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A Falta de Sentido da Vida: Um Desafio para o Psicólogo1

Viktor E. Frankl

O psiquiatra contemporâneo cada vez mais defronta-se com pacientes cuja queixa é um
sentimento vago, indefinido, uma sensação de que as suas vidas são completa mente fúteis,
algo assim como uma experiência caótica em contraposição àquelas experiências produtoras
de prazer, investigadas e descritas tão magnificamente por Abraham Maslow. Estes pacientes
falam também de uma sensação de vazio, um vazio interno, estado que passei a descrever e
denominar "vazio existencial".

Para expor brevemente as causas do vazio existencial, lançarei mão de dois fatos:
Primeiramente, o homem, diferentemente do animal, não tem a sua conduta dirigida por
drives e instintos; em segundo lugar, diferentemente do homem de outrora, não é mais
orientado elas mesmas tradições e valores. Sem saber o que precisa ou deve fazer, deixa de
saber até mesmo o que basicamente deseja fazer. O perigo disto é que o indivíduo desejará
fazer simplesmente o que as outras pessoas fazem, e neste caso o faz por conformismo, ou
simplesmente fará o que as outras pessoas desejam que ele faça, neste caso o faz por
totalitarismo.

Em outras palavras, dois fenômenos importantes, observados no mundo ocidental e oriental,


respectivamente, podem ser explicados até certo ponto, pelos efeitos do vazio existencial. A
literatura recente a que temos acesso, proveniente de países atrás da Cortina de Ferro, revela
que esta frustração existencial não se restringe apenas aosestados capitalistas, e pode ser
observada também nos países comunistas, particularmente entre os jovens. É o que nos
assegura Stanislav Kratochvil, psicólogo tchecoslovaco.

Uma afirmação similar foi feita posteriormente pelo Dr. Vymetal, psiquiatra da Olornouc
University. Segundo o que disse, num encontro de psiquiatras realizado atrás da Cortina de
Ferro, não podemos mais nos contentar com a psicoterapia baseada unicamente nos conceitos
pavlovianos. "Sou um velho adepto de Pavlov" disse ele, "mas declaro: persistindo em
conceitos tais como reflexos condicionados e/ou incondicionados não mais serviremos para
dar apoio a estes pacientes que se queixam atualmente ·da falta de sentido da vida".

Naturalmente que o vazio existencial não é a única origem e causa do totalitarismo e/ou
conformismo; é mais provável que seja um componente dentro da etiologia, dentro da
patogênese. Além do mais, há uma terceira consequência do vazio existencial; mais
especificamente, o neuroticismo. Há um novo tipo de neurose, uma nova síndrome, que
denominei neurose noogênica. Nesse caso, a neurose deriva-se da frustração existencial, do
desespero diante da aparente falta e significado da vida. Não se deve buscar a origem desta
neurose no passado, nos conflitos entre o ego e o superego etc., e sim nos problema
espirituais e existenciais, e, finalmente, no não menos importante vazio existencial - a

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In: MILLON, Theodore. Teorias de psicopatologia e personalidade. Rio de Janeiro: Editora Interamericana, p. 153-8, 1979.
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sensação de falta de sentido da vida que domina um grande número de pessoas nos dia de
hoje.

James C. Crumbaugh, pesquisador e diretor de um hospital americano, elaborou um teste


especial denominado teste PIL (Purpose in Life) a fim de diferenciar diagnosticamente as
neuroses convencionais ou tradicionais — isto é, as neuroses psicogênicas - das mais recentes,
as neuroses noogênicas. Obteve resultados a partir de uma amostra de 20 sujeitos,
aproximadamente, e estes resultados demonstraram que a neurose noogênica diferencia-se
provavelmente do tipo convencional. É uma nova síndrome, totalmente incompatível com a
condição humana. Baseado em resultados similares obtidos na Europa e na América, concluiu
que cerca de 20 por cento dos casos poderiam ser perfeitamente diagnosticados como
neurose noogênica.

Como uma espécie de primeiro apoio em tais casos, parece-me necessário mostrar ao jovem
que o desespero deles a respeito de uma aparente falta de sentido da vida não é motivo de
vergonha, mas pelo contrário, motivo de orgulho. É uma descoberta humana, porque é um
privilégio do homem não admitir a priori que a vida tenha significado, mas anates de tudo,
ousar questionar esse significado. É também privilégio do homem o fato de não se limitar
apenas a buscar o significado; vai mais além, questionando e desafiando o sentido da vida. Isto
é válido para os jovens que têm coragem de agir desta maneira. Entretanto, é preciso que
esperem pacientemente até que, cedo ou tarde, o significado se tome claro para ele, em lugar
de recorrer diretamente ao suicídio devido a este desespero existencial. Em primeiro lugar,
deve reconhecer que a coragem de questionar o sentido da vida é antes de tudo, a
manifestação da honestidade e sinceridade intelectual. Portanto, é algo pelo qual se deve ter
orgulho. Por outro lado, devem buscar primeiramente a objetividade; ganham perspectiva
observando tal problema ameaçador a certa distância. Isto em si mesmo é benéfico quanto ao
aspecto da saúde mental. Além disto, devem observar outro aspecto positivo, o fato de que o
questionamento é motivo de orgulho para eles.

O vazio existencial pode ser também compreendido, explicado, e interpretado como


resultante da frustração daquilo que a meu ver é a força motivacional básica que opera no
homem. Denominei-a busca do sentido da vida, em um esforço intencional de simplificar a
questão. Heuristicamente e para fins didáticos, este conceito contrapõe-se à luta pela
Superioridade (o conceito que desempenha um papel tão importante na teoria das neuroses
proposta na psicologia individual de Alfred Adler) e ao princípio do prazer, base de todo o
sistema psicanalítico desenvolvido por Freud. Freud admitiu também um princípio da realidade
que se contrapõe, de algum modo, às operações e às tentativas do princípio do prazer, o que
não altera este estado de coisas, uma vez que, de acordo com o que o próprio Freud afirmou,
o princípio da realidade está também a serviço do prazer, prazer adiado, porém seguro. Além
do mais, a psicanálise baseia-se ainda na validade do conceito do princípio do prazer.

Podemos conceber o princípio do prazer como a luta pelo prazer. Há, como foi mencionado
anteriormente, a luta pela superioridade, e também o conceito introduzido por mim, a luta
pelo sentido da vida, através do qual me refiro exatamente à qualidade intrínseca no ser
humano, a autotranscedência Segundo o meu ponto de vista, o ser humano esta sempre
procurando relacionar-se no mundo. Rejeito a ideia de que o homem, na verdade, busca
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basicamente a obtenção, a manutenção ou a restauração de algum estado interno. Este é um


conceito monadologístico do homem. Neste sentido, o homem é um sistema fechado. O
homem, pelo contrário, busca primordialmente um significado que preencha a sua vida, busca
encontrar outro ser humano com o qual possa relacionar-se; entretanto, nunca está
preocupado primariamente consigo mesmo. Esta é a característica básica do ser humano, a
autotranscendência como a denominei, e somente quando o homem renuncia às suas
motivações primárias, é que se volta, retoma e reflete sobre si mesmo. Posso afirmar, embora
correndo risco, que sempre que observarmos nos seres humanos a prevalência da luta pela
superioridade e/ou luta pelo prazer em lugar da luta pelo significado, teremos indícios de
estarmos lidando com derivativos. A luta pelo sentido da vida, quando malograda, orienta o
homem na direção do prazer e/ou poder; no entanto, a motivação básica humana é a busca do
sentido da vida, é a busca do outro. Nunca se preocupa primordialmente com ele próprio, pelo
contrário, devido a autotranscendência, busca servir a causas mais elevadas que ele próprio, e
busca amar o outro. Amar e servir ao outro sobre o domínio da própria consciência são as
características principais da qualidade autotranscendente da existência humana, que foram
totalmente Ignoradas pelos conceitos tipo sistema fechado como, por exemplo, o princípio
homeostático. Esse princípio fundamenta-se no seguinte pressuposto: o organismo, e também
a psique do homem, busca primariamente manter ou restaurar o equilíbrio interno, não
importando se tais tensões são provocadas por drives ou impulsos instintivos, por
necessidades não gratificadas ou pelo conflito entre ego e superego, ou entre os interesses do
meio social e aqueles da própria psique. Mesmo na biologia, o princípio homeostático foi
rejeitado durante muitos anos, como pode mostrar Ludwig von Bertalanffy no Canadá. Na
neurologia, foi refutado e abandonado finalmente por Kurt Goldstein, o patologista cerebral, e
na psicologia mais recentemente por Gordon Allport, por Charlotte Buhler e Abraham Maslow.
Entretanto, na educação, ainda é aceito como um princípio válido.

A qualidade autotranscendente da existência humana possibilita o clínico observar o dia-a-dia,


que o princípio do prazer, na verdade, anula-se a si próprio. Em outras palavras, "a busca da
felicidade" é autodestrutiva: é uma contradição em si mesma. Asseguro que o indivíduo põe-se
a perseguir ou lutar diretamente pela felicidade, na mesma proporção que é incapaz de
alcançá-la. Quanto mais luta para alcançá-la, mais se afasta dela. Como este fato pode ser
explicado?

Uma vez que o homem tenha uma razão para ser feliz, ou quando tenha encontrado um
sentido para a sua existência, ou quando estabelece uma relação afetiva com o outro, isso o
torna feliz. A felicidade é uma consequência a felicidade acontece, e deve-se deixar que ela
ocorra. O que ocorre quando o homem luta diretamente pela felicidade? Como está ilustrado
na Fig. I, quanto mais o indivíduo se volta para a felicidade ou quanto mais se envolve em uma
busca direta da felicidade, é quando precisamente ele perde de vista a razão para ser feliz, e
consequentemente, a felicidade desaparecerá, já 'que para ele não há mais outra razão senão
a de ser feliz. Não se sente mais motivado a ser feliz. Não mais se preocupa com a busca do
sentido da vida, ou a busca do outro; vê a felicidade como um objetivo imediato a ser
alcançado. Isto pode ser observado nas neuroses sexuais. Afirmo com toda a segurança, após
alguns anos de prática, que se remontarmos à origem de mais de 95 por cento dos casos de
impotência ou rigidez, é provável que nos defrontaremos com pacientes homens buscando
diretamente demonstrar a sua potência (buscando a autoafirmação de sua virilidade), e
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pacientes mulheres tentando- mostrar a si mesmas que são capazes de experimentar o


orgasmo completo. "Perseguem" a felicidade ao invés de deixar que a felicidade aconteça.

O prazer é uma com sequência natural, e não o objetivo básico das motivações humanas; é a
consequência natural que traduz o encontro com o sentido da vida, a consequência natural de
um encontro de amor com outro ser humano; Todas as vezes que se busca diretamente atingir
o prazer, este objetivo deixa de existir, uma vez que isto implica o homem primariamente
preocupado com uma razão para ser feliz, em lugar de ser feliz. Um ser humano preocupado
com outros seres humanos, com significados, transcende a si próprio deixando de ser um
sistema fechado que simplesmente busca garantir a seu cérebro ou a sua psique um estado
constante de prazer, ou homeostase ou qualquer outro conceito que tem a sua origem no
campo dos conceitos monadologísticos que consideram o homem um sistema fechado. Em
outras palavras, o que se observa é que a felicidade é algo difícil de ser alcançado à medida
que é percebida ou se constitui no objetivo único; por outro lado, surge como uma
consequência natural do encontro do sentido da vida, da relação com o outro, da vivência da
autotranscendência, inerente ao ser humano.

A partir da experiência clínica com indivíduos neuróticos, as duas principais escolas


psicoterápicas clássicas formularam conceitos como o princípio do prazer e a luta pela
superioridade. Somente aqueles indivíduos neuróticos que tiveram frustrados seus impulsos
básicos e primários de encontrar o sentido da vida, enfim, somente estas personalidades
frustradas buscam o prazer ou lutam pela superioridade. Uma vez frustrado em sua luta pelo
fim em si próprio, que é o sentido da vida, passam a voltar-se para o efeito mais do que para o
objetivo primário, preocupados com os meios e não com o fim.

A frustração decorrente da busca imediata por aquilo que é uma consequência natural, em
contraposição á luta — objetivo primário do ser humano motivado pela autotranscendência,
implica questões que merecem uma ampla discussão. Refiro-me ao slogan da
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autorrealização. A autotranscendência implica a impossibilidade de o homem buscar


diretamente a autorrealização. A autorrealização só é possível ao ser humano à
medida que encontre o sentido da vida. Desta forma, a autorrealização ocorre como
uma consequência natural. É uma dádiva que caí sobre as mãos de cada um;
entretanto, todas as vezes em que se busca diretamente a autorrealização, esta não
será alcançada, uma vez que não há mais algum motivo que leve o indivíduo a buscá-
la. Se o indivíduo não cumprir a tarefa a qual foi incumbido, como poderá
autorrealizar-se? Não devemos transformar a autorrealização na única meta do ser
humano, porquanto ela pode ser decorrente de outros fatores, entre os quais, a
descoberta do sentido da vida, a dedicação e devoção a outro ser humano a quem se
ama. Poderia resumir tudo isto numa só frase, fazendo uso de uma afirmação de
Pindar, sob a forma de conselho, que considero correta: "Você deve lutar por ser
aquilo que você é"; isto é válido quando você associa esta a uma outra afirmativa,
proferida certa vez por Karl Jaspers: "O homem só consegue ser o que ele é,
impulsionado pela motivação de se fazer a si próprio. "

Logo no início do capítulo, deparamo-nos com a afirmação de que os valores


tradicionais estão em decadência, o que nos deixa a perguntar se é válido sustentar
que a vida não tem mais sentido. Isto não é verdade, porque há uma diferença entre
valores e significados. Somente os valores são afetados pelo declínio das tradições,
enquanto que os significados independem deste fator. Eu diria que os valores são
significados universais. Por outro lado, os significados são particulares enquanto se
referem a uma pessoa única inserida numa situação única. Os significados mudam a
cada momento, de situação a situação, e de pessoa a pessoa.

Os significados são particulares, e, neste sentido, relativos. Referem-se a uma situação


e a uma pessoa envolvida nesta situação. Uma questão que se coloca agora é se são
também subjetivos, como se acredita geralmente. Max Wertheimer, psicólogo,
fundador da psicologia da Gestalt, certa vez afirmou claramente que a necessidade de
uma dada situação, o que equivale dizer, o que a situação significa para o indivíduo, é
uma qualidade objetiva. O grande mestre, já falecido, Rudolf Allers, da Georgetown
University (um filósofo, e não um psicólogo experimental), foi mais cauteloso,
afirmando apenas que aquela é uma qualidade trans-subjetiva. A meu ver, os
significados são objetivos na medida em que são descobertos de maneira responsável,
em lugar de ser inventados de maneira arbitrária. (Este meu ponto de vista opõe-se,
naturalmente, àquele desenvolvido por Jean-Paul Sartre.)

Incidentalmente, há também significados subjetivos. Um indivíduo sob efeito do LSD


atribui significados ao mundo. Descobre significados subjetivos, que não são aqueles
esperados por ele, nem aqueles que irão preencher seu vazio. Isto nos faz lembrar um
experimento realizado por Olds e Milner, na Califórnia. Esses pesquisadores inseriram
eletródios em certos pontos do hipotálamo de ratos e todas às vezes que fechavam um
circuito elétrico os ratos experimentavam, de forma evidente, orgasmo sexual ou a satisfação
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do ter ingerido alimento. Os ratos aprenderam a ativar a alavanca por meio da qual o circuito
era fechado, e pressionavam esta alavanca acima de 15.000 vezes ao dia, todas as vezes
experimentando o orgasmo ou o prazer da nutrição. Após o aprendizado dessa experiência
subjetiva, passavam a desprezar os padrões sexuais originais, e o alimento real que lhes eram
oferecidos. O mesmo ocorre com aqueles que tomam LSD. Passam a ignorar os significados
objetivos esperados por eles (os seus significados particulares devem ser descobertos) porque
se restringem meramente e atribuir significado — significados profundamente subjetivos —
deixando de levar em conta seus significados e escolhas reais, autênticos, preocupando-se
apenas com os significados subjetivos.

Numa era como a nossa, a era do vazio existencial, o homem deve estar equipado com a
capacidade de descobrir significados, descobrir por conta própria o que representa para ele
cada situação em particular, tudo isto somando-se para formar um cordão único chamado vida
humana. Não é dever ou tarefa única da educação satisfazer-se e transmitir tradições, valores
e conhecimentos; é seu dever também dar relevância especial ao desenvolvimento e
refinamento daquela capacidade de descobrir, farejar o significado implícito de uma situação
em articular. Esta capacidade é chamada consciência. Uma época na qual os Dez
Mandamentos estão perdendo aparentemente a sua validade incondicional para tantas
pessoas, todos os homens devem adquirir a capacidade de escutar os dez mil mandamentos
envolvidos nas dez mil situações de sua vida, que passam por sua consciência. Em outras
palavras, a educação deve aguçar e estimular a capacidade do homem ouvir a voz de sua
consciência. Somente quando o homem adquire esta capacidade está apto a enfrentar aquelas
duas consequências do vazio existencial — conformismo e totalitarismo. Somente o homem
com uma consciência atenta e aguçada é capaz de desistir ao totalitarismo e ao conformismo.

Entretanto, o que se observa é que a educação, ao invés de aderir a esta perspectiva de


estimular a consciência do homem, atua reforçando o vazio existencial nas pessoas jovens. Isto
é o reflexo da influência do reducionismo sobre os vários ramos da ciência que é ensinada tão
frequentemente dentro das universidades. Lembro-me de quando estava com 13 anos de
idade, cursando o primeiro grau, havia um professor de ciências, que, enquanto caminhava
para lá e para cá, ao longo das filas de carteiras, ensinava-nos ou oferecia-nos a definição do
que a vida é, em sua essência. "Em última análise", dizia, "a vida não é nada mais que uma
combustão, um processo de oxidação". Sem pedir permissão, pus-me imediatamente de pé e
lhe devolvi a questão. "Se isto é verdade, então, Dr. Fritz, qual é o sentido da vida?" A
concepção da vida como um mero processo de oxidação corresponde a uma teoria
reducionista típica. Na verdade, este é, antes de tudo, um exemplo de oxidacionismo, e não de
reducionismo.

Esta atração pela doutrina reducionista é muito mais observada nos Estados Unidos do que em
qualquer outra parte do mundo. Na University of Vienna, descobri, por exemplo, que 40 por
cento dos estudantes alemães, suíços e austríacos que assistiam às minhas conferências,
confessaram que haviam sentido este desespero existencial provocado por uma aparente falta
de sentido em suas próprias vidas. Comparando com uma amostra similar de estudantes
americanos frequentadores de minhas conferências, 81 por cento revelaram ter passado por
uma experiência de tal natureza. Segundo o meu ponto de vista, a alta incidência do desespero
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existencial entre os estudantes americanos decorre amplamente da prevalência nos Estados


Unidos, do modo reducionista de representar os fatos e dados científicos.

O que é o reducionismo? Eu o definiria da seguinte forma: O reducionismo é um procedimento


pseudocientífico, segundo o qual um fenômeno humano (como por exemplo, o amor, ou a
consciência) não passa de um epifenômeno. É portanto destituído de sua "humanidade". Mais
especificamente, os fenômenos humanos são destituídos de sua natureza humana por serem
reduzidos dinamicamente, ou geneticamente deduzidos de fenômenos essencialmente
subumanos. Ou seja, o reducionismo é um subumanismo.

Deixe-me dar um exemplo. Definir o amor como uma sublimação do sexo, é reduzir o
fenômeno humano a um fenômeno subumano, o instinto sexual. Na verdade, não é e nunca
pode ser uma mera sublimação do sexo, simplesmente porque a sublimação pressupõe uma
capacidade de amar. Em suma, uma pessoa é capaz de integrar a sua sexualidade no conjunto
total de sua personalidade, somente para a segurança de outra pessoa a quem ama. Em outras
palavras, o ego é capaz de integrar o id somente na medida em que tem um impulso amoroso
em relação ao outro. Portanto, se a sublimação do sexo só é possível tendo como base a
capacidade de amar, o amor nunca pode ser visto como produto da sublimação.

Quanto à consciência, merece igualmente uma análise sob o ponto de vista do criticismo. Da
mesma forma que o amor foi reduzido ao id (sexualidade), a consciência é frequentemente
reduzida ou mesmo identificada ao superego. Entretanto, há uma diferença essencial. A
consciência nunca pode ser idêntica ou reduzida ao superego, simplesmente porque não é
atributo da consciência verdadeira, em última instância, contradizer e opor precisamente
aquelas convenções, ideais e tradições que são canalizadas e transmitidas através do
superego. Consequentemente, se o superego encontra algumas vezes oposição por parte da
consciência, esta não pode ser identificada a ele.

Alguns sustentam, enfaticamente, que a consciência é o resultado do processo de


condicionamento. Isto é válido quando é aplicado, por exemplo, a um cachorro que após ter
molhado o chão, move-se sorrateiramente para debaixo do sofá com o rabo entre as pernas. O
animal manifesta indubitavelmente algo que se assemelha à consciência; entretanto, esta não
é a consciência real. A meu ver, é uma ansiedade antecipatória, uma expectativa do medo de
ser punido, e é provável que seja o produto de certo processo de condicionamento. Todavia,
quando o homem "escuta a voz da sua consciência", isto não tem nada a ver com medo do
castigo. Isto é algo diferente, e somente quando esta diferença vem à tona é que penetramos
na dimensão humana e o aspecto humano deste fenômeno passa a ser percebido
intuitivamente.

Para algumas pessoas que supõem que não há nada assim como a consciência, torna-se
aceitável a sua explicação em termos de condicionamentos observáveis nos animais. Reduzem
a consciência a um processo de condicionamento pois partem do pressuposto de que o
homem pode ser explicado através da psicologia animal e do comportamento animal. Com
relação a isto, recordo-me de uma piada vienense sobre dois vizinhos que estavam brigando
porque um acusava o gato que pertencia ao outro de ter comido um quilo de manteiga. O
outro vizinho negava que o seu gato tivesse comido a manteiga, e resolveram ir à presença do
rabino, pedindo-lhe um julgamento salomônico.
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O rabino ponderou e disse, "Você concorda que o gato tenha comido um quilo de manteiga?"

"Sim, um quilo de manteiga. "

"Traga-me o gato. "

Eles lhe trouxeram o gato "Traga-me uma balança", disse.

Eles lhe trouxeram a balança, e o rabino pôs o gato sobre ela, e, acreditem se quiser, marcou o
peso de exatamente um quilo.

"Agora tenho a manteiga", disse o rabino, "mas, onde está o gato?"

Havia uma convicção a priori por parte do rabino de que se há alguma coisa que pese um
quilo, esta coisa deve ser a manteiga. Consequentemente procurava em vão pelo gato. O
mesmo é válido para aqueles que se dedicam ao estudo comparativo entre o comportamento
animal e o comportamento humano; os behavioristas sustentam que se há algo no homem,
deve ser explicado por meio do comportamento animal — reflexos, condicionamento — e para
tal, têm seus métodos próprios, os processos de condicionamento; entretanto, onde está o
homem? O apriorismo que se contrapõe ao empirismo é defendido por cientistas
reducionistas; é refutado por aqueles que consideram o homem como uma unidade integrada,
que experiencia a consciência não como um processo de condicionamento, mas como algo
que lhe é inerente, próprio de sua natureza humana - a menos que eles destruam a sua
natureza humana, contrariando o seu próprio self.

Por que nos defrontamos cada vez mais com cientistas que têm uma orientação reducionista?
Isto se deve ao fato de estarmos vivendo uma época de especialistas. A meu ver, o especialista
é um homem que não vê mais a floresta da verdade em favor das arvores os fatos. Em outras
palavras, ele está preocupa o com fatos isolados e dados fornecidos por uma ciência
compartimentalizada e incapaz de chegar a um conceito integrado do homem.

A questão é se as distintas concepções do homem, ou de um fenômeno particular no homem,


impedem necessariamente que cheguemos a um conceito integrado do ser humano. Penso
que não. Considere o problema da visão estereoscópica. Na visão estereoscópica, duas
imagens diferentes são dadas ao observador. As imagens são diferentes, mas é precisamente
este fato que abre uma nova dimensão - a dimensão do espaço. Ou seja, o fato da pesquisa
científica produzir resultados diferentes não implica necessariamente confusão; tudo o que
precisamos é aquilo que em fisiologia é chamado fusão das imagens na retina. Isto é, o fato
das visões fornecidas pela ciência serem distintas não significa perda de conhecimento; pelo
contrário pode produzir um ganho de conhecimento, possibilitando o alcance da fusão das
imagens que nos levam ao Weltanschauung unificado, ou conceito do homem.

Entretanto, não vamos inverter o curso da história; a sociedade de hoje não pode prescindir do
especialista. A investigação científica moderna é profundamente caracterizada por aquilo que
se chama trabalho de equipe, ou seja, pelo esforço de cooperação entre as equipes de
especialistas. A meu ver, a ameaça ou o perigo principal não se encontra no fato de que os
cientistas estão se especializando cada vez mais. A perda e a consequente falta de
universalidade não contribuem necessariamente para o surgimento do reducionismo. O que
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deploramos não é a especialização crescente de cientistas, e sim a generalização crescente dos


especialistas. Os especialistas pretendem cada vez mais chegar a generalização. Por exemplo,
um biólogo que sustenta que a existência e a vida humanas podem ser explicadas inteiramente
na área da biologia, em termos meramente biológicos, está transformando a biologia em
biologismo. Resumidamente, um especialista pode transformar a sociologia em sociologismo,
psicologia em psicologismo, e assim por diante. No momento exato em que fazemos uma
afirmação tão generalizada sobre o homem, transformamos a nossa ciência em uma mera
ideologia. Em suma, é provável que o que pode ser chamado terrible simplificateur pode muito
bem ser complementado pela noção terrible généralisateur.

Por sua vez, a afirmativa de que "o homem não é nada mais do que um computador", é
supergeneralizada. Como neurologista, posso dar testemunho da legitimidade da utilização do
modelo de um computador como uma analogia para explicar o modo de funcionamento do
sistema nervoso central. Entretanto, o erro está contido na frase "nada mais que", de forma
alguma verdadeira, uma vez que o homem é infinitamente mais complexo do que um
computador.

Antigamente, o niilismo se ocultava atrás do termo "nada". Atualmente, o niilismo revela-se


pelo uso da frase "nada mais que". Este "nada mais que" que caracteriza o niilismo dos nossos
dias, não deve ser confundido com o existencialismo. A mensagem real transmitida pelo
existencialismo não é absolutamente a nulidade do ser humano. Diria que a verdadeira
mensagem do existencialismo é o "nada" do homem, a ideia de que o ser humano não é uma
coisa, e o ser humano não deve ser nunca coisificado, nunca reduzido totalmente ao aspecto
objetivo. Falarei mais uma vez sobre o reducionismo. Não se deve subestimar o impacto
devastador de uma doutrinação presente em todas as linhas teóricas influenciadas pelo
reducionismo. Neste ponto, citarei um exemplo extraído de um estudo realizado por R. N. Gray
com a colaboração de 64 médicos, II dos quais psiquiatras. O estudo revelou que durante o
curso médico, o cinismo em regra ascendia, à medida que o humanitarismo perdia prestígio.
Somente após a conclusão do curso médico, houve uma inversão nesta proporção que
infelizmente não atingiu todos os indivíduos. Ironicamente, o autor do trabalho que
apresentou tais resultados, define-se a si próprio como um "sistema de controle adaptável" e
define os valores como "homeostáticos controlados por um esquema estímulo-resposta". De
acordo com outra definição reducionista de valores, esses não são nada mais que formações
reativas e mecanismos e defesa. Minha reação a essa teoria se deve ao fato de não estar
preparado para viver pela segurança de minha formação reativa, e muito menos para morrer
em prol dos meus mecanismos de defesa. Tais interpretações reducionistas servem
provavelmente para debilitar e desgastar a apreciação dos valores. Como exemplo, deixe-me
registrar a seguinte observação. Um jovem casal de americanos retomou da África onde
serviam como voluntários do Exército da Salvação, sentindo-se totalmente aborrecidos e
desgostosos. No início, tinham que participar obrigatoriamente de sessões de grupo
coordenadas por um psicólogo que fazia uma espécie de jogo que era aproximadamente o
seguinte: "Por que vocês ingressaram no Exército da Salvação?" "Porque queremos ajudar as
pessoas menos privilegiadas." "Então, vocês se sentem superiores a elas." "De alguma forma,
sim." "Frequentemente, deve haver em vocês, a nível inconsciente, uma necessidade de
provar a vocês mesmos que são superiores." "Bem, nunca analisei a questão sob este ângulo,
mas você é psicólogo e certamente sabe melhor sobre isso". E prosseguia, nesta mesma linha
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de atuação. O grupo era doutrinado a interpretar seu idealismo e altruísmo como deficiências.
E muito pior do que isto, os voluntários "estavam constantemente checando-se mutuamente,
tentando descobrir "qual o motivo oculto" de cada um", segundo o que me foi revelado por
um aluno que estudou em Viena no ano passado, em meu hospital. Trata-se de um exemplo
de algo que pode ser considerado uma hiper-interpretação. A busca de revelações é válida,
mas deve parar tão logo se defronte com aquilo é autêntico, genuinamente humano, no
homem. Se tal não ocorre, a única coisa que resta a fazer é desmascarar o próprio "motivo
oculto" do psicólogo "desmascarador", principalmente, sua necessidade inconsciente de
subestimar a grandeza do homem.

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