
personificados da Eurodisney, do Disneyworld e da Warner Brothers, associam-se a tantas
outras personagens fictícias (e a algumas reais, transformadas em ícones comerciais, como
Beckham, Ronaldinho ou Figo) que contribuem para a configuração do universo de
conhecimentos e de interacções quotidianas de crianças (mas não apenas crianças) de todo
o mundo. A colonização do imaginário infantil pelo mercado é um dado da sociedade
contemporânea que não se pode ignorar. Mas, do mesmo modo, não se pode também
ignorar a resistência a essa colonização, através das interpretações singulares, criativas e
frequentemente críticas que as crianças fazem dessas personagens, reinvestindo essas
interpretações nos seus quotidianos, nos seus jogos e brincadeiras e nas suas interacções
com os outros. Afinal, todas as colonizações são imperfeitas...

Em contraponto com uma visão determinista da recepção cultural pelas crianças, o estudo
do imaginário infantil, no quadro das culturas da infância, como modo de apropriação
alternativa da realidade social, poderá inserir-se no âmbito da abertura a novas abordagens
epistemológicas a que somos convidados perante a crise dos paradigmas legados pela
modernidade (Santos, 2001). A incorporação do imaginário não conhecimento do mundo,

16
que é inerente às gramáticas das culturas da infância corresponde a um resgate do sensível
na interacção com a natureza e com os outros. O imaginário infantil é um factor de
conhecimento, e não uma incapacidade, uma marca de imaturidade ou um erro.

Articular o imaginário com o conhecimento e incorporar as culturas das infâncias na


referenciação das condições e possibilidades das aprendizagens – numa palavra, firmar a
educação no desvelamento do mundo e na construção do saber pelas crianças, assistidas
pelos professores nessa tarefa de que são protagonistas – pode ser também o modo de
construir novos espaços educativos que reinventem a escola pública como a casa das
crianças, reencontrando a sua vocação primordial, isto é, o lugar onde as crianças se
constituem, pela acção cultural, em seres dotados do direito de participação cidadã no
espaço colectivo.

Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este esforço, que é,
simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos mundos sociais e culturais da
infância, e político e pedagógico, na concepção da mudança das instituições para as
crianças, tomando como ponto de ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o
nosso próprio mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns pintores, há
muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta dos traços das crianças. É
um mundo infinitamente mais pacífico aquele que se desenha nesses traços...

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19
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JOGO, IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO

Manuel Jacinto Sarmento

Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho.

Pedro Rosa Mendes conta no livro “a Baía dos Tigres” que viu uma criança entre as ruínas
da cidade do Bié, em Angola, jogando futebol, indiferente à desolação à sua volta. O
esférico com que se entretinha - imaginando-se o Eusébio ou o Pelé da época, como
qualquer criança de qualquer outra parte do mundo - era, à falta de melhor, os restos de
uma caveira humana: “Não é por maldade. O crânio estava disponível, perto e seco. Tu e
eu conhecemos as balizas da humanidade: crânios enterram-se, bolas são redondas. [À
criança] ninguém deu oportunidade para tanto.” (Mendes, 1999:386).

O jogo da criança do Bié tem o mesmo significado do de qualquer outra criança que, em
paz, brinca à guerra e até já aprendeu, a golpes de joystick, o que é um míssil Patriot ou um
B-52 carregado de bombas de implosão...

Entre as crianças que brincam com uma Barbie, ou que chutam um crânio humano, ou que
empunham uma Kalashnikov de plástico, ou que jogam ao berlinde, ou lançam o peão, ou
brincam às casinhas, ou se divertem na consola ou no écran do computador há todo um
mundo de diferenças: de condição de social, de contexto, de valores, de referências
simbólicas, de expectativas e possibilidades. Mas há também um elemento comum: a
experiência das situações mais extremas através do jogo e da construção imaginária de
contextos de vida.

O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas características das formas
específicas de relação das crianças com o mundo. Apesar das diferenças essenciais entre as
diversas orientações, sedimentadas na história da disciplina, as perspectivas psicológicas
do imaginário infantil possuem um elemento comum, que é aliás inerente à própria
concepção moderna da infância: o imaginário infantil é concebido como a expressão de um
déficit - as crianças imaginam o mundo porque carecem de um pensamento objectivo ou
porque estão imperfeitamente formados os seus laços racionais com a realidade. Esta ideia

1
do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que constitui um pressuposto
epistémico na construção social da infância pela modernidade: criança é o que não fala
(infans), o que não tem luz (o a-luno), o que não trabalha, o que não tem direitos políticos,
o que não é imputável, o que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de
razão, etc.

Sublinhamos que a negatividade definitória da infância assenta numa base ideológica que é
resultante do processo de reflexividade moderna, e tem suporte no discurso científico e
pericial.

Mas é da ordem da diferença e não do deficit que falamos, quando falamos do imaginário
infantil, por relação com o dos adultos.

Numa abordagem sociológica e antropológica, essa diferença imaginário infantil é


concebido como sendo inerente ao processo de formação e desenvolvimento da
personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto
social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições
sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a
de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e
que está sob o controlo da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua
dimensão simbólica nas culturas da infância.

As crianças como construtoras de cultura

O conceito de “culturas da infância” tem vindo a ser estabelecido consistentemente pela


Sociologia da Infância como um elemento distintivo da categoria geracional (e.g. Corsaro,
1997; James, Jenks e Prout, 1998). Por esse conceito entende-se a capacidade das crianças
em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de acção
intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção.

A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são
produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por
relações de classe, de género e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a
fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não
obstante, a “marca” da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural.

2
As culturas da infância são tão antigas quanto a infância. Resultam do processo societal de
construção da infância, coevo da modernidade. A diferença geracional é, assim,
historicamente construída, com efeitos na evolução do estatuto social e das representações
sociais sobre as crianças. Ao dizermos isto, recusamos uma concepção ontogénica das
culturas infantis e afastamo-nos de uma perspectiva que “naturaliza” os modos de
percepção, representação e significação do mundo pelas crianças, gerado a partir de
características desenvolvimentais específicas e realizadas no vazio social. Ao invés, as
culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são
alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as
crianças e que regem as possibilidades das interacções das crianças, entre si e com os
outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos,
exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade.

A relação particular que as crianças estabelecem com a linguagem, através da aquisição e


aprendizagem dos códigos que plasmam e configuram o real, e da sua utilização criativa,
constitui a base da especificidade das culturas infantis. Ora, esta aquisição e aprendizagem
é desenvolvida predominantemente nas instituições educacionais (jardins de infância e
escolas), tanto quanto nas interacções realizadas no espaço doméstico, através da educação
familiar. No entanto, considerar seria erróneo supor-se que as culturas da infância
exprimem prioritariamente um deficit linguístico, a colmatar pela escola. Pelo contrário,
elas são a expressão de competências infantis no uso e criação vocabular e semântica. Uma
vez mais, é da ordem da diferença (do uso da linguagem) e não do deficit que se trata.

Do mesmo modo, seria erróneo atribuir-se as culturas da infância a processos


institucionalizados de formação e constituição, pelo facto das instituições para as crianças
(especialmente a escola) terem tido um papel histórico na construção social da infância
(Aries, 1973; Ramirez, 1991; Becchi & Julia, 1998); pelo contrário, as culturas da infância
realizam-se frequentemente por oposição e numa atitude de contraponto crítico ao projecto
educacional, numa espécie de “divisão de trabalho” entre as culturas societais
(adultocentradas) escolarmente transmitidas e a as culturas infantis (Mouritsen, 1997).

Formas culturais produzidas para as crianças

3
É no vai-vém entre culturas geradas, conduzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças e
culturas construídas nas interacções entre as crianças que se constituem os mundos
culturais da infância.

Entre as primeiras – as formas culturais criadas e dirigidas pelos adultos para as crianças -
para além da cultura escolar (com os seus códigos próprios, resultantes do arbítrio cultural
que estabelece o recorte, selecção, incorporação, hierarquização e correspondentes
dispositivos de transmissão dos saberes e valores), deveremos considerar o conjunto de
dispositivos culturais produzidos para as crianças, com uma orientação de mercado,
configuradora da indústria cultural para a infância (literatura infantil, jogos e brinquedos,
cinema, bandas-desenhadas, jogos vídeo e informáticos, sites e outros dispositivos da
Internet, serviços variados – de férias, de tempos livres, de comemoração de aniversário,
de festas, etc.).

Quer a cultura escolar, quer os produtos do mercado para as crianças só se conseguem


transmitir e difundir de modo sucedido quando se compatibilizam com as condições
específicas de recepção pelas crianças. O estudo das relações entre a produção e recepção
cultural na infância poderá levar-nos a um olhar diferente sobre a história das ideias
pedagógicas, centrada nas aprendizagens e não já, como é habitual, nas teorias de ensino e
nas respectivas bases filosóficas, psicológicas, políticas, morais, etc. De modo similar, a
prioridade analítica concedida à ideia da criança como construtora de cultura poderá levar
a considerar o “insucesso escolar” como um fenómeno de desadaptação do discurso
didáctico à recepção infantil, o que, escusado será dizer, corresponde a uma inversão da
lógica exclusionista pressuposta nas principais teorias correntes do insucesso, segundo as
quais ele se deve às condições individuais ou sociais da recepção da cultura escolar pelos
alunos ou aos meios da sua “transmissão”, deixando inquestionada a própria natureza e
conteúdos da cultura escolar (cf. Charlot, 2000).

De modo similar, os produtos da indústria cultural para as crianças devem a sua eficácia à
empatia que conseguem estabelecer com os seus “consumidores”: dos filmes Disney às
cartas Pokemon e da boneca Barbie às consolas da Mattel verifica-se o estabelecimento de
uma conformidade com o imaginário infantil que explica a universalização desses
produtos. Eles tornam-se referências no mercado infantil pelo valor simbólico que lhes está
associado e que, em larga medida, se sobrepõe ao seu potencial lúdico (a posse da boneca
Barbie, por exemplo, é um elemento de distinção social cujo valor simbólico não é
transaccionável por qualquer outra boneca, mesmo com potencialidades lúdicas superiores,

4
cf. Rogers, 1999); porém, o uso a que se prestam pelas crianças está em linha de
convergência com o desejo e as potencialidades de fruição infantil (ainda que,
evidentemente, as não esgote). Com efeito: “A cultura comercial das crianças apela tanto
às crianças porque toma seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças..”
(Kenway e Bullen 2001:46)

Se a indústria cultural de produtos para a infância atende às culturas infantis tendo em vista
a expansão comercial e o lucro, por razões completamente distintas, a interpretação
sociológica das culturas da infância constitui-se como prioritária. Desde logo, porque ela é
essencial à compreensão da própria infância. A análise da recepção pelas crianças desses
produtos culturais é, portanto, fundamental. Uma das conclusões mais insistentemente
afirmadas na análise da recepção dos produtos da indústria cultural pelas crianças,
nomeadamente no que respeita aos programas televisivos, é de que, contrariamente ao que
é correntemente veiculado pelo senso-comum, as crianças não são receptoras passivas,
acríticas e reprodutivas desses produtos, mas, pelo contrário, ainda que se estabeleça uma
relação empática, essa recepção é criativa, interpretativa e frequentemente crítica das
respectivas mensagens (Buckingham, 1994 e 2000 e Pinto, 2000). Contrariamente ao que
por vezes é dado por adquirido (Steinberg e Kincheloe, 1997), a análise política e
simbólica dos produtos da indústria mercado cultural para a infância é insuficiente para
objectivar as culturas da infância e a institucionalização contemporânea da infância.

Em suma, a compreensão das culturas da infância só poderá ser feita na conjugação da


análise da produção das formas culturais para a infância com a recepção efectiva dessas
formas pelas crianças. Mas, além disso, essa compreensão não pode deixar igualmente de
pôr em relevo aquilo que são as formas culturais autónomas geradas pelas crianças nas
suas interacções e nas interacções com os adultos e com a natureza, e que as caracterizam
não apenas como fruidores, mas como criadores culturais.

Formas culturais produzidas pelas crianças

Entre as formas culturais produzidas e fruídas pelas crianças, consideraremos


fundamentalmente os jogos infantis, cuja memória histórica da sua construção se perde no
tempo e que são hoje um património preservado e transmitido pelas crianças, numa
comunicação intrageracional que escapa em larga medida à intervenção adulta. Referimo-
nos, por exemplo, a jogos como a macaca (assim designada em Portugal, mas com uma

5
expressão quase universal, conhecida pela “amarelinha” no Brasil, por exemplo), os
berlindes, o jogo do laço; a brinquedos como o pião, os papagaios de papel, as tampinhas
de garrafas de refrigerantes transformadas em veículos de corrida ou em bolas para jogos
simulados de futebol em miniatura, os carrinhos de rolamentos, ou mesmo a brinquedos
em relativo desuso como o arco e a roda ou o espeto. Mas integram também as culturas da
infância modos específicos de significação e de uso da linguagem que se desenvolvem
especialmente no âmbito das relações de pares e que são distintos dos processos adultos.

As culturas da infância constituem-se no mútuo reflexo de uma sobre a outra das


produções culturais dos adultos para as crianças e das produções culturais geradas pelas
crianças nas suas interacções de pares. Não sendo redutíveis aos produtos da indústria para
a infância e aos seus valores e processos ou aos elementos integrantes das culturas
escolares, tão pouco podem ser analisadas exclusivamente pelas acções, significações e
artefactos produzidos pelas crianças, porque estes não surgem do nada, antes estão
profundamente enraizados na sociedade e nos modos de administração simbólica da
infância (de que o mercado e a escola são integrantes centrais, a par das políticas públicas
para a infância). Considerando ainda, como afirmámos, que as culturas da infância são
cruzadas pelas culturas societais estabelecidas nas relações desiguais de classe, de género e
de etnia, podemos constituir um quadro interpretativo da complexidade da inserção cultural
da infância. As culturas da infância são, em síntese, resultantes da convergência desigual
de factores que se localizam, numa primeira instância, nas relações sociais globalmente
consideradas e, numa segunda instância, nas relações inter e intrageracionais. Esta
convergência ocorre na acção concreta de cada criança, nas condições sociais (estruturais e
simbólicas) que produzem a possibilidade da sua constituição como sujeito e actor social.
Este processo é criativo tanto quanto reprodutivo.

A inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é uma tarefa
teórica e epistemológica que se encontra em boa medida por realizar.

Para uma gramáticas das culturas da infância

Noutro texto (Sarmento, 2003), procurei enunciar alguns traços identificadores da


“gramática das culturas infância”, isto é dos princípios de estruturação do sentido que são
característicos das culturas da infância. Assim, as culturas da infância podem ser analisadas
na Semântica, isto é nos processos de referenciação e significação próprios das crianças, na

6
Sintaxe, isto é nas regras de articulação entre os elementos simbólicos e na Morfologia,
isto é, na especificidade das formas que assumem os elementos constitutivos das culturas
da infância: os jogos, os brinquedos, os rituais, mas também os gestos e as palavras. Podem
ser ainda analisadas na sua Pragmática, isto é, nas relações de comunicação que se
estabelecem entre pares e nos modos pelos quais se realizam os processos de cooperação e
de estratificação entre as crianças (Adler e Adler, 1999). Cada uma destas dimensões das
gramáticas das culturas da infância necessita de ser analisada nos seus princípios e traços
distintivos.

Como hipótese a explorar, pode avançar-se a ideia de que as crianças estabelecem uma
deslocação sobre os princípios lógicos estruturantes das gramáticas culturais adultas e,
especialmente, sobre os princípios da identidade e da sequencialidade. È importante frisar
que nos estamos a referir às culturas ocidentais de matriz europeia. As culturas não
ocidentais não se estruturam necessariamente sobre os mesmos princípios lógicos. Para as
crianças, no âmbito do jogo simbólico - cuja importância na infância está bem estabelecida
(Winnicot, 1975) -, o objecto referenciado não perde a sua identidade própria e é, ao
mesmo tempo, transmutado pelo imaginário: a criança pode passar a ser um astronauta, ou
um índio, ou um modelo exibindo-se nas passerelles, ou um gato, sem deixar de ser ela
própria, assim como o toco de uma vassoura se transmuta numa espada, ou num cavalo, e
uma toalha se transforma numa túnica ou numa bandeira, sem que a criança perca a noção
da identidade de origem. Do mesmo modo, a criança incorpora no tempo presente, o tempo
passado e o tempo futuro, numa sincronização de diacronias que altera a linearidade
temporal, possibilita a recursividade e garante a simultaneidade de factos
cronologicamente distintos. A criança repete a história “era uma vez...” e presentifica esse
passado de cada vez que se identifica com o herói que “então eu era...”, cometendo o
futuro antecipado do acontecido.

A alteração da lógica formal não significa que as crianças tenham um pensamento ilógico.
Pelo contrário, esta alteração, estando patente na organização discursiva das culturas da
infância (especialmente no que respeita ao jogo simbólico), é coexistente com uma
organização lógica formal do discurso, que permite que a criança simultaneamente
“navegue entre dois mundos” – o real e o imaginário – explorando as suas contradições e
possibilidades (Harris, 2002:232). Por outro lado, os princípios lógicos alterados também
não são exclusivamente integrantes das culturas da infância, sendo inerentes aos processos
de construção da linguagem poética, onde a subversão do princípio da identidade e da

7
sequencialidade são constitutivos dos respectivos processos de significação (e.g., Baktine,
1976; Kristeva, 1978).

Além da interactividade, a ludicidade constitui um tópico desde sempre associado às


culturas da infância, mas não apenas às culturas da infância. De acordo com Winnicott
(1975), o jogo é constitutivo do processo de formação cultural e o espaço do jogo
simbólico, que o bebé pratica e depois dele a criança e o adulto, a “terceira área” da
mediação entre o espaço interior e o mundo objectivo. Brincar não é, portanto, exclusivo
das crianças, é próprio do homem e uma das suas actividades sociais mais significativas.
Uma diferença importante, porém, é que as crianças brincam, continua e devotadamente e,
ao contrário dos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias (entre o ócio e o negócio ou
entre o lazer e o trabalho) não fazem distinção, sendo o brincar muito do que as crianças
fazem de mais sério. A cultura lúdica (Brougère, 1998), sendo transversal à sociedade - e
ademais, profundamente implicada na criação do mercado do lazer, de que a indústria
cultural para as crianças faz parte integrante – é, no entanto, algo central à própria ideia da
infância ocidental, desde há séculos. Com efeito, a natureza interactiva do brincar das
crianças constitui-se como um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da
infância. “Brincar com os outros, não brincar com objectos” (Sutton-Smith, 1986: 26). O
brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade.
Não espanta, por isso, que o brincar, o jogo e o brinquedo1 acompanhem as crianças nas
diversas fases da construção das suas relações sociais.

O jogo simbólico, é, metonimicamente, a própria expressão da cultura lúdica da infância,


associando uma outra característica inerente às culturas da infância – a fantasia do real ou a
“não literalidade” (Goldman e Emminson, 1987).

O jogo simbólico

O imaginário infantil, de acordo com a perspectiva que temos vindo a desenvolver sobre as
culturas infantis, corresponde a um elemento nuclear da compreensão e significação do
mundo pelas crianças. Com efeito, a imaginação do real é fundacional do seu modo de
inteligibilidade. As crianças desenvolvem a sua imaginação sistematicamente a partir do
que observam, experimentam, ouvem e interpretam da sua experiência vital, ao mesmo

1
A língua portuguesa permite distinguir estes três vocábulos (o que não acontece necessariamente noutras
línguas) sendo os três integrantes da mesma realidade lúdica, respectivamente: prática lúdica não formal;
prática lúdica estruturada regida por regras; artefacto lúdico.

8
tempo que as situações que imaginam lhes permite compreender o que observam,
interpretando novas situações e experiências de modo fantasista, até incorporarem como
experiência vivida e interpretada.

O jogo simbólico desempenha, deste modo e desde a mais tenra idade (cf. Harris, 2002)
uma função nuclear na construção do sentido pelas crianças; a intermediação desse jogo
com as outras, através da sociabilidade infantil e no âmbito das culturas de pares é central à
configuração de um imaginário colectivo, que está contextualizado socialmente, mas
exprime, nas condições específicas de cada situação espaço-temporal, a diferença cultural
estabelecida pela pertença geracional. É esse imaginário colectivo, afirmado na
transposição imaginária de situações, pessoas, objectos ou acontecimentos, esta “não
literalidade”, que pode explicar a excepcional da capacidade de resistência que as crianças
possuem face a situações muito dolorosas ou ignominiosas da existência, como tem sido
aliás sublinhado por um importante conjunto de estudos sobre crianças vítimas de
catástrofes naturais ou de maus-tratos (cf. Gavarini e Petitot, 1998). É por isso que fazer de
conta é processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para a
criança.

O jogo simbólico, desenvolvida pela criança desde as suas experiências primordiais e


progressivamente inserido nas interacções grupais e construído colectivamente pelos pares,
insere-se na experiência de vida e favorece a sua apreensão do mundo, como destaca P.
Harris:

“Desde a mais pequena idade, a maior parte das crianças têm a capacidade
de se envolver activamente em jogos simbólicos. Esses jogos sublinham três
aspectos importantes da imaginação das crianças: a sua capacidade de pôr
de parte a sua própria personalidade e de se imaginar estar no lugar de outra
pessoa numa situação que não é a sua situação actual; imaginando essa
situação, as crianças ficam limitadas pelo seu conhecimento dos processos
causais do mundo real – elas interpelam no quadro dessa situação
imaginária os mesmos processos e necessidades causais que sabem existir
na realidade; e, enfim, se o jogo simbólico repousa sobre a invocação de
situações afastadas da realidade presente, elas têm o poder de provocar
emoções reais.” (2002: 237).
Esta capacidade de transposição emocional das situações presentes, permite explicar como
o confronto com a dor é vivida frequentemente pelas crianças de modo imaginário2,

2
Uma vez mais, é possível estabelecer um paralelismo com a linguagem poética, recordando a transposição
imaginário do real no “fingimento” pessoano, evocado na sua Autopsicografia numa situação que é a inversa
da que aqui registamos: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor
que deveras sente.”

9
transpondo o sofrimento para o prazer de brincar no mundo que é de faz de conta, mas que
é levado totalmente a sério (como tantas vezes recorda o cinema; veja-se, por exemplo “A
Vida é Bela” de Roberto Benigni), que torna vivível uma vida, noutras circunstâncias,
tragicamente dominada pela ignomínia, a violência e a opressão. Que esta transposição
radica nas gramáticas e nos pilares das culturas da infância, foi o que pretendemos
demonstrar.

Articular o imaginário com o conhecimento e incorporar as culturas das infâncias na


referenciação das condições e possibilidades das aprendizagens – numa palavra, firmar a
educação no desvelamento do mundo e na construção do saber pelas crianças, assistidas
pelos professores nessa tarefa de que são protagonistas – pode ser também o modo de
construir novos espaços educativos que reinventem a escola pública como a casa das
crianças, reencontrando a sua vocação primordial, isto é, o lugar onde as crianças se
constituem, pela acção cultural, em seres dotados do direito de participação cidadã no
espaço colectivo.

Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este esforço, que é,
simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos mundos sociais e culturais da
infância, e político e pedagógico, na concepção da mudança das instituições para as
crianças, tomando como ponto de ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o
nosso próprio mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns pintores, há
muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta dos traços das crianças. É
um mundo infinitamente mais pacífico aquele que se desenha nesses traços...

10
Referências bibliográficas

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Winnicott, D. W. (1975). Jeu et Realité. Paris. Gallimard.

11
O SABER DA “ESCOLA DO BRANCO” E AS CULTURAS DAS
CRIANÇAS INDÍGENAS: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA DOS
(DES)ENCONTROS1

Roberto Sanches Mubarac Sobrinho2

Resumo: O objetivo deste texto é estabelecer, a partir das falas das crianças
Sateré-Mawé, o cruzamento entre os saberes vividos por elas no cotidiano de
sua comunidade indígena e os saberes instituídos pela escola regular,
destacando os (des)encontros que foram emergindo no processo da pesquisa
e que configuraram a distinção entre os lugares das culturas indígenas,
totalmente ausentes no contexto escolar, e a lógica da escola que determina a
existência de uma hierarquia de saberes onde os padrões da vida social
urbana devem ser seguidos como o modelo hegemônico vigente.

Palavras-chave: Culturas Indígenas – Infância – Prática Pedagógica

Introdução:

O presente artigo consiste na apresentação de parte da pesquisa de


doutoramento, realizada junto a um grupo de 12 crianças indígenas da etnia
Sateré-Mawé, que moram na Zona Urbana da cidade de Manaus-AM. O
trabalho constitui-se em uma Etnografia realizada na comunidade no período
de 08 meses e uma Objetivação Participante3 realizada no período de 04
meses em duas escolas públicas da rede regular do Ensino Fundamental e da
Educação Infantil em Manaus.
A comunidade na qual as crianças moram é chamada pelos Sateré-Mawé4
como WAYKIHU (estrela), e está localizada no bairro da Redenção, num

1
In: NASCIMENTO, Adir Casaro (Org.). Crianças Indígenas: diversidade cultural, educação e
representações sociais. Brasília: Liber Livros, 2011. (p. 181-204).
2
Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas. Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Santa Catarina, com aprofundamento de estudos no Instituto de Estudos da Criança, Braga-PT.
3
Segundo Bourdieu (2007, p. 51) é preciso não confundir objetivação participante com observação
participante. Para o autor a primeira representa de fato uma imersão no cotidiano da realidade por meio da
pesquisa e a segunda representa “uma – falsa – participação num grupo estranho”.
4
Os Sateré-Mawé que moram na comunidade são oriundos da região do médio rio Amazonas e
habitavam as áreas indígenas dos rios Andirá e do Marau, que foram demarcadas em 1982 e homologadas
em 1986, com 788.528 hectares, entre os estados do Amazonas e Pará. O processo de migração desta
etnia para Manaus, assim como para outras cidades do interior do estado, deu-se devido uma série de
fatores, mas, principalmente, pela “pretensa ilusão” da busca de melhorias. Hoje há uma estimativa de
morarem em Manaus aproximadamente 2.000 indígenas dessa etnia.
2

espaço bastante íngreme, sob a forma de barranco. Possui uma área de


aproximadamente 52 metros de frente por 54 metros de fundo, onde residem
14 famílias organizadas em habitações de madeira e alvenaria. Ao todos são
67 pessoas, entre crianças e adultos5. A principal atividade é o artesanato, que
é comercializado em barracas que ficam na frente da comunidade. Por
morarem na zona urbana, as crianças estudam em escolas regulares da rede
pública de ensino, pois não existe na cidade nenhuma escola indígena.
Desta maneira, as escolas regulares pesquisadas impõem às crianças
Sateré-Mawé o “ofício de aluno”6, através da mistificação da visão etnocêntrica
de ciência e seus processos de regulação, pela via da maquinação ideológica,
oprimindo seus jeitos de serem crianças indígenas e estabelecendo um
processo de moldagem para o ofício que lhes é imposto, negando suas
vivências comunitárias e os diversos elementos do seu grupo étnico afirmando-
os como um corpo de conhecimentos ilegítimos.

1. O rito e o ritmo das crianças na escola: marcando os


(des)encontros

A pluralidade das infâncias precisa ser compreendida em sua conexão


com a pluralidade de socializações humanas. Como demonstra Lahire (2003),
somos, desde o início, seres plurais. Atualmente, esta visão ampliada de
identidades sociais e pessoais, permanentemente construídas, vem sendo
aceita por muitos autores que procuram compreender a infância não como uma
noção unitária, mas como uma experiência social e pessoal, ativamente
construída e permanentemente ressignificada.
As crianças Sateré-Mawé não são e não existem como seres abstratos e
generalizáveis. E frases como: “Todas as crianças são imaturas, dependentes,
alegres...” foram tão fortemente ensinadas e repetidas que, até hoje,

5
Esses dados foram coletados na própria comunidade no decorrer da pesquisa, com a colaboração do
Cacique Luiz. É importante salientar que existe outra comunidade Sateré-Mawé, bem ao lado desta onde
realizamos a pesquisa, mas, por conflitos entre eles, estão separados e não mantêm uma relação amigável,
o que nos “obrigou”, de certa forma, fazer a escolha por uma delas, neste caso a de maior população
adulta e infantil.
6
Perrenoud (1995) afirma que, idealmente, o ofício de aluno incita-os a trabalhar para aprender. Na
realidade, pede-se também às crianças e adolescentes que trabalhem para estarem ocupados, para
transformarem textos, exercícios, problemas verificáveis, para serem avaliados, para contribuírem para o
bom funcionamento didático, para tranquilizarem professores e pais.
3

naturalizamos estas características nas mesmas. Ao contrário, crianças, em


variados tempos e espaços, viveram a sua experiência da infância de modos
muito diferenciados, o que transforma a infância numa experiência
heterogênea7.
Neste sentido, uma das mais importantes contribuições das Ciências
Sociais e Humanas é a de fazer emergir, nas crianças, as suas diferentes
experiências de infância, mediadas por variações como: gênero, espaço
geográfico, “classe social, grupo de pertença étnica ou nacional, a religião
predominante, o nível de instrução de população etc.” (SARMENTO, 2007, p.
29). As possibilidades das crianças Sateré-Mawé de viverem suas infâncias
estão profundamente ligadas a estas referências contextuais. E, apesar dos
severos processos de exclusão que os indígenas foram submetidos, as
crianças são capazes de observar, apreender e interpretar rapidamente este
tipo de diferenciação social.
A infância das crianças Sateré-Mawé é, simultaneamente, uma categoria
social, do tipo geracional, constituindo-se como um grupo de agentes sociais,
que interpretam e agem no mundo, principalmente na comunidade em que
vivem. “Nessa ação estruturam e estabelecem padrões culturais. Assim, suas
culturas infantis constituem, com efeito, o mais importante aspecto na
diferenciação da infância” (SARMENTO, 2007, p. 36)
Compreender como vivem e pensam as crianças Sateré-Mawé, entender
suas culturas, seus modos de ver, de sentir e de agir e escutar seus gostos ou
preferências é uma das formas de poder compreendê-las como grupo humano,
que se vincula a um grupo étnico bem definido, no caso os Sateré-Mawé.
Para isso, é preciso tirar as crianças da condição de objetos, para deixá-
las advir como agentes de sua própria ação e discurso. Isso significa afirmar
que elas são competentes, capazes de organizar suas vidas e de participar –
com suas diferentes linguagens – das tomadas de decisões acerca das
questões que lhe dizem respeito e fazem parte da cultura de seu povo
indígena.
Como já afirmado por Cohn (2006), as crianças não sabem menos, elas
sabem outras coisas. As crianças têm um modo ativo de ser e habitar o mundo,

7
Sarmento (2008).
4

elas atuam na criação de relações sociais, nos processos de aprendizagem e


de produção de conhecimento desde muito pequenas, inseridas diretamente na
vida da comunidade. Sua participação no universo social dos Sateré-Mawé
acontece pela observação cotidiana das atividades dos adultos e pela intensa
participação nos diversos momentos sociais vividos na comunidade, que se
torna o grande lócus de aprendizagem para elas, sendo que cada espaço
social é um espaço educativo.
A partir de suas vivências com outras crianças da comunidade e com os
adultos, elas acabam por constituir suas identidades pessoais e sociais,
vinculadas às tradições e costumes de seu povo, o que é fundamental no
fortalecimento de sua condição étnica.
Corsaro (2002), ao buscar investigar as culturas da infância, demonstra
como o desenvolvimento das crianças não é algo individual, mas um processo
cultural e, portanto, coletivo, que acontece continuamente através das relações
de brincadeira e de faz-de-conta desenvolvidas por elas. Neste sentido, para o
autor:

[...] é nestes microprocessos, envolvendo a interação com as


crianças dos que cuidam delas e com os seus pares, que uma
concepção do desenvolvimento social como um complexo produtivo-
reprodutivo se torna visível [...] Tal apropriação é criativa na medida
em que tanto expande a cultura de pares [...] como simultaneamente
contribui para a reprodução da cultura adulta (CORSARO, 2002, p.
114).

Um aspecto extremamente importante é o de observar que as culturas


infantis não são independentes das culturas adultas, dos meios de
comunicação de massa, dos artefatos que elas utilizam cotidianamente, mas se
estruturam de outra maneira. Sarmento (2007), da mesma forma, ao buscar
explicar estes processos de constituição das culturas infantis, assim os define:
a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração. Esses
quatro elementos, fundamentais para compreendermos a constituição das
culturas infantis, foram observados nitidamente no cotidiano das crianças
Sateré-Mawé no período em que estivemos com elas na comunidade.
A interatividade representou cada momento de estarem juntas, de
compartilharem suas experiências e de poderem fazer, de suas culturas de
pares, elementos fundamentais para estabelecerem processos relacionais aos
5

costumes e tradições de seu povo. Ainda nas indicações de Sarmento (idem, p.


117), “esta partilha de tempos, ações, representações e emoções é necessária
para um mais perfeito entendimento do mundo e faz parte do processo de
crescimento”.
A ludicidade constitui-se como elemento fundamental do modo de vida
das crianças Sateré-Mawé, pois brincar é para elas um grande aprendizado
que as possibilita viver e representar o mundo a partir dos seus pontos de
vistas e das mais agradáveis formas de viver a realidade. “Com efeito, a
natureza interativa das crianças constitui-se como um dos primeiros elementos
fundamentais das culturas da infância. O brincar é condição fundamental da
aprendizagem e, desde logo, aprendizagem da sociabilidade” (SARMENTO,
2007, p. 118).
A fantasia do real caracteriza a capacidade criativa e inventiva das
crianças Sateré-Mawé, principalmente representadas pelas formas de
ressignificarem as culturas adultas. Na vivência delas acerca do Ritual da
Tucandeira ou das brincadeiras de casinha, ônibus e nos seus desenhos,
percebemos que essas outras realidades “fazem parte da construção pela
criança da sua visão do mundo e da atribuição do significado às coisas” (Idem,
p. 119).
A reiteração representa a capacidade das crianças Sateré-Mawé em
definirem seus próprios modos de compreender o tempo-espaço que as
circunda e organizarem como as suas dinâmicas cotidianas são repetidas,
vivenciadas e reinventadas diversas vezes. “O tempo das crianças é um tempo
recursivo, continuamente revestido de novas possibilidades, um tempo sem
medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido” (Idem, p. 120).
Logo, nas indicações do autor, as crianças, em seus grupos, produzem
culturas, e a identificação dos processos pelos quais se dá esta produção nos
possibilita perceber as diferentes culturas infantis, o que, no caso das crianças
Sateré-Mawé, tem forte relação com as tradições do seu povo e também sofre
influência da sociedade urbana, principalmente pela ação da escola. Porém,
suas culturas se forjam mesmo nas suas relações de pares na comunidade.
Além do papel de agentes no seu contexto social, as crianças também
são importantes no processo histórico de seu povo, pois através de sua
participação e ação contribuem para trazer a novidade para a sociedade.
6

Assim, um outro mundo se abre para compreendermos as crianças Sateré-


Mawé, a partir da produção de um arsenal de características que lhes são
próprias.
Promover um diálogo entre estes mundos e suas culturas é uma saída
para poder repensar o modo como se pode educá-las e também repensar o
papel da escola. Neste sentido, além das culturas infantis, precisamos também
refletir sobre a produção cultural que se faz para as crianças, o que implica
pensar os tempos da escola frente aos ritos e ritmos das crianças Sateré-
Mawé.
De acordo com Lahire (2006), é preciso avaliar o processo de
socialização de diferentes maneiras. Isto é, nas indicações do autor,
compreender que as crianças Sateré-Mawé, ao incorporarem as culturas
tradicionais de seu povo, também produzem diferenças culturais a estas, e na
relação com as culturas da escola, podem ter incorporadas nos seus modos de
ver o mundo, questões que passam, inclusive, a desconsiderar e, até mesmo, a
excluir os elementos étnicos de seu povo. Eis um dos perigos da escola para
as crianças.
Um exemplo bem marcante dessa interface (negativa) entre as culturas
está relacionado à forma como as crianças compreendem a alteridade das
suas ações frente aos adultos, pois na comunidade elas podem realizar suas
atividades sem a definição arbitrária dos mesmos, o que na escola acontece de
forma totalmente diferenciada, pois seus diversos membros definem regras e
situações que as crianças Sateré-Mawé devem cumprir sem que as mesmas,
sequer, saibam do porquê de estarem fazendo tais atribuições.
Para melhor compreendermos essa distância entre a realidade da
comunidade e o trabalho escolar, elencamos algumas situações expressas
pelas crianças e objetivadas em nossas observações, que representam bem a
diferença dos fazeres comunitários e dos fazeres programados pela escola.
As vivências acompanhadas nas escolas, principalmente relacionadas à
forma das crianças estarem presentes na organização do espaço da sala de
aula, ficam evidenciadas pelo distanciamento das mesmas, tanto dos
professores quanto das outras crianças, como apresentado na observação de
campo que se segue:
7

Chegamos a uma sala de aula e a professora estava organizando a


turma para realizar um trabalho de escrita. Ela foi direcionando as crianças e
criando posições para cada uma delas. Larissa (11 anos), a única criança
indígena que estudava na turma, foi posta bem num canto, no fundo da sala. A
professora fazia as perguntas para os alunos que iam respondendo da forma
como haviam aprendido, mas em momento algum se reportou à menina
Sateré-Mawé, sua atitude era como se a mesma não estivesse presente na
sala de aula. Foi quando resolvemos perguntar à Larissa sobre essa situação.
Ela assim nos relatou:

“Eu sempre sento no fundo da sala, a professora me colocou aqui desde


que descobriu que eu era indígena, acho que ela não gosta de mim, por que
não fala quase nada comigo. Mas eu também não falo com ela, mas gosto dela
sim (respondeu meio amedrontada). Lá na comunidade eu sento junto com as
outras crianças pra brincarmos, pra fazermos um monte de coisas, não gosto
de ficar aqui no canto, sozinha, prefiro quando estou com as crianças de lá da
comunidade.”
(Larissa, 11 anos)’

Estas configurações individuais e excludentes são estabelecidas pelos


modos de recepção e tornam-se hoje “majoritárias em todos os grupos sociais,
sendo impossível classificar culturas de grupos ou de classes que compõem a
formação social” (Lahire, 2006, p. 154). Não há nada de mais comum e
frequente, na sociedade contemporânea, que a singularização dos indivíduos.
Com as crianças Sateré-Mawé este distanciamento tem ocorrido
continuamente nas escolas pesquisadas.
Infelizmente, o contexto das escolas e da comunidade produz ritmos e
ritos diferentes para as crianças Sateré-Mawé, diferentes no sentido da
exclusão e do distanciamento das demais crianças na escola, pois na
comunidade esse sentido ganha um aspecto de coletividade, de união, de estar
juntas. Na verdade, a escola produz tempos e espaços e não tempos-espaços
(GIDDENS, 1991), pois fragmenta sua ação e reproduz o modelo de sociedade
em que os indivíduos são moldados a ficarem fixos aos lugares que irão
8

desempenhar determinados papéis sociais, para os quais as crianças


indígenas não têm espaço e, portanto, devem ser deixadas de lado.
Outra situação, que representou bem esses processos excludentes
produzidos pelas escolas, foi vivenciada durante a realização de um trabalho
desenvolvido pela professora da quarta série do ensino fundamental e que
procurou identificar, no contexto da sociedade de consumo, a questão das
profissões.
A professora levou para a sala de aula um cartaz contendo uma série de
profissões que devem ser exercidas na sociedade e a importância de cada uma
delas. Depois, pediu que cada criança falasse o que gostaria de “ser quando
crescer”, ou seja, qual profissão gostaria de exercer. As crianças foram fazendo
suas exposições.
Quando Taíza (12 anos), em forma de uma história, começou a falar
sobre o que gostaria de ser quando crescer, a professora imediatamente
interrompeu a criança e disse que sua história não tinha nada a ver com o
conteúdo que estavam estudando, pois aquilo que ela relatara era
completamente insignificante para a discussão da sala de aula. A menina
assim expressou sua visão acerca de que profissão gostaria de exercer:

“Num lugar bem distante da cidade, viviam muitas pessoas que


gostavam de fazer farinhada feita de mandioca para que todo mundo pudesse
comer. Para fazer essa farinha era preciso que todos ajudassem, quanto mais,
melhor, o que daria um monte de farinha. Eu quero, quando crescer, ser
fazedora de farinha, para que ninguém passe fome”. (Taíza, 12 anos)

Na visão de Taíza, está claramente presente a sua ligação com a


tradição de seu povo na produção da farinha de mandioca. E, como na
comunidade as crianças cantam a música da farinhada corriqueiramente e a
farinha representa um de seus principais alimentos, ela relacionou a profissão à
satisfação tanto pessoal quanto coletiva dos membros de sua comunidade,
destacando que comer é um fator fundamental para se viver bem.
Infelizmente, a atitude da professora foi a de desconsiderar a
capacidade criativa da criança e afirmar que os textos deveriam estar
relacionados às profissões que ela havia definido no início da aula (médico,
9

professor, dentista, policial, juiz, comerciante, entre outras mais), e que ser
“fazedora de farinha” não era profissão nenhuma e que quem vem para a
escola tem que ter uma profissão de verdade. Ela assim se reportou às
crianças:
“Menina você tá brincando comigo? Eu mandei falar de profissão e não
ficar inventando coisa que não tem sentido. Onde já se viu falar que fazedora
de farinha é profissão?! Acho mesmo que você não entende o que eu ensino e
quer continuar sendo índia. Presta atenção que você não está na aldeia e que
mora na cidade e na cidade todo mundo tem que ter uma profissão”
(Professora Diva).

Logo, a produção cultural das crianças Sateré-Mawé não tem valor


legítimo no ambiente escolar. Na verdade, nem são consideradas como
produtoras de culturas, pois os seus modos de ver o mundo não representam
um conhecimento que possa ser incorporado ao capital cultural trabalhado na
escola, o que determina sua condição de ausência na produção de tempos e
espaços escolares, como discutiremos no item a seguir.

2. O saber da cultura Sateré-Mawé e o saber “legítimo” da


escola: onde as fronteiras se distanciam.

A ideia de fronteira, entendida na sua mais forte polissemia, tem


oferecido, na visão de Barth (1998, p. 189), “[...] uma importância primordial ao
fator de que os grupos étnicos são categorias de atribuições e identificações
realizadas pelos próprios atores”. Seguindo a visão deste autor, passamos a
estabelecer as nossas discussões a respeito das noções de fronteiras, que são
fundamentais para o entendimento dos processos culturais que envolvem a
vida dos Sateré-Mawé no espaço urbano.
Sendo assim, as culturas passam a ser percebidas em suas
transformações e não em sua suposta integridade, pois o que as diferencia é o
modo como se defrontam e como se transformam com as distintas realidades.
Neste sentido, Barth (Idem, p. 195) afirma que “[...] a fronteira étnica canaliza a
vida social – ela acarreta de um modo frequente uma organização muito
10

complexa das relações sociais e comportamentais [...] que se reconheçam


limitações na compreensão comum, diferenças de critérios de julgamento, de
valor e de ação...”.
No caso da relação entre as culturas escolares e a cultura do povo
Sateré-Mawé, foi constatada, durante a pesquisa de campo, que ao invés de
serem concebidas como fronteiras onde se deveriam estabelecer um diálogo
profícuo para se garantir o sentimento de pertença, as mesmas, principalmente
determinadas pela cultura legitimada pela escola, tendem a conceber as
crianças Sateré-Mawé como “tábulas rasas”, como se elas, ao adentrarem no
ambiente escolar, viessem completamente desprovidas de um saber capaz de
ser articulado aos conteúdos da escola, manifestando-se como exclusão.
Assim, de acordo com Bourdieu (2007), a homogeneidade cultural
resulta muito mais de um processo de criação coletiva e de constituição de um
significado coletivo, do que de fatores determinantes a que usualmente se
recorrem para a identificação de um grupo étnico. Pode-se afirmar, então, que
o ato de partilhar uma determinada cultura é o resultado muito mais da
organização de tal grupo.
As crianças na comunidade possuem uma capacidade de criação e
recriação das diversas situações do cotidiano, inclusive ressignificando
costumes que somente os adultos podem realizar, mas que elas os fazem
simbolicamente8. Como no caso do Ritual da Tucandeira, que representa todo
um contexto de status social e de passagem, que irá marcar definitivamente o
mundo infantil do mundo adulto. Elas o vivenciam desenhando, cantando,
transformando objetos (como sacos plásticos ou de papel) que estão ao seu
redor em luvas e, como maneira de se sentirem presentes nesse momento tão
importante para o seu povo, (re)criam suas próprias canções a partir das
músicas que são utilizadas no período do ritual.
Logo, não lhes falta criatividade e capacidade inventiva, ao contrário,
elas muito sabiamente ressignificam essas funções, transformando-as em
culturas infantis. Sabem desenhar muito bem e ainda contam histórias, falam
de situações do cotidiano, escrevem - às vezes em português, outras vezes em

8
Mubarac Sobrinho (2009).
11

Sateré-Mawé - e procuram fazer de cada momento vivido um espaço de


aprendizagens constantes.
Ao chegarem nas escolas, essas riquíssimas experiências do cotidiano
são desconsideradas, pois como não se enquadram nos conteúdos “legítimos”,
não representam uma possibilidade de serem abordadas ou utilizadas como
elementos contextualizadores de aprendizagens que possam se tornar mais
significativas para elas e ampliar a possibilidade das outras crianças em
conhecer a cultura desse povo indígena.
É neste sentido que, para Forquin (1993, p. 166):

[...] a razão pedagógica é essencialmente normativa e prescritiva,


sua tentação natural é o universalismo, compreendido aí no que isto
pode comportar por vezes de segurança de si etnocêntrica, sua
postulação normal é uma certa espécie de idealismo prático.

Observamos um trabalho que foi realizado pela professora da segunda


série do ensino fundamental em relação à leitura e escrita de palavras, que
representa bem a visão da escola criticada pelo autor. Nas observações de
campo relatadas a seguir fica explicitada a forma preconceituosa presente nas
suas práticas.
A professora, como definido no plano de aula, distribuiu uma quantidade
de figuras para as crianças e pediu que as mesmas as identificassem e, logo
em seguida, escrevessem os nomes que representavam cada uma. As duas
crianças Sateré-Mawé que estudavam na série fizeram o que foi solicitado,
porém, em algumas das figuras, escreveram os nomes em Sateré, pois não
sabiam escrevê-los em português. A professora, imediatamente, disse que os
nomes estavam errados e que aquelas palavras não tinham sentido nenhum.
Não houve sequer um diálogo com as crianças para buscar uma
compreensão daquilo que estavam escrevendo. Simplesmente se considerou
errado e sem valor para a escrita convencional da escola. Para tornar a
situação ainda mais constrangedora para as crianças, a professora pegou o
caderno onde se encontravam suas escritas e mostrou para a turma toda como
forma de demonstração da incapacidade de acompanhar o desempenho dos
demais alunos. Ela assim relatou sobre a produção das duas crianças:
12

“Vocês duas aí, não sabem escrever nada, nem sei por que já estão na
segunda série. Esse monte de coisas que rabiscaram no papel não tem sentido
nenhum, eu expliquei que era para escrever o significado de cada figura e
esses ‘garranchos’ que escreveram não servem para nada”. (Professora,
Clara)

Além de provocar constrangimento para as crianças, desqualificou


completamente o processo de escrita que as mesmas tinham feito, pois quando
fomos indagar o que estava escrito abaixo de cada figura, elas nos afirmaram
terem escrito na língua da comunidade e depois explicaram o significado em
português, que era exatamente aquilo que as figuras representavam. Essa
situação exemplifica bem o modelo hegemônico que marca a ação pedagógica,
que não considera a possibilidade de outras formas de linguagens, senão
aquelas que já estão programadas nos planos da escola.
Evidencia-se com clareza o despreparo e descaso deste professor com
o conhecimento que as crianças Sateré-Mawé trazem da sua experiência
cotidiana e dos saberes adquiridos no seu grupo étnico. Por isso, a prática
pedagógica pauta-se na visão que reforça a exclusão, a discriminação e busca
determinar o papel de cada ser/aluno no contexto da sociedade urbana, como
sendo a única referência possível. Um saber etnocêntrico que cada vez mais
se perpetua na ação escolar e que expõe, de forma cruel, as crianças a
processos contínuos de exclusão.
Para Forquin (1993, p. 169):

A desigualdade de resultados e a diferenciação de curso dos


diferentes grupos de crianças dever-se-iam ao fato de que a escola
se obstinaria em querer transmitir uma cultura com valor de distinção
e com finalidade discriminatória, uma cultura desprovida de
universalidade, aberta ou hipocritamente de acordo com os hábitos e
valores de grupos sociais particulares.

A escola deveria representar, para as crianças indígenas, uma grande


possibilidade de aprenderem os conhecimentos necessários para o
relacionamento com a sociedade envolvente, e que garantissem continuar
sobrevivendo ao contato, que é cada vez mais intenso, principalmente por
estarem no espaço urbano. No entanto, as escolas pesquisadas agem de
13

maneira completamente oposta à constituição dessas possibilidades,


contribuindo para a desvalorização da cultura Sateré-Mawé e a
supervalorização da cultura urbana, que visa massificar esses grupos
minoritários e invisibilizá-los.
Outra situação, vivenciada na aula de matemática da professora da
terceira série do ensino fundamental e relatada por uma das crianças Sateré-
Mawé, representa bem o distanciamento que a escola promove entre os
saberes. A matemática, na visão da professora, é uma ciência que possui
apenas uma única possibilidade de se chegar a um resultado.
A professora escreveu no quadro quatro atividades com conteúdos
vinculados à adição, à subtração, à divisão e à multiplicação. Uma das
questões tinha o seguinte enunciado: “Uma passagem de ônibus custa R$ 1,80
(um real e oitenta centavos). Quanto pagarão sete pessoas para se deslocar de
um lugar para outro no transporte?”
A resposta de Larissa (11 anos), que sempre participa na comunidade,
juntamente com as outras crianças, da brincadeira de ônibus, e costuma
assumir o papel da cobradora por ser uma das crianças com maior idade,
assim foi elaborada:

“Lá na comunidade, quando a gente brinca de ônibus e eu sou a


cobradora, quanto mais gente tem no ônibus, mais tem que pagar. Como nós
não temos dinheiro de verdade, a gente usa folhas, as pequenas valem pouco
e as grandes valem mais. Então, se são sete pessoas que vão andar no
ônibus, elas vão ter que pagar muito. Se fosse só uma mesmo, bastava uma
folha pequena”.

A professora, ao ler a resposta, considerou-a errada, pois a criança não


deu o resultado que ela esperava. Reportando-se à menina de forma bastante
autoritária, disse: “Tá tudo errado, você não sabe nada de matemática. Eu
ensinei os números e cadê o resultado?” (Professora Margarida). Deu um
castigo pelo erro e mandou Larissa para casa, na metade da aula. A menina
saiu da sala de aula feliz e foi para sua casa.
Quando chegamos à comunidade, pedimos que Larissa nos mostrasse
sua resposta e comentasse o que tinha escrito. Ela nos disse exatamente o
14

que escreveu na resposta, quando tem mais gente no ônibus paga-se mais. O
que representa uma maneira lógica de se descrever a questão. Porém, para a
professora, o correto era a representação do resultado em forma de números,
ou seja, o valor em reais que seriam gastos pelas pessoas.
Como para as crianças Sateré-Mawé o contato com dinheiro é
praticamente nenhum, ela não tinha noção de valor, mas conseguiu expressar
uma noção de quantidade perfeita, relacionando-a à brincadeira que vivencia
na comunidade e ainda confirmando a lógica de que quanto mais pessoas,
maior o tamanho das folhas e também a quantidade. Infelizmente, essa lógica
não é aceita pela escola e o resultado é o castigo, que para Larissa foi bem
vindo, pois ela voltou mais cedo para sua casa.
Desse modo, podemos perceber que a escola, enquanto “representante”
da sociedade urbana, mantém relações de justaposição ou de integração e
também de exclusão e de conflitos, ou, ainda, marcadas por indiferença ou
mesmo por castigos.
Neste caso, para Sacristán (2005, p. 14):

De alguma forma, o discurso pedagógico baseado no conhecimento


científico fez com que realmente se mascarasse a influência das
condições sociais no desenvolvimento dos menores e no tipo de
respostas que dão às exigências escolares. A tendência será atribuir
as diferenças entre os indivíduos a características pessoais, tirando
a responsabilidade do ambiente educacional.

Outro ponto a ser destacado é que as culturas não estão em um nível de


inter-relação entre os saberes das escolas e os das comunidades indígenas.
Estudos teóricos a respeito da cultura sugerem que sejam deixadas de lado as
definições de cultura configuradas como sistemas fechados e que, no lugar
delas, os conceitos sejam trabalhados com base em processos de circulação
de significados, o que se constitui um grande desafio para as escolas.

Conclusão:

Pensando no contexto amazônico, seria um grande equívoco tratar as


culturas indígenas como se fossem homogêneas e fechadas em si mesmas,
15

sendo apenas diferenciadas por sua entrada no cenário histórico. Uma das
consequências desse equívoco ocorre quando essa concepção naturalizada de
cultura se encaixa com exatidão na representação do senso comum sobre os
índios, que é a de um indivíduo que vive na selva, utiliza técnicas rudimentares
e possui instituições mais primitivas, sendo ele pouco distanciado da natureza.
É, no entanto, essa representação que habita o imaginário das manifestações
artísticas, os estatutos legais, a política indigenista e mesmo os mecanismos
oficiais de proteção e assistência aos índios.
Neste sentido, o fato de muitas etnias virem morar nas cidades tem sido
equivocadamente compreendido como um indicador do desejo dos indígenas
de não conservação de sua condição étnica, deduzindo-se automaticamente a
renúncia à proteção já garantida pela legislação. Essa compreensão não leva
em conta toda uma série de processos históricos de opressão e discriminação
e gera espaço para novos tipos de preconceitos, ainda não devidamente
tratados pela legislação brasileira. Em geral, a tentativa dos indígenas da
cidade de fazer valer os seus direitos resulta em tipos diversos de preconceito
e discriminação, que consistem em desqualificar suas pretensões aos lhes
negar a condição de indígenas e, mesmo que haja esse reconhecimento, sem
traduzi-las em garantia dos direitos correspondentes e de práticas escolares
coerentes com seus processos próprios de aprendizagem.
Em se tratando mais especificamente da questão das fronteiras como
elementos capazes de aproximar tais culturas, o que se percebeu nas escolas
pesquisadas é a intensificação da diferença, da construção de mecanismos
pedagógicos que excluem totalmente a possibilidade de um diálogo
intercultural, onde os saberes das crianças Sateré-Mawé e os saberes da
escola possam ser legitimados como autênticos e capazes de produzirem
novos saberes, que rompam com a visão hegemônica e homogeneizadora e
abram espaço para uma escola de múltiplas possibilidades, contrapondo-se a
essa didática dos (des)encontros.
As reflexões de Forquin (1993, p. 173), em relação a essa escola,
levam-nos a pensar também no nosso papel enquanto agentes desse
processo.
16

Isso seria esquecer que, mesmo desencantados, mesmo


desenganados, não podemos nos subtrair à continuidade das
gerações e que estamos determinados a ensinar, estamos
determinados a transmitir alguma coisa que valha para os que nos
seguem, não porque achemos que o mundo se tornará
especialmente, por isso, mais feliz, mais justo ou mais sábio, mas
muito simplesmente porque o mundo continua.

Logo, é fundamental que participemos efetivamente desse processo de


tomada de decisão e não fiquemos presos a uma visão que aceite essa
configuração de escola, que encontramos fazendo parte da realidade das
crianças Sateré-Mawé, como a única opção possível, e que por isso devemos
nos conformar com esse processo educacional castrador. Nossas reflexões
intencionam contribuir para que mudanças possam acontecer e que venham
beneficiar as crianças. Pois, como afirmou Forquin na citação acima, “o mundo
continua” e nós temos uma grande responsabilidade diante dessas crianças.

Referências:

BARTH, Fredrik. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe;


STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade: seguidos de grupos
étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2007.

COHN, Clarice. Relações de Diferença no Brasil Central: os Mebengokré e


seus Outros. São Paulo. Departamento de Antropologia: USP, 2006. (Tese de
Doutorado em Antropologia).

CORSARO, William A. A Reprodução Interpretativa no Brincar ao “Faz-de-


conta” das Crianças. In: Educação, Sociedade e Cultura, nº 17. Porto:
Afrontamento, 2002. (p. 113 a 133).

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e


epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre : Artes Médicas, 1993.

GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo:


UNESP, 1991.
LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: ARTMED, 2006.

LAHIRE, Bernard. O homem plural: as molas da acção. Lisboa: Instituto


Piaget, 2003.
17

MUBARAC SOBRINHO, Roberto Sanches. Vozes Infantis: as culturas das


crianças Sateré-Mawé como elementos de (des)encontros com as culturas da
escola. Florianópolis-SC: UFSC, 2009. (Tese de Doutorado em Educação).

PERRENOUD, Philippe. Oficio de aluno e sentido do trabalho escolar.


Porto-PT: Porto Editora, 1995.

SACRISTÁN, José Gimeno. O aluno como invenção. Porto Alegre: Artmed,


2005.

SARMENTO, Manoel Jacinto; VASCONCELOS, Vera Maria Ramos de.


(Orgs.). Infância (in)visível. Araraquara: SP: Junqueira & Marin, 2007.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da Infância: correntes e confluências.


In: SARMENTO, Manuel Jacinto; GOUVEIA, Maria Cristina Soares (Orgs.).
Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Rio de Janeiro: Vozes,
2008.
ENTRE  OUTROS  OLHARES  E  NOVAS  TRILHAS:  
VIOLÊNCIA  SIMBÓLICA  E  PRÁTICAS  PEDAGÓGICAS  COM  
CRIANÇAS  INDÍGENAS  “URBANAS”

Roberto  Sanches  Mubarac  Sobrinho RESUMO:  O  objetivo  deste  artigo  é  apresentar  uma  reflexão  
acerca  do  trabalho  de  pesquisa  etnográfica  realizada  em  uma  
Professor  da  Universidade  do  Estado  do  Amazonas. comunidade  indígena  na  cidade  de  Manaus  -­  Amazonas  e  em  
Doutor  em  Educação  pela  Universidade  Federal  de  Santa  Catarina.   duas  escolas  públicas  que  atendem  um  grupo  de  12  crianças  
da  etnia  Sateré-­Mawé,  residente  na  zona  urbana  da  cidade.  A  
pesquisa  foi  realizada  durante  o  ano  de  2007  e    teve  no  cotidiano  
das   crianças   e   na   observação   das   práticas   pedagógicas   dos  
professores  seus  elementos  principais  de  análise.  Como  base  
de   fundamentação   mais   abrangente,   procuramos   trabalhar  
com  o  conceito  de  Violência  Simbólica  (BOURDIEU,  2001),  
entrecruzando-­o   e   relacionando-­o   com   as   vozes   que   foram  
“geradas”  pelas  crianças  durante  o  processo  de  coleta  de  dados  
da  pesquisa  de  campo,  tanto  na  comunidade  indígena  quanto  
na   escola,   o   que   nos   possibilitou   um   olhar   mais   vigilante  
sobre  esse  grupo  social  de  crianças  e  as  práticas  pedagógicas  
destinadas  a  ele.    

PALAVRAS-­CHAVE:   Infância.   Crianças   indígenas.  


Violência  simbólica.

ABSTRACT:   This   paper   presents   a   reflection   about   the  


work   of   ethnographic   research   in   an   indigenous   community  
in  Manaus  –  Amazonas,  and  two  public  schools  that  serve  a  
group  of  12  Sateré-­Mawé  children,  residing  in  the  urban  area  
city.   The   research   was   conducted   during   2007   and   had   the  
daily  lives  of  children  and  the  observation  of  teachers’  peda-­
gogical   practices   of   major   elements   analysis.  As   a   basis   for  
broader   reasons,   seek   to   work   with   the   concept   of   symbolic  
violence   (Bourdieu,   2001),   crisscrossing   it   and   relating   it   to  
the   voices   that   were   “generated”   by   the   children   during   the  
process  of  collecting  data  from  field  research,  both  in  the  in-­
digenous  community  and  in  school,  which  enabled  us  to  look  
more  vigilant  about  this  social  group  of  children  and  teaching  
practices  aimed  at  him.

KEYWORDS:   Childhood.   Indigenous   children.   Symbolic  


violence.

INTRODUÇÃO: urbana  da  cidade  de  Manaus-­AM,  e  um  processo  de  observação  
durante   dois   meses,   que   se   deu   em   duas   escolas   públicas   das  
O   trabalho   de   pesquisa   com   crianças,   seja   na   área   da   redes   Estadual   e   Municipal   de   Educação.   Esses   pressupostos  
Educação   ou   nas   diversas   áreas   das   Ciências   Sociais,   envolve   constituem-­se   como   pontos   de   proximidade   com   os   princípios  
dimensões  e  cuidados1  extremamente  importantes  que  deverão   da  sociologia  de  Pierre  Bourdieu  (1998),  quais  sejam:  a  pesquisa  
nortear   o   processo   de   planejamento,   execução   e   avaliação   empírica  e  a  formulação  epistemológica.
da   ação   do   pesquisador/investigador.   Neste   texto,   procurarei   Durante  o  ano  de  2007,  dos  meses  de  janeiro  a  novembro,  foi  
discutir  de  maneira  introdutória  tais  preocupações,  focalizando,   realizado  um  processo  de  entrada  no  campo,  primeiramente  no  
para  tanto,  como  categoria  chave  das  reflexões  aqui  propostas,   contexto  onde  as  crianças  moram  e,  posteriormente,  nas  escolas  
o  conceito  de  Violência  Simbólica,  de  Pierre  Bourdieu  (2001),   onde   estudavam,   abrindo   possibilidades   de   confrontamento  
e  as  contribuições  que  esse  autor  pode  trazer  a  esse  processo  de   entre   as   práticas   pedagógicas   desenvolvidas   e   a   realidade   dos  
pesquisa  ainda  cheio  de  lacunas  e  questões  que  demandam  das   seus  contextos  próprios.  Isso  nos  possibilitou  o  desvelamento  de  
Ciências  Humanas  e  Sociais  um  esforço  de  busca. uma  série  de  questões  que  transitam  entre  o  dito  e  o  não-­dito.2
Tomarei   como   base   para   os   argumentos   aqui   esboçados,   Essas  incursões  foram  movidas  pela  possibilidade  de  conhecer  
além  das  formulações  do  autor  e  de  seus  seguidores,  a  pesquisa   a  realidade  das  crianças  Sateré-­Mawé  de  forma  mais  aprofundada,  
de   cunho   etnográfico   que   foi   realizada   durante   o   período   de   visando  uma  imersão  nos  seus  universos  infantis,  o  que  contribuiu  
oito  meses,  junto  a  12  crianças  da  etnia  Sateré-­Mawé,  na  zona   para  o  reconhecimento  da  infância  enquanto  produção  cultural,  pois  
   
1 2

1  
Teóricos,  metodológicos  e  éticos.  Aprofundamentos  em  Kramer  (2002).
2  
³2GLVFXUVRPDQLIHVWRQmRSDVVDULDD¿QDOGHFRQWDVGDSUHVHQoDUHSUHVVLYDGRTXHHOHGL]HHVVHQmRGLWRVHULDXPYD]LRPLQDGRGRLQWHULRUWXGRTXHVHGL]´)RXFDXOW
(2007,  p.  28).

12   Olhares   &   TrilhaS   ~ Uberlândia,  Ano   XI,   n.11,   p.   11-­23,   2010


“pensar  as  crianças  sem  tomar  em  consideração  as  situações  da  vida   utilização  da  linguagem  e  da  cultura  tradicional  do  povo  Sateré,  
real  é  despir  de  significado  tanto  as  crianças  como  as  suas  acções”   tomando  por  base  a  (in)visibilização  dos  seus  jeitos  próprios  de  
(GRAUE  &  WALSH,  2003  p.  26). expressar  os  saberes  advindos  dos  seus  cotidianos,  tornando-­os  
Desta  maneira,  à  medida  que  as  leituras  afloravam  e  as  vozes   ilegítimos.
e   imagens3   das   crianças   compunham   o   cenário   da   pesquisa,   o   Para  Miceli  (2004,  p.  XXVI):
contexto   das   discussões   ganhou   um   contorno   cada   vez   mais  
aprofundado  e  uma  série  de  desafios  foram  se  pondo  no  sentido   $ VHOHomR GH VLJQL¿FDo}HV TXH GH¿QH REMHWLYDPHQWH D FXOWXUD GH
de  entender  o  que  fazer  com  a  grande  quantidade  de  “dados”4   um  grupo  ou  de  uma  classe  como  sistema  simbólico  é  arbitrária  na  
acumulados   no   processo   de   ida   aos   espaços   cotidianos   das   medida  em  que  a  estrutura  e  as  funções  desta  cultura  não  podem  ser  
crianças.  Neste  sentido,  as  reflexões  de  Miceli  (2004,  p.  LX),  ao   deduzidas  de  qualquer  princípio  universal,  físico,  biológico  ou  es-­
citar  Bourdieu,  foram  fundamentais  nesse  processo  de  tomada   piritual,  não  estando  unidas  por  nenhuma  espécie  de  relação  interna  
de  compreensão. com  a  ‘natureza  das  coisas’  ou  com  uma  ‘natureza  humana’  .

Os  discursos,  os  ritos  e  as  doutrinas  constituem  não  apenas  modali-­ Foi   a   partir   dessa   “teia   de   relações”   5   que   surgiram   nossas  
GDGHVVLPEyOLFDVGHWUDQV¿JXUDomRGDUHDOLGDGHVRFLDOPDVVREUH-­ questões   centrais   de   análises   e   que   desvelaram,   em   muitos  
WXGR RUGHQDP FODVVL¿FDP VLVWHPDWL]DP H UHSUHVHQWDP R PXQGR sentidos,   a   força   que   a   Violência   Simbólica   tem   na   formação  
natural  e  social  em  bases  objetivas  e  nem  por  isso  menos  arbitrárias. das   crianças   e   o   imponente   papel   massificador   das   relações  
sociais  de  poder  que  a  mesma  vai  imprimir  no  processo  de  (des)
Efetivamente,   a   tentativa   de   compreensão   das   implicações   socialização  da  infância  desse  grupo.6
e  efeitos  da  Violência  Simbólica  na  cultura  e  na  linguagem  das   Porém,  antes  de  entrarmos  no  escopo  da  pesquisa  e  tentarmos  
crianças   Sateré-­Mawé   deve   considerá-­los   como   mecanismos   trazer,   a   partir   das   vozes   das   crianças,   essa   violência   tão  
formais  e  informais  cujas  capacidades  geradoras  são  ilimitadas.   presente,  e  ao  mesmo  tempo  ausente  –  pela  supressão  das  falas  
Parafraseando   Bourdieu   (2001),   passamos   a   evidenciar   que   o   –,   buscaremos   fundamentar   alguns   conceitos   que   iluminaram  
uso  que  se  faz  da  língua  depende  diretamente  da  distribuição  do   nossas  análises,  assumindo  o  risco  de  não  dar  conta  de  tal  tarefa,  
capital  cultural  e,  por  conseguinte,  do  acesso  à  aquisição  desse   uma   vez   que   o   vasto   referencial   produzido   por   Bourdieu   não  
capital  e  da  própria  fração  de  classes. se   aplica   de   forma   tão   sucinta.   Mas   queremos,   pelo   menos,  
Neste   sentido,   as   análises   de   Bourdieu   nos   ajudaram   a   categorizar  algumas  de  suas  reflexões  que  aqui  faremos  nossas  e  
pensar  essa  relação  arbitrária  estabelecida  pela  escola  quanto  à   que  servirão  de  base  teórico-­metodológica  para  nossas  análises.
3  4    5    6      

3
 )RUDPIHLWDVLQ~PHUDVDWLYLGDGHVFRPDVFULDQoDVHWLUDGDXPDJUDQGHTXDQWLGDGHGHIRWRJUD¿DVHPVXDVDWLYLGDGHVFRUULTXHLUDV
4
  Como  as  falas  das  crianças  são  o  grande  referencial  de  aproximação  com  a  realidade,  utilizaremos  essa  expressão  entre  aspas  por  entendermos  que  o  nosso  objeto  de  
pesquisa  na  verdade  é  um  sujeito  social.
5
 ³FDPSRGHOXWDVFRPRVLVWHPDGHUHODo}HVREMHWLYDVQRTXDODVSRVLo}HVHDVWRPDGDVGHSRVLomRVHGH¿QHPUHODFLRQDOPHQWHpTXHGRPLQDDLQGDDVOXWDVTXHYLVDPD
transformá-­lo”  (BOURDIEU,  1999,  p.  175).
6
  Mubarac  Sobrinho  (2008).

Uberlândia,  Ano  XI,  n.11,  p.  11-­23,  2010  ~ Olhares  &  TrilhaS 13
VIOLÊNCIA  SIMBÓLICA  E  A  EDUCAÇÃO  ESCOLAR:   tenham  incorporado  as  estruturas  segundo  as  quais  os  dominantes  
PARA  INICIARMOS  A  DISCUSSÃO   os   apreendem;;   que   a   submissão   não   seja   um   ato   de   consciência  
susceptível  de  ser  compreendido  na  lógica  do  constrangimento  ou  
O   tema   da   violência   é   bastante   recorrente   na   literatura,   na  lógica  do  consentimento.
tendo   por   muito   tempo   tido   nas   ciências   da   saúde,   e   mais  
especificamente  na  psicologia,  seus  marcos  balizadores.  Porém,   Logo,   a   educação   escolar   deve   estar   no   centro   dessa  
o   conceito   de   Violência   Simbólica,   que   utilizaremos   nesta   discussão.8   Teoricamente,   por   meio   da   educação,   o   indivíduo  
análise,   foi   elaborado   por   Bourdieu   para   descrever   o   processo   poderia  tornar-­se  capaz  de  distinguir  quando  está  sendo  vítima  
pelo   qual   a   classe   que   domina   econômica   e   socialmente   se   da  Violência   Simbólica   e   constituir-­se   como   um   agente   social  
impõe   e   reproduz   seus   mecanismos   de   ação,   percepção   e   que  vai  agir  contra  a  sua  legitimação.  Devido  à  desigualdade  da  
julgamento   frente   aos   dominados.   O   autor   parte   do   princípio   realidade  presente,  entre  outros  fatores,  os  pais  na  comunidade  
de  que  a  cultura  é  arbitrária,  uma  vez  que  não  se  assenta  numa   Sateré-­Mawé  são  influenciados  por  determinismos  da  sociedade  
única  realidade,  que,  por  sua  vez,  é  também  arbitrária.  Assim,  o   urbana,9   a   acreditarem   que   a   escola   representa   a   melhor  
sistema  simbólico  de  uma  determinada  cultura  é  uma  construção   possibilidade   de   suas   crianças   conquistarem   mais   espaço   na  
social   e   sua   manutenção   é   fundamental   para   a   perpetuação   de   sociedade  dos  “brancos”.  
uma  determinada  sociedade,  através  da  interiorização  da  cultura   É  neste  sentido  que,  para  Forquin  (1993,  p.  166):
por   todos   os   membros   da   mesma.   O   que   Bourdieu   (1998)   vai  
denominar  de  “Arbitrário  Cultural”. a   razão   pedagógica   é   essencialmente  normativa   e   prescritiva,   sua  
A   Violência   Simbólica   se   expressa   na   imposição   legítima   tentação   natural   é   o   universalismo,   compreendido   aí   no   que   isto  
e   dissimulada,   com   a   interiorização   da   cultura   dominante,   pode  comportar  por  vezes  de  segurança  de  si  etnocêntrica,  sua  pos-­
reproduzindo  as  diversas  relações  do  mundo.  O  dominado  não   tulação  normal  é  uma  certa  espécie  de  idealismo  prático.
se  opõe  ao  seu  dominador,  já  que  não  se  percebe  como  vítima  
desse  processo,  ao  contrário,  o  oprimido7  considera  sua  situação   Este   fator   tem   reduzido   significativamente   a   idade  
natural  e  inevitável.  Os  moldes  dessa  violência  se  caracterizam   para   as   crianças   ingressarem   na   escola,   situação   que   foi  
não  só  na  ação  mental,  mas  também  agem  fortemente  na  relação   evidenciada  na  pesquisa  pela  presença  de  3  crianças  Sateré-­
corporal  determinada  pela  escola.   Mawé  entre  4  e  5  anos,  que  já  estão  frequentando  as  escolas  
Assim,  para  Bourdie  u  (2007,  p.  231): de   educação   infantil.   E   que,   precocemente,   entram   em  
contato   com   todo   um   arsenal   ideológico   e   cultural   que,  
A  violência  simbólica  como  constrangimento  pelo  corpo.  Para  que   à   distância   da   sua   condição   étnica,   confere   a   elas   uma  
a   dominação   simbólica   funcione   é   necessário   que   os   dominados   condição  de  inferioridade.
789

7
  Freire  (2007)  trabalha  muito  bem  esta  questão  em  suas  obras,  tendo  sido  ele  um  dos  primeiros  a  desenvolver  a  discussão  acerca  da  “pedagogia  dos  oprimidos”.
8
  Forquin  (1993).
9
  Como,  por  exemplo,  que  a  escola  é  o  único  meio  de  melhoria  da  vida  e  que  garante  a  ascensão  social.  Esse  discurso  extremamente  presente  no  cotidiano  da  sociedade  
urbana  tem  marcado  fortemente  a  busca  desse  grupo  indígena  pela  escola.

14   Olhares   &   TrilhaS   ~ Uberlândia,  Ano   XI,   n.11,   p.   11-­23,   2010


A   escola,   neste   contexto,   configura-­se   como   a   principal   acumulada  (capital  cultural)  geram  internalizações  de  disposições  
instituição  educacional  da  sociedade  moderna  e,  lamentavelmente,   (Habitus)   que   diferenciam   os   espaços   a   serem   ocupados   pelos  
não  vem  educando  para  formar  cidadãos10  e  sim  para  legitimar  o   homens  (AZEVEDO,  2003,  p.  08).
poder  simbólico  da  sociedade  urbano-­burguesa.  Isso  no  caso  das  
crianças   Sateré-­Mawé   é   extremamente   forte   pelo   processo   de   Ao   focalizarmos   o   grupo   das   crianças   Sateré-­Mawé,  
negação  de  seus  valores  culturais.  Dessa  maneira,  para  Bourdieu   constatamos   que   este   problema   é   ainda   mais   presente,   pois   se  
(1982,  p.  21)  é  que: uma  criança  da  periferia,  por  exemplo,  tem  um  cotidiano  muito  
distante  do  que  é  ensinado  na  escola,  as  crianças  indígenas  se  
A  ação  pedagógica  escolar  que  reproduz  a  cultura  dominante  está   distanciam   muito   mais.   Na   escola   “diz-­se”   que   é   importante  
contribuindo,  desse  modo,  para  reproduzir  a  estrutura  das  relações   estudar  para  ter  uma  profissão,  para  “ser  alguém  na  vida”.11  No  
de  força,  numa  formação  social  onde  o  sistema  de  ensino  dominante   entanto,  para  as  crianças  Sateré-­Mawé,  a  concepção  de  trabalho  
tende  a  assegurar-­se  do  monopólio  da  violência  simbólica  legítima. é   completamente   diferente   desta   aplicada   na   escola,   além  
da   própria   forma   de   conceber   o   mundo   e   as   relações   entre   as  
As  crianças  Sateré-­Mawé  não  só  reconhecem  seus  professores   pessoas  (MUBARAC  SOBRINHO,  2007).  Elas  são  tratadas  na  
como   autoridades,   como   também   legitimam   e   reproduzem   comunidade  como  membros  ativos  que  participam  das  atividades  
os   conteúdos   que   por   eles   são   transmitidos,   recebendo   e   e   que   têm   garantido   seu   espaço   de   brincar   e   de   partilhar   as  
interiorizando   estes   como   informações   reais.   Isto   garante   uma   experiências  do  dia  a  dia  com  todos  os  membros,  o  que  a  escola  
reprodução   cultural   e   social   dos   valores   da   sociedade   urbano-­ nega  completamente  como  veremos  no  item  seguinte.
burguesa.  Assim,  a  Violência  Simbólica  é  estabelecida  a  partir  
dessa   relação   hierárquica   de   poder   arbitrariamente   imposta,   AS  CRIANÇAS  SATERÉ-­‐‑MAWÉ  E  AS  PRÁTICAS  
bem   como   os   papéis   exercidos   pelas   crianças   nas   atividades   ESCOLARES:  ESPELHOS  VIVOS  DA  VIOLÊNCIA  
da   escola   pois,   no   caso   das   crianças   Sateré-­Mawé,   estas   são   SIMBÓLICA
completamente  alijadas  de  participarem  das  atividades  escolares  
e,  como  foi  constatado  na  pesquisa,  são  invisibilizadas  quanto  a   Os   Sateré-­Mawé   concebem   a   infância   como   uma   fase  
possibilidade  de  externarem  os  elementos  de  sua  cultura. fundamental  à  preservação  da  cultura  de  seu  povo.  Comecemos  
por  ouvir  as  crianças  acerca  de  dois  elementos  que  consideramos  
Logo,   os   sujeitos   ocuparão   espaços   mais   próximos   quanto   mais   essenciais  para  compreender  os  seus  jeitos  de  viver  a  infância:  o  
similar  for  a  quantidade  e  a  espécie  de  capitais  que  detiverem.  Em   ser  criança  e  o  brincar.  Antes,  porém,  é  preciso  que  fique  claro  
contrapartida,   os   agentes   estarão   mais   distantes   no   campo   social   que   a   concepção   de   infância   para   os   Sateré-­Mawé   é   definida  
quanto  mais  díspar  for  o  volume  e  o  tipo  de  capitais.  Assim,  pode-­ pela  existência  de  um  ritual  de  transitoriedade,  que  demarca  de  
se  dizer  que  a  riqueza  econômica  (capital  econômico)  e  a  cultura   forma  muito  clara  o  mundo  infantil  e  o  mundo  adulto.  O  ritual  
10  11  

10
  No  sentido  crítico  da  expressão,  distinguindo-­se  do  indivíduo,  que  é  aquele  vem  ao  mundo  sem  saber  dos  seus  direitos,  ou  seja,  sem  estar  no  mundo.
11
  Fala  constantemente  presente  nos  discursos  dos  professores  da  escola  (lócus  da  pesquisa)

Uberlândia,  Ano  XI,  n.11,  p.  11-­23,  2010  ~ Olhares  &  TrilhaS 15
da  Tucandeira,12  do  qual  apenas  os  curumins  (meninos)  podem   A   infância,   para   as   crianças   Sateré-­Mawé,   é   um   grande  
participar,  vai  ser  o  balizador  do  fim  da  infância  e  começo  da   universo  de  aprendizagens,  de  liberdade,  de  escolhas  e,  sobretudo,  
preparação  para  exercerem  papéis  sociais  que  somente  os  adultos   de   possibilidades   de   viver   as   mais   diversas   expressões   do   seu  
podem   exercer.   Segundo   Cohn   (2005,   p.   09),   “não   podemos   cotidiano.  Os  pais  falam  das  crianças  com  um  respeito  que  nos  
falar  de  crianças  de  um  povo  indígena,  sem  entender  como  esse   faz   desejar   aprender   a   lidar   com   o   mundo   infantil   da   maneira  
povo  pensa,  o  que  é  ser  criança  e  sem  entender  o  lugar  que  elas   deles.   Elas   são,   como   nos   disseram   na   comunidade   indígena,  
ocupam  naquela  sociedade”.   “artesãs  do  futuro”,14  que  irão  garantir  a  existência  do  seu  povo.  
As   falas   a   seguir,   fazem   parte   dos   depoimentos   orais   que   Nas  palavras  do  cacique15  “uma  criança  é  o  nosso  maior  tesouro,  
foram   “gerados”   durante   a   pesquisa   de   campo,   e   ilustram   a   cada  parente  que  nasce  aqui  pra  nós  é  sinal  que  Tupaná  está  nos  
percepção  das  crianças  sobre  suas  infâncias:     dando   mais   vida   e   alegria,   por   isso   fazemos   muita   festa   para  
festejar  quando  uma  das  nossas  mulheres  tem  criança”.
–   Ser   criança   é   muito   bom,   nós   podemos   correr,   brincar,   Logo,  para  Silva  (2002,  p.  44):
fazer  um  monte  de  coisas...  (Raq  uel,  09  anos).
Há   sempre   novos   conhecimentos   à   espera   de   ser[em]   descobertos   e  
–   Eu   gosto   de   ser   criança,   de   ser   menino,   mas   quando   eu   incorporados  à  experiência  de  vida  de  cada  um.  O  aprendizado  parece  
puser   as   mãos   na   luva   das   tucandeiras   já   vou   ser   homem   ser  pensado,  assim,  como  algo  para  toda  a  vida:  a  cada  etapa  vencida,  
(Gabriel,  7  anos). novos  patamares  de  conhecimentos  e  de  experiências  apresentam-­se.

–  Não  sei  por  que  as  meninas  que  moram  aqui  perto  da  nossa   Apesar  do  estado  de  pobreza  pelo  qual  passa  a  comunidade,  
casa,  aquelas  que  não  são  índias,  fazem  um  monte  de  coisas   os  pais  oferecem  o  que  podem  a  suas  crianças,  tudo  que  existe  
que  nós  não  fazemos...  acho  que  as  mães  delas  que  mandam   é   dividido   com   elas   e   entre   elas,   não   importa   o   que   seja,   mas  
(Taíza,  12  anos). é  fundamental  que  possam  se  alimentar.  Vivenciamos  algumas  
situações  em  que  só  havia  farinha  de  mandioca  para  comer.  As  
–  É  bom  ser  criança  por  que  a  gente  não  tem  que  ter  filho,  só   mães   misturavam   com   água   e   faziam   o   Chibé   16   para   que   as  
de  brincadeira  (Talice,  9  anos).13 crianças  não  passassem  fome.  Primeiro,  as  crianças  comiam  e,  
quando  sobrava  alimento,  os  adultos  dividiam  entre  eles.
12  13    14  15  16    

12
  WAUMAT,  o  ritual  da  tocandira,  pode  ser  divido  em  três  partes:  a  preparação;;  o  ritual  propriamente  dito;;  a  reintegração  num  novo  status.  “Durante  o  ritual  propriamente  dito,  os  
MRYHQVLQWURGX]HPDPmRQXPDOXYDGH¿EUDVRQGHVmRLQVHULGDVDVIRUPLJDVWRFDQGLUDV paraponera  clavata  sp),  com  o  ferrão  voltado  para  o  interior.  Esta  ação  é  acompanhada  
por  uma  série  de  cantos,  ao  ritmo  do  chocalho,  e  uma  dança  da  qual  participam  várias  pessoas  do  grupo”  (ALVARES,  2005,  p.  05).
13
 1RGHFRUUHUGRWH[WRXWLOL]DUHPRVYiULDVSDVVDJHQVGDVIDODV³JHUDGDV´SHODVFULDQoDVGXUDQWHDSHVTXLVDHWQRJUi¿FD
14
  O  uso  do  termo  se  explica  pela  confecção  do  artesanato,  que  é  a  principal  fonte  de  sobrevivência  do  grupo,  assim:  um  artesão  do  futuro  é  um  adulto  promissor.
15
  A  comunidade  é  liderada  pelo  cacique  Manoel  Luiz,  cuja  participação  foi  fundamental  para  a  realização  da  pesquisa.  Esta  é  uma  das  passagens  de  sua  fala  extraída  na  
pesquisa  de  campo.
16
  Comida  feita  em  uma  cuia,  onde  se  mistura  água  com  farinha  d’água  (Ui)  ou  farinha  de  mandioca  (Mani)  grossa,  para  servir  de  alimento.  (PEREIRA,  2003).

16   Olhares   &   TrilhaS   ~ Uberlândia,  Ano   XI,   n.11,   p.   11-­23,   2010


No  bojo  da  pesquisa  de  campo,  foi  fundamental  ouvirmos  as   situações  que  foram  comprovadas  nas  observações  que  fizemos  
crianças  também  no  espaço  escolar,  para  conhecermos  a  visão   no  cotidiano  das  escolas.
delas  sobre  o  fazer  pedagógico  ao  qual  estavam  submetidas.  Essa   A   fala   da   professora,   ao   expressar   que   Laiz   (08   anos)   não  
experiência  do  cotidiano  escolar  possibilitou-­nos  compreender   aprende   porque   é   índia,   representa   bem   a   carga   de   Violência  
a   complexidade   deste   universo   infantil,   visto   que   há   aspectos   Simbólica  que  pesa  sobre  as  crianças  nas  escolas.  A  menina,  que  
sociais  diversificados  que  contribuem  para  uma  vivência  onde   na  comunidade  desenha,  escreve  histórias  e  fala  bastante  sobre  o  
as   crianças   acabam   absorvendo   questões   que   fazem   parte   do   seu  cotidiano,  no  espaço  escolar  apenas  observa  e  muito  pouco  
mundo   urbano   que   contrariam   os   elementos   da   cultura   de   seu   realiza   das   “tarefas”   escolares   definidas   pela   professora.   Ela  
povo.  Isso  fica  mais  evidente  ao  ouvirmos  as  suas  falas: sabe  escrever  bem  em  português,  mas  parece  não  se  satisfazer  
com  a  maneira  como  o  conhecimento  veiculado  na  escola  chega  
–  A  professora  disse  que  eu  não  aprendo  porque  sou  índia  e   até  ela.  As  falas  das  professoras17  refletem  bem  essa  violência  
índio  é  burro  (Laíz,  08  anos.). que  é  vivenciada  pelas  crianças.

–   Quando   estou   na   escola   parece   que   as   pessoas   olham   a   –  Eu  tenho  na  minha  sala  duas  crianças  Sateré-­Mawé,  elas  até  sabem  
gente  como  alguma  coisa  ruim,  muitas  crianças  não  chegam   ler  um  pouco  mas  são  muito  preguiçosas  (Professora  Fátima).
perto  de  mim  (Mateus,  07  anos).
–   O   meu   aluno   tem   até   a   letra   boa,   mas   quando   tá   com  
–  Eu  ouvi  a  secretária  falar  que  os  índios  não  deveriam  estar   preguiça,  meu  Deus  do  céu,  não  faz  nada,  mas  nada  mesmo,  
nessa  escola  aqui  e  sim  no  meio  da  mata.  Mas  eu  gosto  de   acho   que   isso   é   coisa   deles   mesmos,   esses   índios   devem   ser  
morar  aqui  na  cidade  (Talice,  09  anos). todos  assim  (Professora  Rosa)

–  Uma  vez  eu  fui  contar  que  tinha  cobra  lá  perto  de  casa  e   –  E las  n ão  s abem  n ada,  e u  a cho  q ue  c onfundem  a  n ossa  e scrita  
a  professora  disse  que  eu  era  mentirosa  e  os  outros  alunos   com  a  língua  delas  e  isso  piorou  desde  que  começaram  a  ter  
riram  de  mim  (Raquel,  09  anos). essas  aulas  na  comunidade,  acho  mesmo  é  que  elas  deveriam  
é  ficar  por  lá  (Professora  Iris). 18
As   crianças   demonstram   não   estarem   satisfeitas   com   a  
forma   de   serem   tratadas   nas   escolas,   mas   poucos   expressam   As   crianças   na   comunidade   possuem   uma   capacidade   de  
essa  situação  para  os  pais  e,  muito  menos,  para  os  professores.   criação   e   recriação   (Corsaro,   2002)   das   diversas   situações   do  
Nas   conversas   que   estabeleceram   conosco,   dada   a   intensidade   cotidiano,   inclusive   ressignificando   costumes   que   somente   os  
de  convívio  que  já  havíamos  construído  durante  os  oito  meses   adultos  podem  realizar,  mas  que  elas  os  fazem  simbolicamente.  
de   estada   na   comunidade,   elas   nos   revelaram   uma   série   de   Ao  chegarem  às  escolas,  essas  riquíssimas  experiências  culturais  
17  18

17
 2VQRPHVXWLOL]DGRVVmR¿FWtFLRVSRLVDVSURIHVVRUDVQmRDXWRUL]DUDPDXWLOL]DomRGHVHXVQRPHVUHDLV
18
  Falas  coletadas  junto  às  professoras  das  escolas  durante  a  pesquisa  de  campo.

Uberlândia,  Ano  XI,  n.11,  p.  11-­23,  2010  ~ Olhares  &  TrilhaS 17
são  desconsideradas,  pois  como  não  se  enquadram  nos  conteúdos   “majoritárias   em   todos   os   grupos   sociais,   sendo   impossível  
“legítimos”,   não   representam   uma   possibilidade   de   serem   classificar   culturas   de   grupos   ou   de   classes   que   compõem   a  
abordadas  ou  utilizadas  como  elementos  contextualizadores  de   formação   social”   (LAHIRE,   2006,   p.   154).   Conforme   aponta  
aprendizagens  que  possam  se  tornar  mais  significativas  para  elas   Elias   (1994)   não   há   nada   de   mais   comum   e   frequente,   na  
e   ampliar   a   possibilidade   de   as   outras   crianças   conhecerem   a   sociedade  contemporânea,  que  a  singularização  dos  indivíduos.  
cultura  desse  povo  indígena. Com  as  crianças  Sateré-­Mawé  este  distanciamento  tem  ocorrido  
Nas   vivências   acompanhadas   nas   escolas,   principalmente   continuamente  nas  escolas  pesquisadas.
relacionadas   à   forma   das   crianças   estarem   presentes   na   orga-­ Infelizmente,  o  contexto  das  escolas  e  da  comunidade  pro-­
nização  do  espaço  da  sala  de  aula,  fica  evidenciado  o  distancia-­ duz  ritmos  e  ritos  diferentes  para  as  crianças  Sateré-­Mawé,  dife-­
mento  das  mesmas,  tanto  dos  professores  quanto  das  outras  cri-­ rentes  no  sentido  da  exclusão  e  do  distanciamento  das  demais  
anças,  como  apresentado  na  observação  de  campo  que  se  segue: crianças  na  escola,  pois  na  comunidade  esse  sentido  ganha  um  
Chegamos   a   uma   sala   de   aula   e   a   professora   estava   aspecto  de  coletividade,  de  união,  de  estar  juntas.  Na  verdade,  
organizando   a   turma   para   realizar   um   trabalho   de   escrita.   Ela   a  escola  produz  tempos  e  espaços  e  não  tempos-­espaços  (GID-­
foi  direcionando  as  crianças  e  criando  posições  para  cada  uma   DENS,  1991),  pois  fragmenta  sua  ação  e  reproduz  o  modelo  de  
delas.  Larissa  (11  anos),  a  única  criança  indígena  que  estudava  na   sociedade  em  que  os  indivíduos  são  moldados  a  ficarem  fixos  
turma,  foi  posta  bem  num  canto,  no  fundo  da  sala.  A  professora   aos  lugares  que  irão  desempenhar  determinados  papéis  sociais,  
fazia  as  perguntas  para  os  alunos  que  iam  respondendo  da  forma   para  os  quais  as  crianças  indígenas  não  têm  espaço  e,  portanto,  
como  haviam  aprendido,  mas  em  momento  algum  se  reportou   devem  ser  deixadas  de  lado.
à  menina  Sateré-­Mawé.  Sua  atitude  era  como  se  a  mesma  não   Outra   situação,   que   representou   bem   esses   processos  
estivesse   presente   na   sala   de   aula.   Foi   quando   resolvemos   excludentes   produzidos   pelas   escolas,   foi   vivenciada   durante  
perguntar  à  Larissa  sobre  essa  situação.  Ela  assim  nos  relatou: a   realização   de   um   trabalho   desenvolvido   pela   professora   da  
quarta  série  do  ensino  fundamental  e  que  procurou  identificar,  
–  Eu  sempre  sento  no  fundo  da  sala,  a  professora  me  colocou   no  contexto  da  sociedade  de  consumo,  a  questão  das  profissões.
aqui  desde  que  descobriu  que  eu  era  indígena,  acho  que  ela   A  professora  levou  para  a  sala  de  aula  um  cartaz  contendo  
não  gosta  de  mim,  por  que  não  fala  quase  nada  comigo.  Mas   uma  série  de  profissões  que  devem  ser  exercidas  na  sociedade  
eu  também  não  falo  com  ela,  mas  gosto  dela  sim  (respondeu   e   a   importância   de   cada   uma   delas.   Depois,   pediu   que   cada  
meio  amedrontada).  Lá  na  comunidade  eu  sento  junto  com   criança  falasse  o  que  gostaria  de  “ser  quando  crescer”,  ou  seja,  
as  outras  crianças  pra  brincarmos,  pra  fazermos  um  monte   qual   profissão   gostaria   de   exercer.  As   crianças   foram   fazendo  
GHFRLVDVQmRJRVWRGH¿FDUDTXLQRFDQWRVR]LQKDSUH¿UR suas  exposições.
quando  estou  com  as  crianças  de  lá  da  comunidade.  (Larissa,   Quando  Taíza  (12  anos),  em  forma  de  uma  história,  começou  
11  anos). a  falar  sobre  o  que  gostaria  de  ser  quando  crescer,  a  professora  
imediatamente   interrompeu   a   criança   e   disse   que   sua   história  
Estas   configurações   individuais   e   excludentes   são   não   tinha   nada   a   ver   com   o   conteúdo   que   estavam   estudando,  
estabelecidas   pelos   modos   de   recepção   e   tornam-­se   hoje   pois   aquilo   que   ela   relatara   era   completamente   insignificante  

18   Olhares   &   TrilhaS   ~ Uberlândia,  Ano   XI,   n.11,   p.   11-­23,   2010


para  a  discussão  da  sala  de  aula.  A  menina  assim  expressou  sua   continuar  sendo  índia.  Presta  atenção  que  você  não  está  na  
visão  acerca  de  que  profissão  gostaria  de  exercer: aldeia  e  que  mora  na  cidade  e  na  cidade  todo  mundo  tem  que  
WHUXPDSUR¿VVmR 3URIHVVRUD'LYD 
–   Num   lugar   bem   distante   da   cidade,   viviam   muitas   pessoas  
que  gostavam  de  fazer  farinhada  feita  de  mandioca  para  que   Logo,   a   produção   cultural   das   crianças   Sateré-­Mawé   não  
todo  m undo  p udesse  c omer.  P ara  f azer  e ssa  f arinha  e ra  p reciso   tem   valor   legítimo   no   ambiente   escolar.   Na   verdade,   nem   são  
que   todos   ajudassem,   quanto   mais,   melhor,   o   que   daria   um   consideradas  como  produtoras  de  culturas,  pois  os  seus  modos  
monte  de  farinha.  Eu  quero,  quando  crescer,  ser  fazedora  de   de  ver  o  mundo  não  representam  um  conhecimento  que  possa  
farinha,  para  que  ninguém  passe  fome.    (Taíza,  12  anos) ser  incorporado  ao  capital  cultural  trabalhado  na  escola,  o  que  
determina   sua   condição   de   ausência   na   produção   de   tempos-­
Na  visão  de  Taíza,  está  claramente  presente  a  sua  ligação  com   espaços  escolares.
a  tradição  de  seu  povo  na  produção  da  farinha  de  mandioca.  E,   Sob  esse  foco,  a  educação  escolar  funciona  como  reprodutora  
como  na  comunidade  as  crianças  cantam  a  música  da  farinhada   da  estrutura  de  poder  contribuindo  para  a  submissão  presente  na  
corriqueiramente   e   a   farinha   representa   um   de   seus   principais   condição  dos  indivíduos.  Pode-­se  dizer  que  as  crianças  Sateré-­
alimentos,  ela  relacionou  a  profissão  à  satisfação  tanto  pessoal   Mawé,  na  lógica  da  escola,  não  possuem  capital  social19  e  capital  
quanto   coletiva   dos   membros   de   sua   comunidade,   destacando   cultural,20  já  que  suas  possibilidades  de  investir  na  educação  são  
que  comer  é  um  fator  fundamental  para  se  viver  bem. mínimas,  devido  a  sua  condição  cultural  e  de  vida.  Portanto,  sob  
Infelizmente,  a  atitude  da  professora  foi  a  de  desconsiderar  a   tal  perspectiva,  o  discurso  da  igualdade  no  sistema  capitalista  é  
capacidade  criativa  da  criança  e  afirmar  que  os  textos  deveriam   praticamente  inexistente,  ou  seja,  uma  prova  viva  do  poder  da  
estar  relacionados  às  profissões  que  ela  havia  definido  no  início   Violência  Simbólica.
da  aula  –  médico,  professor,  dentista,  policial,  juiz,  comerciante,  
entre   outras   mais   –,   que   ser   “fazedora   de   farinha”   não   era   CONSIDERAÇÕES  FINAIS:
profissão  nenhuma  e  que  quem  vem  para  a  escola  tem  que  ter  
uma  profissão  de  verdade.  Ela  assim  se  reportou  à  criança: Após  relatarmos  os  processos  vividos  pelas  crianças  na  escola  
e  pelos  processos  marcadamente  excludentes  e  invisibilizantes  
–  Menina  você  está  brincando  comigo?  Eu  mandei  falar  de   presentes  nas  escolas,  podemos  registrar  algumas  conclusões  a  
SUR¿VVmRHQmR¿FDULQYHQWDQGRFRLVDTXHQmRWHPVHQWLGR que  chegamos  nesta  caminhada,  mas  que  consideramos  também  
2QGH Mi VH YLX IDODU TXH ID]HGRUD GH IDULQKD p SUR¿VVmR" inacabadas   pelas   contradições   presentes   na   história   de   nossa  
Acho  mesmo  que  você  não  entende  o  que  eu  ensino  e  quer   sociedade  e  da  escola  pública  de  nosso  tempo.21
192021

19
  “O  capital  social  é  o  conjunto  de  recursos  atuais  ou  potenciais  que  estão  ligados  à  posse  de  uma  rede  durável  de  relações  mais  ou  menos  institucionalizadas  de  inter-­
conhecimento  e  interrelacionamento...”  (BOURDIEU,  1998,  p.  67).
20
  “O  capital  cultural  é  um  ter  que  se  tornou  ser,  uma  propriedade  que  se  fez  corpo  e  tornou-­se  parte  integrante  da  pessoa...”  está  ligado  à  ação  escolar.  (BOURDIEU,  
1998,  p.  74-­75).  
21
  Mubarac  Sobrinho  (2009).

Uberlândia,  Ano  XI,  n.11,  p.  11-­23,  2010  ~ Olhares  &  TrilhaS 19
Tais   perspectivas   analíticas,   que   foram   construídas   e   (ou   do   Habitus);;   ou,   em   outros   termos,   ao   sistema   de   separações  
constituídas   neste   caminho   de   configuração   de   saberes,   GLIHUHQFLDLV TXH GH¿QHP DV GLIHUHQWHV SRVLo}HV >@ GR HVSDoR
possibilitaram,   na   verdade,   um   processo   de   reflexão   social   corresponde   um   sistema   de   separações   diferenciais   nas  
compartilhada  e  sedimentada  nos  princípios  apreendidos  com  as   propriedades  dos  agentes  [...],  isto  é,  em  suas  práticas  e  nos  bens  
crianças,   quais   sejam:   a   solidariedade,   o   respeito   e   a   vontade   que  possuem.
de   fazer   as   coisas   do   seu   jeito,   o   que   nos   leva   a   crer   que   as  
palavras  de  Cohn  (2005,  p.  33)  são  extremamente  pertinentes  “a   Assim,   como   nos   aponta   Bourdieu   (2003),   reforçamos  
diferença  entre  as  crianças  e  os  adultos  não  é  quantitativa,  mas   nosso   entendimento   de   que   as   coisas   são,   e   ao   mesmo   tempo  
qualitativa;;  a  criança  não  sabe  menos,  sabe  outras  coisas”,  sabe   não   são,   da   forma   como   aparecem   a   nós.   Essa   possibilidade  
de  outro  jeito  e  nós  devemos  aprender  com  elas  a  aprender  essa   rigorosa   de   análise   e   percepção   da   sociedade   e   da   educação,  
possibilidade  de  re-­criar  o  mundo. proposta   por   Bourdieu,   é   um   dos   pontos   fundamentais   para  
Perceber  o  cotidiano  das  crianças  Sateré-­Mawé  –  por  meio   continuarmos   acreditando   na   transformação   social.   Por   isso,  
da   pesquisa   realizada   –   como   engendrador   de   práticas   sociais   ainda   que   introdutoriamente   –   como   relatado   neste   texto   e  
e   culturais   reais,   permite   o   desvelamento   das   estratégias   de   vivenciado  em  nossa  experiência  –,  as  práticas  educativas  com  
“conversão  e  reconversão”  das  estruturas  sociais  de  dominação,   as  crianças  indígenas  devem  compor  o  cotidiano  das  instituições  
através   da   ação   escolar,   que,   integrada   a   uma   visão   crítica   da   de  ensino  com  mais  frequência,  o  que  tende  a  contribuir  para  a  
realidade,   pode   contribuir   para   a   construção   de   um   projeto   construção  de  novas  estratégias  de  enfrentamento  a  esse  modelo  
de   escola   que   se   proponha   a   lutar   pela   consolidação   de   uma   de  sociedade  que  uniformiza  as  crianças  e,  consequentemente,  
sociedade  democrática  pautada  na  diversidade. todos  os  seus  membros.  
É  nessa  possibilidade  de  transgressão  que  se  sustenta  nossa   Nessa   perspectiva,   apoiamo-­nos   nas   palavras   de   Bourdieu  
análise   acerca   do   trabalho   de   pesquisa   na   formação   docente   e   (1999,  p.  183)  para  reforçar  essa  importância:
nas   representações   da   infância,   pois   entender   que   as   crianças  
indígenas  possuem  uma  conjuntura  social  diferenciada  não  deve   Tudo   leva   a   crer   que   um   brusco   desligamento   das   oportunidades  
reduzi-­las  à  condição  de  expropriadas  sob  a  forma  de  “Habitus”,   objetivas   com   relação   as   esperanças   subjetivas   sugeridas   pelo  
muito  pelo  contrário,  contribui  para  a  afirmação  da  possibilidade   estado   anterior   das   oportunidades   objetivas   é   de   natureza   a  
de  sedimentação  de  um  outro  lócus  com  elas  e  para  elas,  pois   determinar   uma   ruptura   na   adesão   que   as   classes   dominadas   –  
para  Bourdieu  (2001,  p.  21): subitamente  excluídas  da  corrida,  de  forma  objetiva  e  subjetiva  –  
atribuem   aos   objetivos   dominantes,   até   ao   tacitamente   aceitos,   e,  
O   espaço   de   posições   sociais   se   retraduz   em   um   espaço   de   por   conseguinte,   tomar   possíveis   a   invenção   ou   a   imposição   dos  
tomada   de   posições   pela   intermediação   do   espaço   de   disposições   objetivos  de  uma  verdadeira  ação  coletiva.
22  

22
  “Em  seu  livro  The  Little  Prince  (Principezinho)  (1945),  Antoine  Saint-­Exupery  escreve  que  os  adultos  não  podem  por  si  próprios  compreender  o  mundo  do  ponto  de  
vista  da  criança  e,  consequentemente,  necessitam  que  as  crianças  o  expliquem.  Este  é  um  conselho  sábio  para  investigadores  da  infância.  Somente  ao  ouvir  e  escutar  
o  que  as  crianças  dizem  e  ao  tomar  atenção  à  forma  como  comunicam  conosco  é  que  se  fará  progresso  nas  pesquisas  que  se  levam  a  cabo  com  crianças,  mais  do  que,  
simplesmente,  sobre  as  crianças”  (CHRISTENSEN  &  JAMES,  2005,  p.  XIX).  

20   Olhares   &   TrilhaS   ~ Uberlândia,  Ano   XI,   n.11,   p.   11-­23,   2010


Os  caminhos  não  estão  prontos,  pelo  menos  os  que  queremos,   que  possam  visualizar  as  peculiaridades  da  infância  e  ouvir  as  
pois   as   práticas   cristalizadas   estão   aí   para   continuarem   sendo   crianças.   Os   desafios   são   muitos,   mas   vale   a   pena   lutar   para  
reproduzidas,  mas  não  são  elas  que  queremos  seguir.  Fazer  novas   alcançá-­los.   As   crianças,   nas   suas   mais   diversas   formas   de  
opções  é  revestir  de  significado  a  ação  docente  da  pesquisa  e  do   visibilidade,  apesar  de  um  grande  movimento  histórico  que  as  
entendimento  da  realidade  das  crianças,  como  possibilidade  de   invisibilizou-­,  clamam  por  isso.
construção  de  metodologias  de  pesquisa  e  de  práticas  educativas    

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Uberlândia,  Ano  XI,  n.11,  p.  11-­23,  2010  ~ Olhares  &  TrilhaS 23
METODOLOGIAS DE PESQUISAS COM CRIANÇAS: OUTROS MAPAS,
NOVOS TERRITÓRIOS PARA A INFÂNCIA1.

Roberto Sanches Mubarac Sobrinho2

Resumo: O objetivo deste texto é fazer uma reflexão acerca dos outros mapas e dos
novos territórios que estão se sedimentando em relação às crianças e suas infâncias e
evidenciar a necessidade de serem consolidados espaços em que elas sejam
protagonistas nas transformações das formas de entendimento da realidade. Isto implica
numa efetiva participação e se torna lócus privilegiado para a construção das suas
culturas infantis, o que, sem sombra de dúvidas, requer a emergência de um campo
metodológico que possa abrir caminhos para que o testemunho das crianças seja
reconhecido como fonte de verdade e suas vozes sejam ouvidas e escutadas para a
redefinição de uma sociedade com elas e para elas.

Palavras-Chave: Crianças – Investigação – Protagonismo Infantil

Introdução:

As últimas décadas do século passado e esse início de milênio tem-nos posto


diante de uma série de desafios frente à forma como o mundo tem se organizado, e
principalmente, diante das precárias condições de vida que as sociedades atuais tem
passado frente à contradição exposta pelo modelo da globalização que decantou a
superação das mazelas sociais e sequer conseguiu resolver questões seculares que
assolam o mundo moderno, como a miséria, a fome e a pobreza. As crianças neste
contexto representaram e ainda representam um duplo paradoxo; primeiramente pelo
fortalecimento dos seus direitos pela via da consolidação de legislações3 e tratados de
cunho mundiais e locais que lhes deram inúmeras garantias e, de outro lado, pelos
assustadores números presentes nos relatórios internacionais em que “De acordo com a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), existem 250 milhões de trabalhadores
infantis no mundo, dos quais 30 milhões vivem na América Latina e no

1
Apresentado no Colóquio Caminhos de Futuro: Novos Mapas para as Ciências Sociais e Humanas,
na cidade de Coimbra, Junho de 2008 e publicado no E-Cadernos CES, Coimbra, 2009.
2
Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Amazonas e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, com aprofundamento de
estudos em Sociologia da Infância no Instituto de Estudos da Criança-IEC, Universidade do Minho,
Braga-Portugal.
3
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) aborda a problemática do limite
de idade de forma mais abrangente. Em contrapartida, são mais rigorosos em questões relativas aos danos
causados pelo trabalho infantil. A convenção n.º 182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil
produziu a recomendação 190, que foi adotada em 1999, determinando que todos os membros que a
ratificaram teriam o compromisso “de linear medidas efetivas e imediatas para assegurar a proibição e
eliminação das piores formas de trabalho infantil em caráter de urgência” (MYERS, 2001: 51).
2

Caribe”(RIZZINI, 2002, p. 04), mantendo ainda uma alarmante situação de pobreza no


mundo.
As mudanças abruptas da realidade atual, não se fizeram acompanhar no mesmo
ritmo pelo campo de pesquisas na área das Ciências Sociais e Humanas. Isto pode ser
percebido pelo menos de duas maneiras. A primeira de forma positiva, pois, em grande
parte, não nos deixamos sufocar pelo “cientificismo barato” deliberado pelo sistema
neoliberal que impôs um modelo “fast food”4 de conhecimento que – num jogo de
interesses dominantes – tentou aprisionar os grandes clássicos da literatura mundial a
uma lógica de estarem ultrapassados e não darem mais conta de servirem de referências
para a análise do mundo atual, o que com certeza não se constituiu como verdade. A
segunda por outro lado, negativa, pois diante do surgimento de um grande número de
questões e situações provocadas pela massificação da informação, nos deixou –
lembrando a idéia socrática do mito da caverna – presos a grilhões que não nos
permitiram enxergar os problemas atuais e enfrentá-los com novas perspectivas que
surjam no bojo das grandes teses clássicas.5
Para Elias (2004, p. 25):

O que falta, e não vale a pena termos ilusão, são modelos de pensamento e
uma visão global através dos quais consigamos, enquanto pensamos,
entender o que na realidade diariamente vemos, através dos quais possamos
entender como é que os muitos seres humanos em conjunto formam algo
que é mais diferente, do que simpesmente muitos seres humanos em
conjunto, perceber como formam uma sociedade e como é que será possível
que esta sociedade se possa transformar de forma a ter uma história...

Então como superar essa dicotomia que se apresenta tão fortemente cravada no
campo intelectual e conseguir de fato reviver as “utopias clássicas” tornando-as “utopias
realizáveis”(GIDDENS,1992) e que possibilitem a geração de alternativas de mudanças
que acompanhem de fato um projeto de sociedade mais democrática e menos
excludente? Como ficam, nesta conturbada situação, as crianças e os espaços sociais,
educacionais e de pesquisa destinados a elas?

4
“Retira-se definitivamente do professor o conhecimento, acaba-se com a dicotomia existente entre teoria
e prática, eliminando a teoria no momento em que esta se reduz a meras informações; o professor passa a
ser o balconista da pedagogia fast food, que serve uma informação limpa, eficiente e com qualidade, na
medida em que, com seu exemplo, desenvolve no aluno (cliente) o gosto por captar informações
utilitárias e pragmáticas.” (ARCE, 2001, p. 262)
5
Graue e Walsh, (2003).
3

É diante destas questões que o texto se propõe a fazer uma reflexão acerca dos
novos territórios que estão se sedimentando em relação à criança e suas infâncias e
evidenciar a necessidade de serem consolidados espaços em que elas sejam
protagonistas6 na construção de culturas infantis e não na infantilização das culturas, o
que, sem sombra de dúvidas, requer a emergência de um campo metodológico que
possa abrir caminhos para que o testemunho infantil seja reconhecido como fonte de
verdade e as vozes das crianças sejam ouvidas e escutadas para a consolidação de uma
sociedade com elas e para elas7. Esse reconhecimento não é novo, pois as discussões
acerca dessas questões já estão ocorrendo há pelo menos 30 anos8, porém a efetivação
de fato da condição das crianças enquanto protagonistas, sujeitos, atores sociais ainda é
motivo de muita discussão e é a ela que nos propomos.

[...] pouco se conhece sobre as culturas infantis porque pouco se ouve e se


pergunta às crianças e, ainda assim, quando isto acontece, a ‘fala’ apresenta-
se solta no texto, intacta, à margem das interpretações e análises dos
pesquisadores. Estes parecem ficar prisioneiros de seus próprios referenciais
de análise. (QUINTEIRO, 2002, p. 21).

1. Por que é preciso que existam metodologias de pesquisas especificas para se


investigar a infância?

As crianças desde o limiar das sociedades foram “objetos” nas mãos dos adultos
que impuseram padrões e concepções de vida a elas a partir da delimitação de
modelos que abarcaram desde a forma de se vestir até o jeito como as crianças
tinham que se comportar diante da sociedade adulta. A visão “adultocêntrica”
prevaleceu hegemônica até bem pouco tempo e como um fantasma, ainda atormenta
a possibilidade de dar visibilidade ao mundo infantil a partir da visão das próprias
crianças.

As razões sociais residem na subalternidade da infância relativamente ao


mundo dos adultos; com efeito, as crianças, durante séculos, foram
representadas prioritariamente como “homúnculos”, seres humanos
miniaturizados que só valia a pena estudar e cuidar pela sua incompletude e

6
Tomás e Soares (2004)
7
“Em seu livro The Little Prince (Principezinho) (1945), Antoine Saint-Exupery escreve que os adultos
não podem por si próprios compreender o mundo do ponto de vista da criança e, conseqüentemente,
necessitam que as crianças o expliquem. Este é um conselho sábio para investigadores da infância.
Somente ao ouvir e escutar o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam
connosco é que se fará progresso nas pesquisas que se levam a cabo com crianças, mais do que,
simplesmente, sobre as crianças” (CHRISTENSEN ; JAMES, 2005, p. XIX).
8
Qvortrup (1999).
4

imperfeição. Estes seres sociais ‘em trânsito’ para a vida adulta foram, deste
modo, analisados prioritariamente como objecto do cuidado dos adultos. A
precocidade do estudo das crianças pela medicina, pela psicologia e pela
pedagogia encontra aqui as suas razões de ser: as crianças eram
consideradas, antes de mais, como o destinatário do trabalho dos adultos e o
seu estudo só era considerado enquanto alvo do tratamento, da orientação ou
da acção pedagógica dos mais velhos (cf. Rocha e Ferreira, 1994) e (Rollet e
Morel, 2000). Esta imagem dominante da infância remete as crianças para
um estatuto pré-social: as crianças são ‘invisíveis’ porque não são
consideradas como seres sociais de pleno direito. Não existem porque não
estão lá: no discurso social. (SARMENTO, 2006, pp. 62-63)

É a partir de tais constatações e pela presença sempre soberana do discurso


adultocentrado no mundo das crianças, que iremos, num mergulho teórico bastante
turbulento e por vezes sem fundo, buscar advogar contra a idéia da criança incompleta,
um ser que ainda não é, e precisa, nomeadamente, da ação do adulto para ser
representada na sociedade. Nossos argumentos são contrários a essas afirmações que
prevaleceram na historia da criança, mas que tem somado nos últimos anos um
significante número de adeptos que, num esforço constante, vem na contramão dessa
visão construindo, em conjunto com as crianças, outras formas de enxergar os seus
mundos e de tentar compreender os processos próprios de construção das culturas
infantis.

A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas


infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas
societais atravessadas por relações de classe, de género e de proveniência
étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único
dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a ‘marca’ da
geração torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador
comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e
materiais para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da
infância na produção cultural. (SARMENTO, 2002, p. 04)

Para Graue e Walshe (2003), os investigadores precisam enfrentar o desafio de


aprenderem a descobrir, pois, principalmente quando se trabalha com crianças essa
premissa é ainda mais fundamental. O mundo infantil é cheio de dúvidas que a nossa
(in)capacidade criativa precisa abrir-se a esse universo de possibilidades, pois se
acreditamos que já sabemos o que queremos quando vamos realizar uma pesquisa com
crianças, não vale a pena sequer começar, pois o convívio com elas é tão cheio de
fantasias e realidades próprias, que nós adultos jamais poderíamos imaginar a não ser se
pararmos para ouvi-las e escuta-las. Neste sentido os autores nos indagam para a
seguinte reflexão:
5

Estudar as crianças – para que? Eis a nossa resposta: Para descobrir mais.
Descobrir sempre mais, porque, se o não fizermos, alguém acabará por
inventar. De facto, provavelmente já alguém começou a inventar, e o que é
inventado afecta a vida das crianças; afecta o modo como as crianças são
vistas e as decisões que se tomam a seu respeito. O que é descoberto desafia
as imagens dominantes. O que é inventado perpetua-as. (Idem, p. 12)

Assim a construção de uma visão da criança enquanto ser de direitos, protagonista das
suas ações e construtora de lógicas próprias de ação e criação ganha cada vez mais espaço entre
as pesquisas nas áreas das Ciências Sociais e Humanas em especial na Sociologia da Infância,
na Antropologia da Criança e, conseqüentemente no campo das Ciências da Educação. Sob o
foco desta argumentação, partimos do pressuposto de que a criança é um sujeito
histórico, e por isso, enveredamos nossos olhares ao reconhecimento desta condição
social de sujeito. Essa possibilidade, para Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 15), apesar
das questões balizadas pelo trabalho do historiador francês Philippe Áries: Historia
Social da Criança e da Família (1962:1981), das propostas surgidas na década de 1970 e
do crescimento dos debates na década de 1980, a sedimentação de fato deste espaço
ganha relevância somente a partir de 1994, influenciada pelo movimento europeu da
Antropologia, em especial da Etnografia, que “... inaugura em definitivo um espaço de
investigação científica, legitimando-o como de vital importância para as crianças e para
a reflexão atual que se faz no seio das ciências sociais e da educação”.
Fundamentados nos estudos da antropóloga Allison James e do sociólogo Alan
Prout, de 1990, explicitaremos a seguir, seis princípios9, destacados pelos autores, que
têm sido utilizados para orientar a consolidação de um novo paradigma para o estudo da
infância e que muito contribuíram, tanto teórico quanto metodologicamente, para os
novos estudos da infância:

1. A infância deve ser entendida como construção social, fornecendo assim um


quadro interpretativo para os primeiros anos da vida humana. A infância, por
oposição à imaturidade biológica, nem é uma característica natural nem
universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente específico
estrutural e cultural das várias sociedades.
2. A infância deve ser considerada como variável de análise social, tal como
gênero, classe ou etnicidade, pois estudos comparativos revelam mais uma
variedade de “infâncias” do que um fenômeno único e universal.

9
Extraídos do texto de Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 18).
6

3. As relações sociais e a cultura das crianças são merecedoras de estudos em si


mesmas,independente da perspectiva e dos interesses dos adultos.
4. As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de
sua própria vida social, na dos que as rodeiam, e na sociedade na qual vivem. As
crianças não são apenas sujeitos passivos de estruturas e processos sociais.
5. A etnografia é um método particularmente útil ao estudo da infância. Permite
à criança participação e voz mais direta na produção de dados sociológicos do
que normalmente é possível por meio das pesquisas experimentais.
6. A infância é um fenômeno em relação ao qual uma dupla hermenêutica das
ciências sociais está presente, ou seja, a proclamação do novo paradigma da
sociologia da infância também deve incluir e responder ao processo de
reconstrução da infância na sociedade.

2. Os novos territórios: as crianças e as culturas infantis

Quando pensamos em novos territórios para as pesquisas com as crianças,


pensamos juntamente com eles, um campo teórico-metodológico que dê base para sua
sustentação, e que não nos deixe caminhar num mero espaço de elucubrações e
pragmatismos, correndo o risco de derrapar no primeiro obstáculo posto.

[...] considerar a participação das crianças na investigação, é mais um passo


para a construção de um espaço de cidadania da infância, um espaço onde a
criança está presente ou faz parte da mesma, mas para além do mais, um
espaço onde a sua acção é tida em conta e é indispensável para o
desenvolvimento da investigação. (SOARES, 2006, p. 28-29).

De acordo com Bourdieu (2007), romper com o senso comum é uma das mais
difíceis tarefas da prática científica. No entanto, restituir complexidade a objetos de
aparente fácil reconhecimento e definição social como o caso da infância/criança é, na
recomendação deste autor, um exercício necessário de fuga à “passividade empirista”,
10
que faz do pesquisador presa de seu próprio objeto de estudo. Esta “advertência
metodológica” faz ainda mais sentido quando se trata de enfocar problemas de forte

10
Cabe lembrar que, mesmo a “passividade empirista” não é assim tão “passiva”, pois o pesquisador que
aceita tacitamente um conceito pré-construído está ativamente reforçando o seu sentido comum.
Assim, o que é, em verdade, uma escolha conservadora traveste-se de uma não-escolha.
7

apelo social, moral, emocional, além de político como é o caso da infância. Esta é hoje
considerada um caro valor à civilização. 11

O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de


vista, princípio de uma visão assumida a partir de um ponto situado no espaço
social, de uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteúdo pela
posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a realidade
primeira e última já que comanda até as representações que os agentes
sociais podem ter dele (BOURDIEU, 2003, p. 27. Grifo meu).

Na consolidação desse espaço fértil que tem se firmado na direção da autonomia e


da responsabilidade social com as crianças muito ainda se tem a fazer. Vale a pena
demarcar as pesquisas e produções brasileiras no contexto internacional, apesar dos
esforços ainda limitados neste campo no país, como comprovado por Rocha (2007), no
balanço da produção acadêmica apresentada no GT 0 a 6 durante os 25 anos de existência
do mesmo na Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Eucação-ANPED e
de forma mais abrangente, em sua tese de doutorado (ROCHA, 1998), demonstrando que
ainda estamos com um caminho bastante longo a trilhar se comparado a produção
acadêmica em outros paises como Portugal, por exemplo, que conseguiu nos últimos anos
acumular uma larga experiência de pesquisa graças a criação em 1988 e a consolidação do
Instituto de Estudos da Criança-IEC da Universidade do Minho, e a vasta publicação de
trabalhos de pesquisa que vão desde monografias, dissertações, teses de doutorado, até
livros e revistas cientificas e a realização de uma série de eventos como as conferências
anuais de sociologia da infância que culminaram com a realização em fevereiro de 2008
do 1º Congresso Internacional em Estudos da Criança: Infâncias possíveis mundos reais.12

A infância não é mais uma etapa infelizmente inevitável, mas um período


necessário e que produz resultados felizes. Não é mais um tempo demasiado
longo, que é preciso tentar encurtar, mas um tempo demasiado curto, que
seria necessário poder alongar para prolongar a criatividade humana
(CHARLOT, 1986, p. 127).

Impulsionados por esse ímpeto de busca e pela possibilidade de construção de bases


teóricas e metodológicas que atendam as reais condições das crianças e as diversas
infâncias presentes no contexto brasileiro, é que estamos compartilhando com a vasta
bagagem dos nossos patrícios portugueses, a entender as diversas nuances das infâncias,
como nos afirma Oliveira-Formosinho (2008, p. 16) “A criança é, assim, possuidora de

11
Marchi, (2007).
12
Infâncias possíveis, mundos reais (2008)
8

uma voz própria, que deverá ser seriamente tida em conta, envolvendo-a num diálogo
democrático e na tomada de decisão”.Tal opção é reforçada pela posição de Silva,
Barbosa e Kramer (2005, p. 52). Segundo essas autoras:

É preciso que o pesquisador se coloque no ponto de vista da criança, como


se estivesse vendo tudo pela primeira vez [...]. Isso vai exigir do pesquisador
descentrar seu olhar adulto para poder entender, através das falas das
crianças, os mundos sociais da infância.

Na proposição de um caminho metodológico que consiga se aproximar dos


diversos contextos em que as crianças então inseridas, o uso das mais diversas
estratégias de “recolha de dados”13 deve fazer parte do mote do pesquisador que deve
ultrapassar alguns “rituais transitórios” para ser aceito no mundo das crianças, pois, na
base de ingresso no universo das suas realidades, encontram-se:

[...] relações e interacções sociais entre adulto e crianças e entre estas ultimas,
onde poderes, racionalidades e subjectividades, aferindo-se em permanência,
(re)constroem reflexivamente sentidos partilhados do que «ali se está a fazer»,
assim é preciso entrar cuidadosamente no terreno (FERREIRA, 2002, p. 150).

Assim é preciso que seja feito um planejamento das ações que serão desenvolvidas
no processo de investigação, porém, com o caráter de extrema flexibilidade, pois o
contexto será o elemento marcante para que questões postas possam ser re-planejadas
mediante a necessidade de alguma situação nova que possa ocorrer durante o processo da
pesquisa. Kramer (2002), nos elenca algumas questões fundamentais nesse processo de
pesquisa:
ü Deixar fluir sempre o discurso das crianças, explicitando as condições de
produção dos mesmos;
ü Buscar rever como as crianças conhecem o contexto em que estão inseridas;
ü Mostrar as contradições e a diversidade presentes entre as crianças e suas
relações com o trabalho, a brincadeira, o ser menino, menina, criança ou
adulto.
ü Criar condições para que as crianças possam se reconhecer no texto que é
escrito sobre elas e suas historias;

13
A utilização deste termo é uma apropriação da obra de Graue & Walsh (2003). Os autores preferem o
termo geração de dados a recolha de dados, pois segundo eles, “Os dados não estão ai a nossa espera,
quais maçãs nas arvores prontas a serem colhidas. A aquisição de dados é um processo muito activo,
criativo e de improvisação” (p.115).
9

ü Ter clareza teórica de que a criança é sujeito da cultura, da história e do


conhecimento;

Ainda de acordo com a autora, uma questão fundamental que merece muito debate
por parte dos investigadores da infância, refere-se às questões éticas com o uso dos
nomes, fotos ou relatos das crianças. Sendo as mesmas “dependentes” – sob a ótica das
legislações – dos adultos, questiona:

Mas, se a autorização quem dá é o adulto, e não a criança cabe indagar mais


uma vez: ela é sujeito da pesquisa? Autoria se relaciona à autorização, à
autoridade e à autonomia. Pergunto: como proteger e ao mesmo tempo garantir
autorização? Como resolver esse impasse? (Idem, p. 53)

Assim, é importantíssimo que, antes de qualquer trabalho realizado com crianças,


haja um dialogo bastante claro e aberto com todos os envolvidos, sejam eles pais,
professores, tutores e principalmente as próprias crianças, para que se tenham,
primeiramente as autorizações verbais e posteriormente, sejam preparados os documentos
necessários para que a autorização passe a ser oficializada. É fundamental que as crianças
possam decidir sempre se querem ou não participar da pesquisa e como os “dados” que
serão produzidos com elas podem ser utilizados. Assim, caminharemos numa perspectiva
em que as crianças são actores14 sociais das pesquisas e participantes activos.

Conclusão:

Não temos dúvidas que estas e outras questões ainda deverão passar por muitos
debates para chegarmos a uma melhor maneira de resolver esses impasses e
principalmente garantir em nossas pesquisas a presença protagonizada das crianças. Que
os nossos textos possam ser construídos por várias mãos, vários rostos e vários nomes.
Que não tenhamos a inescrupulosa vaidade de assumirmos sozinhos a autoria de um
trabalho coletivo. Que possamos dividir com as crianças os resultados alcançados e os
desafios enfrentados se quisermos, de fato, consolidarmos uma perspectiva de
participação ativa.

14
Sarmento (2002)
10

Diante de tantas questões e inúmeras dúvidas, algumas certezas nos são muito
presentes. Não conseguiremos efetivar esse caminho de forma fácil e imediata, mas
certamente com a união de esforços e a combinação da vontade política de construir
novos territórios para as infâncias, as peças desse mosaico, as vezes obscurecidas, irão
sendo montadas o que, confiantemente, poderá nos fornecer subsídios para que possamos
lutar por uma sociedade mais justa onde as crianças sejam cidadãos de direitos plenos e
autenticas participantes das decisões políticas e públicas de nossa sociedade. Talvez essa
seja a grande “utopia realizável” que representa o nosso maior desafio. Inspiremo-nos em
Bertolt Brecht, em seu “Elogio da Dialética”15 e reafirmemos nossas forças para continuar
a luta.

A injustiça vai por ai com passo firme.


Os tiranos se organizaram para dez mil anos.
o poder assevera: Assim como é deve continuar a ser.
Nenhuma voz senão a voz dos dominantes.
E nos mercados a espoliação fala alto: agora é minha vez.
Já entre os súditos muitos dizem:
o que queremos, nunca alcançaremos,
Quem ainda é vivo, nunca diga: nunca!
o mais firme não é firme.
Assim como é não ficará.
Depois que os dominantes tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem ousa dizer: nunca?
A quem se deve a duração da tirania? A nós.
A quem sua derrubada? Também a nós.
Quem será esmagado, que se levante!
Quem esta perdido, que lute!
Quem se apercebeu de sua situação,
Como poderá ser detido?
Os vencidos de hoje serão os vencedores de amanhã.
De nunca saíra: ainda hoje.

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dez passos para se tornar um professor reflexivo. Campinas-SP. Educação e Sociedade,
ano XXII, n. 74, abril/2001.

15
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11

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1981.

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crianças como produções simbólicas
Manuel Jacinto Sarmento ∗

“Ouvir a voz das crianças”: Esta expressão condensa todo um programa,


simultaneamente teórico, epistemológico e político.

O programa teórico assenta na constatação de que as crianças têm sido silenciadas


na afirmação da sua diferença face aos adultos, e na expressão autónoma dos seus
modos de compreensão e interpretação do mundo; estudar as crianças como
actores sociais de pleno direito, a partir do seu próprio campo, e analisar a infância
como categoria social do tipo geracional é o objectivo a que se tem proposto a
Sociologia da Infância, para quem “ouvir a voz das crianças” se constitui mesmo
como uma directriz vertebradora na compreensão de factos e dinâmicas sociais
onde as crianças contam (e.g. Qvortrup, 1991; Corsaro, 1997; James, Jenks, Prout,
1998; Sirota, 1998; Mayal, 2002). O programa epistemológico manifesta-se na
ideia, cara à abordagem sócio-antropológica da infância, de que entre o mundo
adulto e as crianças existe uma diferença que não é apenas de nível de registo ou
de maturidade comunicativa, mas radica na alteridade da infância, insusceptível de
ser resgatada pela memória que os adultos possuem das crianças que foram, mas
que se exprime na peculiar organização do simbólico que a mente infantil e as
culturas da infância proporcionam. O programa político exprime-se na constatação
de que as crianças permanecem excessivamente afastadas dos núcleos centrais de
decisão sobre aspectos que dizem respeito às condições colectivas de existência e
que esse afastamento, sendo a expressão da dominação adulta, é um modo de
hegemonia e de controlo, cujo resgate não encontra outra possibilidade senão
precisamente por tornar presente a voz das crianças na participação social e na
decisão política (e.g. Lee, 2001).

No entanto, o paradoxo maior da expressão “ouvir a voz das crianças” reside não
apenas no facto de que ouvir não significa necessariamente escutar, mas no facto
que essa “voz” se exprime frequentemente no silêncio, encontra canais e meios de
comunicação que se colocam fora da expressão verbal, sendo aliás, frequentemente
infrutíferos os esforços por configurar no interior das palavras infantis aquilo que é


Professor de Sociologia da Infância no Instituto de Estudos da Criança e investigador do LIBEC,
Universidade do Minho, Braga, Portugal. Contacto: Sarmento@iec.uminho.pt

1
o sentido das vontades e das ideias das crianças. Mas essas ideias e vontades
fazem-se “ouvir” nas múltiplas outras linguagens com que as crianças comunicam.
Ouvir a voz é, assim, mais do que a expressão literal de um acto de auscultação
verbal (que, aliás, não deixa também de ser) uma metonímia que remete para um
sentido mais geral de comunicação dialógica com as crianças, colhendo as suas
diversificadas formas de expressão.

O desenho infantil insere-se entre as mais importantes formas de expressão


simbólica das crianças. Desde logo, porque o desenho precede a comunicação
escrita (na verdade, precede mesmo a comunicação oral, dado que os bebés
rabiscam antes ainda de articularem as primeiras palavras). Depois, porque o
desenho infantil, não sendo apenas a representação de uma realidade que lhe é
exterior, transporta, no gesto que o inscreve, formas infantis de apreensão do
mundo – no duplo sentido que esta expressão permite de “incorporação” pela
criança da realidade externa e de “aprisionamento” do mundo pelo acto de inscrição
- articuladas com as diferentes fases etárias e a diversidade cultural. Nesse sentido
o desenho infantil comunica, e fá-lo dado que as imagens são evocativas e
referenciais de modo distinto e para além do que a linguagem verbal pode fazer.

Numa perspectiva sociológica, o desenho infantil não apenas releva de uma


personalidade singular, a criança, por quem é elaborado e construído, mas
inscreve-se na produção simbólica de um grupo social de tipo geracional – a
infância - que possui um estatuto específico na sociedade, e que, embora partilhe
com os outros grupos geracionais as formas culturais múltiplas e complexas
socialmente presentes, apresenta igualmente elementos culturais não redutíveis a
essas formas, mas dependentes da condição infantil.

O desenho das crianças necessita por isso de ser analisado num triplo
enquadramento, articulando as várias dimensões de análise: primeiro, como um
acto realizado por um sujeito concreto, para o qual são mobilizados saber, vontade,
capacidade físico-motora, destreza técnica, emoções e afectos que identificam o
sujeito como realidade singular e como produtor cultural único; segundo, no quadro
da cultura de inserção que autoriza ou inibe a expressão gráfica da criança, que a
exalta ou a recalca, que a instrui, a proíbe ou a liberta, e que o faz através do
sistema específico de crenças, das representações e imagens sociais sobre a
infância e das instituições que possui; terceiro, como uma expressão geracional
específica, distinta da expressão plástica dos adultos, veiculadora de formas e
conteúdos expressivos e representacionais que necessitam de ser lidos de acordo
com uma gramática interpretativa das culturas da infância (Sarmento, 2004). A
este propósito, alguns autores recusam mesmo a expressão “arte infantil”,

2
considerando precisamente essa diferença de estatuto da expressão plástica das
crianças face à pintura (ou escultura) adulta, não porque lhe falte dimensão
estética, mas porque decorre de uma intencionalidade e de um sentido intrínseco
distinto (cf. Matthews, 2003).

A conjugação das três dimensões de análise dos desenhos infantis tem tudo a
ganhar se puder ser feita de modo a fazer reverberar o conhecimento adquirido em
cada um deles sobre os restantes, isto é, se articular as dimensões subjectivas,
sócio-culturais e geracionais no seu escopo. A evocação da interdisciplinaridade,
constituída em torno de objectos que a exigem como condição da sua compreensão
totalizadora, faz, a este propósito, todo o sentido.

O desenho infantil tem sido profusamente estudado, praticamente desde que se


instituíram os fundamentos de um saber pericial sobre as crianças e sobre a
infância. No entanto, a ênfase tem sido insistentemente colocada apenas numa
dimensão de análise – a do desenho como expressão de uma subjectividade em
formação. Acresce que a este viés psicologizante se adiciona uma visão largamente
predominante nos estudos sobre a infância que tende a abstractizar a criança em
torno de categorias-padrão ou estádios de desenvolvimento, que tem deste uma
visão linear, progressiva e teleológica, e que ignora os contextos sociais de inserção
das crianças e a relação de mútua implicação das estruturas sociais e da acção
infantil. A abstracção, linearidade e descontextualização social, assacáveis à
tradição da psicologia do desenvolvimento (cf. Burman, 1994), não obstam a que a
dimensão especificamente subjectiva da produção plástica das crianças e uma
interpretação sociológica do desenho no desenvolvimento infantil não sejam
indispensáveis, em diálogo com as disciplinas que mais profundamente têm
contribuído para o seu conhecimento: a Psicologia e a Psicanálise1.

Desenho infantil e desenvolvimento

1
A par da Psicologia do Desenvolvimento, a Psicanálise constitui a mais fecunda tradição dos estudos do
desenho infantil. Com efeito, a utilização do desenho como indicador de comportamentos e revelador de
conflitos emocionais remonta a Freud e tem uma significativa expressão na abordagem psicanalítica da
infância. A tradição psicanalítica do desenho infantil, nas suas várias abordagens, encontra expressão
nos principais psicanalistas que escreveram sobre crianças, nomeadamente Anne Freud, Melanie Klein,
Winnicott e Françoise Dolto, entre outros. Para além da intenção analítica há uma preocupação clínica
com importantes contributos na detecção e tratamento de distúrbios psico-afectivos e maus-tratos físico
e psiquícos. Para uma revisão da utilização do desenho na terapia, cf Malchioli, 1998. Para uma
abordagem sociológica dos saberes psicológicos e psicanalíticos sobre a infância, cf. Neyrand, 2000.

3
A afirmação do desenho da criança como um acto intencional remonta a Wallon,
para quem o desenho só é definível a partir do momento em que o traço se torna o
destino do gesto da criança (Wallon, 1979[1941). No entanto, para o autor, o
estudo do desenho, bem como do jogo ou das actividades infantis em geral, está
associado a um programa investigativo que proclama expressamente que “o estudo
da criança é essencialmente o estudo das fases que vão fazer dela um adulto”
(idem: 30). A imensa maioria das produções teóricas e interpretativas dos
desenhos das crianças incorpora esta visão que gradualiza em fases distintas de
desenvolvimento, progredindo em direcção à condição adulta, a actividade gráfica
infantil. Os campos disciplinares em que essa literatura se ancora são
essencialmente a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicanálise, a Psicoterapia e a
Pedagogia. São escassas as produções críticas de uma concepção gradualista do
desenho infantil bem como aquelas que se centram expressamente naquilo que o
desenho da criança significa a partir do seu próprio campo, isto é, objectos
artísticos susceptíveis de uma leitura a partir da expressividade das linhas, dos
traços, das formas e das cores que neles se inscrevem.

O levantamento das formas gradualmente distintas que o desenho infantil vai


assumindo sinaliza a relação entre a idade das crianças e composições dominadas
por traços característicos da respectiva fase etária (cf. Gardner, 1980; Malchiodi,
1998; Greig, 2004). Antes dos dezoito meses de idade, os desenhos exprimem uma
orientação estritamente psicomotora da criança, sem intencionalidade associada. As
impressões gráficas caracterizam-se por manchas decorrentes da aplicação directa
da mão sobre a superfície onde se inscreve o gesto. A partir dos dezoito meses, o
controlo visual do gesto promove formas mais elaboradas de impressão gráfica da
criança, linhas que inscrevem o movimento da mão, definindo trajectos sobre a
superfície de inscrição de forma contínua ou com linhas isoladas, mais ou menos
onduladas, progressivamente circulares. É a fase da garatuja. Por volta dos vinte e
quatro meses, a criança segue o gesto com o olhar e controla visualmente o
traçado: a figura circular e o progressivo fechamento das linhas vão constituir o
alvo do seu trabalho plástico; ao mesmo tempo, a nomeação do objecto desenhado
estabelece um paralelo entre a linguagem verbal e a forma plástica. O círculo é a
base da constituição da figura humana, que a criança, a partir dos três anos,
procura representar. Aparece então (por volta dos três anos e meio) o “girino”: um
circulo fechado de onde irradiam traços correspondentes ao esquema corporal –
braços, pernas, olhos, depois a boca, o nariz, as orelhas. Progressivamente a
criança vais escrever formas mais convencionadas de representação do mundo: o
sol, as nuvens, a casa, a chaminé. A figura humana tende a verticalizar-se, a
incorporar sinais anatómicos mais distintos, a cabeça e o corpo constituem-se de

4
forma progressivamente agregada, assumindo proporções. As figuras convencionais
da casa e do sol e a representação proporcional e agregada do corpo humano são
usualmente realizadas pela maioria das crianças aos cinco-seis anos. É a “idade de
ouro” do desenho da criança (Gardner, 1980; Greig, 2004), que se vai desenvolver
até à adolescência, com refinamento progressivo na composição, na representação
dos volumes e organização do espaço, na pormenorização do desenho e na
individualização das formas.

Uma tipologia das fases do desenho infantil que incorpora uma revisão dos
trabalhos mais influentes na área2, é proposta pela investigadora em arte-terapia
C. Malchiodi (1998: 68-98). A autora assinala 6 estádios:

1ª - A garatuja (18 meses a três anos) – o traço é espontâneo, não aprendido,


ainda que intencional, e caracteriza-se pela progressiva exploração da superfície
inscrita através de traços multiformes;

2ª - Formas básicas (3 a 4 anos) – a criança vai progressivamente nomear e


“romancear” os seus traços, fazendo emergir configurações mais complexas,
círculos, mandalas, formas geométricas bidimensionais;

3ª - Forma humana e início da esquematização (4 a 7 anos) – aparecimento e


desenvolvimento das formas rudimentares da figura humana, desde o girino até
formas mais “realistas”, uso subjectivo da cor e desenvolvimento de relações pré-
esquemáticas, com estabelecimento de relações entre o desenho, o pensamento e
a realidade, sem todavia se verificar uma regra de composição, sendo usual a
distribuição aleatória das figuras pela superfície do papel, ainda que as crianças
possam ter uma lógica explicativa para a colocação dos objectos no espaço;

4ª - Desenvolvimento do Esquema Visual (6 a 9 anos) – uso progressivo de


símbolos visuais e esquemas para figuras humanas, animais, casas, árvores, e
outros objectos do ambiente; uso regular e por vezes rígido de uma relação entre a
cor e o objecto; a figura humana é cada vez mais completa nos detalhes com que é
traçada e a relação entre os objectos é estabelecida; o movimento é representado e
as sequências temporais são igualmente incorporadas no desenho; a criança é
frequentemente criativa no “exagero” das formas, proporções e cores;

5ª – Realismo (9 a 12 anos) – desenvolve-se o sentido esquemático do desenho e a


complexidade é representada através da linha, da forma e do detalhe; começa a
incorporar-se a perspectiva e, no desenho da figura humana, a diferenciação de
género; verifica-se um uso realista da cor; a convenção da representação e um

2
Os autores mais convocados para esta síntese são Piaget (1978), Lowenfeld (1968[1947]), Kellog
(1970) e Gardner (1980).

5
“efeito fotográfico” incorpora-se de forma marcante no desenho infantil; há uma
preocupação crescente com a perfeição, a ponto de algumas crianças abandonarem
o desenho nesta fase, por se sentirem desencorajadas ante a auto-exigência da
representação realista ou por encontrarem noutras linguagens meios mais
adequados de expressão;

6ª - Adolescência – a diferenciação e individualização do desenho depende do


desenvolvimento das habilidades e destrezas técnicas, sendo comum a procura de
“estilos pessoais” de expressão, o recurso a formas de simbolização abstracta de
ideias e sentimentos, o uso do desenho como elemento de crítica e como modo
expressivo de si próprio.

O imenso trabalho empírico que se encontra mobilizado na análise psicológica do


desenho não permite dispensar de ânimo leve a existência de “regularidades” no
desenho infantil e da sua correlação com fases etárias diferenciadas. O que um
juízo crítico, não obstante, não pode deixar de fazer o esforço de desconstrução da
interpretação gradualista, descontextualizada e adultocêntrica que é promovida em
boa parte destes estudos. Com efeito, o desenho infantil é interpretado no interior
de uma perspectiva que, como atrás afirmamos, em geral ignora a condição social
e cultural de inserção das crianças, promovendo uma visão abstracta e essencialista
da infância. Desligado da análise das suas condições sócio-culturais de produção, o
desenho infantil é predominantemente analisado como a marca de uma indivíduo
que tipifica a condição da criança e “permite” ler a característica desenvolvimental
em cada etapa concreta da vida. Esta abstracção generalizante escamoteia as
condições sociais e culturais em que tem lugar a produção do desenho infantil. No
entanto, ela é objecto de crítica no interior da própria Psicologia do
3
Desenvolvimento (Burman, 1994) , abrindo desse modo perspectivas alternativas
para a análise dos desenhos das crianças.

O desenho como objecto simbólico

Detenhamo-nos na seguinte proposição da investigadora belga Anne Cambier:

“O grafismo da criança é antes de mais “uma semântica aberta”


(Osson, 1981) onde cada signo se combina com um outro de maneira
sempre complexa. Esta semântica testemunha evidentemente a
pessoa, a sua individualidade, o que ela é no momento presente, mas
também, sem qualquer espécie de dúvida, um saber colectivo
legatário de uma convenção simbólica. Pode pensar-se que, como
toda a linguagem, o desenho infantil está profundamente marcado

3
Wallon (1979[1941]), por exemplo, criticou o carácter rígido da conceptualização piagetiana de
estádios de desenvolvimento, sublinhando a flexibilidade e reversibilidade das fronteiras entre as
diversas etapas e a influência das variáveis sócio-culturais na evolução psicológica da criança.

6
pelos fundamentos essenciais da cultura e reflecte de maneira
privilegiada os valores que subjazem à comunicação na sociedade.
Para lá da dimensão biológica, a elaboração dos signos e a sua
reunião são índices de socialização, de aculturação: desenhar é para
a criança aprender a utilizar os símbolos e a manipular as relações ou
as regras que ligam os significantes aos significados no seu
contexto.“ (1990: 86)

O que se propõe na citação feita é o entendimento dos desenhos infantis como


objectos simbólicos. Os desenhos são decorrentes de processos culturais de
aprendizagem de regras de comunicação, com os seus conteúdos e as suas formas,
e dependem fortemente das oportunidades e das condições de comunicação que
são propiciadas às crianças. Sem prejuízo do carácter autoral que toda a expressão
possui, por se realizar a partir da capacidade criativa do sujeito, os desenhos das
crianças são artefactos sociais, isto é, testemunhos singulares de uma cultura que
se exprime na materialidade dos produtos em que se comunica. Não antecipando,
por agora, algo que desenvolveremos mais adiante, sempre diremos que esta
“semântica aberta” do grafismo infantil adquire a complexidade e a densidade da
sua capacidade comunicativa pelo facto de incorporar, na verdade, uma imbricada
articulação de várias fontes de produção cultural, sendo, ademais, um dos pontos
afirmativos da condição geracional da produção cultural. Os desenhos infantis, com
efeito, correspondem a artefactos culturais da geração infantil, nas condições
culturais e sociais de inserção das crianças em cada contexto concreto. Somos
convidados, deste modo, perante cada desenho das crianças a interpretá-lo na
polissemia das suas formas e cores, simultaneamente como: o produto singular da
criação um sujeito concreto - a pessoa da criança que o desenhou: um artefacto
social significativo das regras e valores culturais de inserção da criança; o objecto
simbólico que exprime, ademais, um grupo geracional específico - a infância – por
sua vez subdivisível em vários subgrupos etários com destrezas e capacidades
gráficas diferenciadas.

A compreensão dos desenhos infantis como objectos simbólicos impõe uma análise
semiológica atenta às várias dimensões do símbolo: linguísticas, culturais, sociais.

Peirce estabelece uma distinção entre índice, ícone e símbolo, que nos é útil reter.
Para o linguista americano, os índices correspondem aos traços sensíveis de um
fenómeno que o produziu; assim, o fumo é o índice do fogo; há uma relação de
contiguidade entre o índice e o seu referente, dado que ambos são consubstanciais
a uma só realidade (se não há fumo sem fogo, também não há fogo que não deixe
os seus traços – o fumo, as cinzas, etc.). Os ícones têm uma relação de
semelhança com aquilo que evocam, apesar de não fazerem parte do mesmo
fenómeno. O ícone é na verdade um signo que refere o objecto por reproduzir

7
características que lhe são formalmente atribuíveis; por exemplo, um sinal de
trânsito de curva perigosa à direita representa visualmente a linha curva apertada
que pretende assinalar. Os quadros figurativos são também ícones e há algo de
iconográfico nos desenhos “realistas” das crianças. No entanto, seria ilusório pensar
que todos os desenhos infantis são iconográficos; na verdade, eles são constituídos
por elementos que remetem para dimensões não apenas representacionais. Têm,
com efeito, um carácter simbólico. Os símbolos, para Peirce, operam por uma
contiguidade instituída com os objectos que representam. São elementos gráficos
ou sonoros inventados, que, por efeito de um arbítrio estabelecido por convenção
entre os comunicantes, remetem para ou evocam objectos concretos ou abstractos.

Norberto Elias (1994) filia na capacidade simbólica dos seres humanos a sua
possibilidade de acção social4. A produção simbólica - que em Elias é tomada como
essencialmente produção na/pela linguagem verbal - espelha e exprime o processo
civilizacional. A transmissão simbólica configura-se como essencial para a vida em
sociedade, sendo recorrentes as referências de Elias ao desenvolvimento pessoal e
social das crianças icomo um desenvolvimento pelo e através da aprendizagem da
língua particular em que cada criança está inserida (idem:129). Apesar de Elias
atribuir às crianças um papel passivo, na sua análise do processo de aprendizagem
simbólico, sem reconhecimento da capacidade infantil de apropriação
transformadora do legado cultural - o que torna, do ponto de vista da Sociologia da
infância, a sua proposta ambígua e a sua teoria da socialização deficiente (cf. Prout,
2005: 106) - o seu contributo teórico configura-se como muito útil para a
inteligibilidade do desenho infantil.

A teoria simbólica ajuda-nos a interpretar os desenhos das crianças como actos de


inscrição de uma cultura na forma comunicativa da expressão visual. A superfície
do desenho activa processos de apropriação e representação do mundo que são
filtrados por códigos culturais, onde se espelha uma historicidade das formas (com
toda a carga semântica da racionalidade, simultaneamente cognitiva e axiológica,
materializada em forma gráfica). Esses códigos são objecto de um trabalho de
reinscrição, através de uma subjectividade expressiva que mobiliza emoções e
ideias feitas gesto de inscrição gráfica e plástica.

Os desenhos das crianças são actos comunicativos e, portanto, exprimem bem mais
do que meras tentativas de representação de uma realidade exterior. Apesar de
alguns trabalhos psicológicos proporem a ideia de que a “evolução” das formas do

4
Afirma Elias:
“Tentei salientar o duplo carácter do mundo de que temos experiência como um mundo independente de
nós, mas incluindo-nos, e como um mundo mediado, para a nossa compreensão, por uma teia de
representações simbólicas, predeterminadas pela constituição natural dos seres humanos, que se
materializam apenas com o auxílio de processos de aprendizagem social.” (1994:131)

8
desenho infantil está articulada com a fixação de um ponto final na escala
evolutiva, ponto esse que seria o “realismo visual” (Gardner, 1990), as crianças,
desde as suas garatujas iniciais, atribuem significados aos seus desenhos que
desmentem a representação directa e a intenção realista.

Além disso, os desenhos das crianças variam com o espaço e o tempo e a sua
inserção social e cultural, sendo necessário considerar os povos e culturas que
atribuem às formas gráficas objectivos bem distintos da representação de uma
realidade exterior. Veja-se, a título de exemplo, o significado das formas gráficas
de povos indígenas amero-indios ou africanos, inscritas por vezes no próprio corpo,
que, sendo apropriadas pelas crianças e por elas reproduzidas (Silva, Macedo e
Nunes, 2001) objectivam finalidades ritualísticas, mágicas ou evocativas, que não
são de modo algum dependentes de uma preocupação realista. De uma forma mais
geral, a criança, mesmo quando procura a semelhança dos seus desenhos com
flores, nuvens, objectos, animais, pessoas, etc., inventa formas imaginárias e
incorpora elementos fantasistas com sentidos e objectivos muito diversos dessa
presumida intencionalidade realista (cf. Matthews, 2003). Tudo se passa como se a
criança procure no seu desenho não propriamente representar um real exterior ao
desenho, mas, desenhando-o, o inscreva como o real da representação, válido em
si próprio e interpretável no quadro da polissemia tolerada pelos códigos em ele foi
desenhado. Não se trata, por consequência, de uma vocação realista, mas do
trabalho de inscrição que legitima o jogo de “faz de conta” onde opera a ”afirmação
do simulacro; afirmação do elemento na rede do similar” (Foucault, 19735). Esse
trabalho simbólico é aquele por onde perpassa a interpretação do mundo.

Por outro lado, ao colocar-se a ênfase na “teia de representações simbólicas” (Elias,


1994) em que se insere o processo de desenvolvimento infantil, é possível
interpretar os desenhos das crianças como actos de criação cultural que revelam,
mais do que processos biopsicológicos de desenvolvimento, formas específicas de
acção social das crianças. Pelo desenho se exploram os limites da linguagem
simbólica, sendo para as crianças, frequentemente, não apenas um modo de
inscrição do mundo na superfície do papel, mas o momento da sua inteligibilidade.
Os desenhos são, de algum modo, formas de exploração do real e processos
constitutivos da sua compreensão.

A consideração dos desenhos como produções simbólicas da criança remete


também para a análise das condições sociais de produção. A análise sociológica dos

5
A frase de Foucault ocorre na percutante análise a que submete o quadro de Matisse: “Ceci n’est pas
une pipe.”. Tal como Matisse (e aliás a arte moderna em geral) as crianças operam uma dupla operação
na sua “arte”: convocam o real, em formas frequentemente insuspeitadas, elementos referenciais e
invocam a materialidade do simulacro no seu desenho. (por exemplo, as crianças desenham uma casa e
afirmam: isto não é uma casa, é só o desenho de uma casa).

9
processos de elaboração dos desenhos necessita de atender aos meios disponíveis
para as crianças realizarem os seus trabalhos, às rotinas em que se inserem os
momentos de realização do desenho, às práticas institucionais (no interior da
família, na escola, nos ateliês de tempos livres, etc.) em que a actividade gráfica da
criança tem lugar, às relações sociais que se estabelecem no momento do desenho
com os pais, os irmãos, os professores, com outras crianças ou com outros adultos,
à materialidade do gesto gráfico e dos seus suportes físicos – o lápis, o papel, as
tintas, o pedaço de tijolo com que se risca a superfície de pedra ou de cimento, a
cana com que se desenha na areia, etc.

As condições sociais de produção realizam-se num universo saturado de formas


visuais que preexistem ao desenho das crianças e são por elas inscritas no seu
trabalho plástico, independentemente da consciência discursiva que possam possuir
possua disso; esse universo visual é constituído pelas imagens projectadas pelos
desenhos animados, pelos grafismos inseridos nos programas de televisão, nos
livros escolares, nos jogos e brinquedos e, de uma forma mais geral, nos produtos
da indústria cultural promotora da “kindercultura” (Steinberg e Kincholoe, 1997).

Do mesmo modo, essas condições de produção são largamente dependentes das


condições sociais de existência da criança. Os meios de produção de desenho, as
oportunidades dispendidas, o tempo disponível, a atenção dedicada pelos adultos, o
incentivo e a motivação para desenhar e reconhecer nos desenhos das crianças
actos legítimos de simbolização do mundo são diferenciados conforme as condições
existenciais e, embora não deterministicamente, influenciados pelas classe de
pertença dos pais, pelo nível de instrução cardinal da família, pela própria
composição e tipo familiar (com ou sem irmãos, nuclear, monoparental ou
alargada). Similarmente, o género é também relevante no desenho da criança – os
meninos e as meninas diferenciam os seus desenhos progressivamente e isso é a
expressão de diferenças culturais nos papéis de género que são incutidos e
transformados em formas gráficas distintas (cf. Malchioli, 1998. 184-191).

Em suma, as principais categorias sociológicas – classe, etnicidade, género, nível


de instrução – usualmente postas em equação na análise dos fenómenos sociais
são relevantes no estudo dos desenhos infantis, porque os diversos códigos
culturais emanam dessas categorias. Mas esses códigos só se tornam
verdadeiramente compreensiveis se considerados em articulação confluente com a
categoria geracional. As crianças são, simultaneamente, unas e diversas, pelo facto
de integrarem o mesmo grupo geracional, cujo estatuto e posição é comum na
estrutura social, apesar das crianças se distribuírem pelos diversos escalões,
classes e grupos sociais (Qvortrup, 1994).

10
Nesta conformidade, a análise dos desenhos infantis não pode fazer economia nem
de um nem de outro tipo de factores sociais em presença – os que estabelecem a
unidade do grupo geracional e os que produzem a estratificação, a desigualdade e a
diversidade das condições sociais de existência das crianças. Para o primeiro tipo de
factores – os que “unificam” a infância como grupo geracional – o conceito de
“culturas da infância” é decisivo.

Desenho e culturas da infância

Há muito que se vem estabelecendo a ideia de que as crianças realizam processos


de significação e estabelecem modos de monitorização da acção que são específicos
e genuínos. Estudos sociológicos da infância têm sustentado a autonomia das
formas culturais da infância (Denzin, 1977; Corsaro, 1997; James, Jenks e Prout,
1998; Prout, 2000). Essas formas culturais radicam e desenvolvem-se em modos
específicos de comunicação intrageracional e intergeracional. Sem prejuízo da
análise dos factores psicológicos e das dimensões cognitivas e desenvolvimentais
que presidem à formação do pensamento das crianças, as culturas da infância
possuem, antes de mais, dimensões relacionais, constituem-se nas interacções de
pares e das crianças com os adultos, estruturando-se nessa relações formas e
conteúdos representacionais distintos.

Não obstante, a defesa da autonomia cultural das crianças continua sendo um tema
envolto em alguma controvérsia. O debate não se centra no facto, reconhecido, das
crianças produzirem significações autónomas, mas em saber se essas significações
se estruturam e consolidam em sistemas simbólicos relativamente padronizados,
ainda que dinâmicos e heterogéneos, isto é, em culturas.

As culturas da infância são o ponto de confluência desigual de factores simbólicos,


que dependem, numa primeira instância, das relações sociais globalmente
consideradas (especialmente de classe, etnicidade e género). No entanto, numa
segunda instância, esses factores radicam na especificidade das relações inter e
intrageracionais estabelecidas pelas crianças (Sarmento, 2005). Quer dizer, as
crianças, porque são crianças, vivem um processo de desenvolvimento que as
coloca numa particular relação de dependência face aos adultos. O seu modo de
interpretar e significar o mundo, sendo permeado pelas culturas onde se inserem, é
marcado pela sua condição biopsicológica e pelo estatuto social dependente em que
se encontram. Nas suas relações com os adultos e nas suas relações com outras
crianças partilham, reproduzem, interpretam e modificam códigos culturais que são
actualizados nesse processo interactivo. Esses códigos têm uma dimensão
normativa (impõem regras e condutas, como por exemplo a proibição de tomar

11
bebidas alcoólicas ou a obrigação da frequência da escola, a partir de certa idade),
são compostos por rituais e artefactos (por exemplo, canções de embalar ou de
roda, brinquedos e jogos), exprimem-se em ideias, frases, desenhos que obedecem
a gramáticas próprias de estruturação, nos seus aspectos semânticos, morfológicos,
sintácticos e pragmáticos (por exemplo, a linguagem infantil não é uma forma
empobrecida de actualização de uma língua-padrão, mas o exercício de uma
expressão onde se joga um modo particular de relação com o mundo e com a
linguagem), tanto quanto estão presentes nas acções individuais e colectivas das
crianças (nas brincadeiras, na postura corporal ao comer, nos hábitos de higiene
diária, na comunicação com os colegas e amigos, etc.).

Através deste processo interactivo, as crianças exprimem a sua competência e


revelam a capacidade que têm de lidar com tudo o que as rodeia, formulando
interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da natureza, dos
pensamentos e dos sentimentos, fazendo-o de modo distinto dos adultos.

Como dissemos, este processo é criativo, tanto quanto reprodutivo, isto é, nele se
presentifica um passado histórico culturalmente sedimentado e a inovação sempre
inerente a toda a acção humana.

Poderíamos talvez usar a metáfora dos círculos concêntricos de inserção cultural,


devedora da sociologia “geométrica” de George Simmel (1989) para caracterizar o
processo de “bricolagem social” (Javeau, 2001) que as crianças são
quotidianamente convidadas a fazer para garantirem a reprodução interpretativa
das suas raízes culturais no quotidiano das suas existências. Simmel concebe a
acção dos indivíduos nas relações sociais no interior de “formas” sociais que
tendem a constituir-se como constrangedoras mas não inibidoras das possibilidades
criativas dos actores sociais. O processo de modernização não fez mais do que
incrementar e desenvolver as formas constitutivas da “cultura objectiva”,
nomeadamente por efeito da importância crescente da ciência e da tecnologia e dos
seus dispositivos de enquadramento das interpretações e da formação da vontade.

A referência que fazemos aos círculos de inserção cultural das crianças afasta-se
num ponto da proposta da sociologia “formal” de Simmel. Na verdade, os “círculos”
a que nos referimos, mais do que formas preenchidas de conteúdos, preexistentes
à acção social e transmitidas por via da reprodução cultural intergeracional, são
aqui concebidas como contextos culturais de imersão das crianças, dotados de
dinamismo e tensão internas, formados de forma algo fragmentária e sempre
incorporados pelas crianças de modo que estas são chamadas a fazer selecções,
oposições, translações e interpretações, que fundam as condições individuais,

12
singulares e irrepetíveis do desempenho de cada criança, sem deixar de as
constituir como “indíviduos sociais”.

Ora, os desenhos infantis dão a ver essa bricolagem entre referenciais simbólicos
de diferente proveniência.

A imersão das crianças no universo simbólico pode ser vista pelas formas que os
seus desenhos adoptam na intercepção de vários planos de produção e reprodução
cultural:

Ÿ A educogenia familiar. As crianças pertencem a uma dada classe social, a um


grupo étnico, a um género. Se a pertença ao género é parcialmente determinada
pela determinação biológica do sexo (na verdade, o género é uma construção
cultural), é no domínio da educação familiar (independentemente do tipo de
constituição familiar) que opera o efeito étnico e de classe e se constitui o “habitus”
(Bourdieu, 1980), no quadro da socialização primária a que a criança é submetida.
As formas gráficas herdadas da educação informal da família são aqui constituídas.
É também aqui que se constroem as raízes do “gosto”, associado às condições de
classe, à pertença étnica, à tradição religiosa, etc. O desenho das crianças encontra
na educação informal da família alguns dos seus motivos e temas (por exemplo, a
casa, mas também motivos étnicos ou religiosos), bem como a afiliação, pelo
menos enquanto a cultura escolar não diluir alguns dos seus traços, de um
“programa estético”, expresso designadamente na selecção de cores e na
realização das formas.

Ÿ A cultura local. O local é o espaço impuro das identidades sociais. Impuro, porque
o local não é independente das relações sociais mais vastas, é atravessado por
motivos simbólicos de geração supralocal e é continuamente ”contamidado” por
influências descaracterizadoras das raízes identitárias. Mas é também o espaço
social da transmissão pelas suas tradições, através do trabalho das instituições
locais e pela influência das relações de vizinhança. O “habitat” (também) faz o
“habitus”. Os desenhos das crianças incorporam como motivos temas da cultura
local (por exemplo, os desenhos das crianças rurais exprimem muito
frequentemente o trabalho agrícola), assim como são permeáveis a formas
incorporadas nas culturas locais (especialmente se estiverem ligados a tradições
artesanais; mas também, edifícios, objectos do mobiliário urbano, estátuas ou
artefactos). É provavelmente que a influência das culturas locais seja menor nas
crianças urbanas do que nas crianças dos meios rurais, mais fieis à preservação das
identidades. No entanto, sobretudo quando as crianças caminham para a
adolescência, as “tribos urbanas” podem ter influência no tipo de grafismo e na
paleta de cores usada, como se reconhece nos graffitti;

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Ÿ A cultura nacional. Os elementos das culturas nacionais de pertença são
comunicados prioritariamente através da escola, mas encontram outras instituições
sociais de veiculação (por exemplo, museus, as estruturas municipais do Estado,
grupos de escuteiros, etc.). A cultura nacional é provavelmente mais influente nas
formas gráficas dos desenhos infantis quando as tradições pictórias são
extremamente fortes na identidade nacional, quando os museus e a oferta cultural
tornam próximas das crianças objectos artísticos, como acontece em Itália ou
Espanha, por exemplo; no entanto, as lendas e sagas, os feitos épicos ou
acontecimentos heróicos ou trágicos da história de um povo são igualmente
influentes nos desenhos das crianças, constituem motivo habitual da sua escolha
temática e inscrevem-se no imaginário colectivo donde se extraem tantos dos
motivos do desenho infantil;

• A cultura escolar. Parcialmente aberta à cultura local e à cultura nacional, a


escola regula os elementos simbólicos através da forma escolar (Vincent, Thin e
Lahire, 1994). Esta é constituída pelas regras específicas de aquisição e
transmissão do conhecimento, que foram historicamente incorporados no modo
próprio com que a escola trata o simbólico – enciclopedismo, registo escrito
predominante, modo de comunicação didáctica, formalismo, práticas avaliativas,
etc. A cultura escolar é o espaço de formalização do desenho infantil; mesmo
quando ele é promovido como “desenho livre”, não deixa de constituir uma tarefa
escolar, condicionada pelo seu carácter compulsivo, pela estrutura do espaço-
tempo em que se realiza, pelo tipo de materiais utilizados, etc. A escola é também
o espaço onde as crianças encontram os colegas – isto é, etimologicamente,
aqueles que lêem em conjunto as regras do “ofício de aluno” (Perrenoud, 1995). O
desenho infantil recebe da cultura da escola sobretudo uma sintaxe, as regras da
sua estruturação plástica e a permeabilidade aos temas e motivos comuns gerados
na cultura de pares, pelas relações entre colegas.

Ÿ A cultura global. A influência da cultura global sobre as crianças é especialmente


patente pela influência dos media e pela indústria cultural para as crianças. Os
programas televisivos, as séries infantis, os filmes e videogramas, os jogos, os
brinquedos, os desenhos animados, os livros de banda desenhada, os mangás,
alguns livros (de que o Harry Potter é apenas o mais representativo) são poderosos
indutores da expressão gráfica das crianças, pelos seus efeitos de colonização do
imaginário infantil, nos temas, nos motivos e nas formas. Do mesmo modo, a
produção mediática para os adultos – programas de televisão, o cinema, a
publicidade, a moda, o desporto profissional, as revistas etc. – constituem
reservatórios potenciais de imagens incorporadas na expressão gráfica das
crianças. A cultura da globalização tende a uniformizar a expressão das crianças;

14
no entanto, a recepção infantil da cultura mediática e da indústria cultural não é
meramente passiva, nem muito menos as crianças se constituem como seres
puramente impregnáveis pelas formas induzidas nesses produtos. Pelo contrário, as
crianças são receptores interpretativos e frequentemente críticos, ainda que
também usualmente desavisados, da cultura de massas (Buckingham, 2000). É,
portanto, a interpretação das formas veiculadas pelos media que as crianças
inscrevem no seu trabalho plástico, não a reprodução linear dessas formas.

Os vários planos de articulação simbólica – os círculos concêntricos de inserção


cultural - não têm o mesmo peso e influência no momento em que a criança
desenha. Na verdade, cada desenho é resultante do acto individual, num espaço e
num tempo concreto, de criação subjectiva; é, por isso mesmo, irrepetível e único,
dado que resulta da oportunidade singular de articulação simbólica de múltiplos
códigos e de diferentes léxicos graficamente disponibilizados para a interpretação
criativa da criança.

A criança posiciona-se dentro destes círculos concêntricos de imersão simbólica, no


qual o centro é ela própria. Mas.... os espaços simbólicos têm espessura e
densidade, são dinâmicos e compósitos, misturam-se e articulam-se multiplamente.
Não é no centro de círculos, antes de esferas culturais flexíveis, densas e que se
interceptam, que as crianças se posicionam enquanto produtoras culturais. Reside
aqui a condição da subjectivação: na gestão do peso dos diferentes modos de
articulação simbólica.

Essas esferas incorporam também as culturas da infância. Todos os elementos


culturais decorrentes da socialização infantil são reinterpretados e ressignificados
pelas crianças, e investidos nas suas relações com os pares e com os adultos.
Interessa, por isso, tentar perceber, para além daquilo que são as marcas do
desenvolvimento infantil e dos seus estádios, os elementos distintivos das culturas
infantis e a sua expressão nos desenhos.

Afirma Matthews que “desenhar para os mais novos é como uma conversa e tem
uma estrutura conversacional “ (2003:20). O desenho é como uma linguagem que
se utiliza, prioritariamente, para a criança dialogar consigo própria (é muito
frequente as crianças falarem em voz alta enquanto desenham), com as coisas que
inscrevem no papel e com os colegas que partilham a prática comum do desenho.
O diálogo interpares, sobretudo quando o desenho é realizado como actividade
institucional na escola, no ateliê de tempos livres, ou mesmo quando praticada
entre irmãos, permite vislumbrar a emergência de um autor colectivo: as formas e
as cores são intermutadas pelos pares e, antes ainda da individualização dos
desenhos, é a procura de formas comuns comparáveis que a criança procura – daí

15
tantos desenhos das crianças se parecerem uns com os outros. Contrariamente ao
mito romântico ocidental do génio criativo individual (mito esse que não tem
paralelo nas culturas populares, nem nas culturas tradicionais não ocidentais, onde
a arte é colectiva ou anónima e as formas emergem da criação compartilhada das
comunidades, cf. Vidal e Silva, 1992), a criação plástica infantil vive da transacção
das formas, o plágio não é proibido, antes tolerado e cultivado (ainda que possa ser
restrito a grupos particulares de crianças, que preservam as suas formas de outros
grupos “rivais”) e a criação colectiva (do tipo dos jogos que o surrealismo veio a
importar no seu programa estético como “cadavre exquis”) muito comum. Há, por
consequência, uma autoria colectiva que é a marca de um dos aspectos mais
significativos das culturas da infância: a interactividade e a comunicação entre
pares (Corsaro, 2003)

Mas a natureza conversacional do desenho infantil, já postulada na análise pioneira


de Vigotski (1998[1930]), cumpre uma outra função simbólica: o desenho segue a
imaginação infantil, sendo transgressora do condicionamento espaço-temporal da
criança, e projecta-se como uma voz capaz de articular mundos distantes e
desconhecidos6. Encontramo-nos aqui com dois outros pilares das culturas infantis:
a fantasia do real e a reiteração

O “mundo do faz de conta” integra a construção pela criança da sua visão do


mundo e da atribuição do significado às coisas. O desenho infantil exprime esse faz
de conta, mesmo quando a figuração se pretende construir como representação
realista. É na articulação das situações e figuras, tanto quanto no jogo das cores ou
na fantasia das formas, que se exprime esse mundo de “faz de conta” que as
crianças inscrevem no papel. No entanto, esta expressão “faz de conta” é algo
inapropriada para referenciar o modo específico como as crianças transpõem o real
imediato e o reconstroem criativamente pelo imaginário. A relação realidade-
fantasia não é vivida pelas crianças de modo dicotómico, mesmo se as crianças,
desde tenra idade, conseguem distinguir o que é real e o que é imaginário (cf.
Harris, 2002). É antes um trabalho de ficcionalização, que está presente tanto nas
culturas da infância quanto na criação literária ou artística dos adultos. Os
desenhos das crianças vivem deste mesmo acto de concepção poética do mundo,
sendo que nas crianças esse gesto é consubstancial à experimentação de
possibilidades imaginárias de existência. A transposição imaginária de situações,
pessoas, objectos ou acontecimentos, a “não literalidade” (Goldman e Emminson,

6
Afirma Vigotsky:
“Enquanto a criança desenha, pensa no objecto da sua imaginação como se estivesse falando do
mesmo. Na sua exposição oral ele não se encontra atado pela continuidade do seu objecto no tempo e
no espaço e por ele pode, dentro de certos limites, tomar qualquer parte isolada ou saltar através dela.
(1998[1930] : 96).

16
1987),7 está na base do desenho das crianças e constitui a possibilidade de garantir
a experiência do real: fazer de conta é processual, permite continuar o jogo da vida
em condições aceitáveis para a criança.

A não literalidade tem o seu complemento na reiteração. O tempo da criança é um


tempo recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades, um tempo
sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido. Como afirma W. Benjamin:
“Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas vezes – é de acordo
com este pequeno ditado de Goethe que a criança age. (…) O adulto, com o
coração liberto do medo, goza uma felicidade redobrada quando narra uma
experiência. A criança recria toda a situação, começa tudo de novo.” (1992). O
desenho da criança vive de formas que se repetem, como se “tudo começasse de
novo”, tanto quanto permitem situar na mesma superfície a sensação do presente,
a experiência do passado e a antevisão imaginária do futuro. A transposição do
espaço-tempo de que fala Vigotski tem uma expressão gráfica que sinaliza este
tempo reiterado, que tanto se exprime no plano sincrónico com a contínua
reinscrição de formas e composições, como no plano diacrónico, através da
transmissão de motivos e temas, de modo continuado e incessante, permitindo que
seja toda a infância que se reinventa e recria na autoria colectiva e intemporal do
desenho.

Que isso seja construído de tal modo que o jogo esteja implicado em todas as
formas de representação é, finalmente, um outro traço das culturas da infância. O
desenho, afinal, é a expressão de uma das coisas que as crianças fazem de mais
sério: brincar.

Aspectos metodológicos no estudo dos desenhos infantis

As considerações acima produzidas permitem-nos formular algumas ideias


directrizes em ordem a uma metodologia de estudo dos desenhos infantis.

Os desenhos das crianças são actos simultaneamente sociais e individuais:


realizam-se num espaço interaccional, que é pré-estruturado pelas instituições
onde estão as crianças: a escola, edificada nas suas esferas de articulação como
ordem institucional, ordem pedagógica e ordem interactiva; a família, na
multiplicidade das suas formas e na desigualdade das suas condições de existência;
os ateliês de tempos livres, os clubes, os espaços informais de brincadeira, a rua.
Os desenhos são marcados pela instituição, tanto quanto são atravessados pela

7
É a imaginação de um outro mundo possível que se constitui como um elemento central da capacidade
de resistência que as crianças possuem face às situações mais dolorosas ou ignominiosas da existência,
como é belamente ilustrado, por exemplo, pelo filme de Roberto Benigni “A Vida é Bela”.

17
condição geracional da infância (onde desenhar é tido como “natural” e constitutivo
das formas de comunicação).

O estudo do desenho das crianças deve considerar tanto as condições de produção,


em larga medida definidas pelo contexto institucional, quanto pelo gesto individual
criativo. Em todo o caso, os desenhos infantis são a expressão de actos de inscrição
simbólica marcados pela diferença do gesto criativo. O estudo da natureza dessa
diferença – individual no que respeita ao desenho de cada criança e geracional,
pelo que resulta da alteridade da geração infantil – constitui o alvo da investigação
dos desenhos das crianças. A Psicologia do Desenvolvimento e a Psicanálise
privilegiam nesse estudo o olhar sobre o que no desenho da criança é a marca ou o
sintoma de uma individualidade em formação ou de um mundo psiquíco que se
revela no gesto de inscrição gráfica. Uma abordagem sócio-antropológica procurará
estudar o desenho infantil como uma produção simbólica, isto é um acto social
onde se exprimem, na materialidade própria da expressão plástica, modos
específicos - simultaneamente comuns à cultura de pertença e condição social, e
marcados pela diferença geracional - de interpretação do mundo.

O desenho é especialmente apropriado para aceder a formas de expressão de


crianças pequenas. Como dissemos, porém, essas formas só são verdadeiramente
acessíveis se forem contextualizadas. O desenho é frequentemente acompanhado
de verbalizações das crianças que referem as figuras e motivos inscritos no papel
de modo por vezes paradoxal e fora da inteligibilidade dos adultos. Poder
acompanhar o acto de elaboração do desenho ou captar as opiniões expressas
pelas crianças sobre as suas próprias produções plásticas pode contribuir para uma
maior compreensão dos significados atribuídos e fazer convergir dois registos
simbólicos, aliás nem sempre coincidentes. O desenho e a sua fala são co-
constitutivos de um modo de expressão infantil cujas regras não são as mesmas da
expressão adulta. No desenho das crianças verifica-se a presença de uma autoria
colectiva, adaptação de formas (pelo menos a partir de uma certa idade) e clichés
formais que relevam do desejo de integração numa cultura de pares. O estudo da
produção infantil e não apenas a análise dos produtos, quando possível, amplia a
compreensão dos actos que conduzem à expressão plástica e à reflexividade infantil
sobre ela.

Os desenhos são também a expressão confluente de múltiplos códigos culturais,


por vezes mesmo contraditórios, que exprimem na sua plasticidade distintos níveis
e âmbitos de socialização das crianças: a socialização familiar, as culturas locais, a
cultura nacional, a cultura escolar e as culturas globais aportadas pelos media e a
indústria cultural. As crianças não reproduzem linearmente as formas

18
percepcionadas que emanam desses contextos de socialização, interpretam-nas,
ressignificam-nas e atribuem-lhes formas plásticas próprias que advém do seu
olhar particular sobre o mundo. O estudo dessas formas compósitas e híbridas é
necessária para interpretar os desenhos como objectos simbólicos.

Essa interpretação ganha tudo se for feita à luz das culturas infantis e,
nomeadamente dos seus pilares estruturantes: a cultura lúdica, a fantasia do real,
a interactividade e a reiteração. A articulação de todos eles institui os desenhos das
crianças como artefactos culturais que necessitam, à semelhança das culturas
distintas da nossa, do olhar antropológico que restitui ao outro a autenticidade da
sua própria diferença. Na verdade, a interpretação dos desenhos das crianças
mobiliza a orientação epistemológica e metodológica que recusa o etnocentrismo –
nomeadamente o etnocentrismo geracional adulto ou adultocentrismo – para poder
realizar uma efectiva “interpretação das culturas” (Geertz, 1989).

Finalmente, o estudo dos desenhos produzidos em contextos institucionais onde as


crianças estão sob supervisão adulta – nomeadamente as escolas e jardins de
infância – só se torna possível na medida em que seja capaz de mobilizar as
crianças e os professores como parceiras activas da investigação. Só desse modo
se pode garantir a autonomia da criação plástica pelas crianças e respeitar as
condições institucionais que favoreçam uma plena expressão. Isso coloca em acção
métodos de pesquisa que envolvem e mobilizam a acção individual e colectiva das
crianças e professores. Define-se nesta relação a dimensão colaborativa da
pesquisa e por aqui se exprime o sentido da participação infantil na investigação
(Jones, 2004) sobre os mundos sociais e culturais das crianças.

Conclusão

“Ouvir a voz das crianças” através do desenho é o convite para esse acto
sinestésico de apreensão de uma realidade que tanto nos encanta como por vezes
nos deixa perplexos, face ao modo frequentemente inesperado com que o real
surge transfigurado pelos traço inscrito no papel.

A interpretação dessa linguagem outra que é a dos desenhos não é mais facilitada
pelo facto de todos os adultos terem algum dia desenhado, quando crianças. Na
verdade, para um número muito considerável de adultos, as capacidades (e as
oportunidades) expressivas através do desenho acabaram precisamente com a
entrada na adolescência (Malchiodi, 1998: 98) … Tão pouco a tarefa se simplifica
por essa ser, na verdade a única linguagem que escapa à babelização do mundo
(Larrosa, 2003), dada a sua universalidade. As crianças quando pegam no lápis ou

19
no pincel inventam de novo o acto universal de inscrever no papel o mundo das
linhas e das cores como que inventam e exploram as formas incomensuráveis do
real. Fazem-no, a partir do lugar que ocupam no interior das esferas flexíveis de
aculturação. Fazem-no também, a partir da sua condição de crianças, com os seus
rituais e lógicas, que podem perdurar na memória futura, mas que se perdem
definitivamente na condição adulta.

De alguma maneira, interpretar os desenhos das crianças é descobrir um mundo


algo misterioso, que é esse espaço simbólico continuamente rejuvenescido pela
inventividade criativa da infância. Mas é também, e muito especialmente,
perscrutar o nosso mundo comum, que as crianças inscrevem porque nunca
desenham no vazio social, mas, pelo contrário, o fazem como membros plenos da
sociedade a que pertencem: são meninos ou meninas, vivem no litoral ou no
interior, num país rico e desenvolvido ou num país pobre, nasceram em berço de
ouro ou caminham descalços pela rua, frequentam ou não a escola, têm na pele
qualquer um dos matizes em que é rica a paleta da espécie humana, praticam ou
não praticam uma qualquer religião, a língua que falam ou ainda apenas balbuciam
inscreve na semântica e na sintaxe um mundo apenas dificilmente capaz de
traduzível os mundos de todas as outras línguas.

O desenho das crianças é, afinal, o desenho de um mundo.

Os olhos com que vêem esse mundo têm a limpidez e a perturbação dos primeiros
olhares; é por eles que descobrem objectos, nexos e sentidos que não é legítimo de
modo nenhum menosprezar. O desenho das crianças capta, no gesto com que esse
olhar primordial se transmuta em traço, uma parte da vida que não é visionável a
partir de nenhum outro ponto de vista. Reter esse olhar, ouvir essa voz, contém a
surpresa de (nos) descobrirmos (n)a infinita continuidade da renovação da vida: “É
8
preciso olhar toda a vida com os olhos das crianças” (Matisse, 1953)

8
É a seguinte a afirmação completa de Matisse :
“Ver é já uma operação criativa. Tudo o que vemos, na vida corrente, sofre uma deformação maior ou
menor pelos hábitos adquiridos e isso é talvez especialmente sensível numa época como a nossa onde o
cinema, a publicidade e a imprensa nos impõe quotidianamente um conjunto completo de imagens que
são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário
para lhes escapar exige uma espécie de coragem; esta coragem é indispensável ao artista que deve ver
todas as coisas como se as visse pela primeira vez: é preciso olhar toda a vida como quando se era
criança; a perda desta possibilidade impede-vos de vos exprimirdes de força original, quer dizer
pessoal »

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