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Gisele Toassa
Tatiana Machiavelli Carmo Souza
Divino de Jesus da Silva Rodrigues
(organizadores)
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Psicologia sócio-histórica e desigualdade social
FDVSURÀVVLRQDLV1HVWHVHQWLGRFDEHVDOLHQWDUDVSURIXQGDVGLIHUHQoDVGH
conjuntura entre nosso tempo e o de LSV. O autor vivenciou a Revolução
Russa, em suas privações materiais, compensadas pela esperança na cons-
trução do socialismo. Em contraste, vivenciamos tempos de neoliberalis-
mo autoritário, em um contexto de desesperança política e crise estrutural
do capital. O cenário cultural é tomado pelas mais diversas distopias que
projetam um futuro de aquecimento global, extinção em massa de espé-
cies e culturas, abandono de regiões inteiras da Terra à guerra civil, de-
semprego crescente em consequência das novas tecnologias, formação de
imensos campos de refugiados e o crescimento exponencial da chamada
“população redundante” – massas humanas sem qualquer perspectiva de
inserção do mundo do trabalho. A elas, quando muito, como mostra Bau-
man (2005), assegura-se a sobrevivência biológica por meio de políticas
assistencialistas, mas sem garantias de sobrevivência social; de inserção
digna nos países para os quais migram.
Atravessamos tempos de uma onipresença das tecnologias no cotidia-
no, com as mais diversas ferramentas/recursos de controle da consciência
(ANTUNES; MAIA, 2018). Do Rivotril ao Prozac, passando pelo moni-
toramento das redes sociais via “Big Data”, engendra-se uma governan-
ça autoritária de corpos e mentes frente à qual os destinos da psicologia
FRPRFLrQFLDHSURÀVVmRVmRDLQGDGLItFHLVGHVHSUHYHU
Gardner (2003), cognitivista, profetiza a extinção da psicologia como
ciência independente, a qual se dissolveria na interdisciplinariedade das
ciências cognitivas. Para o autor, tende a ser impossível ao pesquisador em
SVLFRORJLD SHVTXLVDU D FRJQLomR VHP R DX[tOLR GH SURÀVVLRQDLV YHUVDGRV
nos campos do saber em cujo âmbito se deveria pesquisar a cognição.
Frente à crescente complexidade das ciências e sua forte dependência de
equipamentos e da aprendizagem técnica para manejá-los, seria cada vez
menos provável desenvolver conceitos sobre processos psicológicos bá-
sicos, como vivências, consciência, aprendizagem, cultura ou desenvolvi-
mento infantil, o que inviabilizaria a existência da psicologia como ciência
independente. De modo similar, a onipresença das mediações tecnológi-
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Traduzindo perejivânie
Seguindo pistas do tradutor Boris Schnaiderman, Toassa e Souza
(2010) asseveram que a tradução aproximada para o português do sentido
culto de perejivânie, a partir do dicionário russo-russo Ojegov (1968), seria:
“perejivânie – substantivo de gênero neutro. Estado de espírito (alma), ex-
pressão da existência de um(a) forte (poderosa) impressão (sentimento);
impressão experimentada” (p.758). Para Schnaiderman (comunicação pes-
soal, dia 08/12/2006), o autor [Vigotski – G.T.] empregou-a neste sentido.
Ainda seguindo Schnaiderman, os verbos russos agrupam-se em pares
GHVLJQLÀFDGRSUDWLFDPHQWHLGrQWLFR8PGHVVHVSDUHVFRPRWDPEpPRE-
serva Delari Jr. (2009), seria perejit e perejivát, ambos originários do verbo jit
(TOASSA; SOUZA, 2010, p. 759). O sentido coloquial exprime a ideia de
sofrer ou padecer, atravessar uma difícil situação de vida.
O sentido culto aproxima-se muito da semântica do termo perejivânie na
obra de crítica literária “A Tragédia de Hamlet” (VIGOTSKI, 1916/1999).
Neste texto, a vivência pode projetar-se no passado e futuro da existência,
SUHVHQWLÀFDQGRHOHPHQWRVLPSRUWDQWHVQDRULHQWDomRGDV
ações humanas. É substantivo abstrato que delimita um
SURFHVVRSVLFROyJLFRXQLÀFDGRUGHVXMHLWRHREMHWRQXPD
relação imediata, podendo exprimir diversos conteúdos
mentais e ser permeado por qualidades variadas (“vivên-
cias estéticas”, “vivências complexas”, “a vivência de uma
obra”, “vivências de si” etc). Uma terceira tradução seria
emoção (ou feeling) (TOASSA; SOUZA, 2012, p.760).
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Perejivânie e opit
A ideia de edinitsa, unidade de análise, não se aplica ao substantivo mas-
culino opit2, usualmente traduzido como experiência (também experimen-
WRFLHQWtÀFRexpertiseH[SHULrQFLDSURÀVVLRQDOVDEHUVREUHDOJRHWF1D
língua portuguesa, a ideia está no mesmo campo semântico de perejivânie,
sendo comum ouvirmos dizer que “vivências são experiências da relação do
sujeito com o meio”. Ou seja, “experiências” acabam sendo termo mais
compreensível para nós, falantes da língua portuguesa.
2 Termo não localizado em Varshava e Vigotski (1931) (o que sugere não ser uma categoria para
Vigotski, propriamente dita.
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1HVVHWUHFKRYHPRVRVDXWRUHVDÀUPDUHPFODUDPHQWHDUHODomRHQWUH
ato/atividade e conteúdo vivenciado. Embora eles empreguem o termo
deiatelnost (promovido a objeto da psicologia soviética a partir de meados
da década de 1930, ver YASNITSKY, 2009), vale notar que o mesmo Di-
cionário não inclui o termo atividade, mas sim akt. Este é tomado no
sentido mais geral de movimento ou força, embora ainda não estabeleça
laços mais profundos com outros conceitos na própria psicologia do au-
3 O exemplo mais claro desse uso está na “Psicologia Pedagógica” (VIGOTSKI, 2003). O autor dife-
rencia modalidades de experiência com relação às simples reações hereditárias. Essas experiências
elaboram-se como reações hereditárias multiplicadas pela experiência pessoal (ou seja, os reflexos
condicionados); além da experiência histórica, social e a duplicada (consciência).
4 Wilhelm Wundt (1832-1920) é considerado o pai da psicologia científica moderna. Geralmente lem-
brado pela criação do primeiro laboratório dedicado à psicologia fisiológica em Leipzig (1879), cumpre
destacar que devemos a Wundt também a constituição de um sistema teórico em psicologia – o volun-
tarismo – caracterizado pelo estudo da experiência imediata em um viés monista. Nesta, sintetizam-se
os elementos oriundos dos nossos sentidos, em um processo de formação de complexos psíquicos
relativamente autônomos com relação ao físico (ARAUJO, 2010).
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6 A confusão de Blunden (2016, p.10-11) com o termo completa-se quando ele afirma que perejivânie
é atividade que demanda sempre o suporte de outros para ser interpretada, ou em tecer relações com
autores tão díspares como Vasilyuk, Kübler-Ross e Winnicott. Em linhas gerais, notamos que os esfor-
ços do autor revelam a prevalência de ideias mais afinadas com a teoria da atividade, que se tornou
hegemônica na psicologia soviética a partir da década de 1930.
7 Na esteira de Toassa e Teo (2015), consideramos as psicologias críticas como aquelas marcadas pela
reflexividade e preocupações emancipatórias.
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Vivências e desenvolvimento
Veresov tem sido um dos pesquisadores mais ativos na defesa da noção
das vivências como unidade das características pessoais e desenvolvimen-
tais, condição sine qua non para que uma relação social seja internalizada no
contexto de “eventos dramáticos” da existência do sujeito. Como todos
os demais comentadores abordados neste texto, o autor destaca a ideia
de desenvolvimento como processo dialético complexo pelo qual o so-
cial se individualiza; o indivíduo torna-se parte da situação social e esta
é determinada pelas vivências individuais. A conexão com o conceito de
GUDPDHRVDYDQoRVUHWURFHVVRVHFRQÁLWRVGDGLDOpWLFDVmRIXQGDPHQWDLV
Embora para Veresov e Fleer (2016) vivênciaVHMDXPDGHÀQLomRIHQRPHQR-
lógica (pois, em uma perspectiva subjetiva, tudo é vivência, razão pela qual
WUDWDVHGHXPDHVSpFLHGH´GHÀQLomRLQGHÀQLGDµFRPRDYLVDPRVDXWR-
res), seria no campo da teoria do desenvolvimento que elas se realizariam
plenamente como conceito articulado a outros da psicologia vigotskiana,
para além de ser simples ideia ou noção.
2WHUPR´YLYrQFLDµJDQKDIRUoDQDVUHÁH[}HVGH9LJRWVNLVREUHDSH-
dologia, i.e., a ciência do desenvolvimento infantil (TOASSA, 2009). O
livro Conferências sobre pedologia (em particular a quarta conferência: “A ques-
tão do meio na pedologia”, 1935/2010; 2001b), tem ganhado certo volu-
me no comentário nacional e internacional. Não sabemos com exatidão
quais as condições do manuscrito, que, tampouco, são comentadas pelos
autores do Simpósio sobre perejivânie. A tomar por Meshcheriakov (2010, p.
720), o mais provável é que o manuscrito reduza-se a simples estenogra-
mas de conferências proferidas para uma audiência não muito especializa-
da, sem passar por qualquer tipo de revisão do autor antes de sua morte.
Yasnitsky et al. (2016), em sua rigorosa avaliação baseada em múltiplos cri-
WpULRVTXHLQFOXHPDVSUySULDVQRWDVDXWRELRJUiÀFDVGH/69QmRLQFOXLR
livro póstumo Lektsii po pedologuii (“Conferências sobre Pedologia”, 2001b)
entre as principais obras do autor.
De modo similar aos psicólogos de nosso tempo, os pedólogos em
formação que se constituíam na plateia de LSV aprendiam métodos de
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3DUD9LJRWVNLDFRQVFLrQFLDpXPÁX[RGHOLPLWDGRSUHFDULDPHQWHHQWUH
dois umbrais: o das sensações e o da seleção ativa e vital operada nestas
últimas. O que não se refrata, nunca se refratou – tenha origem dentro
ou fora do corpo – não pode ser conteúdo da consciência; ora, todos os
mal-entendidos e quiproquós; o uso de uma palavra que suscita vivências
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8 Vale notar que na página 688 da tradução de “A questão do meio na pedologia” (1935/2010) seria
mais adequado traduzir o termo “apreensão” por “atribuição de sentido”.
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HVSHFtÀFDVVmRUHVSRQViYHLVSHODRULJHPGHOD3RUWDOUD]mRRVSDLVVmR
muito mais relevantes nas vivências das crianças do que outros adultos.
A importância dos cuidados maternos para a sobrevivência física e
mental da criança implica-se na formação das vivências infantis com
UHVSHLWR j ÀJXUD PDWHUQD 2EYLDPHQWH DV PmHV SRGHP HVWDU DXVHQWHV
e outras pessoas serem responsáveis pelas crianças. Mas, sob o pon-
to de vista dos sistemas psicológicos culturais, o próprio contraste das
VLJQLÀFDo}HVSDSpLV´PmHµRX´EDEiµSHUPLWHQRVSHUFHEHUGLIHUHQoDV
LPSRUWDQWHVHQWUHHVVDVÀJXUDVSDUDXPDFRQVWLWXLomRGHHYHQWRVGUDPi-
ticos de formação da personalidade.
+iRXWURVSRQWRVLQTXLHWDQWHVRXYDJRVQDVUHÁH[}HVFOtQLFDVGH/69
7H[WRGR&ROHWLYR(UDVH'LDVSUREOHPDWL]DDVVLPSOLÀFDo}HVSUH-
sentes na conferência, das quais destacamos a suposição (falsa) de que o
alcoolismo da mãe criaria um meio objetivo idêntico para cada criança.
Tal ideia de um meio “idêntico” só poderia ser verdadeira para os índices
DEVROXWRVHQmRUHODWLYRVGRPHLRDRTXHRÁX[RGRUDFLRFtQLRGH9LJR-
tski contrapõe-se desde o início do texto. O Eras e Dias (2017) também
coloca em xeque a suposição de que as três crianças pudessem ver a cena
exatamente da mesma perspectiva. Seria possível que a mãe as agredisse
igualmente? Essa agressão era física ou também psicológica? O que dizia
DPmHVREUHHVVHVDWRV"'HTXHIRUPDMXVWLÀFDYDVXDFRQGXWDRXPHVPR
DWULEXtDVHQWLGRjUHODomRFRPFDGDÀOKRDOpPGDSUROHFRPRXPWRGR"
São perguntas, obviamente, sem resposta no contexto de um relato
FOtQLFR WmR EUHYH 1mR REVWDQWH p LPSRUWDQWH ÀQDOL]DU DV SUHVHQWHV
UHÁH[}HVFRPXPDQHJDWLYDjLGHLDOLEHUDOVXEMHWLYLVWDGH%OXQGHQ
SDUDTXHP´RÀOKRPDLVYHOKRGRFRQKHFLGRHVWXGRGHFDVRYLJRWVNLDQR
supera [grifo nosso] o problema da mãe alcoolista ao transformar a
situação objetiva, ao mudar-se a si mesmo, tornando-se o ‘homenzinho’
GDFDVDµS,VVRHTXLYDOHDDÀUPDUTXHEDVWDULDPXGDUQRVVDSHUFHSomR
GH XPD VLWXDomR SDUD TXH HOD VH PRGLÀFDVVH ² TXDQGR FRPR YLPRV
anteriormente, a vivência é relação da consciência/personalidade-meio,
constituindo-se da unidade desses dois pólos. A simples mudança de
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Considerações finais
O presente capítulo problematizou aspectos centrais, no comentário
contemporâneo, relativos ao conceito de vivência em L.S. Vigotski. Teve
início abordando se, e como, estaríamos na aurora de um “novo irracio-
nalismo”, o que pautaria a busca, em LSV, por fundamentos de uma psi-
cologia das vivências. Considera, ainda, que, por ser a noção de vivência
XPDHVSpFLHGH´GHÀQLomRLQGHÀQLGDµjTXDO9LJRWVNLDWULEXLXPDLRUFHQ-
tralidade em textos não-revisados, faz-se bastante complexo articulá-la na
obra do autor; tanto mais devido a ser termo de difícil tradução. Por tal
razão, não fugi à regra da maioria dos textos sobre esse tema, explanando
questões de tradução e sentido do termo.
Em meus estudos, pude constatar algumas convergências entre os co-
mentadores, por exemplo: no reconhecimento de que a análise das vi-
vências tem um papel metodológico no campo da investigação dos fenô-
menos desenvolvimentais da consciência/personalidade e, neste sentido,
trata-se de um “prisma” que refrata aspectos parciais/totais do meio (e
QmRGHXPHVSHOKRFXMDIXQomRpUHÁHWLOR(PPLQKDOHLWXUDHVVDFRQ-
vergência deve-se à maior presença do conceito de vivência no campo da
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XPDSVLFRORJLDPDU[LVWDSDXWDGDHPXPDUHÁH[mRDQWLFDSLWDOLVWDVREUHRV
GHVDÀRVGRPXQGRFRQWHPSRUkQHRHPVHXGUDPiWLFRJLURQDGLUHomRGH
um neoliberalismo irracionalista e autoritário.
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